cães à solta?

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42 Cães&Companhia 43 Cães&Companhia Cidadania D Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Shutterstock As férias de Verão chegaram, com o bom tempo e os dias longos. Com elas vem a disponibilidade para passar mais tempo ao ar livre com a família – tanto a de duas como a de quatro patas. E a tentação de andar com o nosso companheiro canino à solta é naturalmente grande, tanto mais que no resto do ano, por razões diversas, normalmente temos menos tempo disponível para ele. Mas será que o devemos fazer de qualquer maneira? se assuste ou que persiga algum animal, facilmente corre para o meio da estrada, arriscando-se seriamente a ser atropela- do. Ou a embater em alguém, por estar mais focado no que está a perseguir do que no que se passa em seu redor. Um cão à solta deve ser um cão trei- nado, obediente, que responda à cha- mada do seu dono qualquer que seja a D ificilmente alguém irá contestar o facto que os cães precisam de andar à solta. São animais so- ciais e activos, que pre- cisam de poder desgastar regularmente as suas energias e de ser estimulados física e psicologicamente. Os simples passeios higiénicos diários, à trela, rápi- dos e em sítios conhecidos, dificilmente serão suficientes para satisfazer as ne- cessidades dos nossos companheiros. Ao contrário do que popularmente se pensa, mesmo os de pequeno porte não satisfazem as suas necessidades de exercício com o andar em casa; muitas vezes, têm mesmo necessidades propor- cionalmente superiores às de cães de porte maior. Quando correm bem, os passeios à solta são uma excelente oportunidade para reforçar os laços e cumplicidade existen- tes entre o dono e o seu cão. Mas exis- tem numerosas oportunidades para que corram mal, e o dono deve estar ciente delas para se poder precaver. Bom senso… e obediência! A maioria dos riscos, infelizmente, ad- vém muito da falta de cuidado… Ve- zes demasiadas se vêm cães sem trela, mesmo em espaços confinados e/ou desconhecidos, a manifestar evidentes sinais de stress, a embater contra objec- tos (nomeadamente as cada vez mais presentes portas de vidro, que os cães não apreendem de imediato que cons- tituem uma barreira, por verem o que está do outro lado). Um cão à solta tem, por inerência, maior probabilidade de se magoar ou de causar danos, mesmo que não intencionalmente. Um cão que situação, de forma a precaver situações problemáticas. Isto é necessário não só em espaços abertos, mas mesmo tam- bém quando se tem o animal à solta em espaços vedados, como parques para cães – não deixa de haver pessoas e outros cães a quem é necessário prestar atenção, para que o passeio seja uma experiência agradável para todos os envolvidos. Propensão racial Algumas raças têm tendência a serem mais atentas ao dono, enquanto outras tendem a ser mais independentes. Os cães de pastoreio, por exemplo, tendo sido seleccionados para trabalhar sob a supervisão de pessoas, tendem a ser mais responsivos aos desejos do dono e a permanecer mais nas suas imedia- ções; e o inverso tende a ocorrer com os cães de montanha, mais independentes e exploradores da área em que se en- contram. Já os sabujos, por exemplo, apesar de serem bastante atentos ao dono, quando encontram um cheiro que lhes interessa e começam a seguir o rasto, manifestam uma notável “surdez se- lectiva”. Isto porque essa actividade é para eles bastante mais atractiva e recompensadora que a mera presença do dono (por muito que custe a alguns donos admiti-lo). Naturalmente, estas são tendências ge- rais, e existe muita variação individual dentro de cada raça, frequentemente até mais que entre raças. No entanto, considerar os diferentes tipos raciais e a sua tendência para se comportar de forma diferente quando estão à solta, é uma boa regra empírica para a imple- mentação de estratégias por parte dos donos para assegurarem a obediência do seu cão em qualquer situação – há que procurar garantir que constituem o principal foco de interesse do seu com- panheiro, mais interessante que qual- quer outra actividade. “Ele só quer brincar!” Está você na praia a relaxar quando, vindo do nada, aparece um cão a correr atrás de uma bola atirada por alguém, fazendo uma curva apertada mesmo em cima da sua toalha e dando-lhe um banho de areia. Como se isso não fosse suficiente para destruir a sua boa dispo- sição, um outro sai do mar e sacode-se vigorosamente ao seu lado, dando-lhe desta vez um banho de água fria (lite- ralmente). Por muito que goste de cães, este não será certamente um dos seus momentos favoritos! Passear com o cão solto Sim... Não... Talvez... Passear à solta é uma actividade agradável e estimulante para donos e cães, mas comporta riscos variados, que devem ser considerados e analisados. Requer ainda que o cão seja obediente, quer para a sua segurança quer para a de outras pessoas e animais No jardim ou na praia, assegure- se que o seu cão não incomoda os restantes veraneantes. Sem trela, os jogos e brinca- deiras são facilitados, mas não descure a vigilância! CCP_171_042 045 Cidadania.indd 42-43 12/14/11 9:38:33 AM

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Artigo de reflexão sobre os benefícios e, principalmente, malefícios de andar com os cães à solta em espaços públicos

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Page 1: Cães à solta?

42 Cães&Companhia 43Cães&Companhia

CidadaniaD

Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Shutterstock

As férias de Verão chegaram, com o bom tempo e os dias longos. Com elas vem a disponibilidade para passar mais tempo ao ar livre com a família – tanto a de duas como a de quatro patas. E a tentação de andar com o nosso companheiro canino à solta é naturalmente grande, tanto mais que no resto do ano, por razões diversas, normalmente temos menos tempo disponível para ele. Mas será que o devemos fazer de qualquer maneira?

se assuste ou que persiga algum animal, facilmente corre para o meio da estrada, arriscando-se seriamente a ser atropela-do. Ou a embater em alguém, por estar mais focado no que está a perseguir do que no que se passa em seu redor.Um cão à solta deve ser um cão trei-nado, obediente, que responda à cha-mada do seu dono qualquer que seja a

Dificilmente alguém irá contestar o facto que os cães precisam de andar à solta. São animais so-ciais e activos, que pre-

cisam de poder desgastar regularmente as suas energias e de ser estimulados física e psicologicamente. Os simples passeios higiénicos diários, à trela, rápi-dos e em sítios conhecidos, dificilmente serão suficientes para satisfazer as ne-cessidades dos nossos companheiros. Ao contrário do que popularmente se pensa, mesmo os de pequeno porte não satisfazem as suas necessidades de exercício com o andar em casa; muitas vezes, têm mesmo necessidades propor-cionalmente superiores às de cães de porte maior.Quando correm bem, os passeios à solta são uma excelente oportunidade para reforçar os laços e cumplicidade existen-tes entre o dono e o seu cão. Mas exis-tem numerosas oportunidades para que corram mal, e o dono deve estar ciente delas para se poder precaver.

Bom senso… e obediência!A maioria dos riscos, infelizmente, ad-vém muito da falta de cuidado… Ve-zes demasiadas se vêm cães sem trela, mesmo em espaços confinados e/ou desconhecidos, a manifestar evidentes sinais de stress, a embater contra objec-tos (nomeadamente as cada vez mais presentes portas de vidro, que os cães não apreendem de imediato que cons-tituem uma barreira, por verem o que está do outro lado). Um cão à solta tem, por inerência, maior probabilidade de se magoar ou de causar danos, mesmo que não intencionalmente. Um cão que

situação, de forma a precaver situações problemáticas. Isto é necessário não só em espaços abertos, mas mesmo tam-bém quando se tem o animal à solta em espaços vedados, como parques para cães – não deixa de haver pessoas e outros cães a quem é necessário prestar atenção, para que o passeio seja uma experiência agradável para todos os envolvidos.

Propensão racialAlgumas raças têm tendência a serem mais atentas ao dono, enquanto outras tendem a ser mais independentes. Os cães de pastoreio, por exemplo, tendo sido seleccionados para trabalhar sob a supervisão de pessoas, tendem a ser mais responsivos aos desejos do dono e a permanecer mais nas suas imedia-ções; e o inverso tende a ocorrer com os cães de montanha, mais independentes e exploradores da área em que se en-contram.Já os sabujos, por exemplo, apesar de serem bastante atentos ao dono, quando encontram um cheiro que lhes interessa e começam a seguir o rasto, manifestam uma notável “surdez se-lectiva”. Isto porque essa actividade é para eles bastante mais atractiva e recompensadora que a mera presença

do dono (por muito que custe a alguns donos admiti-lo).Naturalmente, estas são tendências ge-rais, e existe muita variação individual dentro de cada raça, frequentemente até mais que entre raças. No entanto, considerar os diferentes tipos raciais e a sua tendência para se comportar de forma diferente quando estão à solta, é uma boa regra empírica para a imple-mentação de estratégias por parte dos donos para assegurarem a obediência do seu cão em qualquer situação – há que procurar garantir que constituem o principal foco de interesse do seu com-panheiro, mais interessante que qual-quer outra actividade.

“Ele só quer brincar!”Está você na praia a relaxar quando, vindo do nada, aparece um cão a correr atrás de uma bola atirada por alguém, fazendo uma curva apertada mesmo em cima da sua toalha e dando-lhe um banho de areia. Como se isso não fosse suficiente para destruir a sua boa dispo-sição, um outro sai do mar e sacode-se vigorosamente ao seu lado, dando-lhe desta vez um banho de água fria (lite-ralmente). Por muito que goste de cães, este não será certamente um dos seus momentos favoritos!

Passear com o cão solto

Sim... Não... Talvez...

Passear à solta é uma actividade agradável e estimulante para donos e cães, mas comporta riscos variados, que devem ser considerados e analisados. Requer ainda que o cão seja obediente, quer para a sua segurança quer para a de outras pessoas e animais

No jardim ou na praia, assegure-se que o seu cão não incomoda os restantes veraneantes.

Sem trela, os jogos e brinca-deiras são facilitados, mas não descure a vigilância!

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Quando passeia no parque, a situação poderá tornar-se ainda mais complica-da. O seu cão até poderá só querer brin-car, mas as outras pessoas têm também direito a poder desfrutar do espaço pú-blico, sem serem importunadas.Até podemos ter o cão mais simpático e bonacheirão da zona, mas isso não é razão para deixarmos o nosso São Bernardo de 70 kg correr desenfreada-mente para cima de um transeunte a pedir-lhe festas, enchendo-o de baba, apenas porque “ele só quer brincar”. Ou para deixar o nosso Collie andar a correr à volta das pessoas tentando juntá-las num único grupo, mordiscan-do os seus calcanhares (comportamen-to de pastoreio).Devemos ainda prestar atenção especial a locais onde haja pessoas a andar de bicicleta, patins ou trotinetes, por exem-plo, pois a maioria dos cães tende a associá-los a presas a perseguir.Se o seu cão não estiver habituado com crianças, ou pouco, vigie-o cuidadosa-mente em zonas onde haja garotos a brincar. As crianças têm uma forma e um comportamento diferente do dos adultos, e cães que a elas não estejam habituados poderão não as apreender como pessoas, mas sim como brinque-dos animados ou presas a perseguir.

“Ele não morde!”Quando um cão está excitado a apro-veitar os seus poucos momentos à solta e se apercebe de outro cão, muitas ve-

zes a tendência é ir a correr ter com o outro. Quase automaticamente, o dono frequentemente deixa-o ir, limitando-se a comentar para o dono do outro: “Não faz mal, o meu cão não morde!”.Mas será uma situação assim tão sim-ples e inocente?Por um lado, o seu cão poderá efec-tivamente não morder numa situação normal, mas o dono nada sabe sobre o outro, se é agressivo, se está assus-tado, etc. Será sensato expor qualquer um dos cães a uma situação de po-tencial risco sem tomar as medidas adequadas?Por outro lado, e frequentemente em virtude do isolamento social a que a maioria dos cães urbanos estão sujei-

tos (muitas vezes imposta pelos donos, que de imediato afastam qualquer cão que se tenta aproximar do seu), muitos não sabem aproximar-se edu-cadamente de outros cães cumprindo as regras de etiqueta canina.

Regras de etiqueta caninaNuma abordagem correcta, os dois cães aproximam-se calmamente, com uma postura relaxada, sem fixarem o olhar um no outro (poderão alternar o olhar para o outro com o desviarem o olhar), posicionam-se lado a lado, para cheirarem a região peri-anal do outro (o equivalente canino ao aperto de mãos

respeite e prossiga com o seu passeio. Caso aceite, vigie a interacção entre os cães. Observe como se aproximam, e se o seu cão começar a ficar demasia-do excitado, chame-o de volta, apenas permita abordagens calmas, de forma a evitar mal-entendidos e riscos.Após as apresentações, caso ambos os cães queiram brincar um pouco, não baixe a guarda. Apesar de na brinca-deira os cães usarem normalmente numerosos sinais indicadores que o que estão a fazer não é para ser le-vado a sério, de forma a tranquilizar o seu companheiro, diferentes cães podem ter diferentes formas de brin-car – uns gostam de ser mais físicos na brincadeira, outros preferem jogos mais calmos…Deve ser prestado especial atenção às brincadeiras entre cães de porte muito diferente, pois há risco de o cão maior, sem querer, magoar o mais pequeno. Aliás, essa é a principal razão para a recomendação de haver dois recintos separados nos parques para cães, para que animais de diferente porte possam interagir em segurança com cães do seu tamanho.

Respeite, para ser respeitadoPor muita vontade que tenha de andar sempre com o seu cão bem-educado à solta (independentemente da lega-lidade ou não da situação), tenha em mente que há pessoas que têm medo de cães ou que, mesmo não os recean-do, não apreciam particularmente tê-los perto de si. Muitas pessoas não sabem interpretar correctamente a expressão corporal dos cães, e podem sentir-se ameaçadas pela abordagem de um cão desconhecido.Não se esqueça que na maioria dos espaços públicos os cães devem circu-lar à trela, e é-lhes inclusive interdito o acesso a vários locais. Apesar de tradi-cionalmente haver uma certa tolerância quanto a estas liberdades, há que res-peitar os outros!Aprenda a interpretar a linguagem cor-poral dos cães, mantenha o seu cão à trela ou junto a si quando está perto de outras pessoas, não o deixe aproximar-se de pessoas ou cães sem autorização e nunca se esqueça de recolher os de-jectos que o seu cão faz, mesmo quan-do este anda à solta.Se todos respeitarmos as regras ele-mentares de bom senso, respeito e sã convivência, pode ser que gradualmen-te se comece a mudar as mentalidades e a conseguir o acesso legal dos cães a cada vez mais espaços públicos. D

À solta ou à trela, é fundamental que os cães aprendam as regras da “etiqueta” canina, para que as interacções com os seus congéneres sejam agradáveis, e não sejam situações tensas e potencialmente conflituosas.

desconhecerem as normas de conduta canina, há quem impeça os cães de se cheirarem mutuamente na região anal, por acharem esse comportamento re-pugnante.Mais frequente ainda é os donos fica-rem nervosos com a aproximação de um cão desconhecido e fazerem tensão na trela, num comportamento quase re-flexo de procurar segurar melhor o seu animal. Ora, o cão vai sentir essa tensão e ficará a pensar que efectivamente a situação poderá ser problemática, o que poderá levar a um aumentar da real tensão.O ideal, numa situação em que ambos os cães estejam à trela, é vigiar calma-mente a linguagem corporal dos cães envolvidos, mantendo a trela lassa para não criar tensões desnecessárias.

Outros cenáriosQuando ambos os cães estão à solta, não há o elemento humano a “com-plicar” a aproximação entre os cães, e qualquer um pode optar por se afastar, mas nem por isso se deve descurar a atenção ao comportamento dos ani-mais. Uma má interpretação do com-

portamento por parte de um deles, ou desconhecimento do significado das posturas corporais (há que não es-quecer que muitos cães vivem desde cachorros num ambiente virtualmente humano, com pouco ou nenhum con-tacto com outros cães) poderá levar ao surgimento de conflitos.Mas quando um dos cães está à solta e o outro está à trela, poderá haver o pro-blema da sobre-excitação do cão à solta aliado à tensão apercebida pelo dono e o cão preso, que não tem a possibilida-de de se afastar se o desejar; à falta da hipótese de fuga, ao cão receoso resta a do ataque... O dono do cão à solta tem então a responsabilidade acrescida de procurar assegurar que o seu cão não perturba o outro cão.

Peça autoriza-ção primeiro... e vigieUma forma simples é manter o seu cão perto de si e perguntar ao dono do outro se se podem aproximar. Caso o dono recuse (pode ter um cão receoso, agressivo, frágil, em tratamento, etc.),

humano) e, não havendo tensão, pode-rão prosseguir o seu caminho ou tenta-rem brincar um com o outro.Quando esta abordagem não é ade-quadamente efectuada, poderão sur-gir problemas por má interpretação das intenções. Por exemplo, é comum, quando os cães estão muito excitados, virem a correr directamente para o outro, parando mesmo em frente dele. Num equivalente humano, pense num desconhecido que o vê à distância e vem a correr para cima de si, parando a poucos centímetros. Desagradável, não?Numa situação destas, um cão mais confiante poderá exibir sinais tentando acalmar a situação, como o afastar-se calmamente, manter-se no mesmo lo-cal mas pôr-se a cheirar o solo (quase de certeza que o chão não é mais inte-ressante que o outro cão, mas mostran-do desinteresse, pode ser que o outro cão acalme), lamber os lábios, etc.Caso o cão seja inseguro e/ou não te-nha possibilidade de optar por se afas-tar (como acontece quando o cão está à trela), poderá eventualmente exibir sinais de agressividade (como eriçar o pêlo, arreganhar os lábios e/ou rosnar), de forma a tentar desencorajar o outro cão de se aproximar.

Os donos também erram!Também os donos podem, inadverti-damente, contribuir para aumentar a tensão nos encontros. Por exemplo, ao

Mesmo que o seu cão seja bem educado, vigie-o atentamente e pondere o uso de trela quando está próximo de outras pessoas e animais

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