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LEIRIA DEZEMBRO DE 2017 15 Actas do 2.º Colóquio Internacional “Cister e os Templários” realizado no dia 1 de Outubro de 2016 no auditório da Biblioteca Municipal de Alcobaça seguidas das Actas do III Colóquio da AMA subordinado ao tema “As Misericórdias” realizado no dia 23 de Setembro de 2017 no auditório da Biblioteca Municipal de Alcobaça

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Cadernos de Estudos Leirienses – 15 * Dezembro 2017

LEIRIADEZEMBRO DE 2017

15Actas do 2.º Colóquio Internacional

“Cister e os Templários”realizado no dia 1 de Outubro de 2016 no auditório

da Biblioteca Municipal de Alcobaçaseguidas das

Actas do III Colóquio da AMA subordinado ao tema“As Misericórdias”

realizado no dia 23 de Setembro de 2017no auditório da Biblioteca Municipal de Alcobaça

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Cadernos de Estudos Leirienses – 15 * Dezembro 2017

Título: CADERNOS DE ESTUDOS LEIRIENSES – 15

Editor: Carlos Fernandes

Coordenador Científico: Saul António Gomes(Professor Associado com Agregação do Departamento de História, Arqueologiae Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra)

Coordenadores desta edição: António Valério Maduro, Pedro GomesBarbosa e Rui Rasquilho

Conselho Consultivo: Isabel Xavier, J. Pedro Tavares, Luciano CoelhoCristino, Mário Rui Simões Rodrigues, Miguel Portela, Pedro Redol e RicardoCharters d’Azevedo

Concepção e arranjo da capa: Gonçalo Fernandes

Colecção: CADERNOS – 15

Coedição: Textiverso, AMA - Associação dos Amigos do Mosteiro deAlcobaça, APOC - Associação Portuguesa de Cister e Município deAlcobaça

©TextiversoRua António Augusto da Costa, 4Leiria Gare2415-398 LEIRIA - PORTUGALE-mail: [email protected]: www.textiverso.com

Revisão e coordenação editorial: TextiversoMontagem e concepção gráfica: TextiversoImpressão: Artipol

1.ª edição: Dezembro 2017

Edição 1195/17Depósito Legal: 384489/14ISSN 2183-4350Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.

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A extinção da Ordem do Temploe a criação da Ordem de Cristoà luz das fontes arquivísticas

Giulia Rossi Vairo*

* Instituto de Estudos Medievais (IEM), NOVA/FCSH e Centro de Investigação e Estudos em BelasArtes (CIEBA), FBA/UL

O presente artigo trata o processo de extinção da Ordem do Templo esucessiva criação da Ordem de Cristo a partir da análise da documentaçãoarquivística, vaticana e portuguesa. Para este estudo foram examinadas di-versas fontes, algumas destas muito conhecidas e já editadas, outras já ex-ploradas, mas não transcritas na íntegra, outras ainda relativamente conheci-das e parcialmente publicadas, mas nunca relacionadas com o tema ao cen-tro deste estudo.

As fontes selecionadas foram interrogadas e indagadas sem preconcei-tos, detendo-se em passagens específicas e particularmente significativas,chegando a fornecer, para algumas delas, interpretações por vezes diferen-tes com respeito às que tem sido proporcionadas pelos historiadores até hoje,a partir da própria bula de fundação da Ordem de Cristo. Além disso, todas asfontes foram lidas à luz do contexto histórico e geopolítico de referência, issoé, o reino de Portugal dionisino da segunda e terceira década de Trezentos, epostas em relação com os muitos acontecimentos que ocorreram nesta altu-ra e os seus protagonistas.

Nesta perspectiva, especial atenção foi atribuída aos anos da guerracivil portuguesa que viu enfrentar-se o rei D. Dinis e o herdeiro do trono, oinfante D. Afonso, e que teve as suas primeiras concretas manifestações jus-tamente no tempo em que se decidiam a sorte do património português daOrdem do Templo, oficialmente extinta em todo o continente europeu em 1312,e a criação da nova milícia “nacional”, a Ordem de Cristo.

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A bula de fundação da Ordem de Cristovista de Avinhão e de Lisboa

A 14 de Março de 1319 remonta a bula de papa João XXII Ad ea exquibus, com a qual, a instância do rei D. Dinis de Portugal, representado pe-los seus procuradores, João Lourenço de Monsaraz, cavaleiro, e Pedro Peres(ou Pires), cónego da Sé de Coimbra, era oficialmente estatuída a Ordo MilitieJhesu Christi, a Ordem de Cristo, herdeira de facto no reino de Portugal dopatrimónio material e espiritual da Ordem do Templo1.

No início do documento, o papa declarava que decidira instituir uma novamilitia, definida como de pugillum Christi («punhada» ou até «punho de Cris-to»), após ter ouvido os relatórios dos embaixadores do soberano portuguêse a sugestão deles de criação de uma ordem militar. Perante à grave situaçãovivida no Algarve devida às incursões sarracenas, minuciosamente descritapelos emissários régios, João XXII estabelecia que a missão da nova cavala-ria seria defender os súbditos do reino, contrastar os ataques dos infiéis ereconquistar as terras injustamente ocupadas por eles à honra de Deus eexaltação da Fé católica.

Por esta razão, acolhendo favoravelmente a proposta formulada pelosembaixadores, o papa fixava a sede da ordem em Castro Marim, na diocesede Silves, no reino do Algarve, que o rei se comprometera a doar para sem-pre à cavalaria caso se fosse concretizado o projecto de fundação. Tal loca-lidade tinha sido escolhida devido à sua colocação estratégica que lhe permi-tia um óptimo controlo sobre a fronteira de terra e sobre o litoral algarvio sul--oeste, e para a sua posição natural que a tornava «inexpugnável», comosurge definida na bula.

Ao mesmo tempo, o pontífice concedia-lhe a igreja paroquial de SantaMaria, que se teria tornado a casa religiosa da ordem. A seguir, estabeleciaque os cavaleiros professassem a Regra da Ordem de Calatrava, gozandodos mesmos privilégios, e nomeava primeiro mestre Gil Martins, antigo Mes-

1Monumenta Henricina, Coimbra 1960, I, doc. 61, pp. 97-110. Um resumo dos conteúdos da bula euma análise parcial do texto encontram-se em: AYALA MARTINEZ, Carlos de – “Las ordenes milita-res y los processos de afirmación monárquica en Castilla y Portugal (1250-1350)”, in Revista daFaculdade de Letras. História, série II, vol. 15, n. 2, 1998, pp. 1299-1301; e em BAETA, João – D.João Lourenço, mestre da Ordem de Cavalaria de Cristo e leal servidor do rei D. Dinis: o seu papel naestruturação da nova ordem militar dionisina, Tese de Mestrado em História Medieval, Lisboa: Uni-versidade de Lisboa, 2011, pp. 44-48.

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tre da Ordem de Avis, professor da Ordem de Calatrava, louvando-o comohomem íntegro e zelador na fé.

Para além disso, decretava que fossem confiados à nova milícia todosos bens, móveis e imóveis, tanto eclesiásticos como seculares, sendoelencadas as possessões principais (Castelo Branco, Longroiva, Tomar,Almourol), juntamente com as igrejas, as capelas e os oratórios que anterior-mente pertenciam à Ordem do Templo.

O abade de Santa Maria de Alcobaça, casa-mãe da Ordem de Cister noreino de Portugal, na diocese de Lisboa, era indicado como responsável doofficium corretionis e encarregado de efectuar as visitações ao convento.Também ele deveria receber por parte do mestre eleito o juramento de fideli-dade ao papa e à Igreja de Roma, pronunciando uma fórmula preestabelecida,e na presença do rei.

Especialmente significativa é a passagem da bula que se segue, inteira-mente dedicada ao juramento e à homenagem que o mestre deveria prestarao soberano. Nesta está especificado que ele, para além de jurar fidelidade elealdade ao monarca, devia relatar-lhe caso tivesse tido conhecimento deenredos contra o rei ou contra o reino, para mais de impedir que lhe fossefeito dano2. Outrossim, refere-se que tal juramento era prestado não em virtu-de dos bens recebidos, mas da própria pessoa que o tributava. Por esta ra-zão, em seguida o papa declarava que este pronunciamento não teria atribu-ído ao soberano algum direito sobre o património da nova ordem e estabele-cia que D. Dinis tinha dez dias para aceitá-lo, passados os quais o mestre eraautorizado pela Sé Apostólica a exercer o seu magistério livremente3.

João XXII estabelecia também que o mestre, o preceptor mor, o lugar--tenente e outros cavaleiros fossem admitidos na corte régia, podendo satis-fazer as funções antigamente desenvolvidas pelos membros da Ordem doHospital de São João; e que, em caso de renúncia, morte ou outra causa devacatura do mestre, o convento teria podido dotar-se de um novo que fosseao mesmo tempo um militar e um religioso, elegendo-o entre os fradesprofessos, seguindo o exemplo do que se passava na Ordem de Calatrava.

Encerrava o documento a promessa dos embaixadores que assegura-vam que D. Dinis teria aceitado e respeitado todas as resoluções papais de2 Entrelinhas, podem entrever-se as desavenças do biénio 1316-1317 no seio da família real portu-guesa: v. infra.3Monumenta Henricina, cit., doc. 61, p. 107: Volumus supradicto nullumque ipsi Regi ex juramento velhomagio supradictis in bonis eisdem quo modo libet jus acquiri.

A extinção da Ordem do Templo e a criação da Ordem de Cristo

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acordo com o conteúdo da litera procurationis que o rei mandara redigir nodia 14 de Agosto de 1318, isto é, mais do que meio ano antes da emissão daprópria bula, e que vinha transcrita no fim do texto4. Nesta o soberano afirma-va que os seus procuradores eram enviados para Avinhão «ad tractandum,ordinandum et compositionem faciendum, seu componendum» a questãorelativa à gestão do património português da Ordem do Templo, assim comoaquela dos bens possuídos no reino por qualquer ordem militar, pedindo aopontífice que atribuísse a tarefa da sua administração a um ou mais mestres.

Ao ler com atenção esta passagem, reparamos que na carta do sobera-no português falta qualquer referência concreta à futura Ordem de Cristo, acomeçar pela própria denominação, o que sugere que, talvez, a escolha dopróprio nome deva atribuir-se à Cúria pontifícia5. Muito pragmaticamente, omonarca colocava a questão da administração do património de todas asordens militares do reino, portanto não somente dos templários, remetendo-se em tudo e por tudo à obra dos seus agentes e, ao mesmo tempo, às deci-sões do papa.

O documento encerra com a transcrição da fórmula de juramento que omestre devia prestar ao abade de Alcobaça na qual é significativamente au-sente qualquer menção ao monarca e às suas eventuais prerrogativas sobrea nova cavalaria. Tal circunstância observa-se também na bula de 15 de Março,dirigida a Gil Martins, com a qual o papa nomeava-o oficialmente primeiromestre da ordem6. Também neste caso não há qualquer referência à obriga-ção de prestar homenagem de fidelidade e lealdade ao soberano.

Alguns meses depois, a 5 de Maio, D. Dinis ratificava a bula aceitandotodas as resoluções tomadas por João XXII recebendo, sem condições, aordinatio, como na terminologia papal surge definido o primeiro ordenamentode facto compilado para a ordem estatuída, confirmando a substância da suavocação7. Entre os muitos testemunhos do auto oficial compareciam D. Ge-

4Ibidem I, doc. 58, pp. 88-89.5 Esta hipótese parece encontrar confirmação nas palavras utilizadas pelo papa na bula de fundaçãoao declarar «voluimus et in perpetuum volumus ordine milicie Jhesu Christi vocari». É interessanteque o nome da nova ordem evoque a do Templo, diferenciando-se contudo ligeiramente desta. Defacto, os templários são definidos Pauperes commilitones Christi, usando a palavra latina commilito,-onis, ou seja «companheiros, camaradas», enquanto, no caso da Ordem de Cristo, os cavaleirossão apelidados de milites Jhesu Christi, usando a palavra latina miles, militis, que deve ser traduzidacom «soldado» mas, em latim medieval, também como cavaleiro.6Monumenta Henricina, cit., doc. 63, pp. 119-120.7Ibidem, doc. 66, pp. 124-126.

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raldo Domingos, bispo de Évora e chanceler do rei, o infante D. AfonsoSanches, filho natural do soberano, senhor de Albuquerque e mordomo-mordo reino, e D. Juan Alfonso de La Cerda, genro do rei, mas não o herdeiro dotrono, o infante D. Afonso. Além disso, embora sejamos conscientes de quese trate da aprovação e da ratificação da bula, no texto falta qualquer referên-cia à Ordem do Templo e qualquer revindicação a um papel especial no âm-bito da nova instituição por parte do rei.

Chegados ao fim da análise destes primeiros textos, é curioso observarque na documentação “oficial” portuguesa produzida na altura e destinada àSé Apostólica falta qualquer menção à Ordem do Templo e que a Ordem deCristo é sempre definida como nova militia. A mesma circunstância pode cons-tatar-se ainda no instrumento notarial de 18 de novembro de 1319, redigidopelo tabelião Domingos Eanes a pedido do prior de Alcobaça, sendo vacantea cátedra abacial, no qual se relata a cerimónia canónica de fundação danova ordem8. Oito meses após a emissão da bula, esta teve lugar no paçorégio de Santarém9. Nesta ocasião o rei recebeu o juramento de fidelidade doprimeiro mestre Gil Martins, na presença de uma pletora de testemunhos,eclesiásticos e leigos, devendo destacar-se, mais uma vez, a ausência doinfante D. Afonso10.

Depois do listado de todos os assistentes, o ato relatava o pronuncia-mento do solene juramento de fidelidade ao papa e à Santa Romana Igrejafeito, conforme a fórmula preestabelecida, sem nunca mencionar a Ordem doTemplo, por Gil Martins sobre os Santos Evangelhos recebidos das mãos doprior de Alcobaça.8Monumenta Henricina, cit., doc. 67, pp. 126-128.9 A final, a cerimónia do juramento solene teve lugar oito meses depois da recepção da bula, muitomais tempo após a conclusão do prazo de dez dias estabelecido pelo pontífice.10 Estiveram presentes na cerimónia: D. Gonçalo (sic), bispo de Évora, D. Martinho, bispo da Guarda,D. Martinho, bispo de Viseu, D. Rodrigo, bispo de Lamego, Domingos Eanes, tabelião régio e público,Francisco Domingez, cónego de Braga, Coimbra e Lisboa e prior da igreja de S. Maria da Alcáçovade Santarém, Afonso Fernandez, deão, Gonçalo Migeez, tesoureiro de Lamego, Vasco Martiz deRiparia, cónego, Antom Martiz, cónego de Lisboa, Stevam Martiz, cónego de Viseu, Ramiro Michael,cónego de Guarda, Doming Eannes, cónego de Porto, o nobre João, filho de Afonso Guedelha,Stevam da Guarda, secretário do rei, Martin Pirez, Pero Stevenz, Vicente Annes Cesar, Joham GunsalvjLectom, Stevam Airas, Apariço Domjnges, sobrejuiz, Pero Dominguez, porteiro mor, mestre Antom,Martim Sueiro, Martim Gill, ouvidores ordinários, Vasco Stevenz, prior da Mouta, Stevom Pirez Zarco,Gomez Lourenço, Afonso Stevenz, advogados do rei, mestre Stevam, mestre Barnaba, mestre Gyraldo,físicos do rei, Joham Martins, tabelião de Santarém, frei João, prior do mosteiro de S. Domingos deLisboa, confessor do rei, frei Martinho, prior da abadia de Alcobaça.

A extinção da Ordem do Templo e a criação da Ordem de Cristo

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Não obstante, somente dois dias depois, a 20 de Novembro, foi redigido,pelo mesmo tabelião Domingos Eanes, um instrumento de quitação com oqual o mestre da Ordem de Cristo e convento cediam a D. Dinis, sem condi-ções e para sempre, todas as rendas – fuitos, rrenovos e rrendas – proveni-entes dos castelos, cidades e propriedades que pertenceram originalmente àdesfeyta Ordem do Templo e transferidos para a Ordem de Cristo por deci-são do papa11. Tal iniciativa justificava-se com as ingentes despesas susten-tadas pela Coroa para o confisco dos bens, executado na altura do processoaos templários, para a manutenção de tais propriedades depois da extinçãoda Ordem do Templo e para o envio dos procuradores à cúria pontifícia paratratar do destino do património templário.

A este ponto, é muito importante notar que neste documento a primeiracomunidade da Ordem de Cristo, já constituída, estabelece uma concretaassociação entre a antiga e a nova instituição, vindo a reconhecer-se, implici-tamente, como a herdeira “material” do Templo, mas que, ao mesmo tempo,somente as rendas do Templo e não os territórios eram concedidas ao rei,revelando a nova cavalaria não ter nenhuma consideração para com todasas iniciativas actuadas pelo monarca nos anos precedentes para incorporá-los no património da Coroa12.

Esta tomada de posição do mestre e convento da Ordem de Cristo en-contra a sua justificação no diploma régio de 24 de Junho de 1319, cronologi-camente anterior ao instrumento notarial, que é ainda mais interessante aesse respeito13. De facto, neste documento, que começa com uma arenga,quase um ato de contrição por parte do soberano, D. Dinis não só menciona-va explicitamente a antiga e a nova ordem em termos de continuidade entreuma e outra, mas também afirmava que a Ordem de Cristo era o produto dareformação («reforma») da Ordem do Templo14. Além disso, o rei renunciava11Monumenta Henricina, cit., doc. 68, pp. 129-131.12 V. infra.13 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Ordem de Cristo-Convento de Tomar (OCCT), mss.234, f. 136r-136v.; v. Apêndice documental.14 A palavra reformação é utilizada duas vezes ao longo do texto. Saul Gomes, no seu estudo sobrea extinção da Ordem do Templo em Portugal, já tinha chamado a atenção para o uso na documenta-ção portuguesa de uma terminologia alusiva ao carácter de novidade relativa à cavalaria de Cristo,destacando a vontade dos redactores de querer assinalar «algo que se concretiza pela primeira vez,ou seja de acto fundacional de raiz», querendo esta enfatizar a originalidade da militia Christi relativa-mente à do Templo sobretudo do ponto de vista jurídico. Outrossim, o mesmo autor destaca o uso doconceito de reformação, frisando este ser o resultado «das concepções plurais que, em tal matéria,

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totalmente ao património templário declarando categoricamente não ter al-gum direito de momento que este tinha sido atribuído à Coroa através de umainjusta sentença. Por esta razão, o monarca declarava a sua vontade de que-rer restituir («tornar») à nova ordem todas as terras e os castelos e motivavaa sua decisão afirmando que queria corrigir e emendar todos os erros come-tidos e limpar a sua consciência, especificando que fazia isto para si próprio,mas também para o infante D. Afonso, herdeiro do reino.

Com esta admissão de responsabilidade e exame de consciência, D.Dinis punha termo ao debate sobre a posse do património da Ordem do Tem-plo em Portugal e a sua transferência para a Ordem de Cristo. Contudo, anosmais tarde, este teria sido reaberto pelo filho depois de ter subido ao trono eassumido o título de D. Afonso IV15.

A dissolução da Ordem do Temploe a criação da Ordem de Cristo (1307-1319)

A bula de 14 de Março encerrava o demorado processo arrastado du-rante anos, caracterizado por intensas negociações diplomáticas, dentro efora de Portugal, por causas judiciárias e tomadas de posições por parte daCoroa nem sempre pacíficas, iniciado a seguir à emissão da bula de papaClemente V Vox in excelso com a qual declarava oficialmente extinta a Or-dem do Templo16.

circulavam entre os oficiais e redactores da chancelaria régia à época»: v. GOMES, Saul – “A Extinçãoda Ordem do Templo em Portugal”, in Revista de História da Sociedade e da Cultura, 11 (2011), pp.75-116; cf. p. 77.15 AYALA MARTINEZ, “Las ordenes militares y los processos de afirmación monárquica”, cit., pp.1301-1304, BAETA, D. João Lourenço, mestre da Ordem de Cavalaria, cit., pp. 62-68 e ROSSI VAIRO,Giulia – “A guerra civil portuguesa, o almirante Manuel Pessanha e a criação da Ordem de Cristo”, inFernandes, Isabel Cristina (coord.). Atas do VII Encontro Internacional sobre Ordens Militares EntreDeus e o Rei. O mundo das Ordens Militares, Palmela: GESoS – Câmara Municipal de Palmela, 2017(no prelo).16 Sobre o processo aos Templários: BARBER, Malcom – The Trial of the Templars, Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2006; DEMURGER, Alain – Jacques de Molay: le crépuscule des Templiers, Paris:Payot & Rivages, 2007; THÉRY, Julien – “Procès des Templiers” in Bériou, Nicole, Josserand, Philippe(eds.), Prier et combattre. Dictionnaire européen des ordres militaires du Moyen Âge. Paris: Fayard,2009, pp. 743-751. Ver também a análise de casos concretos em: FOREY, Alain – The Fall of theTemplars in the Crown of Aragon, Aldershot: Ashgate, 2001 e SANS I TRAVÉ, Josep Maria – “ElsInterrogatoris dels Templers Catalans (1309-1311)”, in Albuquerque Carreiras, José (ed.), A Extinção daOrdem do Templo, Tomar: Instituto Politécnico de Tomar, 2012, pp. 111-158.

A extinção da Ordem do Templo e a criação da Ordem de Cristo

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Na realidade, desde 1307, portanto com grande antecipação com res-peito à data de emissão da bula (22 de Março de 1312), D. Dinis pusera emato toda uma série de iniciativas com o objetivo de englobar no património daCoroa os bens portugueses do Templo que, nesta mesma altura, vivia tem-pos difíceis em todo o continente europeu17.

A Ordem do Templo era presente no território lusitano desde 1128, ain-da antes do nascimento do reino de Portugal (1144). Ao longo do tempo, osTemplários tornaram-se uma potência militar e económica sendo senhoresfeudais de cidades e proprietários de terras, castelos e outras propriedades(em Soure, Idanha-a-Velha, Idanha-a-Nova, Pombal, Ega, Redinha, Tomar,Almourol, Salvaterra, Segura e outras), concentrados sobretudo no centro doPaís, a norte de Lisboa, nas antigas regiões da Beira Baixa, da Beira Interior,do Ribatejo e do Alto Alentejo18.

Ainda hoje a natureza das relações existentes entre a Ordem do Temploe a Monarquia portuguesa é objeto de debate historiográfico que vê, de umalado, os que consideram o Templo português como um braço auxiliar e militarda Coroa19 e, do outro, os que, mais recentemente, tem sublinhado a posição

17 Sobre o processo aos Templários no reino de Portugal: LOPES, Félix – “Das actividades políticase religiosas de D. Fr. Estêvão, bispo que foi do Porto e de Lisboa, in Lusitânia Sacra, 6 (1962-1963),pp. 25-90; COSTA, Ricardo da – “D. Dinis e a supressão da Ordem do Templo (1312): o processo daformação da identidade nacional em Portugal”, in Cultura e Imaginário no Ocidente Medieval. Arra-baldes - Cadernos de História. Série I, Niteroi, 1996, pp. 90-95; PORRO, Clive – “Reassessing in theDissolution of the Templars: King Dinis and their Suppression in Portugal”, in Burgtorf, Jurgen, Crawford,Paul, Nicholson, Helen (eds.), The Debate on the Trial of the Templars. Farnham-Burlington: Ashgate,2010, pp. 171-182; GOMES, “A Extinção da Ordem do Templo em Portugal”, cit.; FARELO, Mário –“Pro defensione iuris regis. Les relations entre la Couronne portugaise et le pape Clément V à lalumière du procès des Templiers”, in Albuquerque Carreiras (ed.), A Extinção da Ordem do Templo,cit., pp. 63-109.18 Sobre a história dos Templários em Portugal: OLIVEIRA, Luís Filipe – “Ordens Militares”, in Vas-concelos e Sousa, Bernardo (dir.), Ordens Religiosas em Portugal: Das Origens a Trento. Guia His-tórico, Lisboa: Livros Horizonte, 2005, pp. 453-502; TOOMASPOEG, Kristjan, “L’Ordre du Temple enOccident et au Portugal”, in Albuquerque Carreiras (ed.), A Extinção da Ordem do Templo, cit., pp.17-61; IDEM, “Historiographie de l’Ordre du Temple au Portugal: status quaestionis”, in AlbuquerqueCarreiras, José, Rossi Vairo, Giulia (eds.), I Colóquio Internacional. Cister, os Templários e a Ordemde Cristo. Actas. Tomar: Instituto Politécnico de Tomar, 2012, pp. 171-191.19 VALENTE, José – “The New Frontier. The Role of Knights Templar in the Establishment of Portugalas an Independent Kingdom”, Mediterranean Studies, 7 (1998), pp. 49-65; IDEM – Soldiers and Settlers:the Knights Templar in Portugal, 1128-1319, Phd Thesis. Santa Barbara: University of California,2002; FERNANDES, Maria Cristina Ribeiro de Sousa – “A Ordem do Templo em Portugal: algumas

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de substancial autonomia da ordem relativamente ao poder central até aoúltimo quartel do século XIII, ou seja, até à subida ao trono do rei Dinis, emfevereiro de 127920. A partir daquele momento, o soberano manifestou umconstante interesse pela ordem: em Agosto de 1279 lhe acordou a sua prote-ção21, confirmando, em 1285, todos os direitos e privilégios de que gozavamos templários no reino22, intervindo em favor dos cavaleiros para dirimircontenciosos locais (128523, 128624, 130225) e fazendo doações a VascoFernandes (129826, 130427), ultimo mestre da ordem em funções desde 129328.

A situação sofreu uma mudança de rota na altura do processo aostemplários, quando o monarca, perseguindo o objetivo de apoderar-se doingente património do Templo, iniciou a actuar em várias frentes. Perante adifícil situação vivida pela milícia em toda Europa, querendo secundar as indi-cações da Sé Apostólica e aproveitando do facto que nas filas da ordem mi-litassem sobretudo portugueses29, entre os quais homens de sua confiança,tentou sistematicamente de assumir o poder sobre as actividades e as terrastemplárias do reino, adoptando diversas estratégias e chegando a ordenar oconfisco dos bens.

Para comprovar que as possessões templárias foram, na realidade, re-sultado de doações régias feitas não somente para servir Deus, mas tambéma Coroa, D. Dinis instituiu uma especial comissão, composta por alguns seus

considerações em torno das fontes para o seu estudo”, in Revista da Faculdade de Letras, História(Porto), 8 (2007), pp. 409-420; EADEM, A Ordem do Templo em Portugal (das origens à extinção),Dissertação de Doutoramento. Porto: Universidade do Porto, 2009.20 OLIVEIRA, “Ordens Militares”, cit. e TOOMASPOEG, “L’Ordre du Temple”, cit.21 1279, Agosto, 22: ANTT, Gavetas (Gav.) 7, maço 10, doc. 12.22 1285, Maio, 30: ANTT, Gav. 7, maço 16, doc. 2 (transcrição de 1318, Setembro, 30) e ANTT,Leitura Nova-Livro de Mestrados, Livro de Mestrados (LN-LM), f. 23, cópia do séc. XV.23 1285, Julho, 13: ANTT, Gav. 7, maço 16, doc. 2 e ANTT, LN-LM, f. 24r, col. 2.24 1286, Julho, 10: ANTT, Gav. 7, maço 16, doc. 2 e ANTT, LN-LM, f. 25r, col. 1.25 1302, Dezembro, 14: ANTT, Gav. 7, maço 9, doc. 16.26 1298, Setembro, 27: ANTT, Gav. 7, maço 16, doc. 2 e ANTT, LN-LM, f. 25r, col. 2.27 1304, Setembro, 14: in COSTA, Bernardo da – Historia da Militar Ordem de Nosso Senhor JesusChristo, Coimbra 1771. Malveira: Atelier “Sol Invictus”, 1988, doc. 80, p. 298.28 Vasco Fenandes aparece pela primeira vez em 1293 como comendador templário em Santarém:1293, Junho, 5: ANTT, OCCT, Documentos particulares, maço 1, doc. 29 e ANTT, OCCT, mss. 234,II, f. 13r-13v.29 Assim parece dessumir-se das fontes: por exemplo, em Junho de 1293 (v. nota anterior) encontra-mos nomes como: Lourenço Martinz, Gil Fernandez Barredo, Vaasco fernandez, Ruy Gonçalves,Sueyre Anes, Affonso and Martinho.

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fiéis colaboradores, que julgasse em tribunal caso por caso a efetiva perten-ça dos do Templo português. Esta era constituída por: D. Martinho Pires deOliveira, arcebispo de Braga, D. João Martins de Soalhães, bispo de Lisboa,D. João das Leis, doutor em lei, frei Estêvão Migueis, custódio da Provínciafranciscana de Lisboa, e tal Rui Nunes30.

Entre 1307 e início de 1310, a comissão atribuiu ao soberano por sen-tença judicial todas as terras objecto de discussão, ignorando os protestosdos freires que contestavam a mesma instituição da comissão não a achandoimparcial31.

A seguir, no dia 21 de Janeiro de 1310, Fernando IV, rei de Castela, e D.Dinis, assinavam o acordo através do qual se comprometiam a fazer frentecomum contra a eventual decisão do Papado de destinar o património templárionos seus respectivos reinos à Ordem de São João de Jerusalém. Os doissoberanos afirmavam que, em caso de reivindicação por parte da Sé Apostó-lica, deveriam declarar que os bens tinham sido concedidos ao Templo parao serviço prestado a Deus e à Monarquia. No documento referia-se que tam-bém Jaime II, rei de Aragão, estava disposto a subscrever os acordos32.

No entanto, ainda em 1310 e depois em 1311, realizavam-se uma sériede concílios provinciais – em Tordesillas (Abril) e em Salamanca (Outubro) –durante os quais os templários de Hispania foram convocados para defen-der-se das acusações que eram movidas contra eles. Os eclesiásticos portu-gueses chamados a participar na qualidade de inquisidores pontifícios deramconhecimento dos resultados dos inquéritos levados a cabo no território doreino de Portugal. Nestas ocasiões eles declararam a substancial inocênciados membros da ordem, deixando contudo qualquer decisão relativamenteao destino deles à decisão do papa. Nomeadamente, no concílio de Vienne,iniciado em 16 de Outubro de 1311 e concluído a 6 de Maio de 1312, portantodepois da publicação da bula de extinção da Ordem do Templo, os eclesiás-ticos dos reinos de Portugal, Castela, Aragão e Maiorca conseguiram obterum estatuto especial para o património templário local. De facto, na bula de 2de Maio, Clemente V decretava a transferência dos bens do Templo para aOrdem de São João de Jerusalém com a excepção daqueles presentes nos

30 Sobre esta fase do processo aos Templários no reino de Portugal, v. FARELO, “Pro defensioneiuris regis”, cit., pp. 68-77.31 LOPES, “Das actividades”, cit., pp. 108-109.32 ANTT, Gav. 7, maço 4, doc. 9 e ANTT, OCCT, mss. 234, II, fls. 10v-11r.

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reinos ibéricos33; além disso, uns dias mais tarde, a 6 de Maio, o pontíficeestabelecia que os antigos frades fossem julgados a nível local durante sínodosprovinciais34. Todavia, a 23 de Agosto de 1312, o papa escrevia aos sobera-nos ibéricos voltando ao assunto e pedindo esclarecimentos sobre o destinoque eles teriam dado aos bens do Templo e dando tempo de responder atédia 1 de Fevereiro de 131335.

Pelo explícito requerimento de Clemente V, deduz-se que, na altura, aquestão templária em Portugal não era de todo encerrada nem resolvida emfavor do soberano e que as conclusões da comissão estatuída por D. Dinisem 1307 não tinham sido levadas a sério pela Sé Apostólica, mas sim ignora-das e portanto nunca aprovadas.

A comprovar esta circunstância é o facto de que, ainda em Abril de 1314,o rei fez conduzir um ulterior inquérito de vinte e cinco questões em Soure,Castelo Branco, Montalvão e Nisa para provar que a origem dos benstemplários constasse em doações régias desde os tempos do conde AfonsoHenriques, depois D. Afonso I de Portugal. Contudo, tem que ser considera-do que, entre os ouvidos, foram efectivamente antigos frades professos, mastambém moradores ou pessoas que tinham vivido à volta das comendastemplárias, assim como que muitas das afirmações dos testemunhos fossemmais baseadas na fama, na vox populi e na tradição oral, do que em autos edocumentos realmente conservados. Poucos meses depois, a 15 de Novem-bro, o bispo de Lisboa ordenava um novo inquérito em Tomar com o mesmoobjetivo36.

Os resultados das duas inquirições muito provavelmente nunca chega-ram ao conhecimento da cúria pontifícia, de momento que Clemente V mor-reu a 20 de Abril de 1314 e a Sé Apostólica permaneceu vacante até à elei-

33Regestum Clementis Papae V, VI, Roma: Typographia Vaticana, 1887, docs. 7885-7886, pp. 65-71.34Ibidem, doc. 8784, pp. 347-349.35 LOPES, “Das actividades”, cit., p. 115.36 Este inquérito é conhecido através de uma cópia achada num manuscrito de época moderna con-servado em 1800 no arquivo capitular da Sé de Lisboa: v. LOPES, “Das actividades”, cit., pp. 117-118. Contudo Lopes não chegou a consultar o documento e refere a notícia extraída de CUNHA,Rodrigo de – Historia ecclesiastica da Igreja de Lisboa. Lisboa: por Manoel da Sylva, 1642, p. 234 ede FIGUEIREDO, José Anastásio de – Nova historia Militar da Ordem de Malta em Portugal. Lisboa:Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1800, vol. I, p. 15. Esta notícia é confirmada por FARELO, “Prodefensione iuris regis”, cit. p. 101. O autor acrescenta que a cópia do inquérito se encontrava no Livro4° de Benefícios da Sé de Lisboa conservado no arquivo capitular da Sé de Lisboa, referindo commais detalhes a informação dessumida de Figueiredo.

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ção do sucessor, João XXII, a 7 de Agosto de 1316. Por esta razão, a questãotemplária ficou em suspenso durante todo este lapso de tempo.

Todavia, é necessário lembrar que, na altura das inquirições, um novobispo tinha sido eleito para a diocese de Lisboa: o franciscano Estêvão Miguéis.Capelão, confessor, embaixador do rei, Estêvão Miguéis, originário de Évora,era um homem culto e bom letrado. Entre 1307 e 1310, como custódio daProvíncia franciscana de Lisboa, fizera parte da comissão que tinha julgado apertença régia de cidades e possessões templárias37. A seguir, em 1310,tinha sido eleito bispo do Porto a pedido do rei D. Dinis38 e em 1313 transferi-do para a diocese de Lisboa, desta vez por explícita instância do pontífice39.Pouco antes, em 1311, o mesmo Clemente V nomeava-o inquisidor pontifíciono reino de Portugal durante o processo aos templários40. Nestas funções,participara nos concílios de Tordesillas, Salamanca e Vienne. Além disso,em 1316, Estêvão Miguéis surge como administrador único do património daextinta Ordem do Templo em Portugal, sendo indicado para este encargoprovavelmente já pelo defunto Clemente V.

Em todas estas ocasiões e incumbências, mesmo defendendo a causa dorei, o bispo de Lisboa respeitara sempre as instruções e indicações da Sé Apos-tólica. Não obstante, foi a partir de 1316, também em concomitância com algunsacontecimentos que envolveram membros da família do prelado, que as rela-ções entre Estêvão Miguéis e D. Dinis se deterioraram definitivamente41.

A instituição da Ordem de Cristonos primórdios do contexto da guerra civil (1317-1319)

Na realidade, na altura registava-se no reino um clima de fortes tensões,primeiras concretas manifestações do contraste entre o rei D. Dinis e o her-deiro do trono, o infante D. Afonso, que teria desbocado na guerra civil42. De

37 LOPES, “Das actividades”, cit., pp. 106-110.38 SÁNCHEZ DOMÍNGUEZ, Santiago – Documentos de Clemente V (1305-1314) referentes a España.León: Universidad de León, 2014, doc. 618, pp. 625-626.39Ibidem, doc. 1336, p. 1271.40Ibidem, docs. 795-796, pp. 780-781 e doc. 897, pp. 884-885.41 LOPES, “Das actividades”, cit., pp. 122 e sgs.42 A guerra civil entre o rei D. Dinis e o infante D. Afonso foi estudada por: LOPES, Félix – “SantaIsabel na contenda entre D. Dinis e o filho 1321-1322”, in Lusitânia Sacra, 8 (1967-1969), pp. 57-80;ANTUNES, João, OLIVEIRA, António de Resende, MONTEIRO, João Gouveia – “Conflitos políticos

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facto, desde 1312, mas sobretudo ao longo do biénio 1316-1317, ocorreramalguns dramáticos episódios de que foram protagonistas aqueles que, poucomais tarde, estariam no centro do conflito, isto é, o rei D. Dinis, o herdeiro dotrono, o infante D. Afonso, a rainha consorte D. Isabel, os três filhos ilegítimosdo monarca, D. Pedro Afonso, 3.º conde de Barcelos, D. Afonso Sanches,mordomo-mor do reino, e D. João Afonso, alferes-mor do reino43. Foi justa-mente neste quadro de grande instabilidade, que emerge do estudo dascrónicas e da documentação dionisina, afonsina e pontifícia daqueles anos,que a Ordem de Cristo viu a luz44.

Dá testemunho do estado de guerra que já em 1316 se devia viver emPortugal a série de cartas apostólicas de Junho de 1317 enviadas por umpreocupado João XXII depois de ter tido conhecimento, através dos embai-xadores portugueses, das desavenças que abalavam a Monarquia.

Nesta primeira série de epístolas, o papa, se bem ameaçasse penasseveras, entre as quais a excomunhão, contra quem perturbasse a paz doreino, não se expressava claramente sobre as pessoas envolvidas45. Contu-do, na segunda séria de missivas, datadas de Março de 1318, motivadas,presumivelmente, por acontecimentos ocorridos ainda em 1317 e/ou no iní-cio do ano seguinte, não deixava espaço para dúvidas.

no reino de Portugal entre a Reconquista e a Expansão. Estado da questão”, in Revista da Históriadas Ideias, 6 (1984), pp. 25-160, especialmente, pp. 112-120; MATTOSO, José – “A guerra civil de1319-1324”, in Portugal medieval: novas interpretações, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moe-da,1992, pp. 293-308.43 O tema da guerra civil foi recentemente revisitado, tendo sido proposta uma cronologia antecipadado conflito fazendo remontar o seu início ao biénio 1316-1317: cf. ROSSI VAIRO, Giulia – “Isabelled’Aragon, reine du Portugal, «constructrice de la paix» durant la guerre civile (1317-1322)? Étudecritique des sources portugaises et des Regesta Vaticana”, in Sot, Michel (ed.), Médiation, paix etguerre au Moyen Âge. Paris: Comité des travaux historiques et scientifiques, 2012, pp. 97-107 ;EADEM – “Il protagonismo d’Isabel d’Aragona, regina del Portogallo, nella guerra civile alla luce dellefonti portoghesi, aragonesi e dei Regesta Vaticana (1321-1322)”, in García-Fernández, Miguel,Cernadas Martínez, Silvia (eds.), Reginae Iberiae. El poder régio feminino en los reinos medievalespeninsulares. Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, 2015, pp. 131-150; e,de forma mais extensa, em: EADEM – D. Dinis del Portogallo e Isabel d’Aragona in vita e in morte.Creazione e trasmissione della memoria nel contesto storico e artistico europeo. Tese de Doutoramentoem História da Arte. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2014, pp. 107-134 e 215-244.44 Esta circunstância foi parcialmente abordada, mas não adequadamente desenvolvida, em: BAETA,D. João Lourenço, mestre da Ordem de Cavalaria de Cristo, cit., pp. 48-53.45 Para a transcrição das cartas apostólicas, cf. ROSSI VAIRO, D. Dinis del Portogallo e Isabeld’Aragona, cit., docs. XI-XIII, pp. 414-418.

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A 21 de Março de 1318 o pontífice dirigia quatro cartas ao rei, ao infante,à rainha consorte, estando a mãe e o filho mancomunados pelo ressentimen-to contra o monarca, e ao bispo de Lisboa, acusado de ter alimentado o mal--estar entre os membros da família real. Vale a pena destacar o facto de tersido o próprio papa, o vigário de Cristo na terra, não um prelado qualquer, aintervir de forma directa para dirimir a controvérsia, em testemunho da gravi-dade e da evidência dos conflitos que grassavam no reino46.

Nomeadamente, em todas as cartas, o frade franciscano era indicadocomo quem semeara a discórdia. Além disso, se, por um lado, João XXIIevitava fazer referência à função exercida pelo bispo na gestão do patrimóniotemplário, por outro era o próprio D. Dinis que, no meio da guerra civil, noprimeiro dos três manifestos redigidos para denunciar o comportamento doinfante rebelde e lidos nas públicas praças das cidades do reino47, recordavaexplicitamente as malfeitorias do prelado, partidário do príncipe, e o papel porele desenvolvido no feito dos beens do Tenpre48. Contudo, é curioso obser-var que o pontífice, mesmo atribuindo ao franciscano precisas responsabili-dades, nunca tomou a decisão de removê-lo do seu lugar nem adoptou medi-das severas contra ele, embora o rei lho pedisse explicitamente49. Portanto,no quadro das fortes confrontações vividas na altura em Portugal, deve inse-rir-se também o destino do património templário.

Comprova esta circunstância o protesto, redigido em latim, de 21 deDezembro de 1317 posto por escrito em nome do infante D. Afonso pelo seuprocurador Gomes Lourenço, um dos mais acessos e intrigantes seguidoresdo herdeiro, recordado como tal no segundo manifesto dionisino, datado de15 de Maio de 132150, contra a concessão de Tomar, já casa-mãe do Templo

46Ibidem, docs. XV-XIX, pp. 419-425. As cartas dirigidas ao rei D. Dinis e à rainha D. Isabel encon-tram-se transcrita em: LOPES, “Santa Isabel e a larga contenda”, cit., pp. 29-32.47 O texto do primeiro manifesto, datado de Santarém, 1 de Julho 1320, encontra-se publicado em:LOPES, Felix – “O primeiro manifesto de el-Rei D. Dinis contra o Infante D. Afonso seu filho e herdei-ro”, em Itinerarium – Colecctânea de Estudos, XII, 55 (1967), pp. 17-45; o texto do segundo, datadode Lisboa, 5 de Maio 1321, em: IDEM, “Santa Isabel e a larga contenda”, cit. pp. 34-40; o texto doterceiro, datado de Lisboa, 17 de Dezembro de 1321, em: Livro I de Místicos de Reis. Livro II dos ReisD. Dinis D. Afonso IV D. Pedro I. Documentos para a história da Cidade de Lisboa, Lisboa: CâmaraMunicipal de Lisboa, 1947, pp. 135-146.48 LOPES, “O primeiro manifesto”, cit., p. 145; a hostilidade do bispo de Lisboa é recordada explicita-mente também no segundo manifesto: IDEM, “Santa Isabel e a larga contenda”, cit., p. 37.49 Na carta enviada ao rei a 21 de Março de 1318 o papa faz referência a esta circunstância.50 LOPES, “Santa Isabel e a larga contenda”, cit. p. 36.

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no reino, ao cardeal Bertrando de Montfavez, titular de Santa Maria in Aquiro,oficializada pelo pontífice justamente naquele ano.

No extenso instrumento notarial, redigido a rogo do príncipe e não dosoberano, no meio de uma primeira violenta crise interna à família real – e,portanto, da Monarquia –, pela primeira vez, desde o início do processo deextinção do Templo português, vinham expostas as teses portuguesas sobrea origem do património templário e oficialmente apresentados à Sé Apostóli-ca os protestos e as revindicações da Coroa sobre os bens da antiga ordem,referindo, em boa substância, os conteúdos das inquirições de 1314, semcontudo mencioná-las51.

Hoje em dia ignora-se quais foram as motivações profundas que leva-ram o infante a actuar desta forma, para além de um forte interesse naqueleterritório, rico e estratégico do ponto de vista geográfico. Igualmente, desco-nhece-se se o rei teve conhecimento das diligências do herdeiro, emborahaja mais de uma razão para ter dúvidas a esse respeito, em primeiro lugar,considerando as relações tensas entre pai e filho, vividas justamente naqueleano e naquela altura52. Além disso, não há motivo para crer que o protesto foifeito por interposta pessoa, isto é, ordenado pelo monarca, mas apresentadopelo procurador do infante, uma vez que esta atitude podia prejudicar e minara auctoritas régia e, mais concretamente, frustrar todo o paciente trabalhodiplomático levado a cabo até aquele momento pelo soberano através dosseus diversos embaixadores. Não obstante, quem pode ter sido informadodesta iniciativa foi o próprio bispo de Lisboa, então publicamente alinhadocom o príncipe rebelde, ao ponto do seu comportamento ser estigmatizadonas epístolas de Março de 131853, para além de ter mandado realizar o inqué-rito em Tomar pouco mais de um mês antes, em 15 de Novembro de 131754.

A súbita aceleração do infante não deveu agradar ao soberano que, al-gum tempo antes, a dia 1 de Fevereiro de 1317, prosseguindo a sua açãodiplomática na tentativa de perseguir o seu objetivo, nomeara o genovêsEmanuele Pessagno almirante-mor do reino55.

51 ANTT, Gav. 7, maço 11, doc. 1 e ANTT, OCCT, mss. 234, II, fls. 4r-9r.52 V. infra e nota 41.53 V. nota 42.54 V. infra e nota 33.55 ANTT, Gav. 3, maço 1, doc. 7, publicado em: MARQUES, João Martins da Silva (ed.) – Descobri-mentos Portugueses. Documentos para a sua história, Instituto da Alta Cultura, Lisboa, 1944-1971,vol. I, doc. 37, pp. 27-30.

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Emanuele Pessagno, ou Manuel Pessanha como aparece referido nasfontes portuguesas, era expoente de uma família de mercadores e navega-dores, homem conhecido e popular junto da cúria pontifícia56, irmão do bemconhecido António, cavaleiro a serviço do rei de Inglaterra57.

Manuel Pessanha tinha sido contactado em Avinhão em 1316, a seguirao afastamento de Nuno Fernandes Cogominho, chanceler e partidário doinfante58, pelos emissários do soberano, os cavaleiros Vicente Eanes Césare João Lourenço, os mesmos que foram encarregados por D. Dinis de tratara questão do destino do património templário e, em geral, de todas as ordensmilitares do reino, entre 1316 e 131759.

56 Sobre a figura de Manuel Pessanha: DANERI, Angelo – Emanuele Pessagno. Dalla Val Gravegliaa Lisbona. Un “sabedor de mar” fra la nobiltà portoghese, Sestri Levante: Gammarò editori, 2008;ROSSI VAIRO, Giulia – “O genovês Micer Manuel Pessanha, Almirante d’El-Rei D. Dinis”, inMedievalista 13 (2013), online; EADEM, “La Lisbona di Manuel Pessanha”, in Alessandrini, Nunziatella,Flor, Pedro, Russo, Mariagrazia, Sabatini, Gaetano (eds.), Le nove son tanto e tante buone che dirnon se pò. Lisboa dos Italianos: Arte e História (sécs. XIV-XVIII), Lisboa: Cátedra de Estudos Sefarditas"Alberto Benveniste" da Universidade de Lisboa, 2013, pp. 19-37; e EADEM, “Manuel Pessanha etl’organisation de la flotte portugaise au XIVe siècle”, in Balard, Michel (ed.), The Sea in History -Medieval World II, Paris: Boydell & Brewer, 2017, pp. 321-330. Sobre as origens e os diversos mem-bros da família Pessagno: VECCHI, Augusto – “Una dinastia di ammiragli”, Rivista marittima, XIII,1880, pp. 269-281; BELGRANO, Luigi Tommaso – “Documenti e genealogia dei Pessagno ammiraglidel Portogallo”, in Atti della Società ligure di storia patria, Genova, 1881, tomo XV, pp. 241-316;PESSANHA, João Benedito d’Almeida – Noticia histórica dos Almirantes Pessanhas e sua descen-dência, Lisboa: Imprensa de Libánio da Silva, 1900; FERNANDES, Fátima – “Los genoveses en laarmada portuguesa: los Pessanha”, Edad Media. Revista de Historia, 4, 2001, pp. 199-206.57 Sobre a figura de António Pessagno: FRYDE, Natalie – “Antonio Pessagno of Genoa, King’s merchantof Edward II of England”, in Studi in memoria di Federigo Melis, Napoli: Giannini, 1978, vol. II, pp. 159--178; AIRALDI, Gabriela – “Due fratelli genovesi: Manuele e Antonio Pessagno”, in Estudos em ho-menagem ao Professor Doutor José Marques, Porto: Universidade do Porto - Faculdade de Letrasdo Porto, 2006, vol. II, pp. 139-146; ROGER, Jean-Marc – “Antonio Pessagno”, in Bériou, Nicole eJosserand, Philippe (dir.) – Prier et combattre. Dictionnaire européen des ordres militaires au MoyenÂge, Paris: Fayard, 2009, p. 98.58 Sobre Nuno Fernandes Cogominho: LOPES, “O primeiro manifesto”, cit., p. 27 em nota; GAYO,Manuel José da Costa Felgueiras – Nobiliário de Famílias de Portugal, Braga: Edição de CarvalhoBasto, 1992, IV, pp. 414-415 e PIZARRO, José Augusto Sotto Mayor – Linhagens medievais Portu-guesas. Genealogias e Estratégias (1279-1325), Porto: Centro de Estudos de Genealogia, Heráldicae História da Família da Universidade Moderna, 1999, vol. II, pp. 62-64.59 BRANDÃO, Francisco – Monarquia Lusitana. Sexta Parte, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa daMoeda, 1980, fls. 237-243.

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Manuel Pessanha, sabedor de mar, perito na navegação e na constru-ção naval, foi uma figura totalmente alheia às disputas e aos jogos de poderdaqueles anos. A ele, fiel colaborador, conselheiro e embaixador do rei emdelicadas missões diplomáticas, D. Dinis confiara a reforma da Marinha deguerra portuguesa, empresa em que teria investido homens e recursos finan-ceiros, acarinhando, talvez, o sonho de fazer reviver em terra lusitana o projectoda Ordem de Santa Maria de Espanha de Alfonso X de Castela, avô do mo-narca português60. De facto, durante a sua breve vida, a Ordem de SantaMaria de Espanha (também conhecida nas fontes como Orden de Cartagenaou de Orden de la Estrella) representou “un original e inédito instituto direc-tamente diseñado y controlado por la realeza” (AYALA MARTINEZ, 1998, p.1285), uma ordem militar “anómala” de vocação eminentemente marítima esecular, para a cabeça da qual o soberano castelhano nomeara um almiran-te, o infante Sancho. No entanto, a ordem, depois somente dez anos da suainstituição por parte do monarca, fracassou não tendo obtido a “bênção pa-pal”.

À luz destas considerações, não é de todo improvável que D. Dinis me-ditasse algo de parecido para a futura Ordem de Cristo, considerando a voca-ção marítima da nova cavalaria portuguesa, a missão que esta se propunhadesenvolver – a defesa da fé católica e dos territórios do reino das agressõesdos infiéis –, a colocação da sede da ordem no Sul do País, numa localidadeestratégica em termos geopolíticos e defensivos, a escolha de um chefe leigoe perito na navegação a organizar e comandar uma armada – um almirante –,a sua filiação cisterciense e, finalmente, a sua estrita ligação, desde a suaconcepção, à Coroa. Contudo, a diferença do projecto de Alfonso X, o sobe-rano português durante muitos anos, e antes da criação da nova milícia, pro-curou encontrar um acordo com o Papado, não querendo repetir os erros doavô – e do próprio pai, D. Afonso III, por certos aspectos –, compreendendo a

60 Sobre a Ordem de Santa Maria de Espanha: TORRES FONTES, Juan – “La Orden de Santa Mariade España”, Miscelánea medieval murciana, 3, (1977), pp. 74-118; AYALA MARTÍNEZ, “Las orde-nes militares y los processos”, cit.; JOSSERAND, Philippe – Église et pouvoir dans la Péninsule Ibé-rique. Les ordres militaires dans le royaume de Castille (1252-1369), Madrid, 2004, pp. 621-626;TORRES FONTES, Juan – “Santa María de España”, in Beriou, Josserand (eds.), Prier et combattre,cit., pp. 845-846; AYALA MARTÍNEZ, Carlos de – “La Orden del Cister y las ordenes militares”, inAlbuquerque Carreiras, Rossi Vairo, (eds.), I Colóquio Internacional. Cister, os Templários e a Ordemde Cristo, cit., pp. 68-70.

A extinção da Ordem do Templo e a criação da Ordem de Cristo

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importância da aprovação apostólica e da necessidade de viver em harmoniacom a Igreja para o futuro ou até a própria instituição da Ordem de Cristo61.

Independentemente destas hipóteses, o que é certo é que ManuelPessanha, conselheiro e leal colaborador do monarca, esteve a par dosprojectos do seu senhor, incluindo os propósitos régios acerca da nova milí-cia, vindo nalguns casos a Avinhão apresentá-los ao pontífice. Oferece teste-munho desta circunstância, a exposição do almirante-mor do reino, em mis-são junto da cúria papal, acerca da oportunidade de emancipar o ramo portu-guês da Ordem de Santiago do mestre de Castela que, para certos aspectos,ao comparar os textos, contem os mesmos argumentos à base da fundaçãoda Ordem de Cristo62.

Após demoradas e complexas negociações e muitas embaixadas à pro-cura do compromisso mais vantajoso pelas partes envolvidas, finalmente,entre 1318 e 1319, a questão do destino do património templário viu a suadefinitiva solução realizando-se, ao mesmo tempo, a criação da Ordem deCristo.

A historiografia portuguesa tem sempre saudado a instituição da novacavalaria portuguesa como mais um sucesso diplomático de D. Dinis que, aolongo dos séculos, foi apelidado de várias maneiras, entre as quais de “Pai daPátria”, e de que um ditado popular ainda hoje diz que D. Dinis fez tudo quan-to quis. Contudo, como muitas vezes acontece, o estudo dos factos e dosdocumentos contou-nos uma história diferente. Porque se é verdade que, nofim, o monarca português conseguiu apoderar-se do ingente património daextinta Ordem do Templo, é outro tanto verdade que obteve somente as ren-das das terras templárias. Mas, sobretudo, à luz da reconstrução dos aconte-cimentos, com base na leitura e da análise das fontes proporcionadas nestetexto, depreende-se que a criação da Ordem de Cristo que, à primeira vista,poderia aparecer como um processo linear e historicamente determinado,assim como a própria adesão da nova ordem à Monarquia portuguesa, narealidade foram bem mais complicados e muito menos óbvios de quanto te-nha sido descrito até hoje.

Além disso, deduz-se que tal operação não foi fácil, nem de êxito certoou previsível a priori, circunstâncias que justificaram os repetidos câmbios deestratégias ao longo dos anos, nem, sobretudo, concebida, gerida e levada a

61 É nosso propósito desenvolver esta hipótese futuramente.

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cabo em autonomia pelo rei, antes pelo contrário. Pois se, sem alguma dúvi-da, D. Dinis foi um dos protagonistas do projecto de criação da Ordem deCristo, junto a ele deve ser reconhecido o papel fundamental de muitas ou-tras figuras, em primeiro lugar o papa João XXII, sem a aprovação do qual aordem nunca teria sido estatuída, que jogaram um papel decisivo durantetodo o processo de concepção, gestação e concretização e cuja acção foicondicionante, no bem e no mal, para a sua conclusão.

APÊNDICE DOCUMENTAL

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ordem de Cristo-Convento deTomar, mss. 234/2, fl. 136r-136v.

63Restituição que el Rey dom Dinis como christianissimo principe zelosoe guardador da justiça fez a esta ordem de nosso Senhor Jesu Christo dasvillas, castellos e lugares da Redinha, Soure, Pombal e Ega na Estremadurado bispado de Coimbra, e das Idanhas Nova e Velha e Salvaterra, Segura,Proença, e Rosmaninhal do bispado da Guarda que lhe forão julgadas porsentença de sua relação sendo da ordem do Templo, contra aqual se come-çava demanda sobre as ditas villas e lugares e as sentenças se derão depoisda dita ordem do Templo ser extincta, cujos bens pelo dito Senhor Rey e peloPapa forão dados aesta ordem de Christo.

64Em nome de Deos amen. Saibam quantos esta carta virem como eudom Dinis pela graça de Deos Rey de Portugal e do Algarve, temendo Deosa cujo poder e juizo sou certo que hei de hir, e sabendo que as cousas que sãcom verdade e com direita conciencia, que aquellas quer Deos, e leva adian-te e as outras non. E eu por esto aja firme desejo que nos meus dias, sejamper my corregidas e emmendadas aquellas cousas que eu souber e entenderque ouve como non devia, por que as cousas non se podem também nem tãodireitamente emmendar como per aquelle que as passa e as sabe. Desi erdesejando que Deos que sempre levou adiante e acrecentou nos regnos de

63 A letra “R” inicial é ornada e prolonga-se por três linhas.64 A letra “E” inicial é iluminada em vermelho.

A extinção da Ordem do Templo e a criação da Ordem de Cristo

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Portugal e do Algarve, e estremadamente nos meus dias, ho que lhe eu tenhoem grande merce, que elle aja rezão de ho manteer e levar asi adiante, comoatee aqui levou e acrecentou de bem em melhor depois dos meus dias, tambemao Ifante dom Afonso meu filho, que os haa de herdar depos my querendoDeos, como a os outros que depos nos vierem. E sendo certo que metendoeu esto asi em obra que farei direito e ho que devo, e darei rezão de my haDeos de comprir em esto ho meu desejo. Porende eu sobredito Rey domDinis entendendo e sabendo que as villas e castelos e lugares de Soure e dePonbal e da Ega e da Redinha que são na estremadura no bispado de Coimbra.E outro si ha Idanha a Velha e Aidnha65 ha Nova e Salvaterra e Segura eProença, e ho Rosmarinhal que são na Beira no bispado da Guarda, sobreque ho meu procurador ganhou sentenças que ho meestre e hos freires queforão / da ordem do Tempre que hos aviam e hos traziam a sua mãao semcontenda nenhuuma des gram tempo. Tambe no tempo dos Reis dante mycomo no meu tempo. E veemdo em qual guisa has sentenças forão dadassem parte e sabendo que como quer que quandolhes ho meu procuradorcomeçou a fazer ha demanda sobre hos ditos lugares, era ainda ha ordemcom seu estado, que logo apouco tempo durando ha dita demanda, veotorvação e desasosego aadita ordem, tal per que foi desfeita, e que ho ditomeestre nem hos freires non poderão seguir esta demanda, nem mostrar hoseu direito, de guisa que ante que has sentenças fossem dadas contra ellessobre estes lugares, e ao tempo que forão dadas eram jaa ho meestre e hosfreires amoorados da terra e non poderão a este feito vijr. E veendo ha manei-ra das sentenças e qual guisa sobre esto forão dadas, e veendo has cartasdas doaçooes dos freires dante my per que avião estes lugares e como sem-pre trouxerão e trazião hos ditos lugares sem contenda atee ho tempo da ditademanda que lhes ho meu procurador fez em tempo que elles non poderõ vijrdefender nem poer ho seu direito. Esguardando hi ho de Deos e direito everdadeira conciencia entendo que eu non hei direito nos ditos lugares e quese deve tornar a esta ordem que se agora haa de fazer em reformação daoutra sobredicta que foy do Tempre, ha qual ho papa agora outorgou queouvesse no meu senhorio, e aque elle outorgou e eu outrosi, todolos beensque hi ho Tempre avia tambem temporaes como spirituaaes. E de aqui adian-te renuncio desto e tolho de my toda posse e propriedade que eu ouve nosditos lugares per aquelas sentenças, e quero que se tornem aadita ordem

65 Sic.

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cujos entendo que são de direito. Ficando guardando amy e aos Reys quedepos my veerem nas ditas vilas e lugares hos direitos e ho conhecimento desenhorio que ende sempre fezerom a my e aos Reys dante my em esteslugares e nos outros que ha dita ordem avia no meu senhorio quandoos hadita ordem trazia a seu poder e asua mãao. En testemunho desto mandei daresta minha carta aa ordem da cavalaria de Jesu Christo que se fez emreformação daquela que se desfez que foy do Tempre. E mandeia seelar domeu seelo do chumbo e soescrevi em ella meu nome com minha maão. Datisem Lixboa em dia de sam Joham vinte e quatro dia de Junho. ElRey ho man-dou. Joham Dominges ha fez. Era de mil CCC LVII annos.

Eu elRey dom Dinis soescrevi aqui

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