_calvino e sua influencia no mundo ocidental

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CALVINO E SUA INFLUÊNCIA NO MUNDO OCIDENTAL Organizado por W. Stanford Reid Revisão Arlinda Madalena Torres

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teologia

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  • CALVINO E SUA INFLUNCIA NO MUNDO OCIDENTAL

    Organizado por

    W. Stanford Reid

    Reviso

    Arlinda Madalena Torres

  • EDITORA CULTURA CRIST

    Rua Miguel Telles Jr., 394 Cambuci - CEP 01540040 - So Paulo SP

    Calvino e sua Influncia no Mundo Ocidental 1990, Editora Cultura Crist. Publicado originalmente com o ttulo Calvin and His Influence in the Western World, Zondervan Publishing House Grand Rapids, Michigan 45406 USA. Traduzido com permisso. Todos os direitos so reservados.

    FICHA CATALOGRFICA C168 CALVINO e sua influncia no mundo

    ocidental/Organizado por W. Stanford Reid. So Paulo: Editora Cultura Crist 1990. 496 pp. Ttulo original: Calvin and his influence in the western world.

    1. Calvinismo no ocidente. 2. Calvinismo e Socie-

    dade. 1. Reid, W. Stanford, org.

    CDU 284.2(215) CDD(19) 284.209

  • NDICE PARA CATLOGO SISTEMTICO CALVINISMO NO OCIDENTE 284.2(215) CALVINISMO E SOCIEDADE 284.2:304 HISTRIA DO CALVINISMO 284.2(093)

    Primeira edio em portugus 1990 2 edio 2003

  • Sumrio Apresentao Prefcio Apreciao 1. Captulo 1 O Calvinismo como uma Fora Cultural Por Robert D. Knudsen Traduo de Sabatini Lalli 2. Captulo 2 A Propagao do Calvinismo no Sculo 16 Por W. Stanford Reid Traduo de Jlia Pereira Lalli 3. Captulo 3 Sua: Triunfo e Declnio Por Richard C. Gamble Traduo de Vera Lcia L. Kepler 4. Captulo 4 A Idade de Ouro do Calvinismo na Frana: 1533-1633 Por Pierre Courthial Traduo de Sabatini Lalli 5. Captulo 5 Calvino e o Calvinismo nos Pases Baixos Por W. Robert Godfrey Traduo de Vera Lcia L. Kepler 6. Captulo 6 A Igreja Reformada da Alemanha: Calvinistas, uma influente minoria Por D. Clair Davis Traduo de Sabatini Lalli

  • 7. Captulo 7 A Reforma Helvtica na Hungria Por Klmn O. Tth Traduo de Vera Lcia L. Kepler 8. Captulo 8 Calvino e a Igreja Anglicana Por Philip Edgcumbe Hughes Traduo de Vera Lcia L. Kepler 9. Captulo 9 A Modificao Puritana da Teologia de Calvino Por R. T. Kendall Traduo de Vera Lcia L. Kepler 10. Captulo 10 A Contribuio do Calvinismo na Esccia Por J. D. Douglas Traduo de Vera Lcia L. Kepler 11. Captulo 11 Origens Crists da Amrica: A Nova Inglaterra Puritana como um Caso de Estudo Por George M. Marsden Traduo de Luiz Alberto Teixeira Sayo 12. Captulo 12 Os Irlandeses-Escoceses na Amrica Por C. Gregg Singer Traduo de Vera Lcia L. Kepler 13. Captulo 13 O Calvinismo Holands na Amrica Por John H. Bratt Traduo de Vera Lcia L. Kepler 14. Captulo 14 A Influncia de Calvino no Canad

  • Por W. Stanford Reid Traduo de Jlia Pereira LalIi 15. Captulo 15 O Impacto do Calvinismo na Australsia Por Alexander Barkley Traduo de Vera Lcia L. Kepler 16. Captulo 16 O Calvinismo na frica do Sul Por Gideon Thom Traduo de Vera Lcia L. Kepler Eplogo Notas

  • APRESENTAO

    O objetivo desta obra de dezesseis captulos, escritos por diferentes autores tidos por especialistas em suas respectivas reas, mostrar a natureza e a importncia do Calvinismo como fora moldadora da cultura ocidental, fora que atuou fortemente nos dois primeiros sculos depois da Reforma e que, nos sculos 18 e 19, grosso modo, entrou em declnio, sofrendo distores provocadas pelo advento do Racionalismo que o confrontou como fora externa , e pelo surgimento de formas de dissidncias internas, entre as quais se destacam o Arminianismo e o Puritanismo.

    O Puritanismo, no obstante constituir, em alguns aspectos, uma distoro do Calvinismo particularmente no ascetismo da vida cotidiana e na concepo da economia que veio a desenvolver-se posteriormente , foi uma fora extraordinria que atuou singularmente na formao da grande nao do Norte. Eis como Alexis de Tocqueville, em A Democracia na Amrica, se refere aos Puritanos:

    ...os imigrantes da Nova Inglaterra levavam consigo admirveis elementos de ordem e de moralidade; entravam pelo deserto acompanhados de suas esposas e de seus filhos. Mas o que os distinguia, sobretudo, de todos os outros [colonizadores] era a prpria finalidade de sua empreitada. No tinham abandonado o seu pas forados pela necessidade; deixavam para trs uma posio social cuja perda seria lamentvel e meios de vida garantidos; tampouco passaram ao Novo Mundo a fim de ali melhorar a sua situao ou de fazer aumentar as suas riquezas; arrancavam-se s douras da ptria para obedecer a uma necessidade puramente intelectual; expondo-se s misrias inevitveis do exlio, desejavam fazer triunfar uma idia.

  • ...os imigrantes pertenciam quela seita inglesa que, por causa da austeridade de seus princpios, tinha recebido o nome de puritana. O Puritanismo no era apenas uma doutrina religiosa: confundia-se ainda, em vrios aspectos, com as teorias democrticas e republicanas mais absolutas. Por causa dessa tendncia tinha ganho os seus mais perigosos adversrios. Perseguidos pelo governo da me-ptria, ofendidos no rigor de seus princpios pela marcha cotidiana da sociedade em cujo seio viviam, os puritanos procuravam uma terra to brbara e to abandonada pelo mundo que nela pudessem ainda viver sua maneira e rezar a Deus em liberdade. Alexis de Tocqueville, in A Democracia na Amrica, Editora Itatiaia Limitada e Editora da Universidade de So Paulo, 1977, p.33. Grifos nossos".

    Assim, na opinio abalisada de Alexis de Tocqueville, a

    contribuio dos puritanos para a formao cultural e poltica da Nova Inglaterra foi de singular importncia e marcou funda e indelevelmente a tradio de liberdade e da conseqente responsabilidade , que ainda hoje, no obstante as vicissitudes advenientes nos ltimos tempos, caracterizam a democracia americana.

    As colnias inglesas, e foi essa uma das principais causas da sua prosperidade, sempre gozaram de maior liberdade interior e de maior independncia poltica que as de outras naes; em nenhuma parte, porm, foi esse princpio de liberdade mais completamente aplicado que nos Estados da Nova Inglaterra. Idem, ibidem, p. 36.

    Parece haver, sem dvida, uma relao de causa e efeito entre

    o tipo de colonizadores da Nova Inglaterra primeiro os puritanos da Inglaterra e, mais tarde, os Calvinistas da Esccia, da Irlanda e da Holanda , e a grandeza reconhecida de suas instituies culturais, jurdicas, sociais e econmicas, grandeza

  • que prevalece at o dia de hoje. Os captulos deste livro que falam da influncia do Calvinismo na Esccia, na Irlanda e na Holanda, permitiro ao leitor entender de que modo os Colonizadores Calvinistas que saram desses pases, desempenharam seu papel na construo da grande democracia dos Estados Unidos da Amrica do Norte, papel que ficou claro no s na organizao poltica dessa nao, mas, tambm sobretudo, no que se refere ao valor e solidez de seus sistemas de educao.

    Em seu livro A Religio e o Desenvolvimento da Cincia Moderna (Editora Polis e Editora Universidade de So Paulo, 1988), R. Hooykaas fala da participao dos protestantes na pesquisa cientfica e diz que As pesquisas sociolgicas tm demonstrado que, at bem recentemente, os protestantes foram relativamente mais numerosos entre os cientistas do que seria de se esperar, em funo do seu nmero global. Segundo Hooykaas, ainda, A. de Candolle Constatou que, entre os membros estrangeiros da Acadmie des Sciences de Paris, de 1666 a 1883, os protestantes foram bem mais numerosos do que os catlicos romanos. Na populao da Europa Ocidental, fora da Frana, a proporo de catlicos romanos para protestantes era de seis (catlicos) para quatro (protestantes), enquanto, entre os membros estrangeiros da Acadmie des Sciences, a proporo era de seis (catlicos) para vinte e sete (protestantes). Na Sua, a proporo de catlicos romanos para protestantes era de dois (catlicos) para trs (protestantes). No entanto, para o perodo mencionado, houve quatorze protestantes suos membros da Acadmie e nenhum catlico romano (Op. cit. pp.127-128). Hooykaas cita ainda R.K.Merton, para quem, em 1938, entre os grupos de dez cientistas que, durante a Commonwealth, constituram o ncleo que daria origem Royal Society, sete eram acentuadamente puritanos (Op. cit. p.128).

    A explicao para esse fenmeno no est na importncia

    dada doutrina da predestinao, como sugeriu Merton, que ampliou essa tese, demonstrando que a atitude de auto-

  • represso, simplicidade e diligncia tambm fomentou o interesse e a aptido pela pesquisa cientfica e tecnolgica (Op. cit. p. 132). Na verdade, a explicao mais consentnea est na natureza das Confisses de F amplamente aceitas pelas comunidades reformadas, pois, segundo Hooykaas, essas Confisses so provavelmente os documentos mais representativos da opinio dominante entre os genunos calvinistas do sculo 16.

    Segundo essas Confisses, na observao de Hooykaas, para a f protestante, as boas obras so consideradas como frutos da gratido pela salvao recebida e no uma confirmao por hav-la recebido. Isso claro tanto da Confisso de Heidelberg quanto da Confisso Belga (os chamados 37 Artigos).

    O que mais impressionante acerca dos primeiros cientistas protestantes o seu amor pela natureza, na qual reconhecem a obra das mos de Deus, e o prazer que revelam em investigar os fenmenos naturais. Um dos Pais da Anatomia Comparada, o holands Volcker Coiter (1534-76), jamais se cansava de exaltar a providncia do Criador, evidenciada na maravilhosa adaptao da estrutura animal; o botnico Clusius declarou que as descobertas botnicas causavam-lhe tanta alegria como se ele tivesse descoberto um prodigioso tesouro; o oleiro huguenote Bernard Palssy, (1510-90), amava apaixonadamente as plantas, mesmo as mais desprezadas. Em uma ocasio, ele manifestou sua ira contra alguns trabalhadores por estarem maltratando plantas; em seu profundo sentimento por essas criaturas irms, ele dizia que no sabia por que as plantas no clamavam contra as torturas que sofriam nas mos dos homens (Op. cit. pp.136-1 37). Do ponto de vista de sua influncia poltica, o Calvinismo

    tem favorecido governos representativos e tem lutado contra as vrias formas de absolutismo, como diz John T. MacNeill, em sua obra The History and Character of Calvinism. Na verdade, foi com o Calvinismo que a forma representativa de governo

  • (democrtico-republicano) se desenvolveu e se consolidou nos tempos modernos. Samuel Rutherford, um dos mais capazes defensores do Calvinismo poltico britnico, sustenta que a salus (salvao, bem-estar) descansa sobre a soberania do povo. Ele diz que o poder no vem diretamente do cu queles que o exercem, mas dado ao povo por Deus como direito hereditrio, e tomado emprestado do povo pelos que governam, e pode ser retomado pelo povo, quando quem o exerce se torna embriagado por ele!

    Assim, ao ler esse livro, o leitor poder avaliar o testemunho dos autores de cada captulo a respeito do impacto do Calvinismo sobre a cultura em geral e sobre o sistema de educao e de governo com seus reflexos na economia e na vida social das respectivas comunidades , sistemas estabelecidos e desenvolvidos nos pases em que prevaleceu, como fora dominante, a influncia do Calvinismo.

    Sabatini Lalli

    Editor da 1 edio

  • PREFCIO

    1979 foi um ano de celebraes no Seminrio Teolgico de

    Westminster, em Filadlfia. Foi um perodo de comemoraes para celebrar tanto a fundao do Seminrio, em 1929, quanto os setenta e cinco anos de nascimento de Paul Woolley que, por mais de cinqenta anos, foi Arquivista e Professor de Histria da Igreja. Os membros do Departamento de Histria da Igreja pediram-me a mim1 como primeiro aluno do Professor Woolley a especializar-se neste campo que empreendesse a tarefa de preparar este Festschrift,2 trabalho que assumi com grande prazer.

    O fundamento lgico desta obra est no fato de ela ajudar a comunidade crist a compreender a influncia do Calvinismo no mundo Ocidental, desde os dias de Joo Calvino. De incio, esperava-se que essa pesquisa cobrisse todo o mundo, mas logo me dei conta de que, dadas as limitaes de espao, teria de focalizar apenas o mundo Ocidental. De fato, mesmo para atingir a esse objetivo limitado, tive de persuadir aprecivel nmero de autores para que escrevessem os captulos que constituem esse livro.

    Pelo fato de alguns que concordaram a colaborar terem outras obrigaes, tiveram eles de dispor de uma considervel extenso de tempo para poderem completar seus respectivos captulos. Contudo, finalmente, estamos apresentando esse livro ao pblico, na esperana de que muitos que no puderam conhecer algo a respeito de Calvino ou de sua influncia, venham a conhecer o impacto que ele produziu sobre a histria da origem da cultura e civilizao ocidentais. Gostaria de acrescentar, no entanto, que ainda que eu figure como organizador desta obra, no concordo, necessariamente, com tudo o que nela est escrito. Porm, 1 W. Stanford Reid University of Guelph, Guelph, Ontrio 2 Trabalho literrio em homenagem a personagem acadmica de destaque (N. do E.).

  • defendendo o princpio de liberdade de pensamento e de expresso nas lides acadmicas, sinto-me feliz por ter parte nesta publicao.

    Os autores desejam dedicar essa obra ao Professor Woolley, como penhor de sua estima e apreciao pela assistncia fiel que deu ao Seminrio de Westminster e pelo estmulo com que os levou a interessar-se pela Histria da Igreja Crist, particularmente pela Histria do Calvinismo.

  • APRECIAO

    A reputao de Paul Woolley, bem como a maior parte de suas convices, escapa aos padres comuns. Ele mais estimado por aqueles que o conheceram melhor! Geraes de estudantes tm sentido um crescente respeito, admirando a soma de conhecimentos deste fabuloso Professor, que andava de um lado para outro, com uma mo no bolso, recriando, com pormenores fascinantes, a biografia de Pelgio ou resumindo a Summa Theologica, de Toms de Aquino, ou, ainda, descrevendo as campanhas de Finney no lado oeste de Nova York. Os que freqentaram seus cursos nos dias que precederam a inveno do computador, no se surpreendiam ao verificar que os dados que ele armazenava incluam tanto a tabela de horrios das maiores ferrovias dos Estados Unidos, bem como informao acessvel quanto ao trem local e ao horrio de nibus. Somente a sua dignidade e sua aguda conscincia quanto mordomia do tempo impediam, praticamente, a qualquer um de fazer-lhe perguntas a respeito de quase tudo, e impediam que negligenciasse recorrer impressionante coleo de referncias que ele havia acumulado na Biblioteca, sempre a disposio dos interessados.

    Contudo, os estudantes que batalhavam por assimilar milhares de fatos, com vistas a seus exames, surpreendiam-se ao constatar que ele esperava muito mais: Ele no queria apenas informao, mas tambm interpretao. Eis adiante uma questo formulada, num exame final, para ser respondida por escrito em uma hora:

    Admitindo-se que a obra da Igreja a pregao do Evangelho e a nutrio (espiritual) de seus membros na vida crist, em qu a nfase da Ortodoxia, do Racionalismo, do Pietismo e do Modernismo contribuiu para essa tarefa? Discuta a contribuio de cada uma destas correntes e ilustre com copiosos exemplos.

  • Uma outra questo desafiava os estudantes a elaborarem uma crtica ao Conclio Mundial de Igrejas, propondo mudanas ou substituies que julgassem necessrias.

    Pode-se apenas lamentar que sua dedicao ao ensino e tarefa administrativa tenham tornado impossvel ao Professor Woolley preparar, para a publicao, os muitos volumes do digesto histrico e das reflexes que, por mais de meio sculo, ele fez em classe, durante as aulas.

    Alm da acurada erudio com que ele coligiu esse material e

    da largueza de vistas com que o interpretou, ali estava patente para os que usufruam uma atitude que era o mais raro dom de Woolley sua habilidade em combinar cordial compreenso no que diz respeito a homens e movimentos da histria da Igreja de Cristo, com o firme compromisso em relao aos padres mediante os quais os avaliava. Sua integridade, como historiador, resulta apenas da aplicao ao seu campo de especialista dos princpios de seu estilo de vida crist. Nas decises administrativas ou em suas relaes pessoais, Paul Woolley observa, escrupulosa e imparcialmente, as regras, primeiramente da Palavra de Deus e, depois, da aplicao dessa Palavra aos padres de cortesia crist e de justia. Paul Woolley, contudo, um homem que, sentado atrs de sua mesa, seria o primeiro a informar ao estudante que as regras de ajuda a bolsas de estudo tornavam-lhe impossvel receber ajuda adicional e que ele no podia sacar sua carteira e oferecer ao estudante soma generosa para fazer frente s suas emergncias.

    A integridade do Professor Woolley deixara marca permanente no Seminrio Westminster. Ele respeita aqueles de quem discorda e presume que onde discorda de seus colegas, seus pontos de vista tambm sero respeitados. Se o Seminrio Westminster alcanou algum sucesso na unidade de sua liberdade acadmica, em seu compromisso doutrinal reformado, esse fato se deve ao exemplo do Professor Woolley, que exerceu ali a mais decisiva influncia.

  • Os que participaram da convivncia do lar de Woolley,

    conhecem algo da amplitude de interesse cultural de que Paul Woolley, sua esposa e seus filhos partilhavam. As reminiscncias histricas de Helen Wooley, que se estendem at vida na Corte Russa sob o Czar, trazem sempre, como acrscimo, profundas experincias pessoais e devoo ampla gama de discusses que ocorrem ali. Na conversao particular, como no ministrio pblico, Paul Woolley revela aquele amor por Cristo e pelo Evangelho, que o levou a ser um voluntrio no servio missionrio na China e que, quando aquela porta se fechou, o sustentou por meio sculo no ministrio de preparao de jovens lderes, para servir a Cristo.

    Edmund P. Clowney

    Presidente do Westminster Theological Seminary

  • O Calvinismo como uma Fora Cultural Robert D. Knudsen Traduo: Sabatini Lalli

    Robert D. Knudsen Professor Associado de Apologtica no Westminster Theological Seminary, Pa. Filadlfia. graduado pela University of California, Berkeley (A.B.), pelo Westminster Theological Seminary (Th.B., Th.M.), pelo Union Theological Seminary, New York (S.T.M.) e pela Free University of Amsterdam (Ph.D.). Estudou tambm na Universidade de Basilia, na Sua, e na Alemanha Ocidental, no Tillich Archive (Gottingen) e no Hegel Archive (Bochum). O Dr. Knudsen ministro da Igreja Presbiteriana Ortodoxa. membro da Vereeniging voor Calvinistische Wijsbegeert [Associao para a filosofia calvinista] e tambm Adjunto da American Scientific Affiliation, ocupando a posio de editor do Staff de seus peridicos eruditos. E, tambm, membro da Evangelical Theological Society e autor de vrios livros, e constante colaborador de simpsios e revistas eruditas. Atualmente, ele o editor do The Collected Works of Kerman Dooyeweerd.

  • CAPTULO 1

    O CALVINISMO COMO UMA FORA CULTURAL

    Calvino foi um patrono dos modernos direitos humanos. Em seu pensamento ele antecipou a moderna forma republicana de governo. Contribuiu para a moderna compreenso da relao entre lei natural e lei positiva. Ao lado dos movimentos sociais e polticos de seu tempo, compreendeu plenamente que a origem do Estado nacional moderno, o surgimento do comrcio burgus internacional, o desenvolvimento da classe burguesa e a vasta expanso do mercado monetrio exigiam uma nova avaliao da proibio de emprstimo de dinheiro a juro. Alm disso, Calvino levantou-se contra os abusos do poder, em seu tempo, e debateu o problema do direito revolta.

    O impacto de Calvino e do Calvinismo sobre a moderna cultura ocidental est bem documentado. Reconhece-se que essa influncia foi grande. Calvino e o Calvinismo ocuparam seu lugar entre as maiores foras que moldaram nossa moderna sociedade ocidental.

    importante descrever essas influncias do ponto de vista histrico. Qual foi a influncia do Calvinismo? At onde, precisamente, se estendeu essa influncia? Contudo, para avaliar o Calvinismo como uma fora cultural, propriamente, preciso descer a um nvel mais profundo de questionamento. Que que, no Calvinismo, determina a forma peculiar pela qual ele se relaciona com a cultura? Qual o carter distintivo que ele imprime cultura? Nestes aspectos, em que difere ele de outros movimentos protestantes? Sem levantar questes como essas, dificilmente algum tem condies de inquirir significativamente em que extenso ocorreu sua influncia.1

    1 Escrevendo nos anos de 1930, o destacado erudito calvinista austraco Josef Bohatec relata que o mais recente estudo calvinista tem tentado determinar o que caracteriza o mundo calvinista de

  • Torna-se claro que a mais significativa maneira de algum aproximar-

    se do Calvinismo ter em mente que qualquer movimento que alcanou importncia histrica, ter uma correspondente influncia cultural. Isso um fato em relao ao Calvinismo. Contudo, tambm verdade quanto ao Luteranismo, ao Anabatismo, ao Metodismo, ao Puritanismo e a outros movimentos. verdade de qualquer movimento, independentemente da atitude que ele tenha para com a cultura. Mesmo a postura anti-secular de um segmento de Igrejas que se confessam crists, tem um tipo especial de influncia cultural, ainda que seja uma influncia negativa. O retraimento de cristos em relao quilo que chamado de envolvimento cultural tem, em si mesmo, um impacto cultural. Mais importante do que o problema da extenso da influncia do Calvinismo ser o problema da qualidade dessa influncia.

    Ao tratar o Calvinismo como uma fora cultural, portanto por mais importante que essa fora possa parecer no temos em mente uma descrio desacompanhada da influncia que ele exerceu sobre a nossa cultura ocidental. Ao invs disto, indagamos o que que, no Calvinismo, determinou o carter desta influncia. Por que o Calvinismo teve uma atitude positiva para com a cultura e foi capaz de fazer contribuies culturais construtivas? Porque, em verdade, essa atitude positiva pertence ao verdadeiro gnio do Calvinismo, tanto que o Calvinismo teve em mira no s a reforma na doutrina, na vida individual e na vida da Igreja, mas tambm a transformao de toda a cultura, em nome de Cristo.

    Ao responder a essas indagaes, podemos, por convenincia, organizar nossos pensamentos em torno de quatro pontos principais:

    1. No Calvinismo no h dicotomia entre Cristianismo e Cultura; pensamento enquanto relacionado Igreja, ao Estado e Sociedade: Geht das Interesse der neueren Forschung darauf aus, die Eigenart der calvinischen, auf die kirchliche, staatliche und soziale Wirklichkeit sich beziehenden Gerankenwelt zu bestimmen. Josef Bohatec, Calvins Lebre von Staat und Kirche: mit besonderen Berchtsichtigung des Organismusgedankens (Breslau: Marcus, 1937), p. xiii.

  • 2. Por causa de sua maneira penetrante de entender a doutrina da criao, a universalidade da revelao divina e o lugar da lei, impossvel ao Calvinismo e observe-se a importncia de manter-se intacta a doutrina bblica da relao Criador-criatura pensar em termos de uma simples e incondicional distino entre as esferas de atividade divina e humana;

    3. Toda a vida, inclusive a cultura, teonmica, isso , tem sentido somente quando est sujeita a Deus e sua lei;

    4. O poder do Deus-criador-soberano abrange tambm o curso da Histria, de modo que se pode discernir a revelao de Deus tambm naquilo que pertence mais imediatamente cultura ou, seja, atividade formadora do homem.

    Atitude Positiva do Calvinismo para com a Cultura

    Calvino expressou sua gratido a Deus, porque Deus, ao mesmo tempo em que trouxe luz o Evangelho em sua pureza, trouxe existncia tambm o renascimento das humanidades.1 Foi Guilherme Bud que, ao tempo de Calvino, procurou introduzir na Frana um panorama da cultura humanstica surgida na Renascena Italiana. Promoveu o gosto pelas artes liberais (bonae litterae) em contraposio aos estudos que preparavam o indivduo para ganhar a vida (Teologia, Lei: Direito, Medicina2). Calvino concordou resolutamente com Bud em que as artes liberais eram essenciais formao do homem, ao desenvolvimento de sua humanidade. De fato, encontramos em Calvino acentuado gosto pelas artes liberais e interesse em instruir-se nelas, de modo que nada fica ele a dever aos humanistas seus contemporneos. No so necessrias muitas palavras,

    1 Org. Baum et al... Corpos Reformatorum: Ioannis Calvini Opera quae Supersunt Omnia. 7,516 (A partir daqui mencionado como Calvino, Opera). 2 Josef Bohatec explorou detalhadamente o relacionamento de Calvino com o humanismo francs de sua poca, mais especialmente com o do reconhecido lder da Renascena francesa, Guillaume Bud. Josef Bohatec, Bud und Calvin; Studien zur Gedankenwelt des Franzsischen Frhhumanismus (Graz: Hermann Bhlaus, 1950). (A partir daqui mencionado como Bud und Calvin).

  • disse ele, para expressar quo cara nos a aquisio das artes liberais.1

    Tambm para com a retrica e as cincias naturais, Calvino teve uma atitude positiva. A influncia dos princpios da retrica, sobre seu mtodo teolgico, pode ser constatada. Na introduo de seu Comentrio s Cartas aos Tessalonicenses, Calvino reconhece que deve sua cultura humanstica e seu mtodo de ensino (discendi rationem) ao bem conhecido humanista Maturin Cordier. Como a retrica, as cincias naturais so dons de Deus, criados por ele para o uso da humanidade.2 A fonte ltima da verdadeira cincia da natureza no outra seno o Esprito Santo.3 Contudo, Calvino foi inflexvel oponente da pseudocincia da astrologia, que gozava de grande prestgio em seu tempo, tanto quanto goza em nossos dias.4 O clima espiritual no qual Lutero se desenvolveu, foi o do misticismo do final da Idade Mdia. Diferentemente de Calvino e Melanchthon, Lutero permaneceu muito tempo inclume s influncias do Renascimento da Cultura humanstica de seu tempo. Em contrapartida, Calvino cedo se dedicou aos estudos humansticos. Como teste de sua competncia, de sua erudio humanstica, ele escreveu seu famoso comentrio sobre o De Clementia, de Sneca.5 Educado pelos humanistas e autorizados eruditos de seu tempo Pierre de lEtoile e Andrea Alciati , bem versado na filosofia da cultura clssica, e ele mesmo reconhecido como um erudito humanista, Calvino revelou, atravs de toda a sua vida, domnio da cultura contempornea e profundo interesse no seu desenvolvimento. Ele con-tinuou a demonstrar empenho em relao humanidade do homem e em relao quelas boas ddivas de Deus que incluam a arte e a msica e que eram capazes de contribuir para o seu desenvolvimento.6

    1 Calvino, Opera, 7,516. Cp. Bohatec, Bud und Calvin, p.121. 2 Ibid., 34, 304; 31, 94. Cp. Bohatec, Bud und Calvin, p.264. 3 Ibid., 33, 577. Cp. Bohatec, Bud und Calvin, p.264. 4 Ibid., 40, 554. Cp. Bohatec, Bud und Calvin, pp. 270-280. 5 Ford Lewis Battles e Andr Malan Hugo, Calvins Commentary on Seneca's De Clementia: With Introduction, Translation and Notes (Leiden: Brill, 1969). 6 Bohatec, Bud und Calvin, pp. 467, 470.

  • um erro supor que o duradouro interesse de Calvino pelos estudos humansticos e pelo desenvolvimento cultural do homem fosse um simples remanescente do tempo que precedeu sua converso f evanglica. Sua preocupao para com os estudos humansticos e para com aquilo que diz respeito ao que humano est muito inseparavelmente ligado ao seu modo global de pensar, para permitir uma tal interpretao. De fato, num sentido que precisa ser bem definido e cuidadosamente preservado de m compreenso, Calvino pode ser chamado de humanista".1 Atravs de toda a sua vida, ele teve um profundo compromisso para com aquilo que humano.

    De fato, Calvino criticou mordazmente aqueles cujo humanismo fazia supor que eles se tinham firmado contra a soberania de Deus, contra a Palavra de Deus, contra a depravao do homem e contra as doutrinas da graa. Aos 27 anos, na famosa carta que serve de introduo sua Institutio Religionis Christianae [Instituio da Religio Crist], ele fala abertamente contra o humanismo que no leva em conta a doutrina evanglica.2 Mais do que contra um humanista cristo como Bud, Calvino ataca aqueles humanistas que fazem a apoteose do ser humano3 e pensam que a realizao daquilo que humano pode ser alcanada somente na presumida independncia de Deus e de sua revelao. Ele mesmo, como um humanista, rejeitou aquilo que era o corao da idia de personalidade do Renascimento, a idia de que o homem a fonte criadora de seus prprios valores e, portanto, no fundo, incapaz de pecar.4 Se os estudos humansticos eram caros a Calvino pelo fato de favorecerem o desenvolvimento das virtudes humanas, se as cincias devessem ser cultivadas como dons de Deus, os humanistas deviam opor-se queles que

    1 Bohatec surge corajosamente com a afirmao: Calvino era um humanista. Ibid., p. 472. Entretanto, ele se d ao trabalho de definir cuidadosamente o que quer dizer com humanismo, e para distinguir o humanismo de Calvino tanto do da Renascena quanto do da cultura antiga. Cp., especialmente, Ibid., pp. 472-483. 2 Cp. Ibid., pp. 127-141. 3 Ibid., p. 479. 4 Ibid., p. 265.

  • pensavam que as artes e as cincias podiam ser empregadas como se fossem suficientes em si mesmas. Era estranho mente de Calvino o pensamento de que as artes e as cincias podiam estar livres da religio (non debere distrahi a religione scientia).1

    Ningum deve supor que a atitude de Calvino para com aquilo que humano e para com aquilo que pertence realizao humana no tem necessidade de correo. No entanto, sua atitude positiva para com esses valores inerente ao seu pensamento e tm profundas implicaes para aqueles que se consideram calvinistas. Isso contribui para a compreenso do modo pelo qual o Calvinismo atua como uma fora cultural.

    Para Calvino, diferentemente do que ocorria com outros lderes da Reforma, no existe dicotomia bsica entre o Evangelho e o mundo, entre o Evangelho e a cultura. Ao mesmo tempo, ele no aceitava simplesmente, sem crtica, as realizaes do gnio humano. Sua atitude exigia que tais realizaes fossem analisadas quanto s razes que as inspiravam, pois deviam estar sujeitas aos preceitos de Cristo.

    O Divino e o Humano no Calvinismo

    Calvino cria na absoluta soberania de Deus. Como os outros Reformadores, ele cria tambm que o crente, em seu corao, imediatamente ligado ao Deus soberano, como ele se revelou em sua Palavra. Como j mostramos (em outro lugar), isso no significa que a atividade soberana de Deus, para Calvino, se mantenha numa relao de indiferena ou, possivelmente, de anttese para com aquilo que humano e para com aquilo que pertence ao campo das realizaes culturais humanas. Calvino entendia de tal modo a atividade de Deus, que no deixava lugar a um tal dualismo. O Deus que opera soberanamente no corao do homem o mesmo Deus que se revelou como o Criador do homem e dos valores de sua cultura. 1 Calvino, Opera. 39, 251. Cp. Bohatec, Bud und Calvin, p. 254.

  • Aquele que tem um profundo domnio da revelao que Deus fez de si mesmo, como Criador, compreender que o divino e o humano no devem ser concebidos como se fossem extremos contrrios de um espectro, de modo que exaltar a um, seria, de per se, rebaixar o outro. Deus no honrado quando se envilece a sua criao, nem a criao exaltada quando se envilece a Deus. A criao expresso da vontade de Deus como Criador. A criao, em seu estado inclume, Deus chamou boa. Ele se revelou como estando ativamente interessado nela. Para glorificar a Deus no preciso denegrir a criao: apenas necessrio pr em prtica, em relao natureza, aquilo que responde vontade criadora de Deus para ela.

    Aquele que tem profunda compreenso da revelao bblica no que diz respeito criao, compreender que o que est em discusso no a mera nfase sobre o que divino ou o que humano, mas se quer seja... humano ou pertena esfera da atividade humana , tem sido levado a moldar-se vontade de Deus, como est expressa em sua lei. Ou seja, ver que o que est em discusso se tais atividades respondem quilo que Deus desejava para elas desde o comeo.

    claro que a doutrina reformada da imediata operao da graa de Deus no corao humano, atravs de sua Palavra, levantou-se em oposio ao ponto de vista de que o humano uma esfera semi-autnoma que antecede o divino e que, realizando obras pelos prprios poderes do indivduo, serve como um prembulo necessrio operao da graa. Quando Lutero comeou a expor sua doutrina da justificao s pela f, o nominalista Guilherme de Occam, em cuja lgica ele tinha sido instrudo por Trutvetter e Usingen e a quem Lutero chamou seu professor (magister meus)1 , j tinha criado um clima de pensamento incompatvel com a idia de que a natureza o prembulo da graa. Occam rejeitou a idia de que qualquer coisa fora do Evangelho pudesse servir para julg-lo

    1 Wilhelm Risse, Die Logik der Neuzeit. 1: 1500-1640. (Stuttgart-Bad Cannstadt: Friedrich Fromann, 1964), p.81.

  • ou agir como uma plataforma adaptada misericordiosa proviso de Deus e para a resposta de f por parte do homem. Lutero orgulhava-se de pertencer escola de Occam, a quem considerava o principal e o mais talentoso dos doutores escolsticos.

    A posio nominalista pareceu ajustar-se, alm disso, s suas doutrinas a respeito da graa. Os nominalistas ensinavam que Deus age diretamente, dirigindo-se ao homem com absoluta e soberana exigncia, sem dar lugar ao exerccio de poderes humanos naturais de juzo, discriminao ou escolha. Ensinavam que a graa divina no concomitante com as obras humanas, mesmo quando entendida como perfeio divina. Ensinavam que a graa divina opera imediatamente no corao do homem, indiferentemente ou, mesmo, em oposio capacidade humana.

    No estou sugerindo que a compreenso de Lutero a respeito das doutrinas da graa tenha surgido ou, mesmo, tenha dependido deste ensino dos nominalistas. Sustento que o seu entendimento fruto de sua leitura das Escrituras. A tradio occamista, contudo, forneceu-lhe base para a sua crtica contra o ponto de vista de que a natureza o prembulo da graa. Depois de descobertas essas doutrinas, no entanto, os ensinos nominalistas contriburam para influenciar seu desenvolvimento teolgico e para determinar sua concepo a respeito de como o Evangelho se relaciona com a cultura.

    reconhecido que o ponto de vista de Lutero a respeito do que chamado dois remos profundamente influenciado pelo nominalismo. Para a esfera da natureza, ensinava ele, o conceito aristotlico do conhecimento, amplamente aceito, suficiente. Para a religio, contudo, s a revelao autoridade. Nesta rea, a razo humana tem de submeter-se inteiramente Palavra de Deus. A inteligncia natural e sua lgica, limitadas ao finito como so, so prejudiciais teologia porque no conduzem f, mas afastam dela.

  • A maneira pela qual essa tradio nominalista fazia distino entre o divino e o humano tem, na verdade, um ponto de contato com o emprego verbal concreto nas Escrituras, pois elas falam, freqentemente, da atividade de Deus e da atividade do homem de tal maneira que os coloca em posio diametralmente oposta um contra o outro. E possvel, por isso, adotar essa maneira de as Escrituras colocarem a questo, sem penetrar a verdade que est por trs dela. Isso, ao que parece, era o que ocorria com o modo como os nominalistas entendiam o ensino bblico a respeito de Deus e do homem, pois pensavam neles em termos de confronto entre graa e natureza. Era inevitvel que essa tradio (nominalista) influenciasse a maneira pela qual Lutero desenvolveu sua teologia e concebeu a relao entre Cristianismo e cultura.

    Lutero, corretamente, afirma a doutrina evanglica da imediata operao da graa soberana de Deus, atravs da Palavra. No pensamento de Lutero, contudo, h uma marcante distino entre a esfera ntima do divino, atividade espiritual, e a esfera exterior das prticas seculares. Na linha da posio nominalista, essa esfera exterior, em contraste com a esfera ntima, considerada como formal e convencional. Pelo menos em relao ao campo espiritual, ela colocada em posio de indiferena. A atividade cultural humana, que pertence a essa esfera externa, aceitvel, contanto que seus padres no sejam aplicados esfera espiritual. No h, porm, nenhuma conexo ntima entre ela e esse campo espiritual. A atividade espiritual influencia a cultural, para empregar uma metfora, somente quando se agita e se derrama dentro dela. Em comparao com a atividade espiritual, a atividade cultural humana deve ser tolerada.

    Dentro deste contexto, no causa surpresa o fato de Melanchthon ao descobrir que na posio de Lutero no havia nenhum ponto ntimo de ligao no contato com a cultura e voltado para os fundamentos da teologia, em seu programa prtico da reforma universitria , inclinar-se mais e mais para uma posio no crtica de aceitao daquilo que vinha a ele a partir do meio secular. Acomodou sua posio mais e mais posio

  • de Aristteles que, segundo dizia, tinha desenvolvido a nica filosofia cientfica.1 Certo, com relao s reformas da doutrina da graa, em sua convico pessoal, Melanchthon, no obstante, acomodou-se cultura secular, de um modo que era impossvel a Calvino.

    No pensamento de Calvino, no encontramos um tal dualismo. Para ele, na verdade, no h esfera de atividade humana relativamente autnoma, que preceda a operao da graa de Deus. Alm do mais, no h limite para a soberania divina, quando ela opera no corao humano. No pensamento de Calvino, contudo, essas posturas combinam com a profunda compreenso da doutrina bblica da criao. Deus o Criador soberano absoluto e sustentador de todas as coisas. Nada existe que ele no tenha criado e que no esteja sujeito sua vontade criadora. Todas as coisas, inclusive as que parecem mais triviais, so reveladoras da sua soberania. Alm do mais, sua vontade criadora soberana abrange aquilo que humano e aquilo que pertence esfera das realizaes humanas, naturalmente as da Histria e do desenvolvimento cultural. Tudo est sujeito sua vontade como vem expresso na sua lei.

    Em Calvino, portanto, no encontramos uma simples e global distino entre Deus e homem, entre aquilo que divino e aquilo que atividade humana, noes que equivalem a clculo matemtico. Na verdade, pode-se respeitar a plenitude da distino bblica entre o Criador e sua criatura. No entanto, um profundo discernimento desta verdadeira doutrina bblica que leva o indivduo a evitar o uso dos termos Deus e homem, em sentido global (em bloco), modo simples e absoluto contra o qual estamos fazendo advertncia. Essa cilada pode ser evitada se, com Calvino, pensarmos dentro da criao, sob o horizonte da revelao de Deus, em termos da expresso da vontade do Deus Criador, em sua lei.

    Calvino compreendeu que tudo o que se conforma com a vontade de Deus, como est expresso na criao, tem a aprovao de Deus. Quando 1 Ibid., pp. 82, 106, 120.

  • responde ao propsito criador de Deus, o homem responde quilo que est de acordo com a sua natureza, quilo que Deus, na criao, declarou bom. Por isso, Calvino pde aceitar com entusiasmo o programa da cincia natural, de pr s claras os segredos do universo de Deus. Deste modo, tambm pde ele aceitar livremente as realizaes do gnio humano, que contribuam para a humanizao do homem. Admitia que essas coisas no tinham sentido separadas da religio; porm, na verdade, eram plenas de sentido com ela. Eram preciosos dons de Deus concedidos (ao ser humano) pelo Esprito Santo.

    Para dizer a verdade, a humanidade est depravada em seu corao por causa do pecado e a cultura no se desenvolveu sem severas distores. A depravao, contudo, contrria natureza, no natural. Aquilo que no responde vontade criadora de Deus, que no est verdadeiramente de acordo com sua lei, uma expresso da antinaturalidade que entrou no mundo por causa do pecado. Essa deformao, contudo, no obstante ser grande, no tal que tenha separado o mundo e sua cultura do propsito e plano de Deus. Nem tal que o mundo no manifeste mais a glria de Deus. As boas ddivas de Deus so largamente distribudas, sem qualquer favor especial, aos da famlia da f. A verdade, que est presente pela influncia do Esprito Santo, deve ser abraada, portanto, onde quer que seja encontrada. A despeito da depravao do corao do homem, Deus tem, por sua graa comum, conservado resduos candentes daquilo que responde sua vontade criadora.1 Por isso, possvel entender que haja mesmo brilhantes realizaes do esprito humano entre os que tm, em seus coraes, pouco ou nenhum lugar para os ensinos da Palavra de Deus.

    1 O conceito de Calvino sobre a lei da natureza, diferentemente do dos esticos, no se baseia na concepo de uma razo csmica universal, mas est inseparavelmente ligado doutrina bblica da criao e a ordem criada das coisas. Dessa forma, Calvino tem um lugar para a doutrina da graa comum ou preservadora de Deus. Bohatec discute extensivamente a posio de Calvino acerca da lei da natureza, relacionando-a com a doutrina da criao e demonstrando o uso que Calvino fez da doutrina da graa universal. Cp. Josef Bohatec, Calvin und das Recht (Graz: Hermann Bhlaus, 1934), pp. 22-24, e passim).

  • O ponto de vista de Calvino a respeito da relao entre Deus e o homem parece estar compendiado em sua famosa afirmao, feita no comeo de sua Instituio, de que h uma correlao entre o conhecimento que o homem tem de Deus e o conhecimento que tem de si mesmo (Dei notitiam et nostri res esse coniunctas).1 Isso significa que o homem s se conhece verdadeiramente, quando se conhece luz de Deus e de sua revelao, com o corolrio implcito de que, se se conhece verdadeiramente, conhece verdadeiramente tambm a Deus. No muito extrair desta correlao o pensamento de que o ser humano, estando verdadeiramente relacionado com Deus pela piedade, estar verdadeiramente relacionado consigo mesmo, e estando relacionado consigo mesmo pela piedade, estar verdadeiramente relacionado com Deus.

    Segundo meu modo de entender a questo, a idia de Calvino a respeito da correlao entre o nosso conhecimento de Deus e o nosso conhecimento de ns mesmos abriu o caminho para ele se deparar com aquilo que, para ele, deve ter sido o maior problema, isso , o problema da relao entre a educao humanstica que ele recebeu, e pela qual continuava tendo grande respeito, e as verdades do Evangelho, que ele abraou em sua converso. Essa relao expressava um ponto de vista no qual o perigo de tomar Deus e homem, o divino e o humano, em bloco, j tinha sido superado. Seu ponto de vista permitia-lhe, de uma forma verdadeiramente compatvel como ensino das Escrituras, assegurar um lugar pleno humanidade do homem e s realizaes culturais, sem detrair um mnimo da honra e da glria de Deus.

    Calvino considerou a humanidade do homem em sua profundidade. De fato, esse modo profundo de compreender o homem no se inspirou na idia de humanidade universal, tal como a do Renascimento, onde se pensava que o homem fosse uma personalidade autnoma, a fonte criadora de seus prprios valores; ao invs disso, resultou da Revelao de Deus no 1 Calvino, Institutas, I.1.1. Cp. Bohatec, Bud und Calvin, p. 243.

  • que se refere ao seu propsito na criao, aos efeitos deformadores do pecado e proviso de Deus para a redeno do ser humano e de seu mundo. Para Calvino, tornou-se possvel relacionar a idia de humanidade anttese religiosa retratada na Escritura. O caminho foi aberto pela idia de que o homem se torna humano em sua relao com Deus. O ser humano, em si mesmo, verdadeiramente humano quando responde quilo que constitui o modo de ser de sua natureza, quilo para o que foi criado.1 Desse modo possvel constatar que o humanum realizado no no isolamento autnomo do ser humano em relao a Deus, mas na sua relao com ele. A autonomia humana pecaminosa, longe de ser o caminho para a auto-realizao humana , em si mesma, uma distoro daquilo que humano.

    Contra essa posio, claro que o que est em discusso no uma nfase simples, relativa ou a ausncia de nfase a respeito do homem e dos produtos da atividade humana. O ponto em questo se naquilo que o homem faz e no modo como se concebe a si mesmo est de acordo com o que Deus planejou para ele desde o comeo, em sua soberana vontade criadora. Segue-se, deste fato, que qualquer idia de homem ou de atividade humana, ou dos produtos dessa atividade, deve ser examinada quanto s suas razes religiosas. Procura o homem expressar sua humanidade segundo a lei de Deus? Est ele pronto a reconhecer a inaturalidade ligada a tudo o que humano e a toda realizao humana, por causa do pecado? Est ele preparado para depender em tudo o que se relaciona com ele mesmo e com suas atividades , da graa redentora de Cristo e de seu poder restaurador?

    A partir desta perspectiva, percebemos agora que podemos trazer luz, de forma mais efetiva, quo humanstico o pensamento de Calvino. Sua posio, no que se refere aos interesses da glria de Deus e do Evangelho de Jesus Cristo, no exige que ningum negue ou, mesmo, deprecie aquilo

    1 Segundo Calvino, escreve Bohatec, o homem em seu estado natural voluntariamente sujeitou-se s normas racionais. Bohatec, Bud und Calvin, p. 352.

  • que humano. Na realidade, a humanidade do homem pode ser exaltada sem que se avilte a honra de Deus. O interesse naquilo que humanum e naquilo que a ele se refere s se torna humanismo no sentido pejorativo, quando defende o ponto de vista de que o centro de gravidade do ser humano, como se existisse, reside nele mesmo, numa presumida autonomia vis--vis com o seu Criador. Essa espcie de humanismo, como fizemos notar, surgiu durante a Renascena e floresceu no tempo do Iluminismo. Contra essa espcie de humanismo Calvino reagiu vigorosamente, visto que seus expoentes estavam tentando, por todos os meios sua disposio, fazer abortar a causa da Reforma.

    O Calvinismo e o governo de Deus atravs da lei

    At aqui verificamos que, para Calvino, a vontade soberana do Deus Criador no tem limites. Est presente em todas as coisas, mesmo naquelas que, aparentemente, so as mais insignificantes. Tudo revela Deus e expressa, de um modo ou de outro, sua majestade e glria. Observamos, alm disso, que essa vontade soberana de Deus no pode ser entendida se a separarmos da revelao que ele faz de si mesmo e da expresso de sua vontade, na sua lei, qual o homem e toda a criao, na verdade, esto sujeitos. Corresponde ao pensamento de Calvino dizer que o ser humano se realiza como pessoa quando, em sua resposta a Deus, compartilha com ele em sua revelao. O prprio homem responde livremente chamada de Deus, obedecendo vontade soberana de Deus que, certamente, no o deixa encurralado, mas lhe serve de meio dentro do qual ele se realiza como ser humano.1

    Entendendo desta maneira, volto minha terceira proposio: Para Calvino, toda a vida, inclusive aquilo que chamado livremente cultura, tenoma, isso , tem a sua razo de ser enquanto sujeita a Deus e sua 1 O conceito de Calvino do Humanum, contrastando com uma idia de autonomia humana, manifesto em sua concepo de que a liberdade humana no licenciosa, mas sim uma liberdade em obedincia lei de Deus. Die wahre Freiheit ist nicht Ungebundenheit, sondem Freiheit im Gehorsam, Freiheit unter dem Gesetz. Ibid., pp. 473-474.

  • lei.

    O que vem particularmente luz aqui o que Calvino pensa da lei. Se Deus, como Criador, est acima da lei (deus Iegibus solutus), sem que coisa alguma fora do seu prprio Ser possa limit-lo, o ser humano e todo o cosmos com ele esto sob a Lei, sujeitos a ela. Pois tudo aquilo que se refere natureza da criao, em sua totalidade, est ligado pela lei de Deus: Separada destes laos a existncia da criao no tem sentido.

    Assim, a imagem que nos vem mente, quando consideramos o ponto de vista de Calvino a respeito da soberania divina, no a de um tirano desptico, porm a de um grande arquiteto, termo com que Calvino designa a Deus freqentemente.1 Quando falava da criao, Calvino podia referir-se facilmente ao seu aspecto arquitetnico, sua arquitetura, como revelao da grandeza e da bondade de Deus. Para Calvino, a idia da criao traz consigo a idia de ordem, ordem em que tudo construdo com uma estrutura magnificente, uma expresso de beleza.2

    Entendendo desta maneira, impossvel ver, na idia calvinista da soberania de Deus, sano para qualquer espcie de soberania humana ilimitada. Mesmo que o homem possa ter sua autoridade sancionada por Deus, essa autoridade limitada. A soberania humana sempre restrita aos limites estabelecidos para ela.

    Estes dois fatos, que integram totalmente o carter do Deus soberano criador, como ele se revela na sua Palavra e na existncia imensurvel de toda a sua criao, aparecem na idia reformada da vocao.

    A Lutero atribudo o fato de ter provocado uma revoluo de tipo 1 Lon Wencelius, Lesthtique de Calvin (Paris: Societ dEdition Les Belles Lettres, s.d.), p. 30. 2 Wencelius associa intimamente a idia de beleza de Calvino com ordem. Em cada descrio de beleza encontra-se a noo de ordem. La notion dordre se retrouve chaque description de beaut. Tout chose belle est ordonne en ellemme. lbid., p.46. La cration rvle Dieu...grce sa beaut, cest--dire grce son ordre merveilleux. Ibid., p.40; cp. p.34.

  • copernicana na idia de vocao, em relao ao que se pensava dela na Idade Mdia. Esse conceito tinha sido aplicado apenas a algumas reas especiais, chamadas de ordens santas, para as quais era necessria uma consagrao especial. Na verdade, a idia corrente era de que s o monasticismo constitua verdadeira vocao. Do mesmo modo, a vida de contemplao espiritual era mais valorizada do que a vida ativa.1 Ao reconhecer que toda a vida santa quando reflete o propsito de Deus, Lutero faz a idia de vocao estender-se para abranger toda atividade humana legtima.

    O pleno impacto da revolucionria concepo de Lutero s pode ser sentido, contudo, se se escapa da espcie de dualismo em que ele mesmo caiu, ao distinguir entre um campo espiritual, ntimo, e uma esfera de ordenanas externas. Calvino, como j afirmei, nunca participou de um tal ponto de vista dualstico. Na verdade, como Lutero tambm fez, Calvino rejeitou a idia de que a natureza o prembulo da graa, sustentando que Deus opera imediatamente no corao humano, atravs da sua Palavra. Calvino, porm, no foi atingido pelas influncias nominalistas que afetaram o sistema de pensamento de Lutero. O ponto de vista de Calvino, como demonstrei na seo precedente, no envolve de modo algum qualquer depreciao da atividade cultural, nem das instituies humanas. Na Reforma calvinista, a idia de vocao podia assumir a mais pura expresso de sua significao universal.

    Para Calvino, a vida do homem, em sua totalidade, compreendida como uma resposta chamada de Deus. O homem um ser do pacto. Como Lutero bem disse, o homem tem uma lei certa segundo a qual ele deve viver e morrer (certa regula tum vivendi tum moriendi). Em todos os aspectos de sua vida, o indivduo confrontado com o Deus soberano, perante o qual ele deve prestar conta de si mesmo.

    Na verdade, a vocao ou chamada de Deus tem sentido universal. A 1 Bohatec, Calvins Lehre von Staat und Kirche, pp. 638-639.

  • idia reformada da vocao, contudo, no atinge sua expresso plena, separada da idia de que h vocaes particulares. A Reforma recuperou a idia da santidade de todas as atividades humanas legtimas. O que est em jogo, portanto, no se algum objeto de uma vocao particular, mas se na esfera em que exerce sua atividade, ele realiza o seu trabalho luz da vocao divina e ali serve a Deus de todo o seu corao.

    Um dos aspectos principais do ponto de vista de Calvino a respeito da vocao estava no fato de ele entender que a grande diversidade de dons tinha sido dada aos indivduos, de acordo com a soberana vontade do Esprito de Deus. Assim como no apenas um raio de sol que ilumina o mundo, mas todos os raios se combinam num conjunto para realizar a tarefa dele, do mesmo modo Deus distribui amplamente os seus dons, com o fim de manter a humanidade em mtua interdependncia.1 Entre os homens h uma diversidade de dons que possibilitam uma diversidade de funes. Aquele que tem um lugar particular e uma tarefa pressupe que tem uma vocao para ela. Ao assumir esse lugar e suas obrigaes, o indivduo tem uma vocao definida (certa vocatio).2 A vocao que algum tem uma resposta obediente divina vocao.3

    Em conexo com isso, Calvino empregou outra figura, a do corpo. Estendeu essa figura Igreja, famlia e ao Estado.4 As vocaes seculares pertencem ao Estado.5 Os membros do Estado bem como os da Igreja, com seus diversos dons, esto unidos num corpo com funes mutuamente dependentes. Assim, Calvino desenvolveu aquilo que tem sido chamado um conceito orgnico da Igreja, do Estado e da famlia, etc.6 1 Calvino, Opera, 2, 252. Bohatec, Calvins Lehre p.640. 2 Bohatec, Calvins Lehre, p. 636. 3 Der Beruf ist gehorsame Antwort auf den gttlichen Ruf. Ibid., p.644. 4 Ibid., p. 647.. 5 Ibid. 6 Bohatec interessa-se especialmente em mostrar que o conceito de Calvino sobre chamado est intimamente ligado com essa viso orgnica. Die Eigenart des calvinischen Berufgedankens wurzelt inseiner Einordnung in das Organismussystem. Ibid., p.646.

  • A idia reformada da vocao, especialmente como ela foi desenvolvida por Calvino, conduz idia de que a santidade prende-se quilo que chamado de "atividades culturais do homem. Essa atividade cultural do homem considerada como sendo uma resposta chamada divina, que envolve uma tarefa cultural divinamente determinada. Portanto, a atividade cultural do homem tenoma e s tem sentido como uma resposta a Deus e sua Lei que, por sua vez, estabelece os seus laos e determina o seu significado. Esse passo, na verdade, foi anteriormente dado por Calvino.

    Calvino vislumbrava uma tal esfera orgnica na famlia. A famlia uma ordenana da criao fundada por Deus.1 E uma eterna e indestrutvel instituio divina.2 Ao chefe da famlia, no sentido restrito da palavra, o marido, foram concedidos dons especiais do Esprito. Em virtude de tais dons ele foi dotado de autoridade, autoridade que foi chamado a exercer na esfera particular em que foi colocado. Dentro da famlia h uma relao especial de superordenao e subordinao. De acordo com a disposio divina, o marido o cabea da esposa, mas o de tal modo, porm, que ele deve cuidar dela como cuida do seu prprio corpo. Na verdade, ele deve am-la como Cristo amou a sua Igreja e se entregou a si mesmo por ela. Por seu lado, a esposa deve ser submissa ao marido, no Senhor, oferecendo-lhe o amor e a obedincia a que ele tem direito como seu cabea. Acima dos dois marido e mulher , no entanto, est o Cabea de todas as coisas, Jesus Cristo. Ambos, marido e mulher so limitados em sua autoridade e atividade. Suas vidas, como casados, alcanam sua realizao em sua obedincia Lei de Deus, naquilo que diz respeito esfera para a qual foram chamados.

    O ponto de vista de estrutura orgnica, de Calvino, est presente tambm em sua maneira de conceber o Estado, no qual ele viu uma

    1 Calvino, Opera, 28,148. 2 Ibid., 52, 276. Cp. Bohatec, Calvins Lehre, p.652.

  • analogia com a famlia.1 Ele relacionou com o Estado, tambm, sua idia de diversidade do gnero humano, quanto aos dons e esferas de atividade. O Estado tambm anlogo a um corpo, no qual os vrios membros tm seu prprio lugar e funo. No Estado, os indivduos so reunidos uns aos outros numa unidade orgnica, com diferentes posies na vida e diferentes funes.

    Acima do Estado est o governo. A autoridade deste, ensinou Calvino, no se deriva, antes de tudo, da vontade do povo; antes de tudo, ela dada por Deus.2 A fonte divina da autoridade do magistrado est no fato de ter ele recebido dons peculiares do Esprito para governar.3 Dentro da esfera do Estado, portanto, h uma autoridade, h um centro de poder divinamente legitimado.

    Calvino partilhou da antiga idia de que o governo est acima da Lei, porque ele a sua fonte (princeps legibus solutus). De fato, ele admitiu que o governador a fonte da Lei Positiva, que obriga nos limites do seu territrio. Neste sentido, Calvino falou do governador como a lei personificada (lex animata).4 Na verdade, em sua concepo geral, contudo, Calvino sustentou que a autoridade de um governador limitada. Um governador deve, ele mesmo, submeter-se Lei Positiva, que vige nos limites do seu territrio.5 Lei Positiva, alm do mais, apenas uma expresso da Lei, pois, alm dela, h a Lei Natural, a Lei da Natureza,6 que Calvino associou estreitamente com a probidade. Cada Lei Positiva deve expressar o princpio da probidade. Se no for assim, ser intil.7

    Que significa para Calvino a Lei Natural? A resposta a essa questo

    1 Bohatec, Calvins Lehre, p.653. 2 Ibid., pp.169, 171. 3 Ibid., p.12. 4 Ibid., p.37. 5 Ibid., p.38. 6 Bohatec, Calvin und das Recht, p.126. 7 Ibid., pp.97, 101, 106, 122, 127.

  • no simples. Como Lutero e Melanchthon, Calvino tinha viva apreciao pela Lei Romana largamente aceita, e interpretava os sistemas legais correntes. Ele compartilhou da distino que o jurista romano Quintiliano fez entre as leis dadas a cada um, pela natureza isso , o direito natural (iustum natura), e as leis que pertencem ao folk ou ao povo, em cujo contexto as leis recebem sua formal expresso judicial (iustum constitutione).1 A abertura de Calvino para com a Lei Romana neste ponto, envolvendo, como envolve, um acordo formal com a idia de que h uma Lei Natural, est em consonncia com a sua atitude, em geral, para com as realizaes culturais humanas e, mais particularmente, est de acordo com a sua atitude para com o sistema de Lei Romana, no qual ele introduziu muito poucas correes. O fato de aceitar a Lei Natural no significa, contudo, que ele no a colocasse numa perspectiva que, naturalmente, pudesse mudar o seu significado. Sustentar um ponto de vista a respeito da Lei da Natureza, como Calvino fez, no significava entrar no campo dos Esticos, com sua concepo de razo universal, ou num acordo substancial com a Lei Romana, em seu ponto de vista a respeito da origem e do sentido da Lei Natural.

    Que Calvino pudesse aceitar a Lei Romana, de modo algum dependia de como ele interpretava seu lugar no plano providencial de Deus, ou envolvesse a necessidade de ele reinterpret-la, fazendo suas distines dentro do contexto de seu modo de entender a doutrina crist. Aceit-la era agradvel sua idia de que Deus no tinha permitido ao mundo ir runa por causa do pecado, mas que o tinha preservado por meio de sua graa comum. A aceitao, por parte de Calvino, de alguma espcie de doutrina de Lei Natural reflete, tambm, sua interpretao do ensino da Escritura, no que se refere quilo que entendem por natureza (physcei) os que esto fora do mbito da revelao especial de Deus e que, diferentemente dos judeus, no receberam os orculos (ta logia) de Deus. O fato de estes, no obstante, fazerem por natureza as coisas que esto escritas na Lei de Deus, deve ser, segundo Calvino, atribudo s sensibilidades humanas 1 Ibid., pp.98ss.

  • distribudas a todos os homens (sensus communis), fato que reflete a vontade divina e que tem sido preservado do aniquilamento pela graa comum de Deus. Segue-se, deste fato, que Calvino no podia pensar na Lei da Natureza como um direito inerente razo universal, entendida como separada da mensagem bblica. A Lei da Natureza tinha de ser relacionada com a ordem da criao, atravs da qual, a despeito das devastaes provocadas pelo pecado, Deus continua a revelar-se em toda parte e em todos os tempos.

    Um governador, ento que na verdade, para Calvino, a fonte das Leis Positivas inscritas nos cdigos de seu territrio , est sujeito Lei da Natureza. Segundo Calvino, essa Lei da Natureza o princpio e o objetivo de todas as Leis Positivas, e a Lei que estabelece o seus limites.1 Um governador, portanto, est sujeito a uma Lei (da Natureza) cuja autoridade excede, em muito, de quaisquer leis que ele mesmo possa gerar. Em ltima anlise, ele est sujeito a Deus, que a fonte final de toda lei e de toda autoridade.

    De fato, o respeito que Calvino tinha para com o magistrado e para com os dons de governar, era enorme. O homem obrigado a aproximar-se de um governador como de algum dotado, pelo Esprito do prprio Deus, de extraordinrios dons que o qualificam para governar. Contudo, essa autoridade humana, conquanto seja sancionada pela autoridade divina, sempre restrita, sendo demarcada pelos limites prprios do ofcio de governador.

    O ponto de vista de Calvino a respeito da vocao, tanto da atividade na esfera do lar, do Estado, do magistrio ou da Igreja, exibe sempre essas duas faces. H, de um lado, a idia de que tudo na vida resposta vocao universal de Deus, cuja vontade soberana abrange todas as coisas

    1 Para Calvino, diz Bohatec, o direito natural, que virtualmente idntico ao direito moral, serve como ratio de todas as leis escritas. Ibid., p. 97. ... das Natturrecht Regel, Ziel und Grenze der positiven Gesetze ist. lbid., p.101; Cp. p.106.

  • e cuja providncia se estende a cada pormenor da existncia humana. De outro lado, h a idia paralela de que a resposta humana canalizada por vocaes especficas, de modo que cada um tem o seu lugar e desempenha suas funes dentro do corpo.

    Caberia ao grande estadista e telogo holands, Abraham Kuyper, unir as linhas do ensino reformado e desenvolver a idia da esfera soberana ou, como ela tem sido chamada, soberania nas esferas individuais da vida, pois Deus, cuja soberania se estende sobre a totalidade da vida, tem ordenado vrias esferas na sociedade, cada uma das quais dispe de uma soberania dentro de sua prpria rbita.1 Calvino j tinha compreendido, contudo, que h uma diversidade de dons e vocaes, e que cada um desses dons ou vocaes tem de ser compreendido em relao com Deus e com sua soberana vontade. Segundo Calvino, bem como segundo Kuyper, cada um pode servir de acordo com seus dons peculiares, suas capacidades especiais e em seu prprio lugar, e ser agraciado com o conhecimento de que foi incumbido de realizar uma particular vocao de Deus.

    O ponto de vista de Calvino a respeito da diversidade de vocaes, estabelecidas por Deus, torna imperativo reconstruir a difundida noo dos tempos modernos, concernente natureza da cultura e da sociedade. At aqui tenho empregado a palavra cultura em sentido mais amplo e indiscriminado, sem levar em conta a questo do uso comum do termo. Segundo esse uso, cultura o termo geral que denota a ordem trazida existncia pela agncia humana. Tem-se como cultura tudo aquilo que no surge pronto, como parte integrante da natureza. Assim, ela inclui toda linguagem, todas as leis, todas as convenes sociais, etc.

    Na maior parte das vezes, quando um contemporneo discute um tpico tal como Cristianismo e Cultura, ele tem em mente o termo 1 Soberania de esfera (Souvereiniteit in eigen kring) o titulo da famosa mensagem entregue por Abraham Kuyper na solenidade de abertura de 20 de outubro de 1880 da Universidade Livre de Amsterd, 3 ed. (Kampen: Kok, 1930). Cp. Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism, (Grand Rapids, Eerdmans, 1931.

  • cultura interpretado deste modo. A cultura abrangendo todo engenho humano e seus produtos posta em contraste com aquilo que pertence esfera do divino. Introduz-se, deste modo, uma discusso de relao do Cristianismo como sendo de origem divina com aquilo que produto da engenhosidade humana, no mais amplo sentido da palavra.

    O ponto de vista de Calvino a respeito da Natureza e da Lei Natural sugere que essa maneira de ver precisa ser reconstruda. Seu ponto de vista no admite que toda lei e toda estrutura (que no parte da natureza) sejam compreendidas como produtos do engenho humano. O prprio engenho humano (para Calvino), ao contrrio, adquire sentido dentro da estrutura estabelecida pelas ordenaes divinas, que a prerrogativa humana est longe de poder mudar.

    Outra vez Calvino no admite que se considere o divino e o humano

    em bloco. A atividade humana plena de sentido s dentro dos limites estabelecidos pela vontade soberana de Deus, expressa em sua Lei. A Lei de Deus constitui uma permanente estrutura para a atividade humana, fora da qual essa atividade perde o significado. A atividade cultural humana, na verdade a totalidade da cultura, tenoma e s tem sentido em sua relao com Deus e sua Lei.

    O Calvinismo e a Atividade Cultural do Homem.

    Calvino viveu num tempo de fermentao e mudanas, numa poca que ele mesmo descreveu em termos os mais elogiosos. Foi um tempo de renovao do pensamento, de profundos transtornos sociais e de conflitos religiosos. Tanto em relao ao Renascimento quanto Reforma havia no apenas uma vvida conscincia de retorno quilo que, durante longo tempo, tinha ficado obscurecido um retorno s fontes (ad fontes) , mas tambm havia a conscincia de que esse retorno era o marco de um novo comeo, a emergncia de uma nova idade que seria diferente, em grau marcante, daquela que a precedia imediatamente.

  • No meio de uma tal fermentao, no surpreende o fato de ter surgido,

    tambm, um sentido de transformao histrica. Essa conscincia dominou tambm a Calvino. Seu ponto de vista a respeito da Lei Natural no o impediu de ser flexvel com respeito s mudanas que tinham lugar por toda parte, ao redor dele. Ele sabia que era impossvel associar a vontade de Deus com a ordem existente, pois fazer isso significaria sancionar as foras do conservantismo e da reao. A investida caracterstica do seu tempo contra as idias e costumes bem estabelecidos no era simplesmente destrutiva e destituda de sentido. Contudo, claro que Calvino no abandonou tudo s foras da Histria, como j nos mostrou a discusso a respeito da Lei. Quando ele abraou a doutrina da Lei Natural, ela mesma estava num tal abandono. Ele no repudiou seu ponto de vista de mudana de Deus ou de sua Lei de forma a ser conduzido derrotado trilha da revoluo. Ainda que fosse mais controlado do que Lutero, em sua atitude para com essas foras, Calvino desprezou aqueles que, margem da Reforma, combatiam com fervor revolucionrio aquilo que estava estabelecido.

    No obstante, verdade que Calvino tinha uma viso aguada para (compreender) o papel da Histria. Alm do mais, ele foi um homem moderno no sentido de no considerar a Histria simplesmente como um movimento de imagem da eternidade. Sua recusa em limitar a vontade soberana do Deus criador no poderia obstruir a Histria. Para Calvino, o sentido da Histria reside nela mesma.1 A Histria e as mudanas histricas esto includas na esfera da atividade soberana de Deus e realizam os propsitos de sua vontade.2

    Possuiria ento, Calvino, um princpio bem elaborado de mudanas histricas, princpio que favorecia a proeminncia que ele dava Histria sem cair, por um lado, no conservadorismo e, por outro, sem cair numa

    1 Bohatec, Bud und Calvin, p.284. 2 Calvino, Opera, 39. 588. Cp. Bohatec, Bud und Calvin, p.282.

  • posio revolucionria? Teria ele uma clara noo daquilo que constitui a cultura, de modo a poder ver com clareza como a Histria e a formao da cultura histrica tm seu lugar dentro da ordem do cosmos, como Deus o criou? Na verdade, ele estava plenamente ciente do que tinha sido feito no passado para a construo de um ponto de vista cristo a respeito da Histria, pois lera os Pais da Igreja, inclusive Agostinho, que foi o primeiro a desenvolver aquilo que poderia ser chamado uma filosofia crist da Histria. De fato, ele mesmo desenvolveu um ponto de vista a respeito da Histria. Contudo, a resposta s questes acima deve ser negativa. Calvino no desenvolveu uma filosofia da Histria, no sentido tcnico desta palavra.

    melhor dizer que Calvino possua um sentido sumamente afinado da atitude que o cristo deve ter com respeito mudana histrica, um sentido que foi desenvolvido por seu estudo da Histria, na sua instruo e, especialmente, na sua profunda compreenso do ensino bblico.

    significativo a esse respeito que, antes de sua converso f evanglica, Calvino j estava plenamente envolvido naquilo que foi uma das mais poderosas foras modernizantes de seu tempo: o Renascimento humanstico. Isso j tinha produzido poderoso impacto nos crculos catlico-romanos. D testemunho disto o fato de o lder do humanismo francs, Bud, ser um catlico romano e ter influenciado alguns dos mais chegados companheiros de Calvino. Calvino firma-se primeiro como um humanista. S depois alcanou ele o desenvolvimento que o transformou no maior sistematizador da Reforma. Tendo j colocado seus ps no mundo moderno, o problema de Calvino no seria o de como entrar na modernidade, mas o de como se relacionar, ele mesmo e a nova cultura, com as velhas verdades do Evangelho, verdades que tinham sido outra vez trazidas luz pela Reforma, e de como interpretar o mundo moderno luz dessas verdades.

    No se deve tambm esquecer que Calvino, no interesse de aplicar as

  • verdades do Evangelho vida, foi levado arena da vida prtica. Seus princpios no tiveram, a respeito dessas verdades, aquele ar de irrealismo que caracteriza os esquemas ideais que tm pouco ou nenhum contato com a vida real. H em Calvino um saudvel realismo. Tem sido sugerido que seus princpios tiveram efeito porque ele estava em contato com as situaes reais da vida e estava em condies de mudar essas situaes.1

    Vemos Calvino, por exemplo, tentando, tanto quanto possvel, repor as Leis Cannicas em Genebra, juntamente com os princpios da Lei Romana.2 Vemo-lo em cooperao com Marot, elevando o nvel de apreciao pela msica no culto.3 Vemo-lo entrando no campo da educao, com a fundao da Academia de Genebra, e tentando desenvolver uma verdadeira concepo crist da cultura.4 Encontramo-lo, atravs de sua intensa atividade literria, elevando a alturas inabituais, o nvel da lngua francesa.5 Na introduo de sua Instituio da Religio Crist, ele se dirige ao rei de uma forma que lembra os antigos apologistas, pleiteando o bem-estar dos verdadeiros seguidores do Evangelho, mas afirmando, tambm, de uma forma que evidencia o mais profundo interesse pela situao poltica corrente, que os verdadeiros interesses do Estado s alcanam o progresso quando h verdadeira obedincia a Cristo e s verdades de sua Palavra.6 Na verdade, para Calvino, a Palavra de Deus no devia permanecer enclausurada no corao humano. Suas energias deviam irradiar-se por todo o mundo, em toda vida, incluindo o domnio da cultura.

    No fundo, contudo, foi pelo fato de Calvino ter penetrado to profundamente na concepo do mundo, que ele foi capaz de desenvolver

    1 Ibid., p.298. 2 Bohatec, Calvin un das Recht, p.121; cp. pp. 211ss. 3 Cp. Wencelius, Lesthtique de Calvin, pp.225ss. 4 Cp. Bohatec, Bud und Calvin, pp.300 ss. 5 Ibid., p. 263. 6 Calvino, Opera, 39. 588. Cp. Bohatec, Bud und Calvin, p. 282. Cp. Andr Biler, La Pense conomique et Sociale de Calvin (Genebra: Georg, 1961), pp. 74 ss, e passim.

  • um sentido prprio da Histria e de sua dinmica. Foi por ter entendido, como Agostinho antes dele, o significado reprodutivo da doutrina bblica da criao, que ele reconheceu a soberania e a providncia de Deus sobre todas as coisas, de modo que coisa alguma escapa vontade criadora de Deus. Isso tornou possvel, para ele, ver que essa vontade se estende a toda Histria e quilo que central Histria ou, seja, atividade formadora do homem, que o corao do desenvolvimento cultural.

    Quem se coloca na posio de Calvino no tem necessidade de conceber a atividade cultural humana como contrastada com a presumida esfera da atividade divina. A cultura pode ser concebida como um aspecto da atividade humana, distinta da natureza, mas no como independente da Lei divina, do plano divino e da divina vocao. A atividade cultural humana pode ser concebida como uma resposta chamada de Deus, do mesmo modo como o toda a vida, e pode ser julgada quanto a se ou no levada a efeito de acordo com a vontade do Deus criador. O que se exige uma reconstruo da idia de cultura, idia concebida dentro do contexto da revelao divina, contexto dentro do qual a cultura se torna plena de sentido. A atividade cultural humana, levada a efeito em obedincia Lei de Deus, uma expresso de sua vontade. Est na linha do pensamento de Calvino dizer que aquilo que flui da cultura, tem um lugar no plano de Deus, enquanto se relaciona com o fim desta era e com a vida de um novo cu e de uma nova terra.

  • A Propagao do Calvinismo no Sculo 16

    W. Stanford Reid (Traduo: Jlia Pereira Lalli)

    W. Stanford Reid professor emrito de Histria na Universidade de Guelph em Guelph, Ontrio. Tem ttulos obtidos na McGill University de Montreal (B.A.,M.A.), no Westminster Theological Seminary, de Filadlfia (Ph.D.), no Wheaton College, de Wheaton, Illinois (L.H.D.Hon.), e no Presbyterian College of Montreal, Quebec (D.D.Hon.). Trabalhou no ministrio pastoral em Montreal e, como membro da Arts Faculty, na MacGill University, em Montreal, Dr. Reid tem contribudo com muitos artigos para o Church History, Fides et Historia, The Scottish Historical Review, The Canadian Review, Speculum, Christianity Today, The Presbyterian Record, e muitos outros peridicos. Escreveu e organizou cerca de dez livros sobre a Reforma Protestante e sobre a histria do Canad. membro da American Society of Church History, da Conference on Faith and History, da Scottish Church History e da Royal Historical Society.

  • CAPITULO 2

    A PROPAGAO DO CALVINISMO NO SCULO 16

    A comunicao sempre uma questo de grande importncia em qualquer civilizao ou cultura, mas tem se tornado mais importante do que o comum em nossa prpria sociedade. A imprensa, o rdio e a televiso desempenham grande papel em nossas decises e, de uma forma geral, em nossa maneira de pensar. Com as facilidades de comunicao que temos hoje, e que o homem jamais teve em tempos passados, temos a tendncia de achar que o tempo em que vivemos o nico perodo em que a comunicao, a propaganda ou como quer que a chamemos valorizada de fato. Contudo, quando nos voltamos para o sculo 16, no temos como evitar a surpresa ante a maneira como informaes e idias de todos os tipos circulavam pela Europa. Um dos exemplos mais marcantes desta difuso de idias torna-se visvel na forma como o Calvinismo se espalhou a partir da pequena cidade sua, Genebra, por grande parte da Europa, indo dos braos mais baixos do Danbio at as regies nrdicas da Esccia.

    O Luteranismo tambm se espalhou bastante rapidamente nos primeiros tempos da Reforma, mas logo comeou a recuar como mar vazante, com exceo feita apenas s regies mais teutnicas como a Alemanha e Escandinvia. As idias de Calvino, por outro lado, penetravam e, freqentemente, suplantavam as de Lutero em regies to diversas quanto as da Frana, Esccia, Holanda e Hungria. Apesar das dificuldades da geografia fsica, dos obstculos causados por oposio poltica e pela perseguio instigada por autoridades catlicas, o Calvinismo conseguiu expandir sua influncia e ampliar suas fronteiras a ponto de vir a ser considerado o inimigo nmero um da Igreja Catlica

  • Romana e dos governos absolutistas. Embora haja inmeras razes que demonstram esse fato, um fator muito importante constitudo pela forma e pelos meios utilizados na propagao do Calvinismo por toda a Europa do sculo 16.

    Ao tentarmos compreender essa questo da comunicao, devemos reconhecer que a transmisso de idias depende muito da sociedade em que essas idias so expressas. Temos tido muito bons exemplos deste fato nos jarges criados por estudantes universitrios e pela gerao hippie dos anos 60. Alm disto, a questo da tecnologia da comunicao e da transmisso de idias na sociedade hoje de importncia crucial. Haja vista que hoje o computador est assumindo uma funo completamente revolucionria neste mesmo campo. No entanto, dada a tcnica desta maneira de comunicar, ela compreendida por muito poucos, ou seja, apenas por aqueles que foram tecnicamente treinados para us-la. Desta forma, para compreender o sucesso da transmisso das idias de Calvino e para explicar parcialmente o sucesso obtido em divulg-las, necessrio que olhemos primeiro os antecedentes sociais da Reforma e o desenvolvimento dos meios de comunicao.

    Desenvolvimentos no Final do Perodo Medieval e no Incio dos Tempos Modernos

    Os dois sculos que se passaram entre 1300 e 1500 foram sculos de

    mudanas rpidas, e mesmo revolucionrias, na sociedade da Europa Ocidental. Se Petrarca ou Dante pudesse voltar para conversar com Erasmo, teriam se encontrado em um mundo completamente diferente daquele que haviam conhecido. De um lado, a Europa havia sofrido o ataque devastador da Peste Negra ou peste bubnica que matara um tero da populao de alguns pases. Essa tragdia produzira efeitos e implicaes de longo alcance. Precisamos nos lembrar tambm de que foi durante estes sculos que eclodiu a Renascena, que o Grande Cisma e o

  • Movimento Conciliatrio na Igreja seguiam seu curso e, finalmente, que descobertas geogrficas modificaram muitas das perspectivas dos europeus ocidentais inclusive a descoberta da Amrica e a circunavegao do Cabo da Boa Esperana, e a abertura posterior de um caminho direto para o distante Oriente. Por volta de 1500 a Europa era um continente diferente, com uma sociedade fundamentalmente modificada.

    Um dos efeitos da Peste Negra foi o declnio da economia na Europa Ocidental, quando diminuiu a demanda de bens, assim como a mo-de-obra que os produzia. Contudo, por volta da metade do sculo 15, na medida em que as pessoas se tornavam mais resistentes doena, as populaes comearam a crescer e, mesmo que seu nmero no tenha chegado aos nveis anteriores praga seno quando o sculo 16 j ia bem adiantado , a indstria e o comrcio comearam a se recuperar. Novas tcnicas criadas nas indstrias de manufatura de tecidos de l, nas de minerao do carvo e nas de produo de armamentos, tudo contribua para estimular a economia; especialmente nos pases do noroeste, como a Inglaterra e Holanda. Em funo disto, aumentou a necessidade de um fluxo maior de dinheiro, resultando no aperfeioamento dos mtodos de financiamento, e no surgimento de importantes empresas de operaes bancrias, como a dos Mdici, de Florena e a dos Fuggers, de Augsburgo. Todos estes fatores contriburam para a expanso geral do comrcio depois de 1450, o que levou, por sua vez, formao de uma rede de comunicaes que viria a desempenhar papel muito importante na transmisso de idias durante o sculo 16.1

    Essa rede surgiu tambm em funo das mudanas de classe que estavam ocorrendo em algumas regies da Europa, em conseqncia dos desenvolvimentos econmicos. Apesar de sempre ter havido mercadores e artesos aos quais podemos chamar de classe mdia, por estarem entre a 1 Cp. W.B. Bowsky, The Black Death: A Turning Point to History? (Nova York: Holt, Rinehart & Winston, 1971), e passim; P. Burke, org.. Economy and Society in Early Modern Europe (Londres: Routledge, 1972), pp. 43ss; F. Mauro, Le XVI Sicle Europen, Aspects conomiques (Paris: Presses Universitaire de France, 1966), parte 2.

  • nobreza e a classe dos servos, no foi seno na ltima parte do sculo 15 que a verdadeira classe mdia comeou a surgir. Ao invs de alguns poucos comerciantes e banqueiros, um nmero muito maior de homens interessados em comrcio, mesmo que em escala bastante pequena, comeou a desempenhar essa funo na sociedade. Ao noroeste da Europa, em pases como a Inglaterra, Holanda e Alemanha Ocidental, a nova classe de homens comeava a desalojar a nobreza de sua posio de comando da sociedade.1 Enquanto a nobreza sofria por causa da inflao que grassava, a nova classe comercial vicejava em decorrncia da expanso econmica e se tornava o suporte de reis que tinham uma necessidade cada vez maior de dinheiro vivo.

    Politicamente, os sculos 14 e 15 viram o rpido crescimento de um sentimento de nacionalismo em muitas regies. Foi o perodo do esforo de expanso dos ingleses, tanto nas ilhas Britnicas como na Frana, do outro lado do Canal, esforos que resultaram no desenvolvimento e na consolidao do sentimento nacionalista no apenas dos ingleses, mas, tambm, dos franceses e escoceses. J no final do perodo, o nacionalismo espanhol fortaleceu-se na luta contra os mouros. Esse nacionalismo popular, por sua vez, auxiliou o surgimento do que veio a ser conhecido como as novas monarquias. Os monarcas das naes em desenvolvimento, com o objetivo de consolidarem seu poder, tanto dentro de seus prprios pases como na oposio a inimigos externos, precisavam de uma administrao e de exrcitos que s podiam ser mantidos com o apoio financeiro da nova classe mdia.2 Desta forma, o equilbrio poltico do poder estava comeando a se modificar em alguns pases.

    Uma outra mudana, que ocorreu entre 1300 e 1500 teve lugar na

    1 Ibid., pp. 326 ss; C. M. Cipolla, Before the Industrial Revolution (Londres: Methuen, 1976), pp. 139 ss; P. Smith, The Social Background of the Reformation (Nova York: Collier, 1962), pp. 15 ss. 2 A.J. Slavin, The "New Monarchies and Representative Assemblies (Lexington, Mass: Heath, 1964), e passim; H. Pirenne et al., La Fin du Moyenne Age (Paris: Presses Universitaire de France, 1931), pp. 3O ss; M.P. Gilmore, The World of Humanism (Nova York: Harper & Row, 1952), pp. 100ss.

  • orientao do pensamento ocidental. A teologia de Thomas de Aquino, com sua aceitao da realidade dos universais, nos quais participavam os particulares, perdeu a primazia com o surgimento de idias modernas anunciadas por homens como Marslio de Pdua e Guilherme de Ockham. O individual ou o particular passou ento a ser considerado como a nica entidade real, ao passo que os universais passaram a ser considerados apenas como classificaes nominais. Esse novo modo de pensar foi ainda mais enfatizado com o interesse demonstrado pelo pensamento clssico expresso nas ento recm-descobertas ou recm-estudadas obras de autores gregos e latinos. O humanismo renascentista, com sua nfase sobre o indivduo, particularmente sobre homem de virtu, deu uma fora adicional a ponto de vista de que o indivduo a figura central de qualquer conceito a respeito do homem e de suas atividades, viso essa concretamente demonstrada por Pico de la Mirandolla em seu Discurso sobre a glria do homem.1

    Todas essas mudanas tiveram sua influncia sobre o padro de comunicao. Certamente, a Idade Mdia tinha seu prprio mtodo de transmitir idias, mas esse mtodo alcanava um nmero relativamente pequeno de pessoas e, por isso, o movimento de idias era bastante limitado. Considerando que a grande maioria das pessoas era analfabeta, a sociedade medieval era uma sociedade basicamente oral e visual. A Igreja transmitia seus ensinamentos s pessoas atravs de quadros, imagens e cerimnias. Mesmo a pregao no era comum. Normalmente, quando os governos precisavam registrar muitos atos, privilgios e eventos usavam os servios do clero, a nica classe letrada. As novas idias, desenvolvidas nas escolas daqueles dias por pensadores revolucionrios, como Pedro Abelardo, eram geralmente transmitidas por alunos que haviam estudado com estes homens. Os livros e documentos daquele tempo, produzidos em pergaminho at 1300, eram normalmente escritos em latim. Desta forma,

    1 Ibid., pp. 182ss; J.R. Hale, Renaissance Europe 1480-1520 (Londres: Fontana, 1971), pp. 275ss; D. Hay, The Italian Renaissance in its Historical Background (Cambridge: Cambridge University Press, 1968), pp. 102ss.

  • sua leitura era limitada queles que tinham educao universitria e dinheiro suficiente para comprar artigos extremamente caros.

    O sculo 15 assistiu a uma mudana radical de mentalidade. De um

    lado, a redescoberta da literatura clssica despertou um novo interesse pela educao e pela cultura, interesse fortalecido pelo uso do papel na produo de livros, fato que reduziu consideravelmente seu preo. Alm disso, apesar dos conflitos internacionais constantes, o surgimento de Estados nacionais facilitou um pouco a circulao pela Europa, resultando no aumento do nmero de estudantes que se deslocavam de uma universidade para outra. O fato de Coprnico, depois de estudar na Polnia, poder ir estudar Cincia na Universidade de Pdua, na Itlia, demonstra o quanto a situao estava se modificando. A medida em que a classe mdia crescia, era indispensvel que os que a integravam tivessem ao menos uma educao elementar para poderem comerciar e negociar. Um novo grupo de leitores comeou a surgir; contudo, um pblico capaz de ler no vernculo e no no latim das universidades.1

    Tudo isso fornecia as bases para o mais revolucionrio desenvolvimento do sculo 15: a inveno da imprensa. No incio do sculo havia sido divulgado o uso de blocos de madeira entalhada para a reproduo de ilustraes e de textos relativamente curtos. Apesar de os livros poderem ser reproduzidos desta maneira, sua publicao era lenta e bastante dispendiosa. Foi por volta de 1450, no entanto, que Johannes Gutenberg, um alemo de Mainz, desenvolveu uma liga de metal que podia ser usada para fazer tipos mveis. O resultado foi uma verdadeira revoluo em todo o processo de transmisso e comunicao de idias.

    Trabalhando primeiro em Mainz e depois em Estrasburgo, Gutenberg 1 J.Bonneret, squisse de la vie des routes au XVle sicle, Revue des Questions Historiques (1931), CXV, 1ss. Esse livro nos fornece um bom retrato da crescente facilidade de se viajar na Europa no final do sculo 15 e incio do sculo 16. Ver tambm Hale, Renaissance Europa, pp. 283ss; G.R. Potter, org, New Cambridge Modern History (Cambridge: Cambridge University Press, 1957), pp. 95ss.

  • conseguiu uma reputao bastante rpida para suas publicaes e, conseqentemente, outros indivduos destas duas cidades passaram a se dedicar tambm ao ofcio de impressor. A partir da Alemanha, as tcnicas do novo processo logo se espalharam para a Itlia, e Veneza se tornou o principal centro de obras impressas. Pouco tempo depois, outras cidades, como Basilia, na Sua, seguiram seu exemplo, de forma que por volta de 1500 a imprensa se tornara relativamente comum. Estima-se que entre 1450 e 1500 tenham sido produzidos entre dez mil a quinze mil textos diferentes, atingindo um total de quinze a vinte milhes de cpias. O uso do papel e do tipo mvel deu, produo de livros, um carter completamente diferente do que tivera antes de 1450.

    Alm de tornar possvel a produo de livros baratos e em grande

    quantidade, a imprensa contribuiu para o surgimento de uma revoluo intelectual em muitos outros aspectos tambm. Embora seja verdade que, at 1500, a maioria dos livros impressos eram antigas obras de autores latinos, obras novas comearam a surgir com freqncia cada vez maior, nas lnguas vernculas. Isso significa que os novos mtodos de produo de livros visavam aos novos leitores. Essas obras no eram mais produzidas s para as pessoas que tinham formao universitria, mas tambm para aqueles que s podiam ler em sua lngua materna. Talvez, de igual importncia, como apontado por Marshall McLuhan, uma nova disposio de esprito foi gerada pela revoluo da imprensa. Conquanto seja um pouco difcil pensar segundo o padro linear de pensamento de McLuhan, resta pouca dvida de que a nfase passou a ser dada muito mais palavra escrita e sua compreenso intelectual. A comunicao visual tornou-se menos importante do que a capacidade de compreender o raciocnio intelectual ou mesmo abstrato.1

    A nova classe de leitores, tendo recebido um tipo de treinamento diferente daquele que era dado um sculo antes, comeava agora a pensar

    1 P. Chaunu, Les Temps des Rformes (Paris: Fayard, 1975), pp. 314ss; Gilmore, World of Humanism, pp. 186ss.

  • em diferentes termos, podendo avaliar e absorver novas idias. Alm disto, com a possibilidade de produzir livros mais rpida e eco