camargo, margarida lacombe - epistemologia e metedologia do direito

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FERNANDO GAMA DE MIRANDA NETTO Organizador EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO ALEXANDRE GARRIDO DA SILVA ALEXANDRE VERONESE DANIEL BRANTES FERREIRA DELTON RICARDO SOARES MEIRELLES FÁBIO PERIN SHECAIRA FERNANDA ANDRADE ALMEIDA FERNANDO GAMA DE MIRANDA NETTO JOSÉ RIBAS VIEIRA LUIZ EDUARDO FIGUEIRA MARCELO DE ARAUJO MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO NOEL STRUCHINER RICARDO NERY FALBO RODRIGO DE SOUZA TAVARES Colaboradores CAMPINAS/SP 2011

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Page 1: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

FERNANDO GAMA DE MIRANDA NETTO

Organizador

EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA

DO DIREITO

ALEXANDRE GARRIDO DA SILVA ALEXANDRE VERONESE

DANIEL BRANTES FERREIRA DELTON RICARDO SOARES MEIRELLES

FÁBIO PERIN SHECAIRA FERNANDA ANDRADE ALMEIDA

FERNANDO GAMA DE MIRANDA NETTO JOSÉ RIBAS VIEIRA

LUIZ EDUARDO FIGUEIRA MARCELO DE ARAUJO

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO NOEL STRUCHINER

RICARDO NERY FALBO RODRIGO DE SOUZA TAVARES

Colaboradores

CAMPINAS/SP

2 0 1 1

Page 2: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

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PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO M O D E R N O :

DA E X E G E S E À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. A Escola da Exegese - 3. A Crítica de FRANÇOIS GENY - 4. A

Escola Histórica do Direito - 5 . 0 Formalismo Jurídico na Alemanha- 6 .0 Positivismo

Jurídico - 7. A Crítica de JHERING ao Formalismo Jurídico Alemão - 8. A Jurisprudência

dos Interesses - 9 - 0 Movimento para o Direito Livre - 1 0 . 0 Retorno ao Formalismo

com HANS KELSEN - 11. A Jurisprudência dos Valores - 12. Considerações Finais -

13. Referências Bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

O pensamento jurídico moderno, ou as várias correntes filosóficas que pen­saram e escreveram sobre o Direito no século XLX, detiveram suas preocupações em torno dos valores que servem de essência ao próprio Direito. Seriam eles basi­camente a justiça, a certeza e a segurança. Entendemos que toda condição ética e moral se concentra no âmbito da justiça, assim como a ordem se refere à certeza e à segurança. É repassarmos a história do mundo moderno para percebermos que, mesmo antes do problema da "justiça", aparece a necessidade da "segurança". 1

Se é esta a modernidade que agora se questiona, é sobre ela que nossas atenções devem recair, tomando-a como paradigma de análise.

É o momento em que o cartesianismo se impõe. Característico disso é a te­oria do contrato social, criado pela razão e que irá fundamentar a ordem social dos iluministas. A figura almejada de um legislador racional, criador de uma nova ordem, a despeito dos costumes e da tradição existentes, encontram fundamento nos escritos de DESCARTES:

N ã o h á t a n t a p e r f e i ç ã o n a s o b r a s c o m p o s t a s d e vár ias p e ç a s , e fe i tas p e l a s

m ã o s d e v á r i o s m e s t r e s , c o m o n a q u e l a s e m q u e a p e n a s u m t r a b a l h o u . [...] E

a s s i m p e n s e i q u e as c i ê n c i a s d o s l ivros , p e l o m e n o s a q u e l a s cu j a s r a z õ e s s ã o

1 A segurança e a o r d e m são os valores t íp icos d o m u n d o m o d e r n o . C o m e les t ivemos a

cr iação d o Es tado de Dire i to cu jo intui to foi o de e s t abe l ece r previsões e evitar o arbí tr io.

A tôn i ca d o p e n s a m e n t o c ient í f ico-car tes iano es tá dada pe la segurança q u e a verdade

p o d e trazer. A respe i to , diz DESCARTES: " E U t inha s e m p r e u m i m e n s o de se jo de a p r e n d e r a

dis t inguir o verdade i ro d o falso, pa ra ver c la ro e m minhas ações , e caminha r c o m segurança

nes ta vida." Discurso do Método, p . 1 5 .

Thais
Nota
Elo de JUSTIÇA, CERTEZA E SEGURANÇA
Page 3: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

1 7 2 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

MARGAWDA MARIA LACOMBE CAMARGO

a p e n a s p rováve i s , e q u e n ã o t ê m n e n h u m a d e m o n s t r a ç ã o , s e n d o c o m p o s t a s

e a u m e n t a d a s p o u c o a p o u c o p e l a s o p i n i õ e s d e m u i t a s p e s s o a s d i f e r e n t e s ,

n ã o s e a p r o x i m a m t a n t o d a v e r d a d e q u a n t o o s s i m p l e s r a c i o c í n i o s q u e u m

h o m e m d e b o m s e n s o p o d e fazer n a t u r a l m e n t e s o b r e as c o i s a s q u e s e l h e

a p r e s e n t a m . 2

Os teóricos do racionalismo, que trataram da laicização do poder estatal,

deslocando o eixo da origem do poder que antes se situava na esfera divina, para

a razão ou para a natureza humana, clamavam, antes de mais nada, pela necessi­

dade da certeza e da segurança nas relações sociais. THOMAS HOBBES 3 centraliza no

Soberano todas as expectativas de segurança para a sociedade inglesa do século

XVII. Convoca um tipo de Soberano até então desconhecido na tradição medieval:

o Soberano absoluto composto pelas pessoas, seus corpos e mentes, como dele­

gado inerente de suas vontades. JOHN LOCKE4 cria um soberano coletivo: o poder

legislativo, composto pela delegação temporária das vontades dos homens, que

mantêm o poder originário. Por outro lado, LOCKE vê como fundamental e impres­

cindível a existência de um poder executivo composto por magistrados capazes

de aplicar imparcialmente as leis soberanas ditadas pelo legislativo. ROUSSEAU5 enal­

tece a figura do cidadão, detentor originário do poder soberano, como o único

capaz de conduzir legitimamente a vida pública. Imagina uma ordem estatal em

que indivíduo e Estado se identifiquem numa mesma e única estrutura de poder.

Mais foi com LOCKE que a teoria do Estado liberal melhor se estruturou, segui­

do mais de perto por MONTESQUIEU6 e os Founding Fathers1 americanos. O Estado

Moderno iguala-se à ordem configurada pelo ordenamento jurídico positivo e,

com isso, a segurança e a certeza poderiam ser encontradas nas leis legitimamente

criadas pelos representantes do povo e garantidas pelo Estado por meio da ação

do poder judiciário. Leis que obrigam tanto governantes como governados. A lei

passa a ser vista como mecanismo de controle das ações de governos, à medida

que inibe o abuso do poder, e como regra que garante a igualdade entre os ho­

mens. Encontra-se, afinal, uma fórmula para conter os desmandos dos governan­

tes, enquanto a cidadania se afirma.

No âmbito da vida privada, marcada pelas relações entre particulares, a pre­

sença de um poder estatal capaz de manter a ordem através da mediação na com­

posição dos conflitos também aparece como necessária. Mais do que uma questão

2 Discurso do Método, p p . 1 5 e 17 .

3 THOMAS H O B B E S . Leviatã ou Matéria: forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Trad.

de JOÃO PAULO MONTEIRO e MARIA BEATRIZ NIZZA DA SILVA. S ã o Paulo: Nova Cultural , 1 9 9 7 .

4 JOHN LOCKE. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. de ANOAR ALEX E E . JACY MONTEIRO. S ã o

Paulo: Abril Cultural , 1 9 7 8 .

5 JEAN-JACQUES ROUSSEAU. Do Contrato Social. Trad. de LOURDES SANTOS MACHADO. São Paulo: Nova

Cultural , 1 9 9 1 .

6 MONTESQUIEU. DO Espírito das Leis. Trad. de FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E LEÔNCIO MARTINS

RODRIGUES. 2 . ed . São Paulo: Abril Cultural , 1 9 7 9 .

7 HAMILTON, MADISON E JAY. O Federalista. Brasí l ia: U n B , 1 9 8 4 .

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Thais
Nota
O Estado deve ser formulado em cima das leis.
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1 0 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES I73

PARTE IV - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

de justiça, que não é de todo ausente, haja vista o requisito da imparcialidade para o terceiro mediador, impõe-se, antes, a manutenção da ordem fundada na liber­dade individual. 8 No entanto, de nada adiantaria um corpo de leis criativo e bem elaborado mas desprovido de mecanismos capazes de garantir-lhes a execução. 9 A norma justa era aquela feita pelo povo, ainda que por meio de representantes elei­tos, e que cabia ser aplicada sem intermediações. Ao poder judiciário competiria simplesmente uma ação eficaz, capaz de concretizar a nova ordem tal como fora estabelecida. A teoria da separação dos poderes, bem como a igualdade garantida pela aplicação regular da lei vêm, desta maneira, garantir a estrutura formal e os ideais do Estado de Direito.

Na pós-modernidade, contudo, esse referencial de ordem e segurança garan­tidos pelo formalismo abre espaço para o valor da justiça, garantido não mais pela ação formal de cunho abstrato, mas pela razoabilidade referente à decisão de cada caso concreto. É quando as relações intersubjetivas e dialéticas, capazes de viabili­zar o consenso e a legitimidade das decisões jurídicas, fazem com que se recupere a antiga retórica clássica e lhe confira objetivos novos.

Contudo, para se chegar ao ponto em que se encontra a filosofia jurídica atualmente, convém percorrermos algumas das principais escolas e movimentos teóricos que pensaram o Direito no mundo moderno, caracterizando a filosofia dé suas respectivas épocas, e que ainda servem de referência à discussão atual.

2. A ESCOLA DA EXEGESE

Sob a ênfase do racionalismo, surge, na França, em 1804, o Código Civil Fran­cês, mais conhecido como Código de Napoleão. A ideia de sistema como conjun­to de elementos estruturados de acordo com as regras da dedução impõe-se no campo da filosofia, com especial repercussão no Direito. 1 0 A criação de um corpo sistemático de normas capaz de uniformizar o Direito, suprimindo a obscurida­de, a ambiguidade, a incompatibilidade e a redundância entre os vários preceitos normativos regionais e setoriais, objetivando, assim, sua aplicação, revela uma vitória da razão sobre outras formas espontâneas de expressão cultural. E como

8 A r e spe i to da p r e d o m i n â n c i a do in te resse individual, vale confer i r a o b r a de MACPHERSON -A

Teoria Política do Individualismo Possessivo de Hobbes até Locke. Trad. de NELSON DANTAS.

Rio de J a n e i r o : Paz e Terra, 1 9 7 9 .

9 T. H . MARSHAL d e m o n s t r a c o m o fundamenta l para a s e d i m e n t a ç ã o da c idadania n o séc . XVIII ,

a p r o t e ç ã o dos direi tos individuais med ian t e a ç ã o v igorosa d o Pode r Jud ic iá r io .

1 0 S e g u n d o TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ J R . , "O n ú c l e o cons t i tu in te dessa teor ia j á apa rece e s b o ç a d a

a o final do s écu lo XVIII . O jusna tura l i smo j á havia c u n h a d o para o Dire i to o c o n c e i t o

de sistema, q u e se resumia , e m p o u c a s palavras, n a n o ç ã o de c o n j u n t o de e l e m e n t o s

es t ru turados pelas regras de d e d u ç ã o . No c a m p o ju r íd ico falava-se e m sistema da ordem da

razão o u sistema das normas conforme a razão, e n t e n d e n d o - s e c o m is to a unidade das

n o r m a s a part i r de pr inc íp ios dos quais t o d o o mais e ra deduzido . In te rpre ta r significava,

en tão , inser i r a n o r m a e m d iscussão na total idade d o s is tema. O r e l a c i o n a m e n t o , p o r é m ,

en t r e sistema e totalidade a c a b o u p o r c o l o c a r a ques t ão gera l do sentido d a un idade do

todo . " Introdução ao Estudo do Direito, p . 2 4 0 .

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ESCOLA TIPICAMENTE FRANCESA, CRIADA EM CIMA DO CÓDIGO NAPOLEÔNICO, BASEADO NA RAZÃO.
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174 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

movimento doutrinário proveniente dos grandes comentaristas do novo Código, surge a chamada Escola da Exegese.

Crédulos nas inúmeras virtudes daquele corpo sistemático de normas, propugnam uma atuação restrita do Poder Judiciário, mediante o apego excessivo às palavras da lei. A atividade dos juízes, na França, então comprometidos com o antigo regime, seria controlada pelo atendimento severo e restrito aos termos da lei. Lei feita pelo povo, em cujo conteúdo se encontra a vontade geral. Na busca do seu significado, privilegia-se então o método de interpretação gramatical, bem como a exatidão das palavras interligadas por preposições de acordo com as regras de pontuação e de estrutura de orações. Por intermédio da gramática, encontrar-se-ia a vontade do legislador reconhecida como a máxima expressão da vontade geral que encarna o poder. Nada poderia ser admissível como ameaça à nova ordem. Qualquer poder, além daquele que verifica o conteúdo expresso da lei transformar-se-ia em arbítrio. E assim, o juiz passa a ser visto como um funcionário do Estado e mero aplicador do texto legal. LAURENT, um dos fautores da Ecole, proclama: "Os Códigos não deixam nada ao arbítrio do intérprete; este não tem por missão fazer o Direito. O Direito está feito. Não há mais incertezas; o Direito está escrito nos textos autênticos." 1 1

Característico do impulso cientificista que prima pela certeza, a atividade do jurista deveria ser a mais objetiva e neutra possível. Em nenhum momento o juiz deveria colocar sua índole à mercê da interpretação da lei de forma a desfigurar a verdadeira "vontade do legislador". E dessa maneira, acredita-se na regeneração da Ciência do Direito (Civil) pela Escola da Exegese. O método sistemático tam­bém se apresenta como apropriado no trabalho de interpretação do novo Código, uma vez que o conjunto de normas integrado e harmônico traduz, em si, um sen­tido comum, além do significado isolado de seus artigos, cabendo ao intérprete considerar a lei em conformidade com a totalidade do Código. O dogma da razão, originário do direito natural, exalta de tal forma a capacidade do Código, que leva à completa identificação do Direito com a lei, daí a célebre frase de BUGNET: "Eu não conheço o Direito civil; eu ensino somente o Código de Napoleão." 1 2

Havia uma pretensão de se encontrar na lei a resposta para todos os confli­tos. De fato, em um momento de pouca complexidade social e progresso em lenta evolução, o Código napoleónico conseguiu manter-se praticamente inalterado até o final do século, e com ele as propostas da Escola da Exegese. 1 3 JULIEN BONNECASE, autor do livro L'École de 1'Exégèse en Droit Civil, divide em três os períodos desse

1 1 Apud BONNECASE, p . 1 2 8 .

12 Idem, p. 1 2 8 . 13 A ques t ão das lacunas , p o r e x e m p l o , n o Dire i to n ã o e ra enf rentada pe los t eó r i cos da Esco l a

da Exegese , e m b o r a exist isse n o Cód igo N a p o l e ó n i c o u m a d i spos ição n o sen t ido de q u e

o juiz n ã o pode r i a de ixar de julgar a legando ausênc ia o u obscu r idade na lei , sob p e n a

de se r c o n d e n a d o : "O juiz q u e r ecusa julgar, a p r e t ex to do s i lêncio , da obscu r idade o u

da insuf ic iência da lei , p o d e r á se r p r o c e s s a d o c o m o cu lpado de d e n e g a ç ã o de just iça"-

art igo 4 o do Cód igo de Napo leão . C a b e verificar, a respe i to , o s deba tes q u e a n t e c e d e r a m

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

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ESCOLA DE EXEGESE É ESTRITAMENTE DE INTERPRETAÇÃO GRAMATICAL.
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INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA É INTERPRETAÇÃO DE CONSCENSO GERAL, (INTERP. AUTORIZADA)
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1 0 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 1 7 5

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

movimento: primeiro, o período de formação, que data de 1804 a 1830; em segui­

da, o seu apogeu - 1830 a 1880; e o declínio, verificado por volta de 1880. Além

do apego à literalidade do texto, como característica, BONNECASE aponta, ainda, um

outro aspecto da Escola da Exegese, que é o da estatalidade. O Direito identifica-se

com o Estado, nos seguintes termos:

A Doutrina da Escola da Exegese se reduz, com efeito, a proclamar a onipo­

tência jurídica do legislador, isto é, do Estado, pois queiramos ou não, o culto do

texto da lei e da intenção do legislador, levado ao extremo, coloca o Direito de

uma maneira absoluta nas mãos do Estado. 1 4

A Escola da Exegese firmou, assim, a base teórica do racionalismo jurídico

ocidental, cuja grande obra foi o Código de Napoleão.

3 . A CRÍTICA DE FRANÇOIS GENY

Apesar de toda a ênfase dada pela Escola da Exegese ao aspecto racional do DIREITO tal como este se encontra expresso na lei, que tudo alcançava e tudo pre­via, a despeito, inclusive, do que dispunha o artigo 4 o do Código Civil francês, ao determinar sobre a obrigação do juiz julgar diante do silêncio, da insuficiência ou da obscuridade da lei, encontramos a crítica de FRANÇOIS GENY. 1 5 Por meio de uma construção de base empírica feita sobre o trabalho dos juízes, que se defronta­vam muitas vezes com casos de "lacuna", em vez de teorizar apenas no plano do abstrato ou do meramente racional, GENY faz sua defesa pela "livre investigação científica". Muitas vezes verificava não ser bastante a subsunção do fato à norma geral de maneira a se retirar daí, automaticamente, uma solução para o caso. Sua ideia era a de que, quando o ordenamento jurídico não apresentasse uma lei es­pecífica para determinado caso, o juiz deveria lançar mão da análise feita sobre os fatos sociais, bem como das leis que regem a sua estabilidade, para então obter a regra capaz de resolver a questão. A seu turno, a investigação científica mostrava-se conveniente pelo seu rigor, apto a fornecer não apenas uma solução objetiva e criteriosa, possível de evitar qualquer arbítrio, como também uma solução legíti­ma, pois que originária dos próprios costumes e valores existentes na sociedade. GENY esclarece seu pensamento, sintetizado na ideia da livre pesquisa científica, da seguinte forma: "Pesquisa livre, uma vez que ela se encontra aqui subtraída à ação própria de uma autoridade positiva; pesquisa científica, ao mesmo tempo, porque ela não pode encontrar suas bases sólidas senão nos elementos objetivos, que somente a ciência pode revelar." 1 6

a p r o m u l g a ç ã o d o Cód igo , p r inc ipa lmen te o q u e dizia PORTALIS, r e c o n h e c i d a m e n t e o s eu

pr incipal men to r .

1 4 Bonnecase, p . 1 4 9 .

1 5 Método de Interpretação e Fontes em Direito Privado Positivo ( 1 8 9 9 ) e Ciência e Técnica

em Direito Privado Positivo ( 1 9 1 4 - 1 9 2 4 ) .

1 6 FRANÇOIS GENY. Méthode D'Interprétation et Sources en Droit Privé Positif, 2 A ed. , Librairie

G é n é r a l e de Dro i t & de J u r i s p r u d e n c e , Paris, 1 9 1 9 , p . 7 8 .

Thais
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Primeira escola à tornar a Lei Estatal
Thais
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Tem a mesma ideia da Escola de Exegese, porém a única diferença, é que é necessario preencher as lacunas com os fatos sociais. Construindo uma ideia de Direito em cima da teoria de Durkheim. IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICA. (Connhecida tb como Escola Científica do Direito) - SOCIOLOGIA POSITIVISTA.
Thais
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1 7 6 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

De acordo com GENY, uma vez não obtida a resposta para o problema no sis­tema, o aplicador da lei poderia, por meio da atividade científica, encontrar a so­lução jurídica para o caso fora do âmbito restrito da lei positiva. As possibilidades para se resolverem casos de ausência de lei eram encontradas, dessa maneira, fora do texto legal, ainda que através do mesmo, uma vez que não caberia ao intérpre­te negar a ordem jurídica afastando-se dos seus princípios fundamentantes. Uma pesquisa científica, de base sociológica, seria capaz de oferecer ao intérprete os critérios de justiça prevalecentes na sociedade e que, na realidade, dariam ensejo ao surgimento de novas leis.

De maneira que, na esfera de livre pesquisa, onde nós o consideramos agora, o método jurídico deve ter como preocupação dominante descobrir, ele mesmo, em prejuízo do auxílio de fontes formais, os elementos objetivos que determina­rão todas as soluções requisitadas pelo direito positivo. 1 7

Logo, a atividade do intérprete deveria coadunar-se com as regras e princí­pios gerais norteadoras da ordem jurídica positiva, fundamentais à garantia do Estado de Direito. A esse respeito, escreve RECASÉNS SICHES:

A n t e s d e t u d o h á q u e i n t e r r o g a r a r a z ã o e a c o n s c i ê n c i a p a r a d e s c o b r i r e m

n o s s a n a t u r e z a í n t i m a as b a s e s m e s m a s d a j u s t i ç a . P o r o u t r o l a d o , h á q u e

dir igir-se a o s f e n ô m e n o s s o c i a i s p a r á d e s c o b r i r as le i s d e s u a h a r m o n i a e o s

p r i n c í p i o s d e o r d e m q u e r e q u e r e m . 1 8

Para GENY, a lei continuava a ser considerada como a principal fonte de Direi­to. Antes de se recorrer aos costumes e à livre investigação científica, deveriam ser esgotadas todas as possibilidades de busca de uma solução direta para o caso no Direito positivo. Apesar de admitir-se, pela primeira vez, a procura do direito fora do texto legal, e daí a grande novidade trazida por GENY, a importância da ordem escrita era inquestionável. Na verdade, sua grande contribuição foi para a teoria das lacunas. 1 9

17 Idem, vol .2 , p . 7 9 .

1 8 Apud RECASÉNS SICHES. Panorama do Pensamento furídico do Séc.XX, p . 3 8 .

19 GENY, e m suas crí t icas (apud RECASÉNS SICHES Panorama dei Pensamiento furidico en elSiglo XX, v o l . l , p . 2 8 a 3 0 ) , c h a m a a a t e n ç ã o para as tentativas do gove rno francês, c o m o a cr iação

d o t r ibunal de cassação c o m p o d e r e s para anular t oda s e n t e n ç a q u e violasse e x p r e s s a m e n t e

o t ex to da lei, de forma a impedi r u m a possível in ter ferência do judic iár io sob re o

legislativo, ag red indo a sepa ração dos p o d e r e s . E m re lação ao art igo 4° do Cód igo Civil,

q u e admit ia a ex i s t ênc ia de lacunas ao p ro ib i r o ju iz de recusar s e n t e n ç a s o b r e qua lquer

assun to s u b m e t i d o ao seu c o n h e c i m e n t o , l e m b r a as palavras de Portalis, o mais e m i n e n t e

de t odos os au tores do p r o j e t o do Cód igo de Napo leão , q u a n d o es te de fende a ut i l ização

de pr inc íp ios gerais de Dire i to s o b u m a c o n c e p ç ã o jusnatural is ta : "A missão da lei cons i s t e

e m fixar o s pr inc íp ios gerais do Dire i to e m l inhas gerais: e s t a b e l e c e r p r inc íp ios f ecundos

e m c o n s e q u ê n c i a s , e n o d e s c e n d e r ao de ta lhe de q u e s t õ e s q u e p o s s a m surgir e m cada

maté r ia conc re t a , - a o juiz, a o ju r i sconsu l to , p e n e t r a d o do espír i to gera l da lei , é a q u e m

c a b e fazer as ap l icações . Por isso, e m todas as n a ç õ e s privilegiadas, a o lado d o santuár io das

leis e s o b a vigilância do legislador, se vê s e m p r e formar-se u m depós i t o de máximas , de

dec i sões , de doutr inas , q u e d ia r iamente se depura med ian t e a prá t ica e a conf ron tação dos

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

Thais
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Utilização da Sociologia Positivista.
Page 8: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

1 0 - PENSAMENTO JUSFLLOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 1 7 7

PARTE IV - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

O viés cientificista típico daquele século aparece nitidamente na obra de GENY. NO livro Ciência e Técnica em Direito Privado Positivo, ele trabalha com dois tipos de componentes: o dado e o construído. O construído seria o ele­mento artificial do Direito; e o dado, o elemento natural. Para GENY, O verdadeiro conhecimento, no entanto, dá-se sobre o dado, ou seja, sobre os fenômenos da natureza ou fatos sociais. Dessa forma, atribui um elevado grau de certeza às ações humanas, considerando-as produto da razão natural. O dado racional, segundo ele, é aquele constituído por regras de conduta que a razão faz derivar da natureza do homem e do seu contato com o mundo: seria o Direito em estado bruto. Essas regras de conduta, pela sua imposição ao espírito e correspondência às exigências mais evidentes das coisas, apresentam um caráter de necessidade, e ao mesmo tempo de universalidade e imutabilidade características do direito natural. O Di­reito natural é visto como o conjunto de regras jurídicas que a razão destaca da natureza e das coisas e que, segundo Geny, devem ser pesquisadas de forma que se preparem as bases profundas da organização jurídica positiva. 2 0 Somar-se-iam a elas, ainda, os dados ideais, ou seja, aqueles que representam as aspirações éti­cas ou sociais de uma civilização e que chegam a converter-se em uma espécie de convicção vigente que se impõe ao espírito. Segundo GENY:

R e t o r n a m o s , n a r e a l i d a d e , a o o b j e t i v o n e c e s s á r i o d e n o s s a p e s q u i s a . E l e c o n ­

s i s te e m cons t i tu i r , p o r u m e s f o r ç o c i en t í f i co , u m a e s p é c i e d e D i r e i t o c o ­

m u m , g e r a l p o r sua n a t u r e z a , s u b s i d i á r i o p o r s e u o f í c io , q u e s u p r e as l a c u n a s

d a s f o n t e s f o r m a i s e d i r ige t o d o o m o v i m e n t o d a v ida j u r í d i c a . 2 1

Verificamos, assim, que o cientificismo, de base sociológica, apresentado por GENY, conforma-se com o espírito positivista vigorante então na França, terra de AUGUSTO COMTE.

4. A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO

A Filosofia do Direito, na Alemanha, tem outras bases. Lá, a grande influência da filosofia historicista correspondia, na prática, a uma atitude espiritual que reco­bria todos os campos da atividade humana. Na verdade, o historicismo insere-se no movimento de reação cultural contra a filosofia das luzes, dominante até então. O predomínio da razão e seus amplos poderes conferidos pelo Iluminismo, bem como a força das deduções abstratas que daí advêm devem, segundo o historicis-

deba tes judiciais , q u e a u m e n t a s e m cessa r c o m todos os c o n h e c i m e n t o s adquir idos , e q u e

se há visto s e m p r e c o m o o verdade i ro s u p l e m e n t o da legis lação. Indub i t ave lmen te ser ia de

dese ja r q u e todas as matér ias es t ivessem reguladas pelas leis . Mas a falta de tex to e x p r e s s o

sob re cada matér ia , s u c e d e que u m ant igo c o s t u m e cons t an t e e fundado, o u b e m e m u m a

op in ião o u e m u m a m á x i m a acei ta , o c u p a m o lugar da lei . Q u a n d o nada d o e s t abe lec ido

pe l a lei o u d o q u e n o s é c o n h e c i d o c o m o s u p l e m e n t o de la p o d e n o s dirigir, q u a n d o se

trata de u m fato c o n c r e t a m e n t e novo , há q u e remontar -se aos pr inc íp ios de dire i to natural;

p o r q u e se a previsão dos legis ladores é l imitada, ao cont rá r io , a na tureza é infinita, se

adapta a quan to pos sa in teressar aos homens . . . " p . 3 0

2 0 Cf. GUIDO FASSÒ, Histoire de la Philosophie du Droit, p . 1 6 1 .

2 1 FRANÇOIS GENY. Méthode dlnterprétation et Sources en Droit Privé Positif, p . 8 9 .

Thais
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Dado = Fatos sociais. Construído = Algo feito externamente pelo homem.
Thais
Realce
Romantismo, Historicismo, Nacionalismo.
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1 7 8 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIKEITO

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

mo, ceder lugar às verdades oriundas de manifestações espontâneas e concretiza­

das sobre a realidade.

Não podemos olvidar que também o século XIX experimentou o prestígio

do romantismo alemão, alimentado nos valores da individualidade e da tradição.

Para o romantismo, a imaginação e o sentimento, a emoção e a sensibilidade vêm

substituir a razão como centro de tudo. 2 2 O tema da natureza lhe é caro; mas não

se trata mais do predomínio da razão humana como o elemento distintivo da irra­

cionalidade que vigora no reino animal. A natureza, agora, é aquela representada

pelo mundo sensível, em que o individual concreto se sobrepõe ao abstrato uni­

versal. Para o romantismo, a razão não é capaz de tudo gerar a ponto de modificar

a ordem natural das coisas, negando, com isso, o passado. Ao contrário, os român­

ticos se inserem na história, buscando e sentindo o passado como explicação para

o presente e como motivação para o futuro. O romantismo valoriza a individuali­

dade no que se refere aos sentimentos, crenças, paixões e manifestações espontâ­

neas de toda a ordem, vinculadas à tradição, como forma não apenas de enfatizar

a consciência própria da personalidade de cada um, mas também de traduzir o

indivíduo como parte de uma nação. 2 3

Assim, diferentemente das abstrações intelectualistas da filosofia das luzes, o

desenvolvimento e a formação da sociedade não aparecem para o historicismo ou

para o romantismo como obra da razão, mas como produto espontâneo de forças

irracionais que poderiam ser identificadas com uma racionalidade mais profunda,

no sentido de ser concreta e real. O universal e o verdadeiro apresentam-se para o

historicismo qual realidade encarnada no individual e no concreto: o racional é o

real. 2 4 O Direito natural é o Direito naturalmente produzido pela sociedade e não

se confunde mais com valores de ordem universal, passando a ser reconhecido

como aquele que se realiza através da história, conforme a criação espontânea de

cada povo.

Fruto desse ambiente cultural aparece, na Alemanha, logo no início do século

XLX, o resultado do esforço de alguns juristas, fundadores da tão conhecida Escola

Histórica do Direito, que se ocuparam da formulação de uma nova estrutura me­

tódica para o Direito que não aquela proposta pelo jusnaturalismo do séc. XVII e

primeira metade do XVIII. Verifica-se uma mudança significativa no pensamento

jurídico-filosófico que abandona, por exemplo, os conceitos de estado de nature­

za e de contrato social, em favor de organizações sociais baseadas em instituições

históricas formadas pelo costume.

2 2 Cf., NORBERTO B O B B I O . O Positivismo Jurídico, p . 4 7 e segs .

2 3 A nação , s e g u n d o GUIDO FASSÓ, apa rece c o m o o e l e m e n t o através do qua l o indivíduo se

r e c o n h e c e . Ela de t e rmina a pe r sona l idade de cada um, dando- lhe c o n s c i ê n c i a da sua

s ingular idade e m função da rel igião, da l inguagem, da poes ia , das t rad ições e mani fes tações

e spon tâneas . Cf. Histoire de la Philosophie du Droit, p . 2 9 .

2 4 Idem, p . 2 9 .

Thais
Realce
Thais
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Thais
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10 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES ' I79

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

A Alemanha foi um dos países da Europa Ocidental que mais retardaram na

obtenção de um Código Civil, em boa medida devido à sua fragmentação político-

territorial. A essa ausência, somou-se a grande capacidade acumulada pelos ale­

mães teóricos e práticos do Direito, chamados de pandectistas, de interpretar as

antigas leis romanas herdadas ao Ocidente pelo Código de Justiniano, o Corpus

Iuris Civilis. Por meio do usus modernus pandectarum, procurava-se estabelecer uma consonância entre a lei romana e os costumes locais de origem germânica,

buscando naquela as instituições jurídicas ainda existentes. Isso gerou para a ci­

ência do Direito uma confusão de conceitos e uma assistematicidade nos seus

estudos. Tal situação de relativa desordem deu origem à formação de correntes fa­

voráveis a uma codificação inspirada no modelo francês. Foi o caso de T H I B A U T , nos

idos de 1814, cuja posição gerou disputa com SAVIGNY, que se tornou célebre na

história do Direito. T H I B A U T era a favor da criação de um código; e SAVIGNY, contra.

T H I B A U T pretendia confiar a uma vontade racional e coordenadora o cuidado de

ordenar todo o Direito, sistemática e positivamente, de forma a desenvolver seu

estudo científico. Conforme o entendimento de G U I D O F A S S Ó , T H I B A U T não repugna­

va totalmente o método do historicismo, mas sustentava que a realidade histórica

não podia ser compreendida sem referência à razão; 2 5 o que foi mais do que sufi­

ciente para provocar a resposta de SAVIGNY no sentido de que a melhor forma para

se "juntar", digamos assim, o Direito, não era por meio de um código, mas de uma

ciência orgânica e progressiva comum a toda a nação. 2 6

SAVIGNY, por sua vez, vê o Direito codificado como expressão do despotismo,

porque proveniente e imposto pela razão, de forma, portanto, estranha aos cos­

tumes. Por isso, opõe-se com veemência às teses jurídicas da filosofia das luzes,

baseada na teoria do direito natural, imutável e universal, deduzido da razão. Para

ele, cada povo tem o seu próprio Direito, fundado em elementos culturais, como

a língua, os costumes e a religião. A tomada de consciência desses elementos seria

suficiente para dar origem a um Direito não arbitrário e não acidental, mas real.

Tal como as teorias organicistas, o Direito também não se apresenta como algo

imutável; ele se desenvolve com o povo: nasce, cresce, e morre quando perde a

2 5 Idem, p . 3 6

2 6 Escreve SAVIGNY, de a c o r d o c o m t radução de ADOLFO POSADA: "Resumiré aho ra b r e v e m e n t e

los .pun tos ace rca de los cua les mi o p i n i ó n es tá de a c u e r d o c o n la de los de fensores de u m

Cód igo y los p u n t o s r e s p e c t o de los q u e d i sen t imos .

E n cuan to al fln, e s t a m o s de acue rdo : q u e r e m o s la fundac ión de u n d e r e c h o n o dudoso ,

seguro c o n t r a las u su rpac iones de la arbi t rar iedade y los asaltos de la injusticia; e s t e d e r e c h o

h a de se r c o m u m para t o d a la n a c i ó n y h a n de c o n c e n t r a r s e e n él t odos los esfuerzos

cient í f icos . Para e s t e fin de sean e l los u n Cód igo , c o n el cual só lo u n a mi tad de Alemania

alcanzar ía la anhe lada un idade , mien t ras la o t ra mi tad quedar ia aún más separada. Por mi

par te , v e o el ve rdadero m é d i o en una organización progresiva de la ciência dei Derecho,

la cua l p u e d e se r c o m ú n a t oda la nación. F. DE SAVIGNY, De la Vocacion de Nuestro Siglopara

la Legislacion y la Ciência dei Derecho, p . 1 7 1 .

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Page 11: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

1 8 0 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

sua personalidade. 2 7 O ordenamento jurídico é, para SAVIGNY, O "Direito vivo", que o legislador pode exprimir ou integrar, mas não arbitrariamente criar. 2 8 Tem como base, assim, os costumes, que se correlacionam com a convicção popular, atuando como força interior que opera tacitamente. 2 9 Segundo SAVIGNY, O Direito legislativo deveria ter a única função de oferecer suporte ao costume para diminuir-lhe as incertezas e as indeterminações. Por meio dele, seria possível preservar a pureza que é a vontade efetiva do povo. 3 0 Para tanto, a fim de remediar os inconvenientes do direito comum, SAVIGNY propõe, em lugar da codificação, a elaboração científica do direito de base histórica. Das três formas que aponta como possíveis de se ma­nifestar o Direito: a popular (ou espontânea), a científica e a legislativa, a segunda apresentar-se-ia como a mais válida e característica das sociedades amadurecidas. Enfim, para a certeza do Direito, o instrumento apropriado não seria o código, mas a ciência jurídica.

Por outro lado, temos que a ideia de sistema proveniente do jusnaturalis-mo e do racionalismo anteriores aliou-se também ao romantismo alemão, dando origem, mais tarde, às chamadas "ciências do espírito". A vida em sociedade, vis­ta como unidade orgânica, passa a constar como fundamento para a construção científica do Direito, sendo certo que, para esta atividade científica e criadora, aparecerá o trabalho dos juristas formulando e reformulando antigos conceitos ju­rídicos. Parte-se da ideia de sistema para a busca de um método de interpretação que dê conta desta nova racionalidade, não abstrata, mas contingencial. Segundo SAVIGNY, O Direito não deveria ser visto como uma mera soma de elementos (nor­mas jurídicas racionalmente formuladas e positivadas), mas como um conjunto de institutos jurídicos que habita a consciência do povo, só perceptível através da intuição do jurídico, oriundo de práticas culturais. Trata-se do célebre conceito de Volksgeist, tão referido em seu pensamento. O Direito passa a ser admitido não mais como produto exclusivo da razão ou da vontade, pura obra intelectual ou fruto do arbítrio, uma vez que sua fonte estaria na convicção jurídica do povo,

2 7 C o m o p r o d u t o espir i tual de u m povo , q u e é o verdade i ro su je i to da his tória , o d i re i to é

c o n c e b i d o c o m o real idade orgânica . Para SAVIGNY, O p o v o se ap resen ta c o m o ser o rgân ico

vivente c o m vida p rópr ia (his tór ico-espir i tual) , q u e nasce , se desenvolve e m o r r e . D o t a d o

d e u m a força específ ica , q u e p o d e se r identif icada c o m o espír i to nac iona l , o povo , de

m o d o mis te r ioso e e m len to p r o c e s s o de c r e s c i m e n t o , e n g e n d r a todas as suas mani fes tações

espiri tuais, en t re elas a l inguagem e o dire i to . Cf., LEGAZ Y LACAMBRA, p. 1 0 0 .

2 8 SAVIGNY, Vom Beruf unserer Zeit zur Gesetzgebung und Rechtswissenschaft, Heide lber , 1 8 1 4 ,

p. 7 , apud J O S É LAMEGO, e m Hermenêutica e Jurisprudência, pp . 2 0 e 2 1 .

2 9 S ã o estas as palavras de SAVIGNY, c o n f o r m e t r adução de ADOLFO G . POSADA: "La síntesis de

es ta o p i n i ó n es q u e t o d o d e r e c h o t i ene su o r igen e n aque l los usos y cos tumbres , a las

cuales p o r a sen t imien to universal se sue le dar, a u n q u e n o c o n gran exact i tud , e l n o m b r e

de D e r e c h o consue tud ina r io ; e s to es , q u e el d e r e c h o se c rea p r i m e r o p o r las c o s t u m b r e s

y las c reenc ia s popula res , y l uego p o r la ju r i sprudencia ; s impre , p o r tanto , e m virtud de

u n a fuerza interior , y t ác i t amente activa, j amás e n virtud del arbi t r io de n ingún legislador."

SAVIGNY, De La Vocación de Nuestro Siglo para la Legislación y la Ciencia del Derecho, p .

4 8 .

3 0 GUIDO FASSÒ, p . 3 6 .

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

Thais
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Não confundir com o Ehrlich.
Thais
Realce
Thais
Realce
CRIAÇÃO DE UM DIREITO CIENTÍFICO.
Thais
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Kant
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1 0 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 1 8 1

3 1 "Di j imos de m a n e r a provis ional que la p r o d u c c i ó n del D e r e c h o se real iza p o r e l Pueb lo

c o m o su su je to pe r sona l activo. Ahora n o s t o c a de t e rmina r c o n más p rec i s ión la na tura leza

de e s t e su je to . [...] E n real idad, e m p e r o , e n c o n t r a m o s que , d o n d e q u i e r a q u e los h o m b r e s

convivan y e n cuan to la h is tor ia n o s informa, s i empre se hal lan e n u n a c o m u n i d a d e

espir i tual q u e e n el u s o del m i s m o l enguage se evidencia, r o b u s t e c e y desarrol la . La sede

de la p r o d u c c i ó n del D e r e c h o se e n c u e n t r a e n es ta to ta l idade natural , ya q u e la fuerza

de satisfacer la neces idade arr iba r e c o n o c i d a res ide e n el espír i tu c o m ú n del Pueb lo q u e

mat iza a los individuos. [...] El D e r e c h o c o m o p r o d u c t o del espír i tu del Pueb lo p u e d e ser

privativo de u n Pueb lo de t e rminado o p u e d e exist i r de m a n e r a un i fo rme e n varios." Cf.,

SAVIGNY, Fundamentos de La Ciencia Jurídica, c o n f o r m e t radução de WERNER GOLDSCHMIDT,

m e m b r o d o Inst i tu to Argent ino de Fi losofia Ju r íd i ca y Socia l , p res id ido p o r CARLOS COSSIO.

Ln SAVIGNY, KIRCHAMN, ZITELMAN et . al. La Ciencia del Derecho, pp . 3 8 , 3 9 e 4 0 .

3 2 Para LEGAZ Y LACAMBRA, OS ju r i sconsu l tos a tuaram c o m o verdadei ros ó rgãos da c o n s c i ê n c i a

jur íd ica a lemã. C£ , Filosofía del Derecho, p . 1 0 8 .

3 3 A Esco l a His tór ica m a r c a o a p a r e c i m e n t o daqui lo q u e Koschake r d e n o m i n a de "o dire i to

dos p rofessores" (cf. SAVIGNY, 1 8 4 0 : 1 4 ) . O "direito dos p rofessores" apa rece quando , s o b

cer tas c o n d i ç õ e s , a t ôn i ca na o c u p a ç ã o c o m o direi to passa para as Faculdades de Dire i to e

pa ra seus mes t res . I s so n ã o q u e r dizer q u e o dire i to passasse a s e r cr iado e cons t ru ído pe los

professores , mas s im q u e a dou t r ina passava a o c u p a r u m lugar mais impor tan te d o q u e a

praxis e os dou t r inadores a t e r e m u m a p r e c e d ê n c i a s o b r e os prá t icos . Tal ênfase, c o n t i n u a

o autor, dava à dou t r ina u m a cer ta i n d e p e n d ê n c i a e m re lação a u m p o d e r centra l , po is o s

p rofessores n ã o viviam neces sa r i amen te nas capitais, mas a tuavam fora do âmbi to pol í t ico .

Cf., TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ J R . Introdução ao Estudo do Direito, p . 7 3 .

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

aflorada por meio de um mecanismo intuitivo voltado para o que é pensado como

ideal de regulação da convivência humana. 3 1

O curioso no pensamento de SAVIGNY é que, ao invés de um Direito espontâ­neo, verificado naturalmente nas ações sociais, o que vale, ao final, é o que a dou­trina científica elabora. E será, assim, justamente, que o pensamento conceituai elaborado pelos professores, nas universidades, provocará o surgimento de um novo racionalismo ou intelectualismo jurídico tão anti-histórico como o direito natural, mas que se move em plano diferente, qual seja, o da lógica e da dogmá­tica jurídica. O pensamento conceituai lógico-abstrato será, assim, aquele capaz de explicitar a totalidade representada pelos institutos jurídicos. Dessa forma, a doutrina termina por ganhar posição superior à da praxis, conforme anota LEGAZ

Y L A C A M B R A . 3 2

No mesmo sentido aponta o estudo de T É R C I O SAMPAIO FERRAZ J R . :

A o r g a n i c i d a d e ( p r o p o s t a p e l a E s c o l a H i s t ó r i c a ) n ã o se r e f e r e a u m a c o n t i n ­

g ê n c i a r e a l d o s f e n ô m e n o s soc i a i s , m a s d e v e s e r b u s c a d a n o c a r á t e r c o m p l e ­

x o e p r o d u t i v o d o p e n s a m e n t o c o n c e i t u a i d a c i ê n c i a j u r í d i c a e l a b o r a d a p e l o s

j u r i s t a s d e s d e o p a s s a d o . 3 3

FERRAZ J R . aponta ainda para a vitória paradoxal do "espírito do povo" defen­dida originalmente por SAVIGNY. Como reflexo da genuinidade popular, o "espírito do povo" acaba por merecer o esforço de interpretação dos intelectuais das uni­versidades, que o reproduzem através de conceitos. A organicidade dos conceitos, cujo poder de abstração permitirá a subsunção dos fatos concretos, dará origem à

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1 8 2 EPISTEMOLOGÍA & METODOLOGIA DO DIREITO

ciência do Direito. Fato é que o formalismo que daí se seguiu pode ser bem con­figurado na "pirâmide dos conceitos" criada por PUCHTA, sob regras genealógicas: de conceitos mais gerais e abstratos deduz-se outros mais específicos. Contudo, a influência do método histórico não desapareceu por completo, imiscuindo-se à proposta de PUCHTA.

Podemos extrair desse fato a origem do chamado método de interpretação

histórico-evolutivo, aceito pela dogmática hermenêutica do Direito, mediante o qual se pretendia dar atualidade à chamada "vontade de legislador". O Direito, como elemento histórico, também deveria ser interpretado historicamente. Mas, para tanto, o intérprete deveria se colocar no lugar do legislador, deixando fruir em si o espírito do povo, que reclamaria a aplicação daquela lei, ainda que em ou­tro momento, por meio do recurso a técnicas específicas. Essas regras, conforme ensina SAVIGNY , correspondem aos elementos gramatical, lógico, histórico e siste­mático do direito 3 4 . T É R C I O SAMPAIO FERRAZ J R . , quando escreve sobre a contribuição

3 4 E es ta a l ição de SAVIGNY s o b r e os pr inc íp ios fundamenta is da in te rpre tação , c o n f o r m e a

t radução a rgent ina de WERNER GOLDSCHMIDT: "Toda ley t i ene la función de c o m p r o b a r la

na tura leza de u n a r e l ac ión jur ídica, de enunc i a r cua lqu ie r p e n s a m i e n t o ( s imple o c o m p u e s t o )

q u e asegure la ex i s t enc ia de aquel las r e l ac iones jur ídicas con t r a e r ro r y arbi t rar iedade. Para

lograr es te fin, h a c e falta q u e los q u e t o m e n c o n t a c t o c o n la r e l ac ión jur ídica, c o n c i b a n pura

y c o m p l e t a m e n t e aque l p e n s a m i e n t o . A es t e e fec to se c o l o c a n m e n t a l m e n t e e n el p u n d o

de vista del leg is lador y r ep i t en ar t i f icialmente su actividade, engendran , p o r cons igu ien te ,

la ley de nuevo e n su p e n s a m i e n t o . He aquí la actividade de la in te rpre tac ión , la cual , p o r

cons igu ien te , p u e d e s e r de t e rminada c o m o la r e c o n s t r u c c i ó n de l p e n s a m i e n t o ínsi to de la

ley. S ó l o de es ta m a n e r a p o d e m o s o b t e n e r u n a in te l igencia segura y c o m p l e t a de l c o n t e n i d o

de la ley; y s ó l o así p o d e m o s lograr e l fin de la misma.

Hasta aquí n o se di ferencia la in te rp re tac ión de las leyes de la de cua lqu ie r o t ro p e n s a m i e n t o

e x p r e s a d o ( c o m o p . e j . se prac t ica e n la filología). Lo especí f ico resalta, si la d e s c o m p o n e m o s

e n sus e l e m e n t o s . H e m o s de dist inguir e n el la cua t ro e l e m e n t o s : u n e l e m e n t o gramatical ,

lóg ico , h i s tór ico y s i s temát ico .

El e l e m e n t o gramatical de la in te rp re tac ión t i ene p o r o b j e t o la palabra , q u e cons t iuye el

m e d i o para q u e el p e n s a m i e n t o del legis lador se c o m u n i q u e c o n e l nues t ro . Cons i s te , p o r

consegu in t e , e n la e x p o s i c i ó n de las leyes l ingüíst icas apl icadas p o r e l legislador.

El e l e m e n t o histórico t i ene p o r o b j e t o la s i tuac ión de la r e l ac ión jur íd ica regulada p o r

reglas jur ídicas e n el m o m e n t o de la p r o m u l g a c i ó n de la ley. Ésta deb ía in terveni r e n aquél la

de de t e rminada manera ; y e l m e n c i o n a d o e l e m e n t o h a de evidenciar e l m o d o de aquel la

in te rvenc ión : l o q u e p o r aquel la ley se ha in t roduc ido de n u e v o e n el D e r e c h o .

El e l e m e n t o sistemático, p o r ú l t imo, se ref iere a la c o n e x i ó n in te rna q u e enlaza, a todas

las ins t i tuc iones y reglas jur ídicas d e n t r o de u n a m a g n a un idad ( § 5 ) . Es te p l e x o se ha l laba

lo m i s m o q u e el c o n t e x t o h is tór ico e n la m e n t e del legis lador; y p o r cons igu ien te n o

c o n o c e r e m o s p o r c o m p l e t o su p e n s a m i e n t o , si n o e s c l a r e c e m o s la r e l ac ión e n la cua l la ley

se e n c u e n t r a c o n t o d o el s i s t ema jur íd ico y e l m o d o e n q u e el la deb ía in terveni r e f icazmente

e n el m i s m o .

C o n es tos cua t ro e l e m e n t o s se agota la c o m p r e n s i ó n del c o n t e n i d o d e la ley. No se trata, p o r

cons igu ien te , de cua t ro c lases de in te rpre tac ión , en t r e las cuales se p u e d e e s c o g e r s egún

el gus to y e l arbitr io persona l , s ino de di ferentes actividades q u e d e b e n c o o p e r a r para q u e

la in te rpre tac ión p u e d a dar éx i to . B i e n es verdad q u e algunas veces será más impor t an t e

y visible u n e l e m e n t o , y otras o t ro , de m o d o que será suf iciente q u e la a t e n c i ó n se dirija

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

Thais
Realce
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1 0 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 1 8 3

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

de SAVIGNY para a hermenêutica jurídica, aponta dois momentos de seu pensamen­

to. Num primeiro momento, a interpretação jurídica aparece em SAVIGNY como

uma questão de ordem técnica, em que o importante era mostrar aquilo que a lei

dizia, no seu sentido textual, por meio de técnicas específicas. Mas, após 1814,

percebe-se que suas cencepções hermenêuticas tomam outro rumo:

A q u e s t ã o d e i x a d e s e r a m e r a e n u m e r a ç ã o d e t é c n i c a s , p a r a refer i r -se a o fun­

d a m e n t o d e u m a t e o r i a d a i n t e r p r e t a ç ã o . S u r g e o p r o b l e m a d e se e x p l i c a r o

c r i t é r i o ( m e t ó d i c o ) d a i n t e r p r e t a ç ã o verdadeira. A r e s p o s t a e n v o l v i a a de te r ­

m i n a ç ã o d o fa to r r e s p o n s á v e l p e l o s e n t i d o d e u n i d a d e ú l t i m o e d e t e r m i n a n ­

t e d o s i s t e m a . E m p r i n c í p i o , a c o n c e p ç ã o d e q u e o texto d a l e i e r a e x p r e s s ã o

d a mens legislatoris l eva SAVIGNY a a f i rmar q u e i n t e r p r e t a r é compreender o

p e n s a m e n t o d o l e g i s l a d o r m a n i f e s t a d o n o t e x t o d a le i . D e o u t r o l a d o , p o r é m ,

enfa t izava e l e a e x i s t ê n c i a f u n d a n t e d o s " ins t i tu tos d o d i r e i t o " (Rech t s in s t i -

t u t e ) q u e e x p r e s s a v a m " r e l a ç õ e s vi ta is" r e s p o n s á v e i s p e l o s i s t e m a j u r í d i c o

c o m o u m t o d o o r g â n i c o , u m c o n j u n t o vivo e m c o n s t a n t e m o v i m e n t o , da í a

i d e i a d e q u e s e r i a a c o n v i c ç ã o c o m u m d o p o v o (Volksgeist) o e l e m e n t o pr i ­

m o r d i a l p a r a a i n t e r p r e t a ç ã o das n o r m a s . * 5

5. 0 FORMALISMO JURÍDICO NA ALEMANHA

O formalismo na Alemanha propagou-se com o trabalho de juristas oriundos

da Escola Histórica, que possuía lastro na atividade dos pandectistas. À vontade

i n in t e r rumpidamen te hac ia todas estas d i r ecc iones , si b i e n e n m u c h o s casos s ingulares se

podrá pasar e n s i l enc io la e x p r e s a m e n c i ó n de cada u n o de los e l e m e n t o s c o m o inúti l y

pesada , sin q u e exis ta u n pe l igro para u n a in te rp re tac ión c o n c i e n z u d a . El éxi to de toda

in te rp re tac ión d e p e n d e de dos c o n d i c i o n e s , e n las cua les p o d e m o s c o n d e n s a r b r e v e m e n t e

aque les cua t ro e l e m e n t o s : e n p r imer lugar, es m e n e s t e r q u e r ecap i tu l emos p lás t i camente la

actividad men ta l d e la cual d imana la e x p r e s i ó n par t icular p rob l emá t i ca de p e n s a m i e n t o s ;

e n s e g u n d o lugar, es p rec i so q u e d o m i n e m o s e l c o n j u n t o h i s tó r ico-dogmát ico q u e so lo

ar ro ja luz sob re la d i spos ic ión par t icular para da rnos c u e n t a e n seguida de las r e l ac iones

en t r e a q u e l c o n j u n t o y e l t ex to p r e sen t e . Si c o n t e m p l a m o s estas c o n d i c i o n e s , d i sminuye lo

ex t r año de a lgún f e n ó m e n o , q u e fác i lmente podr í a h a c e r n o s dudar s o b r e l o acer tado de

nues t ro ju i c io . E n efec to , ha l l amos algunas veces e n escr i tos de erudi tos y cé l eb res au tores

in te rpre tac iones de casi i n c o m p r e n s i b l e absurdidez, mient ras q u e a l u m n o s de ta len to , a

los cua les p r e s e n t a m o s e l m i s m o tex to , tal vez ac ier ten . Tales e x p e r i e n c e s se p u e d e m h a c e r

sob re t o d o r e s p e c t o a los n u m e r o s o s casos jur íd icos , de los cua les se c o m p o n e u n a par te

g rande y a l ecc ionadora de los diges tos .

El fin de la in t e rp re tac ión de cada ley cons i s t e e n o b t e n e r p r e c i s a m e n t e de e l la tantos

c o n o c i m i e n t o s ju r íd icos rea les c o m o sea pos ib le . La in te rp re tac ión d e b e ser, c o m o

cons igu ien te , p o r u n lado individual, p o r e l o t ro r ica e n resul tados . S e p u e d e alcanzar

es te éx i to e n diferentes grados; y es ta d i ferencia d e p e n d e , e n par te , de l arte de l in térpre te ,

p e r o e n par te t a m b i é n del ar te de l legis lador de depos i ta r e n la ley m u c h o c o n o c i m i e n t o s

ju r íd i co s egu ro o sea de d o m i n a r e l D e r e c h o desde e s t e p u n t o de vista d e n t r o de lo pos ib le .

Por tanto , ex is te u n a rec ip roc idad en t r e u n a b u e n a legis lac ión y u n a b u e n a he rmenéu t i ca ,

d e p e n d i e n d o e l éx i to de cada u n a de ellas p o r e l de la otra . Cf. SAVIGNY. " O S F u n d a m e n t o s

da C iênc i a Jur íd ica" , in SAVIGNY, KIRCHMANN, ZITELMANN et al., La Ciencia del Derecho. 3 5 TERCIO SAMPAIO FERRAZ J R . Introdução ao Estudo do Dirieto, p . 2 4 1 .

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Para entender a lei, é preciso entender o contexto histórico do momento.
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Jurisprudência Alemã.
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1 8 4 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

de se criar um direito científico, fato já refletido por SAVIGNY, acresce-se a capa­cidade demonstrada pelos pandectistas de reelaborarem as antigas instituições do Direito romano mediante a extração de conceitos, cujo poder de abstração permitia que os mesmos fossem aplicados em diferentes épocas e lugares. E para a melhor compreensão e aproximação entre os conceitos utilizava-se o método lógico-sistemático, que acaba por perceber o Direito como uma totalidade fechada em si mesma.

O cientificismo propugnado por SAVIGNY resultará antes numa ideia de Direito de cunho racional-universal que ultrapassa fronteiras físicas e geográficas, do que na ideia de um Direito histórico e nacional. É o que mostram as teorias de P U C H T A

e de J H E R I N G . N O último volume do Espírito do Direito Romano, J H E R I N G afirma que a ciência do Direito é universal e que "os juristas de todos os países e de todas as épocas falam a mesma língua", 3 6 na medida em que a ciência do Direito se serve de métodos próprios, válidos para a análise de qualquer ordenamento jurídico. Com PUCHTA, antigo discípulo de SAVIGNY, desenvolve-se a genealogia dos conceitos que propõe uma busca de conceitos em princípios gerais, mediante operação lógico-indutiva e lógico-dedutiva: por indução chega-se aos princípios, para depois, por dedução, descer às ramificações múltiplas. De acordo com a Jurisprudência dos Conceitos, denominação dada mais tarde a este método de criação e interpretação do Direito, o papel da ciência jurídica é o de verificar como suas proposições se condicionam reciprocamente, por meio de um processo de derivação que remon­ta à genealogia de cada uma. Assim, a obra de P U C H T A pode ser reconhecida como uma das expressões mais bem acabadas do tratamento abstrato e sistematizador conferido ao Direito. 3 7

A atividade científica consistia em estabelecer conceitos bem definidos, que pudessem garantir segurança às relações jurídicas, uma vez diminuída a am­biguidade e a vaguidade dos termos legais. E foi por meio da elaboração de conceitos gerais, posicionados na parte superior da figura de uma pirâmide, e capazes de conter e dar origem a outros conceitos de menor alcance numa união total, perfeita e acabada, que o Direito alcançou o seu maior grau de abstração e autonomia como campo de conhecimento. Esse alto grau de racionalidade deu origem ao "dogma da subsunção", que irá se impor no século seguinte. O Direi­to era tido como fruto de um desdobramento lógico-dedutivo entre premissas

3 6 JHERING, apud NORBERTO B O B B I O e m O Positivismo Jurídico, p . 1 2 3 .

3 7 PUCHTA, e m Cursus derInstitutionenI (Curso das Ins t i tu ições I ) , p r e l ec iona : " E missão agora

da c iênc ia r e c o n h e c e r as p r o p o s i ç õ e s jur ídicas n o seu n e x o s is temát ico , c o m o s e n d o e n t r e

si cond i c ionan t e s e derivantes, a fim de p o d e r seguir-se a sua genea log ia d e s d e cada u m a

delas até ao pr inc íp io c o m u m e, do m e s m o m o d o , de sce r d o p r inc íp io a té a o mais b a i x o dos

\ e sca lões . Nes te e m p r e e n d i m e n t o , v ê m a trazer-se à c o n s c i ê n c i a e à luz d o dia p r o p o s i ç õ e s

jur ídicas que , ocul tas n o espír i to do Dire i to nac iona l , n ã o se t i nham ainda expr imido , n e m

na imedia ta conv icção e na a tuação dos e l e m e n t o s do povo , n e m n o s d i tames da p rópr ia le i

escri ta , ou seja, que p a t e n t e m e n t e só se v ê m a revelar e n q u a n t o p r o d u t o de u m a d e d u ç ã o

da c iência ." . Aapud KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, p. 2 2

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

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Page 16: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

10 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES \35

PARTE W - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

capazes de gerar por si sós uma conclusão que servisse de juízo concreto para cada decisão. Com isso, nota-se um considerável, e até nefasto, isolamento das regras jurídicas do seu meio circundante. E a despeito de movimentos posterio­res como o da "Livre Interpretação do Direito", será este formalismo conceituai que garantirá as bases do positivismo jurídico prevalecente durante todo o sé­culo XX.

Percebe-se que a tarefa dos juristas, na Alemanha, consistiu em conferir o má­ximo de objetividade possível para o resultado de suas construções, o que levou à formação da dogmática jurídica ou da ciência dogmática do Direito, no sentido de uma teoria autônoma do Direito vigente. O próprio conceito de "espírito do povo" defendido pelos historicistas, indeterminado e quase mitológico, é transfor­mado em categoria formal, na medida em que à mesma é atribuída categoria de fonte hipotética a todo o Direito criado cientificamente. Segundo T É R C I O SAMPAIO

FERRAZ J R . , a dogmática foi, assim, pouco a pouco, ocupando o lugar principal na ciência do Direito, enquanto a História do Direito perde em importância.

Embora a Escola Histórica insistisse na historicidade do método, ao cabo da pesquisa o resultado se tornava mais importante do que a própria investigação que o precedera. 3 8

E a conclusão daí auferida por G U I D O F A S S Ò é a de que o positivismo jurídico se afirmou no século XTX pela via do historicismo. 3 9

6. 0 POSITIVISMO JURÍDICO

O formalismo jurídico encontra respaldo no naturalismo típico da filosofia da luzes e na filosofia positivista. O primeiro privilegiava o estudo científico da re­alidade objetiva, as ditas "ciências naturais", mediante a adoção do método empí­rico, enquanto a filosofia positivista privilegiava o estudo das relações constantes entre os fatos sociais, também através do método de investigação empirista. G U I D O

F A S S Ò acredita que o positivismo correspondia mais a um modo de pensar do que a uma doutrina específica; mas um modo de pensar que negava qualquer meta­física, fundamentando-se unicamente nos fatos "positivos", cujo conhecimento advém somente da observação e da experimentação. Enquanto filosofia, o positi­vismo não busca o conhecimento universal ou absoluto, mas um conhecimento "geral", enfeixado na coordenação sistemática das leis descobertas e formuladas pelos diferentes campos científicos. 4 0 Dentre esses, ganha destaque o campo das ciências humanas e sociais, às quais a aplicação do método positivo pretendia os melhores resultados. 4 1 A ideia era buscar na sociedade leis constantes e invariáveis que a explicassem, tal como se explicavam os fenômenos da natureza.

3 8 T é r c i o . Introdução ao Estudo do Direito, p . 7 5 .

3 9 Vide GUIDO FASSÒ, p . 4 2 .

4 0 Vide JOÃO RIBEIRO J R . O que é Positivismo.

4 1 GUIDO FASSÒ, p . 1 2 0 .

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186 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

Foi na França, com A U G U S T O C O M T E , que o positivismo ganhou projeção no âmbito das ciências sociais. 4 2 Sua obra faz alusão ao que mais tarde será chamado de Sociologia Jurídica. A Sociologia, no seu nascedouro, corresponderá à ciência positiva da sociedade vista como única capaz de abranger toda a gama de fenô­menos nela verificados, fundamentando-se, exclusivamente, na observação dos fatos, fora de toda ideologia metafísica. F A S S Ò interpreta que para o Direito, isso significará a busca de um elo de conexão entre os fatos sociais e o Direito, de maneira que a legislação seja o mais fiel possível àqueles, independentemente de quaisquer valores de ordem moral. Para o mesmo autor, a mais autêntica aplicação do método positivista no campo do Direito deu-se com a pesquisa histórica. Foi o que aconteceu com a Escola Histórica do Direito na Alemanha, cujo processo de generalização e abstração dos fatos desvinculou-os de quaisquer valores que lhe pudessem ser atribuídos. Por mais contraditório que possa parecer, os fatos, assim, transmudam-se em conceitos, de ordem objetiva e geral.

No entanto, apesar dos partidários da filosofia positivista, como A U G U S T O

C O M T E , não terem demonstrado nenhum interesse especial pelo Direito, os ju­ristas passaram a se perguntar se a jurisprudência era ou não uma ciência. Sob a influência do positivismo, não faltou, obviamente, quem defendesse a criação de um método próprio para o Direito, de caráter objetivo, cujo conhecimento fosse possível mediante a manipulação de leis próprias ao seu objeto. Para o positivis­mo, o Direito ou a ciência jurídica deveriam ser vistos como todas as outras ciên­cias naturais, ou seja, como uma força da natureza (social), independente da ação humana e do pensamento. Era o tipo de conhecimento obtido da correlação e da constância verificada entre os fatos observados. Segundo F A S S Ò , era o entusiasmo da época: os "tempos positivistas". 4 3

No entanto, não foi ainda no decorrer do século XTX, que o Direito consegue firmar-se como ciência nos moldes positivistas. Neste momento, ganha relevo a sociologia jurídica. Será apenas com a genialidade de HANS K E L S E N , no início do século seguinte, que teremos uma ciência do Direito de impressão francamente positivista. Antes disso, o inegável fator de contingência do Direito emprestou-lhe, quando muito, uma posição de inferioridade científica.

Mas o positivismo jurídico não seguiu a tendência sociológica apontada por A U G U S T O C O M T E . Firmou-se muito mais sobre as bases do formalismo, uma vez que, para uma teoria objetiva do Direito importava muito mais o conjunto das normas postas pelo Estado, através de suas autoridades competentes, do que a realidade

4 2 ISIDORE AUGUSTE MARIE XAVIER COMTE ( 1 7 8 9 - 1 8 5 7 ) . C o m o posi t iv ismo, e l e a lmejava a r e g e n e r a ç ã o

da human idade . Acreditava q u e para se re fo rmar a soc i edade e ra necessá r io , an tes de tudo,

descobr i r as leis q u e reg iam os fatos sociais , cu idando-se de afastar as es tére is c o n c e p ç õ e s

abstratas e e s p e c u l a ç õ e s metafís icas. S e g u n d o e l e , é, pois , n o desenvo lv imen to das c iências

naturais q u e se e n c o n t r a o c a m i n h o a seguir. Pela obse rvação e pe l a e x p e r i m e n t a ç ã o se irão

descobr i r as r e l ações p e r m a n e n t e s q u e l igam os fatos, cuja impor tânc ia é bás ica na re fo rma

e c o n ô m i c a , pol í t ica e socia l da soc iedade . C f , JOÃO RIBEIRO J R . , O Que é Positivismo.

4 3 GUIDO FASSÒ, p . 1 2 3 e ss .

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10 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 187

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

social propriamente dita. A vontade do Estado soberano prevalece sobre a vonta­de da nação. O Direito positivo, com isso, passa a reconhecer-se no ordenamento jurídico posto e garantido pelo Estado, como o direito respectivo a cada Estado. O Direito positivo é o único que interessa ao jurista, porque é o único Direito existente, contrapondo-se em definitivo ao direito natural, de difícil verificação, razão pela qual a maioria dos autores atualmente define Direito positivo como contraponto do Direito natural. Como exemplo temos o livro de N O R B E R T O B O B B I O ,

O Positivismo Jurídico, onde o autor define Direito positivo com base nos binô­mios particularidade/universalidade e mutabilidade/imutabilidade, estabelecendo também a noção de que o Direito positivo é aquele reconhecido por intermédio da declaração de uma vontade alheia (potestaspopulus), enquanto o Direito natu­ral é o que conhecemos através da razão. A valorização do Direito corresponderá também a critérios objetivos. Bom é aquilo que o Estado quer e prescreve como conduta obrigatórica, e mau aquilo que não valorizou a ponto de incorporar à ordem jurídica. Assim, justa é a lei, historicamente relativizada, enquanto o Di­reito natural é bom ou mau em si mesmo, independentemente da vontade do legislador. 4 4

Ao contrário do que ocorreu com o formalismo da Escola Histórica, K E L S E N

não admitirá a criação do Direito por meio da criação de conceitos jurídicos, limi­tando-se ao que se encontra prescrito em lei. Não obstante, a dogmática jurídica acabará por ensejar a elaboração de conceitos gerais que formulem e circunscre­vam o campo de atuação do Direito. É o papel da Teoria Geral do Direito, cuja base formal segue a Jurisprudência dos Conceitos. Por outro lado, essa base con­ceituai passa a ser indispensável ao princípio da completude da ordem jurídica. Cientificamente, é importante que o Direito se baste, uma vez que a autointegra-ção, mediante processo autônomo, lógico e sistemático, baseado em princípios gerais, evitaria a influência de elementos externos descaracterizadores do Direito. Veremos, no entanto, que essa concepção formalista e positivista sempre foi acom­panhada de críticas.

7. A CRÍTICA DE JHERING AO FORMALISMO JURÍDICO ALEMÃO

A Europa, de finais do século XTX, não era mais a mesma. A evolução social, científica e tecnológica verificada em alguns dos seus principais países, gerou no­vas atividades e novas relações econômicas, alterando o cenário anterior, em que as mudanças não eram tão frequentes, de forma a exigirem mais do direito. O culto fetichista às normas cristalizadas em códigos não respondia às necessidades mais recentes, provocando uma série de reações ao positivismo jurídico-formalista.

4 4 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ J R . a tr ibui ao formal i smo daí d e c o r r e n t e , c o m al to grau de abs t ração,

duas c o n s e q u ê n c i a s : a p r imei ra é a capac idade de neut ra l ização dos conf l i tos , c o n s i d e r a d o

o Dire i to n a sua função social ; a segunda, o e s t a b e l e c i m e n t o da c i ênc i a dogmát i ca do

Dire i to p r e o c u p a d a cada vez mais c o m a na tureza ju r íd ica dos seus inst i tutos, b e m c o m o

c o m a classif icação de seus c o n c e i t o s . C f , Introdução ao Estudo do Direito, pp . 7 1 a 8 3 .

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1 8 8 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

R U D O L F V O N J H E R I N G , antes um dos principais teóricos da Jurisprudência dos Conceitos, percebe a crise que se manifesta na cultura da segunda metade do sé­culo XTX e acaba por ser autor de uma das críticas mais contundentes ao método lógico-dedutivo e ao formalismo jurídico, pelo seu alto grau de abstração. No livro A Luta pelo Direito, escrito em 1891, como resultado de ideias que vinha defen­dendo desde 1872, J H E R I N G mostra o Direito como uma vivência que deve ser as­sumida tanto pela parte de quem o aplica, o Estado, quanto por quem o postula, na qualidade de interessado. Segundo ele, o J H E R I N G é, na realidade, uma luta, ou um verdadeiro esforço, animado pelo espírito prático que subjaz à sua própria realização. Diz o autor ao prefaciar seu trabalho:

"O q u e t ive e m m e n t e n ã o foi a d i v u l g a ç ã o d o c o n h e c i m e n t o c i e n t í f i c o do

D i r e i t o , m a s a n t e s a p r o m o ç ã o d o e s t a d o d e e s p í r i t o e m q u e e s t e há d e b u s ­

c a r s u a e n e r g i a vital , e q u e é o q u e c o n d u z à a t u a ç ã o firme e corajosa do s e n t i m e n t o de j u s t i ç a . 4 5

O sentimento de justiça, próprio da personalidade, é que, segundo J H E R I N G ,

coloca o Direito em movimento. O sujeito lesado, por exemplo, é quem irá reclamar pela reparação do prejuízo sofrido. Portanto, a luta considerada por J H E R I N G é a luta concreta, relativa ao próprio sujeito, que vê seus direitos violados. Neste sentido, o direito que interessa não é tanto o direito posto, objetivo, mas o subjetivo. 4 6

No seu livro A Finalidade do Direito,47 J H E R I N G soma a noção de fim ou fi­

nalidade, à ideia de Direito como praxis. A finalidade, como elemento que com­põe necessariamente a ação, representa, segundo ele, algo futuro que a vontade pretende realizar. Quem age, age em virtude de um fim, da mesma forma que querer, e querer em razão de um fim, são sinônimos. 4 8 O jurista, então, se quer compreender o Direito, deve prestar a atenção às necessidades, que provocam a busca de determinados fins, em lugar de conceitos obtidos de normas e institui­ções jurídicas, por força da lógica.

Dessa forma, a partir de J H E R I N G , a ideia de que o Direito se liga a um fim que se pretende ver realizado na prática, faz com que o mesmo abandone o campo da abstração e veja aberto o caminho para a Jurisprudência dos Interesses, encarre-

4 5 RUDOLF VON JHERING. A Luta pelo Direito, p . 1.

4 6 Idem, p . 2 9 .

4 7 JHERING. A Finalidade do Direito. Trad. de J O S É ANTONIO FARIA CORREA, Edi tora Rio, Rio de

J a n e i r o , 1 9 7 9 .

4 8 Idem, p . 6 e 1 0 .

Note-se , ainda, q u e a finalidade cons ide rada p o r JHERING, n ã o é a finalidade d o legis lador

prevista na lei, mas a d o suje i to e m suas r e l ações sociais . Além d o que , a finalidade é

i m a n e n t e à p rópr i a ideia de soc iedade , u m a vez q u e a c o n s i d e r a m o s c o m o un ião de várias

pessoas ligadas e m t o r n o de u m a m e t a c o m u m . Final idade pode r i a co r re sponder , des ta

forma, à necess idade de toda a sor te q u e nasça da vida social e q u e deve se r satisfeita

para q u e a soc iedade sobreviva. A es te r e spe i to ver t a m b é m GUIDO FASSÒ, " D O p r ime i ro ao

s e g u n d o JHERING", e m Histoire de la Philosophie du Droit, vol . X X , p . 4 9 .

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

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Direito objetivo x Direito subjetivo
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10 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 189

4 9 PHILIPP HECK. Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interesses, p . 1 9 .

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

gada de formular metodologicamente esta questão. Verificamos, no entanto, que J H E R I N G repudia o positivismo jurídico, essencialmente formalista, mas não o po­sitivismo filosófico, que dedica seu esforço à apreciação dos fenômenos naturais, incluindo nesta categoria os sociais. Com isto, o método realista ou teleológico, voltado para os interesses e os valores que lhe servem de fundamento, vem ocu­par o lugar até então preenchido pelo formalismo exegético.

8. A JURISPRUDÊNCIA DOS INTERESSES

Como antítese da Jurisprudência dos Conceitos, a chamada Jurisprudência dos Interesses procura suplantar a lógica formal pelo estudo e pela avaliação da vida, ou seja, pela pragmática.

A Jurisprudência dos Interesses tem como principal representante o profes­sor de Tübingen, PHILIPP H E C K . De J H E R I N G , H E C K incorpora não só a ideia de Direito como prática, analisando-o como "função judicial", mas também a ideia de fim, como interesse. Vimos que para J H E R I N G O Direito não é criado por conceitos, mas por fins ou valores cuja realização se persegue. H E C K atribui a esses fins a qua­lidade de comandos jurídicos, que encontram sua base na necessidade, ou no interesse. O Direito resumir-se-ia na coordenação da garantia dos interesses dos membros da sociedade, enquanto a atividade do juiz estaria direcionada para a composição dos interesses das partes em conflito, de acordo com o comando normativo. Dessa forma, a Jurisprudência dos Interesses nega-se a confiar ao juiz uma mera função de conhecimento e subsunção entre lei e fato; ao contrário, propugna a adequação da decisão às necessidades práticas da vida mediante os interesses em pauta. Os comandos legais, escreve H E C K , não só se destinam a re­solver conflitos de interesses, mas são também como todos os comandos ativos, verdadeiros produtos dos interesses. Assim também as leis, enquanto resultantes dos interesses materiais, nacionais, religiosos e éticos, em luta pelo predomínio de uns sobre os outros. 4 9

H E C K acredita que a atividade do juiz é criadora, à proporção que procura conjugar os interesses postos na lei, pelo legislador, com os interesses da ocasião em que ela é chamada a ser aplicada; ao que se soma o conteúdo emocional do próprio juiz, que contribui com a sua experiência de vida e com o seu sentimento de justiça. A pesquisa histórica é importante para se saber quais os interesses con­tidos na lei. Entretanto, não se cuida de procurar uma vontade psicológica, mas uma vontade normativa correspondente ao comando contido nas palavras da lei, e aos interesses nela exigidos. H E C K chama sua teoria da interpretação de "teoria histórico-objetiva", nos seguintes termos:

O " l e g i s l a d o r " n ã o é s i m p l e s f i c ç ã o o u f an t a sma , m a s a d e s i g n a ç ã o q u e e n ­

g l o b a t o d o s o s i n t e r e s s e s d a c o m u n i d a d e v i g e n t e s [ le ia -se , v a l o r e s ] . A s s i m a

q u e s t ã o p o r v e z e s p o s t a , d e s a b e r s e a v o n t a d e p r o c u r a d a é a d o l e g i s l a d o r d e

h o j e o u d e o n t e m , r e s o l v e - s e c o m c la reza . O e s c o p o d a d e t e r m i n a ç ã o j u d i c i a l

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1 9 0 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

d o d i r e i t o é , s e m dúvida , a p r o t e ç ã o d e i n t e r e s s e s a tua i s . M a s a r e a l i z a ç ã o

d e s s e e s c o p o t e m c o m o fator , o c o n h e c i m e n t o d a q u e l e s i n t e r e s s e s c u j a s ex i ­

g ê n c i a s s e r e v e l a r a m j á e m f o r m a d e l e i . 5 0

H E C K recupera a jurisprudência pragmática de J H E R I N G quando entende que o método jurídico se prende à ação que o Direito exerce sobre a vida; e para tanto, aproveita-se dos meios oferecidos pela Sociologia. De acordo com H E C K ,

as técnicas sociológicas investiriam em duas direções: a primeira, verificando os interesses protegidos na lei, como necessidades da vida prática em constante con­tradição; a segunda, atendo-se aos interesses atribuídos pela necessidade do caso. O Direito, para ele, significa então tutela de interesses: tanto interesses de ordem geral, protegidos pela lei, quanto individuais, protegidos pela sentença (norma individual).

Segue-se que, para H E C K , sob a influência do positivismo filosófico, a inter­pretação da lei é sobretudo "explicitação de causas". E, nesse sentido, é preciso descobrir as causas do preceito legal para se explicar os seus efeitos, que são os comandos jurídicos. Mas, por outro lado, temos que esse procedimento faz-se por meio de um processo de valoração, o que ensejará um novo aproach filosófico-doutrinário.

A Jurisprudência dos Interesses contou com muitos adeptos, mas também foi criticada. A crítica dos neo-hegelianos (dentre os quais LARENZ) deu-se, em pri­meiro lugar, com relação ao substrato filosófico positivista, que reconhecia apenas uma realidade empírico-sociológica: a verificação dos interesses em pauta. Por outro lado, temos que a Jurisprudência dos interesses, ao desconsiderar a orien­tação científico-espiritual voltada para o "espírito objetivo" referente aos valores existentes em cada comunidade, fazia revigorar o positivismo jurídico, que cir­cunscrevia a decisão do juiz ao estrito conteúdo da lei. A segunda crítica refere-se à ideologia liberal individualista da Jurisprudência dos Interesses, quando esta contrapõe os interesses particulares aos interesses da comunidade. 5 1

Essas críticas, no entanto, produziram efeito nos seguidores de H E C K , que passa­ram a reconhecer o real fundamento valorativo dos interesses, dando ensejo à futura jurisprudência da valoração. 5 2 Não seria à toa que H E C K teria escrito, logo no início do seu livro Interpretação da Lei eJurisprudência dos Interesses, o seguinte:

5 0 Idem, pp . 7 1 - 7 2 .

5 1 C f , J O S É LAMEGO. Hermenêutica e jurisprudência, p . 5 2 e segs.

5 2 LARENZ r e c o n h e c e e m HECK j á u m a aber tura pa ra os valores e e m seu livro r ep roduz a segu in te

pa s sagem da o b r a de HECK: "O legis lador q u e r o r d e n a r os in te resses da vida q u e lu tam en t r e

si. Para isso prec i sa de u m ju ízo de valor sob re e les q u e o leve à c o n c e p ç ã o de u m a o r d e m

a p romover , o u seja, de u m ideal socia l ." Cf. p . 6 1 e segs.

S o b r e a pas sagem da Ju r i sp rudênc ia dos In te resses para a Ju r i sp rudênc i a dos Valroes, escreve

a inda KARL LARENZ: "Em vez da d e d u ç ã o lógico-formal , c o l o c a a Ju r i sp rudênc i a dos In te resses ,

n ã o a von tade o u o s en t imen to , mas a invest igação dos in te resses e a ap rec iação desses

in te resses à luz dos cr i tér ios de valor sub jacen te s à lei . Por isso, reserva ao juiz , s e m dúvida,

u m a área de dec i são maior , mas n e n h u m a l ibe rdade de decidi r apenas e m o c i o n a l m e n t e .

Page 22: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

10 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 1 9 1

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

A a p t i d ã o d a d e c i s ã o j u d i c i a l t e m p o r t a n t o , d e s e r m e d i d a , p r i m e i r o q u e t u d o ,

p e l o s j u í z o s d e v a l o r e x p r e s s o s p e l a c o m u n i d a d e j u r í d i c a e m f o r m a d e le i . O

j u i z e s t á s u b o r d i n a d o à le i . A c o m u n i d a d e j u r í d i c a o r g a n i z a d a e m E s t a d o é

s o b e r a n a e a u t ô n o m a , n ã o s ó e x t e r n a m e n t e , m a s t a m b é m i n t e r n a m e n t e , n a s

s u a s r e l a ç õ e s c o m o s t r i b u n a i s . A s u b o r d i n a ç ã o d e s t e s n ã o é s ó c o n s e q u ê n c i a

d a n e c e s s i d a d e d a c e r t e z a d o d i r e i t o , é o r e s u l t a d o d u m p r i n c í p i o c o n s t i t u ­

c i o n a l , d u m j u í z o d e v a l o r g e r a l q u e c o l o c a a v o n t a d e da c o l e t i v i d a d e , d e c l a ­

r a d a e m f o r m a d e le i , a c i m a d a v o n t a d e d e c a d a c i d a d ã o . 5 3

R E C A S É N S S I C H E S também reconhece o viés valorativo da teoria de H E C K . E, a

respeito da conjunção das atividades do legislador e do juiz, anota:

A J u r i s p r u d ê n c i a d o s I n t e r e s s e s p a r t e d e d u a s i de i a s f u n d a m e n t a i s :

A) O ju i z e s t á o b r i g a d o a o b e d e c e r o D i r e i t o p o s i t i v o . A f u n ç ã o d o j u i z c o n s i s ­

t e e m p r o c e d e r a o a jus t e d e i n t e r e s s e s , e m r e s o l v e r c o n f l i t o s d e i n t e r e s s e s

d o m e s m o m o d o q u e o l eg i s l ador . A d i s p u t a e n t r e as p a r t e s l h e a p r e s e n t a

u m c o n f l i t o d e i n t e r e s s e s . A g o r a b e m , a v a l o r a ç ã o d o s i n t e r e s s e s l e v a d a a

c a b o p e l o l e g i s l a d o r d e v e p r e v a l e c e r s o b r e a v a l o r a ç ã o ind iv idua l q u e o

j u i z p o s s a fazer s e g u n d o s e u c r i t é r i o p e s s o a l .

B ) As l e i s a p a r e c e m i n c o m p l e t a s , às v e z e s i n a d e q u a d a s , i n c l u s i v e c o n t r a d i ­

tó r i a s , q u a n d o s ã o c o n f r o n t a d a s c o m a r i q u í s s i m a v a r i e d a d e d e p r o b l e ­

m a s q u e o s fa tos soc i a i s v ã o s u s c i t a n d o s e m p a r a r n o c o r r e r d o s d ias . O

l e g i s l a d o r [...] d e v e e s p e r a r d o ju i z , n ã o q u e e s t e o b e d e ç a l i t e r a l m e n t e ,

d e m o d o c e g o , as pa lavras d a le i , s e n ã o q u e , p e l o c o n t r á r i o , desenvolva

os critérios axiológicos em que a lei se inspirou, conjugando-os com os

interesses em questão.54 ^

Referindo-se, então, à ideia (anteriormente predominante) de que o ordena­mento jurídico era completo, sem lacunas (as quais, se porventura aparentassem existir, a força da lógica retiraria do sistema uma solução adequada), H E C K reco­nhece a real existência de lacunas, ocasião em que o juiz deve se entregar a uma tarefa de ordem axiológica. Isso só é possível uma vez conhecidos os interesses em jogo e os valores existentes na vontade do legislador, de forma a adequá-los uns aos outros.

Com a introdução do conceito de valor, ainda que visto sob a forma de uma necessidade real, verificável, que é o interesse, a simples relação causal e indis­pensável entre fato, norma e sentença vem a ser acrescida do papel do valor ou dos valores envolvidos na causa. Essa nova postura ensejará, mais tarde, o apare­cimento da chamada Jurisprudência dos Valores, que tem em LARENZ um de seus principais defensores. 5 5

C o m p r e e n d e - s e ass im q u e a prát ica jur íd ica t e n h a segu ido p r e d o m i n a n t e m e n t e a

"Jur i sprudênc ia dos In te resses" , e n ã o a t eor ia do Di re i to livre." Ob. cit. p . 7 3 .

5 3 HECK. Ob. cit.,p. 1 5 .

5 4 RECASÉNS SICHES. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX, p . 2 7 5 .

5 5 A lém da Metodologia da Ciência do Direito, vale confer i r o t raba lho de LARENZ in t i tulado

Direito Justo, q u a n d o o autor, d a n d o s e q u ê n c i a à p r o p o s t a de STAMMLER, de fende a ideia de

Page 23: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

1 9 2 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

9. 0 MOVIMENTO PARA O DIREITO LIVRE

Na esteira das críticas que vinham sendo feitas às insuficiências da concepção metodológica tradicional adstrita ao formalismo, surge, na Alemanha, o Movimen­to Para o Direito Livre. Não se tratava de um grupo específico de pensadores nem de uma teoria bem precisa. Consistia antes numa tendência ou uma atitude que assumiu formas diversas, dentre as quais a própria Jurisprudência dos Interesses. Um movimento que se inseria em outro mais amplo, de revolta contra o apego à tradição e ao conformismo manifestado em vários domínios: da arte à religião.

O Movimento Para o Direito Livre tem como marco a conferência apresentada por E U G E N E H R L I C H , na Alemanha, em 1903, sobre A Luta pela Ciência do Direito, quando este defende a livre busca do Direito em lugar da aplicação mecânica da vontade do legislador prevista na lei. A ideia é que o juiz, ao decidir, considere os fatos sociais que deram origem e condicionam o litígio, a ordem interna das associações humanas, assim como os valores que orientam a moral e os costumes. 5 6

Afinal,

O D i r e i t o n ã o c o n s i s t e n a s d i s p o s i ç õ e s j u r í d i c a s , m a s n a s i n s t i t u i ç õ e s ju r íd i ­

c a s ; q u e m q u e r d e t e r m i n a r q u a i s s ã o as f o n t e s d o D i r e i t o d e v e s a b e r exp l i ­

c a r c o m o s u r g i r a m E s t a d o , Ig re j a , famíl ia , p r o p r i e d a d e , c o n t r a t o , h e r a n ç a e

c o m o e l e s s e m o d i f i c a m e e v o l u e m n o d e c o r r e r d o t e m p o . 5 7

Por isso, E H R L I C H veio a ser considerado um dos precursores da Sociologia do Direito. 5 8

Em 1906, mesmo ano em que a conferência de EHRLICH é publicada, surge o manifesto de H E R M A N K A N T O R O W I C Z por um Movimento do Direito Livre. 5 9 Nele, defende-se a ideia de que nem todo direito se esgota no Estado; ao contrário,

u m o r d e n a m e n t o ju r íd ico da b a s e ax io lógica .

5 6 Maiores de ta lhes s o b r e as ideias e os par t ic ipantes desse m o v i m e n t o p o d e m ser e n c o n t r a d o s

n o t raba lho de CASTANHEIRA NEVES, e m Digesta, vol .2 , p . 1 9 3 e segs.

5 7 Cf. EUGEN EHRLICH. Fundamentos da Sociologia do Direito, p . 7 0 .

5 8 EHRLICH fala sob re a ex i s t ênc ia de u m Direito vivo e m con t r apos i ção ao apenas vigente d ian te

dos tr ibunais . O Direito vivo, diz e le , é aque le que , apesar de n ã o fixado e m p resc r i ções

jur ídicas, d o m i n a a vida. As fontes para c o n h e c ê - l o são s o b r e t u d o os d o c u m e n t o s m o d e r n o s

(den t re os quais des tacam-se as s en t enças judic ia is ) , mas t a m b é m a obse rvação direta do

dia a dia d o c o m é r c i o , dos c o s t u m e s e usos e t a m b é m das a s soc iações , t an to as l ega lmen te

r econhec ida s quan to as ignoradas e até i legais. Fundamentos da Sociologia do Direito, p .

3 7 8 .

5 9 LARENZ n o s informa que , na real idade, foi OSKAR BOLOW O p r e c u r s o r do M o v i m e n t o do Dire i to

Livre, através do seu escr i to n o s idos de 1 8 8 5 Lei e função judicial. A ideia bás ica des te

t rabalho, diz LARENZ, "é a de q u e cada dec i são judicial n ã o é apenas a ap l icação de u m a

n o r m a j á p ron ta , mas t a m b é m u m a atividade criadora de Direito. A lei n ã o logra criar l ogo

o Dire i to ; é ' s o m e n t e u m a p repa ração , u m a tentativa de real ização de u m a o r d e m jur íd ica ' .

Cada litígio ju r íd ico ' p õ e u m par t icular p r o b l e m a ju r íd ico para q u e n ã o ex is te a inda p r o n t a

na lei a d e t e r m i n a ç ã o jur ídica opor tuna , d e t e r m i n a ç ã o q u e t a m b é m n ã o é extraível, c o m a

abso lu ta segurança de u m a c o n c l u s ã o lógica necessár ia , das d e t e r m i n a ç õ e s da le i ' . S o b o

'véu i lusór io da m e s m a palavra da le i ' ocul ta-se u m a plural idade de s ignif icações, c a b e n d o

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

Page 24: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

1 0 - PENSAMENTO JusFiLOSÓFico MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES I93

PARTE IV - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

muito mais rico e legítimo é o Direito brotado espontaneamente dos grupos e movimentos sociais, que ele chama de direito natural. E é este direito que caberia ser compendiado pela doutrina e reconhecido pelo Estado, por meio da atividade jurisdicional. K A N T O R O W I C Z chama este Direito de natural e positivo, por conter, dentro de si, a vontade e o poder da sociedade. Ao lado do direito estatal, ou mesmo anterior a ele, estaria o direito livre, produzido pela opinião jurídica dos membros da sociedade, pelas sentenças judiciárias e pela ciência jurídica. Segun­do K A N T O R O W I C Z , O povo conhece o direito livre, enquanto desconhece o direito estatal, a não ser que o último coincida com o primeiro. 6 0

Provém daí a ideia de que a atividade jurisdicional do Estado deve prescin­dir da lei sempre que nela não encontre a solução justa para o caso. O juiz tem compromisso apenas com a justiça; age conforme a sua exclusiva convicção, ainda que, para tanto lhe exigida uma formação especial. 6 1 A ideia é a de que o juiz não seja um especialista em leis, apenas, mas que também tenha olhos para a socieda­de, sabendo avaliar os fatos. 6 2

Com isto verificamos uma recusa ao dogma legalista que vê o Direito como norma constituída em lei sem permitir ao intérprete recorrer a argumentos de natureza extra-legal. Enfim, o Movimento para o Direito Livre procurou resol­ver a lacuna provocada pelo distanciamento entre o Direito estanque e a so­ciedade em movimento. A lei, tornando-se retrógrada, por não acompanhar as transformações vividas pela sociedade, acaba por gerar instabilidade ao invés de segurança. E assim ressurge o direito natural (social) de molde histórico-jusnaturalista. Apesar disso, verificamos a partir daí uma forte reação contra o sociologismo jurídico.

10 . 0 RETORNO AO FORMALISMO COM HANS KELSEN

Os efeitos da genialidade de HANS K E L S E N ainda se fazem sentir, não obstante as muitas críticas que recebeu, em geral relativas ao método de conhecimento jurí­dico refratário à questão da moral e da justiça. Ainda assim, podemos considerar a Teoria Pura do Direito como o maior exemplo de construção lógico-estrutural do ordenamento jurídico, até o momento. Em termos de operacionalidade da ordem

ao juiz a e s c o l h a da d e t e r m i n a ç ã o q u e lhe p a r e ç a se r ' e m m é d i a a mais jus ta ' . " Metodologia

da Ciência do Direito, p . 7 0 .

6 0 HERMAN KANTOROWICZ. "A Luta pe la C iênc ia d o Dire i to" , t raduzido p o r WERNER GOLDSCHMIDT,

e m o b r a organizada p e l o Inst i tu to Argent ino de Filosofia Ju r íd i ca e Socia l , p res id ido p o r

CARLOS COSSIO, q u e r e ú n e escr i tos d e SAVIGNY, KLRCHMANN, ZITELMANN E KANTOROWICZ, sob o t í tulo:

A Ciência do Direito, Editorial Losada, B u e n o s Aires, 1 9 4 9 , p . 3 3 5 .

6 1 C a b e des tacar a impor t ânc i a confer ida p o r KANTOROWICZ ao c o n h e c i m e n t o ext ra ído de u m a

c iênc ia do Dire i to . Diz e l e : 'As neces s idades da vida jur íd ica e x i g e m q u e out ras po tênc ias ,

e m pr ime i ro lugar a c i ênc i a jur ídica, se c o l o q u e m l iv remente e e m função cr iadora a o lado

do legislador, p r e c i s a m e n t e e m a t e n ç ã o à impor tânc ia d o m e s m o para satisfazê-las. C h e g o u

a h o r a de levar a sér io o l e m a da c iênc ia c o m o fonte d o dire i to ." 'A luta pe la C iênc ia do

Direi to" , in: A Ciência do Direito, cit., p . 3 4 2 .

6 2 KANTOROWICZ. Ob. cit., p . 3 6 8 .

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1 9 4 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

jurídica, naquilo que diz respeito ao seu dinamismo - eficácia da lei no tempo, que envolve as questões da validade e da vigência das normas - , a teoria kelsenia-na ainda é bastante apropriada. Igualmente importante é o processo de "controle da constitucionalidade das leis", que pressupõe a estrutura piramidal e escalonada da ordem jurídica, com a Constituição no seu ápice servindo de fundamento de validade a toda ordem, garantindo a unidade e a harmonia do sistema. Essas rela­ções operacionais continuam a ser bastante úteis para o direito, apesar das críticas cabíveis à proposta de K E L S E N .

Atendo-se com exclusividade sobre a norma posta pelo Estado, K E L S E N fez escola. Atualmente podemos distinguir os formalistas ou kelsenianos, dos não-formalistas ou não-kelsenianos. Os primeiros são aqueles que privilegiam o que está escrito na lei validamente posta, sem qualquer indagação de cunho crítico-valorativo, com o intuito maior de dar segurança às relações sociais e garantir a ordem pública. Os não-formalistas, por seu turno, são os que reconhecem a inter-disciplinariedade do Direito, sem, contudo dispensarem o seu caráter científico. Tratar teoricamente a interdisciplinariedade jurídica é, sem dúvida, uma tarefa assaz difícil e árdua, mas o esforço compensa o desafio, daí a quantidade de traba­lhos, dentre os quais o nosso, apresentados no âmbito da teoria do Direito.

Voltando a K E L S E N , lembremo-nos do momento histórico que deu ensejo à criação da Teoria Pura do Direito. Politicamente, o período de guerra pelo qual passava a Europa Ocidental, refletia a ênfase dada ao nacionalismo. AÁustria, terra de K E L S E N , assumiu uma postura de neutralidade diante as demais potências euro­péias, após a Primeira Grande Guerra, daí o clamor de J O S E P H K U N Z , discípulo de K E L S E N , destacando a postura nitidamente universal dos austríacos, ao falar sobre a obra de seu mestre:

Para s e c o m p r e e n d e r a T e o r i a P u r a d o D i r e i t o é n e c e s s á r i o l eva r e m c o n t a

q u e s e u a u t o r é a u s t r í a c o . N ã o s o m e n t e a u s t r í a c o d e n a s c i m e n t o , m a s t am­

b é m po l í t i ca , h i s t ó r i c a e c u l t u r a l m e n t e [ . . . ] . S e u t e m p e r a m e n t o e s u a v i são

d o m u n d o s ã o d e e s t i r p e a u s t r í a c a e v i e n e n s e . N ó s , o s v i e n e n s e s d e nasc i ­

m e n t o , s o m o s c a t ó l i c o s n o s e n t i d o d a p a l a v r a g r e g a , q u e r dizer , un iversa l i s ­

tas . A v e l h a e g r a n d e Áus t r i a foi , n u m a e s f e r a m e n o r , q u a s e u m a S o c i e d a d e

das N a ç õ e s . S o m o s un ive r sa l i s t a s , s o m o s t o l e r a n t e s , an t i f aná t i cos . A m a m o s

a paz . N o s s a s i t u a ç ã o g e o g r á f i c a r a d i c a n o v e r d a d e i r o c e n t r o d a E u r o p a , n o

c o r a ç ã o d o v e l h o c o n t i n e n t e . S o m o s d e m o c r a t a s , s o m o s l ibe ra i s , s o m o s indi­

v idua l i s tas . O s a u s t r í a c o s da v e l h a Áus t r ia e o s d a p e q u e n a R e p ú b l i c a d e h o j e

s ã o q u a s e o ú n i c o p o v o e u r o p e u q u e n ã o é e m a b s o l u t o n a c i o n a l i s t a . S o m o s

e u r o p e u s . A v ida c u l t u r a l é p a r a n ó s u m a n e c e s s i d a d e q u a s e m a i s i m p e r i o s a

q u e o c o m e r . S o m o s filhos d e u m a g r a n d e e v e l h a c u l t u r a . 6 3

O Professor A L B E R T CALSAMIGLIA, da Universidade de Barcelona, também nos chama a atenção para a neutralidade na obra de K E L S E N , em face das ideologias. São estas as suas palavras:

6 3 Apud Luís RECASÉNS SICHES. Panorama del Pensamiento Jurídico en el siglo XX, pp . 1 8 6 -

1 8 7 .

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10 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES I95

PARTE IV - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

La " T e o r í a P u r a d e l D e r e c h o " p r e t e n d e p o n e r fin al c a o s d e l i d e o l o g i s m o e n

la C i e n c i a J u r í d i c a . La a l t e rna t iva a e s t a s i t u a c i ó n e s l a c o n s t r u c c i ó n d e u n a

t e o r í a j u r í d i c a q u e s e a o b j e t i v a y n e u t r a l . U n a t e o r í a q u e n o s sirva - c o m o

t o d a s las t r a d i c i o n a l e s i u sna tu ra l i s t a s y pos i t iv i s tas - p a r a jus t i f i ca r u n p o d e r

d e t e r m i n a d o n i u n a i d e o l o g í a d e t e r m i n a d a . E l o b j e t i v o b á s i c o d a la " T e o r i a

P u r a d e l D e r e c h o " e s l a c o n s t r u c c i ó n d e u n e s q u e m a d e i n t e r p r e t a c i ó n d e la

r e a l i d a d j u r í d i c a q u e s e a i n d e p e n d i e n t e d e la i d e o l o g í a c o n c r e t a q u e a n i m a

al p o d e r . 6 4

Sob o ponto de vista filosófico, o pensamento de K E L S E N é visto como influen­ciado ora pelo neokantismo sudocidental alemão, ora pelo neopositivismo do Círculo de Viena. 6 5 Fato é que, como bem lembra M I G U E L REALE, na segunda década daquele século, o Direito vivia num verdadeiro caos: "a ciência jurídica era uma cidadela cercada por todos os lados, por psicólogos, economistas, políticos e soci­ólogos. Cada qual procurando transpor os muros da Jurisprudência para torná-la sua, para incluí-la em seus domínios." 6 6

Coube, então, a K E L S E N , professor da Universidade de Viena e juiz do Tribunal Constitucional austríaco, protestar a favor da dignidade científica do Direito. Por outro lado, por que não atribuirmos a este movimento uma certa dose de respon­sabilidade do Estado de Direito em querer resgatar sua dignidade ameaçada pela filosofia jurídica de cunho sociologizante, e pelo radicalismo do "Direito Livre"? Lembremo-nos, também, do momento de inquietação e conturbação social que vivia a Europa do pós-guerra, em que a estabilidade das nações dependia também da estabilidade da ordem jurídica.

O solo formalista mantinha-se firme. Segundo G U I D O F A S S Ò , O incremento das doutrinas sociológicas não chegaram a destruir o positivismo jurídico-formalista, apesar de o terem, de certa forma, enfraquecido. Elas apenas o teriam chamado para um "exame de consciência", no sentido de verificar a solidez de sua proposta básica, que era o formalismo conceituai. 6 7 O resultado deste movimento sociológi-

6 4 ALBERT CALSAMIGLIA. Es tudo pre l iminar à e d i ç ã o e s p a n h o l a de Qué es Justicia? de HANS KELSEN,

Editor ia l Ariel, 1 ed., B a r c e l o n a , 1 9 8 2 , p . 8 .

6 5 S o b r e o Círculo de Viena, ver MIGUEL REALE, Introdução à Filosofia, pp . 1 2 - 1 5 , e O Direito

Como Experiência, Ed. Saraiva, São Paulo, 1 9 6 8 , p . 9 8 .

MIGUEL REALE ap rox ima mais KELSEN d o n e o k a n t i s m o do q u e do neopos i t iv i smo, r e c o n h e c e n d o ,

inclusive, duas Esco las de Viena : uma , a dos neoposi t iv is tas , n o c a m p o da filosofia

científica; e outra, a de KELSEN, n o s d o m í n i o s do dire i to . J á t e m o s visto, diz Reale , mui tas

confusões s o b r e e s t e p o n t o , e m b o r a s e deva r e c o n h e c e r que , e m cer tas c o n s e q u ê n c i a s ,

as duas co r r en t e s ap resen tam, m á x i m e n o s ú l t imos anos , c r e scen t e s p o n t o s de con ta to ,

a s semelhando-se p o r sua t e n d ê n c i a anti-metafísica e pe lo e m p i r i s m o radical . Cf. MIGUEL

REALE, Filosofia do Direito, 1 9 9 6 , p . 4 5 8 .

TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ J R . , p o r sua vez, informa-nos q u e KELSEN e ra o jur is ta d o Cí rcu lo de

Viena . Cf. "Por q u e le r KELSEN, h o j e " , p . 14 . O tex to , escr i to p o r TÉRCIO FERRAZ e m 1 9 8 1 ,

serve, agora, de prefác io a o livro de FABIO ULHOA COELHO, Para Entender Kelsen, Edi tora Max

Limonad , S ã o Paulo, 2 a ed. , 1 9 9 6 .

6 6 MIGUEL REALE. Filosofia do Direito, p . 4 5 5 .

6 7 GUIDO FASSÒ, p . 2 1 7 e ss. . , . .

Page 27: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

1 9 6 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

co levou K E L S E N a elaborar uma teoria do Direito capaz de sustentar a sua própria

juridicidade. Para tanto, ele se aproveitou do elemento da coerção, utilizado para

distinguir a norma jurídica das outras espécies normativas, e da distinção kantiana

entre ser e dever ser, que servia para distinguir o direito, do mundo da natureza.

Afastando-se da instabilidade típica das relações valorativas, como também das

relações causais, próprias dos fenômenos naturais, K E L S E N constrói sua teoria nor­

mativa sobre a ideia de imputação, como veremos a seguir.

O livro Teoria Pura do Direito teve sua primeira edição publicada em 1934,

com origem em trabalhos anteriores - o primeiro trabalho divulgado por K E L S E N na

data de 1911 . Em 1960 apareceu uma segunda edição refundida e ampliada, onde

o autor incorpora alguns conceitos novos, como a distinção entre prescrição e

descrição normativas, por exemplo. Logo no prefácio e no primeiro capítulo do li­

vro, encontramos, expressamente, o objetivo do autor, que é elevar a Jurisprudên­

cia a um ideal de cientificidade - objetividade e exatidão -, purificando-a de toda a

ideologia política e de todos os elementos de ciência natural. Sobre o significado

e o alcance do título atribuído à obra, escreve K E L S E N :

A T e o r i a P u r a d o D i r e i t o é u m a t e o r i a d o D i r e i t o p o s i t i v o - d o D i r e i t o p o s i t i v o

ge ra l , n ã o d e u m a o r d e m j u r í d i c a e s p e c i a l . [...] C o n t u d o , f o r n e c e u m a t e o r i a

d a i n t e r p r e t a ç ã o .

C o m o t e o r i a , q u e r ú n i c a e e x c l u s i v a m e n t e c o n h e c e r o s e u p r ó p r i o o b j e t o .

P r o c u r a r e s p o n d e r a e s t a q u e s t ã o : o q u e é e c o m o é o D i r e i t o ? N ã o i m p o r t a

a q u e s t ã o d e s a b e r c o m o d e v e s e r o D i r e i t o , o u c o m o d e v e e l e s e r f e i to . É

c i ê n c i a j u r í d i c a e n ã o p o l í t i c a d o D i r e i t o .

Q u a n d o a si p r ó p r i a se d e s i g n a c o m o "pu ra" t e o r i a d o D i r e i t o , i s to s ign i f ica

q u e e l a s e p r o p õ e ga ran t i r u m c o n h e c i m e n t o a p e n a s d i r ig ido a o D i r e i t o e

e x c l u i r d e s t e c o n h e c i m e n t o t u d o q u a n t o n ã o p e r t e n ç a a o s e u o b j e t o , t u d o

q u a n t o s e n ã o p o s s a , r i g o r o s a m e n t e , d e t e r m i n a r c o m o D i r e i t o . Q u e r i s t o di­

z e r q u e e l a p r e t e n d e l i b e r t a r a c i ê n c i a j u r í d i c a d e t o d o s o s e l e m e n t o s q u e l h e

s ã o e s t r a n h o s . E s s e é o s e u p r i n c í p i o m e t o d o l ó g i c o f u n d a m e n t a l . 6 8

Podemos perceber que o grau de pretensão relativa à autonomia do objeto

científico é de tal ordem em K E L S E N , que se pretende fazer com que ele fale por si.

O autor assume a posição do cientista, limitando-se a observar uma ordem factual

de comportamento. Indaga sobre a essência do seu objeto de estudo, sobre a sua

substância, a fim de dar-lhe significado próprio, capaz de destacá-lo das demais

áreas do conhecimento. K E L S E N preocupa-se com o que ele vê, ou seja, como o

direito se comporta realmente, pois existe uma norma posta que imputa uma

sanção a quem venha contrariar-lhe. Neste aspecto, o viés positivista de K E L S E N não

corresponde diretamente ao positivismo francês de A U G U S T O C O M T E , mas ao caráter

cientificista que o positivismo sociológico propõe. A ciência sociológica é uma ci­

ência do ser, enquanto se preocupa com as conexões causais que se operam entre

6 8 HANS KELSEN. Teoria Pura do Direito, p . 1 7 .

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10 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 197

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

os fatos, que, para K E L S E N , podem ser os comportamentos jurídicos imputados por um dever ser.69

K E L S E N não aceita a distinção feita entre ciências da natureza e ciências sociais. Para ele, a sociedade também pode ser vista como parte da natureza, na medida em que a convivência efetiva entre os homens pode ser pensada como parte da vida em geral, e vida é natureza. 7 0

Fundamental para esse entendimento é o conceito de "ato jurídico" que o autor constrói. Para K E L S E N , O S atos jurídicos são atos da vida quotidiana que re­cebem um significado jurídico. Não se trata, todavia, de um significado atribuído por qualquer um que o pretenda, de forma subjetiva, mas um significado objetivo conferido pelo próprio ato de sua criação. A norma positivada é aquela estabele­cida por um poder competente como válida para determinada época e lugar. A juridicidade é, assim, atributo dado pelo criador da lei. Daqui depreende-se a nor­ma como esquema básico de interpretação. O fato é jurídico quando reflete uma norma jurídica. A norma empresta ao ato um significado jurídico (ou antijurídico), da mesma forma como ela é produzida por um ato jurídico que, por seu turno, também recebe significação jurídica de uma outra norma e, assim, sucessivamen­te, até chegar à norma fundamental. 7 1 A partir daí, K E L S E N elabora a sua pirâmide normativa como ordem dinâmica: sempre que as normas forem criadas valida­mente, isto é, pelas autoridades competentes, elas devem ser respeitadas. Existirá sempre uma norma superior que autoriza o ato de emanação de outra norma, até chegar-se à Grundnorm, que é uma norma pressuposta, o que significa dizer: uma hipótese lógica, capaz de conferir validade à ordem jurídica como um todo. 7 2

O Direito, segundo K E L S E N , corresponderá sempre, e em qualquer lugar, a uma ordem de conduta; e a ideia de ordem corresponderá, também sempre, a um sistema de normas, cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mes­mo fundamento de validade, que é a norma fundamental. O conceito de validade é básico no pensamento de K E L S E N , porque daí se extrai toda a essência do Direito. Logo, o objeto da ciência jurídica é a norma, que aparece como unidade do siste­ma, mas uma norma que extrai sua validade do todo da qual ela faz parte. Assim, escreve K E L S E N : "Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordem jurídica quando a sua validade se funda na norma fundamental dessa ordem." 7 3

6 9 REALE r e c o n h e c e duas faces n o p e n s a m e n t o de KELSEN: u m a Ju r i sp rudênc i a Soc io lóg ica ,

d o ser, e u m a Ju r i sp rudênc i a Normativa, d o dever ser , es ta r ep re sen tada pe la qual idade

h ipo té t i ca da norma , q u e se l imita a ligar u m fato c o n d i c i o n a n t e a u m a c o n s e q u ê n c i a , a

u m a sanção , s e m enunciar , c o n t u d o , qua lque r ju ízo de valor m o r a l o u po l í t i co responsáve l

p o r es ta c o n e x ã o . C f , Filosofia do Direito, Saraiva, 1 9 9 6 , p. 4 5 9 .

7 0 Cf. Teoria Pura do Direito, p . 1 8 .

7 1 Idem, p. 2 0 .

7 2 S o b r e a força de val idade da n o r m a fundamenta l e m HANS KELSEN, vale o e s tudo de ALEXANDRE

TRAVESSONI GOMES, O Fundamento de Validade do Direito - Kant e Kelsen.

7 3 Idem, p . 5 7 .

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1 9 8 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

Com relação à teoria da interpretação, vale ressaltar na obra de K E L S E N a parte dedicada ao estudo da norma e da produção normativa. É no momento em que o autor elabora a famosa distinção entre ser e dever ser, fundamentada no que ele entende como ato de vontade. Com a ideia de ato de vontade, concebe-se, em primeiro lugar, o Direito como ordem normativa da conduta humana, ou melhor, como um sistema de normas que regulam o comportamento humano: alguém determina o comportamento de outrem. Logo, a norma é o dever ser . 7 4 Mas não é essa vontade contida na lei que irá importar a K E L S E N , uma vez que a norma pode receber qualquer conteúdo, mas a lei em si, bastante por si só. O que importa é se a lei é válida, ou se é feita por quem competente.

O comportamento humano é incerto, podendo ser tido apenas como prová­vel, ainda que, no caso da norma jurídica, bastante provável porque o comando é acompanhado de sanção. Dada sua força cogente, K E L S E N não se detém sobre o conteúdo da lei, mas sobre o ato que produz a norma, que consiste também num ato de vontade. A lei é um ato de criação do legislador e, uma vez criada, passa a existir, tornando-se sujeita à verificação de sua validade, ou seja, de sua existência enquanto ato válido. A lei é, então, um ato posto, um ato que existe realmente.

Um ato de vontade corresponde, assim, ao ato por meio do qual a autorida­de competente exprime sua vontade a respeito de como os indivíduos devem se conduzir, ordenando-lhes ou permitindo-lhes algo. Logo, para K E L S E N , a ciência do Direito não deverá se interessar pelo conteúdo das normas, mas pela sua aplica­ção ou pela sua dinâmica: nascimento, eficácia e revogação. Norma, para K E L S E N ,

"é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém." 7 5

Esse pensamento pode ser assim sintetizado: um indivíduo quer que o outro se

conduza de determinada maneira. A primeira parte desta frase corresponde a um ato de vontade verificável, porque criado de acordo com uma forma definida, fazendo parte, portanto, do mundo do ser; enquanto a segunda parte, de deter­

minada maneira, nos conduz à ordem do dever ser, que corresponde mais espe­cificamente ao sentido normativo do ato. Assim, conclui K E L S E N : 'A norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui." 7 6

As correntes objetivistas se apropriarão dessa ideia: de que o dever ser vale por si só. Com isso, a norma ganha uma dimensão própria e independente de quem a fez. Segundo K E L S E N , O dever ser é válido mesmo depois da vontade do ato originário ter cessado. 7 7

K E L S E N isola do Direito qualquer indagação do tipo quem fez a norma, porque a fez, quais os interesses ou valores que encerra, e t c , pois, segundo ele, tais ques-

7 4 Idem, p. 2 1 . 7 5 Idem, p. 2 2 . 7 6 Idem, p . 2 2 .

7 7 Idem, p . 2 6 .

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10 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 199

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

toes pertencem ao campo de considerações próprio da política, da psicologia, da ética ou da sociologia. O fundamento de validade do Direito não está, para ele, na origem ou na fundamentação social do ato, mas na própria norma (superior) que o autoriza, ou melhor, na norma que o prescreve. Assim, para efeitos meto­dológicos, o Direito, enquanto norma, enquanto ordenamento jurídico positivo, -encerra-se nele mesmo, prevendo e controlando a sua própria existência, como se o mesmo se bastasse. 7 8

A ideia de valor no Direito, para KELSEN, é objetiva e tem como parâmetro o grau de eficácia e de validade da lei. Uma conduta é boa ou má se a norma for acatada ou não. Só o comportamento pode ser avaliado como bom ou mau, e não a norma em si. Se a lei autoriza, permite ou faculta, o comportamento é bom; se proíbe, é mau. A norma considerada como objetivamente válida funciona como medida de valor relativamente à conduta real, escreve KELSEN. Assim, a conduta que corresponde à norma tem um valor positivo, enquanto a conduta que contra­ria a norma tem um valor negativo. 7 9

No entanto, apesar dos fatos serem julgados valiosos ou desvaliosos apenas quando referidos à norma, KELSEN, positivista e contrário ao Direito natural, chama a atenção para a relatividade sempre presente na ordem dos valores. No positivis­mo, ora a lei avalia uma conduta como boa, ora a conduta pode ser vista como má em função de uma nova lei que substituí-la.

Cabe, por isso, à Ciência Jurídica - nome dado por KELSEN à Ciência do Direi­to - , apenas descrever as prescrições contidas na norma jurídica. À ciência jurídica compete única e exclusivamente descrever o objeto e não participar da sua cria­ção: a autoridade jurídica estabelece a norma e a ciência a descreve, sob a forma de uma proposição. Proposição jurídica consiste, então, em um juízo hipotético que enuncia ou traduz o sentido de uma norma jurídica, atribuindo-lhe conse­quências. A norma jurídica, por seu lado, não é juízo, no sentido de um enun­ciado sobre um objeto dado ao conhecimento, mas mandamento e, como tal, comando imperativo. KELSEN valoriza o papel da doutrina, embora lhe imponha restrições. 8 0 Porém, acreditamos que, na medida em que a doutrina traduz o signi­ficado da norma jurídica, ela participa do processo de interpretação (e, portanto, de aplicação) das leis. Ainda assim, esse autor sempre chama a atenção para o fato de que o dever ser da proposição jurídica não tem, como o dever ser da norma jurídica, um sentido prescritivo, mas um sentido apenas descritivo. Seu alcance é distinto: a norma prescreve e a doutrina descreve. Em sua teoria hermenêutica, KELSEN não enfrenta a questão valorativa sob a tônica das "ciências do espírito", de ordem prática, o que lhe chamaria ao dever moral.

7 8 Es ta "pseudo auto-suficiência" d o Dire i to p r o p o s t a p o r KELSEN será depo is ques t i onada p e l o

pós-posi t iv ismo.

7 9 KELSEN. Teoria Pura do Direito, p . 3 8 .

8 0 A p ropós i to , c a b e confer i r o art igo do p rofessor NELSON DE SOUSA SAMPAIO, "Doutr ina , fonte

mater ia l e formal d o Dire i to" , e m Estudos de Filosofia do Direito: uma visão integral da

obra de Hans Kelsen. Vide bibliografia.

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2 0 0 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

Apesar de assumir o Direito como ciência social, sua ânsia de objetividade faz com que tente aproximá-lo o mais possível das ciências exatas ou da natureza, pelo mecanismo da imputação, resumido na fórmula do dever ser. Mas, apesar de aproxi­mar a ciência jurídica das ciências naturais, na medida em que aquela se ocupa ape­nas de descrever a conduta humana como fato social, não chega a inseri-la na ordem da natureza explicável pelo princípio da causalidade. A ciência jurídica só escapa da relação causa/efeito pela sua essência normativa que determina que a cada prescri­ção imputa-se um dever ou uma obrigação. As proposições, por meio das quais a ci­ência jurídica descreve o seu objeto, apresentam-se sob a seguinte forma: se alguém comete um crime, deve ser-lhe aplicada uma pena; por exemplo: se alguém causar dano a outrem, deverá indenizá-lo. Daí que a correspondência prescritiva entre conduta ilícita e sanção é dada pela conjunção dever ser e não pela conjunção ser,

como referência a uma necessidade. A norma (que ê), não reconhece, no entanto, que algo é assim, mas que deve ser assim. E é a esse dever ser, objetivo e claro, pró­prio da conduta normalizada, que chamamos imputação.

K E L S E N arremata a Teoria Pura do Direito com um capítulo dedicado à inter­pretação. Começa definindo interpretação como uma operação mental que acom­panha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. Na interpretação, não abandona a figura da pirâmide. Segundo ele, os vários escalões que compõem a ordem jurídica possuem entre si uma relação de determinação ou de vinculação, na medida em que a norma do es­calão superior regula o ato (processo e conteúdo) pelo qual é produzida a norma do escalão inferior. Logo, a função de interpretar deverá atender aos vários âmbi­tos de aplicação da norma: a concretização das leis ou dos atos administrativos em função de uma interpretação que se faça da Constituição, bem como a concretiza­ção da sentença judicial em função da norma que lhe sirva de fundamento. Vale destacar, desde logo, o papel criador dos órgãos judiciais. Afinal, K E L S E N reconhece a sentença judicial como norma jurídica individual, criada pelo juiz para discipli­nar uma relação específica entre agentes determinados. Lembremo-nos da ima­gem da pirâmide, que possui em sua base a sentença! No entanto, sua teoria não tem um alcance hermenêutico que explique esse movimento de compreensão, interpretação e concretização do direito. Basta-lhe a subsunção do fato à norma válida como mecanismo de extração de uma sentença, ainda que não seja a única possível. E quanto ao papel da ciência jurídica, K E L S E N é peremptório:

A i d e i a d e q u e é pos s íve l , a t ravés d e u m a i n t e r p r e t a ç ã o s i m p l e s m e n t e

c o g n o s c i t i v a , o b t e r d i r e i t o n o v o , é o f u n d a m e n t o d a c h a m a d a j u r i s p r u d ê n c i a

d o s c o n c e i t o s , q u e é r e p u d i a d a p e l a T e o r i a P u r a d o D i r e i t o . [ . . . ] A i n t e r p r e t a ç ã o

j u r í d i co -c i en t í f t c a n ã o p o d e fazer o u t r a c o i s a s e n ã o e s t a b e l e c e r as pos s íve i s

s i g n i f i c a ç õ e s d e u m a n o r m a j u r í d i c a . 8 1

Isto retrata a distância entre as ideias de K E L S E N e as de SAVIGNY, apesar de ambos se insurgirem contra o jusnaturalismo em favor de uma ordem positiva e

8 1 Kelsen. Teoria Pura do Direito, p . 4 7 2 .

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10 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 201

8 2 Idem, p . 4 6 4 .

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

concreta. SAVIGNY não acredita na norma posta, preferindo uma ciência capaz de

identificar o verdadeiro e genuino direito, enquanto K E L S E N nega esse papel criati­

vo da ciência em favor da norma posta. Verificaremos, assim, que o apelo excessi­

vo ao formalismo construirá as bases da dogmática jurídica.

Para K E L S E N , a interpretação do Direito opera-se em duas esferas distintas: na esfera pública, quando levada a efeito pelos órgãos estatais incumbidos de aplicar o Direito - o legislativo, o executivo e o judiciário; e na esfera privada, quando o indivíduo é impelido a observar a conduta estabelecida pela lei, para escapar da sanção. Ele denomina a primeira interpretação de autêntica, porque cria direito e vincula a ação; e a segunda, de não autêntica, uma vez que não possui nenhuma validade especial.

Com relação, ainda, à vinculação existente entre as normas de escalão supe­rior e as normas de escalão inferior, K E L S E N chama nossa atenção para a ocorrência eventual de uma relativa indeterminação (intencional ou não) do ato que prescre­ve o direito. Indeterminação intencional seria aquela relativa à margem de discri­cionariedade que o legislador reconhece como necessária ao aplicador da norma para que este atenda às circunstâncias de quando, onde e como aquela norma deverá ser aplicada. O mesmo vale para a norma superior, que deixa à discriciona­riedade do legislador hierarquicamente inferior ponderar sobre as circunstâncias que demandam a criação do ato normativo.

A indeterminação não-intencional, por sua vez, corresponderia à pluralidade de significações possíveis das palavras, por meio das quais a norma se exprime, em geral decorrentes da vaguidade e da ambiguidade de seus termos. Pode acontecer, inclusive, que a verdadeira vontade do legislador venha a consistir em apenas uma

dessas várias significações.

A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer. 8 2

A figura da moldura é bastante atraente na teoria kelseniana. Dentro da mol­dura, que corresponde ao texto normativo, encontram-se várias possibilidades de sentido, notando-se que apenas uma delas será a preferida do órgão aplicador da lei. Os motivos que levam à escolha de uma entre as várias interpretações possí­veis, segundo K E L S E N , escapam ao alcance da teoria do Direito. Assim,

S e p o r " i n t e r p r e t a ç ã o " s e e n t e n d e a fixação p o r v ia c o g n o s c i t i v a d o s e n t i d o

d o o b j e t o a i n t e rp re t a r , o r e s u l t a d o d e u m a i n t e r p r e t a ç ã o j u r í d i c a s o m e n t e

p o d e s e r a f i x a ç ã o d a m o l d u r a q u e r e p r e s e n t a o D i r e i t o a i n t e r p r e t a r e , c o n -

Page 33: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

2 0 2 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

s e q u e n t e m e n t e , o c o n h e c i m e n t o das vár ias p o s s i b i l i d a d e s q u e d e n t r o d e s t a

m o l d u r a e x i s t e m . S e n d o a s s im , a i n t e r p r e t a ç ã o d e u m a le i n ã o d e v e n e c e s ­

s a r i a m e n t e c o n d u z i r a u m a ú n i c a s o l u ç ã o c o m o s e n d o a ú n i c a c o r r e t a , m a s

p o s s i v e l m e n t e a vár ias s o l u ç õ e s q u e [...] t ê m igua l valor , s e b e m q u e a p e n a s

u m a d e l a s s e t o r n e D i r e i t o p o s i t i v o [...] D i z e r q u e u m a s e n t e n ç a j u d i c i a l é

f u n d a d a n a le i , n ã o s igni f ica , n a v e r d a d e , s e n ã o q u e e l a s e c o n t é m d e n t r o

d a m o l d u r a o u q u a d r o q u e a l e i r e p r e s e n t a - n ã o s ign i f ica q u e e l a é a n o r m a

ind iv idua l , m a s a p e n a s q u e é u m a das n o r m a s ind iv idua is q u e p o d e m s e r

p r o d u z i d a s d e n t r o d a m o l d u r a d a n o r m a g e r a l . 8 3

Por fim, ressalta:

A q u e s t ã o d e s a b e r q u a l é, d e n t r e as p o s s i b i l i d a d e s q u e s e a p r e s e n t a m n o s

q u a d r o s d o D i r e i t o a apl icar , a " c o r r e t a " , n ã o é [...] u m a q u e s t ã o d e c o n h e c i ­

m e n t o d i r ig ido a o D i r e i t o p o s i t i v o , n ã o é u m p r o b l e m a d e T e o r i a d o D i r e i t o ,

m a s u m p r o b l e m a d e Po l í t i ca d o D i r e i t o . 8 4

Dessa forma, podemos concluir que K E L S E N reconhece a incidência de valores de ordem política e moral no Direito, ainda que não os assuma como próprios à ciência jurídica. Mediante um ato político, a autoridade competente escolhe um dentre os vários significados possíveis de uma lei, em função de sua interpretação. Interpretar, para K E L S E N , é estabelecer esta moldura das várias possibilidades de significação da lei. Interpretar não é buscar um significado, nem mesmo o mais adequado ao caso. Ele acredita que não temos como verificar, no âmbito do Di­reito, qual seja a interpretação correta, muito porque os métodos apresentados pela teoria tradicional mostraram-se insuficientes a tamanha pretensão: "Todos os métodos de interpretação até ao presente elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto". 8 5

Como esse ato de escolha não faz parte do Direito positivo, não há que se pretender atribuir-lhe algum cunho de veracidade ou falsidade, validade ou invalidade à fundamentação que eventualmente lhe seja conferida. A validade do ato provém única e exclusivamente do fato de ser decisão tomada por quem competente e no âmbito de sua competência. O Direito é visto, assim, por K E L S E N , de forma bastante bitolada, e, talvez com a ideia de moldura ele consiga estabelecer os limites últimos da ciência jurídica. Todavia, dentro dos parâmetros fixados pela moldura legal, o juiz age livremente: livre de preconceitos de ordem moral ou social que não o atingem. Só assim não seria, afirma K E L S E N , se o próprio Direito positivo delegasse em certas normas metajurídicas como a moral, a justiça, etc. Mas, neste caso, estas transformar-se-iam em normas de Direito positivo. 8 6 E é justamente a rejeição aos valores e a qualquer orientação de caráter metafísico o que caracteriza o positivismo, inclusive o jurídico. Neste ponto, podemos fazer a aproximação entre o positivismo jurídico e o positivismo de A U G U S T O C O M T E , apesar

8 3 Idem, p . 4 6 7 . 8 4 Idem, p . 4 6 9 . 8 5 Idem, p . 4 6 8 . 8 6 Cf, Teoria Pura do Direito, p . 4 7 0 .

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10 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 2 0 3

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

das diferenças já apontadas. CALSAMIGLIA analisa o viés cientiflcista proposto pelo positivismo, ao qual adere K E L S E N , quando pretende reduzir todo o conhecimento à verificação dos fatos. "Todo aquello que no sea reducible a hechos, es decir, a acontecimientos verificables, no entre en el sistema de la ciencia, y, para un positivista, la ciencia es la única forma de conocimento." 8 7

Segundo, ainda, o próprio CALSAMIGLIA, e com o que estamos plenamente de acordo, o positivismo pecou justamente por eliminar do âmbito do conhecimento todo o viver social ou tudo o mais que fuja às relações diretas de causa e efeito. O autor traduz suas conclusões, que conferem com as diretrizes que regem este nosso trabalho, nas seguintes palavras, que aproveitamos para transcrever:

Las t e s i s pos i t iv i s t as s o n r e d u c c i o n i s t a s p o r q u e n i e g a n r a c i o n a l i d a d a

a q u e l l o s s a b e r e s q u e n o c o n c u e r d a n c o n su i d e a d e C i e n c i a . E l p o s i t i v i s m o h a

d i s t i n g u i d o m u y r í g i d a m e n t e e n t r e s a b e r e s c i en t í f i co s y s a b e r e s n o c i en t í f i co s

y h a t e n d i d o a p r e s e n t a r a é s t o s c o m o i r r a c i o n a l e s . C a b e p r e g u n t a r si t o d o

a q u e l l o q u e n o e s e s t r i c t a m e n t e c i e n t í f i c o d e b e a b a n d o n a r s e al c a m p o d e

la e m o c i ó n y e l s e n t i m i e n t o . P o d r í a c u e s t i o n a r s e s i c o n l o s m é t o d o s d e las

c i e n c i a s p o d e m o s a p r e h e n d e r t o d a l a r e a l i d a d d e l a q u e t e n e m o s n o t i c i a

y d e b e r í a m o s d e c i d i r si t o d o a q u e l l o q u e n o e s a b o r d a b l e m e d i a n t e la

m e t o d o l o g í a c i en t í f i c a d e b e a b a n d o n a r s e a o r e i n o d a la i r r a c i o n a l i d a d . 8 8

Portanto, cabe abordarmos, ainda que brevemente, a importância dos valores para a Jurisprudência.

1 1 . A JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES

A Jurisprudência dos Valores tem como linha de força o neokantismo sul-ocidental alemão do início do século X X . Deste movimento participaram filósofos como R U D O L F STAMMLER, W I L H E L M W I N D E L B A N D , H E I N R I C H R I C K E R T , E M I L LASK e GUSTAV

R A D B R U C H . Com o relativo abandono do pragmatismo no final do século X L X e início do X X , entra em cena a ideia de valor, que alcança também o Direito. 8 9 A concepção científica do positivismo, até então prevalecente, apenas admitia, como ciência, as da natureza, a lógica e a matemática. E daí o esforço de HANS K E L S E N em incluir

8 7 CALSAMIGLIA. Ob. cit., p . 1 6 .

8 8 Idem, p . 2 1 . 8 9 EMIL LASK, p o r e x e m p l o , cons ide ra o Di re i to c o m o u m a "c iênc ia de valores", n a m e d i d a

e m q u e o Dire i to t rabalha a cul tura e m sua re lação c o m seus valores . "Values are ' trans-

empir ica l ' , that is, they are n o t i nhe ren t in o r logical ly deduc ib l e from empir ica l reality, bu t

are derive b y a men ta l o p e r a t i o n u p o n reality. S ince the m i n d can o p e r a t e on ly by the use

o f ca tegor ies o r types, "typical values", that is, types o f value, are the sub jec t mat te r o f legal

phi losophy." Cf. EDWIN W. PATTERSON, CARDOZO Professor o f J u r i s p r u d e n c e o f t h e C o l u m b i a

University. The Legal Philosophies of Lask, Radbruch and Dabin, p . X X L X .

D e a c o r d o c o m o p róp r io LASK, "the cri t ical t heo ry o f values differs f rom any Platonist ic

two-worlds theo ry in that it regards empi r ica l reality as the only k ind o f reality, bu t at the

s a m e t i m e as the s c e n e o r the subs t ra tum o f t ransempir ica l values o r mean ings o f gene ra l

validity." Emi l Lask. "Legal Phi losophy" , in The Legal Philosophies of Lask, Radbruch and

Dabin, p . 4 .

Page 35: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

2 0 4 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

nesse âmbito de apoditicidade, o Direito. As áreas correspondentes à dimensão

histórico-cultural, que envolvem necessariamente valores, eram desconhecidas

do mundo científico, pela carência de método próprio. Só o método adequado é

capaz de conferir objetividade à relação cognoscitiva, que aproxima o cientista do

seu objeto de conhecimento, que pode ser a própria ação humana. Dessa forma, a

Jurisprudência dos Valores ou Jurisprudência de Valoração, conforme quer LARENZ,

trabalhará com as dicotomias valor/realidade, ser/dever ser, natureza/cultura, como

campos distintos e sujeitos também a formas também distintas de conhecimento. 9 0

Apesar dos rumos mais diversos que tenha tomado, ou que ainda venha a

tomar, a Jurisprudência dos Valores é importante por reconhecer o Direito como

parte de um campo até então desconsiderado pela teoria do conhecimento, e

que toma como referência básica a cultura.91 Podemos entender cultura como o

somatório de crenças e tradições transmitido de geração em geração, a ponto de

gerar uma pauta de valores aceitos em determinada comunidade. 9 2

Cabe assinalar, com LARENZ, O esforço desempenhado por R I C K E R T , em 1902,

no sentido de estabelecer uma referência entre "ciências históricas" e valor. Algu­

mas de suas ideias são traduzidas por KARL LARENZ:

S e o h i s t o r i a d o r r e a l m e n t e " re fe re" a va lo re s o s f e n ô m e n o s e f e t i v a m e n t e o c o r ­

r idos e s e p a r a o s e x p o r t e m d e e n c o n t r a r n e l e s u m i n t e r e s s e gera l , e n t ã o a

s ignif icat ividade d o s va lo res q u e a s s u m e c o m o f u n d a m e n t o n ã o p o d e a p e n a s

ex i s t i r p a r a e l e - t e m d e ex is t i r t a m b é m p a r a o u t r o s . T e m , p o r c o n s e g u i n t e , d e

tratar-se d e va lo re s q u e s e j a m d e fa to g e r a l m e n t e r e c o n h e c i d o s , p e l o m e n o s n a

c o m u n i d a d e cu l tu ra l a q u e o h i s t o r i a d o r p e r t e n c e . O q u e " e m p r i n c í p i o se h á

d e c o n s t a t a r a t ravés da e x p e r i ê n c i a " , o u se ja , é u m fato e m p í r i c o . M a s o r e c o -

9 0 Vale confer i r o t rabalho de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ J R . , Conceito de Sistema no Direito, q u a n d o

es t e anal isa a t eor ia dos fi lósofos de Marburgo e B a d e n , p r o c u r a n d o extra i r os vários

s is temas q u e c o m p õ e m o u q u e in fo rmam o Dire i to , q u a n d o é des tacada a ques t ão dos

pr inc íp ios e dos valores .

9 1 Para MIGUEL REALE, a cul tura cons i s t e na p r o j e ç ã o h is tór ica da subjet ividade. O valor, diz eke ,

"envolve u m a o r i en t ação e, c o m o tal, pos tu l a u m a quar ta nota , q u e é a preferibilidade.

E p o r es ta razão q u e para nós , t oda teor ia do valor t e m c o m o c o n s e q u ê n c i a , n ã o causal ,

mas lógica, u m a t e l eo log ía o u teor ia dos fins. Daí d ize rmos q u e fim não é senão um valor

enquanto racionalmente reconhecido como motivo de conduta. Toda soc iedade o b e d e c e

a u m a t ábua d e valores , de m a n e i r a q u e a fisionomia de u m a é p o c a d e p e n d e da forma c o m o

seus valores s e d i s t r ibuem o u se o r d e n a m . E aqui q u e e n c o n t r a m o s ou t ra caracter ís t ica do

valor: a sua possibilidade de ordenação ou de graduação preferencial o u hierárquica ,

e m b o r a se ja incomensuráve l . " . Introdução à Filosofia, p . 1 4 4 .

9 2 D e a c o r d o c o m LARENZ, O c o n c e i t o de "cultura" surge cada vez mais c o m o p a n o de fundo

das c iênc ias his tór icas . Cultura, para e le , n o seu sen t ido mais a m p l o "é tudo o que , pe l a sua

re fe rênc ia a valores , ganha sentido e significado para o h o m e m q u e r e c o n h e c e esses valores

c o m o tais.[ . . .] Valores , sen t ido e s ignif icação são a lgo q u e nós n ã o p o d e m o s ' p e r c e b e r ' ,

mas apenas 'entender ' ' ; e n q u a n t o in te rp re tamos o b j e t o s pe rceb idos . Por isso é na tureza

'o se r livre de signif icação q u e s o m e n t e é percep t íve l e n ã o é en tendíve l ' ; é cultura, p e l o

cont rá r io , ' o se r s ignificante e suscept ível de c o m p r e e n s ã o ' . " Metodologia da Ciência do

Direito, pp . 1 1 1 e 1 1 2 .

Page 36: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

1 0 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDENCIA DOS VALORES 2 0 5

9 3 Idem, p . 1 1 1 .

9 4 R . S tammler . Tratado de Filosofia dei Derecho, p . 7 5 .

9 5 Idem, p . 7 6 .

9 6 A p r o p ó s i t o c a b e c o n h e c e r a d i ferença q u e exis te en t r e explicar e compreender ens inada p o r

MIGUEL REALE: "Dizemos que explicamos u m f e n ô m e n o q u a n d o indagamos de suas causas

e var iações funcionais , o u seja, q u a n d o b u s c a m o s os n e x o s necessá r ios de a n t e c e d e n t e

e c o n s e q u e n t e , ass im c o m o os de in t e rdependênc ia , capazes de nos e sc l a rece r sob re a

na tu reza o u a es t rutura dos fatos; e d i zemos q u e o compreendemos q u a n d o o envo lvemos

n a to ta l idade de seus fins, e m suas conexões de sentido.[...] Expl icar é de scob r i r na real idade

aqui lo q u e na rea l idade m e s m a se c o n t é m . [...] C o m p r e e n d e r n ã o é ver as coisas s e g u n d o

n e x o s causais , mas é ver as coisas na in tegr idade de seus sen t idos o u de seus fins, s e g u n d o

c o n e x õ e s vivenciadas valora t ivamente ." Introdução à Filosofia, pp . 1 9 5 , 1 9 6 e 2 0 0 .

9 7 Idem, p . 1 1 2 .

MIGUEL REALE, ao t en ta r u m a definição de valor, apenas afirma q u e "valor" é aqui lo q u e

vale. O seu "ser" é o "valer". Os valores p o s s u e m real idade e m função daqui lo q u e vale.

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

n h e c i m e n t o fá t ico d e u m va lo r n ã o é o m e s m o q u e "val idade n o r m a t i v a gera l" .

U m va lo r t e m va l idade n o r m a t i v a ge ra l q u a n d o o s e u r e c o n h e c i m e n t o é exigi­

d o d e t o d o s e c a d a u m . [...] O v a l o r f a t i c a m e n t e v igen t e c o s t u m a a p a r e c e r - n o s

c o m u m a c e r t a p r e t e n s ã o d e r e c o n h e c i m e n t o , q u e r dizer, d e va l idade " n o r m a ­

tiva". A o m e s m o t e m p o in t roduz-se c o m i s to u m o u t r o c o n c e i t o e x t r e m a m e n t e

i m p o r t a n t e : o c o n c e i t o d e " c o m u n i d a d e cul tura l" , c o m o a c o m u n i d a d e q u e é

c o n s t i t u í d a a t ravés d a v i g ê n c i a fá t ica d e v a l o r e s . 9 3

Institui-se, a partir daí, uma dicotomia científica conforme a consideração do objeto, já anteriormente anunciada por STAMMLER, outra figura central na teoria ju­rídica dos valores. STAMMLER firmara uma distinção entre percepção e vontade cor­respondendo, respectivamente, a relações de causa e efeito - ciência da natureza (ou ciência causal) e relações de meio e fim - ciência final. De acordo com ele, "a vontade, como conceito específico, não deve ser entendido como uma causa física, mas como uma pauta diretiva de nossa consciência, consistente na eleição de meios para a consecução de fins".94 Da mesma forma, "o critério fundamental que separa decididamente o mundo da vontade do da percepção é a faculdade de opção, característica de todo o fim. Fim não é senão um objeto que se aspira alcançar, e meio, uma causa que se pode eleger."95

As ciências da natureza eram consideradas em função do seu objeto ser livre de valores e oferecerem sentidos, passíveis de demonstração; enquanto as ciências finais, objeto da cultura, possuíam objeto somente possível de ser compreendido. Nesse sentido, os objetos culturais, tal como as ações humanas, são dotados de significação porque relacionados a valores. Logo, a hermenêutica também deverá orientar-se em função dos valores, como instância de compreensão. 9 6 A respeito, afirma LARENZ:

Valo re s , s e n t i d o e s ign i f i cação s ã o a lgo q u e n ó s n ã o p o d e m o s " p e r c e b e r " ,

m a s a p e n a s " e n t e n d e r " , e n q u a n t o i n t e r p r e t a m o s o b j e t o s p e r c e b i d o s . P o r

i s s o é n a t u r e z a "o s e r l ivre d e s ign i f i cação , q u e s o m e n t e é p e r c e p t í v e l e n ã o

é e n t e n d í v e l " ; é cu l tu ra , p e l o c o n t r á r i o , " o s e r s ign i f i can te e s u s c e t í v e l d e

c o m p r e e n s ã o " . 9 7

Page 37: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

2 0 6 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

Ser e valer apa recem, s e g u n d o e le , c o m o duas ca tegor ias fundamentais , duas p o s i ç õ e s

pr imordia is do espír i to pe ran te a real idade. Diz e le , às páginas 1 4 1 , 1 4 2 e 1 4 5 : "Ou v e m o s

as coisas e n q u a n t o elas são, o u as v e m o s e n q u a n t o valem; e, p o r q u e va lem, devem ser.

[...] Os valores r ep resen tam, p o r consegu in t e , o mundo do dever ser, das n o r m a s ideais,

s e g u n d o as quais s e realiza a ex i s t ênc ia h u m a n a , ref le t indo-se e m atos e obras, e m formas

de c o m p o r t a m e n t o e e m rea l izações de civilização e de cultura, o u seja, e m bens q u e

r e p r e s e n t a m o o b j e t o das c iênc ias culturais". Mas, pa ra a cul tura jur ídica, abre o deba te

para o sen t ido t e l eo lóg i co do Dire i to , ao afirmar q u e toda a t eor ia d o valor t e m c o m o

c o n s e q u ê n c i a , n ã o causal , mas lógica, u m a te leo log ia o u teor ia dos fins, u m a vez q u e fim

não é senão um valor enquanto racionalmente reconhecido como motivo de conduta. Cf.

p . 1 4 4 .

9 8 Ver O Conceito de Sistema no Direito, de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ J R .

9 9 GUSTAV RADBRUCH. Filosofia do Direito, p . 4 2 .

No n o s s o en tender , o ser h u m a n o dá significado às suas ações p o r m e i o d e valores . Valora

os a c o n t e c i m e n t o s , is to é, a s sume pos i ção s o b r e e les , posi t iva o u nega t ivamente . Mas,

a inda q u e a a ç ã o mos t re - se pessoa l , ac red i t amos q u e o h o m e m se r e c o n h e c e e m soc iedade ,

po is na a ç ã o individual incor re n e c e s s a r i a m e n t e u m a d i m e n s ã o públ ica , n o sen t ido j á

d e m o n s t r a d o p o r ROUSSEAU. O impor t an te é q u e i n d a g u e m o s p o r es ta r e l ação intersubjet iva

q u e verif icamos na praxis .

1 0 0 C f , RADBRUCH, p . 4 4 e 8 6 .

1 0 1 Idem, p . 8 5 e segs.

Porém, c o n f o r m e escreve EDWIN PATTERSON, "while Radbruch regards all law as o r i en t ed

toward jus t ice , h e r ecogn izes that jus t ice a lone d o e s n o t exp la in the c o n t e n t o f all legal

no rms . " Cf. The Philosophies ofLask, Radbruch and Dabin, p . X X X I I I .

1 0 2 Cf. RADBRUCH. Ob. cit., p . 4 5 .

Nas palavras do Professor EDWIN PATTERSON, s o b r e o p e n s a m e n t o de RADBRUCH, "law is a

cul tural p h e n o m e n o n , a fact re la ted to value. T h e ' c o n c e p ' o f l aw (which is d is t inguished

f rom its validity) can b e d e t e r m i n e d on ly as s o m e t h i n g w h i c h ' m e a n s ' t o b e just , howeve r

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

Para o neokantismo, o valor apresenta-se como um a priori que se pretende

ver realizado na ação. 9 8 É este, por exemplo, o entendimento de R A D B R U C H , consi­

derado também um dos principais expoentes da Jurisprudência dos Valores, con­

forme podemos apreender de suas palavras:

C e r t a m e n t e a c u l t u r a n ã o é o m e s m o q u e a r e a l i z a ç ã o d o s v a l o r e s , m a s é o

c o n j u n t o d o s d a d o s q u e t ê m p a r a n ó s a s i gn i f i c ação e o s e n t i d o d e o s p r e t e n ­

d e r e m real izar , o u - c o m o e s c r e v e STAMMLER -o de uma aspiração para aquilo

que é justo,99

Para GUSTAV R A D B R U C H , conforme já anotamos, o Direito é considerado como

um dado da experiência, que, como toda obra humana, só pode ser compreen­

dido por meio de sua ideia, e a ideia de Direito não pode ser diferente da ideia

de justiça. 1 0 0 No entanto, o importante é a concepção de Direito que o autor tem,

como dado adstrito à noção de justiça. O Direito, para ele, é um fato ou um fe­

nômeno cultural que não pode ser definido senão em função do justo: "o valor

do Direito é a justiça". 1 0 1 O sentido do Direito vem a ser precisamente este: o de

realizar o justo. Dessa forma, o Direito passa a ser retratado como atitude valora­

tiva, no sentido de só poder ser compreendido dentro de uma atitude que refere

a realidade a valores. 1 0 2

Page 38: Camargo, Margarida Lacombe - Epistemologia e Metedologia Do Direito

10 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 2 0 7

PARTE IV - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

A filosofia do Direito, então considerada por STAMMLER como "teoria do direito justo", reconhece que a luta pelo direito só pode dizer-se legítima quando tem por finalidade defender um direito justo. O autor fundamenta-se numa ideia de ética individual tendo em vista que tanto na elaboração do Direito (criação das leis) quanto na sua aplicação, só a pureza da vontade pode servir de base inquebran­tável de nosso espírito, a única ideia que pode trazer ao homem sua liberdade interior'.103

LARENZ é um dos grandes fautores da jurisprudência dos valores da segunda metade do século passado. Segundo ele:

O l e g i s l a d o r q u e e s t a tu i u m a n o r m a , o u , m a i s p r e c i s a m e n t e , q u e i n t e n t a r e ­

g u l a r u m d e t e r m i n a d o s e t o r d a v ida p o r m e i o d e n o r m a s , de ixa - s e n e s s e pla­

n o g u i a r p o r c e r t a s i n t e n ç õ e s d e r e g u l a ç ã o e p o r c o n s i d e r a ç õ e s d e j u s t i ç a o u

d e o p o r t u n i d a d e , às q u a i s s u b j a z e m e m ú l t i m a i n s t â n c i a d e t e r m i n a d a s va lo ­

r a ç õ e s . E s t a s v a l o r a ç õ e s m a n i f e s t a m - s e n o fa to d e q u e a l e i c o n f e r e p r o t e ç ã o

a b s o l u t a a c e r t o s b e n s , d e i x a o u t r o s s e m p r o t e ç ã o o u p r o t e g e - o s e m m e n o r

e s c a l a ; d e q u e q u a n d o e x i s t e c o n f l i t o e n t r e o s i n t e r e s s e s e n v o l v i d o s n a re la ­

ç ã o d a v ida a r e g u l a r faz p r e v a l e c e r u m e m d e t r i m e n t o d e o u t r o [..] N e s t e s

t e r m o s , " c o m p r e e n d e r " u m a n o r m a j u r í d i c a r e q u e r o d e s v e n d a r da v a l o r a ç ã o

n e l a i m p o s t a e o s e u a l c a n c e . A s u a a p l i c a ç ã o r e q u e r o v a l o r a r d o c a s o a j u l g a r

e m c o n f o r m i d a d e a e la , o u , d i t o d e o u t r o m o d o , a c o l h e r d e m o d o a d e q u a d o

a v a l o r a ç ã o c o n t i d a n a n o r m a a o j u l g a r o " c a s o " . 1 0 4

Lembremo-nos aqui de H E C K , quando este afirmava que, tanto os interesses protegidos pela lei quanto os interesses levados em conta pelo julgador, eram ex­traídos de um campo de luta, sopesados, e, finalmente, legitimados. Assim, toda prática decisória que viesse legitimar um interesse (individual ou de grupo) em lugar de outros, passaria necessariamente por um processo de valoração. E aí, esbarramos com o grande desafio científico de se sustentar, com um mínimo de objetividade, esse tipo de decisão: abre-se a questão de sabermos se o que é valio­so é suscetível de reconhecimento racional. Para tanto, a hermenêutica jurídica é de muita utilidade, pois é pela interpretação que se consubstancia alguma objeti­vidade racional. O raciocínio jurídico, ainda que se apresente por meio da lógica,

shor t o f that e n d it may fali. Legal s c i e n c e deals with l aw as a cul tural fact; legal phi losophy,

as a cul tural value." Cf. The Philosophies ofLask, Radbruch and Dabin, p . X X X I I I .

1 0 3 Vide R. STAMMLER. La Génesis dei Derecho, p . 1 4 0 .

1 0 4 C f , Metodologia da Ciência do Direito, pp . 2 5 2 - 2 5 3 .

E, s o b r e a impor tânc ia dos valores na filosofia, de u m m o d o geral , t r azemos as palavras

de JOHANNES HESSEN: " O sen t ido da vida h u m a n a res ide , p r ec i s amen te , na rea l ização dos

valores . D i z e n d o isto, p o r é m , t o c a m o s aqui c o m o d e d o n o significado, des ta vez prá t ico ,

da Teoria dos Valores, n a sua re lação direta c o m a vida. Se , de fato, o sen t ido da vida

se acha d e p e n d e n t e dos valores a q u e es tá referida, através da qual es tes a l c ançam a sua

obje t ivação , é ev idente q u e a p l e n a real ização do sen t ido da n o s s a ex is tênc ia d e p e n d e r á

t a m b é m , e m úl t ima anál ise , da c o n c e p ç ã o q u e t ivermos ace rca dos valores . Aque le q u e nega

t odos os valores , nada mais vendo ne le s do q u e i lusão, n ã o p o d e r á de ixar de falhar na vida.

Aque le q u e tiver u m a er rada c o n c e p ç ã o dos valores n ã o consegu i r á impr imir à vida o seu

verdade i ro e jus to sentido. . ." . JOHANNES HESSEN. Filosofia dos Valores, p . 2 2 e segs .

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2 0 8 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

não é capaz de seguir os passos exatos da lógica formal. A consideração valorativa sobre as premissas interfere nesse processo, impedindo, muitas vezes, a exatidão dos resultados, ainda que não impeça uma probabilidade de solução. LARENZ, por exemplo, sob uma concepção valorativa do Direito, exige da solução jurídica uma razoabilidade de fundamento:

A interpretação das leis, como toda a compreensão de expressões alheias, tem lugar num processo que se não pode adequar às restritas exigências do con­ceito positivista de ciência. Exige, em rigor, a constatação dos fatos e, assim, a constatação do texto e de toda e qualquer circunstância que possa vir a relevar para a interpretação. Exige ainda a observância da lógica. Uma interpretação que não seja conforme as regras da lógica é, consequentemente, incorreta. Mas o que é específico na interpretação, ou seja, o apreender do sentido ou do significado de um termo ou de uma proposição no contexto de uma cadeia de regulação, vai para além disso. Requerem-se também aqui considerações de razoabilidade, uma vez que as constatações empíricas ou as refutações não são - ou só o são em es­cassa medida - possíveis. 1 0 5

A partir daí, verifica-se uma inclinação pela valorização da conduta ética e, em consequência, o compromisso das decisões jurídicas com o "justo". De um lado ganha força a filosofia de matiz neo-hegeliana, que reconhece valores e princípios "supralegais" ou "pré-positivos" subjacentes às normas jurídicas. Nessa linha, LARENZ faz referência a nomes como Z I P P E L I U S , PAWLOWSKI, H E I N R I C H H U B M A N N

e H E L M U T C O I N G , para quem a ideia de Direito encontra correspondência nos princípios básicos de uma ética da vida social, cuja tábua de valores pode ser encontrada no "ethos jurídico dominante na comunidade", ou nas "concepções dominantes de justiça", podendo configurar-se em normas legais positivas; tomar a forma de um direito natural na qualidade de "súmula de proposições de justiça"; como podem, ainda, aparecer sob a forma de conteúdos da consciência. 1 0 6 De outro lado, verifica-se a recuperação da matriz neo-aristotélica, que privilegia a fundamentação legitimadora da ação prática, de base argumentativa, conforme anuncia esse nosso trabalho.

Em Richtiges Recht107 (Direito Justo) , escrito em 1978, KARL LARENZ, na esteira

de R U D O L F STAMMLER, sustenta a natureza axiológica da ordem jurídica com base tese

de que a mesma se sustenta sobre a "ideia de direito", como algo devido. Daí suce­

deriam, em ordem de processo de concretização, os "princípios de direito justo",

como determinações mais detalhadas em seu conteúdo, da "ideia de direito", e

que serviriam de pensamentos diretores ou causas de justificação para as regula­

ções concretas de Direito positivo. 1 0 8

1 0 5 Metodologia da Ciência do Direito, p . 1 4 1 .

1 0 6 Idem, pp . 1 4 7 - 1 5 3 .

1 0 7 O b r a t raduzida para o e s p a n h o l e m e d i ç ã o de 1 9 8 5 , Derecho Justo: fundamentos de etica

jurídica, t raduzida p o r Luis DÍEZ-PICAZO, pub l icada p e l o Edi tor ia l Civitas, n o m e s m o ano .

1 0 8 Vide KARL LARENZ, Derecho Justo, p . 3 7 e segs .

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO

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1 0 - PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 2 0 9

PARTE I V - O DIREITO E AS CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO

No mesmo diapasão, o estudo de C L A U S - W I L H E M CANARIS, escrito em 1967, de­fende a ideia de que o sistema jurídico, como ordem axiológica, só se justifica a partir do "princípio da justiça" e de suas concretizações, sob o "princípio da igualdade". O autor percebe que o pensamento jurídico ocorre fora do âmbito da lógica formal, que lhe serve apenas de quadro, e anota que o elemento decisivo de todo esse processo não é de natureza lógica, mas de natureza teleológica ou axio­lógica, enquanto que a sua justificação metodológica não se deixa alcançar com os meios da lógica, mas através da recondução ao valor da justiça e ao princípio da igualdade nela compreendido. 1 0 9

12 . CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do escorço apresentado, pode-se perceber uma tensão constante entre se­gurança, de um lado, e justiça, de outro. Verifica-se uma variação entre extremos radicalmente opostos durante todo o século XLX: de um lado a Escola da Exegese, com todo o seu rigor, como forma de transmitir segurança ao Direito; e de outro, o Movimento para o Direito Livre, muito menos rigoroso, cuja preocupação era principalmente com relação à justiça.

O despertar do século XX dá ensejo a um movimento crítico, que questiona as reais contribuições da dogmática jurídica tradicional para a sociedade, ganhan­do força a sociologia. A filosofia dos valores veio também compor este quadro, ocupando-se da questão da justiça. Mas é com K E L S E N que a filosofia jurídica sofre uma significativa ruptura. K E L S E N cinge-se à ideia do resgate da objetividade e da segurança no campo do Direito, propondo a construção de uma teoria que exclu­ísse quaisquer elementos de natureza metafísico-valorativa. Como visto, a ideia era a de que a atividade jurisdicional ficasse circunscrita a operações lógico-dedutivas extraídas de um sistema dinâmico de normas feitas pelo Estado, capaz de gerar uma norma individual como sentença para cada caso concreto.

No entanto, as correntes que vêem a aplicação do Direito como atividade criadora insurgem-se em opor severas críticas ao positivismo kelseniano, apontan­do para a falibilidade do modelo-lógico-dedutivo. Acredita-se que o Direito exista concretamente e não de forma virtual, ou melhor, que ele valha à medida que é ca­paz de compor interesses, desconsiderando-se a sua força meramente potencial. Este movimento, que encerra o predomínio da dogmática jurídica tradicional, é denominado pós-positivismo e será objeto de outro estudo nesta coletânea.

Registre-se que a discussão metodológica atual não desconsidera a impor­tância da segurança e da ordem. Afinal, é princípio basilar do Estado Democráti­co de Direito o conhecimento e a não arbitrariedade de suas decisões. Um grau considerável de previsibilidade haverá de viabilizar os investimentos sugeridos pelo progresso. O que se discute é a racionalidade deste novo saber concreto que

1 0 9 C f , CLAUS-WILHEM CANARIS, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do

Direito, pp . 3 2 - 3 5 .

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2 1 0 EPISTEMOLOGIA & METODOLOGIA DO DIREITO

trabalha com valores, conferindo algum nível de objetividade às decisões judiciais,

de forma a submetê-las a uma instância de conhecimento e controle.

1 3 . REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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