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A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa
Cadernos do IDN - nº 4 1
Cadernos do IDN
Nº 4
A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança
Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa
António Horta Fernandes
Professor Auxiliar do Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa
IDN 2007
António Horta Fernandes
2 Cadernos do IDN - nº 4
Os Cadernos do IDN resultam do trabalho de investigação residente e não residente promovido pelo Instituto da Defesa Nacional. Os temas abordados contribuem para o debate sobre questões nacionais e internacionais. As perspectivas são da responsabilidade dos autores não reflectindo uma posição institucional do Instituto de Defesa Nacional sobre as mesmas.
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A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa
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ÍNDICE
1. Introdução ................................................................................................. 5
2. A Estratégia e os Estudos para a Paz ............................................................. 6
3. A Estratégia e os Estudos de Segurança....................................................... 13
4. A Estratégia como Ética do Conflito ............................................................. 18
5. A Estratégia como Disciplina de Fins Face à Guerra e à Política ....................... 19
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1. Introdução
A estratégia tem hoje um estatuto paradoxal. Os actores da cena
internacional continuam a praticá-la, mas em termos académicos parece ser uma
disciplina mal-amada ou mesmo marginalizada. Se nos cingirmos às ofertas de
Mestrado em Segurança e Defesa da Universidade Complutense, ou ainda às pós-
graduações em Relações Internacionais ministradas pelas Science Po, podemos
verificar que a própria palavra estratégia mal aparece. E isto é tanto mais gravoso
no caso francês, quanto a teoria da estratégia adquiriu neste país um refinamento
ímpar. Quiçá, julgada uma relíquia da Guerra Fria, a estratégia tem sido relegada
para os institutos superiores de ensino militar, uma solução demasiado unilateral,
porquanto a estratégia há muito que deixou de ser apenas estratégia militar. Por
outro lado, mesmo nestes institutos a estratégia sofre a concorrência das doutrinas
de operações de apoio à paz, como se estas fossem exteriores ao horizonte
estratégico, e dos estudos de segurança, um conglomerado disciplinar
manifestamente mistificador, como veremos.
No âmbito da ciência política, talvez por ser considerada demasiado
schmittiana, a estratégia não tem sido devidamente acolhida, quando a disciplina
estratégica pretende exactamente o contrário da exponenciação conflitual
schmittiana, ao dizer que apenas uma parte da política tem como ultima ratio o
conflito hostil e que mesmo essa é passível de um tratamento prudencial, num
sentido ético, dado precisamente pela estratégia.1 Além do mais, a estratégia
refere-se a manifestações subtis de hostilidade e não exclusivamente à guerra
quente e visa tanto adquirir vantagem nos conflitos quanto armar a paz.
Igualmente no âmbito das relações internacionais, a estratégia não tem
tido a melhor das recepções, provavelmente porque identificada de forma acrítica e
errónea com as teorias realistas e neo-realistas, que hoje sofrem a concorrência de
várias teorias pós-positivistas.2 Disso beneficiaram os estudos para a paz e os
estudos de segurança, que têm preenchido, em muito, o espaço da teoria da
estratégia sem que a consigam substituir.
Na verdade, o exercício prudencial da estratégia e a retroacção desta
sobre a política tende a desarmar a ideia de política internacional como mero jogo
1 Cfr. Carl Schmitt, La Notion du Politique, Paris, Calmann-Lévy, 1972. Para uma recepção muito favorável da obra de Schmitt em Portugal, cfr. Alexandre Franco de Sá, Metamorfose do Poder. Prolegómenos Schmittianos a toda a sociedade futura, Coimbra, Ariadne, 2004. Do ponto de vista estratégico, pode encontrar-se uma recepção muito crítica de Schmitt em António Horta Fernandes, O Homo Strategicus ou a Ilusão de uma Razão Estratégica?, Lisboa, Cosmos-IDN, 1998, pp. 210-212, ainda que, à altura, o autor não tenha atendido a toda a complexidade do pensamento schmittiano. 2 Em língua portuguesa, e em instância pós-positivista, está disponível uma magnífica síntese das várias escolas e correntes da teoria das relações internacionais, na obra de João Gomes Cravinho, Visões do Mundo: as relações internacionais e o mundo contemporâneo, Lisboa, ICS, 2002. Cfr. igualmente, José Pedro Teixeira Fernandes, Teoria das Relações Internacionais: da abordagem clássica ao debate pós-positivista, Coimbra, Almedina, 2004.
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de poder, num cenário de confrontação entre entidades soberanas, ou que actuam
inspiradas em racionais soberanos. A estratégia visa racionalizar esses choques e
não incrementá-los, pelo que logo no exercício do poder mais nu, da
excepcionalidade soberana, se faz sentir uma contra-força à discricionaridade de
facto do poder; uma contra-força que dialecticamente sai do seio desse mesmo
poder.
O excurso que de seguida empreenderemos tem muito de uma
aproximação (que quase se poderia designar de orteguiana) à estratégia por
círculos concêntricos. Lenta e paulatinamente, retomando de forma sucessiva os
argumentos principais, insistiremos no lugar decisivo da estratégia, na confluência
de vários saberes, como resposta aos desafios da cena internacional; lugar esse
que nem os estudos para a paz, nem os estudos de segurança poderão ocupar. À
estratégia enquanto ética do conflito cabe ir mais além e ajudar, na medida do
possível, a reconfigurar um espaço internacional que se quer radicalmente outro e
pós-soberano. Veremos como, no seu nicho específico, a conflitualidade hostil,
apenas a estratégia pode almejar (se é que até ela o pode) a tanto.
2. A Estratégia e os Estudos para a Paz
Relativamente aos estudos para a paz (veja-se o interessantíssimo
número temático da Revista Crítica de Ciências Sociais, com abundante
bibliografia, que lhe é dedicado3), o único ponto de contacto estrutural com a ideia
de que a estratégia é uma arte da prudência para além de toda a prudência, ou
uma ética do conflito, tese há muito por nós defendida, é a de que a paz é o ponto
de chegada e também a dimensão frontal inspiradora da estratégia. Ponto de
chegada porquanto a estratégia tem por finalidade ajudar a construir uma paz filial
e superar-se a si mesma, armando uma paz que não seja apenas mais paz
armada, logo não só provisoriamente pacífica. Fonte de inspiração, porque não é
possível o exercício propedêutico de uma paz filial caso não se parta desta como
guia de caminho. Porém, a partir daqui, tanto quanto possamos aquilatar, os
caminhos divergem, desde logo metodológica e epistemologicamente, já que os
estudos da paz parecem fazer finca-pé numa aproximação teórica moldada nas
ciências sociais, em particular, em linhas sociológicas pós-positivistas, política e
ideologicamente empenhadas, enquanto a estratégia, como ética do conflito,
sobraça linhas predominantemente filosóficas e teológicas, nomeadamente em
torno ao pensamento judaico contemporâneo e à teologia política renovada, tanto
de inspiração católica como reformada.
Todavia, não é essa a diferença principal. Muito mais importante parece
ser a pouca atenção que os estudos da paz votam à estratégia e à inquietante e
recorrente manifestação da conflitualidade hostil, que não parece poder ser
reduzida por qualquer dinâmica meramente sociológica, nem negada a sua força
ôntica. Por exemplo, os estudos da paz nada parecem ter a dizer sobre o Mal
aplicado a esta problemática específica da conflitualidade internacional. Por maior
3 Cfr. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 71, Coimbra, Junho de 2005.
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respeito que nos mereçam, também não são os estudos de género que permitem
resolver a questão da conflitualidade hostil, tendendo a centrá-la nas questões de
dominação patriarcal e da lógica adversarial, de suposta raiz androcêntrica, que
perpetuaria a guerra por outros meios, ou nem tanto. Essa linha de raciocínio pode
servir para explicar historicamente certas posturas conflituais, o que me parece
inegável, embora possa induzir igualmente a uma confusão de níveis explicativos.4
Além disso, poderá a simples figura da emancipação contribuir para mais do que
integrar uma quantidade maior de pessoas de corpo e alma no statu quo? E ainda
que essa emancipação traga um sentido de mudança, será mesmo que a figura
impositiva da emancipação, de uma autonomia a todo o custo, consegue traduzir o
novum, superiormente a uma dinâmica de acolhida, a um zelo de solicitude, por
exemplo? Seja qual for a resposta, e já se vê que as nossas interrogações não são
gratuitas, comportam antes todo um programa, parece-nos que a importância a
atribuir à recusa do outro como próximo, à recusa do acolhimento, da gratuidade,
da ironia, etc., poderão configurar uma linha de trabalho mais profícua;
curiosamente uma linha de abordagem que aponta para características (a ironia, a
gratuidade, a auto-crítica radical) que têm sido mais cultivadas pelo género
masculino.
Aquilo a que os estudos da paz não parecem atender é à complexidade do
conflito hostil e das suas manifestações, exactamente o campo historicamente
operativo da estratégia. Não se pretende aqui julgar a influência eventualmente
negativa que os estudos da paz tiveram em algumas operações de apoio à paz,
mediante racionais de estrita neutralidade no uso da força e nas capacidades de
auto-defesa, que deixaram muitas vezes os “capacetes azuis” na impossibilidade
de defender populações civis e até a si mesmos. Depois do Relatório Brahimi,
percebeu-se definitivamente que algumas dessas operações de apoio à paz teriam
de ser necessariamente bem mais musculadas (sem aspas).5 A questão reside
antes em julgar que os esforços de paz por si mesmo, em ambientes de natureza
estratégica, eles próprios não são tocados por esses ambientes ou podem ser
neutros (isentos é uma outra coisa) relativamente aos mesmos. O espectro da
conflitualidade hostil é hoje extraordinariamente vasto e existem mesmo esforços
teóricos para o alargar não apenas às zonas de limiar agónico, onde conflitualidade
e competição se confundem em níveis onticamente pastosos, mas à competição
per si.6 Noutro lugar pretendemos mostrar as deficiências e a consequências
4 Cfr. Tatiana Moura, Entre Atenas e Esparta. Mulheres, paz e conflitos armados, Coimbra, Quarteto, 2005; e ainda da mesma autora, “Novíssimas Guerras, Novíssimas Pazes”, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 71, Coimbra, Junho de 2005, pp. 77-96. Um clássico dos estudos de género em Relações Internacionais é o livro de J. Ann Ticker, Gender and International Relations, New York, Columbia University Press, 1992. 5 Cfr. Report of the Panel on United Nations Peacekeeping Operations (A/55 – S/2000/809). Este Relatório é fruto de um painel convocado no ano 2000 por Kofi Annan para fazer um balanço e aprofundar a temática das operações de apoio à paz patrocinadas pela ONU. O Relatório leva o nome do diplomata argelino Lakhdar Brahimi, que encabeçou o dito Painel. 6 É de salientar os cuidadosos esforços nesse sentido por parte de Abel Cabral Couto, revendo assim a sua conhecida posição expressa nos Elementos de Estratégia, pretendendo com isso, e no seu entender, uma aproximação mais cabal da estratégia às novas realidades contemporâneas, tendencialmente osmóticas, bem como chegar a uma abrangência sistémica para a teoria da estratégia, que não prenda os seus critérios definitórios nem à sobredeterminação política nem, sobretudo, ao nível da estratégia integral, o que limitaria assim o “ser” estratégico a uma das suas facetas, por mais importante que seja a estratégia integral. Cfr. Abel Cabral Couto, “Da Importância de uma Teoria” in Francisco Abreu, Fundamentos da Estratégia Militar e Empresarial. Obter superioridade em contextos conflituais
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negativas dessa abrangência, mas é um facto indesmentível que essas
manifestações subtis e insidiosas de hostilidade existem e que se as mesmas
podem servir para morigerar a violência, não deixam de ser violentas enquanto
tais.7 Assim sendo, o problema reside em identificar a amplidão do espectro da
conflitualidade hostil, limitá-lo e tratá-lo, que é o que faz a estratégia, tendo plena
consciência que não é através da paz por si mesma, sem qualquer intermediação,
que se pode chegar à paz almejada. Julgar que se está a pisar terreno pacífico
quando assim não é, pode agravar a doença.
Ora, isso é bem visível nas novas classificações, algumas com base na
própria Carta das Nações Unidas, que se fazem acerca do ciclo bélico. Em
determinadas condições, nomeadamente, se existe aquiescência ou mandato da
ONU para o efeito, ao abrigo do artigo 42º da Carta, podem realizar-se operações
de imposição da força. Trata-se de operações que aparecem muitas vezes descritas
como operações de imposição de largo espectro, para as distinguir dos terrenos do
peacekeeping musculado e outras designações menos felizes, como inducement
operations e peace enforcement de baixa intensidade, mas que ainda assim são
consideradas distintas da guerra tout court.8 É absolutamente incrível que o óbvio
não surja sempre: que essas terminologias podem servir para legitimar acções de
guerra efectiva por parte das principais potências da cena internacional e que, na
verdade, são acções de guerra quente sem mais. Percebe-se o que se pretende
proscrever, a guerra, mas esse não é o melhor dos caminhos, até porque, como
muito bem sabemos hoje os conceitos analíticos não são mero aferidores da
realidade, antes, quando interiorizados, começam pautar a conduta dos actores
sociais.9
Os estudos para a paz não parecem ter em conta, como dissemos, a
insiosidade das manifestações de hostilidade hoje em dia; não obstante, sempre se
pode objectar a partir deles que a estratégia nasce adentro da violência e que
muitas dessas mesmas manifestações foram criadas pela estratégia. Na realidade,
as coisas passaram-se assim mesmo. Contudo, aquilo a que os estudos da paz não
parecem atender é à complexidade do homem, às palavras sabiamente descritas
no Eclesiastes: “Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se
deseja debaixo do céu:/ tempo para nascer e tempo para morrer, tempo para
e competitivos, Lisboa, Sílabo, 2002, pp. [17-22], e do mesmo autor, “Posfácio” in Francisco Abreu, António Horta Fernandes, Pensar a Estratégia. Do político-militar ao empresarial, Lisboa, Sílabo, 2004, pp. 215-230. De salientar ainda que embora as posições de Abel Cabral Couto e Francisco Abreu sejam muito próximos, este último afasta-se significativamente da ideia de abrir o campo operativo da estratégia ao competitivo enquanto conflito regrado, uma vez que entende que o domínio da competição empresarial é o da luta pela sobrevivência, não poucas vezes mais feroz que algumas manifestações mais subtis de coacção na esfera clássica da estratégia. 7 Para uma leitura crítica, em instância epistemológica e ética, das posições de Abel Cabral Couto e Francisco Abreu, vide os nossos textos em Francisco Abreu e António Horta Fernandes, Op. cit. 8 Sobre as operações de apoio à paz, cfr. Vítor Rodrigues Viana, Segurança Colectiva. A ONU e as operações de apoio à paz, Lisboa, Cosmos-IDN, 2002; também, Maria do Céu Pinto, “Dimensões Críticas do Peacekeeping da ONU - Lição de Síntese apresentada por ocasião das Provas de Agregação em Política Internacional”, Braga, 2004; e ainda da mesma autora, “O Uso da Força nas Operações de Peacekeeping”, Política Internacional, nº 28, Lisboa, Julho 2005, pp. 107-125. Infelizmente, os autores referidos, na sua judiciosa análise das operações de apoio à paz são algo acríticos com a confusão terminológica que reina e sobretudo com as consequências teórico-práticas que daí derivam. 9 A este propósito são incontornáveis as conclusões de Reinhart Koselleck, aplicadas primariamente a conceitos sócio-históricos. Cfr. Reinhart Koselleck, Futuro Passado. Para una semântica de los tiempos históricos, Barcelona, Paidós, 1993, pp. 105-127.
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plantar e tempo para arrancar o que se plantou,/ tempo para matar e tempo para
curar, tempo para destruir e tempo para edificar,/[…] tempo para amar e tempo
para odiar, tempo para a guerra e tempo para a paz.” (Ecl 3, 1-8);10 até porque o
horizonte da sageza parece ser algo estranho ao mundo das ciências sociais de
matriz sociologista, não obstante a profissão de fé nesse sentido, de autores tão
incontornáveis como Boaventura de Sousa Santos.11 Desse modo, a linha de
partida dos estudos para a paz, por mais que queira calcorrear as pisadas das
vítimas, acaba por ser insuficiente. Falta-lhe uma dimensão verdadeiramente
anamnética, uma atenção à história em instância memorial e não apenas à
sociologia histórica para aprofundar os agravos que geram a violência. Mais que
solidários com as vítimas e primariamente compassivos pelas mesmas, são
solidários com a sociologia que denuncia as condições sociais dessas vítimas. Ora,
apenas a solidariedade compassiva com as vítimas pode produzir efeitos, daí que
os estudos para a paz acabem finalmente por serem curtos. Curtos quando
esquecem a complexa dinâmica do homem e a sua condição ôntica enquanto
criatura finita propensa ao mal, para além da eventual inescrutabilidade última
desse mesmo mal, sendo desse modo constantemente traídos pelo que julgam ser
uma paz fácil. Curtos igualmente a partir das suas próprias premissas, quando
pretendem partir sem mais da paz, recusando a intermediação, ao pretender criar
um espaço pacífico a partir de fontes insuficientes, porque não radicalmente
solidários com as vítimas e insolidários com o inaudito da violência, e como tal
nada revolucionários no que à paz diz respeito. Qualquer dia pode ser o último dia,
a estreita porta por onde entra o Messias, dizia Benjamin, na tese XVIII/B do seu
célebre Sobre o Conceito de História (Über den Begriff der Geschichte), mais
conhecido pelo nome de Teses sobre Filosofia da História,12 mas de escatologia, de
apocalíptica e mesmo de ética falam pouco os estudos para a paz. Ou melhor,
parecem primacialmente propugnar por uma vertente política empenhada (em
instância sociológica), analiticamente mediada a favor da paz, quando só o fulgor
da paz de Isaías, de uma paz pura, comporta os genes verdadeiramente
revolucionários para um mundo pós-conflitual. Caso contrário, caso estejamos
profundamente enganados e a estratégia não passe por uma ética do conflito e
quanto muito seja uma racionalização do conflito que evite apenas a disrupção sem
sentido de recursos humanos e materiais em nome da violência pura, temos de
procurar outra via de intermediação, ou então esperar o Messias aqui e agora sem
10 Poder-se-ia citar ainda outra passagem, mais enigmática ainda, se tal pode ser. Referimo-nos a (Ecl 10,11). A passagem citada foi extraída da nova versão da Bíblia dita dos Capuchinhos. Cfr. Bíblia Sagrada, 4ª ed., Lisboa-Fátima, Difusora Bíblica, 2003. 11 Boaventura de Sousa Santos perora longamente sobre um senso comum emancipado e reencantado, sobre o fim das dicotomias entre a ciência e os restantes saberes, mas na prática não se nota nenhum indício de uma linguagem de sabedoria ou profética, antes o jargão analítico mais duro em forma pós-moderma. Não é por acaso que a menção ao pensamento judaico contemporâneo e à correspondência entre alguns dos seus autores, mesmo aqueles ligados à Escola de Frankfurt é a maior das ausências entre as referências de um tal discurso. Tanto em Introdução a uma Ciência Pós-Moderna, 2ª ed., Porto, Afrontamento, 1989, como em Pela Mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade, 3ª ed., Porto, Afrontamento, 1994, encontram-se algumas referências a Adorno ou Horkheimer, mas apenas no que concerne às suas obras mais epistemológicas ou sociológicas. Estamos em crer que Boaventura de Sousa Santos economizaria muito tempo e argumentos se incidisse directamente nessas fontes. Para uma visão sinóptica dessas fontes, cfr. Manuel Reyes Mate, Memoria de Occidente. Actualidad de pensadores judíos olvidados, Barcelona, Anthropos, 1997. 12 Cfr. Walter Benjamin, “Tesis de Filosofía de la Historia” in […], Discursos Interrumpidos, Madrid, Taurus, 1973, p.191.
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que a intervenção da estratégia possa ir preparando, ou ir fazendo já de prenúncio
escatológico, ou ainda simplesmente ser cépticos quanto a um homem pós-
conflitual. Em qualquer dos casos, não nos parecem ser os estudos para a paz a
solução quando se teima em não ver as formas insidiosas de hostilidade. Nesse
sentido, as palavras que seguem, um acto relativo de contrição ao que talvez
tenham sido esperanças demasiado altas na estratégia enquanto propedêutica a
uma paz filial, de modo algum querem dizer de uma proximidade última da nossa
parte com muito do que se faz nos estudos para a paz. Quanto muito, essas
palavras revelam a tal concordância estrutural, ao mesmo tempo que um enorme
continente de diferenças quanto ao essencial.
Antes, porém, do dito acto de contrição, é importante clarificar que o
mesmo procede das investigações e objecções que António Paulo Duarte tem
colocado relativamente às nossas teses, particularmente no que diz respeito ao
ciclo bélico. Aquilo que António Paulo Duarte tem escrito,13 não infirma a
importância do tratamento estratégico da guerra, nem da sua impossibilidade, pois
a grande maioria das guerras são estrategicamente definidas, antes chama a
atenção para a irredutibilidade última a toda a estratégia que se anicha no
fenómeno bélico propriamente dito. Isto é, a guerra comporta uma fenomenologia
e uma ontologia, se assim o quisermos, que transborda sempre no seu cerne de
qualquer racionalização e tem em todos os escalões em que se repercute, desde o
técnico-táctico ao estratégico, uma enorme dose de sem-sentido, de caótica, para
os seus diversos actores, que tantas vezes foi reproduzida na literatura de ficção
sobre guerras.14 O camaleão clausewitziano que é a guerra, está lá, adquire vida
própria e quantas das vezes não manieta a própria estratégia, ou não fosse a
guerra uma das figuras por excelência do Mal. A guerra teria assim uma
irredutibilidade última a nível da acção que seria não só especificamente bélica qua
bélica, mas especificamente política, não no que diz respeito à teleologia política,
mas ao momento cinético radical por excelência da acção política, ao seu exercício
puro e soberano, ao momento de excepção, aquele a que as vidas nuas estão
expostas.15 Assim sendo, pode compreender-se que nem mesmo a ética do conflito
serve para morigerar essa irredutibilidade última. A ruptura com essa belicosidade
desagregadora só a paz pura a pode fazer. Só a partir de um continente de paz
pura aí se pode chegar. A ética do conflito só pode ser rigorosamente uma
propedêutica, o que já não é pouco. É certo que a obra de Ledig também nos diz
que no encontro pessoal muitas vezes os inimigos se humanizam,16 o que vem ao
13 Cfr. António Paulo Duarte, “Os (De)Limites da Estratégia. Assomos reflexivos a propósito de um debate estratégico” in Francisco Abreu e António Horta Fernandes, Op.cit., pp. 124-138; e ainda, do autor, A Era Santos Costa: política de defesa e estratégia militar durante o Estado Novo, Dissertação de Doutoramento policopiada, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2004, pp. 21-60. 14 Cfr. Gert Ledig, Os Órgãos de Estaline, Lisboa, Ulisseia, 2005; e Ernst Jünger, A Guerra como Experiência Interior, Lisboa, Ulisseia, 2005. 15 Tomamos o termo vida nua de Giorgio Agamben, que para ele significa precisamente essa singular vida exposta e abandonada do homo sacer, o homem que pode ser morto sem ser sacrificado e sem que tal seja considerado homicídio. O homem exposto ao poder excepcional detido por todas as soberanias. Para a questão do soberano face ao homo sacer, cfr. Giorgio Agamben, O Poder Soberana e a Vida Nua. Homo Sacer, Lisboa, Presença, 1998; Estado de Exepción. Homo Sacer II, 1, Valencia, Pre-Textos, 2004: e ainda, Lo que Queda de Auschwitz. El archivo y el testigo. Homo Sacer III, Valência, Pre-Textos, 2000. 16 Cfr. Gert Ledig, Op.cit., pp. 63-64. Nessa passagem, o Comandante Sostchenko, uma das poucas personagens que na obra são nomeadas, depois de ser baionetado por um soldado
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encontro da tese levinisiana da prioridade inultrapassável do outro à qual não
posso escapar, o outro a quem eu tenho de dar o pão que tiro da minha boca, o
outro que me arranca tanto de mim que às tantas quero destruí-lo, a julgar que
assim me desembaraço dele (o que como sabemos é errado pois até na morte o
outro me obsidia).17 Pois bem, todo esse potencial amável primigénio que até na
guerra se pode vislumbrar e que a estratégia poria em execução, não é suficiente,
porque tal é a densidade do maligno e da recusa do outro na guerra, que para
resgatar esse fundo primigénio de amabilidade, tem de ser feita uma ruptura
praxista de dimensões verdadeiramente metafísicas com esse maligno, através da
recuperação da paz pura e do amor. Mas então, o que fica para a estratégia? Em
primeiro lugar, nem toda a conflitualidade hostil é esta guerra paroxística, e
quando o é, a estratégia é a tal medianeira, o tal lenho crístico, a tal propedêutica
à paz filial, a tal ética que no seio do inaudito pretende virar esse inaudito contra si
mesmo. O problema é que a estratégia nasceu no campo da violência e ainda que
transforme os seus racionais para agir a partir da paz crística, não pode ser negado
que o faz não enquanto pura paz mas enquanto acção adentro da violência, luz ou
réstia de luz onde se pensava que já não existiria nenhuma e portanto como
gestão ética dessa violência. Mas assim sendo, mesmo que o objectivo último seja
a inactivação de si mesma e da violência não pode recusar a violência de antemão
sob pena de não a tratar, para já não falar da sofisticação dos meios violentos que
o estratega faz sem estar a pensar em nenhuma paz filial.
Daqui se conclui que mesmo que a estratégia recuse ultimamente a
violência e a queira inactivar, o que seria difícil a partir da sua própria
epistemologia e ontologia clássica, algo nos levou a partir sem mais delongas do
horizonte da paz crística para alimentar a estratégia; mesmo assim a estratégia
não pode negar que o seu campo operativo é a conflitualidade hostil e por isso é
que é uma arte da prudência mas, para além de toda a prudência e como tal, é
ultimamente impotente face ao paroxismo da guerra quente, das manifestações
desta no terreno. Face à brutalidade última do combate, por exemplo, a gestão
virtuosa do mesmo até pode parecer uma atitude cínica que desrespeita os limites
humanos que aí se jogam. A ruptura com o paroxismo tem de ser outro
paroxismo: a paz pura, a imobilização da guerra. Desta forma podem antecipar-se
todas as críticas à eticização da estratégia, além das que nos foram publicamente
feitas.18 É que, no limite, além de absurda, essa eticização pode ser entendida
alemão, durante uma ofensiva soviética a um sector da frente de Leninegrado, em 1942, é recolhido acto contínuo pelo soldado alemão que o feriu e que olhando o rosto do inimigo não consegue “acabar o trabalho”. Talvez o soldado alemão não tenha podido resistir ao olhar interpelador do outro, ao peso que pendia sobre a sua própria consciência, às últimas réstias de humanidade, ou simplesmente a isso tudo sem ser objectivamente nada disso; um espaço sem justificações, em aberto, como parece querer o próprio narrador, que não nos oferece nenhuma justificação em particular. 17 Neste ponto são magistrais as reflexões de Levinas acerca da impossibilidade de soltar lastro do imperativo “não matarás!”, pois o assassinado continuará sempre a torturar com o seu olhar o criminoso. “ Interdição [de matar] que não equivale, por certo, à impossibilidade pura e simples e que supõe mesmo a possibilidade que ela precisamente proíbe; mas, na realidade, a interdição aloja-se já nessa mesma possibilidade, em vez de a supor; não se lhe junta a posteriori, mas olha-me do próprio fundo dos olhos que eu quero extinguir e fixa-me como o olho que na tumba olhará Caim”. Cfr. Emmanuel Levinas, Totalidade e Infinito, Lisboa, Edições 70, [s.d.], p.211. 18 As críticas à nossa posição estão sintetizadas na obra já referenciada, Pensar a Estratégia, que reproduz um debate, inicialmente, epistolar, entre nós e Francisco Abreu, com os comentários críticos de Viriato Soromenho-Marques, António Paulo Duarte, José Manuel
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como um desrespeito à ética e aos combatentes, parecendo que estamos a zombar
deles mediante propostas nefelibatas. Porém, não devemos confundir o todo com
as partes, porquanto nem tudo é guerra paroxística, como já se disse, e sobretudo
a eticização do conflito é o único mediador efectivo adentro do mesmo para lhe pôr
cobro. Assim o exigem as vítimas e os vencidos que somos todos quando
hostilizamos o outro. Mas também são essas vítimas que exigem uma ruptura
maior, exigem a pura paz de Isaías. Eventualmente achámos que o trabalho da
estratégia como ética do conflito, com o potencial amável disponível, poderia
demolir quase todos senão todos os obstáculos a essa paz, à vinda do Messias, que
seria já de outra ordem e não da ordem estratégica. Quiçá essa outra ordem tenha
de actuar mais cedo, mesmo sem a chegada do Messias, porque a estratégia é
afinal uma demolidora mais débil.19
O que esta auto-correcção não pode é ser tomada por pacifismo, pois é
exactamente contra a ideia de uma paz pura extemporânea que se ergue a
mediação possível da ética do conflito. Se o Messias pode irromper a qualquer
momento, como dizia muito humanamente Benjamin, ainda assim cabe-nos ler os
sinais e não ser intempestivos pacifistas. Parece difícil, mas parece ser o caminho
possível mais remunerador para não continuar a comungar com a barbárie.
Quão longe estamos da ilusão pacifista que, do nosso ponto de vista,
parece assoberbar os estudos para a paz, dá a medida da distância entre a
estratégia e esses mesmos estudos, ao mesmo tempo que mostra como tais linhas
de investigação de modo algum podem substituir a estratégia, na pretensão de que
tenhamos razão quanto ao cerne desta última, porque caso assim não seja, por
uma muito maior maioria de razão os estudos estratégicos são incontornáveis. Em
suma, e não dizemos isto apenas em função da disciplina ser tida como a mesma,
é provável que aquilo que nos aproxima das teses clássicas sobre a estratégia, ou
mesmo daquelas mais vibrantes que pretendem estender o seu defeniens, é muito
mais do que aquilo que nos aproxima dos estudos para a paz, embora essa recusa
estrutural do inaudito pudesse fazer pensar em outras coincidências e até no
carácter serôdio e ultrapassável da estratégia; tal não acontece.
Fonseca e posfácio de Abel Cabral Couto. A estratégia enquanto ética do conflito é aí atacada de vários pontos de vista, mas quer-nos parecer que explícita ou implicitamente, o ponto que acima desimplicitámos estava na mente de todos como um indicador da fragilidade da argumentação caso não fosse devidamente reconhecido. Temos de confessar que, mesmo nas respostas aos comentadores, não fomos suficientemente claros e firmes sobre este ponto, até porque não nos tínhamos inteirado do vespeiro ontológico que a guerra representa e que para um deles, António Paulo Duarte, se lhe afigurava, com inteira justiça, como um repto incontornável. Em posteriores debates, de natureza epistolar, procurámos ainda responder ao desafio lançado por António Paulo Duarte, sem nunca abdicar da majoração estratégica integral sobre a guerra, mas parece-nos agora óbvio que tal não é possível. 19 Tomamos aqui a vinda do Messias um pouco na pluralidade de sentidos, nem todos decifrados, com que é evocada em Benjamin e não como aceitação literal da parousía, um assunto deveras complexo para ser teológico, arrumado numas quantas invocações para efeitos da defesa de uma tese. Sempre se pode, no entanto, dizer (fazendo, ademais, justiça à dinâmica política e não puramente teológica que o conceito tem para o filósofo alemão) que o messianismo rasga o véu das aparências deste mundo para lhe outorgar a verdadeira figura (pascal) e não, qual gnose, para fundar uma nova configuração cósmica heteróclita. Sobre isto, cfr. Giorgio Agamben, Le Temps qui Reste. Un commentaire de l’Épître aux Romains, Paris, Rivages Poche, 2004, p. 48; ou ainda, Dietrich Bonhoeffer, Resistencia y Sumisión, Salamanca, Sígueme, 1983, p. 148, onde o teólogo alemão diz sem rebuço algum que «la esperanza cristiana de la resurrección se distingue de la esperanza mitológica en que remite al hombre, de una manera totalmente nueva y más apremiante que el Antiguo Testamento, a la vida sobre la tierra».
A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa
Cadernos do IDN - nº 4 13
3. A Estratégia e os Estudos de Segurança
Numa obra intitulada A Segurança da Europa Ocidental: uma arquitectura
euro-atlântica multidimensional, obra essa, a todos os títulos, significativa e que
faz uma judiciosa apresentação e análise, em língua portuguesa (na esteira dos
trabalhos de Ana Paula Brandão), do mais relevante que se tem feito nos estudos
de segurança a nível internacional, José Pedro Teixeira Fernandes cita um artigo de
António Paulo Duarte e nosso acerca dos conceitos estratégicos, comentando que
“apesar de algum esforço de adaptação aos novos tempos do pós Guerra Fria e
mostras de alguma abertura a uma realidade multidimensional, a conceptualização
(realista) tradicional mantém-se presa ao carácter estatocêntrico e
transpersonalista do conceito, sendo a abertura conceptual normalmente feita com
uma subordinação, implícita ou explícita, das novas dimensões à dimensão
militar”.20 Pois bem, a título exemplificativo da referida concepção tradicional, cita
parte da argumentação que nesse artigo expedimos ao aplicar o conceito de
segurança ao universo estratégico.
Começámos este apartado por essa citação, porquanto ela mostra bem o
absoluto desnorteamento que perpassa pelos estudos de segurança, o que não é
obviamente imputável à menor qualidade dos autores,21 antes à falta de um
referencial substantivo por parte dos próprios estudos de segurança.
Desde logo, nunca reduzimos a estratégia a uma dimensão militar, pelo
contrário, tem sido sempre nosso mester ampliar o espaço de aplicação da área de
tratamento da conflitualidade hostil, de acordo com as melhores práticas
conceptuais sobre esse domínio do saber e claro está olhando à realidade histórica
do evolver estratégico. Já o autor referido, na sequência, aliás, das abordagens
críticas que no domínio dos estudos de segurança as correntes pós-positivistas
fazem à versão realista, tende em toda a obra colar acriticamente o militar e a
estratégia, algo inexplicável, uma vez que a literatura estratégica de ponta vem
dizendo o contrário há, pelo menos, cinquenta anos. É certo que, muitos dos
autores inovadores da teoria da estratégia, Beaufre, Abel Cabral Couto, Luttwak,
menos Poirier, e cremos que não de todo Charnay, têm aqui e ali estado próximos
de uma matriz realista. Mas nenhum deles alguma vez reduziu a estratégia à
estratégia militar. Primeiro, porque a própria estratégia é uma disciplina autónoma,
na qual as matrizes pesadas da teoria das relações internacionais (e
epistemologicamente muito mais pobres, mas esse é outro assunto!) não são
harmonizáveis facilmente com as teorias estratégicas. Depois, porque nada obsta a
que no domínio da conflitualidade hostil e da guerra, em particular, se possam
pensar outras formas de coacção que não a militar. Agora, o que nenhum dos
20 Cfr. José Pedro Teixeira Fernandes, A Segurança da Europa Ocidental: uma arquitectura euro-atlântica multidimensional, Lisboa, FCG, 2002, p.146. O artigo por si citado, da autoria de António Paulo Duarte e António Horta Fernandes, denomina-se “Da Hostilidade à Construção da Paz. Para uma revisão crítica de alguns conceitos estratégicos”, Nação e Defesa, nº 91, Lisboa, Outono 99, pp. 95-127. 21 José Pedro Teixeira Fernandes tem continuado a publicar bons trabalhos sobre relações internacionais, nomeadamente uma obra sobre a teoria das relações internacionais, de acordo com uma matriz pós-positivista, a que já fizemos referência.
António Horta Fernandes
14 Cadernos do IDN - nº 4
autores referidos faz, é inflacionar o conceito de estratégia aplicando-o a outros
domínios que não o da conflitualidade. Referimo-nos apenas à conflitualidade,
porquanto Poirier, de forma mais precipitada, e Abel Cabral Couto, este último
desde o fim dos anos noventa, e de forma muito mais cautelosa, como atrás
mostrámos, tentam alargar o domínio da estratégia às fronteiras, porosas, entre a
hostilidade e a competição, procurando desenvolver uma visão sistémica de todo o
universo agónico.
Pelo que conseguimos perceber, o que custa aos autores não-realistas dos
estudos de segurança é o suposto encarniçamento dos teóricos da estratégia na
conflitualidade nas relações internacionais e no que parece ser a sua aceitação
acrítica de um tal estado de coisas. Mas essa é uma pressuposição
verdadeiramente disparatada. Os teóricos da estratégia não fazem qualquer
declaração manifestando uma aceitação do status quo, dizem apenas que se
cingem à sua área e, no caso de Poirier, é mesmo visado o alargamento conceptual
da estratégia com o intuito de sobrepor as formas mais pacíficas de conflitualidade
às mais belicosas.22 Aquilo para que chamam a atenção os estrategistas é de que
os conflitos hostis existem há séculos e séculos, requerendo um tratamento
específico não compaginável com posturas extemporâneas, que não tenham em
conta essa especificidade e complexidade, por mais bem intencionadas que possam
ser. Ademais, no nosso caso particular, não só não nos move nenhuma veia
realista, um pressuposto erróneo de José Pedro Teixeira Fernandes e que não é
deduzível de nenhuma passagem do trabalho que comenta, como a estratégia está
ao serviço da edificação de uma paz pura, numa perspectiva personalista e não
estatocêntrica.23
José Pedro Teixeira Fernandes chega a dizer que segurança e defesa são
conceitos que se chegam a aproximar muito, no âmbito de uma concepção realista
das relações internacionais, acabando por, de alguma forma, se confundirem.24 Se
assim é para o realismo, de modo algum isso acontece para os teóricos da
estratégia. Aliás, é exactamente através desse ponto que podemos verificar quanto
a segurança é um conceito não apenas polissémico e dado a equívocos, algo a que
José Pedro Teixeira Fernandes aquiesce, mas também que muito tem de fogo
fátuo, por falta de substantividade.
O conceito de defesa recobre o espaço da estratégia na sua funcionalidade
de interdição, visando preservar a autonomia de decisão, que permite criar um
22 A estratégia é, para Poirier, política em acto, o estrategista francês afirma-o reiteradamente. O conceito de estratégia, consubstanciado na estratégia integral, traduz, portanto, a dimensão estratégica de toda a política, conduzida sempre em meio conflitual. A estratégia é uma metodologia da acção política, extensível a todos os objectivos políticos que emergem num meio conflitual, entendido num sentido muito amplo, ocupando predominantemente o espaço do "comércio pacífico" e concorrencial entre os estados, contra o qual se ergue a guerra potenciadora das tensões negativas. O conflito resulta de tensões positivas e negativas da relação face ao outro, sendo a guerra atirada para a sua conceptualização mais clássica de violência armada. A estratégia integral abrange assim todas as manifestações de conflitualidade, predominantemente a nível económico e cultural, quando se trata de realizar objectivos positivos, e no modo de interdição militar, quando geralmente se querem "realizar" objectivos negativos. Cfr. Lucien Poirier, Stratégie Théorique II, Paris, Economica, 1987, pp. 75, 100-101, 107, 138, 178. 23 Os Estados continuam a ter um papel determinante como actores da cena internacional, mas também nenhum dos estrategistas referidos nega que existam outros actores estratégicos de corpo inteiro, nem sequer as suas teorizações previam uma qualquer fixação illo tempore nos Estados, mesmo quando estamos a falar de obras produzidas e influenciadas pela Guerra Fria. 24 Cfr. José Pedro Teixeira Fernandes, Op.cit., p.78.
A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa
Cadernos do IDN - nº 4 15
mínimo de liberdade de acção necessário ao exercício do projecto político de uma
determinada entidade. Neste sentido, a ideia de um conceito estratégico de defesa
nacional, e de uma política de defesa nacional para recobrir todo o espectro da
estratégia integral de um Estado, nada mais representa que uma certa mitologia
branca que nasce predominantemente na conjuntura do pós-Segunda Guerra
Mundial, com o intuito de reforçar, no campo das intenções, a postura de não-
agressividade proclamada em tal conjuntura. O dealbar da Guerra Fria, e os
processos de descolonização apenas reforçaram ainda mais a necessidade de uma
tal postura, no sentido de deixar ideologicamente ao outro o lugar do agressor e de
procurar ganhar, ou pelo menos não perder, as simpatias dos novos estados-
nações. Não obstante, nunca a grande manobra estratégica de uma entidade
política se coibiu de fazer cumprir objectivos ofensivos, apesar das intenções
proclamadas em contrário, pelo que não há nenhuma razão em termos conceptuais
para que se tome a defesa como preenchendo todo o âmbito da estratégia, mesmo
no caso em que seja “realmente” verídica uma política de não-agressão, e a
mesma não seja apenas uma refinada estratégia declaratória. A defesa é assim um
modo substantivo de fazer estratégia, podendo requerer os diversos meios postos
à disposição do actor estratégico e não apenas os militares.
Com a segurança não se passa o mesmo. O problema com a segurança é
que esta tem um carácter meramente adjectival no que diz respeito ao universo
agónico hostil. Estamos em crer que o terá também em outras áreas, que em si
mesmas nada têm a ver com a estratégia (isto é, o campo da conflitualidade hostil
entre distintos actores políticos - ou eventualmente de outra natureza, campo no
qual as fronteiras clássicas entre o interno e o externo se tornam porosas).
Julgamos que a segurança qualifica a acção, a manobra, seja ela qual for, tanto no
âmbito estratégico, como no ambiental, por exemplo (mas nesse caso não nos
interessa enquanto não tiver relevância conflitual), mas não é a segurança que
produz a acção. No campo estratégico a segurança não representa nenhum modo
de acção.
Os novos caminhos dos estudos de segurança, no domínio das relações
internacionais, apontam cada vez mais para uma visão integrada, que cubra tanto
o domínio da conflitualidade quanto o da segurança das pessoas a distintos níveis,
que não ressaltam dessa mesma conflitualidade, embora possam vir a ser usados
como arma (o caso dos recursos hídricos). No que diz respeito ao corpo clássico
das relações internacionais, os novos objectivos de segurança são muito mais o
desarmamento, a prevenção dos conflitos, a limitação dos danos, a cooperação e a
democracia. Este elenco aproxima os estudos de segurança dos estudos para a
paz, mas a paz, pelo menos, é um aferidor substantivo. Agora, de maneira
nenhuma esses objectivos podem ser colocados em reacção crítica aos estudos
estratégicos ou à insuficiência destes. Uma tese como a da estratégia enquanto
ética do conflito desafia radicalmente tais desideratos. Além do mais, os objectivos
pacificadores anunciados inserem-se num mundo ainda inexoravelmente marcado
pelas relações de hostilidade e como tal são os estudos estratégicos, mesmo os
que não marcados por uma visée ética, a desafiar, não os objectivos, mas os
estudos de segurança, uma vez que esses objectivos não só podem ser usados
António Horta Fernandes
16 Cadernos do IDN - nº 4
como refinadas armas estratégicas como e mais importante, a racionalização que a
estratégia faz do conflito confere-lhe um lugar privilegiado para se pronunciar
sobre as armadilhas e complexidades que possam surgir na realização, pela qual
todas anelam, de tão nobres objectivos. Se, ultimamente, o que almejamos todos
é uma paz efectiva, social e mesmo ontologicamente justa, e não um curto
intervalo entre duas guerras, ou entre conflitos insurgentes, com a omnipresença
de manifestações de coacção cada vez mais insidiosas, então parece-nos que os
estudos de segurança têm pouco a dizer. Se estar seguro é estar em paz, o esforço
começa exactamente aí, em configurar a paz e depois armá-la, algo que só se
pode edificar com instrumentos substantivos.25
Existe uma outra via possível para dar alguma substantividade, muito
relativa, é certo, ao conceito de segurança, mas para isso é preciso um exercício
exegético de banda larga sobre o conceito, que as leituras pragmáticas do mesmo
que temos vindo a encontrar não conseguem responder. Com essa exegese evita-
se, adicionalmente e tanto quanto possível, as aporias que advêm de uma
extensão conceptual excessiva da segurança. Realmente existe uma enorme
diferença entre o ambiente agónico hostil, que gera uma racionalidade social que
dita fins específicos face ao conflito, e o âmbito sanitário, ambiental, criminal, etc.,
pelo que a ideia de um conglomerado conceptual não é a melhor. Mas para isso
deve ser encarado de corpo inteiro um quadro definitório da estratégia e não,
como expressa José Pedro Teixeira Fernandes, julgar como pouco importante um
tal objectivo porque redutor. Pelo contrário, é essa postura que leva à
apresentação de conceitos operatórios e pragmáticos infelizes, como aquele que o
nosso autor vai buscar a Fischer e no qual se misturam sincreticamente e sem
qualquer discernimento realidades completamente distintas, desde a não-
eventualidade de um ataque militar à resposta a necessidades humanas básicas,
sejam a habitação ou a nutrição.26
Sem querer aqui ser mais que sucinto quanto a uma exegese do conceito
de segurança, já intentada, precisamente no artigo em que somos comentados e
com que se abriu este apartado, não podemos deixar de verificar que a linha de
trabalhos sobre a segurança, incluindo o de José Pedro Teixeira Fernandes, tende a
perseverar numa ideia estática de segurança: a de segurança como um estado ou
condição. Evidentemente que para atingir a segurança se requer um esforço a
diferentes níveis, uma vez que a segurança não aparece já feita e pronta a
desfrutar. Os estudos de segurança são claros quanto a isso nas várias áreas a que
se propõem aplicar o conceito. Mas no essencial o estar seguro é o fruto desses
esforços. Quer-nos parecer que as coisas poderiam ser observadas exactamente ao
contrário, mediante uma concepção dinâmica, em que a segurança seja tida como
um acontecer-fazer e não apenas como um estado ou condição. Um actor estaria
25 Observe-se a complexidade do assunto, tendo em conta que se as mais refinadas formas de coação e concomitantes estratégias podem ser tidas, justamente e à primeira vista, como um exponenciar da violência, não é menos certo que essas formas não só permitem pensar num modo em que as manifestações brutais de coacção são inaceitáveis e devem ser temperadas, como mediante o exercício estratégico se consegue ir paulatinamente virando a coação contra si mesma. Mas esse universo de complexidade é precisamente aquele em que a estratégia, com o seu saber adquirido, tem uma importante palavra a dizer, contrariamente aos estudos de segurança. 26 Cfr. José Pedro Teixeira Fernandes, Op.cit., p. 172.
A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa
Cadernos do IDN - nº 4 17
seguro quando realmente estivesse a realizar de forma desejada os objectivos a
que se propunha, fossem eles quais fossem, e não simplesmente quando já os
tivesse realizado. Quanto mais não seja, a aceleração e a complexidade de vida
num mundo globalizado exigem-no.
A segurança poderia ser definida, no domínio da conflitualidade hostil,
como um acontecer/fazer (fazer porque dinâmico e acontecer porque sujeito à
dimensão de pathos de quem se vê envolvido em riscos) que permite realizar
efectivamente a manobra estratégica de um dado actor ou entidade política (e
eventualmente, mas no campo estratégico temos muitas dúvidas, de outra
natureza), vencendo as constrições do ambiente estratégico (ameaças e ricos). A
segurança não tem apenas assim uma dimensão negativa, mas também uma
dimensão positiva de realização de objectivos político-estratégicos. Objectivos
esses que não são só defensivos, e aí está outra diferença decisiva em relação ao
conceito de defesa, mas podem ser ofensivos, porquanto o essencial de estar
seguro é estar a realizar com êxito a manobra estratégica pretendida, seja
derrotando pura e simplesmente o adversário com vista a alcançar o objectivo
previsto, seja alcançando uma paz possível (e as duas coisas andam a par), ou
ainda contribuindo para um longo trabalho de morigeração da hostilidade, que tem
o seu ancoradouro último numa paz filial. Relativamente a este último desiderato é
inegável que, mesmo no âmbito estratégico, o conceito de segurança responde
cada vez mais a uma lógica cooperativa, como acto simultaneamente negativo e
positivo, isto é, defensivo e ofensivo, mas no sentido em que o ofensivo releva de
um esforço conjunto que pretende actuar sobre as dinâmicas que engendram as
ameaças e os riscos.27
Não se pense, porém, que deste modo se dilui substantivamente o objecto
da estratégia, a saber: a hostilidade; uma vez que a estratégia tem de atender
cada vez mais a esse campo híbrido entre a hostilidade e a competição, que
designamos por quase-estratégia, e acima de tudo porque à estratégia cabe
abranger o conjunto de fenómenos que imediata ou indirectamente tenham a ver
com a hostilidade, desde os mais óbvios aos mais insidiosos. Contudo, mais
27 É nesta perspectiva que Lucien Poirier, em Stratégie Théorique III, também se deixa seduzir pela segurança, observada de forma colectiva, sistemática, na perspectiva dos Estados e de outros actores emergentes da cena internacional, sem ser, contudo, estatocêntrica, porque predominantemente sistémica e como sabemos os sistemas tendem a ter propriedades que superam o mero agregado das partes. Pensando numa perspectiva regional europeia em primeiro lugar, Poirier diz que a segurança cooperativa se baseia na incapacidade militar residual de cada um dos protagonistas, na sua suficiência insuficiente, que não permite a esses protagonistas alimentar projectos bélicos com a esperança de ganhos militares significativos. Ora, uma segurança cooperativa estendida a objectivos estratégicos não hostis, isto é, objectivos não-militares passíveis de uma conflitualidade benigna e até estimulante, tem por base esta insuficiência suficiente ao mesmo tempo que a alimenta, em ordem à manutenção da estabilidade. O estrategista francês não esquece, no entanto, a hostilidade possível, que no caso remete à defesa e ao militar, uma vez que a estabilidade nunca está assegurada; fazendo inteira justiça ao adágio estratégico: “preparar para o provável, precaver contra o pior”. Cfr. Lucien Poirier, Stratégie Théorique III, Paris, Economica, 1996, pp. 277-308. Poirier só não responde a como pensar na segurança estratégica que seja ofensiva e de expansão, dando a ideia que só agigantando as preocupações defensivas para além da esfera normal tal se consegue, no intuito de assegurar a manutenção da estabilidade contra qualquer perturbador interno (p. 303, da obra em apreço). O pior é que não existe uma ordem moral neutra sobre o que é a estabilidade e nada obsta a que, de forma capciosa, o adquirir vantagem passe por mera estabilidade. Infelizmente, Poirier tende a de-hostilizar a maior parte dos objectivos que caem debaixo da alçada da estratégia (quase todos os que não são militares), embora nalguns escritos chegue a falar de estratégia integral de violência limitada. Para uma crítica circunstanciada dos pontos de vista de Poirier, cfr. António Horta Fernandes, O Homo Strategicus ou a Ilusão de uma Razão Estratégica?, pp. 73-82.
António Horta Fernandes
18 Cadernos do IDN - nº 4
decisivo ainda é tomar a estratégia como ética do conflito, uma phronesis, uma
sabedoria praxista, que mantém a prudência para além de toda a prudência,
configurando sucessivos juízos éticos situacionais direccionados a um fim. Esses
juízos configuram critérios ponderativos de avaliação justa, enquanto avaliação
judiciosa que não é desfigurada por uma violência inaudita, a qual impossibilitaria
inclusivamente qualquer racional posterior de ganhos e perdas. Em todo o caso, é
inegável que a tonalidade da estratégia enquanto ética do conflito remete
ultimamente para a reabsorção da hostilidade, visando uma armação segura da
paz, visando a síntese política superior, historicamente sempre provisória e não
poucas vezes, sem o aval estratégico, fautora de novas hostilidades. É esta
ultrapassagem da estratégia através de si mesmo que permite enquadrar o
conceito de segurança, na sua dimensão cooperativa para além dos próprios
racionais estratégicos, o que demonstra, aliás, que se a estratégia se usa para se
auto-ultrapassar por fins éticos é porque já possui ab initio uma carga ética.
Todavia, como se trata de uma ultrapassagem sempre provisória, historicamente
contingente, pelo menos, enquanto o pecado resistir, ou de outra forma, enquanto
o Mal ofuscar, não é possível escapar ao privilégio estratégico da segurança no
âmbito das relações internacionais, não obstante toda a cooperatividade possível.
Isto, por outro lado, só denota que, mesmo numa abordagem dinâmica, são
limitadas as perspectivas operacionais do conceito de segurança. A segurança é
também aqui um qualificativo da acção, apenas acompanhando mais de perto os
instrumentos que a permitem efectivar e nesse caso refazendo, mais in loco e in
situ, estados de alma, que por sua vez possam estimular acções substantivas de
carácter decisivo.
Em última análise, um estado de coisas adjectival pode muito bem ser
possível, mas só o é num reino escatológico, no caso vertente, instaurada a paz de
Isaías. Esse é verdadeiramente o nosso fito. Infelizmente, quando pensávamos
poder reencontrar aí os estudos de segurança é de temer que nos tenhamos
enganado. É de crer que os estudos de segurança compartilhem com os estudos
para a paz o mesmo preconceito sociologista que os faz desconfiar destas coisas
últimas; afinal tão primeiras e quiçá as únicas a realmente terem o potencial para
romper com o instalado, que os estudos para a paz e os estudos de segurança
tanto e tão justamente criticam.
4. A Estratégia como Ética do Conflito
Não cabe aqui pelejar com outros autores nomeadamente Abel Cabral
Couto, de que nos consideramos discípulos, ou Francisco Abreu, um brilhante
discípulo de Abel Couto, sobre a “essência” da estratégia, nem sequer fazer uma
ampla deambulação pelas distintas posições sobre o assunto por parte das
principais figuras da escola estratégica portuguesa. Trata-se de um debate amplo,
já documentado em termos públicos,28 e que terá certamente novos
28 Cfr. Francisco Abreu e António Horta Fernandes, Op.cit.. Para uma panorâmica da escola estratégica portuguesa, situando-a historicamente, cfr. António Horta Fernandes, “O
A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa
Cadernos do IDN - nº 4 19
desenvolvimentos críticos. Não é, portanto, face a alguns desses estrategistas que
aqui nos posicionamos, uma vez que se há neste excurso um referente crítico, ele
não é composto propriamente por aqueles que pensam a natureza da estratégia.
Assim sendo, cabe-nos expor algumas reflexões sobre a natureza da
estratégia, que se escoram na ideia de estratégia como ética do conflito e mostrar
por que razão a estratégia é uma disciplina incontornável no âmbito das relações
internacionais e da ciência política. Alguns pensarão que se nós já estivermos
certos, considerando a estratégia como ética do conflito, então muito maior
presença disciplinar terá a estratégia se não houver conflito para eticizar. Não
estamos obviamente de acordo, mas o certo é que, em qualquer dos casos,
tenhamos ou não razão, a estratégia reforça o protagonismo que lhe é devido.
Poder-se-ia objectar, a partir dos estudos para a paz, ou dos estudos de
segurança, ou doutra qualquer posição mais crítica para com a estratégia, que ou a
estratégia se salvaria por esta via, aparentemente mais filosófica e de acordo com
os argumentos em voga, ou seria a própria estratégia que deveria ser enviada para
o museu de antiguidades, pelo que os estrategistas clássicos ou não-eticistas não
deveriam ficar felizes com a eventual capitulação da estratégica enquanto ética do
conflito. Erro redondo, seria, no entanto, assim julgar, porque a estratégia como
ética do conflito não pretende afinar pelo diapasão da moda, antes parte da
incontornabilidade do exercício estratégico em si mesmo, seja qual for o seu
desfecho, seja ou não possível crismar a estratégia como ética.
5. A Estratégia como Disciplina de Fins Face à Guerra e à Política
O que distingue, de forma consensual entre os estrategistas, técnica e
tendencialmente, a hostilidade (campo operativo da estratégia) da guerra, para
além desta incluir instrumentalmente manobras anti-hostis por mor de hostilidade
e manobras não hostis sobre aliados, mas sempre num horizonte estratégico de
hostilidade, é o facto do recurso à violência armada ser o horizonte valorativo de
utilidade marginal da guerra, mas não da estratégia, que antes se afere pela
procura da paz possível, de acordo com os ditames políticos e com a síntese
política superior, sempre mais ampla que a da estratégia havendo, portanto, na
guerra, um franco acentuar das manifestações de violência organizada per si, e da
violência tout court como horizonte último. Além disso, na medida em que prepara
e conduz a acção hostil, ao mesmo tempo que arma a paz, a estratégia segue
nisso a política enquanto função contínua, distinguindo-se adicionalmente da
guerra pelo seu carácter durativo. É claro que nem sempre assim foi. A estratégia
começou por ser estratégia operacional, conduta da guerra, mas evoluiu no sentido
durativo que hoje a caracteriza.29
Pensamento Estratégico Português após o 25 de Abril” in José Freire Nogueira e João Vieira Borges, org., O Pensamento Estratégico Nacional, Lisboa, Cosmos-IDN, 2006, pp. 179-186. 29 Viriato Soromenho-Marques vê a estratégia como filha da era do iluminismo e, já nesses seus começos, como uma disciplina que visa a racionalização política da violência, não se confundindo com esta, e desde logo não redutível ao âmbito militar. Cfr. Viriato Soromenho-Marques, “Duas questões sobre Estratégia. A propósito do debate entre António Horta Fernandes e Francisco Abreu” in Francisco Abreu e António Horta Fernandes, Op.cit., pp. 150-154. Sobre o nascimento da estratégia, numa perspectiva mais canónica, cfr. Hervé Coutau-
António Horta Fernandes
20 Cadernos do IDN - nº 4
Por outro lado, se bem que a estratégia sirva a política, preparando
determinada comunidade política ou organização de carácter político para a
conflitualidade eventual, conduzindo essa mesma conflitualidade (quando a mesma
se torna efectiva) dentro de um âmbito político que não se esgota nela quanto aos
fins e objectivos, e criando condições para a paz política estrategicamente possível,
ainda assim a estratégia não é mero instrumento da política. À estratégia cabe
tratar todas as formas que imediata ou mediatamente tenham a ver com a
hostilidade, isto é, todas as potenciais razões de hostilização de outra vontade
política quando confrontada com os objectivos políticos próprios que colidam ou
possam colidir com o outro. Contudo, esse tratamento não está isento de
finalidades próprias, ainda que incompletas e a necessitarem de completude
política superior. A confrontação, seja bélica ou nem tanto, cria uma racionalidade
social específica face ao conflito, uma racionalidade social estratégica de fins
próprios mas incompletos, fins esses que apontam ab initio, e sem que ocorra
qualquer raciocínio intencional no sentido de usar a estratégia como ponderação
ética, para uma ética do conflito, uma defesa de humanidade que se opõe antes de
nada ao inominável. Isto acontece, porque a confrontação hostil gera um potencial
de violência muito distinto da normal processualidade da vida dos homens,
ultimamente irredutível a todo o tratamento possível, mesmo no domínio
estratégico; domínio, apesar de tudo, onde ainda predomina a face de Caim, mas
também o contraponto personalista que logo ocorre, no intuito de assegurar a
sobrevivência num universo minimamente credível (em ordem a uma subsequente
vida humanamente plena) e, por conseguinte, de evitar uma delapidação insana de
recursos humanos e materiais.30 Daí que a estratégia seja arte ou ciência, ou
melhor, a sageza de ponderar e agir prudentemente sobre e na conflitualidade
hostil. Se assim não fosse (a estratégia como configuração ética que a obriga a
remeter para a síntese política superior evacuando o seu próprio solipsismo),
porque retroage sobre a política, poder-se-ia assistir a uma sobre-estrategização
da sociedade, isto é, a sobredeterminação estratégica de todos os objectivos
sociais ou comunitários, impor-se-ia com ou sem a concordância da política, e não
poucas vezes com o aval ou mesmo o estímulo desta. Assim, na medida em que a
Bégarie, Traité de Stratégie, Paris, Economica, 1999, cap. III. Não podemos negar que simpatizamos com o quadro genético que o filósofo português esboça, embora tenhamos algumas dúvidas sobre a precocidade histórica de uma proto-estratégia integral. Por outro lado, a sua ideia vem ao encontro de uma outra, por nós defendida, que a estratégia, no seu todo, nasce no momento histórico moderno em que os actores se apercebem que a sofisticação da violência exige doravante um contraponto de raiz ética firme. A estratégia seria esse contraponto, já vislumbrada num sentido amplo, mas muito menos estruturada enquanto tal. Claro está que Viritato Soromenho-Marques, caso aquiesça à proposta genética, discorda totalmente da eticização da estratégia. De qualquer forma, esta proposta genética precisa de ter o respaldo empírico, isto é historiográfico, que, por ora, não tem. 30 Definimos racionalidade social estratégica da seguinte forma: socialidade em face do conflito (no senso forte de hostilidade e animoadversidade), escorada numa unidade fundada num reconhecimento ideológico de base, o qual não garante mais do que um equilíbrio instável, por força da dialéctica de convergência/divergência de interesses dos diferentes membros dessa socialidade, porquanto o conflito é sempre contra alguém, uma outra socialidade formada de forma similar; pelo que se geram relações conflituais assimétricas e não correlativas inter e intra-socialidades. No fundo, trata-se aqui da velha questão do inimigo interno e da “traição à pátria” que no seio de sociedades abertas, ou marcadas pela globalização, perde todo o seu sentido pejorativo de forma a ser encarada mais realisticamente como inevitabilidade de polaridade nem sempre negativa. Está bom de ver que, neste caso, os órgãos directores políticos que assumem a última ponderação nada mais são que uma emanação dessa socialidade. Claro que historicamente nem sempre foi assim, e quanto mais recuarmos no tempo mais os órgãos directores da estratégia tendem a determinar, quase em exclusivo, a conduta social face ao conflito.
A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa
Cadernos do IDN - nº 4 21
estratégia retroage, reorganiza e ajuda a redistribuir as configurações de poder,
mantendo uma relação dialéctica e recursiva com a política, gerando uma
racionalidade social específica face ao conflito hostil, pode falar-se com
propriedade de uma racionalidade social estratégica de fins próprios que, por sua
vez, alimenta essa retroacção.31
Por conseguinte, na medida em que a estratégia se assume como uma
ponderação eticamente prudente face ao conflito, num espaço social que dita fins
específicos (incompletos) enquanto estratégicos, em função dos quais os objectivos
que realiza são tanto político quanto estratégicos qua estratégicos, essa mesma
estratégia não é apenas uma disciplina instrumental referida a uma realidade
também somente instrumental, mas igualmente uma disciplina de fins. É por esta
via (dos fins específicos incompletos) que os objectivos estratégicos chegam a ser
objectivos políticos, mas objectivos incompletos e logo subordinados, porque antes
(um antes da cronologia histórica e da prévia consideração meramente técnica) a
estratégia é somente uma área de tratamento de objectivos políticos que suscitam
hostilidade. Isto é, em termos estritamente técnicos e instrumentais, a estratégia
refere-se a esta hostilidade e não aos objectivos políticos per si, que continuam a
ser políticos, permanecendo mesmo quando o tratamento acaba (pelo que, neste
primeiro momento, apenas nesse sentido se pode falar de objectivos políticos que
caem debaixo da alçada da estratégia e por isso são objectivos estratégicos).
O que deve, no entanto, ficar bem claro é que a reabsorção da hostilidade
pela dimensão política superior remete para a relativização dessa hostilidade e
para a consecução de aspirações políticas que, de modo algum, se esgotam nos
objectivos políticos passíveis de hostilidade. Quando a política se tende a estreitar
estrategicamente é à própria estratégia que cabe uma quota-parte na correcção do
exercício político, o que evidencia ultimamente uma qualquer espécie de bem
comum.
Pode, contudo, objectar-se que, colocando a estratégia ao nível que nos
apartados anteriores já referimos, um nível proto-escatológico, a estratégia parece
que transborda naturalmente da política e inverte a sua relação com o enquadrante
superior. Na realidade, assim não acontece. No passado, foi já dada uma primeira
resposta a essa possível objecção, considerando a estratégia ao nível dos
objectivos e interesses, mas sem tocar o nível superior (político) das aspirações.32
No entanto, aí a dominante argumentativa estava ainda centrada no
desenvolvimento de um percurso da estratégia a culminar numa ética do conflito e
não em partir do horizonte da ética desde do início, pelo que a resposta, ainda que
no essencial correcta, está excessivamente focada numa dialéctica
política/estratégia sem mais. Falava-se já numa esperança pascal, num “a haver”
nos limites da parousía, ao mesmo tempo que se reconhecia que a própria
comunidade política era curadora de valores e aspirações sobre-políticas, mesmo
pensando num Estado rawlsiano33. Mas o mais importante talvez tenha ficado por
31 Cfr. Jean-Paul Charnay, Critique de la Stratégie, Paris, L’Herne, 1990, p. 77; e também, António Horta Fernandes, Op.cit., pp. 87 e 326. 32 Cfr. António Paulo Duarte e António Horta Fernandes, “Da Hostilidade à Construção da Paz…”, pp. 123-125. 33 Mesmo um Estado rawlsiano não pode abdicar de pressupostos pré-políticos ou supra-políticos na configuração de uma democracia liberal, tal como o pensador norte-americano a vê
António Horta Fernandes
22 Cadernos do IDN - nº 4
dizer: é que a comunidade política enquanto política não é apenas curadora de
aspirações meta-políticas, a própria política poderá ser vista como diaconia, serviço
a outras dimensões comunitárias, que se expressam politicamente, na medida em
que o homem é um ser-para-o-outro, mas onde surge sempre a figura do terceiro,
o outro de outrem, remetendo para uma obra de justiça que equilibra a afecção e
inflexão tendencialmente hegemónica para cada outro em particular. Nesse
sentido, a estratégia pode ter propósitos tão elevados, pois a própria política
também os tem e a estratégia de modo algum ultrapassa a política, antes
estabelece uma relação de diaconia específica com a política que esta enquadra
numa sororidade maior, a qual naturalmente também a ultrapassa.34
em O liberalismo Político, Lisboa, Presença, 1996. As considerações de Rawls sobre o sentido estritamente político dos pressupostos que configuram uma sociedade liberal constitucional e consensual não passaram despercebidas ao crivo crítico tanto de Habermas, quanto de Ricoeur, que defendem que esses pressupostos são inescapavelmente meta-políticos. Podem encontrar-se os textos de Habermas, do debate com Rawls, numa excelente edição crítica, em castelhano, desse debate. Cfr. Jürgen Haberlas y John Ralws, Debate Sobre el Liberalismo Político, Barcelona, Paidós, 1998. Para a crítica de Ricoeur a Rawls, cfr. Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, pp. 61-104. Já Richard Rorty, muito próximo das teses de Rawls, tinha defendido, seguindo de perto o próprio Rawls, que a ideia do véu da ignorância em A Theory of Justice não visava tanto uma fidelidade kantiana quanto uma fidelidade à história e tradições arreigadas na vida pública liberal norte-americana e ocidental em geral, pelo que a sua ideia (de Rawls) de equilíbrio reflexivo bastava para dirimir a questão dos pressupostos. No fundo, Rorty admite de alguma maneira esses pressupostos como transbordando da política, mas consonante com o seu nervo neo-pragmatista não lhe quer dar mais realce filosófico que aquele que realmente julga terem e que pensa ser escasso em comparação com o prioritário relevo político democrático. Cfr. Richard Rorty, “The Priority of Democracy to Philosophy” in […], Objectivity, Relativism and Truth. Philosophical Papers volume 1, Cambridge, Cambridge University Press, 1991, pp. 175-196. Para uma crítica inteligente, sintetizando várias outras, do que significa a despolitização do político em Rawls para se poder encontrar um consenso de sobreposição, que acaba por privatizar todas as diferenças «metafísicas» em relação aos bens sociais, esvaziando uma parte essencial da dinâmica política democrática, a confrontação plural, cfr. Chantal Mouffe, O Regresso do Político, Lisboa, Gradiva, 1996, pp. 58-72. 34 Como pode depreender-se do exposto também não estamos precisamente com Michael Walzer, quando este diz que, embora o político configure uma esfera da justiça determinante, pois é a actividade reguladora dos bens em geral, sendo utilizado para defender de todas as esferas distributivas e para impor a concepção comum do que são bens e para que servem, o seu poder é sempre predominante junto aos limites mas não no interior das restantes esferas da justiça. Cfr. Michael Walzer, As Esferas da Justiça, Lisboa, Presença, 1999, p. 32. A concepção que defendemos é muito mais insurgente com o político, requer a sua presença reguladora enquanto serviço, mas desnucleando-o tanto quanto possível, retirando-lhe projecção própria.