callon, michel - a agonia de um laboratorio
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CALLON, Michel - A Agonia de Um LaboratorioTRANSCRIPT
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A agonia de um laboratório por Michel Callon
(traduzido por Ivan da Costa Marques)
Reprodução livre, em Português Brasileiro, do texto original de Michel Callon para fins de estudo,
sem vantagens pecuniárias envolvidas. Todos os direitos preservados. (Free reproduction, in Brazili-
an Portuguese, of Michel Callon’s original for study purposes. No pecuniary advantages involved. Co-
pyrights preserved).
Que papel particular os laboratórios desempenham no desenvolvimento do
conhecimento e mais particularmente na construção dos fatos científicos? Es-
ta questão é inevitável quando se reconhece a importância da pesquisa orga-
nizada, seja tomando a forma de pequenas equipes no seio das quais indiví-
duos dispõem de importantes margens de manobra, ou seja na forma inspira-
da em modelos industriais, com equipamentos importantes e uma divisão de
trabalho estrita. Contudo, a despeito de seu papel estratégico, os laboratórios
têm sido pouco estudados. Muito se escreveu sobre a ciência e a sua organi-
zação, ou mesmo sobre os cientistas trabalhando nos laboratórios, mas rela-
tivamente pouco sobre a contribuição própria dos laboratórios para a constru-
ção dos fatos científicos.
Deste modo a filosofia da ciência e a epistemologia por muito tempo decidi-
ram ignorar o trabalho material dos cientistas para privilegiar sua atividade in-
telectual e se concentrar somente sobre a construção das teorias. Introduzin-
do a oposição hoje clássica entre o contexto da descoberta e o contexto da
justificação, os epistemólogos transformaram seu desinteresse pelos labora-
tórios num imperativo metodológico. Eles estão prontos a reconhecer que os
pesquisadores são movidos pela necessidade de glória e pela sede de pres-
tígio, que eles são algumas vezes autoritários e arrebatados pelo poder e que
seu maquiavelismo, na verdade sua duplicidade, os leva freqüentemente a
estabelecer alianças ou compromissos com os poderes estabelecidos e em
particular com os militares. Mas, para a filosofia da ciência, a atividade dos
pesquisadores transcende todas estas dimensões às quais ela não é reduzí-
vel. Para dar conta do essencial - esta mistura rara de razão e de submissão
à experiência -, é preciso saber ver além das contingências do laboratório.
Não somente este não diz nada sobre a ciência, como, mais ainda, nos dá
uma imagem falsa. É pelo “contexto da justificação”, onde são discutidos e
avaliados os resultados e proposições, e não pelos laboratórios, que todos
aqueles que se esforçam em dar conta da realidade da ciência considerada
como uma atividade humana particular devem se interessar.
Durante muito tempo os sociólogos colaboraram com esta empreitada de mis-
tificação, se contentando em descrever a instituição científica, suas normas,
seus valores e suas formas gerais de organização (colégios invisíveis, espe-
cialidades). Livres de todas as ligações organizacionais, os pesquisadores,
reagrupados em comunidades de especialistas, são analisados no momento
onde eles discutem seus resultados e não no processo de produção ou fabri-
cação do conhecimento. Os laboratórios estão ainda estranhamente ausen-
tes. Os raros estudos que lhes são consagrados permanecem muito formais,
se prendem a identificar e a repertoriar as estruturas organizacionais e seus
determinantes assim como seu impacto sobre o desempenho ou a eficácia do
trabalho dos pesquisadores.
Rejeitando este acordo implícito da filosofia e da sociologia, uma nova disci-
plina, a antropologia das ciências, se constituiu progressivamente, colocando
o laboratório no coração de sua perspectiva de pesquisa. Em lugar de colocar
entre parênteses a produção de conhecimentos, este famoso contexto da
descoberta tão desprezado pelos filósofos, a antropologia das ciências consi-
derou como prioritário o estudo da ciência em se fazendo. Com aplicação, ela
estudou os pesquisadores no trabalho, montando experiências, interpretando
e discutindo entre eles os primeiros resultados, preparando artigos. A fecun-
didade de tal virada não se fez por esperar: em um piscar de olhos se evapo-
rou a pretensa separação entre contexto da descoberta e contexto da justifi-
cação. É no laboratório, no decorrer do processo de construção dos argumen-
tos, de fabricação dos resultados, de conformação das teorias que se testa e
se constitui sua força e que se escolhem, se imaginam e se testam as audi-
ências que eles são destinados a convencer. A antropologia das ciências tem
mostrado que é falso distinguir etapas e traçar fronteiras: o processo é contí-
nuo. A elaboração de idéias, sua explicação, sua submissão à comprovação
se entrelaçam incessantemente segundo os caprichos das múltiplas intera-
ções que enlaçam os pesquisadores, seus financiadores e seus públicos po-
tenciais. Nesta perspectiva, o laboratório ocupa uma posição crucial. Não
somente é no seu seio que se observa a construção de interpretações ou de
enunciados, mas é igualmente lá que se prepara e se gere a transformação
de conhecimentos inicialmente locais em conhecimentos negociados e troca-
dos em mercados mais largos que ele contribui para criar, para transformar
ou para desfazer. O laboratório assegura a ligação entre o contexto da des-
coberta e o contexto da justificação, entre a fabricação de enunciados ou de
teorias e a sua difusão em meios sociais particulares. O laboratório é o agen-
te desta universalização de conhecimentos em que se consiste precisamente
a construção dos fatos científicos.
Para bem compreender este papel particular do laboratório, uma boa estraté-
gia é seguir, acompanhando-o até a sua desintegração, a evolução de um de-
les. Da mesma maneira que a pré-história de um laboratório nos permitiu
compreender a importância das redes, a lenta agonia de um laboratório nos
mostrará o papel que ele desempenha na permanente transformação e adap-
tação dos produtos e de seus mercados. É ele que gere a heterogeneidade e
a complexidade dos elementos que concorrem para a fabricação e para a
universalização dos conhecimentos. Quando mudam simultaneamente a defi-
nição de problemas, as relações de dependências internas, as demandas in-
dustriais, as comunidades científicas de referência, os modos de experimen-
tação, os conceitos utilizados, o laboratório é o lugar e o motor destas adap-
tações. Jamais se vê o laboratório tão claramente quanto quando os movi-
mentos se tornam tão bruscos e os rearranjos tão profundos que o laboratório
não pode senão se desmembrar para se recompor depois sob formas dife-
rentes. Para dar conta do papel desempenhado pelo laboratório nesta gestão
complexa dos conteúdos, dos recursos necessários para sua fabricação e
dos contextos de sua utilização-difusão, nós introduzimos a noção de atores-
redes cuja construção coincide com a construção dos fatos científicos eles-
mesmos.
O laboratório de Beauregard e as pesquisas sobre as células de com-bustível
No inicio dos anos sessenta uma ação concertada (AC) visando coordenar os
esforços de diferentes laboratórios de pesquisas, universitários e industriais,
foi lançada pelo DGRST sobre o tema geral de conversão de energia. O de-
senvolvimento de células combustíveis - dispositivos técnicos permitindo a
transformação de energia química fornecida por um eletrólito renovável em
energia elétrica - constitui uma das prioridades estabelecidas pelo Comitê en-
carregado da ação concertada. As razões desta escolha são múltiplas. Antes
de tudo, os programas espaciais acabavam de colocar evidência o desempe-
nho das células de combustível e deixavam entrever possíveis aplicações in-
dustriais. Aliás é esta a argumentação que desenvolve Baccala, membro do
comitê e diretor do laboratório de Beauregard, importante centro de pesquisa
do CNRS especializado no estudo da eletrocatálise. Além do mais este tema,
fora sua importância econômica potencial, coincide com as prioridades políti-
cas do momento, pois ele tem por virtude essencial promover uma coopera-
ção entre industriais e universitários e, de um modo mais geral, entre pesqui-
sa tecnológica e pesquisa de base. Por fim, uma das principais vantagens da
escolha é a de delimitar um terreno fácil para o DGRST investir, pois não ha-
via nenhuma concorrência a temer: o CNRS ou a Universidade são pouco
dispostos a embarcar em colaborações incertas com as empresas e hesitam
em apostar em disciplinas que, como a eletroquímica, ainda só desfrutam de
um prestígio medíocre. Aproveitando estas circunstâncias favoráveis, Baccala
impõe sem dificuldades o tema das células de combustível, de uma só vez
em seus aspectos tecnológicos e fundamentais; e no mesmo ato coloca seu
laboratório no primeiro plano da cena. Beauregard se torna um ponto de pas-
sagem obrigatório. Dominando tanto as técnicas como os conhecimentos teó-
ricos necessários à elucidação do funcionamento das células de combustível,
este laboratório se encontra colocado, desde o início da ação concertada, em
uma posição de articulação. Ligando pesquisas fundamentais e aplicadas a
um programa nacional, ele será levado a gerir esta tensão permanente que
se instala entre a dinâmica da pesquisa e aquela da ação política. Seguindo
Beauregard no seu difícil trabalho de intermediário, analisando a evolução
dos problemas e dos objetos de pesquisa, nós mostraremos que a construção
de fatos científicos dentro dos laboratórios é indissociável da estratégia do la-
boratório no seio das redes que ele gere.
Primeiras traduções: o eletrodo monotubular como objeto de pesquisa
Ao escolher dar apoio financeiro a esta ação concertada particular, o DGRST
estabeleceu uma primeira equivalência entre um campo de pesquisa e um
objetivo político. Ele postula que para dar vigor à indústria nacional, para re-
forçar a independência energética da França, a conversão de energia é um
dos temas prioritários: ele permite organizar transferências tecnológicas da
pesquisa de base em direção à pesquisa aplicada e coloca as empresas em
caminhos julgados promissores. Nós chamamos de tradução esta equivalên-
cia postulada por um ator particular (aqui, o DGRST) entre objetivos hetero-
gêneos, equivalência não imposta a priori por ninguém e que é por conse-
qüência conjectural.
Baccala, seguido sem discussão pelo comitê, acrescenta duas novas tradu-
ções que prolongam a precedente: a) para promover novas formas de ener-
gia, uma das escolhas prioritárias é o desenvolvimento de células de combus-
tível; b) para alcançar este objetivo, a prioridade das prioridades é otimizar
cada um dos elementos constitutivos da célula, e em particular aperfeiçoar o
desempenho dos eletrodos. Estas três operações de tradução alinhadas cri-
am um curto-circuito impressionante entre, de um lado, o futuro industrial e a
independência política da França e, de outro lado, as pesquisas conduzidas
por um punhado de pesquisadores e de técnicos sobre o funcionamento dos
eletrodos. A noção de tradução dá conta perfeitamente deste estabelecimento
de um tipo particular de relação que consiste em formular uma equivalência
entre séries de preocupações, tipos de atividades, categorias de enunciados
e discursos radicalmente diferentes.
Uma tradução, qualquer que ela seja, raramente se dá sem problemas. Ela
está freqüentemente sujeita à controvérsias. Aquelas propostas por Baccala
não escapam a esta regra e suscitam rapidamente vivas oposições. Muitos
cientistas, não representados no seio do comitê, estimam que seja prematuro
estudar a estrutura dos eletrodos e que, antes de se lançar ao desenvolvi-
mento das células, a prioridade deva ser dada a um problema mais funda-
mental: a elucidação dos mecanismos de eletrocatálise propriamente ditos e,
mais particularmente, a utilização da mecânica quântica para descrever e
compreender o papel exato dos catalizadores. Muito rapidamente sua argu-
mentação é descartada. Baccala consegue agregar suficientes interesses em
torno de sua tradução para impô-la sem a menor dificuldade. Durante um lon-
go período, esta equivalência não será contestada nos meios da política cien-
tífica que vão mobilizar importantes financiamentos para apoiá-la e consolidá-
la. A linha de pesquisa indiscutível é o estudo do transporte dos reagentes, a
colocação em contato do eletrodo e do eletrólito assim como a cinética das
reações e não a eletrocatálise enquanto tal, que, supõe-se, se produz de mo-
do não problemático na interface.
Quando, uma vez tomadas estas decisões, Baccala volta para Beauregard,
não é só um homem que reencontra seu laboratório. Ele se tornou um pode-
roso macro-ator que fala em nome do comitê da ação concertada do ministé-
rio da Pesquisa como também da política francesa de independência nacio-
nal. Graças às traduções impostas, ele se encontra investido de uma missão
nacional e dispõe de recursos financeiros importantes para estudar e melho-
rar o funcionamento dos eletrodos porosos que são aqueles mais corrente-
mente usados nas células de combustível.
Afim de evitar qualquer discussão, na verdade qualquer contestação, no seio
de seu laboratório, e para colocar em funcionamento a linha que foi fixada,
Baccala recruta rapidamente pesquisadores e técnicos de sua confiança e
que ele pensa que não colocariam em questão as traduções já estabelecidas.
Ele contrata primeiramente Blondelet, que foi seu aluno no CNAM, onde ele
ensina, e que ele conhecia havia muito tempo. Após completar seus estudos,
Blondelet trabalhou muitos anos no ministério da Aeronáutica num laboratório
de controle especializado em análises metalográficas ( exame de peças me-
tálicas de aviões acidentados). Blondelet, no momento em que Baccala o
chama, domina e utiliza os conhecimentos e as técnicas da metalografia. Pa-
ra ele um metal se caracteriza pela sua “estrutura”, que pode ser observada
graças à micrografia ou à radiocristalografia. As variáveis explicativas às
quais ele recorre mais freqüentemente são : “l’écrouissage” (ação de martelar
o metal à frio), o estado de grão, a ação de dar têmpera ao ferro e ao aço, as
interfases. Acompanha-o um técnico, Pelletier, especializado no trabalho e na
análise dos metais. Ambos vão constituir por muitos anos o núcleo central da
equipe célula de combustível do laboratório de Beauregard.
A solicitação endereçada a Blondelet por Baccala é clara: trata-se de estudar
o funcionamento do eletrodo poroso na célula hidrogênio/oxigênio.13 Blondelet
se põe a trabalhar. Ajudado por Pelletier ele constrói nos meses que se se-
guem uma célula experimental. Rapidamente os resultados foram julgados
deploráveis pelos próprios pesquisadores, como prova esta frase tirada de
um relatório de 1961: “Apesar dos eletrodos porosos de 150 mm de diâmetro,
os rendimentos obtidos são fracos.”
Como Blondelet e Pelletier, acuados no seu laboratório, vão explicar o seu
fracasso e relançar as suas pesquisas? Pelas orientações que eles escolhe-
ram, tudo se passa como se eles não estivessem nem prontos para abando-
nar nem decididos a se opor ao macro-ator que Baccala se tornou. Confron-
tados com uma tarefa que eles nem contestaram nem negociaram, encon-
trando-se na incapacidade de produzir os resultados esperados, eles suspei-
tam daquilo que eles têm força para suspeitar: definindo sua especialidade
técnica como o único recurso mobilizável - especialidade que limitava as pos-
síveis investigações aos aspectos estruturais do eletrodo - é bastante natu-
ralmente que eles decompõem o eletrodo poroso em seus poros, levando-o
ao que eles chamam de sua estrutura, que, segundo eles, torna problemático
o seu funcionamento.14 Acostumados a associar texturas e desempenhos,
eles se perguntam o seguinte: em que a repartição dos poros no seio da
massa metálica constituída pelo eletrodo condiciona os desempenhos deste
último? Questão que sublinha a importância do poro no funcionamento do
eletrodo e que, colocada em relação com uma interpretação elementar da ci-
nética das reações, desemboca para nossos pesquisadores nestas interroga-
ções: como organizar a disponibilidade de combustíveis e a retirada dos pro-
dutos da reação? onde se estabelecem no poro as zonas de reação? Estas
questões continuam a relegar para segundo plano o estudo dos fenômenos
catalíticos enquanto tais. Trata-se simplesmente de assegurar-se em cada
poro um triplo contato satisfatório entre o oxigênio (o combustível ), o potássio
(o eletrólito) e o suporte catalítico, sem o qual a reação eletroquímica não se
fará. O que está em questão é a estrutura do eletrodo e a sua aptidão para
favorecer o triplo contato, e não o que alguns chamam na mesma época de
mecanismos íntimos da catálise.
Para Blondelet e Pelletier, o “poro” torna-se assim, a unidade pertinente, o
módulo elementar da estrutura-eletrodo.
Para estudar os eletrodos porosos, é necessário estudar-se primeiramente
um só poro. Isto pode ser feito graças a um tubo de vidro (diâmetro de 50 a
100 microns) metalizado no interior; este dispositivo permite o estudo do
menisco 02 / potássio e suas variações15.
Ver Figura 1 (Pág. 183 no original)
Para estudar essa interface, a técnica escolhida é aquela que os metalúrgicos
conhecem bem e utilizam para detectar defeitos estruturais: os raios X.
Tinha-se o hábito de utilizar os raios X e de se virar com poucas coisas;
graças a esta técnica observou-se de modo sistemático a interface eletrólito-
gás num poro.16
O estudo do eletrodo real da célula de combustível é substituído pelo estudo
de um “eletrodo modelo monotubular”, para retomar-se a expressão utilizada
pelos próprios pesquisadores. Esta operação de redução inscreve igualmente
sua lógica na escolha dos constituintes do eletrodo monotubular. Não somen-
te os reagentes (02, KOH) são os mesmos que os freqüentemente utilizados
nas células de combustível, mas o catalisador escolhido é idêntico: a prata.
Nós escolhemos a prata como constituinte das paredes, por um lado porque
muitos catodos para células de gás são construídos com este metal e, por
outro, porque o método de metalização é aparentemente bastante sim-
ples.17
A realidade desta operação de redução é afirmada explicitamente por Blonde-
let num texto de 1962:
Os resultados obtidos permitem mostrar que se pode facilmente passar das
características do eletrodo monotubular às do eletrodo poroso, sob a condi-
ção de se conhecer a densidade dos poros e o espectro da sua repartição.18
O sistema de equivalentes ou das traduções é então o seguinte: o estudo do
eletrodo monotubular é idêntico ao do eletrodo poroso, sendo este ele próprio
idêntico ao estudo da célula de combustível. Dar à luz aos mecanismos que
governam as reações eletroquímicas do eletrodo monotubular é elucidar as
leis que regem o rendimento das células de combustível: os conhecimentos
obtidos para uma valem para a outra.
Definindo assim o novo problema de pesquisa, Blondelet e Pelletier prolon-
gam, sem as colocar em questão, as traduções anteriormente operadas por
Baccala; graças ao trabalho deles, a cadeia das equivalência se prolonga: o
destino energético da França está agora em parte nas mãos de dois pesqui-
sadores que estudam, em algum lugar nos subúrbios de Paris, um contato tri-
plo dentro de um eletrodo monotubular.
A consolidação do objeto de pesquisa: alianças de todos os gêneros
Foi assim que o eletrodo monotubular se constituiu num objeto de pesquisa.
Na sua materialidade, pelas questões que ele levanta, pelas observações às
quais ele conduz, ele dá forma ao estado de forças sociais e naturais nas
quais Blondelet está aprisionado.
Blondelet, dando continuidade à programação inicial, solidifica a autoridade
de Baccala, os objetivos da ação concertada (AC) e a política do ministério. A
natureza sobre a qual Blondelet se apoia e que ele mobiliza, os conhecimen-
tos que ele tem dela, as técnicas que ele está em condições de utilizar, as re-
lações sociais de que ele (não) dispõe, sua situação contratual estatutaria-
mente precária, não lhe permitem em momento algum transformar a solicita-
ção [colocada por Baccala], desatar as equivalências, os laços e as redes pa-
ra, por exemplo, reorientar o curso das pesquisas, ou, pura e simplesmente
largar ... o laboratório.19 Blondelet, e isto é a prova da habilidade da política
conduzida por Baccala, não pode contestar o ministério ou o diretor do labo-
ratório mais do que ele está em condições de recorrer à mecânica quântica
para dissociar os íons e fazer os elétrons girarem sobre si mesmos. Na prova,
o que se revela é que os aliados humanos ou não humanos com os quais ele
pode contar não lhe permitem considerar outra coisa a não ser a perseguição
pura e simples da tradução iniciada por Baccala.
Esta tradução e o objeto que ela constitui recebem ao longo dos meses que
se seguem, o apoio de novos reforços.
É assim que são recrutados dois novos pesquisadores (um deles é um esta-
giário americano) de formação em eletrônica. Tomando como não problemá-
tico o objeto de pesquisa (o eletrodo monotubular) construído por Blondelet,
eles propõem um estudo puramente elétrico dos mecanismos eletroquímicos
sediados no eletrodo. As disposições de Villa e Pommier, são estes os nomes
destes dois pesquisadores, fazem-nos por vocação ocupar as posições que
lhes são propostas. Jovens, e um deles estrangeiro além de estagiário, eles
se encontram na impossibilidade de reunir os recursos que lhes permitiriam
transformar redes e objetos de pesquisa. Escolhendo estudar o triplo contato
independentemente de qualquer consideração sobre a catálise, reduzindo-o a
algumas variáveis elétricas que o caracterizam, eles reforçam o eletrodo mo-
notubular e todas as suas ramificações sociais, econômicas, políticas e tecno-
científicas20 . Esta política de recrutamento vai se ampliar ao longo dos anos
seguintes e contribuir fortemente para reforçarem as pesquisas sobre o ele-
trodo monotubular e as traduções que elas concretizam.
Nos efetivos globais do laboratório, que entre 1960 e 1964 passam de 41 a
73, a relação entre o número de pesquisadores e o número de técnicos cai
brutalmente de 1 para 0,5. Uma análise detalhada dos recrutamentos e das
atribuições mostra que durante todo este período, o ritmo do crescimento
demográfico do laboratório e a natureza deste crescimento são inteiramente
imputáveis à influência crescente de Blondelet e de seu eletrodo monotubular.
A interpretação desta evolução é simples se se admite que o recrutamento
maciço de técnicos no lugar de universitários traduz a vontade estratégica de
consolidar objetos [de pesquisa] estratégicos já constituídos. O aumento de
seus efetivos fortalece sem dúvida o eletrodo monotubular como objeto de
pesquisa e reforça as escolhas iniciais operadas por Baccala.21
Uma parte importante dos recursos contribui igualmente para consolidar o ob-
jeto de pesquisa de Blondelet. A análise do financiamento do laboratório entre
1960 e 1965 mostra que Baccala, graças ao apoio embora limitado da
DGRST (auxílio de suporte exclusivamente para os equipamentos e estrita-
mente limitada às células), consegue que o CNRS crie novos cargos no seio
do laboratório: os investimentos em equipamento têm um efeito multiplicador
pois eles tornam necessário o recrutamento de pesquisadores e de técnicos
para colocá-los em funcionamento. A importância estratégica de Blondelet é
aumentada. É um pouco graças a ele que o CNRS manifesta em relação ao
laboratório uma generosidade que nunca havia demonstrado antes. Blondelet
controla financeiramente a expansão do centro. O eletrodo monotubular atrai
o dinheiro e concentra em si os financiamentos que aumentam sua solidez e
sua legitimidade.
Esta política se inscreve igualmente na organização do trabalho no interior do
laboratório. Três fatos são relevantes: a) a força crescente relativa da equipe
Blondelet; b) a designação para [as equipes] de Casto, Lavillier e Chenin (os
três pesquisadores fundamentalistas que, como veremos, irão contestar a
orientação de Blondelet) de jovens engenheiros tecnólogos explicitamente
encarregados de estabelecer um laço com as pesquisas sobre o eletrodo
monotubular; c) a ausência de qualquer estrutura formal de coordenação inte-
lectual: o laboratório é “balcanizado”, composto por uma célula gigante (a de
Blondelet) e de uma miríade de pequenas células adjacentes. Esta situação é
agravada pelos remanejamentos que intervêm entre 1960 e 1965: a equipe à
qual Villa e Pommier estavam ligados se funde com a de Blondelet, enquanto
os engenheiros a serviço de Casto, Lavillier e Chenin deixam o laboratório ou
se juntam a Blondelet.
A estratégia de publicação contribui da mesma maneira para fortalecer o lu-
gar e a importância crescente das pesquisas sobre as células. Entre 1960 e
1964, os artigos tratam na sua maioria de células de combustível para dar
conta do trabalho de Blondelet e de sua equipe. Eles aparecem em revistas
de orientação acadêmica, francesas e estrangeiras (resumos da Academia
das ciências, Eletrochimica Acta, Journal of the Electrochemical Society ... ).
Estas publicações são em geral assinadas em conjunto por alguns pesquisa-
dores cuja identidade varia pouco. Em 1964, ano em que as publicações são
mais numerosas, quatro quintos dos artigos produzidos pelo laboratório no
seu todo se referem às células de combustível e são co-assinados por Bacca-
la, Blondelet, Villa e Pommier. Isto é suficiente para dizer o quanto a atividade
literária do laboratório está publicamente centrada no eletrodo monotubular e
na atividade de seu diretor que se torna aos olhos do maior número de pes-
soas a principal orientação da pesquisa de Beauregard.
Atores-redes e laboratórios
O eletrodo monotubular poderia ser descrito como um objeto de pesquisa ca-
racterizado por suas propriedades científicas e técnicas, e considerado como
o suporte de fatos observáveis. Uma tal descrição seria correta mas insufici-
ente. O eletrodo se encontra no cruzamento de diversas redes heterogêneas
que ele tem por função enlaçar umas às outras. Redes que ligam o ministério
e seu comitê a instrumentos, a disciplinas, a pesquisadores, a créditos, mas
igualmente a tensões e a intensidades. O eletrodo monotubular, ao associar
estas diferentes entidades, faz o futuro energético da França depender do
comportamento de um íon sobre a superfície da prata. O eletrodo não é so-
mente uma realidade científica e técnica; ele não é somente uma peça chave
num programa político; ele é os dois ao mesmo tempo. É uma realidade com-
posta. Ele constitui ele próprio, totalmente só, uma rede sociotécnica. Para
fazer aparecer sua natureza híbrida assim como sua extensão, foi suficiente
seguir o processo de sua construção, isto é, o recrutamento de todos os alia-
dos humanos e não-humanos que tiveram que ser mobilizados para lhe dar
ao mesmo tempo sua forma e sua robustez. As redes, das quais o eletrodo
monotubular é ao mesmo tempo o elemento e a materialização, são dupla-
mente heterogêneas: primeiro porque elas reúnem elementos de natureza ra-
dicalmente diferentes (um órgão governamental, elétrons...), mas igualmente
porque as relações que unem tais elementos são de uma grande diversidade
(relações de autoridade, de troca, relações químicas, elétricas...).
Descrever o eletrodo como um ponto numa multiplicidade de redes heterogê-
neas que ele mobiliza e mantém juntas e que em retorno lhe dão sua coerên-
cia e sua solidez, e não como um simples objeto de fronteiras bem demarca-
das, conduz a propor a noção de ator-rede que permite ultrapassar a oposi-
ção comum entre conteúdos científico-técnicos e contextos sociais, ao mes-
mo tempo dando conta de suas constituições e de suas interações. No caso
que nos ocupa, o ator-rede junta todos os elementos, humanos ou não-
humanos, que foram recrutados em um momento ou noutro da construção do
eletrodo monotubular e que são associados a ele. Encontramos, entre outros:
o DGRST, um comitê de ação concertada (AC), um laboratório próprio do
CNRS, elétrons, contatos triplos, técnicos de situação estatutária precária, o
CNAM, ... Se recorremos a uma noção nova, a do ator-rede, para descrever
esta configuração particular, este complexo sociotécnico, é para designar o
conjunto heterogêneo dos elementos recrutados e suas interações, mas é
igualmente para sublinhar a capacidade dinâmica deste conjunto que se
transforma e evolui sob a força dos elementos que o constituem.
Esta dupla dimensão do ator-rede se deve à natureza da atividade dos ele-
mentos que ele associa. Cada um destes actantes, se tomarmos da semiótica
esta noção para designar as entidades humanas ou não humanas agindo
dentro de uma rede, se caracteriza pela maneira particular pela qual ele defi-
ne os outros actantes aos quais ele se liga e os quais ele liga entre si. Bacca-
la, levado por estas operações de tradução, se esforça por associar seu labo-
ratório à política científica da França, para estabelecer uma relação imprová-
vel entre o eletrodo monotubular e a conversão de energias, e, para atingir
este resultado, recruta toda uma gama de aliados heterogêneos. Blondelet
investiga o triplo contato e reforça as associações propostas por Baccala. Os
próprios elétrons, saltando do eletrólito para o eletrodo ou, ao contrário, per-
dendo-se no caminho, contribuem para o sucesso, ou para o fracasso, das
ligações postuladas. E como esquecer os catalizadores que em se envene-
nando agem em sentido contrário, desatando o que Blondelet e Baccala pro-
curam com fervor atar? Uma tal descrição, que restabelece a totalidade dos
elementos associados e reconstitui a construção de suas interações, não cap-
tura contudo mais do que uma parte da dinâmica do ator-rede. Com efeito, a
identidade dos actantes que o compõem não está fixada de uma vez por to-
das: é um compromisso que resulta do entrecruzamento das definições que
cada um dentre eles propõe para todos os outros. Baccala faz do comitê de
ação concertada, que nada predispunha a priori a desempenhar este papel,
uma possante máquina de guerra a favor das células de combustível, organi-
za o apoio do CNRS à eletroquímica, transforma a célula de combustível em
eletrodo monotubular que se torna a razão de ser de uma tropa de técnicos e
de pesquisadores. Mas, em contrapartida, a própria estratégia dos pesquisa-
dores assim como o comportamento do eletrodo monotubular vão acabar por
“ressoar pela proximidade*” sobre os projetos de Blondelet, de Baccala, modi-
ficando-os, e depois, enfim, sobre as orientações políticas da DGRST: se os
catalizadores se envenenam obstinadamente, se a camada dupla se deses-
tabiliza, se os cientistas transformam a catálise em realidade problemática,
então é a política da DGRST, seu papel e em particular sua determinação de
apoiar o desenvolvimento das células de combustível e, mais amplamente, de
promover novas formas de conversão de energia, que correm o risco de se-
rem questionadas.
Para dar conta desta estranha entidade coletiva, cujo futuro é ao mesmo
tempo compartilhado e decidido por uma série de actantes heterogêneos que
se entre-definem, as noções tradicionais de redes ou de atores são insuficien-
tes. Este é o porquê de introduzirmos a noção de ator-rede para descrever
estas múltiplas interações heterogêneas entre actantes eles próprios hetero-
gêneos que se esforçam permanentemente para consolidar ou para transfor-
mar ao mesmo tempo sua própria identidade, a identidade de outros actantes
e a natureza das relações que os une. O ator-rede forma um conjunto com-
pósito, cuja constituição (repertório de actantes e de suas relações) está su-
jeita a flutuação e cuja extensão evolui, que é móvel em certos lugares e que
se endurece em outros. É ele que permite seguir a evolução conjunta dos
contextos e dos conteúdos, assim como sua adaptação permanente. A figura
2 sintetiza tudo o que foi associado, no caso estudado, para definir e autono-
mizar um objeto de pesquisa, para o ligar neste mesmo movimento a um inte-
resse-risco** nacional, e para lhe assegurar a estabilidade necessária ao seu
estudo sistemático.
Ver Figura 2 (Pág. 193 no original)
É à gestão e à consolidação destas múltiplas associações que são devotados
os laboratórios. Estes, como mostra o caso presente, desempenham três pa-
peis distintos na organização e na dinâmica dos atores-redes das quais eles
são protagonistas. Primeiro, eles permitem concentrar e colocar em relação,
num lugar preciso, os recursos heterogêneos (ou actantes) que têm que ser
mobilizados para construir e fazer funcionar o ator-rede: recrutamento de
pesquisadores e de técnicos, obtenção de contratos, compra e instalação de
equipamentos e de instrumentos de análise, vínculos com as diferentes co-
munidades científicas, assim como com a DGRST e a direção do CNRS... O
segundo papel do laboratório é favorecer a aparição de porta-vozes legítimos,
isto é, não questionados, que asseguram o vínculo entre o interior e o exteri-
or, entre o trabalho de pesquisa e todos os atores mobilizados. É assim que
Baccala se ergue, no mundo político, como porta-voz único e não questiona-
do das células de combustível e dos pesquisadores que as estudam, ao
mesmo tempo que ele se impõe, junto aos cientistas trabalhando com o ele-
trodo, como porta-voz da DGRST, dos industriais e mesmo da eletroquímica
no seu conjunto. O laboratório, enquanto forma de organização que assegura
a legitimidade de porta-voz que domina as operações de tradução, liga deste
modo as entidades heterogêneas, mas de forma simples, inteligível e não
controvertida. Enfim, simplificando as relações complexas entre o objeto de
pesquisa e suas redes sóciopolíticas, o laboratório, para se manter, tem que
se transformar, e é seu terceiro papel, em ponto de passagem obrigatório:
não somente ele é um ponto, mas um ponto pelo qual a passagem é indis-
pensável. Por fim, não há outras questões, para todos aqueles que buscam a
independência energética da França, a não ser apoiar Beauregard sem dis-
cussão. Ao invés de ter diante dela a diversidade infinita da comunidade cien-
tífica, a DGRST sabe que um dos aliados sobre os quais ela pode se apoiar
para mobilizar a pesquisa de base é este particular laboratório, que se torna
uma entidade simples, uma caixa-preta cuidada por seu diretor, que exprime
todas as potencialidades e todos os projetos, com a qual nós podemos contar
sem ter que entrar no conteúdo de suas atividades.
Assim novamente mergulhado nos atores-redes que ele contribui para gerir e
animar, o laboratório aparece como um dispositivo essencial para separar e
colocar em relação permanente os conteúdos e os contextos. E por isso a
transformação dos objetos de pesquisa, que passa necessariamente por uma
transformação, e até uma multiplicação, dos atores-redes dentro dos quais
age o laboratório, chega algumas vezes a colocar em questão a própria exis-
tência deste último. É esta aventura que vai viver o laboratório de Beauregard
e que nós vamos agora brevemente apresentar sem entrar no detalhe dos
problemas de pesquisa, mas insistindo sobre sua transformação e sobre
aquela simultaneidade das alianças que eles estabelecem.
A gestação de um ator-rede: novos problemas e novas alianças
Em 1965 o laboratório de Beauregard consagra uma grande parte de seus
recursos e de suas atividades a estabelecer e consolidar a tradução que liga
a conversão de energias ao eletrodo monotubular. Nós observamos a impor-
tância crescente desta direção de pesquisa em termos de efetivos (de pesso-
al), de publicações, de créditos, de investimentos técnicos... Contudo o labo-
ratório não saberia reduzir-se totalmente ao eletrodo monotubular. A história
que ele herda o conduz a selecionar outros temas e a construir outros objetos
de pesquisa. Estes vão progressivamente se consolidando e contestando o
monopólio do eletrodo monotubular, ainda que se ligando a ele, para chegar a
uma situação em que o próprio laboratório não será capaz de gerir atores-
redes tão diferentes, até mesmo antagônicos.
Antes mesmo de ser dada a partida da “ação concertada”, um jovem pesqui-
sador do laboratório, Casto, se viu encarregado por Baccala de desenvolver
um novo método de estudo da cinética das reações na interface eletro-
do/eletrólito. Esta direção corresponde então perfeitamente às grandes orien-
tações estratégicas do diretor do laboratório que pretende multiplicar os mei-
os de investigar a cinética das reações eletroquímicas. Casto se exila na
Alemanha por alguns meses, em um laboratório de boa reputação, de onde
ele retorna trazendo em sua bagagem o método dito da impulsão galvano-
estática dupla. Com sua formação universitária de químico, sua condição de
pesquisador titular do CNRS, que lhe confere autonomia e segurança de em-
prego, este método vai constituir o essencial dos seus recursos. Já então tu-
do o distingue de Blondelet, metalurgista, adepto dos raios X e de condição
de emprego incerto.
Em que consiste o método? Ele visa capturar as reações, e principalmente as
velocidades das reações, uma vez estabelecido o equilíbrio elétrico que acon-
tece algumas frações de segundo após a imersão do eletrodo e de seu catali-
zador no eletrólito, isto é, uma vez carregada a camada dupla.
Este método permite a eliminação dos fenômenos que podem mascarar
parcialmente ou mesmo completamente a reação eletroquímica.
Casto recita sua lição. Ele aprendeu que o eletrodo é a sede de vários fenô-
menos: a) a carga da camada dupla; b) a reação de óxido-redução propria-
mente dita; c) a difusão dos reagentes. O método da impulsão dupla, que é a
partir de então seu método, permite isolar e estudar a reação de óxido-
redução. Confrontado com a solicitação de Baccala (estudo da cinética), mo-
bilizando os únicos recursos que ele pode mobilizar, Casto conduz experiên-
cias que visam capturar em sua pureza a reação eletroquímica propriamente
dita. A construção de Baccala, estabilizada por Blondelet sob a forma do ele-
trodo monotubular, não foi ainda abalada; ela foi simplesmente prolongada.
Mas, nas mãos de Casto, o método da impulsão dupla vai se transformar em
uma temível máquina de guerra. Vê-se rapidamente que a reação eletroquí-
mica pode ser capturada de mil maneiras diferentes, mas nunca em toda a
sua “pureza”. Uma pura reação de óxido-redução, isto não existe! Como pro-
va [estão] estes resultados que se lê nos mostradores dos instrumentos, e
que variam de uma experiência para outra, dependendo, segundo Casto, do
estado de superfície da platina, da qualidade do hidrogênio, da preparação do
eletrodo. Casto controla todos os parâmetros, posiciona todas as variáveis
que perturbam os resultados e nota, desabusado, que “mesmo a natureza da
atmosfera e a temperatura do recozimento trazem modificações importantes
no valor da corrente de troca e do processo de descarga”. O eletrodo mono-
tubular, definido simplesmente por seus componentes e sua estrutura, explo-
de e se desloca. A questão é só de estado de superfície, de pureza de rea-
gentes, de preparação do eletrodo. Dito de outra forma, para Casto, o eletro-
do monotubular não é uma unidade pertinente: o que conta é a maneira de
preparar as paredes, a maneira em que os reagentes se estabelecem. Não é
mais a distribuição do catalizador e dos poros assim como sua acessibilidade
que são importantes, mas simplesmente o estado do catalizador e o compor-
tamento dos átomos de hidrogênio sobre esta superfície. A estabilização ten-
tada por Blondelet não resiste ao método da impulsão dupla e ao uso que
Casto faz dele. Tornando incomparáveis dois eletrodos monotubulares, Casto
ataca implicitamente o ator-rede do qual Blondelet e Baccala são os obreiros
principais.
Diante de um ator-rede tão poderoso, uma experiência e alguns resultados
não bastam para parar ou reorientar as direções de pesquisa a que ele con-
duz. Imaginar que nós possamos reduzir a falsificação [invalidação] à sua di-
mensão cognitiva somente é esquecer todos os investimentos que permitiram
dar autonomia a ela [à dimensão cognitiva], e que precisam ser reconsidera-
dos para transformar a construção dos objetos de pesquisa e a formulação
dos problemas. A única saída para Casto é se lançar na edificação de um no-
vo ator-rede portador de problemas de pesquisa que sejam os seus e que se-
ja suficientemente robusto para os impor aos atores-redes existentes: ele está
condenado a se expandir.
Sua primeira iniciativa o conduz a estabelecer, no próprio seio do laboratório,
alianças visando crescer a suspeita legítima da qual o eletrodo monotubular
se torna pouco a pouco o objeto. Dois outros pesquisadores, Lavillier e Che-
nin, o apoiam sem tardar. A aventura deles se parece com a de Casto ponto a
ponto: mesma formação, mesma condição (de emprego), mesma idade,
mesma identificação com um método de análise. Para Chenin, é a micro-
termometria. Para Lavillier, a quem Baccala havia solicitado estudar a cama-
da dupla, é uma técnica de enumeração dos íons absorvidos. Os resultados
que eles obtêm são tão erráticos quanto os de Casto. Aplicados ao eletrodo
monotubular, seus instrumentos teóricos e técnicos não produzem nenhuma
ordem, nenhuma regularidade. Na língua de Lavillier e de Chenin, assim co-
mo na de Casto, os fenômenos falam contra Blondelet: a absorção e sua me-
dida não conduzem a nenhum resultado estável, as capacidades de camada
dupla se modificam de um eletrodo para outro e os coeficientes da lei de Tafel
(que liga intensidade e tensão) dependem das condições da experiência.
Além do mais, estes diferentes pesquisadores se esforçam para recrutar alia-
dos exteriores e se lançam em operações de tradução que lhes permitam es-
tender suas redes para fora do laboratório. O exemplo de Lavillier é particu-
larmente demonstrativo. Ele dá as costas para todas as equivalências que
conduzem da interface eletrodo/eletrólito à política nacional de conversão de
energias passando pelos eletrodos porosos ou monotubulares e pelas célu-
las. Ele se volta para a disciplina prestigiosa que é a física dos sólidos, espe-
cialmente na França, afirmando primeiramente que o estudo da “camada du-
pla” (que regula a cinética das reações e o funcionamento do eletrodo) passa
pela análise da absorção de um átomo de hidrogênio sobre uma estrutura
metálica, observando, num segundo momento, que este problema é o prolon-
gamento natural das questões colocadas pelos físicos dos sólidos. Com efeito
estes dispõem de uma teoria do hidrogênio no interior do metal, mas eles en-
frentam dificuldades ao passar para a situação limite, a fim de dar conta do
comportamento do átomo na superfície. Segundo Lavillier este problema não
pode deixar de interessar aos físicos dos sólidos por pelo menos duas ra-
zões. Por um lado, ele representa uma extensão possível de suas teorias; por
outro lado, uma colaboração com os eletroquímicos não deveria ser coisa que
os aborrecesse, pois, aumentando o campo das técnicas de análise disponí-
veis, ela permitiria resolver certas dificuldades experimentais encontradas por
aqueles que se esforçavam por criar uma física das superfícies. Realizando o
ajuste de um conceito clássico da física dos sólidos — o de nível de energia
— com o seu conceito de “potencial de eletrodo de referência”, os eletroquí-
micos tendem a amarrar uma à outra duas profissões que tudo separava. De-
finindo problemas comuns com os físicos dos sólidos, Lavillier esforça-se em
arrolar uma disciplina prestigiosa que vem acrescer sua “credibilidade”. Ele
estabelece numerosas ligações com o estrangeiro, recebe pesquisadores so-
viéticos e americanos, participa da organização de escolas de verão onde ele
desenvolve e apresenta sua problemática. Sua reputação junto aos físicos
dos sólidos cresce. Enquanto Blondelet é ainda um pesquisador local cujos
principais aliados estão situados fora da comunidade científica, ele, Lavillier,
teceu as primeiras malhas de uma rede que o liga a uma comunidade nacio-
nal e internacional organizada e prestigiosa.
Esta nova relação de forças dentro do laboratório se concretiza na criação de
um grupo informal, denominado G1, do qual Lavillier lança a idéia em 1966 e
que vai rapidamente se transformar em máquina de guerra contra o ator-rede
Baccala. Este grupo de trabalho, que considera como vantajosa a instabilida-
de do eletrodo monotubular, reúne todos os “dissidentes”. Os três pesquisa-
dores mencionados acima pertencem a este grupo, no qual entra Lary que é
pesquisador na equipe de Blondelet. Lary é politécnico*. Sua formação, suas
referências o prendem à física do sólido teórica, aquela que é desenvolvida
na França por J. Friedel e seus alunos. Ele acha interessantes e importantes
os problemas que lhe são propostos, mas manifesta rapidamente sua oposi-
ção às estratégias escolhidas por Blondelet. Ele toma assim o caminho aberto
por Lavillier, Casto e Chenin. Ele também investe todos os seus esforços em
uma técnica, a RPE, que lhe permite seguir as trocas eletrônicas na interface.
O grupo G1 se torna rapidamente um lugar de reflexão onde uma pessoa se
familiariza com a mecânica quântica, com os elétrons que giram em torno de
si mesmos e com a sensibilidade das reações químicas aos estados de spin.
Simultaneamente, vários engenheiros trabalhando ao lado destes pesquisa-
dores são substituídos na equipe de Blondelet, com a qual eles eram supos-
tos manter relações de coordenação (cf. supra). Os territórios e as fronteiras
começam a se desenhar.
O reposicionamento estratégico de Blondelet: redefinição de problemas e de aliados
O eletrodo monotubular, assim como o ator-rede que lhe dá forma e consis-
tência, vacila sob as investidas de Lavillier e de seus aliados. Não são os úni-
cos ataques que ele sofre. Como vimos, o ator-rede Baccala faz o desenvol-
vimento industrial das células de combustível depender estreitamente dos es-
tudos do eletrodo monotubular. Esta estratégia só faz sentido na condição de
associar os industriais ao empreendimento. Ora, até 1967, a indústria eletro-
química francesa se mostra pouco interessada numa colaboração com a uni-
versidade. A conclusão se impõe: para manter o ator-rede e suprir os indus-
triais, é necessário fazer funcionar uma célula de combustível experimental e
mostrar a validade das equivalências postuladas. Blondelet mobiliza toda a
sua equipe. É 1964. As dificuldades aparecem rapidamente e, segundo o tes-
temunho do próprio Blondelet e de seus colegas, elas são consideráveis: “Os
catodos tem uma configuração mecânica ruim; os anodos perdem rapidamen-
te toda a atividade, esta fraqueza sendo atribuída a um ‘envenenamento’ do
catalizador.” Com o catalizador são igualmente “envenenadas” as operações
de tradução. Aquilo que Blondelet e Baccala haviam ligado se desfaz sem
que seja possível tapar os buracos. Casto e Lavillier não são os únicos vene-
nos nem os mais perniciosos; os que paralisam a catálise e os elétrons, da
maneira que eles são colocados na experiência, contribuem igualmente para
colocar em questão o objeto de pesquisa e seus desdobramentos industriais.
Preso por este torniquete, o ator-rede eletrodo monotubular vai se redefinir
negociando suas relações com a indústria e com Lavillier, estabelecendo du-
as frentes entre as quais ele vai estabilizar seu campo de pesquisa.
Quando um aliado com o qual se conta — neste caso a indústria — falha, é
preciso imaginar uma estratégia que o torne menos indispensável. Foi o que
fez Blondelet introduzindo gradativamente uma separação nítida entre as ati-
vidades de pesquisa que ele conduz e as operações de desenvolvimento que
ele deixa para os industriais. A tradução postulada não é, ele sublinha, uma
redução pura e simples. As equivalências, em nome do arbitrário que as ca-
racteriza, têm como principal propriedade a de poder ser denunciadas inclusi-
ve por aqueles que as postularam.
Nós trabalhamos com um eletrodo pequeno. Damos todas as característi-
cas, parâmetros importantes, condições ótimas. Nós damos os resultados
aos industriais que se viram para fazer um eletrodo tamanho natural.
Garantido assim na frente que ele define como tecnológica (não se poderá
mais censurá-lo por suas escolhas de pesquisa sob o pretexto de que elas
não são diretamente eficazes no plano industrial), Blondelet se dedica a se
proteger no seu outro flanco. Ele manda para lá Pelletier, seu colaborador fiel.
A missão que ele lhe confia é clara: reduzir o mais rapidamente, e por todos
os meios possíveis aí incluída a teoria, as instabilidades e as irregularidades
das quais Lavillier e seus aliados se fizeram os porta-vozes. Pelletier se dedi-
ca à missão tirando do estoque de teorias disponíveis aquela que ele é capaz
de dominar e que lhe permitirá abrir um interminável desvio do lado da física
do sólido. A escolha se impõe bastante rapidamente a ele: “A teoria dos orbi-
tais, correntemente utilizada pelos metalurgistas, é um método concreto que
permite previsões.” Ele opõe assim a eficácia a curto prazo desta teoria às
promessas talvez mais excitantes, mas que ele estima menos diretamente
rentáveis, da teoria dita dos “efeitos de tela” desenvolvida pelos físicos do só-
lido e mantida por Lavillier e seus colegas no próprio seio do laboratório de
Beauregard. A operação de estabilização assim realizada é tanto mais hábil
quanto ela organiza vias de passagem: sobre certos pontos, por exemplo, o
problema da absorção, as teorias podem, segundo a opinião do próprio Lavil-
lier, se completar: “Agora as questões estão colocadas e mais ainda, bem co-
locadas. Cabe a nós elaborar as teorias que respondam a elas.”
Para conduzir esta dupla reorientação a bom termo, Blondelet conta sempre
com o apoio de Baccala. Este utiliza seu crédito no seio do comitê da ação
concertada (AC) para obter a recondução de importantes financiamentos fa-
voráveis às pesquisas sobre as células de combustível. Entre 1964 e 1972,
80% dos artigos co-assinados pelo diretor do laboratório são artigos saídos
da equipe células de combustível. Além do que, os efetivos desta equipe são
mantidos no mesmo nível e a importância relativa do número de técnicos não
é modificada.
Blondelet não seria capaz de se contentar com esta transformação-
consolidação local de seu objeto de pesquisa. Ele tem diante de si um ator-
rede que se estende cada vez mais longe no exterior do laboratório, se apoi-
ando sobre disciplinas inteiras, seus laboratórios e suas autoridades prestigi-
osas. É certo, por intermédio de Baccala, ele dispõe ainda do apoio de uma
agência governamental, mas este aliado poderoso não tardará a tomar cons-
ciência da re-orientação do programa de Beauregard e a reduzir os créditos
que concede. Então o que Blondelet perde de um lado (o apoio da DGRST),
ele vai poder recuperar se abrindo para novas alianças. Esta abertura será a
conseqüência indireta do reposicionamento estratégico de Blondelet cujos
problemas de pesquisa se situam a partir deste ponto em algum lugar entre o
desenvolvimento industrial e a física fundamental. Nesta reconstituição de
novas alianças, o acontecimento decisivo é o apoio fornecido por EDF que vê
numerosas vantagens na estratégia desenvolvida por Blondelet: constituição
de um saber teórico diretamente assimilável pelos industriais para produzir
baterias mais atraentes que aumentarão o consumo de eletricidade; bom ob-
servatório para acompanhar o progresso dos fundamentalistas e julgar o rea-
lismo dos projetos consagrados às células de combustível; forte competência
em certos campos eletroquímicos que interessam diretamente a EDF (esto-
cagem de energia elétrica). Apoiado e reconhecido, se beneficiando da estra-
tégia da EDF que faz de tudo para devolver o vigor à indústria eletroquímica,
Blondelet se torna um interlocutor privilegiado. Ele obtém muito rapidamente
que lhe confiem alguns postos chaves: participação na comissão DGRST de
especialistas em geradores eletroquímicos, participação no comitê “Economia
do hidrogênio”, presidente da comissão de reflexão do CNRS sobre energia,
participação no comitê ATP sobre eletroquímica. Em todas estas comissões
ele reencontra representantes da EDF. É assim que o novo ator-rede-
Blondelet se estende e desenvolve pseudópodos em todas as direções, con-
solidando ao mesmo tempo seus problemas de pesquisa, suas escolhas teó-
ricas e experimentais e as novas alianças que permitem que ele os imponha.
Os atores-redes estão em posição e atingiram sua maturidade: objetos de
pesquisa, recursos financeiros, teorias, alianças, pesquisadores formam con-
juntos coerentes indissociáveis. De um lado o ator-rede Blondelet-Baccala, de
outro, aquele que agrupa os “teóricos”; entre os dois, frágeis passarelas. O
confronto de onde resultará a morte do laboratório se torna pouco a pouco
inelutável entre estas duas forças que procuram cada uma acrescer seus re-
cursos, estender sua influência ou, em outros termos, consolidar os fatos ci-
entíficos que eles produzem e os contextos que os utilizam.
O confronto
O confronto se enceta em torno de um interesse-risco comum, que é o da de-
finição, do futuro e daquilo que alguns chamariam da institucionalização da
eletroquímica.
Tanto para um como para o outro ator-rede, o interesse-risco disciplinar é
com efeito considerável. Isto é claro para Blondelet que, pelo seu reposicio-
namento estratégico, se afastou das aplicações industriais imediatas, mas
também para Casto e os outros que têm que marcar suas diferenças das dis-
ciplinas prestigiosas que eles ladeiam mas com as quais eles não desejam se
fundir. Todos estão à procura de apoios institucionais que lhes assegurem um
reconhecimento oficial assim como os recursos materiais ou humanos neces-
sários a sua sobrevivência ou a sua expansão. Num movimento conjunto eles
delimitaram um novo território entre a indústria e disciplinas fundamentais so-
lidamente estabelecidas. Mas a reformulação dos problemas de pesquisa, tal
como ela é operacionalizada no campo fechado de Beauregard, tem como
principal conseqüência recolocar em questão alianças institucionais anterio-
res. A DGRST não está pronta para sustentar um empreendimento que se
distancie muito das missões que lhe são atribuídas. Conseguir o apoio durá-
vel de organizações que ocupem o espaço abandonado pela DGRST e que
estejam prontas para um engajamento de longo prazo se torna então prioritá-
rio. O CNRS é um bom candidato. Os pesquisadores de Beauregard vão se
dedicar a transformar o desinteresse inicial do CNRS (desinteresse que havia
deixado o campo livre para a DGRST) em interesse ativo. Mas se os protago-
nistas estão de acordo quanto a obter este apoio, eles não são movidos pelos
mesmos projetos. Blondelet e Casto militam igualmente pela restauração e
pelo reconhecimento da eletroquímica no seio da instituição científica oficial,
mas não é a mesma eletroquímica que eles defendem. Uns lhe dão uma defi-
nição aplicada e a apoiam sobre recursos teóricos assegurados; outros a vê-
em como uma disciplina fundamental onde serão obtidos conhecimentos de-
cisivos sobre questões tão novas e estratégicas quanto a físico-química de
superfícies. Quem vai ganhar? O desfecho do conflito dependerá, bem en-
tendido, dos aliados que cada um será capaz de mobilizar ao redor de suas
orientações de pesquisa, quer dizer, de sua capacidade de interessar atores
poderosos.
O acontecimento decisivo se dá em 1978. A batalha ardia fazia alguns me-
ses. Sua intensidade culmina no momento da nomeação de um conselheiro
para eletroquímica junto a direção do CNRS. A escolha resulta de lutas. Ela é
essencial porque ela reforça incontestavelmente o prestígio da eletroquímica
(que dispõe a partir daí de um porta-voz junto a um membro influente do
CNRS) e sela seu reconhecimento institucional. A disciplina existe enquanto
tal no seio do CNRS que marca assim sua vontade de sustentá-la. Mas esta
nomeação coloca claramente em desvantagem uma das duas tendências
presentes. Ela traduz a vontade da direção geral do CNRS de privilegiar os
eixos de pesquisa que permitam reforçar as cooperações julgadas muito ra-
ras entre pesquisadores do CNRS e o setor industrial. Blondelet é o grande
ganhador da operação. O responsável científico da EDF que é nomeado para
este cargo desde muito tempo colaborou com ele e sustenta sem reservas
suas orientações de pesquisa e seus objetos de estudo. A aliança feita com o
CNRS não é o apoio acordado por uma instituição a uma disciplina, mas por
uma direção geral a um ator-rede que definiu de uma maneira singular o que
são a disciplina e suas orientações.
Lavillier não demora a sofrer as consequências disso:
Lancei a idéia de uma escola de verão. Solicitamos ao CNRS que financias-
se. O diretor científico, depois de consultar seu conselheiro para eletroquí-
mica, disse: prove-nos que isto interessa aos industriais.
Este apoio firme à rede de Blondelet se revela tanto mais eficaz porque este
conselheiro é nomeado no mesmo momento presidente do comitê da ATP do
CNRS intitulado: Energia e Eletroquímica. A isto convém acrescentar a alian-
ça que Blondelet faz com os eletroquímicos organicistas que, se interessando
pouco pela interface e mais pelo eletrólito, estão prontos para resistir à colo-
nização do eletroquímica pelos físicos. Este apoio é tanto mais precioso por-
que, no seio do CNRS, a eletroquímica está ligada ao departamento de quí-
mica.
De um lado, Blondelet e sua rede “francesa”, cujas ramificações penetram a
indústria, as agências governamentais, as empresas públicas, as instituições
científicas. Do outro, Lavillier e sua rede internacional implantada nas univer-
sidades, atravessando especialidades prestigiosas e se aliando a elas. Cada
um destes atores-redes definiu e posicionou seus objetos de pesquisa tor-
nando-os solidários a todas as alianças feitas para os consolidar. Entre os
dois, pontos de encontro, relações de troca, lutas pela definição dos proble-
mas mas também pelo controle de recursos e de posições, pela colocação
hierárquica. O laboratório transborda de todos os lados. As oposições inter-
nas ao laboratório correm ao longo das redes. Elas são apanhadas mais adi-
ante por outros atores que as amplificam. Os choques, sobretudo quando por-
tadores dos aspectos mais estritamente científicos, colocam em briga a EDF,
o CNRS, empresas e comunidades científicas inteiras.
O laboratório impossível
No começo dos anos 1980 a existência de Beauregard se torna cada vez
mais problemática. A dinâmica do confronto entre os atores-redes fêz explodir
o laboratório que não é mais capaz de desempenhar os três papeis antes as-
sinalados:
a) Baccala progressivamente perdeu a capacidade de concentrar e mobilizar
os recursos necessários às pesquisas em curso. Ele está situado dentro de
redes que se rasgam ou, pior, que se tornam inúteis, em relação aos novos
objetos de pesquisa de seu laboratório. Blondelet precisa do apoio ativo dos
industriais para obter os contratos e financiar suas pesquisas, do apoio do
CNRS para recrutamento de pessoal e para os equipamentos: construindo
sua própria rede ele soube se colocar em posição de reunir todos estes re-
cursos. Quanto a Casto e os seus, a situação é um pouco menos brilhante:
Baccala lhes é inútil, mas eles só receberam encorajamentos limitados do
CNRS e não podem contar com as empresas; eles já sonham ir para a Uni-
versidade ou se juntar a outros laboratórios melhor colocados.
b) O laboratório não dispõe mais de um porta-voz (seu diretor) mas de diver-
sos porta-vozes que estão longe de falar em uníssono. Beauregard é uma
justaposição de subconjuntos entre os quais nenhuma mobilização comum é
possível. Externamente, Blondelet fala por uma facção que ele representa, tal
como o faz Casto, e não por um conjunto cuja existência não é mais reconhe-
cida por ninguém. Internamente, o peso que lhe é conferido pela EDF e pelos
industriais, e que faz dele um porta-voz poderoso, não excede contudo as
fronteiras de sua equipe.
c) Beauregard se tornou progressivamente o campo fechado de lutas ferozes.
Isto porque sendo Baccala incapaz de tornar o seu laboratório indispensável
nas redes que são as suas, ele também não é capaz de ser indispensável a
seus pesquisadores: ele está à frente de tropas que vão em direções diferen-
tes daquelas que conduzem às alianças que ele pacientemente preparou. Ele
se torna pouco a pouco um ponto de passagem não-obrigatório: as redes são
desfeitas; mercados e produtos, ofertas e demandas são desconectadas.
Baccala se vê no entre-lugar, intermediário sem comanditários, tradutor sem
público. Quem quer passar por Beauregard para fazer avançar seus projetos
(industriais ou cientistas) arrisca se perder lá, envolvido pelos confrontos que
paralisam o laboratório. A caixa preta se abriu bruscamente. O laboratório
não é mais do que ruído, furor e discórdia: os problemas correm a todo tempo
o risco de aí serem enterrados, amortalhados nos conflitos. Não é mais um
lugar pelo qual se passe com os olhos fechados, mas um lugar a ser evitado.
Por todas estas razões o laboratório se tornou um obstáculo ao bom funcio-
namento e ao desenvolvimento dos atores-redes que ele abriga.
A crise se instala abertamente quando Baccala se aposenta. Nenhum suces-
sor se apresenta porque ninguém é capaz de reunir o que está desagregado,
de propor e de impor perspectivas teóricas, de redefinir disciplinas inteiras, de
conter e de juntar estas forças cujas ramificações mergulham longe nas insti-
tuições científicas, na administração ou nas empresas. O laboratório se tor-
nou um quadro organizacional vazio, uma forma sem matéria. Os atores-
redes que ele abriga produziram suas próprias regras, seus próprios recur-
sos, suas próprias relações, suas próprias trocas, seus próprios problemas;
eles dominam a circulação dos conhecimentos que eles produzem. Beaure-
gard, suas paredes, seus corredores que comunicam suas salas umas às ou-
tras, suas escadas que interligam os andares dos teóricos àqueles dos pes-
quisadores aplicados, tornam-se um espartilho insuportável que paralisa o
funcionamento dos atores-redes ao invés de consolidá-los. Blondelet saí com
armas e bagagem para se instalar em outro lugar e recriar um laboratório.
Afastando-se, ele fecha um capítulo importante da história movimentada do
laboratório.
Comentários finais
Tentamos mostrar neste estudo que a construção dos objetos de pesquisa, a
produção dos conhecimentos assim como a criação dos mercados nos quais
eles circulam são indissociáveis do conjunto das estratégias pelas quais os
atores-redes se edificam, se estendem ou se retraem. Autonomizar saberes,
ligá-los uns aos outros, definir problemas, escolher técnicas experimentais,
recrutar técnicos, obter diplomas, co-assinar um artigo, financiar pesquisado-
res, fazer contratos, controlar uma comissão, tais são algumas das numero-
sas operações que se entrelaçam permanentemente para assegurar o funci-
onamento dos atores-redes.
A construção dos fatos científicos é inseparável da construção dos atores-
redes, simplesmente porque aos pesquisadores se colocam simultaneamente
a questão da fabricação de enunciados e de dispositivos novos e a questão
de sua difusão ou de sua aceitação. O caso apresentado mostra que nós não
seríamos capazes de explicar a construção dos fatos científicos sem seguir
os pesquisadores dentro de seus laboratórios. Além disso coloca em evidên-
cia a necessidade de ligar os laboratórios aos atores-redes que eles gerem e
que algumas vezes os fazem explodir.
A noção de ator-rede sublinha os limites dos estudos que, explícita ou implici-
tamente, se fecham entre as paredes de um (ou de vários) laboratório(s). Ob-
servar, por exemplo, o trabalho dos pesquisadores ao redor de sua labuta,
analisar em detalhe as micronegociações que eles fazem ao redor de seus
espectrômetros sem resituar estas observações no contexto dos atores-redes
e das relações de força que eles cristalizam ou fazem flutuar, é se expor a
não compreender como são definidos os limites do negociável, como são fi-
xadas as posições relativas dos protagonistas, os recursos que eles são ca-
pazes de mobilizar, assim como o peso dos argumentos desenvolvidos, etc.
Quando Lavillier, em 1962, escapa do eletrodo monotubular onde se havia
tentado enfurná-lo, os problemas que ele formula, os objeções que ele levan-
ta e os procedimentos experimentais que ele conserva fazem parte da rela-
ção de forças que se instaura entre ele mesmo e o ator-rede Baccala. Não se
compreenderia as escolhas “cognitivas” de Lavillier se se contentasse em ob-
servar os debates internos do laboratório ao invés de ver que o confronto
opõe a poderosa DGRST a um jovem pesquisador, físico de formação. Da
mesma maneira, o reposicionamento de Blondelet, que se concretiza na
transformação de seus objetos de pesquisa, leva em conta tanto o desinte-
resse relativo dos industriais como a contra-ofensiva que ele tem que empre-
ender face aos ataques de um novo ator-rede.
Da mesma maneira, autonomizar as estruturas organizacionais de um labora-
tório ou a divisão de trabalho ali reinante, é desconhecer que as transforma-
ções ou reorganizações das quais elas são o objeto são governadas por jo-
gos estratégicos que se desdobram no seio dos atores-redes. Quando em
1965 é criado o grupo G1, o que acontece é um novo episódio da guerra dis-
farçada a que estão entregues Blondelet e Lavillier. A constituição deste gru-
po se inscreve na longa seqüência de operações que conduzem ao desen-
volvimento da teoria dos orbitais contra a teoria das telas. O mesmo vale para
a “tecnicização” do laboratório cuja significação não pode ser encontrada fora
das estratégias de consolidação internas ao ator-rede Baccala. Em todos os
casos, é preciso seguir os atores-redes que se transformam e se consolidam
estabilizando um objeto de pesquisa, associando novos recrutas ou criando
novas estruturas organizacionais. Então aparecerá que a elaboração de uma
teoria ou o oferecimento de um novo serviço são estratégias alternativas en-
tre as quais os atores escolhem em função das circunstâncias.
Seria igualmente um erro não ver nos laboratórios nada além de puros e sim-
ples centros de produção e difusão de conhecimentos científicos. Antes de
tudo porque uma tal definição apaga a diversidade de seus modos de funcio-
namento reais. Laboratórios-fábricas, laboratórios-estúdios, laboratórios defi-
nindo sua própria política ou ao contrário laboratórios realizando as escolhas
efetuadas por outros, laboratórios de atividades diversificadas e laboratórios
especializados em um só campo: seria muito longa a lista que mostraria a va-
riedade de situações conceptíveis, isto é, a variedade de posições dos labora-
tórios no seio dos atores-redes. Mas o essencial é compreender como um la-
boratório delimita, organiza, gere e transforma o ambiente no qual ele difunde
os conhecimentos que ele produz, ambiente este que, em troca, lhe concede
margens de manobra. Nesta perspectiva a noção de ator-rede adquire toda a
sua significação, pois ela permite ligar a produção dos conhecimentos com a
conformação dos sistemas sociais nos quais estes conhecimentos são avali-
ados e utilizados. Os atores-redes elaboram teorias, ajustam técnicas expe-
rimentais e, simultaneamente, adotam ofertas e demandas, definem e hierar-
quizam posições, fixam os interesses e organizam as relações entre as insti-
tuições. Assim Blondelet, escolhendo o tamanho e as características de seu
eletrodo monotubular, definiu os interesses relativos da Universidade e da in-
dústria, a divisão de tarefas entre pesquisa fundamental e pesquisa aplicada
assim como o círculo da concorrência, e este conjunto heterogêneo se reor-
ganiza ao mesmo tempo que ele reformula seus problemas de pesquisa. Vi-
sualizados nesta perspectiva, os laboratórios são as unidades flutuantes que
se deformam com os atores-redes que os atravessam e os estruturam. Para
estes, o controle e a organização do laboratório representam apostas (inte-
resse-risco) de grande porte, como bem mostra a estratégia de Blondelet que
concentrou seus esforços no seio do seu laboratório no primeiro tempo, para
em seguida estender seu império. Inversamente, e a história aqui narrada tes-
temunha isso, a formação e a extensão dos atores-redes e dos fatos que eles
produzem conduzem algumas vezes à destruição ou ao remodelamento de
laboratórios que entravam seu desenvolvimento.
Referências: ver o original em francês.