cadernos do leste 1 - meu lugar

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Meu lugar CONTOS CRÔNICAS HELCIO ALBANO

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Edição número 1 dos Cadernos que traz textos de Helcio Albano

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Page 1: CADERNOS DO LESTE 1 - MEU LUGAR

Meu lugar

CONTOS CRÔNICAS

HELCIO ALBANO

Page 2: CADERNOS DO LESTE 1 - MEU LUGAR

Copyright © by Editora Apologia Brasil

ILUSTRAÇÃOMultidão, de Eduardo Cambuí Junior

EDITORAÇÃO ELETRÔNICAHelcio Albano

REVISÃOEdson Amaro

Albano, HelcioCadernos do Leste nº 1, Org.: Helcio Albano, Edson Amaro,

Mauricio Mendes, Rodrigo “Bardo” Santos - São Gonçalo/RJ, Apologia Brasil, 2013.

52 páginas

1.Crônicas. 2.Memórias. 3.Cultura. 4.Cidadania-Leste Fluminense

Todos os Direitos Reservados

2013

APOIO CULTURAL

Page 3: CADERNOS DO LESTE 1 - MEU LUGAR

literatura para a cidadania

ORGANIZAÇÃO

Helcio AlbanoMauricio MendesEdson AmaroRodrigo Santos

PUBLICAÇÃOEditora Apologia Brasil

[email protected]

NOVEMBRO DE 2012Todos os Direitos Reservados

Page 4: CADERNOS DO LESTE 1 - MEU LUGAR
Page 5: CADERNOS DO LESTE 1 - MEU LUGAR

Apresentação.6

Prefácio.7POR EDSON AMARO

POR MAURICIO MENDES

Meu Lugar.11POR HELCIO ALBANO

Yamato e o Capitão Kodai.13

Eu e o Apologia.14

O Apologia e os Movimentos Sociais.16São Gonçalo e a Modernidade Transeunte.19Mulher Engana Até o Diabo. E Eu Com Isso?.21

Lady Gaga, o Casamento Gay e a Era das Infinitas Possibilidades...23Karl Marx Estava Certo.25

O Samba Daqui.28Denilson e Eu.30

Itaboraí Virou Distrito de São Gonçalo.32O Interesse Público é Uma Farsa.35

A Professora e Eu.38Não Pego Ninguém do Rocha.41

Aluçã, os Amigos e a Homenagem.43

Arte e Cultura São Coisas de Doidão?.45Ele Veio de Longe Só Pra Lhe Pegar.47

Notas.49

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Apresentação Prefácio

Todo mundo que conhece Helcio Albano conhece Antonio Gramsci. Não, Helcio Albano não mora num país maravilhoso em que todo mundo cursa a Universidade e discute Filosofia em mesa de bar ao invés de assistir futebol, ir à missa ou ao baile funk. É que quem conversa com Helcio, tão certamente quanto o Sol se levantará amanhã, ouvi-lo-á falar de Gramsci repetidas vezes. E nem mesmo a Irmã Dulce se esforçou tanto por seguir o Sermão da Montanha quanto Helcio se esforça por seguir os ensinamentos do filósofo italiano.

“Canta a tua aldeia e serás universal”, essa frase famosa, cuja paternidade é atribuída às vezes a Tolstói, outras a Vitor Hugo ou ainda a Alexandre Dumas, bem poderia ser a epígrafe desta publicação. Desde que vivo em São Gonçalo (nasci no Rio Grande do Norte e cheguei aqui quando o presidente da República chamava-se João Figueiredo), estou acostumado a não ver São Gonçalo na mídia – e desde que me lembro de televisores ligados na minha frente, assisti noticiários junto aos meus pais. Fico pasmo quando constato que meus alunos adolescentes não têm a mínima ideia do que venha a ser Mercosul ou de que existam seres como Elisabeth II ou José Sarney – seu equivalente tupiniquim, pois o senador está quase há tanto tempo na política brasileira quanto ela nos tronos do Commonwe-alth. (Aliás, acompanhando durante tantos anos o noticiário político e vendo como se conservam as oligarquias, de vez em quando eu tenho que verificar as cédulas que carrego no bolso para ter a certeza de que o regi-me ainda é republicano.) O Brasil só volta suas câmeras para São Gonçalo quando algo de ruim acontece, como quando o Fantástico mostrou um esquema de corrupção na Câmara Municipal no governo Charles e a gente passava pela prefeitura e via carro da Globo estacionado em frente: durante algumas semanas, viramos a capital nacional da corrupção – que alívio para a galera de Brasília. Ou quando o adolescente Alexandre Ivo foi trucida-do num crime de ódio em plena Copa do Mundo de 2010. Daí a urgente necessidade de publicações como esta, em que um intelectual da cidade dá um polimento à prata da casa e garimpa os valores da cidade.

As cidades da região leste metropolitana - excetuando-se Niterói - são adjetivadas até hoje de modo pejorativo. Expressões mera-mente espaciais, como periferia, receberam conceituações próprias que se distinguem e se contrapõem ao Centro, à Cidade, esta sim, lugar legítimo de produção e reprodução da vida moderna em sua plenitude.

Os textos que virão a seguir, divididos majoritariamente em crônicas e em contos curtos, se rebelam contra aquele estado de coisas ao se asumirem ao mes-mo tempo como observador e objeto, sendo eles próprios parte inequívoca da dialética da vida em verso, prosa e poesia, do domínio da linguagem, coisa mais cara à cultura.

Os textos do professor Helcio Albano nos revelam muita coisa de sua vivência pessoal mas que nos é circunscrita na paisagem urbana, na política e noutros quitutes mundanos de maneira bastante própria e singular, fruto dessa imersão na cidade que logo será a você, leitor, revelada.

Esse Caderno, assim como a própria cidade, é uma obra em aberto. Cada história aqui contida contém um pouco de nossa história também.

Mauricio Mendes é geógrafo pós-graduado em Urbanismo

POR MAURICIO MENDES

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Apresentação Prefácio

Todo mundo que conhece Helcio Albano conhece Antonio Gramsci. Não, Helcio Albano não mora num país maravilhoso em que todo mundo cursa a Universidade e discute Filosofia em mesa de bar ao invés de assistir futebol, ir à missa ou ao baile funk. É que quem conversa com Helcio, tão certamente quanto o Sol se levantará amanhã, ouvi-lo-á falar de Gramsci repetidas vezes. E nem mesmo a Irmã Dulce se esforçou tanto por seguir o Sermão da Montanha quanto Helcio se esforça por seguir os ensinamentos do filósofo italiano.

“Canta a tua aldeia e serás universal”, essa frase famosa, cuja paternidade é atribuída às vezes a Tolstói, outras a Vitor Hugo ou ainda a Alexandre Dumas, bem poderia ser a epígrafe desta publicação. Desde que vivo em São Gonçalo (nasci no Rio Grande do Norte e cheguei aqui quando o presidente da República chamava-se João Figueiredo), estou acostumado a não ver São Gonçalo na mídia – e desde que me lembro de televisores ligados na minha frente, assisti noticiários junto aos meus pais. Fico pasmo quando constato que meus alunos adolescentes não têm a mínima ideia do que venha a ser Mercosul ou de que existam seres como Elisabeth II ou José Sarney – seu equivalente tupiniquim, pois o senador está quase há tanto tempo na política brasileira quanto ela nos tronos do Commonwe-alth. (Aliás, acompanhando durante tantos anos o noticiário político e vendo como se conservam as oligarquias, de vez em quando eu tenho que verificar as cédulas que carrego no bolso para ter a certeza de que o regi-me ainda é republicano.) O Brasil só volta suas câmeras para São Gonçalo quando algo de ruim acontece, como quando o Fantástico mostrou um esquema de corrupção na Câmara Municipal no governo Charles e a gente passava pela prefeitura e via carro da Globo estacionado em frente: durante algumas semanas, viramos a capital nacional da corrupção – que alívio para a galera de Brasília. Ou quando o adolescente Alexandre Ivo foi trucida-do num crime de ódio em plena Copa do Mundo de 2010. Daí a urgente necessidade de publicações como esta, em que um intelectual da cidade dá um polimento à prata da casa e garimpa os valores da cidade.

As cidades da região leste metropolitana - excetuando-se Niterói - são adjetivadas até hoje de modo pejorativo. Expressões mera-mente espaciais, como periferia, receberam conceituações próprias que se distinguem e se contrapõem ao Centro, à Cidade, esta sim, lugar legítimo de produção e reprodução da vida moderna em sua plenitude.

Os textos que virão a seguir, divididos majoritariamente em crônicas e em contos curtos, se rebelam contra aquele estado de coisas ao se asumirem ao mes-mo tempo como observador e objeto, sendo eles próprios parte inequívoca da dialética da vida em verso, prosa e poesia, do domínio da linguagem, coisa mais cara à cultura.

Os textos do professor Helcio Albano nos revelam muita coisa de sua vivência pessoal mas que nos é circunscrita na paisagem urbana, na política e noutros quitutes mundanos de maneira bastante própria e singular, fruto dessa imersão na cidade que logo será a você, leitor, revelada.

Esse Caderno, assim como a própria cidade, é uma obra em aberto. Cada história aqui contida contém um pouco de nossa história também.

Mauricio Mendes é geógrafo pós-graduado em Urbanismo

POR EDSON AMARO

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Na crônica “Não pego ninguém do Rocha”, Hélcio comenta, valendo-se de um contexto católico, que o povo de São Gonçalo vê a sua cidade como um Purgatório, que as pessoas querem melhorar de vida para sair daqui. São Gonçalo precisa viver aquela experiência revigorante que a persona-gem Hannah, interpretada por Paulette Goddard tem em O Grande Dita-dor. Após entregar-se aos cuidados do barbeiro judeu vivido por Chaplin, olha-se no espelho e exclama: “Nossa! Eu sou bonita!” São Gonçalo precisa que alguém convença seus habitantes da mesma coisa. É por essa neces-sidade que precisamos aplaudir o empenho de intelectuais e artistas como Helcio Albano, Rodrigo Santos, Romulo Narducci, André Correia, Levi Alucinação, Romário Régis, Jó Siqueira, Osvaldo Luiz Ferreira, Randal Farah, Altahy Veloso, o saudoso Aluçã (a quem Helcio chama de “monu-mento ao talento e à bravura do povo”) e tantos outros que teimam em produzir arte em São Gonçalo.

O empenho de Hélcio já se fez ouvir no meio acadêmico quando, estu-dante da FFP-UERJ, no Paraíso, criou, junto com Joyce Braga e outros destemidos, o jornal Apologia, que chamou a atenção do campus para o alto nível das reflexões feitas naquele órgão, discutindo São Gonçalo de ca-beça erguida. Essa ousadia ramificou-se no Projeto Alternativo, que André Correia, outra figura presente nestas páginas, toca adiante. Frutifica agora nestes Cadernos do Leste, uma série que se tornará uma referência para quem se propuser a estudar São Gonçalo quando estas páginas amarelece-rem. Quem ler esta publicação convencer-se-á do que predigo.

Edson Amaro é professor da rede estadual de Educação, especialista em Estudos Literários pela FFP-UERJ, poeta, tradutor e dramaturgo.

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Ao meu filho João, à minha mulher Cristiana Souza e ao grande Marlos Costa

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Meu lugarPOR HELCIO ALBANO

Amigo leitor. Esta brochura que está à frente de seus olhos é, acima de tudo, uma obra pessoal; pensamentos acerca do meio circundante a este escriba: a cidade de São Gonçalo, o leste metropolitano, o Rio de Janeiro.

Claro, porém, que este recorte espacial não é limitador, pelo contrário. Ele estimula um salto imagético de nossas aflições em estado puro, sejam elas políticas, culturais e filosóficas. A geogra-fia, deste modo, perde impor-tância, restando-nos apenas o nosso corpo, mente e a marca de nossas experiências e anseios.

Filho de nordestino que sou, mas nascido no berço carioca da Tijuca, escolhi a cruz de malta e o subúrbio, a inquietude ao conformismo. O movimento ao seu contrário óbvio: o imobi-lismo. Somos nossas escolhas, como já dizia um certo sábio.

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Já conheci alguns tantinhos de terra desse mundão-de-meu-deus, e uma coisa posso afirmar: somos todos iguais. Causa-me surpresa até a semelhança física e de personalidade que as pessoas têm umas com as outras em lu-gares os mais remotos e impro-váveis. Guardam em si certo pa-ralelismo metafísico em ocasiões das quais temos a impressão de que se repetem. O espaço, devo reforçar, perde importância para o drama, o verdadeiro drama, o humano.

Somos espelhos um do outro e de nosso tempo. Nos repro-duzimos no tempo e no espaço deixando marcas que ou se dissolvem ou permanecem. Tudo, então, é história e merece ser contado. Num parágrafo não tão distante deste, deixei ape-nas uma informação concreta sobre mim, não necessariamente sobre minha personalidade: sou vascaíno.

Com esta brochura espero que me ajude a construir o que sou. Os textos foram tirados do blog que mantenho desde 2011.Boa leitura.

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YAMATO E O CAPITÃO KODAI

Meu querido leitor. Sou de 1974, portanto, completo este ano 37 primave-ras entremeadas de invernos rigorosos. Este post é declaradamente nostál-gico. Porém, nostalgia boa é aquela que prevê continuidade daquilo que é lembrado.

Apresento a vocês o capitão Kodai, o primeiro e único herói da minha infância. Destemido, corajoso, ousado e um tanto irresponsável como a própria juventude.

O capitão Kodai junto a tantos outros, são personagens da saga anime ja-ponesa Uchu Senkan Yamato ou, simplesmente, Patrulha Estelar, exibida na extinta TV Manchete nos longínquos anos de 1980.

A série, escrita e produzida pela dupla Yoshinobu Nishizaki e Leiji Matsu-moto, representa o resgate do orgulho japonês aviltado pelos norte-ame-ricanos na Segunda Guerra Mundial. Orgulho este simbolizado no maior navio de guerra já fabricado na história: o encouraçado Yamato, afundado a duras penas no dia 7 de abril de 1945 numa missão kamikaze nos arredo-res de Akinawa.

Foram necessários mais de 380 aviões yankees para afundar o solitário Yamato, que tinha o objetivo de destruir ou danificar o maior número de equipamentos militares norte-americanos naquela sua última e gloriosa missão.

Em 1973 a dupla Nishizaki e Leiji Matsumoto vai ao fundo do mar de sua imaginação e retira o Yamato adormecido, que é adaptado como nave espacial para defender a Terra contra os Gamilons, uma referência aos americanos.

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Eis que, 10 anos depois, em 1983, o menino Helcio estava à frente da TV assistindo ao programa do Carequinha a esperar ansioso a entrada triunfan-te do Yamato e sua tripulação comandada pelo jovem capitão Kodai.

Invariavelmente os inimigos da raça humana e do Yamato eram superio-res em tecnologia. Porém a força daquela tripulação, baseada na honra e na lealdade à morte, era multidimensionada pela graça de Iscandar, uma espécie de proteção etérea que era a própria Justiça em sua forma universal e incomensurável, como o próprio universo singrado pelo Yamato.

Entre uma e outra beliscada na bunda da Yuri pelo robozinho sacana IQ-9 (George Lucas se inspirou nele em Jornada nas Estrelas) a saga de Patru-lha Estelar deixou naquele menino marcas que carrego até hoje: A Justiça redime a morte.

E só é corajoso aquele que está a serviço da Justiça.

O pequeno helcio olhando para o futuro

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eu e o apologia

Publico agora matéria do Jornal Daki edição nº 9 editado pela Editora Apologia Brasil.

Faço isso porque é uma história bonita, de luta, que vale a pena comparti-lhar com você, leitor.

O Apologia foi contemporâneo do Fazendo Media, que tinha uma linha diferente da nossa, cuidando de assuntos mais específicos do jornalismo. A galera do FM é do IACS da UFF.Mas com o mesmo espírito crítico, ousa-do e contestador.

...

Era uma vez um grupo de estudantes meio doidão no ano tenebroso de 2004 estudando numa faculdade de periferia do Rio de Janeiro.

Gonçalenses, esses estudantes não se conformavam com o quadro de vira-latice da cidade e da faculdade onde estudavam. Não se conformavam com a ordem cultural vigente que ordenava previamente a capitulação frente a qualquer possibilidade de guerra contra aquele imobilismo que feria a alma desses combatentes que se negavam a entrar mortos no front do magistério fluminense.

Formaram, no mesmo ano, o Grupo dos Iguais a fim de estudar, debater e propor alternativas à morte certa nesta cidade governada pelas trevas da ignorância e pela falta de iniciativa. Reuniam-se aos sábados na casa do Helcio Albano, no Porto Velho.

Os Iguais eram de vários cursos da Faculdade de Formação de Professores da UERJ, e logo produziram material que era discutido exaustivamente entre seus membros. Educação, Cultura, Política e Comunicação eram os assuntos que predominavam nos encontros matinais de fim de semana à Rua Lafaiete.

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Mauricio Mendes, hoje geógrafo e professor, não demorou em propor ao grupo a criação do jornal para a publicação das idéias que então borbulha-vam naquelas cabeças pensantes reunidas no Porto Velho. Surge, em 09 de agosto de 2004, o Jornal Apologia, que tinha distribuição restrita à UERJ de São Gonçalo.

O impacto da publicação nos estudantes foi imediato, o que impulsionou o grupo a atuar além dos muros da universidade e atingir à sociedade não acadêmica. Fundamental neste momento foi a então estudante de Letras, Joyce Braga, que articulou a primeira de várias parcerias com a própria UERJ, viabilizando a tiragem do jornal no formato tablóide com 20 mil exemplares distribuídos em todo o Rio de Janeiro.

A partir daí muita, muita história pra contar. Que dirá a PUC-Rio, na Gá-vea, que todo mês tinha que ouvir aqueles malucos chegarem e gritarem: SÃO GONÇALÔOOOO!

O APOLOGIA E O MOVIMENTO SOCIAL

Num dia nublado de dezembro de 2004 a kombi branca da UERJ adentra a comunidade da Vila Esperança. No simpático Volkswagen três estudantes e dois funcionários da universidade. Um deles era o Boroco, o motorista, ilustre morador do Porto Velho ali das bandas do Morro da Igreja.

Era a primeira vez que uma universidade entrava oficialmente naquela ocupação que até hoje luta para regularizar sua situação fundiária de pouco mais de 400 famílias que, à época, não contavam com o PAC para ameni-zar as incertezas com o futuro e muito menos o desespero de serem expul-sas dali.

A ida do Apologia à comunidade logo se transformaria em parceria e inspi-ração para que os moradores procurassem a UFF e que juntos elaborassem

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um projeto de urbanização, o primeiro passo para a legalização das casas. Não fomos ali para sugar a experiência daquelas pessoas e publicar em monografias que invariavelmente mofam nas prateleiras da biblioteca da faculdade. A nossa intenção era interagir para achar soluções práticas para aquele amontoado de problemas. Deu certo.

Meses mais tarde outra comunidade faria o mesmo caminho que a Vila Esperança. Desta vez, a localidade de Sete Cruzes, no Arsenal. “O Jornal Apologia chegou às mãos de lideranças comunitárias que procuraram a gente. Foi então que fizemos a ponte entre eles e a Vila Esperança. Hoje a comunidade também faz o seu projeto pela UFF. Isso sim nos faz ficar orgulhosos”, relembra o amigo Mauricio Mendes, um dos coordenadores do Projeto Apologia na UERJ.

Ao todo, foram mais de 15 comunidades visitadas que desenvolveram parcerias com o Apologia das mais diferentes formas, além da Unibairros, a “associação das associações” de moradores de São Gonçalo.

o dia em que a uerj pisou o chãoda vila esperança

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SÃO GONÇALO E A MODERNIDADE TRANSEUNTE

Eu e a minha amiga Modernidade fomos passear a pé pelas ruas da cidade. Não tão jovem assim, contentou-se caminhar pelo Centro. Disse-me que era o suficiente para conhecer a cidade inteira. Porém, retruquei:

_ Mas como? Você precisa conhecer também a periferia...

Esperta e cheia de si, detona:

_Meu rapaz...

Antes da suprema ofensa e humilhação, fez uma pausa coçando a cabeça lilás, me achando a pessoa mais estúpida do mundo.

_Meu rapaz... São Gonçalo já é a periferia.

Olhei pra ela arrasado; mas concordei, sem falar nada. Entendi o seu ponto de vista. Se referia ao Rio de Janeiro como a metrópole e, São Gonçalo, seu satélite. Tem sentido.

Compramos um sorvete na Praça Zé Garoto. Sentamos num dos seus bancos de cimento. Era tardinha e, de repente, acendem as luzes de um chafariz. A nossa atenção é finalmente desviada para um casal de noivos - à caráter - que descia desajeitado de uma kombi branca 69.

Sem mais nem menos a amiga começa a gargalhar; tão alto, que o pipo-queiro ao lado não desgrudou mais os olhos dela. A figura já tinha aquele cabelo esquisito, e rindo desse jeito... não é para menos!

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A súbita curiosidade que me remoía provoca então a pergunta:

_O que foi?

Ela ria alucinadamente. Tive que ajudá-la a não se engasgar.

_Diga o que foi - insisti.

Se recompondo, fala, matando a minha curiosidade e a do pipoqueiro que, a essa altura, já estava do meu lado, sob protestos histéricos de uma criancinha.

_É ridículo!

Ria e ria. Gargalhava: quá,quá quá, quá...

_Eles (e quá,quá quá, quá...), eles estavam esperando o chafariz funcionar (e quá,quá quá, quá...) para saírem da kombi...

Eu continuava não entendendo nada - muito menos a galhofa - quando retoma:

_ O noivo pisou na grinalda da moça e a arrancou do vestido. Coitado do cara; levou um esporro tão grande que murchou...

Realmente era engraçado, o suficiente para um han, han. Foi quando com-pletou, percebendo enfim minha contrariedade:

_Pra que que casa? Tá vendo, já brigaram; e tudo isso por uma grinalda que vai mofar no guarda-roupa. Isso se o vestido não for alugado - disse, convicta e sarcástica.

Só fiquei intrigado com uma coisa: o pra que que casa. Indaguei:

_Você não quer casar não?

A Modernidade responde, em tom seco:

_ Já fui casada.

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Fiquei surpreendido. Notei impaciência na ponta do banco, queria falar mais.

_ Fui casada com o Liberal. Foi um casamento feliz no início, mas depois ele me traiu...; com alguém muito mais velha do que eu. Foi a maior de-cepção da minha vida.

Senti pena dela.

O pipoqueiro, também consternado, deixara queimar o milho. Saía um fogaréu dos diabos da carrocinha. Peguei em sua mão para consolá-la.

_ Passei a maldizer o matrimônio. Agora sou atéia.E acho tudo isso uma bobagem- suspira a Modernidade em resignação.

Finalmente saquei o motivo de tanto riso. Não acrediatava, por sua vez, que ela tinha desistido de amar.

_ Você nunca mais se apaixonou?

Vira a cabeça pra mim, como que aprovando a pergunta:

_ Oh sim! E fornico. Fornico muito!

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MULHER ENGANA ATÉ O DIABO... E EU COM ISSO?

Eu costumo dizer que as mulheres caminham em cima de um muro estrei-to que separa a virtude da indecência.

E digo mais: ou ela levanta o cara ou derruba. Não existe meio termo. Porém, amigo leitor, gostaria que por ora ficasse apenas com a máxima número 1 deste conto. Se não, creio ser emoção demais em uma só leitura orkutiana.

Era segunda sexta-feira do mês. E, como todos sabem, é dia de Taverna no famigerado SESC ronca-ronca. Regularmente temos que levar nossos neurônios à academia. Aliás, como que a palavra academia foi corrompida pelos nossos moços e moças bombadões é um mistério. O termo veio da Grécia, cheio de glamour, eternizada pelos distintos filósofos Platão e Aris-tóteles. Mas...

Voltando, meus amigos. Depois do happy-hour poético regado a vinho tinto, fui eu para o grand finale antes da reclusão sabática. Pois o final de semana é um terreno proletário movediço.

Depois de alguns solitários passos pela calçada do Clube Mauá, atravesso a rua, tropeço na linha férrea desativada e chego ao Mr. Jack. Ainda era cedo, e não estava nos planos atravessar a madrugada em meio à fumaça consu-mindo cerveja quente a 4 pilas.

Mas depois de passar pela portinhola tosca à la saloon de bangue-bangue norte-americano, eis que encontro um conhecido ao balcão com a cerveja ainda pela metade. Não demorou a me convidar. Um copo?

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Claro. Falei. O cara professor, já meio frustrado. Professor é um cara meio frustrado por definição. Ah, começou a contar vantagem. Entendi. Bai-xinho é meio frustrado também. Professor e baixinho é uma frustração inteira.

Tava sozinho. Comendo uma mulé. Pra provar o que dizia ligou pra ela. Ficou empolgado. Queria me provar alguma coisa. Não. Queria provar coisa nenhuma a ele mesmo. Deixou-me ali ouvindo Lynyrd Skynyrd enquanto ia pegar a sua putinha de conveniência.

Que saco.

Daí uma hora depois ele volta. Tava com ela. Já tava sentado e entediado. Ela senta ao meu lado e ele vai pegar uma cerveja.

Tá que pariu. A mulé na primeira olhada escancarou que é puta. Bebi umas cervejas e comecei a teatralizar aquela porra. Quando o babaca foi no ba-nheiro falei: Dispensa.

Ela com um sorriso canalha retruca: Como? Eu ainda mais canalha falo: Dá seu jeito. Pede o meu número de celular.

O nosso amigo volta do banheiro com um sorriso triunfante. Ela, subita-mente, começa a passar mal, e implora para que ele a leve para casa. Ele se despede.

Quarenta minutos depois o meu telefone toca...

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LADY GAGA, O CASAMENTO GAY E A ERA DAS INFINITAS POSSIBILIDADES

Meu impaciente leitor e caso insofismável de amor, a Lady Gaga é uma perfeita idiota. Leia, por favor, o que o gênio da raça declarou para o coita-do do repórter gringo da MTV. Matéria do JB (grifos meus):

Em entrevista à MTV, Lady Gaga disse que se pudesse ser presidente por um dia promoveria algumas mudanças. “Eu ia encontrar meios alternativos de energia e permitiria o casamento entre pessoas do mesmo sexo”, disse a cantora.

Depois de revelar o que faria no cargo, Gaga confessou que não gostaria de estar no Salão Oval da Casa Branca “porque a política pode restringir as coisas”. “Por isso, nossa mensagem tem que ser completamente livre de qualquer política”, finalizou.

“Também gostaria da paz mundial, além de fazer tudo o que pudesse com a crise financeira”, completou ela.

Como pode ver, é um festival de lugares comuns bem ao feitio da cultura pop do imediatismo de consumo. A ítalo-americana Gaga é o supra-sumo do amontoado de baboseiras e sandices que a midia costuma reproduzir de maneira absolutamente acrítica.

Tudo que os gays não precisam é ter o ícone pop como garota propaganda de sua causa. A política, ao contrário do que diz a estrela que não se decide entre Roberto e Alejandro, não restringe as coisas. Pelo contrário, liberta. É através dela que se formará um consenso de paz e o exercício à tolerância ao direito homossexual de utilização do seu próprio corpo.

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Veja bem meu caro, a Lady Gaga gostaria (sic) da paz mundial. Coloque-mos essa frase ao lado de sua foto, de preferência aquela em que está vestida com carne bovina, no campo de refugiados da Somália ou Etiópia. Ali, a expressão “quero comer você todinha” deve ser encarada ao pé da letra. Seria um libelo antropofágico de dar inveja aos modernistas de 22.

O que é mais assustador, entretanto, é a sua inclinação fascista. Já vimos que ela nega a política, mas o buraco é mais embaixo: ela nega a própria democracia! Então, cuidado. Isso não tem nada de libertário, é o tipo de discurso que a direita raivosa precisa para sustentar essa insanidade que a alimenta. Chegamos, no Ocidente, a uma era bastante delicada: a Era das infinitas possibilidades. Como diz a canção do Metrô nos 80, no balanço das horas tudo pode mudar... Alejandro, Alejandro...

gaga: o banquete somali

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KARL MARX ESTAVA CERTO

E sempre estará enquanto o capitalismo existir.

“Karl Marx tinha clareza disso”, disse Roubini numa entrevista ao The Wall Street Journal: “Em certa altura o capitalismo pode destruir a si mesmo. Isso porque não se pode perseverar desviando a renda do trabalho para o capital sem haver um excesso de capacidade [de trabalho] e uma falta de demanda agregada. Nós pensamos que o mercado funciona. Ele não está funcionando. O que é racional individualmente ... é um processo autodestrutivo”.

As aspas acima pertencem ao dr. Roubini, professor de economia da Uni-versidade de Nova Iorque. Ele é conhecido nos estaites pejorativamente como Dr. Catástrofe pois foi o primeiro a anunciar a irracionalidade dos sub-primes no caso das hipotecas americanas que levaria ao crash de grandes instituições financeiras e consequentemente da economia norte-americana em 2008.

Bom, ontem postei aqui a saga do Yamato e do capitão Kodai como agen-tes promotores da Justiça Universal, e como esse anime japonês me marcou para sempre.

Como Testemunha de Jeová involuntário, já que a minha família pratica o credo, sempre tive contato com a Bíblia, ou Sagradas Escrituras como eles a chamam, desde os tenros tempos do analfabetismo absoluto. Aliás, não sei se pro bem ou pro mal, fui alfabetizado pelas letras do pentateuco e do Novo Testamento.

Na Bíblia acreditei firmemente encontrar as bases e ao mesmo tempo o edifício da Justiça. Essa Justiça a ser aplicada no dia a dia já que, ingenua-mente, já saberia de antemão o funcionamento das engrenagens das coisas.

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Olha, não encontrei. Até hoje sou vacilante na aplicação do que acredito ser justiça. Mas o que me fez entender um pouco sobre as engrenagens das coisas foi a obra de Karl Marx.

um espectro ronda...

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O Samba Daqui

Era mais um fim de semana. E fim de semana era festa no Porto Velho. Afinal, no sábado seria escolhido o samba-enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Bohemios da Madama. O bairro inteiro vestia as cores verde e branco da Escola; surdos, repeniques, cuícas e toda a família per-cussiva do samba já estavam prontos para receber a imensa multidão que costumeiramente se espremia na quadra do que é a maior expressão da cultura popular brasileira.

Sempre foi um privilégio saber que a porta da sala de minha casa ficava de frente a maior expressão da cultura popular brasileira... As palavras que desfilam nessas linhas têm muito do testemunho de um sobrado, que fica à Rua Antônio Gonçalves, 99, palco de minha primeira infância à sombra de dois tamarindeiros, projetando em minhas lembranças a imagem lúdica do jogo de bola de gude e dos primeiros movimentos com a pelota de couro surrada no terreno de dona Guiomar. Uma lente de cores suaves na tela tridimensional do tempo.

Eu era muito pequeno, e já um moleque ansioso em atropelar o inexorá-vel: o tempo de todas as coisas e todas as coisas do tempo. A compreensão de mundo na infância é mais pelo fantástico que por bases racionais de apreensão da realidade. Daí a enorme capacidade que a criança tem em se intrigar com tudo que vê, única coisa em essência que vamos perdendo quando crescemos. A disciplina da convivência humana, sem se dar conta, extermina a possibilidade de formação autônoma do indivíduo, forçando-nos a entregar assinada uma espécie de promissória com data de resgate indeterminada. A velada tragédia do mundo moderno.

É, mas uma mulher me intrigava. Obviamente que a chamarei de Marinal-va, justamente por este não ser o seu verdadeiro nome. Marinalva encanta-va a todos. Havia uma coisa nela que no fundo todos querem ter: a magia que fazia todos quererem comê-la. Coitada, mal podia andar na rua. Só um aceno protocolar não era suficiente. Generosamente, deixava de lado o seu andar firme e olhos corajosamente centrados adiante a oferecer àqueles homens o toque em sua pele, o seu sorriso, como quem, caridosamente, faz

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a um despossuído uma filantropia.

Ela não ligava muito para os murmurinhos das calçadas, das mulheres gor-das da santa inquisição do matrimônio, aliás, acreditava mui sinceramente em sua função. Ela era o Belo, e todas as dores e prazeres nele embutidos deveriam ser compartilhados e fraternos.

Ela não era de bater perna à toa na rua, não. Trabalhava, e muito, como uma das melhores, senão a melhor, manicura do bairro. A clientela que não é muito afeita às artes da vaidade garantia o seu numerário, com pé, mão e algumas prendas, aceitas de bom grado, por beijos e abraços perfumados, mas que a bem da verdade e do esclarecimento acerca de qualquer mal-versação de seu caráter, não eram acompanhadas de quaisquer ordinárias intenções; assim ela marotamente bem fazia parecer. Mas naquele sábado, o expediente acabaria mais cedo, mesmo sob protestos efusivos mas não muito eloquentes da cafajestada.

É que a moça fazia do samba uma profissão de fé. A sua devoção à Escola, mesmo nas horas preliminares ao grande êxtase do batuque, beirava o ritu-alístico. O instante solitário do seu quarto testemunhava a habilidade com que usava os apetrechos de realce à beleza feminina; o óleo, que delicada-mente untava e reluzia em seu corpo instigante de cor brasileira junto às várias matizes de purpurina, combinando, lascivamente, com um pequeno conjunto de duas peças e plumas nos ombros. Os pés, cuidadosamente abrigados num par de calçados que só usa quem tem talento. Depois de finalizada as orações em seu particular altar de madeira espelhado, chegara a hora de vestir o seu sobretudo tropical e caminhar pelas ruas lotadas e exaustas pela espera proporcionada pelos seus caprichos.

Naquele momento Marinalva deixava de ser uma pessoa comum para se transformar em entidade. Sim, uma entidade que tinha em si todas as representações da existência humana. A fantasia sempre foi melhor que a realidade. Ela transpirava o samba. Ela era o samba. E as ruas, com suas multidões famintas, viam nela o sentido e a profunda expressão do ato final de suas vidas: estarem ali e vê-la passar era eternizar este pequeno-grande momento.

Marinalva passava, soberana e onipresente, nos paralelepípedos da Júlio Reis. O gingado do seu corpo era a simetria perfeita no vácuo da ação da

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gravidade e o omisso chão, na deferência da marcação de um surdo em um tempo que insistia em não passar.

Dobrara a esquina da Quadra que pacientemente a esperava com a fina flor da sociedade gonçalense, da contravenção e de outros não classificados. Foi recebida pelo patrono da Escola - ora, pois! - e por alguns senhores do mais fino trato do popular jogo do bicho que complementavam a diretoria. Sambistas de profissão e membros da bateria por ela amadrinhada solfe-jantes, inclusive, um desconhecido cavaquinista que mais tarde se tornaria prefeito de São Gonçalo pelo PDT.

Depois de estendido o rubro tapete das celebridades, Marinalva pôde, finalmente, adentrar em seu santuário pagão sob gritos entusiasmados e a saudação dos tamborins. Tirou o sobretudo e, por mais uma vez, enobre-ceu o Porto Velho.

lan não conheceu a marinalva

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DENILSON E EUHoje Portinari saltou à minha cara. Sim, amigo leitor. É o mesmo Porti-nari, o Cândido, considerado por muitos o maior artista plástico brasileiro. Aquele que tão bem pintou em tela ou em painéis país afora as contradições e anacronismos brasileiros. Sim, o mesmo Cândido Portinari, supra-sumo da arte moderna e do cubismo-surrealismo tupiniquim.

Eram aproximadamente 14 horas. Voltava da Câmara. Sempre passo na Câmara para filar um café e trocar idéias curtas com alguns amigos que prestam serviço ao Legislativo dessa freguesia de São Gonçalo.

Fui em direção ao lance de escada que dá para o estacionamento dos edis gonçalenses à frente de uma piscina que deveria harmonizar com um jar-dim inexistente do largo lateral da prefeitura. Queria fumar um cigarro à sombrinha de uma árvore dali.

Ah, leitor! Omiti uma informação importante: estava acompanhado de um amigo que encontrara minutos antes por um desses acasos que se transves-tem destino...

Antes de sentar-me, porém, o Portinari: Denilson, o seu nome. Sujeito agi-tado em meio ao calor de um inverno já derrotado pela primavera. Queixa-va-se de dor, cria. O gesso no braço também o incomodava decerto.

Os traços brutos daquele homem me lembraram imediatamente o Porti-nari. Precisava de sua história, portanto, para escrever esse post pra você. Essa minha cabeça tonta precisava de um endosso, este veio do amigo útil ao devaneio: “Sim Phill, é o Portinari! Temos um Portinari à nossa frente” - avalizou o amigo. (nota: algumas pessoas me conhecem pela carinhosa alcunha de Phill. Coisa de minha mãe. O estrangeirismo fica por conta do Tavinho do Blues Etílicos, mas isso é uma outra história....)

Puxei logo assunto a ver nele o Brasil. Denilson Pianchi de Moura é o seu nome de batismo. Soletra com desenvoltura o Pianchi. “Alguns falam ‘xi’ outros ‘qui’”, argumentou. Pensou oferecer identidade e atestar existên-

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cia. Mas o desdobramento imediato da conversa nos levou a uma pequena tragédia do nosso amigo: foi atropelado na 18 do Forte. Levaram tudo que tinha. LEVARAM TUDO QUE TINHA: uma mochila, identidade e alguns trocados.

Denilson Pianchi de Moura é morador de rua. Disse que há três meses vive de calçada em calçada. Ia dizendo e bebericando a cachaça no copo de Guaravita. “Não tem remédio, só cachaça. Passa a dor”, revela um tanto marotamente esperando de nós compadecimento. Como não houve a rea-ção esperada, contentou-se queimar o cartucho pedinte com um cigarro.

Querendo ser útil e reverter tal desalento, ofereci a Denilson minha porção cidadã orientando-o e fazendo-o saber das alternativas que o Estado dá aos desvalidos. “Só tem maloqueiro! Abrigo só tem maloqueiro e é lá em Vista Alegre”, retruca o escaldado e consciente desalojado. “Logo, logo tiro esse gesso e pego uma obra pra pagar aluguel. O doutor disse que semana que vem já tiro esse gesso”, continuou, em meio a outra golada na branquinha.

Faltava a foto. Não sei quem era mais cínico, se eu ou o Denilson.

o pé cubista de denilson

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ITABORAÍ VIROU DISTRITO DE SÃO GONÇALO

Perspicaz leitor. Itaboraí é um bezerro desmamado nesse mundo de meu-deus.Bucólica mas já nem tão pacata até 2006 quando a Petrobras anunciou que seria o recanto do Visconde a abrigar a maior refinaria de transforma-ção de petróleo bruto da América Latina.

Nessa mesma época, discutia em sessões privadas e acaloradas com a hoje geógrafa e socioambientalista Karla Karina (Karenina) sobre o perigo de sãogonçalização de sua amada cidade vista por ela ali das terras do Outei-ro. Enquanto políticos e até especialistas das ciências humanas falavam em repetição do que ocorreu em Macaé (crescimento sem inclusão social), Karenina e eu falávamos da possibilidade de adoção do modelo político de São Gonçalo em Itaboraí.

Também em 2006, quando estávamos na UERJ vivendo o glorioso projeto Apologia, promovemos um debate (isso mesmo leitor, um debate!) entre a Universidade, a Petrobras, o Estado (políticos) e os caboquim, ou seja, nós, da tão falada e pouco entendida “sociedade civil”. Único debate promovido até hoje envolvendo a Petrobras com essa envergadura.

O então Gerente de Responsabilidade Social e Programas Ambientais da Petróleo Brasileiro S.A. fez a mim algumas confidências que soltarei no seu tempo. Uma delas diz respeito ao temor da Petrobras com o desenrolar político na região. Estava em jogo o futuro do país dentro de uma estra-tégia de autossuficiência tanto em exploração como otimização industrial do petróleo e do capitalismo tal como Lula queria para o país. Assunto para um outro post.

Desta forma, foi desenvolvido um mapa político e sócio-cultural princi-

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palmente de Itaboraí e São Gonçalo. Os resultados e as posteriores análises deste mapa geopolítico precipitaram a criação de uma instância de discus-sões e tomadas de decisão que pudessem retirar de modo “consensual” e “democrático” o poder e autonomia absolutos das prefeituras.

Nasce o Conleste. Com Lula, a Petrobras passa a fazer política também. A faceta política do Comperj é o Conleste.

O que vemos hoje em Itaboraí são essas forças regionais se movimentando e se adequando às regras estabelecidas pela Petrobras. Daí o “avanço” dos grupos políticos consolidados de São Gonçalo para Itaboraí.

O terreno de disputa política gonçalense, ironicamente, se dará nas terras do Visconde.

será que o viscondetá gostando disso?

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O INTERESSE PÚBLICO É UMA FARSA

A democracia, nobilíssimo leitor, carrega consigo o veneno de sua des-truição. Achincalhar e fragilizar esse sistema ao mesmo tempo delicado e sofisticado que rege o convívio e as relações humanas, vitória maior da civilização ocidental, é um pulo.

E é o que rapidamente vemos acontecer no mundo e no Brasil.

As premissas de igualdade (isonomia), liberdade e justiça para todos têm conotações diferentes para diferentes sociedades e culturas. E o ponto ne-vrálgico de suas fragilidades ou fortaleza é a forma como as riquezas produ-zidas por um país são distribuídas entre o seu povo.

Então, a democracia carece, principalmente, de equilíbrio. E só há equilí-brio possível dentro desse sistema se for para e através do interesse público. Mas que diabos é isso que chamamos de interesse público?

O interesse público é uma abstração - por mais que tenha elementos posi-tivos de idealização majoritários - e fonte permanente de frustração indivi-dual. Não é raro o sujeito virar a cara quando uma imposição coletiva se faz maior aos seus interesses individuais. A democracia é a arte de fazer valer a vontade da maioria respeitando os direitos do indivíduo. Ó! eu sou um gênio.

Trabalhar para o interesse público é um saco. E diria ser quase impossível colocar em prática essa que é a maior das maiores virtudes da democracia. A política, que é a seiva que corre nas veias da democracia, se dá basica-mente por agrupamentos ou interesses de classes, indivíduos e, hoje, prin-cipalmente, corporações.

Faça ver, leitor, na democracia jogamos permanentemente pelos nossos interesses neste grande campo do interesse coletivo (veja bem, coletivo não

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é o uno, o monólito) que é a res pública. É desgastante e impraticável man-ter na prática o discurso do interesse público porque simplesmente isso é inapalpável, uma abstração no mundo real da política cercado de poderosos interesses do capital, por exemplo.

Daí a política e o jogo de interesses serem exercidos de forma seletiva e compartimentada através do modelo representativo que tem no voto a maior expressão de sua vontade e legitimidade. Gostando ou não, tanto o Flávio Bolsonaro como o Marcelo Freixo têm legitimidade para defen-der os interesses daqueles que representam. Cada um defende a parcela do público que representam.

Em O Leviatã, Thomas Hobbes denomina uma categoria social que é conhecida por nós hoje como sociedade civil (há controvérsias...). “Civil”, aí, não é o oposto ou uma contraposição a “militar”. Tem muita gente boa que mistura os canais. A sociedade civil, neste caso, é regida por leis sobe-ranas que dão forma às relações sociais e principalmente ao Estado. É o tal do contrato celebrado entre os cidadãos que tem no Estado o seu principal fiador e mantenedor.

Antes de celebrado o tal contrato as demandas sociais eram resolvidas na porrada. Após de “assinado” o contrato, é o Estado o árbitro de todos os conflitos sociais a partir do princípio da isonomia jurídica que é a chave de funcionamento do sistema democrático. Tudo passa pelo Estado. E quem controla o Estado?

Era o momento que eu estava esperando! Vamos deixar de ser prolixos e de conceituações e vamos logo ao que interessa: quem comanda o Estado hoje é o Partido dos Trabalhadores que alçou uma classe social para dentro do jogo de decisões políticas do Estado brasileiro. Isso incomoda uma parcela da sociedade que foi obrigada a ter na mesa de decisões os caboquim.

Os “porta-vozes” de Vassouras (aqueles que bateram o pé contra a abolição até o último segundo do crepúsculo de Pedro II) fazem um jogo midiático perigoso contra o Governo e atentam frontalmente as instituições demo-cráticas. Utilizam-se dos meios de comunicação para fabricarem um senti-mento de repulsa da população ao governo Dilma Rousseff absolutamente inexistente.

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Tenhamos cuidado. Cuidado com essas marchas “contra a corrupção”. Cuidado com a Veja e cuidado com a bolinha de papel.

Nós, da tão falada Classe C, estamos, pela primeira vez na história deste país, saboreando o gostinho de sermos os protagonistas de nosso próprio destino. Conquistamos através de muita luta o direito de ter uma parcela maior da riqueza deste país. Ainda é pouco. Mas estamos no caminho certo embora tenhamos que estar sempre vigilantes.

A história está em nossas mãos. Vamos dar um cheque em branco ao PT? Claro que não. Mas devemos ter consciência que nós somos a base políti-ca e eleitoral de representação da maior parcela do público que há séculos ficou excluída do processo decisório deste país.

Corrupção de cu é rola, como diz um amigo meu. Não quero dizer que tolero esse tipo de coisa. Mas numa perspectiva mais abrangente isso passa a ser residual frente a um projeto de país no qual eu e você, leitor, somos pela primeira vez protagonistas. Roubou, polícia e justiça. Não se engane. O interesse público muitas das vezes é um engodo e não raramente usado como discurso para a prática de gigantescas sacanagens da forma mais abje-ta contra o grosso do povo brasileiro.

dilma dá tchaupra oposição

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A PROFESSORA E EU

Caríssimo leitor. Tenho comigo algumas maledicências que roço ao ouvi-do desde que nossa honorável prefeita falou à radio de ondas curtas perten-cente ao maior conglomerado de comunicação do país.

Há pouco disse, abaixo, numa dessas peças caboquianas deste escriba, que ouço vozes.

Sim. VOZES. Essa coisa de doido.

Dessa vez não. Era bem real a mesa de madeira e a cerveja cara. Ali, eu [se vê] e essa praga de gente que só faz pergunta óbvia pra resposta difícil.

Deves saber: pergunta de criança. A pior das perguntas.

_ Aparecida é uma anta - esbraveja já sem paciência o amigo.

O amigo em questão se referia ao palavrório do Canázio na Globo AM. Eu nada disse.

Antes veio à cabeça a professora.

Maria Aparecida Panisset foi minha professora.

Não vejo a prefeita. Vejo a minha professora Maria Aparecida. Assim como o giz que a irritava marcava o seu nome na lousa com a história que o Esta-do, através da escola, nos obrigava a conhecer.

Nos odiávamos mutuamente. É, ela e eu.

[Claro, esqueci! (...): Colégio Paraíso. 1987. 5ª Série]

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A professora Maria Aparecida não tinha muita paciência comigo. Invaria-velmente era expulso da classe por ela. Isso era uma espécie de provação-limite; a exposição pedagógica à vergonha e à culpa. Punição máxima que, hoje tenho certeza, se aproxima a uma espécie de sadismo dos inocentes.

A professora de História Maria Aparecida não era intelectual. Não. Se trou-xesse consigo tal dote ali, nos anos 80, fumaria maconha, ouviria roquenrol e seria de esquerda.

Mesmo hoje, olhando para trás, e sabendo de sua trajetória que é simples-mente espetacular, não consigo saber exatamente quem era aquela profes-sora. O que vem à mente é uma mulher com forte e inabalável convicção moral e de valores. Carregava já um messianismo retórico latente.

Sei porque fui sua tábua rasa. Eu sou testemunha da sua força - quase ob-sessão -, perseverança, empenho e convicção em me fazer odiar história.

Como disse acima, nos odiávamos mutuamente.

Lembro da pergunta do amigo que originou essas divagações. Delas não fujo, e faça saber agora: Aparecida Panisset é uma melodia que é a própria transcendência de São Gonçalo. O seu moralismo e messianismo profes-soral eram a luva que este caldo de cultura borbulhante do pentecostalismo nativo precisava.

Graça “macumbeira” num jornal apócrifo foi o último ato da ciência políti-ca levada ao extremo no Brasil. Foi a bolinha de papel que deu certo. Isso é apenas um parêntese, leitor...

Aparecida Panisset é a figura política mais importante de toda a história da cidade ao lado de Joaquim Lavoura. E digo: ela quer o estado. Essa entre-vista é sua avant première na política fluminense com a armadura de um governo bem avaliado. Governo de uma cidade que é fundamental em qualquer eleição.

A entrevista? Bola para a professora a meia-altura que pegou de voleio e fez de placa. Talvez escorregara na própria ignorância quando deu a entender que a linha 02 Circular era concessão estadual não tendo a prefeitura nada a ver com o martírio dos usuários dos ônibus da empresa Estrela.

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Parece a mim Canázio bobão. Ficou feio à beça ao Canázio paladino do povo gonçalense escancarar ignorância e preconceito, frases prontas achan-do que meu amigo não vá perceber o circo:

_ Helcio, esses caras tão pouco se lixando pra gente. Que merda é essa? Essa cidade não tem plano de desenvolvimento urbano próprio. Parece que São Gonçalo existe por osmose...

É..., continua. Sempre continua...

aparecida quase me fez odiar história

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NÃO PEGO NINGUÉM DO ROCHA

Os problemas de São Gonçalo carregam em seu código genético as pró-prias soluções. Pode soar piegas ou até mesmo demagógico tal afirmação, meu caro leitor, mas acredito que no decorrer deste texto sairás convencido de que sou apenas mais um dentre tantos que cerram fileiras para o bem desta que é a nossa terra.

Pra começar, digo meio de supetão, se me permite, que a freguesia de São Gonçalo do Amarante carece de integração espacial. Não somos uma cidade integrada no sentido clássico que tem no ponto zero, o centro, a sua principal referência cultural e econômica. Ao Sul corremos a Niterói e ao Norte batemos perna rumo a Alcântara.

Como sou abusado, pego agora uma coisa cara ao catolicismo para fazer-me entender: historicamente essa cidade do santo boêmio sempre foi para nós o purgatório, o transitório. “Oxalá ficar rico e dar no pé!” Eis o projeto de vida do gonçalense. Negligência daqui, desleixo de lá, nos transforma-mos numa quase impossibilidade. Quase...

São Gonçalo é tão viável que sobrevive até à indiferença dos seus. Precisa-mos integrá-la e abandonar a concepção viária-espacial que sempre privi-legiou Niterói. Não precisamos de Niterói. Eles que sempre precisaram da gente e não têm a menor gratidão por isso.

Pôxa, eu que sou do Porto Velho, descobri que tem uma porção de gati-nhas ali no Rocha, Colubandê, Coelho... A possibilidade de eu casar com uma delas é ínfima. Também sei que tem uma penca de lojas de atacado que me dá uma economia dos diabos em artigos de escritório e papelaria. Hospital Geral? Esqueça! Melhor ir para o Souza Aguiar no Rio.

O capital não sobrevive à desintegração. É muito mais fácil, rápido e con-fortável eu gastar o meu dindim no Bay Market ou Plaza que no Shopping

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São Gonçalo que está a 3 Km de minha casa pela BR 101.

Um grande amigo, professor e geógrafo Mauricio Mendes vivia a me alertar: “Seguimos os nossos acidentes geográficos. Somos passagem, não hospedagem”. Claro, concordo. Mas se não fosse uma decisão política e econômica de integração Copacabana até hoje seria uma praia selvagem.

Por conta dos tais acidentes, que na verdade são os “maciços” longitudinais que cortam nossas terras nos sentidos norte-sul formando extensos corre-dores, a cidade é fragmentada. E isso gerou um bocado de desdobramentos nas áreas social, política, cultural e econômica.

Essa desintegração espacial e o pouco caso da administração pública, por exemplo, quase nos subtraem as regiões de Ipiíba e Monjolos (Alcântara) do nosso convívio nos anos de 1990. Mas sabiamente a população disse não à emancipação dos distritos que formariam um novo município. Depois de perder Itaipú no início do século XX para Niterói, não sei se o santo prote-tor dos músicos iria aguentar...

Esse capitalismo roda-presa em São Gonçalo mantém certas coisas inacre-ditáveis. Não entendo o domínio que beira o senhorio da empresa Galo Branco naquela região do Rocha e do Galo Branco. O empresário da cons-trução civil olha aquela área (sub-habitada) e se pergunta: Eu vou vender apartamento num lugar onde não tem transporte com facilidade? O mais 171 dos corretores não consegue vender.

Respeito, é claro, a função honrosa do proprietário da empresa citada em ser um empreendedor numa área tão complicada que é o transporte públi-co. Como empresário vencedor em seu ramo, ele deve entender e apoiar o que falo. Porém, deve concordar se houver planejamento, critério, visão de futuro do poder público para ousar usando-se, no nosso caso, da criativida-de e principalmente responsabilidade e boa vontade.

A prefeita está de parabéns por tudo de bom que tem feito. A feiura de São Gonça que tanto trazia-me desesperança deu lugar a mais bela de todas as coisas: a beleza do movimento, do fazer para o que é feio se tornar belo.

Mas queremos e precisamos ir além. De um projeto de cidade que rime desenvolvimento com oportunidades para todos. São Gonçalo é uma das

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poucas cidades do Brasil que se fez do povo. Não lembro o último “dou-tor” (Charles não conta) prefeito desta cidade. É por isso que quando me perguntam como é Sâo Gonçalo eu respondo que é o que há de melhor do povo brasileiro.

PS: Por conta deste texto, uma contribuição especial do Bardo, ou o taver-nista Rodrigo Santos nesta paródia inspirada em Óculos, do Paralamas:

“As meninas do Colubandê não dão pra mim(moro em Ne-ves!)

E volta e meia não consigo ir pro Arsenal(moro em Ne-ves!)

Se faço Letras na Uerj está tudo bem

Mas fora da rota do ABCeu não como ningue-ém...

Por que você não olha pra mim?Será que é por que moro mal?

Por que o Rocha é longe pra mim?Imagina então Largo da Ideia ou Arsena-al...

Por que não tem buzum para mim?Metrô só existe na eleição...

Por que em São Gonçalo é assim?A linha do ônibus é que pauta o coraçã-ão...”

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ALUÇÃ, OS AMIGOS E A HOMENAGEM

Necessário leitor. No dia 15 de outubro um dos maiores e ilustres artistas desta terra de São Gonçalo do Amarante será homenageado no Teatro Carequinha. Dezenas de artistas irão se apresentar em ode à memória e ao talento do músico e compositor Luiz Alberto dos Santos, consagrado aqui e alhures como Aluçã.

Esse campista chegou em São Gonçalo muito cedo e, como não poderia ser diferente, foi logo adotado pela cidade. Em retribuição ao amor e cari-nho dessa gente, Aluçã alçaria à adjetivo a palavra gonçalense, sinônimo de muito trabalho, talento e criatividade frente às dificuldades crônicas do cotidiano e de realização dos nossos sonhos.

A história de Aluçã é genuinamente de luta e um exemplo para todos.

Na cara e na coragem produziu e gravou de forma independente diversos LP´s e CD´s. A sua simplicidade e humildade, fruto de sua alma genero-sa e espírito altruísta, foram o amálgama que deu forma e sentido à classe artística em São Gonçalo. Vários músicos que hoje estão na ativa devem a Aluçã suas avante premières nos palcos do Brasil e do mundo.

O músico e ultravisceral Aluçã foi obrigado, devido às circunstâncias e ad-versidades, a se embrenhar no mundo da produção e da indústria cultural. Foi pioneiro e, meio que sem querer, agregou outros artistas e agentes de cultura no alvorecer da consciência política e de atuação na área.

Pode-se dizer que - mesmo escassos - os equipamentos de cultura existen-tes em São Gonçalo são fruto da experiência e articulação de Aluçã junto aos artistas que pressionaram o governo no sentido de criar condições mais dignas de trabalho ao seu ofício. No DNA da Secretaria de Cultura e da Fundação de Artes de São Gonçalo está Aluçã.

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Nunca reivindicou para si os holofotes das glórias da política. Aluçã era a própria luz, e a sua casa o palco. Ele foi responsável por transformar São Gonçalo em principal referência noturna depois do Rio de Janeiro nas décadas de 1980 e 1990. As casas na cidade onde se apresentava ficavam invariavelmente lotadas.

O seu sucesso e garra inspiraram uma geração inteira de artistas que viram nele as referências de amor e convicção de que precisavam para ter na arte a principal fonte de realização. Ou, simplesmente, coragem como artistas. Não é fácil ser de uma classe social onde muitas das vezes é proibido ser artista.

Aluçã é um monumento ao talento e à bravura do povo. A sua arte tinha a missão sagrada e penosa de adocicar a vida das pessoas. A grande saudade que sentimos de Aluçã é a certeza de que ficaremos menos felizes com a sua ausência. Mas, para que essa sensação de vazio seja amenizada, só mesmo a criação e a preservação de sua memória e de sua obra pelos amigos que cultivou ao longa da vida.

O tributo-homenagem a Aluçã, que será realizado no aconchegante teatro em Neves, tem essa missão: matar um pouco a saudade preservando a sua memória. E a maior representante desse esforço inadiável de amor, respei-to e memória ao artista gonçalense é a cantora Claudia Sing, mentora do evento.

claudia sing e o amigo aluçã

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ARTE E CULTURA SÃO COISAS DE DOIDÃO?

Evoé. Um companheiro meu das tintas e de longa data faz um cafuné no professor e ativista cultural André Correia...

Por Armando Palavra

Arte e cultura são coisas de doidão.

ISSO QUANDO A MINHA SANTA MÃE - que Deus a tenha - pegava leve e não emendava que arte era coisa de veado e vagabundo!

Era terrível, devo confessar. Quando guri no Porto Velho, todo mundo que passava na rua, que a gente sabia que fazia teatro ou que pelo menos segurasse um violão, não era perdoado: MACONHEIRO! VIADO! VIA-DO! Gritava com a convicção que minha mãe julgando-se ajuizada me passara. Putz! Quanto mal fizemos a auto-estima desse pessoal...

Na escola não era diferente. Se eu fizesse uma merda grande, a ponto de ficar ajoelhado no feijão (eu fiquei no Célia Peniche), pronto: lá vinha a professora dizendo que eu fiz “arte”. Ah, o castigo? Esse aí que eu te falei, sendo que na solidão da biblioteca. Lá estavam os livros a me torturar, rin-do da minha cara.

Digo a você que não era pra eu gostar de ler. Aliás, conto aqui uma his-tória interessante. Quem me salvou do trauma da biblioteca foi Machado de Assis e o seu conto “O Alienista”. Sabe, fui na banca, já adolescente de mão cabeluda, comprar uma revista pornô. Naquela correria do jornaleiro inescrupoloso em me vender “conteúdo impróprio para menores”, acabou embrulhando a mercadoria errada.

Ansioso e cheio de tesão juvenil, acabei me apaixonando pelo dr. Simão Bacamarte...

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Rapaz, minha vida virou um inferno. Comecei a ler e ler. Foi quando bati de frente com tudo que a minha mãezinha dizia. Principalmente por causa do tal do paradoxo. Dizia ela: você tem que estudar! Estudei, segui o seu conselho. Mas saí do seu mundo.

Ela, iletrada, do interiorzão do Brasil, religiosa, tinha a sabedoria suficien-te e a persuasão baseadas na técnica da ladainha, do conselho repetido à exaustão para que eu não tivesse a vida de escassez que ela tivera. Estudo e trabalho eram o seu mantra.

Fiz essa volta toda para parabenizar o grande André Corrêa que se utiliza do estudo e do trabalho duro para atuar nesse mundo de “doidão”, “veado” e “vagabundo”. O Projeto Alternativo, tocado por ele, dá frutos desde os tempos da UERJ/SG e se consolida com o Quarto das Artes, mix de arte e cultura que reúne vários artistas da cidade de São Gonçalo num grande ato de possibilidades.

André não reclama, trabalha. André não divaga, estuda. E prova de modo bem singelo que arte é o ato de se expressar e ponto. Não precisa de mais nada além do querer artístico para desenvolver, em qualquer espaço, o ato da expressão e da criação única do artista.

andré, o doido

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ELE VEIO DE LONGE SÓ PRA LHE PEGAR...

“Raul Seixas e Raulzito/Sempre foram o mermo homi/mas pra apren-dê o jogo dos rato/Transou cum deus e cum o lobisomi.”

Assisti, com mi amore - como quem ainda roça a brevidade do tempo - no pomposo e lendário Cine Odeom-Petrobras, localizado no Largo histórico da Capital da Província, a Cinelândia, ao maravilhoso documentário “O início, o fim e o meio”, do diretor Walter Carvalho, que narra a impres-sionante história do maluco mais coerente já nascido nas terras da Bahia de Todos os Santos.

O homi, divino e pagão; humano, pertubadoramente humano e, por isso mesmo, cheio de contradições, reensinou a este humilde escriba a miséria da existência que teima em subexistir num ambiente hipócrita que premia prioritariamente os canalhas nesse teatro escroto donde o roteiro é a eterna variação sobre o tema de nossas ilusões passageiras e cheias de dentes bran-cos e saudáveis como num comercial da Colgate.

Escrever sobre o Raul é uma missão inglória acerca do mapeamento das coisas, a dimensão do homem. Como ser ao mesmo tempo o gozo e o seu anticlímax? E só mesmo a ironia para harmonizar tais extremos através da arte, pelo olhar do gênio Raul Seixas. Nenhum outro artista brasileiro conseguiu levar para sua música questões tão complexas de nossa finitude humana e transformá-las em hit, sejam em canções proto-gospel e místicas como Tente Outra Vez e Gita, políticas, representadas em Sociedade Alter-nativa e Aluga-se, até as existenciais, na auto-declaração Eu Sou Egoísta, na ultraclássica Metamorfose Ambulante e no hino da desilusão Ouro de Tolo.

Raulzito foi muito importante na formação deste escriba, para o bem e para-além o mal. Aliás, experimentei com ele esta deliciosa ambiguida-de, dualidade do viver e do aprender. Espantei, ali, qualquer possibilidade

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de ser conduzido por esse troço maniqueísta de ser. Portanto, me tornei, assim, meio baiano também.

Amando o contraditório nas coisas sem enxergar, necessariamente nisso um paradoxo. Em suas palavras, aos 11 anos de idade também já desconfia-va da verdade absoluta.

E, programadores destas salas daqui desta freguesia, adoro a capital da pro-víncia, mas, por favor: Toca Rauuuulll!

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notas

YAMATO E O CAPITÃO KODAI: Publicado originalmente em 17 de agosto de 2011. In blogdohelcio.blogspot.com Informações complementares sobre a saga anime podem ser adquiridas no Wikipédia. Foto: Internet/Wikipédia.

EU E O APOLOGIA: Publicado em 25 de agosto de 2011. Como dito na cabeça do texto, fez parte originalmente da edição nº 9 do Jornal Daki, que circu-lou no distrito de Neves até 2011. O jornal digital está disponível no issuu.com/apologiabrasil.

O APOLOGIA E O MOVIMENTO SOCIAL: Publicado também no dia 25 de agosto de 2011 faz parte do Jornal Daki. Foto: Editora Apologia Brasil, março de 2004.

SÃO GONÇALO E A MODERNIDADE TRANSEUNTE: Publicado em 17 de agosto de 2011. Abro o post do blog assim: “Posto agora, meus caríssimos e indispen-sáveis amigos, um texto de 2003, publicado originalmente nos jornais Nosso e Apologia./Esse texto faz parte de uma série a la Baudelaire e o seu fleneur de sua obra Sobre a Modernidade./Queria, assim, exprimir o meu sentimento sobre esta cidade que a cada dia se encrua como impossibilidade. Peguei na mão da Modernidade e fizemos um passeio ou uma avante tour como ela pre-fere. Primeiro passamos pela Praça Zé Garoto (nota: antes do banho de loja da Panisset)”. Foto: Ilustração internet. Origem desconhecida.

MULHER ENGANA ATÉ O DIABO. E EU COM ISSO?: Esse texto foi postado original-mente num tópico chamado “Contos Daqui” no Orkut, na comunidade São Gonçalo, pelo meu alterego esquizofrênico Johan Sputinik. Foi o segundo texto publicado no blog, em 16 de agosto de 2011.

LADY GAGA, O CASAMENTO E GAY E A ERA DAS INFINITAS POSSIBILIDADES: Publicado em 20 de agosto de 2011. Foto: Divulgação fanpop.com

KARL MARX ESTAVA CERTO: Publicado em 18 de agosto de 2011. Nouriel Roubini é um dos maiores observadores econômicos da atualidade. Não

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se entende o que está acontecendo sem acompanhá-lo. Foto: Divulgação http://centrodeestudosambientais.wordpress.com

O SAMBA DAQUI: Publicado no blog em 21 de agosto de 2011 com o título PORTO VELHO E SUAS HISTÓRIAS com essa preciosa informação: “Meu bravo leitor. Deixo com você um texto dentro de um Projeto que tive chamado ‘Porto Velho: Crônicas de um Bairro’. O texto é de 2002 e foi publicado no zine O Idiota que mantive na minha época de UFF”. Foto: Divulgação Internet sobre charge de Lan.

DENILSON E EU: Publicado em 29 de agosto de 2011. Foto: Acervo Editora Apologia Brasil.

ITABORAÍ VIROU DISTRITO DE SÃO GONÇALO?: Publicado em 25 de agosto de 2011, já antevendo as tensões políticas que se desenhavam com as eleições no município, que tiveram grande influência de dois políticos gonçalenses, Altineu Cortes e Marcio Panisset. Foto: Ilustração Visconde de Itaboraí. Divulgação Internet.

O INTERESSE PÚBLICO É UMA FARSA: Publicado em 31 de agosto de 2011. Um texto que, infelizmente, teimará por ser atual durante muito tempo. Foto: Divulgação Agência Brasil.

A PROFESSORA E EU: Publicado em 4 de novembro de 2011. O texto surgiu depois de uma entrevista da prefeita Aparecida Panisset ao radialista Ro-berto Canázio, da Globo AM, realizada em 1 de novembro do mesmo ano. Foto: Acervo Editora Apologia Brasil.

NÃO PEGO NINGUÉM DO ROCHA: Publicado em 23 de setembro de 2011. Origi-nalmente o texto foi publicado no jornal O Guarda, publicação da Associa-ção dos Guardas Municipais de São Gonçalo. Foto: Divulgação Internet.

ALUÇÃ, OS AMIGOS E A HOMENAGEM: Publicado em 7 de outubro de 2011. O texto antecedeu o evento em homenagem a Aluçã realizado no Teatro Carequinha no dia 15 do mesmo mês. O tributo reuniu diversos artistas da cidade de São Gonçalo no sentido de arrecadar fundos para a construção de um centro de memória para o artista. Foto: Acervo Claudia Sing.

ARTE E CULTURA SÃO COISAS DE DOIDÃO?: Publicado em 17 de agosto de 2011

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sob o pseudônimo Armando Palavra, figura fictícia - e esquizofrênica - criada na época do Projeto Apologia. Originalmente o texto pertence à 8ª edição do Jornal Daki, disponível em issuu.com/apologiabrasil. Foto: Acervo Editora Apologia Brasil.

ELE VEIO DE LONGE SÓ PRA LHE PEGAR: Publicado originalmente na 18ª edição do jornal O Guarda, em junho de 2012. Publicado no blog em 25 de se-tembro do mesmo ano. Foto: Divulgação Internet.

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