cadernos da escola do legislativo nº 16 - janeiro/junho - 2009

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Publicação semestral que se propõe ser um espaço de reflexão sobre a realidade sociopolítica e cultural, promovendo um diálogo qualificado entre a atividade parlamentar e a produção acadêmica.

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MESA DA ASSEMBLEIADeputado Alberto Pinto Coelho

PresidenteDeputado Doutor Viana

1º-Vice-PresidenteDeputado José Henrique

2º-Vice-PresidenteDeputado Weliton Prado

3º-Vice-PresidenteDeputado Dinis Pinheiro

1º-SecretárioDeputado Hely Tarqüínio

2º-SecretárioDeputado Sargento Rodrigues

3º-Secretário

DIRETORIA-GERALEduardo Vieira Moreira

SECRETARIA-GERAL DA MESAJosé Geraldo Prado

ESCOLA DO LEGISLATIVOAlaôr Messias Marques Júnior

EDIÇÃOMárcio Santos

CONSELHO EDITORIALCláudia Sampaio Costa

Diretoria de Processo Legislativo – ALMGFabiana de Menezes Soares

Faculdade de Direito – UFMGFátima Anastasia

Centro de Estudos do LegislativoDepartamento de Ciência Política – UFMG

Márcio SantosEscola do Legislativo – ALMG

Marta Tavares de AlmeidaInstituto Nacional de Administração/Portugal

Ricardo CarneiroEscola de Governo Professor Paulo Neves de

CarvalhoFundação João Pinheiro

Rildo MotaCentro de Formação, Treinamento e

Aperfeiçoamento Câmara dos DeputadosRoberto Romano

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas –Universidade Estadual de Campinas

Regina MagalhãesÁrea de ConsultoriaTemática – ALMG

Diretor de Comunicação Institucional:Lúcio Pérez

Gerente-Geral de Imprensa eDivulgação:

Cristiane PereiraGerente de Comunicação Visual:

Joana Nascimento

DIAGRAMAÇÃOMauro Lúcio de Paula

REVISÃOIzabela MoreiraLarissa Freitas

Marta Parker Andrade OliveiraPaulo Roberto Magalhães

Rafael PiresSinval Roch

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Os artigos publicados nesta edição são oriundos doCiclo de Palestras Formação do Povo Mineiro, integrante doPrograma Pensando em Minas, promovido pela Escola doLegislativo em 2008. Foram convidados seis especialistas devárias áreas acadêmicas, especialmente historiadores, paradiscutir os principais temas e períodos que marcaram a históriade Minas Gerais do ponto de vista da constituição do seu povoe da formação do seu território. A idéia foi construir umpanorama histórico da dinâmica demográfica e territorial doEstado, das últimas décadas do século XVII até acontemporaneidade.

O projeto, um tanto ambicioso, foi bem-sucedido. Aspalestras tiveram um público presencial expressivo e, grava-das pela TV Assembleia, foram transmitidas posteriormenteem meio televisivo. Estão disponíveis, a partir do lançamentodesta edição dos Cadernos, em meio digital, podendo serconsultadas no site da Assembleia Legislativa.

EDITORIALEDITORIALEDITORIALEDITORIALEDITORIAL

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 11, n. 16, p. 5-6, jan./jun. 2009

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O enfoque dos artigos que se seguem é eminentementehistórico, mas, na melhor tradição do debate entre a disciplinada História e as ciências sociais, a economia e a antropologiasão também eixos teóricos a partir dos quais a reflexão éconstruída.

Agradecemos a valiosa contribuição dos especialistas,que se mobilizaram para o ciclo de palestras e produziram osartigos desta edição. Registramos, ainda, a colaboração dosetor de Taquigrafia e Publicação desta Casa, que executou atranscrição das palestras.

O editor

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Resumo: A descoberta das minas de ouro nos sertões doscataguases, em fins do século XVII, suscitou um acirradodebate acerca do projeto político a ser implantado ali. Tratava-se de formular as linhas-mestras da imensa obra de coloniza-ção de uma região internada no continente, voltada para umaatividade econômica em tudo diferente daquela que se pratica-va no Nordeste. D. João de Lencastro, governador-geral entreos anos de 1694 e 1702, foi o autor de um original plano paraa zona mineradora, caracterizado por uma abordagem essen-cialmente política do impacto do ouro no contexto do Impérioportuguês. Expressando temor diante das conseqüências dadescoberta de metais preciosos, propôs uma políticacentralizadora, baseada no rigor e no controle sistemático depessoas, caminhos e mercadorias. O presente artigo examinaos principais aspectos desse projeto, apresentando as reaçõesque desencadeou junto à Corte.

Palavras-chave: Mineração, Minas Gerais, Século XVIII,D. João de Lencastro

Abstract: At the end of the Seventeenth century, the discoveryof gold mines in the sertões dos cataguases aroused a great

AS MINAS ANTES DAS MINAS:AS MINAS ANTES DAS MINAS:AS MINAS ANTES DAS MINAS:AS MINAS ANTES DAS MINAS:AS MINAS ANTES DAS MINAS:REFLEXÕES SOBRE OS ALBORES DAREFLEXÕES SOBRE OS ALBORES DAREFLEXÕES SOBRE OS ALBORES DAREFLEXÕES SOBRE OS ALBORES DAREFLEXÕES SOBRE OS ALBORES DA

HISTÓRIA MINEIRAHISTÓRIA MINEIRAHISTÓRIA MINEIRAHISTÓRIA MINEIRAHISTÓRIA MINEIRA

ADRIANA ROMEIRO*ADRIANA ROMEIRO*ADRIANA ROMEIRO*ADRIANA ROMEIRO*ADRIANA ROMEIRO*

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 11, n. 16, p. 7-22, jan./jun. 2009

* Doutora em Histó-ria, com Pós-Douto-rado pela Universida-de de São Paulo. Pro-fessora Adjunta doDepartamento de His-tória da Faculdade deFilosofia e CiênciasHumanas da Univer-sidade Federal deMinas Gerais.

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debate about the political project to be located there. It was tomake the master-lines of the immense work of colonization ofa region within the continent, devoted to an economic activityvery different from that practiced in the Northeast. D. João deLencastro, Governor-General between the years 1694 to 1702,was the author of an original plan for the mining area,characterized by an essentially political interpretation of theimpact of gold in the Portuguese Empire. Expressing fear forthe consequences of the discovery of precious metals, heproposed a centralized policy based on rigorous and systematiccontrol of people, roads and goods. This article examines themain aspects of this Project, describing the reactions thattriggered in Lisbon.

Keywords: Mining, Minas Gerais, The Eighteenth Century,D. João de Lencastro

O ano de 2008 marca o tricentenário da Guerra dosEmboabas. Para os estudiosos, a efeméride proporciona umaexcelente ocasião para se refletir sobre os primeiros anos dahistória mineira, sobre os quais pesa um silêncio desconcertante.O período que abrange os anos de 1695, data do primeiromanifesto oficial da existência de ouro nos sertões deCataguases, a 1711, ano da fundação da capitania de São Pauloe Minas do Ouro, permanece, surpreendentemente, poucoexplorado. Espremido entre a história paulista, uma vez que seconfunde com o bandeirantismo responsável pelodesbravamento dos sertões mineiros, e o início da implantaçãodo aparato administrativo, protagonizado por Antônio deAlbuquerque, o período assinala os primórdios do povoamen-to e da colonização das Minas, quando foram lançados osfundamentos da vida social e política das décadas seguintes.Se não bastasse isso, esses verdadeiros anos de ferro testemu-nharam uma das rebeliões mais importantes de todo o séculoXVIII: o levante emboaba, entre 1708 e 1709.

Em Minas, entre a última década do século XVII e aprimeira do XVIII, configurou-se uma experiência histórica

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completamente original para os seus protagonistas. Se a paisa-gem oferecia um cenário singular, descrito por vezes comouma geografia trágica e inquietante, também para Portugal amineração constituía um universo desconhecido, uma vez queo ralo ouro de lavagem explorado nas regiões de Iguape,Paranaguá e Cananéia esteve longe de proporcionar umaexperiência sólida, suficiente para fazer frente aos novosdesafios. Sob muitos pontos de vista, o sertão mineiro signifi-cava a confluência de elementos novos, obrigando a Coroa aavaliar seus métodos de colonização e a ensaiar outros. Depoisde dois séculos de instalação da máquina política na Américaportuguesa, impunha-se a necessidade de se estabelecer umapolítica calcada numa diretriz, resultado, por sua vez, daquiloque foi chamado por Luís Felipe de Alencastro de “aprendiza-do da colonização”.1

O propósito deste artigo é refletir sobre as interpreta-ções que a descoberta de ouro numa região tão distante doscentros litorâneos – onde a empresa colonizadora se concen-trava desde o século XVI – suscitou nas autoridades coloniaise portuguesas, e que estiveram na origem das políticas decolonização traçadas para a zona mineradora. Para os funcio-nários régios dos dois lados do Atlântico, tratava-se de encon-trar a melhor solução para aquilo que julgavam um grandeproblema, porque, em vez do entusiasmo desmedido e eufóri-co ante a sucessão de descobertos que a cada dia se fazia, o quese percebe na documentação oficial é um sentimento de medogeneralizado, a desconfiança de que o brilho do ouro, tal qualuma caixa de Pandora, escondia uma ameaça terrível, queconvinha escrutinar. Era sobretudo de uma perspectiva políti-ca, e não econômica, que os conselheiros se posicionavam emrelação ao tema, avaliando cuidadosamente os novos desafiosque a fronteira mais avançada de povoamento impunha àrestrita e limitada experiência colonial portuguesa na Améri-ca. Para além do novo ordenamento de Portugal na cenaeuropéia, às voltas com a cobiça das potências estrangeiras,reconhecidamente superiores no plano militar, o principaltemor dizia respeito à natureza das populações que enxamea-vam as Minas, arrastadas pela terrível auri sacra fames, sobre

1 ALENCASTRO,Luiz Felipe de. O tratodos viventes: forma-ção do Brasil no Atlân-tico Sul. São Paulo:Companhia das Le-tras, 2000, p.134.

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as quais não se tinha ainda qualquer forma de controle. Osrelatos impressionam sobretudo pelas dimensões inauditasque a corrida do ouro havia assumido em tempo recorde:saídas das mais diversas partes da América e da Europa,multidões de homens pobres, mal aparelhados para a dura vidados sertões, levando apenas um saco às costas, percorriam oscaminhos inóspitos e por vezes íngremes que separavam aregião dos grandes centros do Rio de Janeiro e de Salvador.Das regiões do norte de Portugal, partiam camponeses mise-ráveis, que, expulsos pelo crescimento demográfico vertigino-so e embalados pelo sonho de riqueza fácil, atravessavam oAtlântico para uma experiência radicalmente nova. Pela Pe-nínsula Ibérica, circulavam mapas rudimentares, destinadosaos cristãos-novos interessados em buscar refúgio nas terrasdescobertas – e muitos foram os que tentaram fugir das malhasda Inquisição indo para uma terra distante, muitas das vezesem vão, pois que não tardaria para que visitadores e comissá-rios do Santo Ofício se deslocassem para as Minas, no rastrodos bígamos, judaizantes, apóstatas e blasfemos de toda sorte.Na América portuguesa, o cenário de abandono a que ficaramrelegadas vilas, arraiais e plantações impressionou vivamenteos contemporâneos. Por todos os lados, ganhava corpo aimagem da “ruína total do Estado do Brasil”, tal como aformulou D. Rodrigo da Costa, governador-geral entre 1703 e1705, em razão do grande deslocamento de escravos negrospara os distritos mineradores, cuja conseqüência mais graveera o abandono das plantações de cana de açúcar e tabaco,desencadeando análises pessimistas quanto à situação econô-mica da América e de Portugal.2 Com efeito, em pouco tempo,as multidões que buscariam o ouro nos sertões deixariam paratrás um rastro de abandono, com engenhos desmantelados,lavouras perdidas e fábricas desamparadas.3

Para as autoridades coloniais, o êxodo dessas popula-ções constituía um problema de natureza política, pois acorrida do ouro faria ajuntar nas Minas uma multidão de gentevaga e tumultuária, numa região fora do controle da Coroa,encravada em meio aos sertões distantes e inóspitos, que bempoderia originar uma república independente, uma espécie de

2 Carta de D. Rodrigoda Costa ao rei.Bahia, 27 mai. 1704.Biblioteca Nacional.Documentos Histó-ricos, v. 11, p. 358.Vale lembrar que D.Rodrigo da Costa,governador-geralentre 1703 e 1705,teve como centro desuas preocupaçõesa questão dodesmantelamentoda agricultura dacana de açúcar, ta-baco e mandioca,em razão do êxodode escravos negrospara as minas.3 Estas considera-ções foram extraídasde fontes diversas,entre as quais a Có-pia do papel que o sr.D. João de Lencastrofez sobre a arrecada-ção dos quintos doouro das minas quese descobriram nes-te Brasil, na era de1701. Bahia, 12 jan.1701. Arquivos CasaCadaval, códice1087, fl. 488-490. InANTONIL, André

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Genebra ou Rochela, a desafiar o poder de El-rei. Ou, o queseria ainda pior, tal gente rebelde poderia vir a associar-se como inimigo externo, minando de vez a autoridade régia sobre aregião mais rica do vasto império português. Teria afinal aCoroa condições de estabelecer a rápida colonização em terrastão longínquas, montando ali um governo político capaz deconter os arroubos de gente tão inquieta? Se a principal missãodos príncipes residia na administração da justiça – causa finalpor que foram constituídos por Deus e pelos povos –, comoentão estabelecer o aparelho de justiça e instituir magistradoscom os minguados recursos de Portugal?

Para além dos argumentos de natureza política e econô-mica, defendidos por muitos desde o século XVI, quando asminas ainda eram uma miragem no horizonte, havia ainda umaoutra ordem de condenação do ouro, espalhada pelos escritospolíticos e teológicos portugueses da época barroca. Escondi-dos nas entranhas da terra, longe da vista humana, os metaispreciosos guardavam um significado perturbador: como verda-deira caixa de Pandora, desencadeavam uma corte de pecadose vícios, arrastando num turbilhão vertiginoso os que, tentadospela cobiça, iam chafurdar nas minas e lavras.4 Sob o brilho eesplendor do ouro, escondia-se o castigo terrível de aflições,misérias e trabalhos infindos. Ora, não escreveu Vieira que osmetais preciosos “são castigos escondidos debaixo de aparênci-as contrárias”?5 Não se admirava Antonil, fiel à tradição moralbarroca: “que maravilha, pois, que sendo o ouro tão fermoso etão precioso metal, tão útil para o comércio humano e tão dignode se empregar nos vasos e ornamentos dos templos para o cultodivino, seja pela insaciável cobiça dos homens contínuo instru-mento e causa de muitos danos”.6 Anos mais tarde, o conde deAssumar retomaria essa tradição, que conheceria duradourafortuna nos escritos sobre a capitania de Minas Gerais, associandoas minas de ouro a sítios infernais, nos quais a cobiça dá lugaraos vícios da rebelião e da subversão política, responsáveis pelanatureza indômita dos vassalos mineiros.7

Se a Coroa portuguesa debatia-se com os medos trazi-dos pela descoberta do ouro, tampouco havia um projeto de

João. Cultura e opu-lência do Brasil porsuas drogas e minas.Texte de l’édition de1711, traductionfrançaise etcommentaire critiquepar Andrée Mansuy.Paris: Institut desHautes Études del’Amerique Latine,1968, p. 586-591;AHU, Rio de Janeiro,cx. 5, doc. 557: Pare-cer do procurador daFazenda Real doConselho Ultramari-no sobre os inconve-nientes da explora-ção das minas doBrasil, mostrando osbenefícios que resul-tariam do maior de-senvolvimento daagricultura e povoa-mento das regiões.Lisboa, 12 dez. 1692;AHU, Rio de Janeiro,códice 232, fl. 257v ess: “Sobre os papéisque se ofereceram dearbítrios acerca dasminas para com elesse segurarem os in-teresses da FazendaReal e se pôr emmelhor forma, o go-verno daquelas ter-ras”. Sobre osimpasses da Coroaem relação à desco-berta do ouro, vertambém RUSSELL-WOOD, El Brasil co-lonial: el ciclo del oro,c. 1690-1750.BETHELL, Leslie(ed.) Historia de Amé-

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colonização para uma região tão recuada no interior do conti-nente, voltada para a exploração de um gênero pouco comumna América portuguesa, que se praticava apenas em pequenaescala, em lugares como Iguape, Paranaguá, Cananéia e pelasbandas de Parnaíba e Voturuna. Adequada a esse ouro delavagem, a legislação sobre a mineração remontava ao ano de1603 e nela haviam-se sobreposto, ao longo de todo o século,acréscimos, correções e alterações, resultando num corpoamorfo e incoerente, insuficiente para dar conta da novarealidade das minas de Cataguases.8

É por essa razão que os últimos anos do século XVII eos primeiros do XVIII, quando foram formuladas e ensaiadasdiferentes propostas para a região mineradora, foram decisi-vos para a constituição das linhas-mestras da administraçãolocal. Ao contrário de um projeto definido a priori, o governopolítico das Minas desenhou-se ao sabor das ponderações quese faziam nas duas margens do Atlântico, sobretudo as dosgovernadores-gerais e dos governadores da Repartição Sulentre os últimos anos do século XVII e a primeira década doXVIII. Ao apagar das luzes do século XVII, a Coroa defron-tava-se com posições muito diferentes sobre a natureza daadministração a ser implantada nos distritos mineradores,constituindo uma verdadeira arena em que convicções políti-cas e interesses privados confundiam-se e entrelaçavam-se.Nas inúmeras propostas políticas que vieram à luz por essaépoca, chocavam-se diferentes idéias sobre as formas depovoamento, as estratégias de controle dos fluxos migratórios,as áreas de jurisdição do novo território e principalmente sobreo papel destinado aos descobridores na nova administração.

Em meio ao debate acirrado, poucos funcionários régiosforam tão lúcidos quanto D. João de Lencastro, governador-geral entre os anos de 1694 e 1702 – coincidentemente, os anosmais críticos do povoamento das Minas. Homem de sólidaformação militar, com atuação destacada na guerra do Alentejo,D. João de Lencastro possuía uma avaliação eminentementeestratégica das minas de ouro, preocupando-se sobretudo coma questão da obediência e fidelidade à Coroa dos vassalos

rica Latina. 3. Améri-ca Latina colonial:economía. Barcelo-na: Editorial Crítica,1990, p.260-305.4 O melhor estudosobre o imaginárionegativo do ouro, aolongo da Época Mo-derna, é de autoria deFrancisco E.Andrade. A invençãodas Minas Gerais:empresas, descobri-mentos e entradasnos sertões do ouro(1680-1822). Tese dedoutorado apresenta-da ao Departamentode História da Univer-sidade de São Paulo,2002, especialmenteo capítulo Escondidosde Deus: as Minascomo castigo do Bra-sil, p. 108-139.5 Sermão da Primei-ra Oitava de Páscoa,VIEIRA, Padre Antô-nio. Sermões. Porto:Lello e irmão Edito-res, 1959, t. 5, p. 229.6 ANTONIL, p. 462.7 Discurso histórico epolítico sobre a suble-vação que nas Minashouve no ano de 1720.Estudo crítico, estabe-lecimento do texto enotas: Laura de Melloe Souza. Belo Horizon-te: Fundação João Pi-nheiro, 1994. Segun-do Assumar, “neces-sariamente hemos deconfessar que os mo-tins são naturais dasMinas, e que é proprie-

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instalados nos confins dos sertões. Cético em relação ao mon-tante dos achados auríferos, ao contrário do entusiasmo exage-rado de seus contemporâneos, a ele interessava sobretudorefletir sobre os meios que Portugal teria para se apossarefetivamente da região, submetendo-a ao seu domínio político.

As preocupações de D. João de Lencastro o levaram aformular uma política de colonização para as Minas que ocolocaram em rota de colisão com Artur de Sá e Meneses,governador do Rio de Janeiro. Por trás da dura disputa que setravou entre eles, escondia-se uma disputa de maior magnitu-de: a jurisdição administrativa da zona mineradora, que rende-ria às autoridades e aos governantes uma série de benefícios evantagens. A começar pelo fato de que a primazia nos desco-brimentos auríferos viria a ocupar certamente o lugar maisdestacado do rol de serviços prestados à Coroa por um funci-onário régio, o que implicaria a obtenção de honras e rendas,por ocasião do regresso ao Reino, de acordo com a lógica dorecrutamento dos quadros superiores dos governantes doImpério português – de resto, analisada em profundidade porNuno Gonçalo Monteiro.9 Em segundo lugar, o controle daregião mineradora significava a constituição de vastas redesclientelares, envolvendo a concessão de patentes militares,cargos e postos, além da arrematação dos contratos e dasrendas. Segundo Maria Verônica Campos, “a arrecadação derendimentos da Coroa era fonte de rendimentos paracontratadores, governadores, rendeiros e burocratas envolvi-dos em sua cobrança, mobilizando dois pólos de poder nadisputa pela prerrogativa de sua cobrança e administração.”10

E, finalmente, havia também a possibilidade de participaçãolícita e ilícita nos ricos negócios lucrativos da mineração e doabastecimento da zona mineradora, muitos dos quais vedadosaos funcionários régios.

O projeto de D. João de Lencastro, apresentado à Coroaem janeiro de 1701, expressava uma atitude pouco entusiastadiante dos descobertos e uma abordagem eminentementepolítica da matéria, colocando-a sob a perspectiva da geopolíticamais geral dos domínios portugueses na América. Inicialmente

dade e virtude do ourotornar inquietos e buli-çosos os ânimos dosque habitam as terrasonde ele se cria. Pelomenos, eu acho que,depois que se princi-piou a tirar ouro, seviram as primeiras dú-vidas e contendas nomundo: retirou-se ajustiça para o céu, eproduziu a terra gigan-tes e poderosos, que,atrevidos, rebeldes einsolentes, intentaramlevantar-se contra oseu soberano. E bemque nesta forma tenhaa maior parte dos mi-neiros alguma descul-pa em freqüentar osmotins, a que interior-mente os inclina a for-ça e arrasta a nature-za, que podendo osnão castiga, nenhumadesculpa têm”, p. 60.8 HOLANDA, SérgioBuarque de. Metaise pedras preciosas.In HOLANDA, Sér-gio Buarque de (dir.).História geral da ci-vilização brasileira. Aépoca colonial: ad-ministração, econo-mia, sociedade. Riode Janeiro: Bertranddo Brasil, 1997, tomoI, v. 2, p. 267-269.9 A este respeito, versobretudo MON-TEIRO, Nuno Gon-çalo. Governadorese capitães-mores doImpério Atlântico por-

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um tanto cético em relação às dimensões dos achados auríferos– “e como até agora com mais certa notícia não pude alcançarse eram verdadeiras ou fantásticas estas promessas” –, divergin-do muito da euforia de Sá e Meneses, propunha-se a oferecerum “remédio” para a situação. Sua exposição começava porapontar a origem dos inconvenientes, que era, em sua opinião,o “princípio que é ser universalmente livre a todos o irem àsminas sem alguma limitação no número ou exceção de pesso-as”, dando lugar a uma multidão “de gente vaga e tumultuá-ria”, ameaçando mesmo tornar-se uma nova Genebra, verda-deiro valhacouto de criminosos, vagabundos e malfeitores,incrustado no continente. A abertura indiscriminada da mine-ração a toda sorte de gente, como propunham alguns, implica-ria também uma alentada produção aurífera, que em nadafavoreceria os interesses da Coroa, pois levaria em poucotempo à abrupta redução do seu valor de mercado.

Alinhando-se aos fautores da tese de que a verdadeirariqueza do Brasil consistia na agricultura da cana de açúcar edo tabaco, Lencastro apontava os prejuízos que sofreriam,ameaçadas pelo rush populacional e pelo êxodo em massa deescravos. A única solução seria, assim, estabelecer uma polí-tica que restringisse a entrada de pessoas nas Minas, impedin-do definitivamente o franco acesso a elas. A “política de portasfechadas” idealizada por D. João de Lencastro caracterizava-se pelo extremo rigor: estavam previstos a pena de morte e oconfisco de bens dos que fossem às Minas sem passaporte docapitão-geral e dos governadores de Pernambuco e Rio deJaneiro. Estes só o dariam a “alguns homens honrados quetenham algum cabedal, alguns homens de negócio e mercado-res ou seus comissários”. Tratava-se de uma visão a um sótempo aristocrática e utilitarista: os homens honrados, emrazão de sua posição social, jamais questionariam a autoridadeda Coroa, e os comerciantes cuidariam de garantir o abasteci-mento de víveres na região.

Aferrado à crença de que os achados auríferos localiza-vam-se mais ao norte, na região de Itacambira e Serro do Frio,pertencendo por isso à jurisdição da Bahia, Lencastro estava

tuguês. In: BICALHO,Maria Fernanda &FERLINI, Vera LúciaAmaral. Modos degovernar: idéias epráticas políticas noImpério português(séculos XVI a XIX).São Paulo: Alameda,2005, p. 93-115.10 CAMPOS, MariaVerônica, Governode mineiros: “decomo meter as mi-nas numa moenda ebeber-lhe o caldodourado” (1693 a1737). Tese de dou-torado apresentadaa F.F.L.C.H. da Uni-versidade de SãoPaulo, 2002, p. 125.

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convencido de que os sertões da vila de São Paulo, como sechamava a região mineradora, localizavam-se nas cabeceirasdos sertões da capitania do Espírito Santo. A porta de entradadas Minas seria a vila do Espírito Santo, por ser “a vilamarítima mais fortificada e forte pela natureza de todas quantastem o Brasil”, onde assistiria um governador, com guarniçãode infantaria e um ministro encarregado da distribuição depassaportes e arrecadação do quinto. Sugeria ainda a constru-ção de uma fortaleza na região aurífera, guarnecida com duascompanhias de infantes e de cavalos, na qual ficaria umministro encarregado de controlar os passaportes e arrecadaros quintos das pessoas que fossem para norte ou sul. No querespeita ao abastecimento, enquanto não fosse aberto o cami-nho que ligaria os distritos mineradores à vila do EspíritoSanto, ele propunha a ereção de duas vilas, uma na Barra doRio das Velhas e outra na Barra do Rio Verde, “por serem esteslugares os únicos que por aqueles sertões abundam de manti-mentos de que necessitam os que houverem de ir e assistir nasminas”. Por estas vilas, que funcionariam como porta deentrada para as minas e onde residiriam também ministrosencarregados da fiscalização dos passaportes e da arrecadaçãodos quintos, chegariam os mantimentos e especialmente ogado proveniente dos currais da Bahia – caminho que ogovernador-geral já havia mandado abrir.11

O projeto de D. João de Lencastro previa, assim, aligação da região mineradora com a Bahia, a partir do fecha-mento dos outros caminhos, ficando apenas a vila do EspíritoSanto como “a porta única destas minas”. Verdadeiro enclaveem meio aos sertões, fortemente policiado e controlado, odistrito minerador sonhado por Lencastro assemelhava-semuito ao que seria feito mais tarde no Distrito Diamantino,quando se restringiria o acesso às lavras, proibindo-se a livreentrada de pessoas e estabelecendo-se registros para o controleda circulação de pessoas, mercadorias e gado.12 Para Lencastro,isolar a região mineradora do sul, submetendo-a à Bahia,resolveria dois problemas cruciais: a ameaça de crise daagricultura do açúcar e do tabaco, uma vez que o acesso restritoimpediria o êxodo populacional, e o descaminho do ouro pelas

11 Cópia do papel queo sr. Dom João deLencastro fez sobre aarrecadação dos quin-tos do ouro das Minasque se descobriramneste Brazil, na era de1701. Bahia, 12jan.1701. In ANTO-NIL, p. 586-590.

12 Sobre o distritodiamantino, verFURTADO, JúniaFerreira. O livro dacapa verde: o Regi-mento diamantino de

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estradas, pois que o fechamento de todas as rotas e a vigilânciaintensiva do caminho do Espírito Santo reduziriam as chancesde extravio.13

A ligação com a capitania do Espírito Santo, aomesmo tempo que fechava a porta das minas a paulistas ecariocas, abria as possibilidades para os grandes homens denegócio da próspera praça da Bahia. O projeto de D. João deLencastro para as minas refletia, assim, os interesses baianos,dos quais a obra de Antonil, seu amigo e confessor, seriatambém porta-voz.14 Ex-governador de Angola, envolvido àépoca no tráfico negreiro e no contrabando de cachaça paraa África Central, D. João parecia sensível às pretensões daelite comercial baiana, com a qual mantinha relações com-plexas.15 Do mesmo modo que os magistrados do Tribunal daRelação da Bahia acabaram por estabelecer fortes ligaçõeseconômicas com a sociedade local – como mostrou StuartSchwartz –, também os governadores-gerais não escaparamaos atrativos dos negócios coloniais.16

Para viabilizar seu projeto, D. João de Lencastro tinhaque resolver dois problemas. Em primeiro lugar, convencer aCoroa de que a Bahia tinha melhores condições de garantir oabastecimento da região mineradora, sobretudo de gado, des-cartando assim a ligação comercial com Rio de Janeiro e SãoPaulo. Em segundo lugar, abrir um caminho que partisse doEspírito Santo em direção aos sertões dos Cataguases, com-provando ao mesmo tempo que as minas ficavam mais próxi-mas do Espírito Santo do que de São Paulo.

Em março de 1701, o governador-geral ordenou aocapitão João de Góis e Araújo que fosse verificar se “da partede São Paulo, Rio de Janeiro e mais vilas que ficam naRepartição Sul há gados bastantes e mantimentos para provi-mento da gente que se acha hoje lavrando o ouro nas minas”.D. João apostava na necessidade dos gados e mantimentos doscurrais da Bahia, para ele, “[o caminho] mais acomodado efácil para a condução dos ditos gados e mantimentos”.17 Aresposta de João de Góis e Araújo prestava-se bem aos planosdo governador-geral: segundo ele, o Rio de Janeiro não podia

1771 e a vida no Dis-trito Diamantino noperíodo da Real Ex-tração. São Paulo:Annablume, 1996.13 Sobre o que escre-vem os governado-res da Bahia e doRio de Janeiro acer-ca das minas; e vãoos papéis que seacusam. Lisboa, 6mar. 1702. DOCU-MENTOS HISTÓRI-COS, v. XCIII, p. 135.14 SOUZA, Laura deMello e. La con-juncture crit iquedans le monde luso-brésilien au début duXVIIIe siècle. Arqui-vos do Centro Cul-tural CalousteGulbenkian, Paris,Lisboa, v. 42, p. 11-24, 2001. Para estaautora, a obra deAntonil constituiu acaixa de ressonân-cia dos que temiamo descalabro da agri-cultura em razão dafuga de braços, re-fletindo, assim, aposição das autori-dades, “ainda per-plexas e mal equi-padas para compre-ender a extensãodas mudanças queo ouro traria à estru-tura do Império por-tuguês”, p. 16.15 ALENCASTRO,Luiz Felipe de. O tra-to dos viventes: for-mação do Brasil no

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AS MINAS ANTES DAS MINAS: REFLEXÕESAS MINAS ANTES DAS MINAS: REFLEXÕESAS MINAS ANTES DAS MINAS: REFLEXÕESAS MINAS ANTES DAS MINAS: REFLEXÕESAS MINAS ANTES DAS MINAS: REFLEXÕESSOBRE OS ALBORES DA HISTÓRIA MINEIRASOBRE OS ALBORES DA HISTÓRIA MINEIRASOBRE OS ALBORES DA HISTÓRIA MINEIRASOBRE OS ALBORES DA HISTÓRIA MINEIRASOBRE OS ALBORES DA HISTÓRIA MINEIRA

fornecer o gado necessário às minas, porque não o tinha emquantidade suficiente; e ainda que o tivesse havia as dificulda-des de transposição da serra do mar. E mesmo que esta fossetransposta, como atravessar rios tão caudalosos como o RioParaíba, o Rio Grande e o Rio das Mortes? Concluía ele que“não será possível a conservação delas [das minas] sem osgados do Rio de São Francisco, assim pela maior abundânciadeles como pela conveniência dos caminhos não serem tãofragosos nem terem tantas serras quase inacessíveis peloempinado delas”.18

Consultado sobre as possibilidades de São Paulo forne-cer gado à região mineradora, Pedro Taques de Almeidaescreveu ao governador-geral em 1700, afirmando que “destasvilas não é possível fazer-se [a remessa das boiadas], porquesendo vinte já perecem os povos, nem se vende peso de carne,e valendo uma rês dois mil réis prometem os mineiros oito,pelo que interessam nas minas, porque o preço geral até opresente foi cinqüenta oitavas e em alguma necessidade cem”.19

Empenhado em notabilizar-se como o governador-geral responsável pelas descobertas das minas de ouro,20 o quelhe renderia o reconhecimento régio e a ampliação significa-tiva de sua folha de serviços prestados à Coroa, D. João deLencastro tampouco mediu esforços para que as minas de ourocontinuassem a pertencer à capitania do Espírito Santo, emcujos sertões, acreditava-se, estaria localizada a célebre Serradas Esmeraldas.21 Em 1700, ele escrevia a D. Pedro II, notici-ando que soubera da existência de jazidas nas cabeceiras dossertões da Capitania do Espírito Santo e, “como desejasse quetodas as terras do Brasil se convertessem em ouro, para quedelas resultassem grandes aumentos à Fazenda Real”, enviaraJoão Góes de Araújo, filho de Pedro Taques de Almeida,acompanhado de trinta homens, para explorá-las “pela partedo Norte do Rio de S. Francisco, das serranias donde têm anascença os rios Pardo, Doce, das Velhas e Verde; os quaisdistam (pelas informações que me deram) vinte e cinco léguas,pouco mais ou menos, das mesmas minas donde os paulistasse acham cavando ouro a presente”. Armou-se uma outra

Atlântico sul. SãoPaulo: Companhiadas Letras, 2000, p.318-319.16 SCHWARTZ,Stuart B. Burocraciae sociedade no Bra-sil colonial: a supre-ma corte da Bahia eseus juízes (1609-1751). São Paulo:Perspectiva, 1979.17 Carta de D. João deLencastro a João deGóis. Bahia, 5 mar.1701. Arquivos daCasa Cadaval. Códice1087, fl. 482. InANTONIL, p. 583.Como bem notouCampos, D. João deLencastro contavacom as dificuldades deabastecimento paraconseguir o seu inten-to. CAMPOS, p. 60.18 Carta de João deGóis a D. João deLencastro. Bahia, 6mar. 1701. InANTONIL, p. 583-584.19 Carta de PedroTaques de Almeida aogovernador-geral D.João de Lencastro.São Paulo, 20 mar.1700. In DERBY,Orville. Os primeirosdescobrimentos deouro nos distritos deSabará e Caeté. Re-vista do Instituto Histó-rico e Geográfico deSão Paulo, São Paulo,v. 5, 1899-1900, p. 283.20 “Sendo informadoo sereníssimo se-nhor rei D. Pedro que

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expedição de cem homens, chefiada pelo baiano Pedro Gomesda Franca, para explorar o rio Patipe. Ambas as expediçõesdeviam também descobrir o caminho o mais breve entre asminas já descobertas e as minas encontradas por eles.22 Delas,resultou o descobrimento das minas do Caeté e de Itacambira,logo depois ligadas à Bahia por meio de um caminho abertopor Góes de Araújo, por ordem de Lencastro.23

À mesma época, em fins de 1699, D. João designouJosé Cardoso de Azevedo para uma expedição em busca dasminas das cabeceiras da capitania do Espírito Santo, prome-tendo-lhe “o foro de fidalgo, e um dos hábitos das três ordensmilitares de Cristo, São Tiago e Avis” e, o mais importante, “asterras das minas, que descobrir, pagando só os quintos a SuaMajestade”.24 Segundo Derby, não se conhece o resultadodessa expedição, mas é inegável o esforço de Lencastro nosentido de promover os descobrimentos a partir da Bahia e deabrir uma via de comunicação entre os achados auríferos deCaeté, Itaverava, Itacambira e os sertões baianos.

As pretensões de D. João de Lencastro o colocaram emrota de colisão com o governador do Rio de Janeiro, Artur deSá e Meneses, em torno da jurisdição das minas, sobretudo asde Caeté, Itacambira e Itaverava,25 que o governador-geralalegava ficarem mais próximas da Bahia. Ao tomar conheci-mento de que algumas pessoas que andavam no descobrimen-to das minas de ouro dos sertões de São Paulo haviam passadopara a capitania geral da Bahia, afirmou que não o permitiria,“porque tenho já mandado a estas partes, a fazer os taisdescobrimentos, por Ordem que tenho de Sua Majestade queDeus guarde”. Advertia ele ao governador do Rio de Janeiroque “o Rio Verde, o Doce, o Pardo, o das Velhas, e ascabeceiras do Espírito Santo estão no distrito da Bahia”.Ameaçou, então, prender e castigar os descobridores que seaventurassem pela capitania da Bahia, lembrando “que deve-mos conservar e defender o que Sua Majestade nos tementregado”.26

A convicção de que as minas de ouro localizavam-se nacapitania do Espírito Santo, tão arraigada em Lencastro,

no Brasil, e principal-mente no sertão daBahia, se achavamminas dele em cópiae qualidade iguais àsde Ásia, e a menoscusto e dilação, doqual podia abundartoda a sua monar-quia, encarregou aogovernador e capi-tão-geral D. João deLencastro fosse empessoa àquela parteonde se afirmavaque as havia; e tra-zendo de Portugalesta comissão, de-pois de estabelecidaa Casa da Moeda ede dar expediente aoutros negócios doEstado, e saiu da ci-dade da Bahia a estaimportante diligênciano ano de 1695”.PITA, Sebastião daRocha. História daAmérica portuguesa.Belo Horizonte:Itatiaia, São Paulo:Edusp, 1976, p. 213.21 Pedro Taques refere-se à expedição monta-da por Salvador Corrêade Sá à capitania doEspírito Santo para tra-tar dos descobrimen-tos das esmeraldas.LEME, Pedro Taques deAlmeida Paes. Notíciasdas minas de São Pauloe dos sertões da mes-ma capitania, p. 104.Ver também BOXER, C.R. Salvador de Sá e aluta pelo Brasil e Angola:

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remontava a uma antiga tradição quinhentista, que situava aspedras preciosas – sobretudo a Serra das Esmeraldas – nointerior daquela capitania. Não é por outro motivo que, em1659, Salvador de Sá, escrevendo a D. Afonso IV, anunciarao projeto de chefiar uma expedição à Serra das Esmeraldas, apartir da vila de Vitória, no afã de repetir a saga de Marcos deAzeredo e de tantos outros.

Ao contrário de muitos, D. João de Lencastro concebiaa descoberta das minas nos sertões mineiros a partir docontexto mais amplo do Império e da configuração políticaeuropéia, formulando uma reflexão essencialmente política.Se por vezes ele parecia fazer coro com seus contemporâneossobre “o novo século [que] começa, prometendo riqueza efelicidades ao reino”, também chamava a atenção para asconseqüências nefastas da fama do ouro americano na Europa,atraindo a cobiça das nações estrangeiras.27 Assim, era precisoantes de mais nada guarnecer as praças do Rio de Janeiro e davila de Santos, esta última “o principal [porto] de toda aquelacosta e o de mais conseqüências se acha ainda em pior estado,sendo o único adonde só entram navios e a que precisamentehá de vir a maior parte do ouro que se tiram das minas (...)”.Sugeriu, então, mandar levantar dois terços de infantaria eduas tropas de cavalos para assistir de guarnição ali: disporuma tropa com um terço no Rio de Janeiro e outra em Santos;fortificar a barra do porto de Santos; colocar um terço deinfantaria e um esquadrão de dragões na vila de São Paulo.28

De fato, desde o último quartel do século anterior, os inglesesjulgavam a região ao sul do Rio de Janeiro uma das maispropícias à colonização. Thomas Maynard, cônsul-geral in-glês em Lisboa, afirmava que, apesar da existência de inúme-ras pequenas povoações habitadas por portugueses, como SãoVicente, Santos, Paranaguá e Cananéia, o comércio local erafracamente abastecido pelo Rio de Janeiro, por meio depequenos barcos ao longo da costa.29

O projeto de Lencastro excluía propositadamente aparticipação dos homens de negócio de São Paulo. Considera-va-os vassalos pouco confiáveis, pois que não nutriam amor

1602-1686. São Paulo:Nacional/EDUSP, 1973,p. 319-320.22 Carta de D. Joãode Lencastro ao rei.Bahia, 7 jan. 1700. InDERBY, p. 290-291.23 Carta de João deGóis a D. João deLencastro. Bahia, 6mar. 1701. In ANTONIL,p. 583-584.24 Carta de D. João deLencastro paraJoseph Cardoso deAzevedo. Bahia, 22set.1700. BibliotecaNacional. DocumentosHistóricos, v. 11, p. 280.25 Carta de D. Joãode Lencastro para ogovernador Artur deSá e Meneses.Bahia, 22 set. 1700.Biblioteca Nacional.Documentos Histó-ricos, v. 11, p. 282.26 Carta de D. João deLencastro para o go-vernador Artur de Sáe Meneses. Bahia, 22set. 1700. BibliotecaNacional. DocumentosHistóricos, v. 11, p. 282.27 Cópia do papel que osr. Dom João deLencastro fez sobre aarrecadação dos quin-tos do ouro das Minasque se descobriramneste Brasil, na era de1701. Bahia, 12 jan.1701.In ANTONIL, p. 586.28 Carta de D. João deLencastro ao rei. Bahia,7 jan. 1700. Citado porDERBY, p. 294-295.29 BOXER, Salvador deSá e a luta pelo Brasile Angola, p. 393.

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pela Coroa, pautando-se antes pelos interesses pessoais. Te-mia que pudessem colocar-se sob o cetro de outro rei, seporventura alcançassem com isso algum tipo de vantagemmaterial. Por essa razão, sugeria ao rei que levantasse um terçode infantaria e um esquadrão de dragões na vila de São Paulo“com o pretexto de que é para segurar a mesma vila e dela sepoder socorrer facilmente a de Santos, sendo o fim particulardeste negócio, segurá-la de seus mesmos moradores”.30 Adesconfiança que nutria em relação aos paulistas talvez expli-que em parte a obsessão por formas de controle mais rigorosas,como fortalezas e presídios, únicos capazes, em sua opinião,de conter o ânimo daquela gente tão afeita à liberdade e àinsubmissão.

O tom sombrio e assustador com que Lencastro pintavao futuro da região mineradora, caso a sua proposta não fosseexecutada, não convenceu os membros do Conselho Ultrama-rino. E, como bem notou Orville Derby, se seu projeto fosseacatado, isso teria modificado extraordinariamente o curso dahistória mineira.31 Todos os seus esforços esbarraram na firmeoposição dos ministros régios, que pareciam mais interessadosem tomar informações das autoridades mais experientes nosnegócios das minas, como o governador Artur de Sá e Meneses,reputado um dos maiores especialistas nas matérias relativasaos descobrimentos. Visivelmente pouco inclinado às alega-ções do governador-geral, cujo conhecimento sobre a matériaparecera duvidoso, o procurador da Coroa deu um despachobastante rápido e sucinto ao elaborado e cuidadoso papelapresentado por Lencastro. A proposta de construção defortalezas foi prontamente rejeitada, sob a justificativa lógicae coerente de que “o ouro se vai buscar onde se acha nos rios,e se não há de mudar a fortaleza para onde vão nesta diligênciaespecialmente quando não têm segurança do lugar em que hãode residir, e só hão de buscar aquele em que possam ter maioresinteresses em que não pode haver certeza infalível”. O tema donomadismo típico da sociedade mineradora, um dos pilares dadetratação do mineiro, aparece aqui como um dos principaisentraves às formas de controle, inadequadas a um universo emconstante movimento. Igualmente absurda afigurou-se ao

30 Carta de D. Joãode Lencastro ao rei.Bahia, 7 jan. 1700.Citado por DERBY,p. 295.

31 DERBY, p. 291-292.

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Conselho Ultramarino a abertura de mais um caminho entre aregião mineradora e a vila do Espírito Santo, visto como maisuma rota de despovoamento e descaminho do ouro. Assim, aconstrução de uma estrada entre a capitania do Espírito Santoe as Minas, iniciada em 1700, foi interrompida dois anosdepois, por ordem da Coroa, cujos conselheiros consideraramque quanto menos passagens houvesse para as minas, maisfácil seria para vigiá-las.32

A proibição, ordenada pela Coroa em 1701, de toda equalquer comunicação entre a Bahia e a zona mineradora,sepultou definitivamente o projeto de Lencastro de anexar estaà Bahia. Logo depois, viriam ordens rigorosas para que toda agente que se encontrasse nos sertões do Espírito Santo embusca de metais preciosos se recolhesse a Vitória.33 Em 1705,seria a vez de interromper definitivamente o movimento como Espírito Santo, “cessando o tráfico legítimo entre as minase as praças da Bahia e do Espírito Santo”.34 Também o planode Lencastro de promover o descobrimento das minas de ouropor meio da abertura de um caminho entre a Bahia e as minasdo Serro do Frio não encontrou o apoio do Conselho Ultrama-rino, que considerou a medida inconveniente aos interesses daCoroa.35 Finalmente, a questão mais controvertida sobre ajurisdição dos distritos mineradores foi resolvida com a nome-ação de um superintendente e guarda-mor das minas.36

Examinando a posição de D. João de Lencastro aposteriori, fica evidente, como bem notou Boxer, o quãoproféticas eram as suas palavras: pouco depois, o afluxoincontrolável de aventureiros à região chegaria a cifras verti-ginosas, colocando em xeque toda e qualquer tentativa deestabelecimento do governo político. E mesmo a Guerra dosEmboabas, que eclodiria em 1708, seria inseparável do con-texto de povoamento intensivo e veloz, em curso desde 1695.

O certo é que o plano malogrado de D. João deLencastro, rejeitado in totum pelos ministros régios, expressa-va os temores e as dificuldades com que uma parte do governoportuguês encarava a nova realidade imposta pela descobertadas minas. Naquele momento, a autoridade da Coroa parecia

32 BOXER, C.R. A Ida-de de Ouro do Brasil:dores de crescimen-to de uma sociedadecolonial. Rio de Ja-neiro, Nova Frontei-ra, 2000, p. 6733 Documentos His-tóricos, XI, p. 351-2.Citado por OLIVEI-RA, José Teixeirade. História do Esta-do do Espírito San-to. Rio de Janeiro:IBGE, 1951, p. 177.34 DERBY, p. 292.Apesar da proibição,os capitães-moresda capitania do Es-pírito Santo jamaisabandonariam a pre-tensão de abrir umavia de comunicaçãoentre a capitania eas minas de Cata-guases. Em 1710, D.Lourenço de Almadarepreenderia dura-mente o capitão-morFrancisco de Albu-querque Teles porter se associado aPedro BuenoCacunda para aabertura do cami-nho: “é lastimosacousa que quandoVossa Mercê se de-via só empregar emsolicitar por todos os

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meios possíveis adefesa dessa praçapela estar governan-do só procure os dasua conveniênciasem a menor aten-ção a outro algumrespeito não repa-rando nas danosasconseqüências quese podem seguir aessa capitania e aseus moradores...”.Carta de D. Louren-ço de Almada aocapitão-mor do Es-pírito Santo. Bahia,10 nov. 1710. Biblio-teca Nacional. Do-cumentos Históri-cos, v. 70, p. 78-79.35 AHU, Rio de Ja-neiro, códice 232,“Sobre os papéis quese ofereceram dearbítrios acerca dasminas para com elesse segurarem os in-teresses da Fazen-da Real e se pôr emmelhor forma, o go-verno daquelas ter-ras”, fl. 264.36 Parecer do Con-selho Ultramarinosobre o que escre-vem os governado-res da Bahia e doRio de Janeiro acer-ca das minas; e vãoos papéis que seacusam. Lisboa, 6mar. 1702. Bibliote-ca Nacional. Docu-mentos Históricos,v. XCIII, p. 135-137.

tênue e frágil diante de um universo que se construía à suarevelia, obrigando-a a testar uma nova estratégia de coloniza-ção em condições completamente inéditas. Algumas décadasdepois, a política de portas fechadas de Lencastro seria desen-terrada para ser aplicada no Distrito Diamantino, num contex-to muito semelhante àquele do final do século XVII: descober-ta de minerais preciosos, grande afluxo populacional einteriorização da colonização. Mas com uma diferença funda-mental: depois de quase trinta anos, não restava mais dúvidaquanto ao fato de que era preciso controlar a todo custo aspopulações das minas.

As previsões pessimistas de Lencastro sobre a naturezarebelde da “multidão tumultuária” que pululava nos sertõesecoariam depois na obra de Antonil, seu confessor. Apesar derechaçadas naquele momento, viriam em breve a ganhar corponas reflexões dos ministros régios, assumindo contornos maisprecisos. A imagem de uma “guerra civil” protagonizada porvassalos rebeldes, infensos aos longos tentáculos da Coroa, seinstalaria definitivamente no horizonte daqueles que se ocupa-vam da administração colonial, receosos sobretudo da ameaçaaos domínios portugueses em toda a América. Como sabia-mente percebeu Lencastro, o negócio das Minas estava longede se restringir às fronteiras fluidas dos sertões mineiros, poisque dizia respeito ao negócio do vasto Império português. E,nos anos seguintes, as reflexões sombrias do governador-geralconstituiriam o cerne de toda a política metropolitana formu-lada para a zona mineradora.

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Resumo: Este texto resulta da transcrição editada de conferên-cia feita pelo prof. Eduardo França Paiva no Ciclo de PalestrasFormação do Povo Mineiro. A conferência abordou a históriados povos que habitaram as Minas Gerais no século XVIII,destacando-se a complexidade daquela sociedade e de suacomposição populacional. Os principais pontos da reflexãoforam o vigoroso processo de mestiçagens biológicas e cultu-rais ocorrido no período, em uma sociedade escravista,conectando-o a outras regiões americanas, e a extraordináriadinâmica demográfica, urbanística e socioeconômica que fo-mentou aquele fenômeno. Destaca-se, também, a análise deformas de convivência, de coexistência e de sociabilidadedesenvolvidas pelos moradores, assim como o exame dasinterrelações e das distinções praticadas pelos grupos sociaiscompostos por brancos, pretos, índios, crioulos, cabras, mula-tos e pardos, tanto escravos, quanto libertos e livres, que ora semesclavam, ora se apartavam completamente.

Palavras-chave: Mestiçagens, Escravismo, Capitania de Mi-nas Gerais, População, Dinâmicas Sociais

POVOS DAS MINAS NO SÉCULO XVIII*POVOS DAS MINAS NO SÉCULO XVIII*POVOS DAS MINAS NO SÉCULO XVIII*POVOS DAS MINAS NO SÉCULO XVIII*POVOS DAS MINAS NO SÉCULO XVIII*

EDUARDO FRANÇA PAIVEDUARDO FRANÇA PAIVEDUARDO FRANÇA PAIVEDUARDO FRANÇA PAIVEDUARDO FRANÇA PAIVAAAAA**********

* Por decisão doautor, o texto quesegue é a transcri-ção editada da pa-lestra e debate ocor-ridos em 4 de junhode 2008.

** Doutor em HistóriaSocial, com estudospós-doutorais naEHESS-Paris. Pro-fessor Associadodo Departamento deHistória da Univer-sidade Federal deMinas Gerais. His-toriador e Coordena-dor do Programa dePós-Graduação emHistória da UFMG.

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 11, n. 16, p. 23-55, jan./jun. 2009

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Abstract: This text results from the edited transcription of aconference from the Prof. Eduardo França Paiva in the Ciclode Palestras Formação do Povo Mineiro. The conferencediscussed the history of the people that lived in the MinasGerais in the XVIIIth century, affirming the complexity of thatsociety and its population’s composition. The main points ofthis reflection were the vigorous process of biological andcultural miscegenation occurred in the period, in a slavesociety, connecting it to other american regions, and theextraordinary demographic, urban and socioeconomicdynamics which promoted that phenomenon. It also stands outthe analysis of the forms of how to live in society, of coexistenceand of sociability developed by the residents, as well as theexamination of the interrelations and of the distinctions carriedon by the social groups composed by whites, blacks, creoles,cabras, mulattos and pardos, as slaves or as freed and freemen,which for times mixed themselves, and for other times separatedthemselves completely.

Keywords: Miscegenation; Slavery; Captaincy of MinasGerais; Population; Social Dynamics

O Sr. Márcio Santos – Nós estamos dando início a mais umapalestra da programação do Pensando em Minas, e, nesta sériede eventos, concentramo-nos no tema da formação do povomineiro. E hoje temos o prazer de receber o professor EduardoFrança Paiva. Lembramos que o ciclo de palestras sobre aformação do povo mineiro é organizado pela Escola doLegislativo e o objetivo é trazer, aqui nesse espaço, especialis-tas, profissionais de História, de Economia, e das CiênciasSociais, que reflitam sobre a formação das Minas Gerais esobre a trajetória histórica do estado, do ponto de vista daorganização do território e do ponto de vista das populações edos povos que se movimentaram sobre esse território. Tive-mos, na vez passada, no primeiro evento, uma rica palestra daprofessora Adriana Romeiro, que nos trouxe uma contribuiçãosobre o tema das minas antes das Minas Gerais, ou seja, aregião mineradora, onde hoje estamos centrados, sobre as

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POVOS DAS MINAS NO SÉCULO XVIIIPOVOS DAS MINAS NO SÉCULO XVIIIPOVOS DAS MINAS NO SÉCULO XVIIIPOVOS DAS MINAS NO SÉCULO XVIIIPOVOS DAS MINAS NO SÉCULO XVIII

primeiras jazidas minerais que deram origem à capitania dasMinas Gerais, antes mesmo da elevação desse território acapitania, que se deu em 1720.

A palestra da Adriana foi especialmente interessante porabordar esse momento, como ela diz, esses albores da históriamineira, que é aquele período pouco estudado da história daformação histórica de Minas Gerais. E hoje com o EduardoFrança Paiva, a gente alcança o momento áureo da história deMinas, tanto no sentido figurado como no sentido literal,porque é o momento em que realmente a produção do ouro edo diamante na capitania fez o esplendor do que foram asMinas Gerais no século 18, uma sociedade tanto de opulênciae de riqueza, quanto de miséria, de exclusão e de conflito.Lembramos que, como escreveu Laura de Mello e Souza,trata-se de uma sociedade de opulência e miséria, de norma econflito, enfim, uma sociedade profundamente contraditória,profundamente clivada, mas que aos poucos foi se constituin-do numa região diferenciada no contexto do território colonial.Eduardo França Paiva é atualmente coordenador do programade pós-graduação em História da Universidade Federal deMinas Gerais. É doutor em História Social pela Universidadede São Paulo, fez os seus estudos pós-doutorais na École desHautes Études en Sciences Sociales (França) e é autor de obrasimportantes sobre o período colonial mineiro: Escravos elibertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias deresistência através dos testamentos, uma obra de 1995, eEscravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais,1716-1789, uma obra de 2001. Com a palavra, Eduardo FrançaPaiva.

O Prof. Eduardo França Paiva – Eu queria começar agrade-cendo o convite para vir aqui, porque é muito bom falar sobreresultados acadêmicos fora da academia. Então, acho que isso,além de ser uma oportunidade que a gente tem de respiraroutros ares, de ouvir outras demandas, é prazeroso e extrema-mente importante, porque é, penso eu, uma das formas dediálogo que nós da academia, da universidade, podemosestabelecer com pessoas fora dos muros da universidade e de

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aproximarmos, portanto, esses dois universos. Queria muitoagradecer por essa oportunidade que eu acho extremamenteimportante e profícua. Queria também dizer o seguinte: queesse é um tema que durante muitos anos eu venho pesquisando.Comecei pesquisando com o foco em Minas Gerais, mas, como passar dos anos, esse foco ficou cada vez mais conectadocom outros temas. Eu queria explicar isso: quero dizer que eusó consigo entender hoje Minas Gerais, conectando-a com omundo, e não sou só eu que faço isso, é toda uma historiografia,toda uma opção historiográfica mais recente. Essa históriaconectada é a história que não concebe ilhas regionais ou ilhasnacionais ou ilhas temáticas, todas auto-suficientes, porqueesses temas são todos muito conectados. E finalmente euqueria também dizer que o que eu vou falar aqui hoje sobre essetema, Minas Gerais, a situação dessa região, as questõesdemográficas, culturais, sociais, tudo isso está muito calcadona enorme e inovadora produção historiográfica dos últimos15, 20 anos, que, infelizmente, nem sempre circula tantoquanto deveria circular, portanto, tem um impacto muitomenor do que nós gostaríamos que tivesse. Muito do que estásendo revisto, reescrito, muitos dos mitos que foram enfimrecolocados, revisados, e tudo o mais, muitos dos equívocoshistóricos e historiográficos que vão se amontoando ao longodo tempo têm sido alvo dos esforços dos historiadores e deoutros estudiosos. Trabalhos excepcionais têm sido desenvol-vidos, sobretudo nos cursos de pós-graduação, de mestrado oudoutorado, e isso nem sempre chega ao grande público. Enfim,pouca gente conhece, isso não chega às escolas. Então, aresposta é sempre essa, que isso tem realmente um tempo dematuração, um tempo de apropriação, não é automático.Agora, é muito mais lento do que deveria ser, e é por isso queeu volto a dizer que é muito importante nós estarmos aqui, aAdriana Romeiro já passou, outros virão e eu também, estabe-lecendo esse diálogo fora dos muros da academia, ou seja,expandindo esses resultados e apresentando-os. Muito bem.Dito isso, eu acho que a melhor forma de começar a falar sobreo tema é chamar a atenção para alguns pontos que sãorealmente importantes, sobre os quais nós podemos desenvol-

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ver essa conversa, porque eu vou falar um pouco e gostariamuito de conversar, de dialogar realmente com vocês. Oprimeiro desses pontos é lembrar principalmente para aquelaspessoas que não têm formação em História que o que nósentendemos por Minas Gerais, o que nós chamamos de MinasGerais, hoje, não existia no século XVIII. Não existia nem essaMinas Gerais demarcada fisicamente, geograficamente, nemtampouco existia o mineiro, no sentido que nós nos damoshoje. Então, a primeira questão é essa, nós estamos diante deuma sociedade em formação que faz parte de uma sociedademais ampla, enfim, de uma extensão territorial mais ampla,que pode ser a América portuguesa, pode ser o Brasil, mas quepode ser a América, e que estava toda ela ainda em formaçãono século XVIII. Portanto, muito cuidado inicialmente paranós não projetarmos o que nós entendemos como MinasGerais, como “o mineiro”, como população mineira, como euvou chamar aqui, esse nosso presente no passado, porque essepassado era muito diferente. Então, essa é uma primeira basesobre a qual nós vamos desenvolver uma idéia aqui. O outroponto que é central, em torno do qual eu vou tentar desenvolveressas idéias aqui com vocês, chama-se mestiçagem. É concei-to, mas para além de um conceito, é prática muito antiga emuito importante na história de todos os grupos humanos. Oconceito de mestiçagem, isso é muito interessante, saiu doséculo XIX e entrou no século XX muito mal-visto, e, duranteo século XX, a idéia de mestiçagem foi tomada de variadasformas, mas talvez a principal tenha sido tomá-la como umaforma de negar ou de fragmentar um todo igual. A idéia demestiçagem, portanto, durante muitas décadas, foi tomadacomo uma idéia que prestava um desfavor aos historiadores,sociólogos e antropólogos. Porque, na verdade, se tratoudurante muito tempo de estabelecer dois grandes grupos, umque dominava e outro que era dominado e, portanto, essa idéiade mestiçagem atrapalhava tudo, não ajudava em nada. Esse éum dos pontos que está por trás dessa revisão, da atualizaçãoda leitura historiográfica contemporânea. Ou seja, enfim, nós,de uma forma geral, abrimos mão de entendermos uma soci-edade histórica na sua simplicidade, eu diria que é mais do que

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simplicidade, na “simploriedade” (se essa expressão existe) deuma contradição que quase nunca existiu de fato. Ou seja, umasociedade, quando ela é diversa, complexa, plural, não é porisso, como se costumou entender, contraditória. Aliás, esse éoutro conceito que nós precisamos rever. Nós não estamosfalando, portanto, de contradições, mas de complexidade, oque é completamente diferente. Complexidade social não querdizer contradição social. Nós estamos falando, portanto, deuma sociedade em formação e formação diversa, plural, quecontou – aí sim, eu vou entrar diretamente agora no tema daconversa dessa noite –, que contou, para se conformar, comuma diversidade cultural, étnica, de origens as mais variadas,de populações as mais variadas, de grupos os mais variados,que vieram de outros continentes para aqui interagirem. Vejambem eu não estou, a princípio, dizendo que uns seriam paradominar e outros para serem dominados. Estou falando deoutras perspectivas: estou falando sobre como esse desloca-mento populacional, com origem em várias partes da África,ou das Áfricas (vou colocar isso no plural e vou falar, daqui apouco, sobre o porquê), em várias partes da Europa, em váriaspartes da própria América, resulta em incontáveis mesclas,que abrangem, também, as populações nativas pós-coloniais,que, ao longo do tempo, vão se distinguindo entre si; estoufalando de como foi a dinâmica que se estabeleceu no dia a dia,no quotidiano, entre esses grupos distintos, que carregavamtradições muito distintas, que carregavam culturas muito dis-tintas e que, como qualquer outro grupo humano, sempreestiveram inseridos em uma dinâmica de transformação; estoufalando das bagagens culturais, das tradições que são transfor-madas, readaptadas e ressignificadas. Então, espero ter colo-cado as bases sobre as quais eu vou falar aqui, sobre essasociedade. Bem, já no final do século XVII, essas terrasextensas que hoje nós chamamos de Minas Gerais eramchamadas de sertões. Sertão é uma palavra muito antiga, usadadesde, talvez, o século XIV. Foi muitíssimo usada por portu-gueses e espanhóis para se referirem a algumas regiões daÁfrica. O que era sertão? Sertão era terra de ninguém, era terraincógnita, terra inculta, onde não havia cultura, na perspectiva

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dos ibéricos dos séculos XIV, XV e XVI, claro. Então, essasterras, durante muito tempo, foram chamadas efetivamente desertões e foram tomadas pela história, pelos historiadorescomo tal. Hoje, trabalhos de pesquisa extraordinários, como,por exemplo, o da professora Fernanda Borges de Moraes, daEscola de Arquitetura da UFMG, têm demonstrado que, já nofinal do século XVII, todo o vale do São Francisco, todo o valedo Rio das Velhas até o centro de Minas Gerais eram povoadosem ambas as margens por fazendeiros. Essas terras incógnitas,terras incultas, essas terras de povos bravios que eram osnativos, na verdade, já eram terras conhecidas, habitadas, e jáabrigavam comunidades e até mesmo sociedades, no final doséculo XVII. Só isso já muda completamente a perspectivahistórica da ocupação da região das Minas. Mas a capitania (naépoca não existiam nem estados, nem províncias) de MinasGerais foi criada em 1720, desmembrada da capitania de SãoPaulo e Minas do Ouro, sobretudo por conta de uma série deconflitos em torno do ouro; isso não é novidade para ninguém.Da “descoberta” do ouro, que nós ainda continuamos pensan-do que foi por acaso, surgem as versões a posteriori sobre avelha história dos bandeirantes, que saem de São Paulo (elesnunca saem da Bahia, eles nunca vêm da Bahia. Prestematenção, eles sempre vêm de São Paulo). Por quê? Porqueexiste uma historiografia paulista que durante muitas décadasdominou o cenário historiográfico brasileiro e “construiu” umBrasil a partir dessa perspectiva, da “perspectiva bandeirante”.E nós reproduzimos tudo isso, com facilidade, até hoje. Entãocontinuamos evocando aquela velha história que todos nósaprendemos nos manuais antigos dos colégios. Os paulistassaem de São Paulo, descobrem ouro em Minas Gerais, desco-brem diamantes, descobrem esmeraldas e, aí, fiat Minas Ge-rais, assim como o próprio Brasil, quero dizer, Minas Geraisse faz através da “varinha de condão” dos bandeirantes paulistase da pluma dos historiadores paulistas. Tudo isso está sendorevisto e muito revisto. Na verdade, o que se sabe perfeitamen-te é que essas terras já eram conhecidas, e que o ouro, assimcomo outros minerais, como ferro, que ninguém nunca selembra de incluir “na lista”, já eram conhecidos muito antes

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disso. Essas bandeiras tanto vieram de São Paulo quanto daBahia, e os fazendeiros que descem o vale do São Franciscoocupam toda a região e tornam-se produtores agrícolas, têmgado e se estabelecem em fazendas, cujas terras são, muitasvezes, extensas. Então, toda essa população desde o séculoXVII ocupa essas regiões. Quando as várias jazidas de ourotornam-se conhecidas, a notícia se espalha com muita facilida-de, com muita rapidez, e não houve apenas interesse enormede gente de outras regiões da América portuguesa para sepassarem às Minas Gerais ou ao “sertão” e se enriquecerem,mas houve, também, enorme quantidade de gente que se fixouali. Não fomos nós, no final do século XX, que descobrimos,em Serra Pelada, que o ouro não mata a fome dos mineradores.Sabe-se bem disso desde os gregos antigos. Nós temos umpéssimo hábito, uma péssima mania de subestimarmos acapacidade de conhecimento dos homens e mulheres dopassado. Assim, sempre estamos achando que tudo ou quasetudo nós descobrimos recentemente e que no passado ninguémsabia de nada – descontado meu exagero, aqui. Essas idéiassobre como se extrai o ouro; sobre o que é preciso para se teruma atividade mineradora; sobre como se deve plantar; sobrecomo se abastece uma sociedade mineradora; sobre como apopulação deve ser organizada; sobre o que significaria umasociedade mineradora sem normatização e sem ordenaçãomínimas, todas são idéias que já existiam entre os gregosantigos. Não é por outro motivo que em 1720, quando o Condede Assumar escreveu (e várias pessoas já disseram que não foiele quem escreveu) o famoso discurso que até hoje todos nósrepetimos, que a terra parece que evapora tumultos: a águaexalla motins: o ouro toca desaforos: distillam Liberdades osares: vomitam insolências as nuvens: influyem desordem osastros: o clima he tumba da paz, e berço da rebelliam: anatureza anda inquieta comsigo, e amotinada Lá por dentro,é como no inferno. Nisso, ele (ou quem escreveu o discurso)está simplesmente retomando discursos antiqüíssimos sobreáreas de mineração e como a desordem aí pode se transformarem catástrofe. Então, a ocupação das Minas, lá no fim doséculo XVII e no início do século XVIII, contava com todas

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essas experiências trazidas por portugueses e outros europeus.Mas aquilo que nos interessa sobremaneira, e que ainda émuito pouco conhecido, são as experiências trazidas pelosafricanos, tudo no plural. Hoje, sabemos que boa parte dosescravos africanos que entraram nas Minas, já no início doséculo XVIII, e que foram muitos, eram escravos que tinhamexperiência histórica com mineração e não de mina profunda,mas de ouro em pó, que é o que vai se encontrar em grandequantidade aqui. Hoje nós temos elementos também paraafirmar ou, pelo menos, para desconfiar fortemente, que, entreesses escravos que vêm para cá com um know-how, digamos,de mineração de pó de ouro, em grande quantidade erammulheres, que tinham a mesma experiência de mineração dopó de ouro em várias regiões africanas. E mais, não apenas detirar o pó do ouro, mas de fundir o ouro. E, além disso, nessasmesmas regiões ou em outras que mais tarde vão se tornarregiões mais importantes no fornecimento da mão-de-obraescrava na África, para a região das minas, em Minas Gerais,a experiência em extração, fundição, exploração do ouro éantiqüíssima, e na região mais ao sul do continente africano,onde hoje é Moçambique, a experiência em extração, explora-ção e transformação da pedra-sabão é igualmente muito anti-ga. Isso muda completamente a nossa forma de pensar comoessas populações, primeiro, entraram no Novo Mundo, e,depois que entraram, como se mesclaram, se organizaram e sedistinguiram. Eu quero frisar isso aqui, como se distinguiram.Se alguém pensa que em todo esse período (e eu vou usarexpressões que eram usadas na época) preto é igual a crioulo,que é igual a mulato, que é igual ao pardo e que todos formama “população negra”, como se diz hoje, engana-se profunda-mente. Preto era preto, crioulo era crioulo, mulato era mulato,pardo era pardo, cabra era cabra, e não se misturam, muitasvezes. E tem mais, havia uma hierarquia, não é só distinção nahorizontal, é uma distinção na vertical. Quem é melhor que ooutro? E, muitas vezes ser melhor que o outro não estavaligado exclusivamente à cor da pele, se um era mais preto oumenos preto que outro. É claro que isso também contava, masnem sempre era esse o critério para se distinguirem. Então,

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aqueles que dominavam, por exemplo, o pequeno comércio,aqueles que tinham maior conhecimento sobre técnicas deconstrução, aqueles que tinham maior conhecimento sobremineração se destacavam dos demais. Foram se distinguindoem grupos e confrarias, em tudo. Nós estamos diante de umasociedade que se conformou no viés da diferença, da diversi-dade, da pluralidade, inclusive da diferença entre esses que nóschamamos de africanos, que não falavam a mesma língua, quenão se entendiam religiosamente, por exemplo. Para vocêsterem uma idéia, ainda hoje é praticamente desconhecida ahistória dos povos africanos islamizados que vieram pra cá. Eforam muitos. Nós não temos registros e, então, achamos queeles não existiram. Esses “africanos”, muitas vezes, não fala-vam a mesma língua, não se entendiam, possuíam tradições decomércio, conhecimentos, saberes técnicos completamentedistintos, por vezes, saberes muito mais bem elaborados,muito mais desenvolvidos do que os dos europeus, por exem-plo, os relacionados à fundição de metais e aos fornos defundição. Então, vejam bem, se por um lado nós temos umquadro de diversificação, de pluralidade, um quadro que tem,sim, miséria, temos, por outro lado, elementos extremamenteimportantes, como, por exemplo, mobilidade física, cultural esocial. Nós temos aí uma região que foi ocupada não ao “Deusdará”, como se acreditou até recentemente, na qual as pessoasiam chegando, iam explorando, e, ali onde se construía umcasebre, no dia seguinte encontrava-se um veio e se destruía acasa e, assim, arraiais foram sendo formados. Ao contrário, asociedade mineira foi conformando-se, lastreada aordenamentos e lógicas que, às vezes, fogem aos nossos olhosviciados de hoje e que nem sempre ficaram registrados nadocumentação. Mas, quanto mais nós comparamos, quantomais nós conhecemos e percebemos como essa população seorganizava, como se instalava, como ascendia economica-mente e socialmente, mais nós percebemos como essa socie-dade colonial elegeu formas de organização convenientes eadaptou outras tantas. Isso aconteceu só em Minas Gerais?Não. Isso é inédito? É só aqui que acontece? Não, não é. Amestiçagem foi inventada aqui em Minas Gerais? Não foi. Foi

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aqui que o mulato “nasceu”? Também não. Isso é muito maisantigo do que as invasões islâmicas na Península Ibérica. Tudoisso foi vivenciado em várias partes da África negra, da Áfricamediterrânea, isso foi vivenciado na Península Ibérica (aliás,a presença de negros africanos, nem sempre escravizados, foimarcante na Grécia e no Egito antigos) e tudo isso foi transpor-tado para a América e foi dinamizado aqui: a dinâmica dotrato, do conhecimento, da mescla dos saberes que circulam,das pessoas que circulam. Aí sim, aí nós chegamos à questãomais particular, mais central, eu acho. Que questão é essa? Adimensão que tudo isso tomou na América.

Vocês devem estar pensando, “mas o Eduardo fala de grandesquantidades, mas não dá nenhum dado”. Então, vou forneceralguns dados para vocês saberem de que é que eu estoufalando. Até o final do século XVI, o primeiro século deocupação da América pelos europeus, a população indígenasofreu uma avaria muito grande. Todo mundo sabe que apopulação indígena diminuiu muito. Talvez menos do que sediz, ou do que se disse, mas diminuiu efetivamente. Emparalelo, entraram na América algo em torno de 600 a 800 milafricanos. Enganam-se aqueles que pensam que esses 800 milescravos vieram para o chamado Brasil (não existia Brasil,como o entendemos hoje, naquele momento). Não, eles nãovêm privilegiadamente para cá, como se pode imaginar. Até ofinal do século XVI ou até meados do século XVII, haviamuito mais africanos na Nova Espanha (México) e no Reinodo Peru do que em toda a América portuguesa. Só no séculoXVII é que a mão-de-obra escrava indígena no Brasil, princi-palmente na área da plantação de cana, da produção de açúcar,perde importância diante da mão-de-obra africana e é a partirdaí que a América portuguesa passa a receber mais africanosque a América espanhola. Então, se no século XVI entraram800 mil africanos, somados a alguns milhares de europeus ealgumas dezenas ou centenas de milhares de indígenas, nósteríamos aí uma população, digamos, de alguns milhões depessoas, 3, 4, 5 milhões, talvez. É difícil precisar isso, porquenão há censos. Só no século XVII, a partir, portanto, da

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produção de açúcar, entraram na América portuguesa mais,pelo menos, 1.000.000 de africanos. 1.000.000 de africanosem um século: é um êxodo, é um enorme deslocamentoforçado. Durante esses dois séculos – XVI e XVII – aspopulações indígenas também se deslocam de uma formaigualmente pouco conhecida. Mas sabemos, por exemplo, queboa parte dos indígenas da Venezuela foi transformada emescravos, levados para o Caribe. Muitos que não foramescravizados foram submetidos a encomenderos e houvegrande deslocamento populacional interno em toda Américaespanhola. Grande número de europeus também se deslocouem direção à América. E outro mito se instala aí: os europeusviriam ao Novo Mundo para se enriquecerem e depois volta-rem. Não. Muitos deles vieram, ficaram ricos e permanece-ram. A América, afinal, tornara-se um dos eixos econômicosimportantes do mundo naquele momento. Então, só paracontinuar com esses dados, 1.000.000 de escravos africanosou pouco mais que isso entraram no Novo Mundo durante oséculo XVII. O século XVIII, que é o século da mineração doouro por excelência, foi o que nós poderíamos chamar de oséculo das Minas Gerais. Durante o “século das Minas”dobram os números: dois milhões de escravos africanos en-tram no Brasil. Outros milhares e milhares de europeus mi-gram também. A população indígena, ainda que menos inten-samente, continuava deslocando-se. Mas, temos um elementoque difere completamente o Setecentos dos séculos anteriores:o crescimento positivo interno, ou seja, a mão-de-obra escravaafricana duplica, mas também há um enorme número deescravos que nascem no Brasil. Isso significa que daí pra frentea dependência de mão-de-obra escrava africana diminui e onúmero de escravos nascidos aqui aumenta muito. Eu vou falardo século XIX depois. Deixa suspenso, por enquanto. Euqueria centrar nesse século XVIII. E essas pessoas que nasci-am aqui então? Pretos? Não. Pretos não eram, porque preto eraexpressão empregada para africanos. Às vezes se dizia negro,mas, muito freqüentemente, negro também foi termo empre-gado para africanos. A documentação extensa que nós temosnos permite convencionar, salvo exceções, que pretos e negros

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eram africanos. As pessoas que nasciam aqui eram crioulos. Oque são crioulos? São os nascidos aqui, filhos de pais africa-nos. Há referências, inclusive, sobre crioulo ser palavra africa-na para designar os filhos nascidos na América, mais tarde,pela sonoridade, adotada pelos espanhóis. E quais as outras“qualidades” (expressão da época empregada para diferenciarbrancos, pretos, negros, crioulos, índios, cabras, mulatos,pardos, etc...) possuíam os nascidos no Brasil? Eram osmestiços, que formavam outros numerosos grupospopulacionais, portadores de várias tonalidades de pele, dedistintas origens étnicas, culturais e religiosas. Esses mestiçoseram pardos e mulatos, principalmente. E eles não eram iguais.Havia muitos mulatos, que tinham pele mais clara, embora issonão tivesse convenção ou fosse normatizado. Na verdade, émuito difícil precisar tudo isso, pois nunca houve conceitos eparâmetros que coubessem em todas as épocas e em todas asregiões e que fossem operados de maneira padronizada portodos os grupos sociais. Aquele que se chamava de pardopodia ser chamado de mulato por outros. Por outro lado, asvariações podiam abranger áreas aparentemente apartadas edistantes, assim como se adaptaram diferentemente em cadaépoca. O que se denominou negro nos Estados Unidos, porexemplo, nem sempre correspondeu às definições existentesem áreas africanas, em Cuba, no Peru, na Jamaica ou no Brasil.Então, isso torna essas categorias socioculturais bastanterelativas. Mas é um belo exemplo para nós percebermos comoesses conceitos ou categorias podem atravessar séculos semmuitas alterações, mas, ao mesmo tempo, podem sofrer inú-meras adaptações e mudanças.

No final do século XVIII, Minas Gerais era a região maispopulosa e mais rica da América portuguesa. Em 1776, umproto-censo indicava que existia uma população que girava emtorno de 320 mil pessoas na Capitania. Não é pouca coisa parao século XVIII. Desses 320 mil habitantes das Minas Gerais,pelo menos 130 a 140 mil eram ex-escravos e descendentesdiretos desses ex-escravos, primeira e segunda gerações. Ouseja, não-brancos nascidos livres e ex-escravos, entre pretos,negros, crioulos, mulatos, pardos, cabras, enfim, uma gama de

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adjetivos para definir os alforriados. E, diga-se de passagem– não vou entrar nesse detalhe –, um grande número delescomprou as alforrias e não as ganhou, como se costuma dizer.Mas isso é motivo para outra conversa. Entre 100 a 110 milpessoas eram escravas: pretos, negros, crioulos, pardos, mula-tos, cabras e uns 80 mil brancos. Ou, melhor dizendo, uns 80mil livres, que é a expressão usada nesse proto-censo, o quesignifica que entre esses livres, um número bastante significa-tivo deveria ser de pardos e de mulatos, de terceira, ou dequarta ou de quinta geração (chamados em alguns lugares daAmérica portuguesa ou da América espanhola, de quarteirões,quinteirões...). Ou seja, entre esses livres, nem todos erambrancos. Temos, portanto, aí uma enorme população de não-brancos; chamá-los, como já foram chamados antes, de des-classificados (e a própria Laura de Mello e Souza concordacom isso) não é o mais adequado. Mas nós não devemos sairda categoria genérica “desclassificados” e cair no balaio“negros”, porque muitos não eram negros, nunca se viramcomo tal, nunca se representaram como tal, nunca se acharamiguais em “negritude” ou se irmanaram como negros. Vouinsistir: mulatos, pardos, crioulos, pretos, negros, cabras, entreoutros, se distinguiam no cotidiano, se classificavam e sehierarquizavam, muitas vezes, em uma escala encabeçadapelos brancos, católicos e europeus. Essa população aparente-mente fragmentada tanto negociou ou concordou, quanto“guerreou” entre si. Houve conflitos e houve negociações,acordos e afinidades entre eles também. Aí vocês devem estarse perguntando, mas que tipo de afinidade havia entre genteque era tão diferente, afinal? O que levou essa população aestabelecer acordos, negociações, a se mesclar em algunsmomentos e se superpor e a se contrapor em outros momentos?O que permitiu que tudo isso existisse ao mesmo tempo,vivenciando dinâmicas e dimensões pouco comuns naquelaépoca, chamou-se Minas Gerais. E por que as Minas Gerais?Porque nós estamos falando de uma sociedade muito populo-sa, com uma economia muito dinâmica e conectada com redesde comércio planetárias, a ponto de, por exemplo, em meadosdo século XVIII, existirem fábricas de tecidos de algodão em

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possessões portuguesas na Índia produzindo para o mercadobrasileiro, ao gosto deste. Esse mercado consumidorsetecentista, em boa medida, localizava-se em Minas Gerais,e os compradores desses tecidos nas Minas Gerais, no Rio deJaneiro, em Salvador, em Recife, eram, também em grandemedida, mulheres não brancas: eram as negras, pretas, criou-las, mulatas e pardas. Então, estamos falando de uma produçãodo outro lado do mundo que é consumida aqui pela populaçãocolonial mestiça e até mesmo escrava, marcadamente femini-na, o que era traço de toda aquela dinâmica, diversidade edimensão alcançada pela sociedade colonial brasileira e mi-neira, em particular. Além disso, deve-se destacar a rápida eestendida urbanização ocorrida nas Minas, diferente do queocorrera até então em toda a América. Não se tratava apenasdo planejamento de uma ou outra cidade ou da instauração deduas ou três vilas, mas da formação de extensa rede de vilas earraiais, com impressionantes dinâmicas econômica e cultu-ral, que vai se diferenciar das sociedades lastreadas na produ-ção agrícola, como a do açúcar, mais ao norte. A economia dasMinas no século XVIII se diversificou rapidamente: a produ-ção aurífera, diamantífera e de outros minerais (ferro e pedraspreciosas, por exemplo) desenvolveu-se em paralelo às ativi-dades comerciais mundializadas, à pecuária e aos serviços,concentrando parte substancial da riqueza gerada nas áreasmais urbanizadas. Mais ainda, nas Minas se vivenciaraminversões extremamente importantes, para melhor entender-mos tudo isso que venho dizendo. Até o final do século XVII,em toda a América portuguesa – e isso pode ser dito para aAmérica espanhola também – havia poucos proprietários demuitos escravos. O que vai ocorrer nas Minas Gerais é exata-mente o contrário. Desde o início do século XVIII, houvemuitos proprietários de poucos escravos. A média, que emáreas mais rurais era mais ou menos de 30 escravos por senhor,nas Minas, era de, mais ou menos, 5 escravos, o que significadizer que a relação entre proprietário e escravo era muito maispróxima, no cotidiano. Significa dizer também uma coisa quenão é explícita e que causa bastante polêmica – mas, enfim, eufalo é da História, eu não falo de um tempo mítico que eu estou

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inventando: talvez mais de 1/3 de todos os proprietários deescravos nessas regiões urbanizadas, e aí se inclui o Rio deJaneiro, Salvador, Recife, o Recôncavo Baiano, enfim, mas,principalmente, as Minas Gerais, eram ex-escravos. Eram ex-escravos, o que me permite dizer com toda a convicção quenessa sociedade escravista colonial, sobretudo a partir doséculo XVIII, isso ficou muito claro, libertar-se não era o únicoe talvez não tenha sido também o principal valor cultivado poresses escravos de todas as “qualidades”, mas sim, o libertar-see tornar-se proprietário de escravos numa sociedade escravistacolonial. Assim se distinguiam os habitantes entre si: nãoapenas o menos preto do mais preto, o liberto do livre, mas,também, os proprietários de escravos dos não-proprietários,ainda que o plantel fosse, em média, numericamente reduzido.Eu estou tentando falar com vocês que é bom nós começarmosa passar uma borracha em boa parte do que aprendemos atéagora sobre história da escravidão e das mestiçagens e, porconseguinte, sobre a história da formação biológica e culturaldas populações coloniais. A historiografia mais recente vemrevendo muito das versões que se mantiveram aceitas durantemuitos anos, talvez por falta de pesquisas mais sistemáticas epor termos muito maior acesso hoje à documentação existenteno Brasil e no exterior. Para finalizar, eu quero dizer a vocêsque uma das questões para mim, sei que isso não é consensual,mas para mim, que pesquiso isso há muitos anos, um dospontos mais importantes para nós pensarmos melhor todo essequadro que eu pintei aqui (de uma forma, talvez, demasiada-mente ampla) é lembrar que muito do que se sabe ter sedesenvolvido na sociedade mineira colonial já existia antes emoutras regiões e épocas. Entretanto, a peculiaridade dessahistória reside na dimensão e na dinâmica engendradas (estoume repetindo, mas creio ser necessário). A grande quantidadede escravos, em Minas Gerais, que comprou sua alforria,evocando a coartação, direito costumeiro reconhecido portodos, inclusive pelas autoridades, denominado coartação,embora seja realidade ainda desconhecida do público emgeral, é talvez o melhor exemplo para pensarmos sobre essarica história colonial mineira. A coartação era um tipo de

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alforria paga em parcelas, às vezes durante 4 ou 5 anos. Aolongo desse tempo, os coartados se ausentavam do domíniocotidiano de seus proprietários, bancavam suas próprias vidas,não podiam ser vendidos nem emprestados; tudo o que,normalmente, se podia fazer com um escravo não se aplicavaao coartado. As mulheres se tornaram maioria entre essescoartados e, daí, maioria entre os libertos, mais uma inversãoimportante ocorrida freqüentemente nas Minas. Vários e vári-os casos de coartações negociadas entre escravos e proprietá-rios que, por algum motivo, não foram concluídos como seacordara, acabaram chegando à Justiça colonial. Muitos des-ses processos foram abertos a pedido dos escravos coartadosque se sentiam lesados pelos senhores e, em várias ocasiões, aJustiça deu ganho de causa aos escravos. Eu acho que isso dáum panorama sobre a fascinante e instigante história dessaregião e de seus moradores setecentistas, que é, em largamedida, “janela” para se conhecer melhor a história do Brasile a da América. Muito obrigado.

O Sr. Márcio Santos – Quero parabenizar o professorEduardo França Paiva pelo brilhantismo da palestra, portrazer uma abordagem inovadora, original, tratada dessamaneira rica de dados de investigações e resultados depesquisas que ele nos traz aqui hoje. E isso, realmente, comoeu comentava há pouco, antes de o evento começar, de fatoconfirma que nós estamos trazendo aqui o que há de maisnovo, o que há de mais contemporâneo em termos de umarevisão historiográfica de muitos desses mitos que foramconstruídos ao longo das décadas passadas. Eu teria muito adizer sobre a abordagem do Eduardo, porque trabalho tam-bém com alguns temas que tangenciam, que são correlatosaos temas abordados. Acho interessante, acho que confirmaa nossa expectativa, a minha e a do Luiz Fernandes, queorganizamos o evento, de que as polêmicas surgissem. E, defato, a Adriana Romeiro abordou com bastante riqueza dedetalhes a forte presença paulista nas Minas Gerais no inícioda ocupação do atual território mineiro, a primazia paulistanessa ocupação. Eu mesmo, modestamente, tenho trabalha-do com dados históricos que indicam que os primeiros

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assentamentos no sertão mineiro, ou seja, fora da regiãomineradora, são assentamentos majoritariamente paulistas,organizados por paulistas, e que nada têm efetivamente a vercom essa historiografia laudatória de exaltação da figurapaulista, construída por autores como Taunay, Alfredo EllisJúnior. Isso tem que ser varrido, pois a primazia paulista tema ver com a posição de segunda categoria de São Paulo nacolônia, com a pobreza paulista no período colonial. Falar empaulista no período colonial, aproveitando a oportunidadeaberta pelo Eduardo, falar em pobreza no período colonialnão tem absolutamente nada a ver com falar em paulista, apartir da ascensão de São Paulo no contexto da República eda posição central que São Paulo hoje ocupa no Brasil, doponto de vista econômico. Falar em paulista no períodocolonial é falar de uma população excluída, inclusive porquenão tem condições econômicas, geográficas e demográficasde ascensão, naquele contexto. A colônia era majoritaria-mente Bahia e Pernambuco. Mas eu não vou me estendersobre isso porque senão vira um debate exclusivo e nósqueremos trazer a fala do Eduardo para criar polêmica comvocês, com o público. Então já de imediato passo a palavrapara quem quiser fazer perguntas.

O Sr. Luiz Fernandes – Eduardo, obrigado pelas palavras. Euacho que você abriu temas importantes, e eu gostaria deaproveitar mais o seu conhecimento dessa produçãohistoriográfica e não vou entrar agora, a não ser se pergunta-rem, se não perguntarem eu vou voltar aqui, mas eu gostaria desaber se você tem novidades em relação aos reinóis, aosportugueses que vieram para as minas, se há distinção entreeles também. E uma coisa também que me chamou a atençãona sua palestra: a pouca atenção dada às nações indígenas queaqui habitavam, porque também nesse caso, certamente hádistinções entre elas.

O Sr. Márcio Santos – Antes da resposta quero lembrarque a pergunta é corrente. Nós estamos em busca de umaresposta sobre as nações indígenas que habitavam esseterritório e acho que vale a pena se estender um pouco

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sobre isso.

O Prof. Eduardo França Paiva – Agradeço muito a pergunta,porque me possibilita voltar a alguns pontos que ficarampouco esclarecidos. Eu vou começar pelas populações indíge-nas. Falar pouco sobre isso significa que a historiografiaavança pouco, mesmo que tenha começado a avançar mais,recentemente. Eu estou falando sobre historiografia, não deAntropologia. Estudos históricos, estudos a partir das fonteshistóricas, dos acervos imensos que nós temos e que são ricos,e, a partir dos silêncios, nos obrigam a refletir, se são aindapoucos, indicam o nosso descuido com a história da populaçãoindígena. Vamos pôr os pingos nos is! Eu gosto de falar sobreos temas mais educadamente, mas acho que, às vezes, escracharum pouco a coisa é melhor. Falando muito abertamente, não hámais do que 15 ou 20 anos que nós consideramos o índio umagente histórico. Então, é bom a gente olhar para a ponta dodedo da gente. Eu olho para a minha, porque há 20 anos venhoestudando essas questões e, muitas vezes, a coisa não mepassou pela cabeça, e não me passou pela cabeça porque estivemergulhado numa tradição historiográfica que simplesmentefala muito pouco sobre os índios. O índio como agentehistórico, sua existência, interações, sua participação comoco-construtores desse universo colonial, isso é abordagemmuito recente e tardia, infelizmente. Nossa Constituição é de1988. Até 88, os índios não respondiam sobre eles mesmos.Isso nos mostra nossos absolutos descuido e despreparo recen-tes. Mas a historiografia tem avançado sobre a história indíge-na, felizmente. Essa ainda importante lacuna em nossahistoriografia cada vez mais chama a atenção dos pesquisado-res, mesmo porque, o tema tem sido atrelado à idéia de umahistória ambiental, do meio ambiente. Para falar de meioambiente não é possível excluir as pessoas que mais o conhe-ciam (além dos africanos que aqui achavam uma naturezamuito semelhante à que existia do outro lado do Atlântico), queestavam aqui antes dos europeus chegarem, que andavam, quetinham trilhas que corriam toda essa América. Muitos aquipresentes devem ter escutado, inúmeras vezes, históriasfantasiosas sobre passagens subterrâneas que ligavam São

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Tomé das Letras a Machu Picchu. Fantasias à parte, haviatrilhas abertas por toda essa América do Sul, e não é de todoirreal a possibilidade de ligações tão extensas.

As populações indígenas também se distinguiam, havia guer-ras entre elas, mas elas também firmavam alianças, trocavamobjetos e experiências. Então, tentando responder à pergunta,se os índios não estão em minha fala, é meio ignorância deminha parte, mas ressalvo que a historiografia se debruçasobre esse tema hoje. A questão sobre os portugueses eu achoque durante muito tempo foi tratada de uma forma muitoestereotipada. Então, os portugueses que vieram para o Brasil,não importa se no século XVI ou se no século XIX, todos eramladrões, degredados, não sei o que mais. Um conjunto deinverdades, enfim! A partir do século XIX e do início do séculoXX, até hoje, esses portugueses, agora já estou falando deversões historiográficas, começaram a ser vistos como gran-des idiotas, parvos, ignorantes, enfim, como os “burros” dasinúmeras anedotas que todos conhecemos. Então, essa popu-lação foi fortemente vista a partir de estereótipos, sobretudo apartir do século XIX. A historiografia brasileira também temrevisto tudo isso, inclusive para demonstrar as diferenças, porexemplo, do deslocamento de populações do norte de Portugalou do sul de Portugal, ou até mesmo de regiões que não tinhamessa fronteira tão bem estabelecida naquele momento. Osdados que eu levantei para Minas Gerais, no século XVIII, sãobastante reveladores do perfil e da dinâmica de vida dessesportugueses. Por exemplo, eu diria que algo em torno de 70 ou80% dos portugueses com cujos testamentos eu trabalhei eramsolteiros, e desses pelo menos 40 ou 50% se declaravam paisde bastardos mulatos e pardos. As porcentagens, creio, estãosubestimadas, uma vez que nem todos os pais declararam seusfilhos “naturais”. Então, isso nos dá alguns elementos quemudam também o perfil dessa população. Por isso é que, cadavez mais, não se sustenta a idéia de que os portugueses vêmpara explorar, para ficarem ricos e para voltarem. Eles vieram,ficaram, se envolveram em todas as atividades econômicas ese integraram completamente ao universo mestiço colonial.Mas é preciso caminhar mais nesses estudos.

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O Sr. Márcio Metzker – Professor, boa noite, o meu nomeé Márcio Metzker, sou jornalista aqui na Assembléia e eugostaria de agradecer muito ao senhor por tirar o meu comple-xo de cabana do Pai Tomás, esse atavismo, esse remorsoatávico que a gente de pele branca sente por ter pendurado osnegros no pelourinho no passado, quando o senhor me diz queos negros também eram proprietários de escravos e tinhamtodos esses grupos que não se misturavam. Eu dei uma boacontribuição ao Prof. Douglas Libby, quando ele escreveuaquele trabalho sobre a mina de Morro Velho, como um íconesobre a presença inglesa no Brasil, e ele pegou de 1735, que foia época da mecanização da exploração do ouro ali, quandoacabou o ouro de aluvião na região de Ouro Preto e Sabará. Eeles começaram a se enfiar pela terra adentro com a tecnologiaque só os ingleses tinham.

O Prof. Eduardo França Paiva – 1835...

O Sr. Márcio Metzker – Em 1735 começou a exploração.

O Prof. Eduardo França Paiva – A mecanização já é doséculo XIX.

O Sr. Márcio Metzker – Sim, sim, eu falo de exploração porescoramento, entrar em mina, desabamentos, morriam emtorno de 60 escravos. E ele descreve muito bem quando osingleses, famílias e gerações e gerações de ingleses, viveramna abastança porque tinham ações da Mina de Morro Velho eficavam enfurecidos quando ocorria um desabamento e mor-riam uns 60 escravos , 4 feitores, e eles ficavam 2 ou 3 anos semreceber dividendos daquelas ações que eles tinham e manda-vam sempre alguém para investigar. E uma das coisas que oProf. Douglas me deu quando terminou o trabalho foi um livrodo Sir Richard Burton que fez uma viagem do Rio de Janeiroao Morro Velho e depois desceu o Rio São Francisco de canoa,com aqueles dons de naturalista, uma leitura maravilhosa. Eele diz que os negros tinham muito mais privilégios, os negrosescravos, tinham muito mais privilégio do que a gente imagi-nava. O melhor hospital da província era o de Nova Lima. Atéà vacina os negros já tinham acesso e o resto da população não

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tinha. A maneira como eles viajavam também, os escravosafricanos, era mais confortável. Os navios negreiros, apesar deo Castro Alves ter descrito a tristeza, eles viajavam com maisconforto do que os imigrantes suíços que vieram em 1820, naépoca da primeira colônia, quando D. João VI abriu para... Eledizia que os ingleses tinham os seus escravos pugilistas, queeles eram tratados como galos de briga, com todo o conforto,com boa alimentação, bom treinamento porque era o meunegro que ia lutar contra o seu negro na praça de Nova Lima.Então o que eu queria fazer era recomendar essa leituramagnífica do Richard Burton, que era um homem que nãopensava absolutamente dentro de nenhum preconceito religi-oso, social, nem nada, ele observava tudo e falava aquilo comuma liberdade que chocava até mesmo a esposa dele, queeditou esses livros, que era a Isabel Burton.

O Prof. Eduardo França Paiva – Eu lhe agradeço muitopelo comentário. E queria retomar da seguinte maneira: issoé polêmico, isso é chocante para a maior parte das pessoasque inclusive estão aqui. Mas é bom nós lembrarmos que atémeados do século XIX escravidão era prática legal e legíti-ma. E só da metade do século XIX para a frente, a partir,sobretudo, da formação de uma opinião pública como aentendemos hoje, primeiramente na Europa, mas, também,no Brasil, é que a escravidão passa a ser algo consideradodesumano e ilegítimo, tornando-se, em seguida, ilegal. Atéentão, era exatamente o contrário. E essas legalidade elegitimidade eram atestadas pelos próprios escravos. A es-cravidão não foi inventada no Brasil, por um grupo pequenode feitores ou de proprietários branquinhos maldosos! Oescravismo e o comércio de escravos existiram durante todaa história humana. Não houve apenas o tráfico de escravos,levados da África para a América. Houve inúmeras rotas detráficos de escravos. Então, tudo isso nos permite repensaressas questões todas, o que eu gostaria muito de frisar,porque eu sei que este é um programa que vai ser transmitidopara muitas localidades e é muito importante que tudo issofique claro. O que foi exposto na pergunta e durante minhaexposição também, sobretudo o que mostra a autonomia de

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escravos, as possibilidades de negociação com os proprietá-rios e, também, a sustentação dos valores escravistas pelospróprios escravos não significa dizer que foi muito bom serescravo. Não é isso. Não significa que a vida dos escravostenha sido uma vida maravilhosa, confortável e tudo o mais.Entretanto, significa dizer que o cotidiano dos escravos, emtodo esse período, engendrou tanto as formas cruéis de trato,quanto formas de negociação, de autonomia, de afeto entreos escravos e entre eles e os não-escravos, de relacionamen-tos os mais distintos e possíveis, porque tudo isso fez econtinua fazendo parte da vida das pessoas. Não foi opresente que inventou tudo isso. Sempre houve esse conjuntode elementos que compõem as relações entre pessoas, rela-ções sociais, relações culturais. Volto a frisar. O que eu falei,o que foi dito agora pelo Márcio, não significa dizer que avida dos escravos foi muito confortável, que foi muito bomser escravo no passado. Significa dizer, aí sim, que não foi sótronco, chicote e trabalho forçado (costumo chamar isso de“imaginário tronco”). Essa história foi muito mais complexae muito mais rica também. É isso que significam as declara-ções anteriores. Enquanto nós não nos livrarmos dessa idéiaque todos temos lá no fundo, incrustada, de escravo preso aum tronco e apenas isso, nós não conseguiremos enxergarque esses homens e mulheres, escravos e ex-escravos, nopassado, foram acima e além de tudo, pessoas e agenteshistóricos. Eles não nascem escravos. Nascem juridicamenteescravos (ou foram escravizados depois). São pessoas, sãoagentes históricos, são homens, são mulheres, são portadoresde culturas, de tradições, de saberes, de desejos e de conflitosemocionais. Muito além de serem escravos, que é umacondição jurídica, sempre tiveram antes uma condição hu-mana. E é isso o que mais importa. Isso é óbvio, mas, há pelomenos 30 anos, sociólogos, historiadores e demais estudio-sos de vários lugares não acreditavam nisso e entendiam queescravos eram coisas e vítimas apenas. Essas idéias aindaecoam fortemente e por isso mesmo não é fácil, ainda hoje,convencer as pessoas de que escravos e escravas no passadoforam gente, foram agentes e que co-construíram as socieda-

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des nas quais eles viveram, as quais nós herdamos e com asquais continuamos mantendo contatos íntimos. Romper comessas idéias prontas e arraigadas é um grande desafio. Esempre é fácil culpar os intelectuais por essa espécie deabismo intransponível entre o que eles pensam e escrevem eo grande público: escutamos sempre que a linguagem dauniversidade é inacessível, que a academia e os intelectuaissão intangíveis, etc... Penso que no caso presente, tema denossas conversas hoje, esses discursos são pouco ou nadaaceitáveis. Lembro-lhes que há uma enorme quantidade depessoas ainda hoje que se recusam a escutar sequer, a ler, aentender argumentos como os apresentados aqui ou estudosque os abordem. Claro, é muito mais fácil bater na tecla davítima. Ninguém é apenas vítima, 24 horas de todos os dias,durante toda a sua vida! Creio que muito mais vitimiza ohistoriador ou aquele que a posteriori desqualifica os agen-tes do/no passado. O que nos interessa aqui é demonstrar queesse “imaginário do tronco” é muito simplório, é muitoreducionista e ele é muito perigoso também. E é isso, eu acho,que o Márcio quis dizer, exatamente isso. É muito bom frisarque nenhum de nós aqui está achando que a vida do escravofoi uma maravilha, mas é bom reconhecer que para partesignificativa desses escravos, nas Minas ou em qualqueroutro lugar, a vida era, de uma forma geral, menos dura doque a vida de operários na Europa, na primeira metade doséculo XX, por exemplo. Se não era menos dura eraigualmente cruel. Então, nós temos valores com os quais nósprecisamos saber lidar. E valores são construções históricas,eles não serão a mesma coisa para sempre. Eles também vãomudando, assim como os conceitos. Eu acho que esse é opapel da História e do historiador: ver esse passado com umfoco muito mais amplo e muito menos reducionista e simpló-rio do que a gente vê até hoje.

O Sr. Alysson Gonçalves – Boa noite, meu nome é AllysonGonçalves, eu sou professor de capoeira, estudante de His-tória da Uni-BH. Em primeiro lugar, eu queria dar umacontribuição sobre o que foi falado aqui, que é a questão dospovos indígenas em Minas Gerais, no caso citando duas

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historiadoras, uma é Maria Leônia Chaves de Resende, queé professora da Universidade Federal de São João Del Rey,ela também tem as suas pesquisas sobre a questão indígena.A outra se chama Núbia Braga Ribeiro, que defendeu tese dedoutorado neste semestre na USP, e eu tive oportunidade departicipar do projeto de pesquisa dela, que é “Lutas e Focosde Resistência dos Povos Indígenas nas Minas do SéculoDezoito”. Então é uma pessoa que trabalha essa questão daslutas e focos dos povos indígenas, que eu acho que é interes-sante estar pesquisando, para saber o porquê do interesse. Euqueria fazer duas perguntas. Eu li há um tempo atrás umartigo do ... Viana, que também trabalha essa questão damestiçagem, porque ele é um antropólogo. E eu me recordomuito de uma questão na antropologia, que é a da difusãocultural, a questão da junção do aprendizado, da troca dossaberes que ocorre na relevância de todo o período dahumanidade. Queria saber se podemos analisar ou trabalharessa questão da difusão cultural e da mestiçagem. Ela ocorredesde os primórdios dos tempos e quando a gente fala sobrea questão elaborada pelo próprio Eric Hobsbawn, quando eletrabalha com a invenção das tradições, dizendo que todas astradições são inventadas e a própria questão da aculturaçãoque as pessoas falam muito. Isso é muito uma questão dedizer que não existe e nunca existiu uma cultura autóctone,genuína? Essa é uma pergunta, e a outra é sobre MinasGerais, um dos projetos de pesquisa meu. A questão é, se temno século 18, ou no século 19, ou se você teve algum contatocom algum documento que define um ser social que está àmargem da sociedade em Minas no século 18 e no século 19.E se existe, se você deparou com esse jargão do indivíduodizendo que está à margem da sociedade, já que a gente temno Rio de Janeiro e na Bahia o indivíduo que é enquadradodentro do código penal, e aí a partir de 1830, no século XIX.Existe alguma terminologia voltada para esse indivíduo àmargem da sociedade? O meu próprio colega ali comentouque alguns escravos eram bem cuidados, porque um escravolutava com outro, a gente tem estas questões. Em Minas osenhor teve esse contato (com a informação)?

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O Prof. Eduardo França Paiva – Olha, eu vou responder aprimeira, pelo início! Na perspectiva de uma historiografiamais contemporânea, mais recente, uma historiografia queeu poderia chamar inclusive de História Cultural, que é ahistoriografia à qual me filio, é impossível sustentar a idéiade uma cultura pura, mas, ao mesmo tempo, é possível. Euvou explicar o que é que quero dizer. É impossível que,historicamente, uma cultura tenha sido algo que se formousem qualquer tipo de mescla ou de contato ou de influênciade algo externo a ela. Mas, a partir do momento que nósredefinimos o que é o nosso conceito de realidade histórica,essa “impossibilidade” passa a ser relativa. O que é a reali-dade histórica para nós hoje? É algo completamente distintodo que se pensava há 40, 50 anos atrás. Por quê? Porque o quenós entendemos como realidade histórica hoje inclui, evi-dentemente, aquilo que nós achávamos antes que pairavasobre ela, ou seja, o imaginário, as mentalidades, os discur-sos e as representações, aquilo que não era tangível, palpá-vel, os sentimentos... isso não era real. Ora, é impossívelpensar hoje História e o próprio conceito de realidade histó-rica sem considerar essas dimensões igualmente históricas eculturais. Bom, isso tudo é para falar o seguinte: essasredefinições tornam possível se falar em culturas puras,porque os discursos e as representações são a realidadetambém. Os discursos, as imagens, as representações, são aprópria realidade. A partir disto nós criamos juízos de valor,nós comemos, nós bebemos, nós escolhemos, nós nos afas-tamos, nós nos aproximamos. Então, não dá para falar queisso não faz parte da realidade. Então, o discurso da purezanos diz que ela é a própria realidade. É possível, nessesentido, portanto, falar de culturas puras, de povos puros.Talvez o maior dos exemplos que eu possa dar aqui agoraocorreu em meados do século XX e milhões de judeusmorreram por causa dessa crença absurda da pureza culturale racial. Entretanto, ainda que absurda, ela não era irreal. Umdiscurso definiu uma realidade histórica no passado e nopresente e em nome de um futuro imaculado, de purezacultural, racial, étnica, julgou-se e matou-se muita gente.

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Bom, isso tudo foi para te falar o quê? Que cultura nessaperspectiva mais contemporânea, não pode jamais ser enten-dida, assim como a história, como algo estático no tempo eno espaço. A própria definição do que é cultura, do que éhistória se centra na idéia de movimento, de alteração, demodificação, de pluralidade, de diversidade. Não é nada queseja estático. Portanto, nesse sentido é muito incorreto, porexemplo, eu falar sobre “a cultura de Minas Gerais”. Nãotem, nunca teve, nunca vai haver isso, dessa forma, a não serna dimensão do discurso. Assim como não há “a cultura daFrança”, não há “a cultura da China”, e por aí vai. É melhornós tratarmos disso de uma forma mais plural, mais diversa,para a gente começar a entender melhor o que é que nósestamos falando nesse mundo no início do século XXI, queoptou – e cada vez eu vejo isso mais claro – pela diversidadee não pela singularidade. Foi-se o tempo em que nós querí-amos falar do ser universal. Ninguém mais dá conta de falarnem mesmo de cidadão universal. Porque se o conceito decidadania (e isso vai como uma provocação e eu acho queesse é um grande tema para ser debatido aqui), se nóscontinuamos entendendo o cidadão singularizando-o,estandardizando-o, tornando-o igual a todos em todos osespaços, tempos e território, nós estamos incorrendo emdefinições que nosso mundo (e nós historiadores não estamosà parte dele, nós somos esse mundo) não aceita mais. Ou seja,estaríamos nos contrapondo, em alguma medida, à opçãocontemporânea pela diferença, pela diversidade, seja elaconflituosa ou não, isso importa pouco. Mas o elementocentral do nosso entendimento de mundo hoje não é asingularidade, é exatamente o contrário. E o grande desafiopara nós hoje é dar conta de entender isso no passado e nopresente. Por isso, nosso exercício temporal de ir e vir. Maseu acho que me distanciei um pouquinho da sua pergunta.Sobre a questão da mestiçagem. Exatamente por isso, esseconceito maldito do século XIX, que é um conceito que nopassado estava atrelado à idéia de eugenia, à idéia de hierar-quia racial, à hierarquização do mundo entre os mais evolu-ídos e os menos evoluídos. Esse conceito maldito da

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mestiçagem toma outra dimensão no final do século XX. Nãose trata do mesmo conceito do século XIX, assim como nãose trata do mesmo conceito de cultura do século XIX. Novoscontextos, novas indagações, novas respostas! Houve umarevisão, uma releitura, uma remodelação desse conceito.Então, esse conceito de mestiçagem ainda é visto de formadesconfiada por muitas pessoas, ele causa muita polêmica, aspessoas, em geral, pensam em mestiçagem, nas áreas deCiências Humanas, sobretudo, e a primeira reação é, quasesempre, “torcer o nariz”. Mas mestiçagem é, na verdade,mais que um conceito, é um sentimento, é uma prática, é umacategoria antiqüíssima. Voltemos a Plínio e encontraremos adefinição do que é híbrido e que diferencia o mescladodaquilo que não é mesclado, aquilo que é original, daquiloque não é original, aquilo que é genuíno, daquilo que não égenuíno. Ora, quando nós entendemos isso, nós entendemostambém por que todos esses conceitos são conceitos que nãopodem ser utilizados da mesma maneira, de forma estática,em qualquer tempo, em qualquer espaço, em qualquer mo-mento. Eles também variam, eles também são construídoshistórica e culturalmente. Achei ótima a sua pergunta, por-que me possibilita falar sobre isso aqui claramente: aocontrário de um número grande de críticos recentes, sobreessa história das mestiçagens, que costumam dizer “essepessoal que quer mexer com mestiçagem, esquece que existeconflito” (como se fôssemos ingênuos historiadores iniciantes)esquecem também que mestiçagem não é uma modahistoriográfica recente. Mestiçagem e hibridação são práti-cas antiqüíssimas, são conceitos igualmente antigos, anteri-ores à Bíblia. E têm explicações e usos distintos durante todaa trajetória dos homens em sociedade, porque estão atreladosà distinção do eu e do outro. É claro que nós chegamos aoponto. O ponto central é esse: distinguir o eu do outro. O queestá comigo do que não está comigo. Haveria outros tipos derelação de poder e de relação política mais latentes que estes?Então, essas críticas simplórias que eu vivo escutando: “ah,não tem conflito, esqueceu do poder, não sei o quê”, é umdiscursozinho viciado, igualmente simplório e que denuncia

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grande desconhecimento teórico e historiográfico. Não estoudizendo que todas as críticas são assim, todos os críticos sãoassim, mas boa parte é. Demonstra um desconhecimentocompleto sobre a discussão historiográfica, enfim sobre asperspectivas que vêm revendo os conceitos e seus usoshistóricos. Passado não é estático, passado é sempre umaversão feita no presente. Os grandes historiadores francesesdo início do século XX já diziam isso. Não existe história dopassado. Nenhuma história é do passado, toda história éhistória do presente. O que se faz é no presente. Então, é bomque a gente tenha isso sempre mais claramente, e é bomtambém que esse programa, que está sendo gravado e seráretransmitido pela TV, tenha uma circulação maior, porquegostaria que todo esse falatório conseguisse, pelo menos,plantar uma sementinha de curiosidade naqueles que estãoescutando. Mas para os especialistas e para os que estãoestudando, isso é extremamente importante, porque isso é adefinição do próprio campo de trabalho que nós temos hoje,que é o campo da História. É, também, uma definição maisclara para nós mesmos do que é o nosso trabalho, quecontinua sendo difícil, complexo, instigante. E fascinante, euposso garantir isso daqui da posição de historiador. Comrelação à sua segunda pergunta, eu custei a entender, mas meparece que o que você está querendo me perguntar é se nadocumentação dos séculos XVIII e XIX existe uma termino-logia que pudesse ser tomada para identificar aquelas pesso-as que naquele momento foram tomadas como marginais,porque essa palavra, creio, não era empregada naquele mo-mento. Bem, existe sim, existe uma plêiade de termos queeram utilizados, desde plebe, povo, malta. Aí no século XIXfica muito mais clara a idéia de vadiagem, então eram osvadios, escória... tem um enorme conjunto de termos utiliza-dos. Agora, o que é mais importante para isso é lembrar quesão termos supostamente utilizados, mas na perspectiva dequem os registrou nos documentos. Se você pudesse voltarno tempo e fazer uma entrevista com essa “escória”, com a“plebe”, com os “vadios”, com os escravos, e perguntasse:você é vadio? você é “coisa”? você é “malta”?, certamente

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você constataria variações em relação ao tipo de resposta queficou registrada por conveniência ou convicção. Muito cui-dado com isso! São formas de distinção, assim como amestiçagem o foi. Muitas vezes, as próprias identificaçõesde mestiço, por exemplo, eram termos pejorativos edesqualificadores. Há documentos que te mostram clara-mente como um pardo xinga o outro de mulato, ou o contrá-rio. Xingar: “você é um pardo!” é um desmerecimento, é umadesclassificação a um pardo, tendo sido falado por ummulato. Ou então diz assim: “minha filha se casará, mas écom homem branco”, embora fosse mulata. Ou então, parate dar um exemplo para encerrar isso aqui, um exemploconcreto, o testamento do Bazílio Brito Malheiro do Lago,que foi um dos delatores da Inconfidência Mineira. Eleescreve seu testamento no comecinho do século XIX. Essetestamento é um texto fascinante em vários aspectos, mas oque eu quero te dizer, ao te responder, é que em determinadomomento ele escreve o seguinte (estou reproduzindo livre-mente, claro): “... porque a população toda me odeia...porque eu tenho medo de morrer assassinado”, isso, escre-vendo diretamente ao governador de Minas Gerais e testa-mento não era documento que se escrevesse para governa-dor, mas Bazílio o faz exatamente diante da situação particu-lar na qual se encontrava. Então, ele escreve que “... apopulação me odeia, essa gente do Brasil me odeia, e a meufilho também...”, dá todos os dados e no final ele registra: “...e peço que o meu filho, embora tenha menor idade, seja meutestamenteiro, porque tem condições de o ser, mesmo sendomenor e tendo como único defeito ser filho do Brazil”.Então, essas coisas são todas relativas. O “ser filho doBrazil” era o pecado original, era preciso purgar isso. Assimcomo o mestiço o foi diante do branco, o pardo o foi diantedo mulato e por aí vai. Daí a relatividade desses usos e dessestermos no passado e agora. E é por isso que eu não mecontenho em observar que estou aqui, falando tudo isso,enfocando as mestiçagens na formação da população dasMinas Gerais, logo no dia em que o Obama foi anunciadovencedor das prévias eleitorais e como o primeiro negro que

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poderá vir a ocupar o cargo de presidente dos EstadosUnidos: ele não é negro, pelo menos em nossa perspectivahistórica. É um mulato, filho de pai negro e mãe branca. Issonos demonstra como essa questão não é só uma questão malconhecida, mal tratada, enfim mal cuidada entre nós, queestamos aqui, ou na Academia ou entre os historiadores. Issoindica a extensão do “estrago” que a eugenia do século XIXe do início do século XX nos causou.

O Sr. Márcio Santos – Ouvindo você falar, veio à minhamente a relatividade dos termos, e essa era uma pergunta queeu tinha para você, e você ao longo das próprias perguntas foiencaminhando. Hoje para o IBGE, nós somos quatro grandesgrupos, brancos, negros, amarelos e pardos, e pardos épossivelmente a maior parte da população brasileira.

O Prof. Eduardo França Paiva – E isso depois de umaexperiência riquíssima, que ficou conhecida internacional-mente, metodologia aplicada intencionalmente, que o IBGE,muito corajosamente, fez, porque em momento algum deixoude ter critérios muito científicos, que optou pela auto-definiçãopor parte dos entrevistados. E o que aparece a partir dessaauto-definição são centenas de termos com os quais as pessoasse definiram: chocolate, amarelinho, café com leite, cor demanga, e por aí vai. Era mais ou menos o que existia tambémnos séculos XIV e XV, na Península Ibérica, ou no século XVI,no México ou no Peru, ou nos séculos XVII, XVIII e XIX, noBrasil. Para vocês terem uma idéia sobre a confusão que issoé, se eu perguntar aqui o que é mameluco, provavelmente, senão todos, a maioria vai me responder que é um tipo de mestiçobrasileiro que não se sabe se é mistura de índio com negro, ouíndio com branco. Mameluco é uma palavra que vem do árabe.Eram os escravos não muçulmanos dos sultões, desde o séculoVIII até pelo menos os séculos XVIII e XIX, que eramconvertidos ao Islã, preparados como guerreiros do sultão,formados na melhor das melhores tradições militares e religi-osas. Ganhavam alforria aos 21 anos (se não me engano),casavam-se com mulheres muçulmanas e passavam a fazerparte, como ex-escravos, da corte dos sultões mais poderosos.

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Houve ex-escravos mamelucos que se transformaram emsultões. Como é que isso chegou aqui para identificar a misturabiológica entre um índio e um branco ou um índio e um negro,um caboclo? Eu não sei, mas isso, no mínimo, coloca muitasdúvidas e nos obriga a pensar e perceber o seguinte: não dápara falar de história do Brasil, como se fôssemos uma ilhaisolada no mundo. Não é, nunca foi e não vai ser. Secontinuarmos fazendo história nacional, restrita às fronteirasnacionais, estaremos fadados a sermos esquecidos pelo restodo mundo, guardado algum exagero de minha parte! Porquenão dá para falar de história do Brasil ilhado. Para entender oque é que foi a mestiçagem no Brasil, que é o que nós somosaqui e agora, é importante retomar a Jihad islâmica do séculoVIII, para percebermos como os experimentos culturais ebiológicos foram gestados, como passaram à Península Ibéricae vieram ecoar nas Minas Gerais. Então, é isso mais ou menos.

A Sra. Vera – Eu trabalho com a Deputada Gláucia Brandãoe sou graduada em História. O senhor passou aí pelo negro,pelo preto, pelo mestiço e tudo e falou uma palavra, que naminha formação ficou em branco, que é o cabra. Eu gostariaque o senhor especificasse melhor, que eu acho que tem ummonte de gente aqui que está com essa dúvida.

O Prof. Eduardo França Paiva – Cabra, não é?

A Sra. Vera – É. Porque hoje você escuta o termo cabra, masnaturalmente não é a mesma coisa.

O Prof. Eduardo França Paiva – Não é o cabra que aparecena novela ou nos romances: “Oh, seu cabra!” Mas esse cabra...não é exatamente, mas na origem me parece ser. A origempode ser. O cabra que a gente entende como o mestiço é mistode branco e índio, que é o mameluco, ou de preto e índio, nãoexiste uma definição única. Mas esse cabra é na origem, muitopróximo do que na Península Ibérica era chamado de cabrón,que é um xingamento, que é pejorativo, que vai virar no séculoXIX, e no início do século XX, no Rio de Janeiro principal-mente, cabrocha e que no nordeste vira cabrito. A coisa éfascinante e está aí para ser estudada. Isso eu estou falando

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com toda a convicção. Eu estou preparando agora um dicioná-rio, que é uma loucura, uma loucura para o resto da vida, masque vai se chamar Dicionário Histórico das Mestiçagens nosMundos Ibéricos, trabalho conjunto de uma equipe daqui daUFMG e outra da Escuela de Estudios Hispano-Americanosde Sevilla, além de uma professora francesa. Nós nos juntamose vamos organizar essa loucura que é fazer esse dicionário.Cabra é termo que, certamente, constará no Dicionário, mes-mo porque, a animalização do outro foi uma constante nessahistória.

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Resumo: O objetivo do texto é refletir sobre duas questõesfundamentais à história da formação territorial em MinasGerais: o que explica, no começo do século XVIII, a antece-dência na formação do “urbano” em relação ao “rural”; e o quemarca a profunda alteração na dinâmica da produção doespaço na região, na passagem do século XVIII para o XIX. Adiscussão está organizada em três partes distintas: 1) umareflexão teórica sobre os significados do urbano e do rural; 2)a discussão da formação inicial do espaço em Minas Gerais; e3) a diferenciação espacial entre os séculos XVIII e XIX.

Palavras-chave: Urbano, Rural, Minas Gerais, Diferencia-ção Econômica.

Abstract: The aim of this paper is to discuss two mainquestions on the history of territorial formation of MinasGerais: what explains that in the beginning of the 18th centurythe “urban” has preceded the “rural”; and the deep changes inthe production of the space between the 18th and 19th centuriesin the region. The discussion is organized in three parts: 1) a

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ALEXANDRE MENDES CUNHA*ALEXANDRE MENDES CUNHA*ALEXANDRE MENDES CUNHA*ALEXANDRE MENDES CUNHA*ALEXANDRE MENDES CUNHA*

* Doutor em Histó-ria, com Pós-Douto-rado pela Universi-dade Federal de Mi-nas Gerais. Profes-sor do Departamen-to de Economia daFaculdade de Ciên-cias Econômicas daUFMG e pesquisadordo Centro de Desen-volvimento e Plane-jamento Regional –Cedeplar – da UFMG

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 11, n. 16, p. 57-70, jan./jun. 2009

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theoretical reflection upon the meaning of urban and rural; 2)explorations on the beginning of the spatial formation in MinasGerais; and 3) the spatial differentiation between the 18th and19th centuries.

Keywords: Urban, Rural, Minas Gerais, EconomicDifferentiation

Para se tratar do tema “O Urbano e o Rural em MinasGerais”, um bom caminho é começar por duas idéias essenci-ais, duas idéias que não deixam de incluir uma certa polêmicahistoriográfica, à qual também vale aqui a referência.

A primeira e mais fundamental dessas idéias é que, naformação espacial de Minas Gerais, o “urbano” antecede o“rural”. O sentido geral dessa proposição, entretanto, carecede algumas qualificações acerca dos significados de urbano erural, mas, já adiantando o fundamental, pode-se afirmar queem Minas é o espaço do urbano em si que vai produzir – maisdo que simplesmente anteceder – o espaço do rural, e não ocontrário, como via de regra se pensa o caminho da formaçãodas cidades e dos espaços urbanos na história.

A segunda idéia que será aqui destacada e que conferetemporalidade específica à discussão proposta é que, entre osséculos XVIII e XIX, tem-se uma alteração na dinâmica daprodução do espaço na capitania. Essa alteração vai se dar daseguinte maneira: o urbano vai deixando progressivamente deser a força que induz à diferenciação espacial, enquanto orural, que ganha autonomia substantiva, vai passando a de-mandar, na sua expansão, a centralidade citadina. Nisso é quese explica a questão aparentemente paradoxal que este peque-no texto visa esclarecer: a de que, na passagem do século, tem-se tanto a retração (poder-se-ia mesmo dizer decadência) dourbano, enquanto forma socioespacial específica, quanto aprogressiva multiplicação de núcleos citadinos em certas áreasdo território mineiro.

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Para esclarecer essas questões, o texto se organiza emtrês partes. Primeiro, uma discussão um pouco teórica, aindaque sucinta, acerca do que é o urbano e das especificidades eimplicações do tratamento que aqui se dará ao termo. Naseqüência, o tema da formação em si do espaço em MinasGerais, desde os primeiros descobertos do ouro. Finalmente,o processo de diferenciação espacial entre os séculos XVIII eXIX, na dinâmica mesma dessa produção do espaço em umapassagem de século em tudo fundamental para a história deMinas. A viragem do século XVIII para o XIX, justamente porser momento pouco estudado na historiografia, inclui umasérie de questões que carecem ainda de tratamento maissubstantivo. O que logo se pode adiantar é que, em se tratandode um período de transição, o final do século XVIII e a entradano século XIX incluem questões novas, entre as quais asalterações políticas, o reposicionamento das atividades econô-micas, as mudanças na administração colonial e a conjunturaem si de ruptura com o sistema colonial a partir da vinda dafamília real portuguesa para o Rio de Janeiro. Essas questõesfazem desse um momento de intensas transformações, que nãose pode abordar sem a referência a um recorte temporalbastante amplo. Tudo isso, obviamente, traz uma série deimplicações para a transformação do espaço mineiro que,mesmo não havendo como discutir em profundidade aqui,compõem um pano de fundo imprescindível para a reflexãoque ora se apresenta.

***

O que é urbano? É importante colocar essa questão, porum lado, sob um ponto de vista teórico e, por outro, sob umponto de vista estritamente prático. Trata-se de uma questãomal compreendida muitas vezes. O urbano pode ser entendidorigorosamente como uma referência, por exemplo, a umdeterminado nível de concentração populacional em um certoespaço, e é exatamente esse o significado que na maior partedas vezes se dá ao termo. Da mesma forma, ocorre a referênciaao “urbano” como indistinta da referência à “cidade”. Ourbano no sentido que se vem tratando aqui é, por sua vez, uma

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expressão que mais se aproxima do sentido fundamental de“vida urbana”. Relaciona-se, dessa forma, à especificidade daconcentração de serviços, de processos, de caminhos, deencontros, de idéias, de possibilidades, enfim, que o espaçourbano sintetiza e oferece. É nesse sentido que o século XVIIIem Minas Gerais foi muito estudado e é nesse sentido que épossível compreender uma série de processos culturais, soci-ais e políticos próprios desse século na capitania. Faz-se aquireferência, por exemplo, ao barroco mineiro, às transforma-ções políticas, como as associadas ao movimento da Inconfi-dência, etc.

Tudo o que se pode associar à vivência da urbanidadenas vilas do ouro mineiras na segunda metade do século XVIIIdecorre em larga medida dos encontros próprios da vidaurbana, desde a complexificação da economia, gerandoadensada estrutura de serviços e mobilizando recursos para oseu abastecimento; passando pela conformação de um tecidosocial com posições mais variadas, com substantivas diferen-ças em relação ao binômio senhor x escravo; até a conforma-ção de projetos políticos dissonantes aos horizontes do empre-endimento colonial ou, ainda, da gestação de uma paisagemartística e cultural significativamente nova e exuberante aosquadros da América.

Essa orientação geral apóia fortemente a leitura dourbano – e do rural – aqui desenvolvida, na perspectiva de queos processos e práticas sociais, culturais, econômicos, políti-cos, etc., não são elementos que simplesmente se desenrolampor sobre uma base espacial dada. Muito contundentemente,entende-se que o espaço é muito mais que um tipo de “pano defundo”. Trata-se de uma espécie de ator, mesmo nos processossociais, influindo na vida cotidiana e “personificando-se” àmedida que suas formas são criadas e recriadas segundo asplantas do próprio devir do tempo social. Esse tipo de consi-deração alinha a presente reflexão com certas contribuições dageografia marxista contemporânea.1

Bem entendido, o urbano é menos um resultado – enisso um dado material – e mais um processo. Trata-se de uma

1 Ver especialmente:Edward Soja, Geo-grafias Pós-Moder-nas: a reafirmação doespaço na teoria crí-tica, Trad. Vera Ri-beiro, Rio de Janeiro,Jorge Zahar Ed.,1993; David Harvey,Social Justice & theCity, London, E.Arnold, 1976; e Mil-ton Santos, Por umageografia nova, SãoPaulo, Hucitec, 1978.

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realidade social composta, fruto da construção coletiva doespaço, sendo, portanto, indissociável da dimensão mesma davida cotidiana no ambiente citadino e das experiências e proces-sos materiais e simbólicos que a esta estão associados. É dessaforma que o urbano não se dissocia do que é a “vida urbana” ede tudo que certa dinâmica de encontros vem a significar, sejanas experiências pessoais, no ambiente cultural, na “vida men-tal” (como estuda Georg Simmel para o caso das metrópoles noalvorecer do século XX2), seja nos significados múltiplos paraa economia, para a demografia, etc.

É por conta disso que urbano, da forma que vai aquitratado, não se confunde simplesmente com a identificação doespaço citadino, sendo preciso ultrapassar a paisagem estáticado dado material da cidade para encarná-la de vida, de vidaurbana, alcançando nisso um processo efetivamente histórico.A crítica fundamental que se faz aqui a muito da historiografiaacerca das Minas no Dezoito e Dezenove não é tão-somente ade se identificar de forma direta cidades, ou vilas, com ourbano, mas, mais que isso, a de se atribuírem característicaspróprias das dinâmicas econômicas, sociais ou culturais de-correntes essencialmente da vida urbana, com seus encontrospotenciais, com sua diversidade e novidade, à simples existên-cia de qualquer nucleação. Se não se preocupa em verificardeterminadas sobreposições de processos coletivos queadensam população de forma regular e continuada, dinami-zando aí múltiplas interações, não se está falando de urbano.Mais do que o tamanho da nucleação, que é critério sem dúvidarelativo (ainda que de grande importância), é o dado dacontinuidade e regularidade da vida urbana, por todo o tempo,que se constitui em referência crucial para a especificidade dourbano e seus desdobramentos, tal qual aqui vai sendo tratado.

***

Para se tratar da questão da formação em si desseespaço mineiro, uma reflexão preliminar guarda interesse:existem diversos outros contextos na América Portuguesa emque a formação de vilas ou de cidades se deu por conta da

2 Georg Simmel, Thesociology of space,Bridge and Door, Themetropolis and mentallife in: Georg Simmel,Simmel on Culture:selected writings,David Frisby and MikeFeatherstone (eds.),London, SAGEPublications, 1997 /Idem, A metrópole e avida mental. In: OtávioGuilherme Velho(org.), O FenômenoUrbano, 2 ed., Rio deJaneiro, Zahar Edito-res, 1973.

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institucionalização do espaço do poder, em particular noséculo XVI e na faixa litorânea. O esquema é direto: a Coroaportuguesa funda a vila a partir de um ato político. O represen-tante do poder simplesmente demarca o espaço e institucionalizao poder, dando-se a partir daí a formação de uma nucleação eprogressivamente um processo de diferenciação daquele espa-ço e de produção de espaços complementares. Em MinasGerais isso, via de regra, não aconteceu. Os primeiros núcleosnão surgem diretamente da vontade da Coroa portuguesa, ouseja, não surgem da vontade manifesta do representante doRei. Também esses núcleos não surgem de um espaço já maisou menos diferenciado, um espaço onde existisse uma produ-ção de subsistência ou qualquer coisa do tipo e que, em suadiferenciação progressiva, passasse a demandar umacentralidade urbana.

O que acontece em Minas Gerais é algo interessantejustamente porque é diferente do resto das conquistas naAmérica Portuguesa, uma vez que aqui o espaço urbano em sisurge antes tanto da cidade política quanto do rural. Surge emfunção direta do espaço da mineração, ou seja, o que dáexistência a esse espaço urbano é efetivamente a mineração.Todo o afluxo populacional inicial para Minas Gerais dá-se emfunção da mineração e dá-se concentrado nas nucleações, enão disperso pelo campo.

Essas questões como um todo, mesmo que com acentodiverso, já foram de alguma forma apresentadas pelos estudi-osos das Minas setecentistas. Não obstante, a questão funda-mental, que inclui uma certa polêmica com a historiografia, éa seguinte: o surgimento desses núcleos tem na mineração umdado de organização do espaço. Insiste-se aqui na idéia de quenão foram nem a igreja, e nisso o espaço das capelas, nem ocomércio, e nisso o espaço das vendas, os responsáveis porfincar o espaço urbano, ou seja, por definir onde os núcleosiam existir e por dar a eles existência continuada. A versão deque, na confluência de vários caminhos para as minas, ou seja,as áreas de mineração, há um espaço que se torna o espaço dacidade, o espaço do urbano, porque é ali que vai ficar o espaço

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do comércio ou da sociabilidade ligada à religião, não encontracorroboração nas fontes documentais.3

As pesquisas sobre a formação desses primeiros núcle-os em Minas Gerais, das primeiras Vilas do Ouro, que estãosintetizadas em alguns de meus outros trabalhos, indicam queexiste uma curiosa superposição entre o espaço da produção eo espaço da reprodução da vida (ou seja, desses diversos outrosespaços: do comércio, da sociabilidade).

O urbano próprio da cidade mineradora, que se defineem Minas a partir das descobertas auríferas, é constituído pelasobreposição de processos distintos, mas complementares, deconstrução coletiva do espaço. Soma-se assim, de saída, o“chão da produção”, a mineração, ao “chão da reprodução davida material”, com toda a estrutura de comércio e serviços quese vai articulando em função da vitalidade da atividademineradora. Esses espaços vão se superpondo na construçãodos primeiros arraiais auríferos, sendo que a eles se somariamlogo os lugares da sociabilidade associada, por exemplo, àvivência religiosa no âmbito das irmandades laicas, assimcomo as estruturas próprias da institucionalização do poder,como a criação das vilas, o estabelecimento dos instrumentosde justiça, de manutenção (criação) da ordem e de organizaçãodo fisco, todos conformados sobre base espacial que pode serlida a partir desse momento como a sobreposição da “cidadepolítica” àquele espaço urbano.4

É interessante perceber que, de alguma forma, a ima-gem que a historiografia traduziu como a da formação doespaço em Minas é muito mais a imagem que só se define nofinal do século XVIII. Um exemplo é a imagem de Vila Rica(Ouro Preto), que no final do século XVIII era constituída deum núcleo populacional urbano ao redor do qual se dispunhamespaços de mineração, espaços esses que na época, entretanto,já estavam em decadência. Estudando os primeiros temposdesses núcleos, o que se verifica, por outro lado, é que esseespaço da mineração estava contido no próprio espaço dacidade, no entremeio de todas as coisas. E a explicação é muito

3 Alexandre MendesCunha, No sertão, olugar das minas: re-flexões sobre a for-mação do espaçocentral das MinasGerais no começodo século XVIII, Es-tudos Históricos, Riode Janeiro, v. 40,2007 e também Ale-xandre Mendes Cu-nha, Espaço, Paisa-gem e População:dinâmicas espaciaise movimentos da po-pulação na leituradas Vilas do Ouroem Minas Gerais aocomeço do séculoXIX, Revista Brasi-leira de História, v.27, 2007.

4 Alexandre MendesCunha, Roberto Luísde Melo Monte-Mór,A Tríade Urbana:construção coletivado espaço, cultura eeconomia na passa-gem do século XVIIIpara o XIX em Mi-nas Gerais. In: Anaisdo IX Seminário so-bre a economia mi-neira, Belo Horizon-te: CEDEPLAR/UFMG, 2000. v. 1.

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simples: as pessoas que acorriam a essas terras o faziam porconta da mineração e habitavam, portanto, onde existiam asminas, e não em outra parte. Esse espaço de produção ereprodução da vida, portanto, só tenderia a ter alguma estabi-lidade depois que a área já estivesse por completo minerada.

Existem vários exemplos dessas questões, como o casode Catas Altas. Sendo um dos núcleos originais desse período,com a sua fundação no ano de 1703, a cidade enquadra-seexemplarmente no que se trata aqui. Acompanhando, porexemplo, a formação dos primeiros espaços de culto religiosono núcleo, o que se verifica é que, nos primeiros sete anos deexistência do arraial, a capela original trocou de lugar nomínimo três vezes. A troca de lugar, entretanto, não se dá deforma aleatória, mas segue uma lógica muito simples. Começaem construção muito precária à beira do córrego onde estátambém o começo da atividade mineradora. Trata-se de umacapela construída com os materiais mais simples possíveis.Tratava-se efetivamente de uma construção móvel, que pode-ria deslocar-se à medida que aquele espaço fosse minerado. Osentido do deslocamento no morro é cada vez mais para cima,até o lugar definitivo.5

É possível reproduzir esse tipo de estudo não só para oespaço do culto religioso, mas também para o espaço docomércio e de outros serviços. Ou seja, no final das contas, épossível montar um quadro em que é a mineração que qualificaesse espaço, e é por conta da mineração que se tem estasuperposição de outros tantos espaços que vão compor onúcleo urbano. Fala-se aqui, portanto, vale insistir, de um certoconceito de urbano e da sua percepção prática na formação doespaço em Minas, conceito que não é simplesmente definidocom base no número de habitantes, mas no que esse urbanorepresenta em termos dos encontros e confluências próprios davida urbana. Definido pela multiplicação da oferta de serviçosprópria desse espaço, pela diferenciação do tecido social oupela dinamização da cultura, sendo que tudo isso tem a ver comuma série de questões que, ao longo do século XVIII, vãotornando-se mais claras dentro da sociedade mineira.

5 José de Lemos Go-mes, Informação dasantiguidades da fregue-sia de Catas Altas. In:Códice Costa Matoso;Luciano Figueiredo;Maria Verônica Cam-pos, Coleção das notí-cias dos primeiros des-cobrimentos das minasna América que fez odoutor Caetano da Cos-ta Matoso sendoouvidor-geral das doOuro Preto, de que to-mou posse em feve-reiro de 1749, & váriospapéis, Belo Horizon-te, Fundação João Pi-nheiro / Centro de Es-tudos Históricos, 1999.[2 vols.]

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***

Ao longo do século XVIII – avançando no argumentoe chegando à terceira parte do texto –, tem-se uma progressivadiferenciação do território mineiro. Esse espaço que surge emfunção da mineração vai logo demandar fluxos de abasteci-mento para as pessoas que primeiro ocuparam a região e queestavam naturalmente voltadas para a mineração. É nessesentido que o espaço urbano vai criando o espaço rural.

O começo do século – os primeiros anos do séculoXVIII – oferece uma série de exemplos de crises de escassez.Momentos em que a população inicialmente chegada aindanão dispunha de vias estabelecidas de abastecimento para osnúcleos urbanos, sendo exatamente isso que iria progressiva-mente promover a necessidade de produzir esses espaçoscomplementares de produção agrícola e pastoril e, com isso, aprodução em si do espaço rural. É possível, então, acompanharao longo do século XVIII a multiplicação progressiva dessesespaços e uma certa diferenciação e especialização deles noconjunto do território de Minas Gerais.

Esse processo conforma áreas que vão especializar-se,por exemplo, na produção, seguindo rotas muito mais antigas,anteriores mesmo à ocupação luso-brasileira desse território,em extensão à zona curraleira que desce da Bahia, acompa-nhando a rota do São Francisco. Ou ainda o sul de Minas, quevai adquirindo um outro perfil para além da mineração, denúcleos como São João e São José del-Rei, com perfil desdemuito cedo agrícola e pastoril.

Outro ponto polêmico que, não obstante, interessatratar é que, na passagem para o século XIX, tem-se umaalteração muito substantiva nessa trajetória – uma inflexãofundamental para o esclarecimento do conjunto dessa dinâmi-ca de formação-diferenciação do espaço mineiro. Trata-se doseguinte: a historiografia contemporânea sobre as Minas Ge-rais conseguiu, não sem muito esforço, demonstrar que oséculo XIX em Minas Gerais não foi um tempo de puradecadência econômica. A crise da mineração não jogou MinasGerais numa decadência econômica completa.

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O que passa a acontecer é muito mais uma reorientação,um reordenamento dessa economia, e demonstrou isso umasérie de pesquisas iniciada na década de 1980. É possível citardiversos nomes, começando pelos de Roberto Martins e AmílcarMartins, e o contraponto de suas constatações, com as pesqui-sas de Robert Slennes e, mais recentemente, Douglas Libby eClotilde Paiva. Ou seja, uma série de autores vai entrar nessadiscussão para demonstrar efetivamente que o cenário econô-mico do século XIX é muito mais vivo do que antes seimaginava. Porém, essas pesquisas todas não podem obscure-cer um dado muito importante: o de que a mineração efetiva-mente entrou em declínio. Os núcleos originais ligados àmineração entraram em decadência porque a atividade princi-pal desses núcleos entrou em declínio. Que tipo de decadênciaera essa? Não necessariamente uma decadência econômicaampla, mas uma decadência dessa vida urbana que empurravareorientações de conjunto. Evidência concreta disso é a perdade população por esses núcleos originais, essas vilas do ourooriginais, na passagem do século XVIII para o XIX.

O que se está querendo aqui enfatizar é que há uma fortediminuição da mineração do ouro nos últimos anos do séculoXVIII e primeiros do XIX. A atividade começa a efetivamenteentrar em decadência, diminuindo muito a sua importância noconjunto da economia, em comparação com as décadas de 60e 70 do Setecentos. Torna-se inescapável a verdade de que amineração era uma atividade em decadência aos olhos dosadministradores da época, e isso se articula diretamente àsperdas populacionais que vai sofrendo essa região central dasminas. Dá-se uma troca populacional, com crescimento emparticular do sul de Minas, crescimento esse que ocorre emfunção particularmente da atração das áreas ligadas àagropecuária, que no começo do século XIX teriam umincentivo particular, por conta justamente da vinda da famíliareal em 1808 e da necessidade de abastecimento da praça doRio de Janeiro, para o qual o sul de Minas será fundamental.6

O que está mudando é, enfim, o eixo dinâmico daeconomia, o elemento preponderante na organização e produ-

6 Alexandre MendesCunha, Tropa emmarcha, mesa farta:Minas Gerais e oabastecimento dacorte a partir de1808, Revista deHistória, Rio de Ja-neiro, v. 3, 2008.

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O URBANO E O RURAL EM MINAS GERAISO URBANO E O RURAL EM MINAS GERAISO URBANO E O RURAL EM MINAS GERAISO URBANO E O RURAL EM MINAS GERAISO URBANO E O RURAL EM MINAS GERAISENTRE OS SÉCULOS XVIII E XIXENTRE OS SÉCULOS XVIII E XIXENTRE OS SÉCULOS XVIII E XIXENTRE OS SÉCULOS XVIII E XIXENTRE OS SÉCULOS XVIII E XIX

ção dos espaços econômicos, da mineração para a agropecuária.O interessante, então, é que isso define que a economia, antesdinamizada por uma base (a mineração) que, como se argu-mentou anteriormente, é urbana de nascença, ficará cada vezmais ligada, a partir de então, à atividade rural. O argumentogeral aqui, portanto, é que se dá uma ruralização em Minas noinício do século XIX. Não obstante – e isso é um poucoparadoxal –, trata-se de um período também de expansão donúmero de nucleações urbanas ou, melhor dizendo, denucleações citadinas. Aumenta muito o número de vilas earraiais no conjunto desse espaço, em particular no sul deMinas. Contudo, isso não pode ser caracterizado como urba-nização, antes o contrário.

A idéia fundamental é que esses núcleos urbanos semultiplicam por conta dessa ruralização. A função principaldessas nucleações que vão surgindo ou se dinamizando é a deserem entrepostos para essa produção rural, o que bem secorrobora com os testemunhos da época.

Exemplo básico é o dos viajantes estrangeiros quepercorreram Minas Gerais a partir do início do século XIX. Empassagens diferentes de alguns de seus depoimentos, atesta-seque essas cidades novas que estão formando-se, essas vilas queestão surgindo, são na verdade vilas domingueiras. Vidaurbana efetivamente, nessas nucleações, seria algo próprio dofim de semana, sendo que ao longo da semana esses espaçossão, via de regra, extremamente vazios. É no fim de semanaque a população rural vai para a cidade.

O exemplo mais expressivo está nos relatos do natura-lista Auguste de Saint-Hilaire. Com a autoridade de quempercorreu quase todas as regiões das Minas, Saint-Hilaire tececonsiderações, em pontos diversos dos seus relatos, sobre oreduzido número de pessoas que residiam nas localidades demenor porte durante a semana, o que constitui um claro indícioda força do processo de ruralização que marca o território noinício da primeira metade do Dezenove. Percorrendo as terrasdo julgado de Araxá em 1819, comenta o viajante francês:

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Durante a semana a maioria das casas de Araxá ficafechada. Seus donos só ali aparecem aos domingos,para assistirem à missa, passando o resto do tempoem suas fazendas. Só permanecem nas cidades, nosdias de semana, os artesãos – alguns dos quaisbastante habilidosos –, as pessoas sem profissão,alguns comerciantes e as prostitutas. O que acabo dedizer aqui pode ser aplicado praticamente a todos osarraiais da Província de Minas.7

Não muito distante dali, no arraial de Patrocínio, refor-çaria a idéia:

Como sempre, as casas do arraial pertencem afazendeiros que só aparecem ali aos domingos. Osúnicos habitantes permanentes de Patrocínio sãoalguns artesãos, dois ou três modestos comerciantes,os vagabundos e as prostitutas.8

Alguns anos mais tarde, em 1822, outra impressãocoincidente é registrada por Saint-Hillaire acerca do arraial deAiuruoca, nucleação fundada no Dezoito, mas que àqueletempo respondia como nucleação de área rural importante,com relevância suficiente para, algum tempo depois (1834),ser elevado à condição de vila, mesmo sem traduzir qualquersignificância cotidiana no plano da vida urbana:

Construíram-na à ribanceira direita, um pouco aci-ma de seu leito, e compõe-se de cerca de 80 casas.Constituem elas três ruas, cuja principal é bastantelarga e paralela ao rio. A igreja paroquial ergue-sena extremidade mais elevada dessa rua, é pequena,sem sino e nada oferece de notável. Vêem-se alémdela uma capela e outra igreja, recentementeconstruída pela irmandade do Rosário e colocadanum morro que domina toda a cidade. Como quasetodas as aglomerações de Minas, parece muito pou-co habitada nos dias úteis. Torna-se, porém, prova-velmente muito mais movimentada nos domingos eferiados. Prova de que nem sempre vive tão deserta

7 Auguste de Saint-Hilaire, Viagem àsnascentes do Rio SãoFrancisco, Belo Hori-zonte, Ed. Itatiaia; SãoPaulo, Ed. da Univer-sidade de São Paulo,1974, p.130.

8 Idem, p.137.

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O URBANO E O RURAL EM MINAS GERAISO URBANO E O RURAL EM MINAS GERAISO URBANO E O RURAL EM MINAS GERAISO URBANO E O RURAL EM MINAS GERAISO URBANO E O RURAL EM MINAS GERAISENTRE OS SÉCULOS XVIII E XIXENTRE OS SÉCULOS XVIII E XIXENTRE OS SÉCULOS XVIII E XIXENTRE OS SÉCULOS XVIII E XIXENTRE OS SÉCULOS XVIII E XIX

quanto hoje é o fato de possuir algumas lojas bemregularmente sortidas, vendas e até mesmo umafarmácia. (...) Segundo o que me disse o cura, asconjecturas que formava ontem sobre a populaçãodesta cidade estão perfeitamente fundadas. Não éhabitada durante a semana senão por mercadores,operários e prostitutas. Mas, aos domingos e dias defesta, torna-se um lugar de reunião para todos osagricultores da comarca.9

Ou seja, o tema da ruralização na virada para o Dezenovenão pode ser entendido nem como reflexo de uma hipotéticatransformação no campo, provocada pela agropecuária – jáque as atividades agrícolas e pastoris já conhecem desenvolvi-mento na primeira metade do Dezoito –; nem, tampouco, comoalgo apartado da urbanização. Trata-se, sim, de um processoespacial particular, fruto da própria complexificação da baseeconômica, produzindo novas relações de centralidade; noentrelaçamento de urbano e rural, essa dinâmica franqueianovas idéias e imagens dos processos sociais e políticos emcurso nas Minas desse tempo.

Assim, o urbano, esse urbano que é produto da vidaurbana, não vai multiplicar-se no início do século XIX. Existe simum processo de multiplicação do número de núcleos citadinos doinício do século XIX; todavia, esse processo não pode serchamado de urbanização. O que se passa é, antes, uma ruralizaçãoque demanda a centralidade desses núcleos citadinos.

Que tipo de questão isso evoca? Parece-me que a questãofundamental é justamente a sugestão de que uma série deprocessos sociais, políticos e culturais próprios do século XVIII,que são claramente produtos desse ambiente urbano, encontralimites à sua reprodução com a chegada do século XIX. Oexemplo mais evidente de todos é certamente o universo culturaldo barroco mineiro. A desarticulação desse universo cultural napassagem do século XVIII para o XIX está claramente ligada aessa ruptura com o universo urbano. O rural não é capaz deproduzir o tipo de encontro que é necessário para a vitalidadeprópria de um movimento artístico como o barroco mineiro. Poroutro lado, no século XIX há uma série de processos políticos

9 Idem, Segunda via-gem do Rio de Ja-neiro a Minas Geraise a São Paulo, 1822,Belo Horizonte, Ed.Itatiaia; São Paulo,Ed. da Universidadede São Paulo, 1974,pp.53-4.

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e sociais que colocam justamente o espaço do rural como oespaço de representação fundamental. No século XVIII a repre-sentação social era essencialmente a representação advinda doespaço urbano. Qualquer um que tivesse que se representarpublicamente teria que estar na sua casa da cidade. No séculoXIX, por outro lado, a fazenda já assoma como um espaço sociale político de representação que é extremamente importante. Épossível, por exemplo, encontrar aí subsídios para se pensar aquestão da gênese da tradicional família mineira, algo funda-mental para se interpretar o século XIX mineiro, mas em tudodistante do século XVIII.

Para concluir, talvez seja interessante retomar a questãoda “decadência econômica” nas Minas da primeira metade doséculo XIX. Essas pesquisas a que se fez referência anterior-mente, e que remontam à década de 1980, permitem efetivamen-te concluir que não houve decadência econômica alguma, nosentido geral de a economia como um todo entrar num profundomarasmo após o arrefecimento da mineração. Mas, por outrolado – e este é um dos pontos importantes da discussão aquiapresentada –, esse mundo urbano que marca o espaço vivido doséculo XVIII em Minas vai, sim, entrar em decadência. Asimagens dos viajantes estrangeiros que percorrem as vilas doouro, imagens do começo do século XIX, dão muitas vistas dadecadência naquele universo. Ou seja, elas não combinam coma imagem do fausto, a imagem do ouro que eles pensavamencontrar e que estão retratadas em outros textos, como oTriunfo Eucarístico da primeira metade do século XVIII – aísim, momento do fausto da mineração. Não só em meados doséculo XIX, mas já algum tempo antes, em algumas partesespecíficas do território, a dinâmica econômica em Minas passaa produzir novas imagens de vitalidade urbana, bastante diver-sas daquelas do século XVIII, ligadas às vilas do ouro e àmineração em si. É importante, todavia, demarcar bem essesperíodos e qualificar com propriedade as idas e vindas entre ourbano e o rural, para que se compreendam com clareza astransformações econômicas, sociais e espaciais que se proces-sam em Minas entre o século XVIII e o XIX.

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Resumo: A relação entre território e geopolítica pode serapreendida no processo de formação histórica de longa dura-ção. O território é o resultado do conhecimento, ocupação eposse, isto é, de estratégias de permanência de população eprocessos sociais vinculados a um centro de poder, ao longo dotempo, em um determinado espaço. Acompanhar o processoformador das Minas Gerais permite conhecer a geopolítica quefundamentou a construção da unidade político-territorial quese impôs, apesar da diversidade produzida pelas várias frentesde ocupação que avançaram sobre os sertões mineiros. Para seperceber essa construção concentrou-se a atenção sobre asações governamentais dirigidas ao Sertão do Rio Doce, porémnão desconsiderando outros sertões: Retiro da Mandioca (Sulde Minas), Farinha Podre (Triângulo Mineiro), São Francisco,entre outros.

Palavras chave: Geopolítica, Minas Gerais, Territorialização,Sertão, Diversidade Territorial.

Abstract: Territory and geopolitics relationships can beapprehended in the historical formation process of long duration.Territory is the result of knowledge, occupation and ownership

* Este texto foi redigi-do com base natranscrição da pa-lestra proferida noevento Formação doPovo Mineiro, que in-tegrou a programa-ção do Pensando emMinas da Escola doLegislativo da As-sembléia Legislativade Minas Gerais. Tra-ta de uma reflexãoexploratória, cujabase documental seencontra na obra Ser-tão do Rio Doce, quepubliquei pelaEDUSC/Instituto Ter-ra/UNIVALE, em2005.** Doutor em HistóriaEconômica. Profes-sor Titular e Coorde-nador do Programade Pós-Graduaçãoem Gestão Integra-da do Território daUniversidade Vale doRio Doce – UNIVALE

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 11, n. 16, p. 71-88, jan./jun. 2009

TERRITÓRIO E GEOPOLÍTICA NASTERRITÓRIO E GEOPOLÍTICA NASTERRITÓRIO E GEOPOLÍTICA NASTERRITÓRIO E GEOPOLÍTICA NASTERRITÓRIO E GEOPOLÍTICA NASMINAS GERAIS DO SÉCULO XIXMINAS GERAIS DO SÉCULO XIXMINAS GERAIS DO SÉCULO XIXMINAS GERAIS DO SÉCULO XIXMINAS GERAIS DO SÉCULO XIX*****

HARUF SALMEN ESPINDOLAHARUF SALMEN ESPINDOLAHARUF SALMEN ESPINDOLAHARUF SALMEN ESPINDOLAHARUF SALMEN ESPINDOLA**********

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meaning strategies of population permanence and social processlinked to a central power, as time passes, in a determinatespace. To follow the formative process of Minas Gerais allowsus to know the geopolitcs that constitute the fundamentals ofthe construction of the political and territorial unity taht cameto be predominant, in spite of diversity caused by the numerousoccupation fronts that extended over the “sertões” of this state.To clarify this construction, attention was placed over gover-namental actions directed to the “Sertão do Rio Doce”, andtaking in consideration, on the other side, other “sertões” suchas the “Retiro da Mandioca” (south of Minas), “FarinhaPodre” (region of the “Triângulo Mineiro”), “São Francisco”,and many others.

Keywords: Geopolitcs, Minas Gerais, Territorialization, “Ser-tão”, Territorial Diversity.

Minas Gerais e a mineiridade são resultados de umprocesso formador do território, cuja origem se encontra noséculo XVIII. Pensar Minas Gerais é tratar de sua constituiçãocomo espaço particularizado e singularizado, como povo eidentidade cultural, enfim como território e territorialidade:sentimentos de pertencimento, instituição do ser e estar nomundo. A consolidação do território se deu no século XIX, apartir da construção geopolítica que lhe delimitou e definiu umespaço.

O espaço geográfico de Minas Gerais, essa representa-ção por meio do mapa, nos remete ao espaço como configura-ção e organização produzida pelos processos sociais no decor-rer do tempo; logo, nos dirige para a história. A produçãohistórica do território mineiro é o resultado e, ao mesmotempo, o fator gerador da regionalização que caracterizaMinas Gerais como unidade na diversidade, isto é, são muitasas Minas Gerais, mas toda ela é “meu país”, “minha terra”,“meu lugar”. Como diz o poeta: Minas são várias; Minas

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patriazinha; Minas é segredo antigo, milenar. Essa é a condi-ção da mineiridade: a diversidade.

Minas Gerais nos remete à história como caminho paraentendermos a construção de uma unidade frente a tantasdiferenças: de clima, relevo, condições hidrográficas efitogeográficas, de dinâmicas socioeconômicas distintas, en-tre outras. Atravessar Minas Gerais de Leste para Oeste e deSul para Norte é deparar ao longo da estrada com paisagensdiversas, com condições socioeconômicas desiguais, umadiversidade significativa e forte. Entretanto, conseguiu-searticular a unidade territorial que caracteriza Minas hoje.

Em alguns momentos houve propostas de separação,como a de desmembramento da região de Minas Novas, noséculo XIX, ou de separação do Triângulo Mineiro, no séculoXX; mais recentemente propuseram criar o Estado do Rio Doce,uma idéia extemporânea que apareceu na imprensa de Governa-dor Valadares. Essas propostas foram apenas ensaios, idéias quenão foram adiante e ficaram sem repercussão na história. Háuma condição identitária forte, que corrobora as forças políticasna manutenção das argamassas que juntam as várias partesformadoras das Minas Gerais. Daí é importante se perguntarsobre a formação geopolítica que produziu o território.

O ponto de partida é o princípio do uti possidetis, quemtem a posse tem o domínio, que caracterizou a estratégicageopolítica seguida pela colonização lusitana na América.Essa orientação permitiu construir o território brasileiro muitoalém do Tratado de Tordesilhas. Na imensa extensão daAmérica e frente à escassez de homens e mulheres paracolonizar os pontos estratégicos, espaços foram ocupados e,dessa forma, foi possível reivindicar as terras vazias entre ospontos ocupados. Esses vazios eram chamados de sertões, queeram muitos e bastante diferente uns dos outros.

A constituição das Minas Gerais deu-se no interior dossertões, na cordilheira central que formava a zona de transiçãoentre as formações florestais, o cerrado e a caatinga. Nessemaciço se formou o rosário de cidades mineradoras, centros de

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“civilização” separados do mar por grandes extensões deflorestas tropicais, chamadas sertões intermédios ou sertões doLeste. As Minas logo foram distinguidas das Gerais, quepassaram a referir-se aos muitos sertões que se espraiavam portodas as direções, tendo como contraponto os núcleos urbanosinterligados por caminhos conhecidos e trafegados que forma-vam o eixo central: o Sertão do Retiro da Mandioca, no sul deMinas, o Sertão da Farinha Podre, atual Triângulo, o Sertão deSão Francisco, o Sertão do Cuieté e o Sertão dos Arrepiados,no leste, entre outros. Aqueles que ocupavam os sertões, apartir desse centro, ficaram conhecidos como geralistas.

A rigor, pela carta de doação de Vasco FernandesCoutinho, expedida em 1534, as terras de Minas Gerais perten-ciam ao Espírito Santo, mas ninguém reclamou esse direito noséculo XVIII. Nos séculos seguintes ocorreram algumas dispu-tas, porém quase sempre para conter o movimento mineiro nosentido do litoral. O estudo sobre a ocupação dos chamadossertões intermédios, que separavam as duas capitanias, permitecompreender o que denomino de geopolítica mineira.

Quando o Marquês de Pombal assumiu, ele deu ordemexpressa aos governadores para conhecerem, ocuparem eexplorarem os sertões. O Conde de Valadares, Dom José Luísde Meneses, que governou Minas Gerais entre 1769 e 1773,recebeu essa ordem. Ele se voltou para a região do Rio Doce,cuja ocupação foi considerada alternativa para se fazer frenteao declínio na mineração. Desde o século XVI existiam mitosque falavam de fabulosas riquezas, sendo o mais conhecido oda Serra das Esmeraldas, buscado por diversas expediçõesentre Fernandes Tourinho e Fernão Dias Paes. Esses mitosretornam no último quartel do século XIX, e o olhar dasautoridades volta-se para o Sertão do Rio Doce, na expectativade devolver a Minas uma idade do ouro, que estava seesvaindo. Nesse contexto, Rio Doce tornou-se uma categoriaque designava a vasta extensão de terras que separava oscentros mineradores do litoral, formada pelas bacias dos riosDoce, São Mateus, Mucuri e Jequitinhonha, bem como pelosafluentes Pomba e Muriaé do rio Paraíba do Sul. Como foi

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dito, antes era denominada genericamente de sertões do lesteou sertões intermédios.

Então houve um foco, a partir da década de 1760, emdireção às regiões do Pomba, Muriaé e Doce. Para garantir aocupação inicial foram enviados vadios e presos retirados dascadeias das comarcas de Ouro Preto, Serro e Sabará. Ointeresse cresceu no governo seguinte. Dom Antônio deNoronha (1775-1779) mandou fazer uma carta geográficacom a divisão das comarcas, pelo lado do rio Doce, naexpectativa de evitar conflitos quando as grandes riquezas serevelassem. A idéia de fazer um grande descoberto motivouessa iniciativa. Mas esse movimento, que no século XVIIIestava muito voltado para a busca de alternativas econômicaspara a crise do ouro, também é um movimento no sentidogeopolítico. Na carta geográfica os limites com o EspíritoSanto foram colocados muito além de onde estão hoje, poisficaram depois da serra que separa o Rio Guandu e o RioManhuaçu e até mesmo da Serra do Mar. Portanto, deixa oEspírito Santo somente com a faixa costeira.

O movimento intensifica-se a partir do governo de DomRodrigo José de Meneses, na primeira metade da década de1780. Ele vai pessoalmente comandar as investidas nos sertõesintermédios, permanecendo por seis meses nos sertões deArrepiados, região da Zona da Mata, e no sertão do Cuieté, noRio Doce. As ações se dividiram entre o trabalho de prospecçãomineral, instalação de quartéis, assentamento de colonos edistribuição de terras. Mas, não tendo achado minério precio-so, Dom Rodrigo acaba retornando a Vila Rica, com maláriae desiludido com o ouro do Cuieté. Todavia, ele deixouexplicitados os motivos para manter todos os presídios milita-res e assentamentos humanos: no futuro, além dos grandeshaveres que poderiam ser descobertos, a região ofereceriagrande potencial de exploração das matas, solos agrícolas efontes de metais menos preciosos como o ferro, entre outros.Nessa decisão encontra-se um direcionamento geopolítico,que será seguida pelos sucessores, de alargar os domínios deMinas Gerais na direção leste.

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Quando o Conde de Linhares, Dom Rodrigo de SousaCoutinho, assumiu como Secretário de Estado dos DomíniosUltramarinos e Marinha, na regência de D. João, fez do RioDoce uma prioridade para a Coroa, mas mudou odirecionamento estratégico. A iniciativa para a ocupação foitirada de Minas Gerais e transferida para o Espírito Santo.Entretanto, para conduzir a nova estratégia, nomeou ummineiro, Antônio Pires da Silva Pontes Leme, que assumiu ogoverno do Espírito Santo em 1800. Uma das primeirasmissões do novo governador foi elaborar uma carta geográficado Rio Doce e demarcar a divisa entre as capitanias do EspíritoSanto e de Minas Gerais.

A demarcação ocorreu em 1800, com a colocação deum posto de registro do lado mineiro e de um quartel do ladodo Espírito Santo (que deram origem às atuais cidades deAimorés/MG e Baixo Guandu/ES), nas confluências dos riosManhuaçu e Guandu com o rio Doce, respectivamente. O localdenominado Cachoeiras das Escadinhas tornou-se referênciapara limitar os avanços dos mineiros na direção do litoral. Esselugar já era conhecido pelos mineiros desde 1832, por infor-mação do Mestre-de-Campo Matias Barbosa, perseguidor dosbotocudos que atacaram localidades próximas a Mariana. Essehavia sido o ponto extremo das investidas do governador DomRodrigo Meneses nos sertões intermédios. A análise do localindica que Silva Pontes se fundamentou no terreno, natural-mente propício para o fim desejado. O marco ficou entre aconfluência dos rios Manhuaçu e Guandu, que distam um dooutro cerca de cinco quilômetros, separados por uma pequenaserra cujo topo serviu de linha divisória. Na foz do primeiro secolocou o registro de Lorena, em homenagem ao Governadorde Minas Bernardo Lorena; na foz do segundo foi instalado oQuartel de Souza, em homenagem a Dom Rodrigo de SousaCoutinho.

A carta geográfica, feita em 1800, que traz a linhadivisória, é muito interessante, porque altera completamente ocurso do rio logo acima dessa linha, indicando uma supostaignorância em relação ao curso médio e superior do rio Doce.

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Por que essa carta é tão defeituosa? Silva Pontes era matemá-tico e cartógrafo muito experimentado, tendo trabalhado nascomissões de demarcação das fronteiras do Brasil com oParaguai e com a Bolívia. Ele foi escolhido exatamente pelaexperiência adquirida durante o governo do Marquês dePombal; também conhecia outras cartas geográficas de Minas.A partir da foz, como se deu o levantamento de Silva Pontes,o Rio Doce tem uma direção leste-oeste até aproximadamentemetade do seu curso, quando faz uma curva de quase 90º paraassumir o sentido sudoeste. Na carta de Silva Pontes o rio fazuma curva de quase 180°, voltando para leste. Nesse movi-mento, desaparecem todos os sertões intermédios.

Isso é, no mínimo, curioso, se não for intencional, nosentido de preservar informações que eram desconhecidaspelos capixabas, que “andavam como caranguejos, arranhan-do o litoral”, para usar as palavras do Frei Vicente Salvador,referindo-se aos portugueses, em 1623. Enquanto os capixabasrecolheram-se ao litoral, o governador de Minas, Pedro MariaXavier de Ataíde e Melo (1804-1809), manteve as posiçõesexistentes no Sertão do Rio Doce, apesar dos custos financei-ros e das dificuldades existentes. Em 1806, o governadormineiro chegou a propor transferir para local mais próximo oposto de registro e o quartel instalados na divisa entre as duascapitanias, demarcada em 1800, porém essa posição originaltambém foi mantida. Em 1808 os mineiros retomaram oavanço sobre a região.

O resultado desse avanço, nos 160 anos que se segui-ram, foi expresso pelo ex-interventor do Espírito Santo JonasNeves (1943-45), quando proferiu seu discurso no SenadoFederal, em 1948, sobre a questão dos limites com MinasGerais. O discurso de Jonas Neves falava exatamente de umaforça que movia os mineiros, essa civilização montanhesa,incessantemente na direção do litoral, como se sentissemsaudade da época das caravelas, quando os portugueses sin-gravam os mares, como se sentissem saudade da liberdade dooceano. De fato, há esse movimento incessante dos mineirosa partir do último quartel do século XVIII, mas não é apenas

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em direção ao litoral. Esse movimento se deu na direção detodos os sertões que envolviam o núcleo minerador original.Esses sertões denominados de Gerais se contrapunham àsMinas, com suas cidades e caminhos conhecidos. Pode-seafirmar que o que conhecemos hoje como Minas Geraisresultou do progressivo avanço a partir dos centros mineradoresem direção aos sertões, ou seja, em direção à junção das Minase dos Gerais. Esse foi um movimento incessante de espraia-mento sobre o espaço, ato configurador e organizador doterritório.

Essa lógica foi reforçada no período de Pombal, com oobjetivo de integrar o índio à sociedade colonial, cujas instru-ções dadas aos governadores Gomes Freire, Morgado deMateus, Conde de Valadares e outros, fundamentavam-se nacompreensão de que a força e a riqueza consistiam principal-mente no crescimento do número de habitantes, bem como nacerteza de que se mandassem todos os portugueses para oBrasil, do continente e das ilhas, ainda seria impossível ocupartodo território.

Enfoco um pouco mais os sertões intermédios porqueexistiu um interesse prioritário nessa região na primeira meta-de do século XIX. D. João VI chega ao Rio de Janeiro emmarço e apenas dois meses depois, em 13 de maio de 1808,assina uma carta régia com a declaração de guerra ofensiva aosnativos do Sertão do Rio Doce, determinando a formação dedivisões militares para ocupar e controlar o território. Os 200anos da chegada da Corte lusitana foram alvo de comemora-ções oficiais, programas na televisão e reportagens especiaisem jornais e revistas, porém um dos atos mais significativos deD. João VI foi a decisão de 13 de maio. Pela primeira e únicavez em toda a história colonial portuguesa e do Brasil indepen-dente, uma porção do espaço, que a rigor fazia parte dosdomínios territoriais, foi tratada como objeto de conquistamilitar e os índios como outro povo.

A declaração de guerra implicou considerar o espaçocomo território, na medida em que a guerra existe como formade resolver pela força questões de disputas territoriais. Isso

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alterava a tradição colonial lusitana, que sempre viu o índiocomo elemento componente do processo colonizador, isto é,a lógica da dinâmica colonial portuguesa fundamentava-se naincorporação do índio. A guerra e violência contra os índiosestão presentes ao longo de toda história brasileira, porém noperíodo colonial se justificavam principalmente como respos-ta às “agressões” indígenas ou como combate às práticas deantropofagia. Esses dois elementos foram sistematicamenteatribuídos aos botocudos nas três décadas que antecedem àcarta régia de 13 de maio de 1808.

O termo botocudo foi uma atribuição dada pelos portu-gueses às diversas nações indígenas pertencentes ao troncolingüístico macro-jê, que dominavam as florestas das baciasdos rios Doce, São Mateus, Mucuri e Jequitinhonha. Botocudose torna uma categoria construída com imagens fortes: “terrordas florestas do Rio Doce”; “insaciáveis em carne humana”;“nação ferocíssima”; “formidáveis canibais”; “bárbaro”; “fe-roz”, entre outras. Para fazer frente às ameaças permanentes sepromovia a “guerra defensiva” por meio de quartéis militarescolocados nos limites entre as zonas povoadas e o Sertão doRio Doce, estabelecendo zonas fronteiriças com a presença deluso-brasileiros e de índios aculturados funcionando comotampão de defesa.

Com a declaração de guerra de 13 de maio de 1808, oíndio foi considerado inimigo a ser subjugado ou exterminadopela força das armas. Tanto isso é verdade que os comandantesdas divisões militares recebiam aumento de soldos, gratifica-ções e benefícios pelo número de índios eliminados e deranchos – aldeamentos indígenas – destruídos. Desse modonão mais se tratava de simples reação fundada no conceito daguerra justa, como o discurso oficial, até então, buscou preser-var, mas de uma mudança em relação à tradição lusitana, quehavia sido reforçada pela política pombalina. Essa mudança seexplica pela expectativa de sucesso de incorporação econômi-ca, em curto prazo, do Rio Doce, com base em uma concepçãoestratégica que considerou os grupos indígenas como princi-pal obstáculo a ser vencido.

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O contexto geral era de crescimento do mercado mun-dial, marcado pela expansão das exportações agrícolas e,especialmente, pela nova dinâmica capitalista industrial. Aeconomia vivia a fase de prosperidade, resultado do augecomercial do século XVIII, cuja centralidade na Grã-Bretanhafoi fundamental para a Revolução Industrial e o surgimento docapitalismo. Nesse contexto, Minas Gerais viveu o esplendordo ouro e deu a Portugal uma breve fase de proeminência,porém o último quartel do século XVIII deixa claro o esgota-mento dos veios auríferos. Os cronistas e memorialistas desseperíodo são recorrentes em anunciar a decadência de MinasGerais, provocada pela diminuição irreversível da produçãoaurífera. Entretanto, a historiografia recente demonstrou quenão havia uma decadência propriamente dita, mas umareconversão econômica, provocada pelo declínio da produçãodo ouro. Dois movimentos se apresentam nesse contextoregional: um processo de diversificação econômica e umaexpansão na direção dos sertões mineiros.

Para as elites mineiras, no entanto, havia o sentimentogeral de decadência, expressos pelos memorialistas e nosdocumentos oficiais. Para fazer frente ao declínio geral perce-bido e devolver a “idade de ouro” perdida, foi que se colocouum objetivo econômico fundamental para o Rio Doce: dar aMinas um acesso direto ao mercado mundial. A idéia de fazerdo Rio Doce um canal fluvial não era estranha à época, que viasurgir na Grã-Bretanha e em muitos outros países uma rede decanais interligando os centros industriais com o mercadomundial. Se analisarmos o mapa hidrográfico de Minas, vere-mos que o Rio Doce e seus afluentes formam um conjunto devias fluviais que permite o acesso a todos os importantescentros mineradores constituídos no século XVIII. Do pontode vista de seu traçado, ele era ideal para o objetivo, pois dariaacesso ao mar para todas as regiões economicamente ativas,entre São João Del Rei e Diamantina.

O objetivo das elites mineiras era ver uma “grandecompanhia” assumindo a navegação e a colonização do RioDoce. O Estado cuidaria de criar as condições para isso, por

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meio da conquista e liberação do território. O Estado cumpriusua parte no plano, porém a Companhia do Rio Doce, consti-tuída na Inglaterra em 1833, com participação de capital desócios brasileiros, nada realizou de concreto. Não entrarei nosdetalhes desse caso, pois o que nos interessa é saber que oabandono do projeto do canal fluvial, em 1843, não significouuma saída da região, da mesma forma que fizera o governadorDom Rodrigo Menezes, quando fracassou a sua investida noCuieté, sessenta anos antes.

A continuidade do movimento de avanço dos mineirospermite afirmar que existia uma estratégia de naturezageopolítica de alargamento territorial na direção dos sertões.Uma análise temporal de maior duração indica a persistênciadesse movimento desde o governo do Conde de Valadares,instalado em 1769. Mesmo no Império, época na qual oschefes do executivo mineiros mudavam com freqüência –governos que duraram apenas um ano ou dois governos em umúnico ano –, houve continuidade na política de ocupação dossertões.

Na primeira metade do século XIX, coube às setedivisões militares, cada uma denominada de Divisão Militardo Rio Doce (DMRD), cumprir o papel de agente do Estado,e de ser o próprio Estado na construção do território. A atuaçãodas divisões militares cobriu todo o Sertão do Rio Doce, quecorrespondia nesse momento às bacias vales dos rios Pomba,Muriaé, Doce, Mucuri e Jequitinhonha. A 2ª DMRD e a 3ªDMRD assumiram o controle da área que forma grande partedo atual território da Zona da Mata Mineira (microrregiões deManhuaçu, Muriaé, Ubá e Viçosa); a 4ª DMRD ficou na zonade fronteira entre as áreas povoadas e os sertões intermédios,abrangendo as atuais microrregiões de Ponte Nova e Itabira; a1ª e a 6ª DMRD receberam a missão de controlar o curso do RioDoce e ocupar uma extensa área, que hoje corresponde àsmicrorregiões de Ipatinga, Guanhães, Caratinga, GovernadorValadares e Aimorés; a 5ª DMRD, formada a partir do PresídioMilitar de Peçanha, assumiu os vales dos rios Suaçuí Grande,São Mateus e parte do Mucuri; a 7ª DMRD foi encarregada de

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todo o Vale do Médio Rio Jequitinhonha e de parte do Mucuri.Como se observa, as DMRDs cumpriram o papel de incorpo-rar a Minas Gerais uma grande extensão territorial.

As divisões militares atuaram em várias frentes: primeiroforam controladas as trilhas indígenas e os acessos fluviais;depois se abriram caminhos e estradas. A 3ª DMRD abriu aestrada que ligou Ouro Preto a Vitória, que, em grande parte,corresponde hoje à BR-262. A 2ª DMRD abriu a estrada queligou Rio Pomba a Campos dos Goitacases (RJ), passando pelaVila de Cantagalo – era conhecida como a estrada de Cantagalo.Nas suas circunscrições militares os comandantes se empenha-ram em garantir que fossem praticados os ritos – consideradoscivilizatórios – do batismo, do sepultamento e do casamento.Entre outras ações, eles abriram cemitérios devidamente consa-grados por padres, criaram povoados, distribuíram sesmarias,instalaram aldeamentos indígenas e abriram fazendas. Elesacumularam muitas prerrogativas de natureza militar, adminis-trativa e policial, além de fazer as vezes de poder judiciário. Elestambém assumiram o controle da política indígena: a DiretoriaGeral dos Índios de Minas Gerais ficou nas mãos de GuidoMarlière, comandante-geral das divisões militares, e nas cir-cunscrições militares as diretorias dos índios foram ocupadaspelos comandantes de cada uma das DMRDs.

A guerra ofensiva, declarada em 13 de maio de 1808, éabandonada em 1818, apesar de a revogação oficial ter ocor-rido somente em 1834. Na prática, as autoridades mineirasperceberam que guerra ofensiva não levara a nada: como fazerguerra contra um inimigo camuflado na floresta? A mudançafoi provocada pelo fato conhecido como incidente de Mombaça.Em 1817, um grupo de botocudos atacou uma propriedade decolonos estabelecidos no ribeirão Mombaça, área da 4ª DMRD,vitimando a família e destruindo as plantações. Ficou ameaçadaa frente de ocupação que avançava, a partir de São Domingodo Prata, para as margens do Rio Doce. Essa ação dos índiosmostrou a ineficácia da 1ª e da 4ª DMRD para manter os índiosafastados dos lugares povoados, pois permaneciam vaziosconsideráveis entre as unidades táticas. Portanto, a guerra

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ofensiva não resolvia o principal problema anteriormenteatribuído à estratégia defensiva, mantida até 1808: a facilidadeque os índios tinham de romper as linhas de defesa.

As primeiras críticas à tática da guerra ofensiva apare-ceram timidamente no Aviso de 11 de dezembro de 1811, quecontém reflexões a respeito da civilização dos botocudos e daatuação das divisões do Rio Doce, especialmente em relaçãoà 7ª DMRD, estacionada no Vale do Jequitinhonha, ondeprimeiro avançou o contato e a convivência com gruposindígenas. Esse aviso recomendava ao comandante da 7ªDMRD continuar na amizade com os botocudos mansos,porém mandava continuar a guerra contra os botocudos bra-vos. Em 1817, Saint-Hilaire esteve com os botocudos doJequitinhonha, no quartel-geral da 7ª DMRD e, posteriormen-te, incluiu no seu livro a sugestão para que eles fossemutilizados para intermediar a paz com os do Rio Doce, porquejá se haviam acostumado com os portugueses. Todavia, pro-põe que

se utilizassem meios diferentes dos empregados nasétima divisão, em que ninguém procura inculcar noshomens dessa nação os verdadeiros princípios da reli-gião cristã, onde recebem os piores exemplos, e onde ascrianças, arrebatadas a seus pais, são freqüentementecondenadas a uma espécie de escravidão.

O incidente de Mombaça desencadeou uma série deprovidências com objetivo de inspecionar as divisões militarese avaliar os resultados alcançados nos dez anos de guerraofensiva. Em 1820 o governo provincial reconheceu formal-mente que haviam fracassado “os meios aplicados para seconseguir a conquista e redução dos gentios, que infestam asmatas do Rio Doce...”. A culpa pelo fracasso foi atribuída aosalferes comandantes das divisões militares, acusados de faltade competência e de zelo no desempenho das funções. Outracausa para o fracasso, na opinião do governador Dom Manoelde Portugal e Castro (1814-1821) foi a falta de coordenaçãoentre os comandantes divisionários. O governo determinou ofim dos atos hostis para “remediar as animosidades” dos índios

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e, ao mesmo tempo, desencadeou um processo de atração daspopulações nativas por meio da “catequese e civilização”.

A política tradicional foi retomada e o índio voltou a serconsiderado parceiro e partícipe do processo colonizador. Issosignificava incorporá-lo como agricultor português – não seusava ainda a designação de brasileiro –, isto é, um cristãotemente a Deus e obediente à monarquia. O casamentointerétnico e o combate à prostituição tornaram-se centrais nanova orientação dada às divisões militares, inclusive comdistribuição de terras, regalias e isenções para os soldados quese casassem com índias. Dessa forma, os militares que forma-vam famílias se tornavam proprietários rurais.

Houve um grande esforço para produzir umaterritorialidade fundamentada no ideal civilizatório que abar-cava, além da sujeição ao doce julgo da lei, o respeito àpropriedade privada e a adoção do comércio como práticacorriqueira. O resultado dessa política é expresso pelo fato dea maior parte das atuais cidades e vilas terem se formado apartir dos quartéis, povoados e aldeamentos instalados pelasDMRDs. A distribuição espacial da rede de cidades que seconstituiu comprova a estratégia de domínio territorial seguidapelas divisões militares, a partir do controle dos acessos e dacirculação: os quartéis e assentamentos foram colocados nospontos de interseção dos caminhos terrestres e destes com arede fluvial, bem como nos locais de interrupção dos cursosdos rios por cachoeiras e nas confluências dos rios.

É de se admirar que, consideradas as condições daépoca, numa região de densa floresta e frente a situaçõesextremamente adversas, se tenha obtido um conhecimentoestratégico do terreno suficiente para sustentar o controleterritorial com um contingente de 458 militares, distribuídosem sete divisões. Isso somente foi possível porque havia umaorientação geopolítica fundada na máxima de Pombal: conhe-cer, ocupar e fixar, bem como pela natureza militar do proces-so, isto é, estratégia, procedimentos táticos, comando e disci-plina. O significativo é que a orientação geopolítica não tevesolução de continuidade e, portanto, atuou na incorporaçãodos sertões intermédios ao território de Minas Gerais.

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Houve diferenciação territorial na ocupação do Sertãodo Rio Doce, principalmente na segunda metade do séculoXIX, na medida em que se constituíram processos sociaisparticularizados, com o avanço da cafeicultura ao sul e dapecuária ao norte do Vale do Rio Doce. Esse que era o alvoprincipal do interesse oficial, em 1808, acabou sendo a últimazona a ser efetivamente colonizada. Várias razões explicampor que essa zona somente foi colonizada no século XX,inclusive questões de natureza ambiental, problemas de rele-vo, de clima e outros, tais como o de insalubridade. A regiãoera infestada pela malária, o que foi de fato uma grandebarreira, apesar de, no século XIX, atribuir-se ao índio botocudoa culpa pela dificuldade do avanço da colonização pela região.Na verdade, o grande impedimento foi a malária, somenteresolvido a partir de 1942 com os Acordos de Washington,mas essa é uma outra história. Essa região permaneceu comouma fronteira.

A dinâmica econômica do Vale do Jequitinhonha, quecorresponde ao médio curso do rio, foi definida pela entrada dapecuária baiana na segunda metade do século XIX. Na Zonada Mata, na primeira metade do século, com a abertura dasestradas para Vitória e para Cantagalo, houve uma intensifica-ção do povoamento com uma produção mais voltada para omercado interno. Sob essa base inicial houve o desenvolvi-mento da cafeicultura, que definiu o perfil regional no últimoquartel do século XIX. A dinâmica cafeeira da Zona da Matanão decorreu da expansão fluminense, mas decorreu do pro-cesso mineiro de expansão na primeira metade do século.

Desse processo de expansão surgiram os primeirosconflitos de limites entre Minas e Rio de Janeiro, envolvendoexatamente a região de Cantagalo e Leopoldina. Esses confli-tos serão resolvidos pela habilidade dos políticos mineiros e,principalmente, por sua influência no processo de construçãodo Império, no início do segundo reinado, no qual o Marquêsdo Paraná teve papel fundamental. Como Presidente da Pro-víncia Fluminense (1840-1841), embora fosse mineiro, defi-niu, por meio de uma portaria, o limite entre Minas e Rio deJaneiro. Isso gerou contestação por parte dos fluminenses,

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mas, logo em seguida, quando assumiu o Ministério do Impé-rio, conseguiu que o Imperador assinasse um decreto, em1843, confirmando esse limite. Ou seja, a injunção política foifundamental para essa definição.

Encontraremos as mesmas injunções políticas agindono interesse de Minas se recuarmos até o governo de GomesFreire (1735-36 e 1737-1752), quando da definição dos limitescom São Paulo. Gomes Freire usou a sua influência políticajunto ao Conselho Ultramarino e junto ao Rei para obter asupressão da Capitania de São Paulo e a sua anexação ao Riode Janeiro. Tornou-se, ao mesmo tempo, Vice-Rei e, conse-qüentemente, passou a governar São Paulo, reduzido à condi-ção de comarca. Colocado no centro do poder, ele estabeleceuos limites, ou seja, vê-se uma semelhança muito grande, apesarda diferença temporal de 100 anos, entre os dois fatos. Aestratégia geopolítica de fixação, ou melhor, de conhecer,ocupar e estabelecer um território, de dar um conteúdo aoespaço, era a base do princípio do uti possidetis. Nos dois casosmencionados, Minas podia se apoiar no fato, mais do que nodireito, de ter a ocupação efetiva do território.

Depararemos com a mesma lógica geopolítica se nosdeslocarmos para o Norte de Minas (Sertão do São Francisco): oConde Assumar, em 1720, define o limite de Minas com a Bahiano Rio Verde Grande, contrariando a posição do governador-geral e do bispado da Bahia. Esse limite se conservou até os diasatuais, apesar de todas as idas e vindas, ao longo dos séculos XVIIIe XIX, nos quais os baianos reivindicaram o direito por teremchegado primeiro. O suposto direito não prevaleceu frente aoprincípio do construído – “vale o que está feito” –, ou seja, oprincípio do ocupar e fixar, da permanência, que denominamos de“dar ao espaço uma territorialidade, um conteúdo”.

Essa lógica que é formadora das Minas Gerais expres-sou uma condução geopolítica de longa duração. Isso se deutambém com o Triângulo Mineiro, que por direito era deGoiás. Esse era um dos muitos sertões ocupado pelos minei-ros. Conhecido como Sertão da Farinha Podre, o Julgado doDesemboque foi ocupado pelos mineiros conhecidos como

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geralistas: boiadeiros, fazendeiros, posseiros, etc. A chegadade geralistas de forma mais intensa, a partir da década de 80 doséculo XVIII, deu início aos conflitos com as autoridades deGoiás, que alegavam o direito sobre o território. Os mineiros,porém, reivindicaram a posse efetiva, por terem desbravado,lutado contra os índios, enfrentado dificuldades, construído oscaminhos e estabelecido as lavouras e a pecuária. No final,prevaleceu a lógica da posse efetiva do território.

Em 1797 o Visconde de Barbacena, Antônio de Men-donça, nomeia Antônio Pamplona como mestre-de-campo (co-ronel), dando-lhe plenos poderes para fazer valer os interessesde Minas, expressos na reivindicação da Câmara de Tamanduáe da população de Araxá, dirigida à Rainha D. Maria, pedindo-lhe a incorporação às Minas Gerais. Esse processo adensou-sena medida em que cresceu o número de geralistas na região e, em1815, o governo cria a Comarca de Paracatu, a quinta de Minas.No ano seguinte o Julgado do Desemboque é incorporado àComarca de Paracatu. As definições de autoridades criaramuma estabilidade jurídica e social, que tiveram como conseqü-ência o adensamento populacional e econômico. Em 1818Uberaba contava 500 habitantes, mas, decorridos cinco anos,esse número havia saltado para dois mil. Em 1836 foi criada aFreguesia de Uberaba e, quatro anos depois, a Comarca erainstalada. O governo de Minas incentivou a ocupação por meioda distribuição de terras e da isenção de tributos, ou seja, estápresente a mesma orientação geopolítica de longa duração queencontramos no processo de ocupação dos vários sertões minei-ros. A chegada da estrada de ferro, vinda de São Paulo, e dapecuária zebuína, no final do século XIX, trouxe uma vinculaçãoestreita do Triângulo à dinâmica paulista, porém não havia maisameaça à jurisdição territorial de Minas Gerais sobre a região.

Se acompanharmos o processo formador das MinasGerais, perceberemos uma lógica geopolítica fundamentadana unidade política e territorial, que se impõe sobre a diversi-dade produzida pelas várias frentes de ocupação dos sertõesmineiros. A diversidade territorial resultante desses movimen-tos produz diferenciações regionais, porém não rompe a

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unidade que funda as Minas Gerais. Isso faz com que, de certaforma, possamos dar razão ao governador do Espírito SantoJones Neves, quando discursou sobre o movimento incessantedos mineiros. Duas forças operaram essa geopolítica: de umlado, uma força centrípeta, que manteve a unidade ao centro;de outro, uma força centrífuga, que produzia o movimento dedispersão a partir do centro. Foi o equilíbrio entre essas duasforças que garantiu a construção do Estado de Minas Gerais.Esse equilíbrio decorreu fundamentalmente do poder político,isto é, da capacidade das elites mineiras atuarem respondendoa uma estratégia geopolítica de longa duração. Portanto, pode-se afirmar que Minas é o resultado de uma construção do poderpolítico capaz de responder aos movimentos efetivos de ocu-pação demográfica e econômica, convertendo-os em resultadoterritorial, ou seja, em ampliação do território mineiro.

O último conflito de limites de Minas Gerais somentefoi resolvido em 1963 pelo governador Magalhães Pinto.Estamos nos referindo ao problema de limite com o EspíritoSanto, envolvendo a microrregião de Mantena, conhecidacomo Contestado. No final da década de 1950 a região foiobjeto de uma Comissão Parlamentar de Inquério na Assem-bléia Legislativa de Minas Gerais, em função do vazio jurídicofacilitar o comércio ilegal de madeira e a sonegação fiscal,além de favorecer o refúgio para criminosos e assassinos dealuguel. A falta de uma jurisdição definida, mineira ou capixaba,fragilizava a autoridade e, conseqüentemente, favorecia ailegalidade. A região foi palco de um movimento sociorreligiosoainda não estudado, que chegou a proclamar o Estado de Uniãode Jeovah separado do Brasil.

Espero ter demonstrado a relação entre território egeopolítica no processo formador das Minas Gerais. Ao tratar-mos da formação história do território, precisamos ter claroque estamos diante de processos de longa duração. As ques-tões geopolíticas e territoriais precisam ser melhor estudadas,para alargar a nossa compreensão sobre o papel do poder naconstrução do território, bem como sobre o território comodimensão cultural e identitária.

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Resumo: A relação entre território e geopolítica pode serapreendida no processo de formação histórica de longa dura-ção. O território é o resultado do conhecimento, ocupação eposse, isto é, de estratégias de permanência de população eprocessos sociais vinculados a um centro de poder, ao longo dotempo, em um determinado espaço. Acompanhar o processoformador das Minas Gerais permite conhecer a geopolítica quefundamentou a construção da unidade político-territorial quese impôs, apesar da diversidade produzida pelas várias frentesde ocupação que avançaram sobre os sertões mineiros. Para seperceber essa construção concentrou-se a atenção sobre asações governamentais dirigidas ao Sertão do Rio Doce, porémnão desconsiderando outros sertões: Retiro da Mandioca (Sulde Minas), Farinha Podre (Triângulo Mineiro), São Francisco,entre outros.

Palavras chave: Geopolítica, Minas Gerais, Territorialização,Sertão, Diversidade Territorial.

Abstract: Territory and geopolitics relationships can beapprehended in the historical formation process of long duration.Territory is the result of knowledge, occupation and ownership

* Este texto foi redigi-do com base natranscrição da pa-lestra proferida noevento Formação doPovo Mineiro, que in-tegrou a programa-ção do Pensando emMinas da Escola doLegislativo da As-sembléia Legislativade Minas Gerais. Tra-ta de uma reflexãoexploratória, cujabase documental seencontra na obra Ser-tão do Rio Doce, quepubliquei pelaEDUSC/Instituto Ter-ra/UNIVALE, em2005.** Doutor em HistóriaEconômica. Profes-sor Titular e Coorde-nador do Programade Pós-Graduaçãoem Gestão Integra-da do Território daUniversidade Vale doRio Doce – UNIVALE

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 11, n. 16, p. 71-88, jan./jun. 2009

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HARUF SALMEN ESPINDOLAHARUF SALMEN ESPINDOLAHARUF SALMEN ESPINDOLAHARUF SALMEN ESPINDOLAHARUF SALMEN ESPINDOLA**********

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meaning strategies of population permanence and social processlinked to a central power, as time passes, in a determinatespace. To follow the formative process of Minas Gerais allowsus to know the geopolitcs that constitute the fundamentals ofthe construction of the political and territorial unity taht cameto be predominant, in spite of diversity caused by the numerousoccupation fronts that extended over the “sertões” of this state.To clarify this construction, attention was placed over gover-namental actions directed to the “Sertão do Rio Doce”, andtaking in consideration, on the other side, other “sertões” suchas the “Retiro da Mandioca” (south of Minas), “FarinhaPodre” (region of the “Triângulo Mineiro”), “São Francisco”,and many others.

Keywords: Geopolitcs, Minas Gerais, Territorialization, “Ser-tão”, Territorial Diversity.

Minas Gerais e a mineiridade são resultados de umprocesso formador do território, cuja origem se encontra noséculo XVIII. Pensar Minas Gerais é tratar de sua constituiçãocomo espaço particularizado e singularizado, como povo eidentidade cultural, enfim como território e territorialidade:sentimentos de pertencimento, instituição do ser e estar nomundo. A consolidação do território se deu no século XIX, apartir da construção geopolítica que lhe delimitou e definiu umespaço.

O espaço geográfico de Minas Gerais, essa representa-ção por meio do mapa, nos remete ao espaço como configura-ção e organização produzida pelos processos sociais no decor-rer do tempo; logo, nos dirige para a história. A produçãohistórica do território mineiro é o resultado e, ao mesmotempo, o fator gerador da regionalização que caracterizaMinas Gerais como unidade na diversidade, isto é, são muitasas Minas Gerais, mas toda ela é “meu país”, “minha terra”,“meu lugar”. Como diz o poeta: Minas são várias; Minas

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patriazinha; Minas é segredo antigo, milenar. Essa é a condi-ção da mineiridade: a diversidade.

Minas Gerais nos remete à história como caminho paraentendermos a construção de uma unidade frente a tantasdiferenças: de clima, relevo, condições hidrográficas efitogeográficas, de dinâmicas socioeconômicas distintas, en-tre outras. Atravessar Minas Gerais de Leste para Oeste e deSul para Norte é deparar ao longo da estrada com paisagensdiversas, com condições socioeconômicas desiguais, umadiversidade significativa e forte. Entretanto, conseguiu-searticular a unidade territorial que caracteriza Minas hoje.

Em alguns momentos houve propostas de separação,como a de desmembramento da região de Minas Novas, noséculo XIX, ou de separação do Triângulo Mineiro, no séculoXX; mais recentemente propuseram criar o Estado do Rio Doce,uma idéia extemporânea que apareceu na imprensa de Governa-dor Valadares. Essas propostas foram apenas ensaios, idéias quenão foram adiante e ficaram sem repercussão na história. Háuma condição identitária forte, que corrobora as forças políticasna manutenção das argamassas que juntam as várias partesformadoras das Minas Gerais. Daí é importante se perguntarsobre a formação geopolítica que produziu o território.

O ponto de partida é o princípio do uti possidetis, quemtem a posse tem o domínio, que caracterizou a estratégicageopolítica seguida pela colonização lusitana na América.Essa orientação permitiu construir o território brasileiro muitoalém do Tratado de Tordesilhas. Na imensa extensão daAmérica e frente à escassez de homens e mulheres paracolonizar os pontos estratégicos, espaços foram ocupados e,dessa forma, foi possível reivindicar as terras vazias entre ospontos ocupados. Esses vazios eram chamados de sertões, queeram muitos e bastante diferente uns dos outros.

A constituição das Minas Gerais deu-se no interior dossertões, na cordilheira central que formava a zona de transiçãoentre as formações florestais, o cerrado e a caatinga. Nessemaciço se formou o rosário de cidades mineradoras, centros de

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“civilização” separados do mar por grandes extensões deflorestas tropicais, chamadas sertões intermédios ou sertões doLeste. As Minas logo foram distinguidas das Gerais, quepassaram a referir-se aos muitos sertões que se espraiavam portodas as direções, tendo como contraponto os núcleos urbanosinterligados por caminhos conhecidos e trafegados que forma-vam o eixo central: o Sertão do Retiro da Mandioca, no sul deMinas, o Sertão da Farinha Podre, atual Triângulo, o Sertão deSão Francisco, o Sertão do Cuieté e o Sertão dos Arrepiados,no leste, entre outros. Aqueles que ocupavam os sertões, apartir desse centro, ficaram conhecidos como geralistas.

A rigor, pela carta de doação de Vasco FernandesCoutinho, expedida em 1534, as terras de Minas Gerais perten-ciam ao Espírito Santo, mas ninguém reclamou esse direito noséculo XVIII. Nos séculos seguintes ocorreram algumas dispu-tas, porém quase sempre para conter o movimento mineiro nosentido do litoral. O estudo sobre a ocupação dos chamadossertões intermédios, que separavam as duas capitanias, permitecompreender o que denomino de geopolítica mineira.

Quando o Marquês de Pombal assumiu, ele deu ordemexpressa aos governadores para conhecerem, ocuparem eexplorarem os sertões. O Conde de Valadares, Dom José Luísde Meneses, que governou Minas Gerais entre 1769 e 1773,recebeu essa ordem. Ele se voltou para a região do Rio Doce,cuja ocupação foi considerada alternativa para se fazer frenteao declínio na mineração. Desde o século XVI existiam mitosque falavam de fabulosas riquezas, sendo o mais conhecido oda Serra das Esmeraldas, buscado por diversas expediçõesentre Fernandes Tourinho e Fernão Dias Paes. Esses mitosretornam no último quartel do século XIX, e o olhar dasautoridades volta-se para o Sertão do Rio Doce, na expectativade devolver a Minas uma idade do ouro, que estava seesvaindo. Nesse contexto, Rio Doce tornou-se uma categoriaque designava a vasta extensão de terras que separava oscentros mineradores do litoral, formada pelas bacias dos riosDoce, São Mateus, Mucuri e Jequitinhonha, bem como pelosafluentes Pomba e Muriaé do rio Paraíba do Sul. Como foi

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dito, antes era denominada genericamente de sertões do lesteou sertões intermédios.

Então houve um foco, a partir da década de 1760, emdireção às regiões do Pomba, Muriaé e Doce. Para garantir aocupação inicial foram enviados vadios e presos retirados dascadeias das comarcas de Ouro Preto, Serro e Sabará. Ointeresse cresceu no governo seguinte. Dom Antônio deNoronha (1775-1779) mandou fazer uma carta geográficacom a divisão das comarcas, pelo lado do rio Doce, naexpectativa de evitar conflitos quando as grandes riquezas serevelassem. A idéia de fazer um grande descoberto motivouessa iniciativa. Mas esse movimento, que no século XVIIIestava muito voltado para a busca de alternativas econômicaspara a crise do ouro, também é um movimento no sentidogeopolítico. Na carta geográfica os limites com o EspíritoSanto foram colocados muito além de onde estão hoje, poisficaram depois da serra que separa o Rio Guandu e o RioManhuaçu e até mesmo da Serra do Mar. Portanto, deixa oEspírito Santo somente com a faixa costeira.

O movimento intensifica-se a partir do governo de DomRodrigo José de Meneses, na primeira metade da década de1780. Ele vai pessoalmente comandar as investidas nos sertõesintermédios, permanecendo por seis meses nos sertões deArrepiados, região da Zona da Mata, e no sertão do Cuieté, noRio Doce. As ações se dividiram entre o trabalho de prospecçãomineral, instalação de quartéis, assentamento de colonos edistribuição de terras. Mas, não tendo achado minério precio-so, Dom Rodrigo acaba retornando a Vila Rica, com maláriae desiludido com o ouro do Cuieté. Todavia, ele deixouexplicitados os motivos para manter todos os presídios milita-res e assentamentos humanos: no futuro, além dos grandeshaveres que poderiam ser descobertos, a região ofereceriagrande potencial de exploração das matas, solos agrícolas efontes de metais menos preciosos como o ferro, entre outros.Nessa decisão encontra-se um direcionamento geopolítico,que será seguida pelos sucessores, de alargar os domínios deMinas Gerais na direção leste.

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Quando o Conde de Linhares, Dom Rodrigo de SousaCoutinho, assumiu como Secretário de Estado dos DomíniosUltramarinos e Marinha, na regência de D. João, fez do RioDoce uma prioridade para a Coroa, mas mudou odirecionamento estratégico. A iniciativa para a ocupação foitirada de Minas Gerais e transferida para o Espírito Santo.Entretanto, para conduzir a nova estratégia, nomeou ummineiro, Antônio Pires da Silva Pontes Leme, que assumiu ogoverno do Espírito Santo em 1800. Uma das primeirasmissões do novo governador foi elaborar uma carta geográficado Rio Doce e demarcar a divisa entre as capitanias do EspíritoSanto e de Minas Gerais.

A demarcação ocorreu em 1800, com a colocação deum posto de registro do lado mineiro e de um quartel do ladodo Espírito Santo (que deram origem às atuais cidades deAimorés/MG e Baixo Guandu/ES), nas confluências dos riosManhuaçu e Guandu com o rio Doce, respectivamente. O localdenominado Cachoeiras das Escadinhas tornou-se referênciapara limitar os avanços dos mineiros na direção do litoral. Esselugar já era conhecido pelos mineiros desde 1832, por infor-mação do Mestre-de-Campo Matias Barbosa, perseguidor dosbotocudos que atacaram localidades próximas a Mariana. Essehavia sido o ponto extremo das investidas do governador DomRodrigo Meneses nos sertões intermédios. A análise do localindica que Silva Pontes se fundamentou no terreno, natural-mente propício para o fim desejado. O marco ficou entre aconfluência dos rios Manhuaçu e Guandu, que distam um dooutro cerca de cinco quilômetros, separados por uma pequenaserra cujo topo serviu de linha divisória. Na foz do primeiro secolocou o registro de Lorena, em homenagem ao Governadorde Minas Bernardo Lorena; na foz do segundo foi instalado oQuartel de Souza, em homenagem a Dom Rodrigo de SousaCoutinho.

A carta geográfica, feita em 1800, que traz a linhadivisória, é muito interessante, porque altera completamente ocurso do rio logo acima dessa linha, indicando uma supostaignorância em relação ao curso médio e superior do rio Doce.

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Por que essa carta é tão defeituosa? Silva Pontes era matemá-tico e cartógrafo muito experimentado, tendo trabalhado nascomissões de demarcação das fronteiras do Brasil com oParaguai e com a Bolívia. Ele foi escolhido exatamente pelaexperiência adquirida durante o governo do Marquês dePombal; também conhecia outras cartas geográficas de Minas.A partir da foz, como se deu o levantamento de Silva Pontes,o Rio Doce tem uma direção leste-oeste até aproximadamentemetade do seu curso, quando faz uma curva de quase 90º paraassumir o sentido sudoeste. Na carta de Silva Pontes o rio fazuma curva de quase 180°, voltando para leste. Nesse movi-mento, desaparecem todos os sertões intermédios.

Isso é, no mínimo, curioso, se não for intencional, nosentido de preservar informações que eram desconhecidaspelos capixabas, que “andavam como caranguejos, arranhan-do o litoral”, para usar as palavras do Frei Vicente Salvador,referindo-se aos portugueses, em 1623. Enquanto os capixabasrecolheram-se ao litoral, o governador de Minas, Pedro MariaXavier de Ataíde e Melo (1804-1809), manteve as posiçõesexistentes no Sertão do Rio Doce, apesar dos custos financei-ros e das dificuldades existentes. Em 1806, o governadormineiro chegou a propor transferir para local mais próximo oposto de registro e o quartel instalados na divisa entre as duascapitanias, demarcada em 1800, porém essa posição originaltambém foi mantida. Em 1808 os mineiros retomaram oavanço sobre a região.

O resultado desse avanço, nos 160 anos que se segui-ram, foi expresso pelo ex-interventor do Espírito Santo JonasNeves (1943-45), quando proferiu seu discurso no SenadoFederal, em 1948, sobre a questão dos limites com MinasGerais. O discurso de Jonas Neves falava exatamente de umaforça que movia os mineiros, essa civilização montanhesa,incessantemente na direção do litoral, como se sentissemsaudade da época das caravelas, quando os portugueses sin-gravam os mares, como se sentissem saudade da liberdade dooceano. De fato, há esse movimento incessante dos mineirosa partir do último quartel do século XVIII, mas não é apenas

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em direção ao litoral. Esse movimento se deu na direção detodos os sertões que envolviam o núcleo minerador original.Esses sertões denominados de Gerais se contrapunham àsMinas, com suas cidades e caminhos conhecidos. Pode-seafirmar que o que conhecemos hoje como Minas Geraisresultou do progressivo avanço a partir dos centros mineradoresem direção aos sertões, ou seja, em direção à junção das Minase dos Gerais. Esse foi um movimento incessante de espraia-mento sobre o espaço, ato configurador e organizador doterritório.

Essa lógica foi reforçada no período de Pombal, com oobjetivo de integrar o índio à sociedade colonial, cujas instru-ções dadas aos governadores Gomes Freire, Morgado deMateus, Conde de Valadares e outros, fundamentavam-se nacompreensão de que a força e a riqueza consistiam principal-mente no crescimento do número de habitantes, bem como nacerteza de que se mandassem todos os portugueses para oBrasil, do continente e das ilhas, ainda seria impossível ocupartodo território.

Enfoco um pouco mais os sertões intermédios porqueexistiu um interesse prioritário nessa região na primeira meta-de do século XIX. D. João VI chega ao Rio de Janeiro emmarço e apenas dois meses depois, em 13 de maio de 1808,assina uma carta régia com a declaração de guerra ofensiva aosnativos do Sertão do Rio Doce, determinando a formação dedivisões militares para ocupar e controlar o território. Os 200anos da chegada da Corte lusitana foram alvo de comemora-ções oficiais, programas na televisão e reportagens especiaisem jornais e revistas, porém um dos atos mais significativos deD. João VI foi a decisão de 13 de maio. Pela primeira e únicavez em toda a história colonial portuguesa e do Brasil indepen-dente, uma porção do espaço, que a rigor fazia parte dosdomínios territoriais, foi tratada como objeto de conquistamilitar e os índios como outro povo.

A declaração de guerra implicou considerar o espaçocomo território, na medida em que a guerra existe como formade resolver pela força questões de disputas territoriais. Isso

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alterava a tradição colonial lusitana, que sempre viu o índiocomo elemento componente do processo colonizador, isto é,a lógica da dinâmica colonial portuguesa fundamentava-se naincorporação do índio. A guerra e violência contra os índiosestão presentes ao longo de toda história brasileira, porém noperíodo colonial se justificavam principalmente como respos-ta às “agressões” indígenas ou como combate às práticas deantropofagia. Esses dois elementos foram sistematicamenteatribuídos aos botocudos nas três décadas que antecedem àcarta régia de 13 de maio de 1808.

O termo botocudo foi uma atribuição dada pelos portu-gueses às diversas nações indígenas pertencentes ao troncolingüístico macro-jê, que dominavam as florestas das baciasdos rios Doce, São Mateus, Mucuri e Jequitinhonha. Botocudose torna uma categoria construída com imagens fortes: “terrordas florestas do Rio Doce”; “insaciáveis em carne humana”;“nação ferocíssima”; “formidáveis canibais”; “bárbaro”; “fe-roz”, entre outras. Para fazer frente às ameaças permanentes sepromovia a “guerra defensiva” por meio de quartéis militarescolocados nos limites entre as zonas povoadas e o Sertão doRio Doce, estabelecendo zonas fronteiriças com a presença deluso-brasileiros e de índios aculturados funcionando comotampão de defesa.

Com a declaração de guerra de 13 de maio de 1808, oíndio foi considerado inimigo a ser subjugado ou exterminadopela força das armas. Tanto isso é verdade que os comandantesdas divisões militares recebiam aumento de soldos, gratifica-ções e benefícios pelo número de índios eliminados e deranchos – aldeamentos indígenas – destruídos. Desse modonão mais se tratava de simples reação fundada no conceito daguerra justa, como o discurso oficial, até então, buscou preser-var, mas de uma mudança em relação à tradição lusitana, quehavia sido reforçada pela política pombalina. Essa mudança seexplica pela expectativa de sucesso de incorporação econômi-ca, em curto prazo, do Rio Doce, com base em uma concepçãoestratégica que considerou os grupos indígenas como princi-pal obstáculo a ser vencido.

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O contexto geral era de crescimento do mercado mun-dial, marcado pela expansão das exportações agrícolas e,especialmente, pela nova dinâmica capitalista industrial. Aeconomia vivia a fase de prosperidade, resultado do augecomercial do século XVIII, cuja centralidade na Grã-Bretanhafoi fundamental para a Revolução Industrial e o surgimento docapitalismo. Nesse contexto, Minas Gerais viveu o esplendordo ouro e deu a Portugal uma breve fase de proeminência,porém o último quartel do século XVIII deixa claro o esgota-mento dos veios auríferos. Os cronistas e memorialistas desseperíodo são recorrentes em anunciar a decadência de MinasGerais, provocada pela diminuição irreversível da produçãoaurífera. Entretanto, a historiografia recente demonstrou quenão havia uma decadência propriamente dita, mas umareconversão econômica, provocada pelo declínio da produçãodo ouro. Dois movimentos se apresentam nesse contextoregional: um processo de diversificação econômica e umaexpansão na direção dos sertões mineiros.

Para as elites mineiras, no entanto, havia o sentimentogeral de decadência, expressos pelos memorialistas e nosdocumentos oficiais. Para fazer frente ao declínio geral perce-bido e devolver a “idade de ouro” perdida, foi que se colocouum objetivo econômico fundamental para o Rio Doce: dar aMinas um acesso direto ao mercado mundial. A idéia de fazerdo Rio Doce um canal fluvial não era estranha à época, que viasurgir na Grã-Bretanha e em muitos outros países uma rede decanais interligando os centros industriais com o mercadomundial. Se analisarmos o mapa hidrográfico de Minas, vere-mos que o Rio Doce e seus afluentes formam um conjunto devias fluviais que permite o acesso a todos os importantescentros mineradores constituídos no século XVIII. Do pontode vista de seu traçado, ele era ideal para o objetivo, pois dariaacesso ao mar para todas as regiões economicamente ativas,entre São João Del Rei e Diamantina.

O objetivo das elites mineiras era ver uma “grandecompanhia” assumindo a navegação e a colonização do RioDoce. O Estado cuidaria de criar as condições para isso, por

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meio da conquista e liberação do território. O Estado cumpriusua parte no plano, porém a Companhia do Rio Doce, consti-tuída na Inglaterra em 1833, com participação de capital desócios brasileiros, nada realizou de concreto. Não entrarei nosdetalhes desse caso, pois o que nos interessa é saber que oabandono do projeto do canal fluvial, em 1843, não significouuma saída da região, da mesma forma que fizera o governadorDom Rodrigo Menezes, quando fracassou a sua investida noCuieté, sessenta anos antes.

A continuidade do movimento de avanço dos mineirospermite afirmar que existia uma estratégia de naturezageopolítica de alargamento territorial na direção dos sertões.Uma análise temporal de maior duração indica a persistênciadesse movimento desde o governo do Conde de Valadares,instalado em 1769. Mesmo no Império, época na qual oschefes do executivo mineiros mudavam com freqüência –governos que duraram apenas um ano ou dois governos em umúnico ano –, houve continuidade na política de ocupação dossertões.

Na primeira metade do século XIX, coube às setedivisões militares, cada uma denominada de Divisão Militardo Rio Doce (DMRD), cumprir o papel de agente do Estado,e de ser o próprio Estado na construção do território. A atuaçãodas divisões militares cobriu todo o Sertão do Rio Doce, quecorrespondia nesse momento às bacias vales dos rios Pomba,Muriaé, Doce, Mucuri e Jequitinhonha. A 2ª DMRD e a 3ªDMRD assumiram o controle da área que forma grande partedo atual território da Zona da Mata Mineira (microrregiões deManhuaçu, Muriaé, Ubá e Viçosa); a 4ª DMRD ficou na zonade fronteira entre as áreas povoadas e os sertões intermédios,abrangendo as atuais microrregiões de Ponte Nova e Itabira; a1ª e a 6ª DMRD receberam a missão de controlar o curso do RioDoce e ocupar uma extensa área, que hoje corresponde àsmicrorregiões de Ipatinga, Guanhães, Caratinga, GovernadorValadares e Aimorés; a 5ª DMRD, formada a partir do PresídioMilitar de Peçanha, assumiu os vales dos rios Suaçuí Grande,São Mateus e parte do Mucuri; a 7ª DMRD foi encarregada de

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todo o Vale do Médio Rio Jequitinhonha e de parte do Mucuri.Como se observa, as DMRDs cumpriram o papel de incorpo-rar a Minas Gerais uma grande extensão territorial.

As divisões militares atuaram em várias frentes: primeiroforam controladas as trilhas indígenas e os acessos fluviais;depois se abriram caminhos e estradas. A 3ª DMRD abriu aestrada que ligou Ouro Preto a Vitória, que, em grande parte,corresponde hoje à BR-262. A 2ª DMRD abriu a estrada queligou Rio Pomba a Campos dos Goitacases (RJ), passando pelaVila de Cantagalo – era conhecida como a estrada de Cantagalo.Nas suas circunscrições militares os comandantes se empenha-ram em garantir que fossem praticados os ritos – consideradoscivilizatórios – do batismo, do sepultamento e do casamento.Entre outras ações, eles abriram cemitérios devidamente consa-grados por padres, criaram povoados, distribuíram sesmarias,instalaram aldeamentos indígenas e abriram fazendas. Elesacumularam muitas prerrogativas de natureza militar, adminis-trativa e policial, além de fazer as vezes de poder judiciário. Elestambém assumiram o controle da política indígena: a DiretoriaGeral dos Índios de Minas Gerais ficou nas mãos de GuidoMarlière, comandante-geral das divisões militares, e nas cir-cunscrições militares as diretorias dos índios foram ocupadaspelos comandantes de cada uma das DMRDs.

A guerra ofensiva, declarada em 13 de maio de 1808, éabandonada em 1818, apesar de a revogação oficial ter ocor-rido somente em 1834. Na prática, as autoridades mineirasperceberam que guerra ofensiva não levara a nada: como fazerguerra contra um inimigo camuflado na floresta? A mudançafoi provocada pelo fato conhecido como incidente de Mombaça.Em 1817, um grupo de botocudos atacou uma propriedade decolonos estabelecidos no ribeirão Mombaça, área da 4ª DMRD,vitimando a família e destruindo as plantações. Ficou ameaçadaa frente de ocupação que avançava, a partir de São Domingodo Prata, para as margens do Rio Doce. Essa ação dos índiosmostrou a ineficácia da 1ª e da 4ª DMRD para manter os índiosafastados dos lugares povoados, pois permaneciam vaziosconsideráveis entre as unidades táticas. Portanto, a guerra

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ofensiva não resolvia o principal problema anteriormenteatribuído à estratégia defensiva, mantida até 1808: a facilidadeque os índios tinham de romper as linhas de defesa.

As primeiras críticas à tática da guerra ofensiva apare-ceram timidamente no Aviso de 11 de dezembro de 1811, quecontém reflexões a respeito da civilização dos botocudos e daatuação das divisões do Rio Doce, especialmente em relaçãoà 7ª DMRD, estacionada no Vale do Jequitinhonha, ondeprimeiro avançou o contato e a convivência com gruposindígenas. Esse aviso recomendava ao comandante da 7ªDMRD continuar na amizade com os botocudos mansos,porém mandava continuar a guerra contra os botocudos bra-vos. Em 1817, Saint-Hilaire esteve com os botocudos doJequitinhonha, no quartel-geral da 7ª DMRD e, posteriormen-te, incluiu no seu livro a sugestão para que eles fossemutilizados para intermediar a paz com os do Rio Doce, porquejá se haviam acostumado com os portugueses. Todavia, pro-põe que

se utilizassem meios diferentes dos empregados nasétima divisão, em que ninguém procura inculcar noshomens dessa nação os verdadeiros princípios da reli-gião cristã, onde recebem os piores exemplos, e onde ascrianças, arrebatadas a seus pais, são freqüentementecondenadas a uma espécie de escravidão.

O incidente de Mombaça desencadeou uma série deprovidências com objetivo de inspecionar as divisões militarese avaliar os resultados alcançados nos dez anos de guerraofensiva. Em 1820 o governo provincial reconheceu formal-mente que haviam fracassado “os meios aplicados para seconseguir a conquista e redução dos gentios, que infestam asmatas do Rio Doce...”. A culpa pelo fracasso foi atribuída aosalferes comandantes das divisões militares, acusados de faltade competência e de zelo no desempenho das funções. Outracausa para o fracasso, na opinião do governador Dom Manoelde Portugal e Castro (1814-1821) foi a falta de coordenaçãoentre os comandantes divisionários. O governo determinou ofim dos atos hostis para “remediar as animosidades” dos índios

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e, ao mesmo tempo, desencadeou um processo de atração daspopulações nativas por meio da “catequese e civilização”.

A política tradicional foi retomada e o índio voltou a serconsiderado parceiro e partícipe do processo colonizador. Issosignificava incorporá-lo como agricultor português – não seusava ainda a designação de brasileiro –, isto é, um cristãotemente a Deus e obediente à monarquia. O casamentointerétnico e o combate à prostituição tornaram-se centrais nanova orientação dada às divisões militares, inclusive comdistribuição de terras, regalias e isenções para os soldados quese casassem com índias. Dessa forma, os militares que forma-vam famílias se tornavam proprietários rurais.

Houve um grande esforço para produzir umaterritorialidade fundamentada no ideal civilizatório que abar-cava, além da sujeição ao doce julgo da lei, o respeito àpropriedade privada e a adoção do comércio como práticacorriqueira. O resultado dessa política é expresso pelo fato dea maior parte das atuais cidades e vilas terem se formado apartir dos quartéis, povoados e aldeamentos instalados pelasDMRDs. A distribuição espacial da rede de cidades que seconstituiu comprova a estratégia de domínio territorial seguidapelas divisões militares, a partir do controle dos acessos e dacirculação: os quartéis e assentamentos foram colocados nospontos de interseção dos caminhos terrestres e destes com arede fluvial, bem como nos locais de interrupção dos cursosdos rios por cachoeiras e nas confluências dos rios.

É de se admirar que, consideradas as condições daépoca, numa região de densa floresta e frente a situaçõesextremamente adversas, se tenha obtido um conhecimentoestratégico do terreno suficiente para sustentar o controleterritorial com um contingente de 458 militares, distribuídosem sete divisões. Isso somente foi possível porque havia umaorientação geopolítica fundada na máxima de Pombal: conhe-cer, ocupar e fixar, bem como pela natureza militar do proces-so, isto é, estratégia, procedimentos táticos, comando e disci-plina. O significativo é que a orientação geopolítica não tevesolução de continuidade e, portanto, atuou na incorporaçãodos sertões intermédios ao território de Minas Gerais.

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Houve diferenciação territorial na ocupação do Sertãodo Rio Doce, principalmente na segunda metade do séculoXIX, na medida em que se constituíram processos sociaisparticularizados, com o avanço da cafeicultura ao sul e dapecuária ao norte do Vale do Rio Doce. Esse que era o alvoprincipal do interesse oficial, em 1808, acabou sendo a últimazona a ser efetivamente colonizada. Várias razões explicampor que essa zona somente foi colonizada no século XX,inclusive questões de natureza ambiental, problemas de rele-vo, de clima e outros, tais como o de insalubridade. A regiãoera infestada pela malária, o que foi de fato uma grandebarreira, apesar de, no século XIX, atribuir-se ao índio botocudoa culpa pela dificuldade do avanço da colonização pela região.Na verdade, o grande impedimento foi a malária, somenteresolvido a partir de 1942 com os Acordos de Washington,mas essa é uma outra história. Essa região permaneceu comouma fronteira.

A dinâmica econômica do Vale do Jequitinhonha, quecorresponde ao médio curso do rio, foi definida pela entrada dapecuária baiana na segunda metade do século XIX. Na Zonada Mata, na primeira metade do século, com a abertura dasestradas para Vitória e para Cantagalo, houve uma intensifica-ção do povoamento com uma produção mais voltada para omercado interno. Sob essa base inicial houve o desenvolvi-mento da cafeicultura, que definiu o perfil regional no últimoquartel do século XIX. A dinâmica cafeeira da Zona da Matanão decorreu da expansão fluminense, mas decorreu do pro-cesso mineiro de expansão na primeira metade do século.

Desse processo de expansão surgiram os primeirosconflitos de limites entre Minas e Rio de Janeiro, envolvendoexatamente a região de Cantagalo e Leopoldina. Esses confli-tos serão resolvidos pela habilidade dos políticos mineiros e,principalmente, por sua influência no processo de construçãodo Império, no início do segundo reinado, no qual o Marquêsdo Paraná teve papel fundamental. Como Presidente da Pro-víncia Fluminense (1840-1841), embora fosse mineiro, defi-niu, por meio de uma portaria, o limite entre Minas e Rio deJaneiro. Isso gerou contestação por parte dos fluminenses,

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mas, logo em seguida, quando assumiu o Ministério do Impé-rio, conseguiu que o Imperador assinasse um decreto, em1843, confirmando esse limite. Ou seja, a injunção política foifundamental para essa definição.

Encontraremos as mesmas injunções políticas agindono interesse de Minas se recuarmos até o governo de GomesFreire (1735-36 e 1737-1752), quando da definição dos limitescom São Paulo. Gomes Freire usou a sua influência políticajunto ao Conselho Ultramarino e junto ao Rei para obter asupressão da Capitania de São Paulo e a sua anexação ao Riode Janeiro. Tornou-se, ao mesmo tempo, Vice-Rei e, conse-qüentemente, passou a governar São Paulo, reduzido à condi-ção de comarca. Colocado no centro do poder, ele estabeleceuos limites, ou seja, vê-se uma semelhança muito grande, apesarda diferença temporal de 100 anos, entre os dois fatos. Aestratégia geopolítica de fixação, ou melhor, de conhecer,ocupar e estabelecer um território, de dar um conteúdo aoespaço, era a base do princípio do uti possidetis. Nos dois casosmencionados, Minas podia se apoiar no fato, mais do que nodireito, de ter a ocupação efetiva do território.

Depararemos com a mesma lógica geopolítica se nosdeslocarmos para o Norte de Minas (Sertão do São Francisco): oConde Assumar, em 1720, define o limite de Minas com a Bahiano Rio Verde Grande, contrariando a posição do governador-geral e do bispado da Bahia. Esse limite se conservou até os diasatuais, apesar de todas as idas e vindas, ao longo dos séculos XVIIIe XIX, nos quais os baianos reivindicaram o direito por teremchegado primeiro. O suposto direito não prevaleceu frente aoprincípio do construído – “vale o que está feito” –, ou seja, oprincípio do ocupar e fixar, da permanência, que denominamos de“dar ao espaço uma territorialidade, um conteúdo”.

Essa lógica que é formadora das Minas Gerais expres-sou uma condução geopolítica de longa duração. Isso se deutambém com o Triângulo Mineiro, que por direito era deGoiás. Esse era um dos muitos sertões ocupado pelos minei-ros. Conhecido como Sertão da Farinha Podre, o Julgado doDesemboque foi ocupado pelos mineiros conhecidos como

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TERRITÓRIO E GEOPOLÍTICA NASTERRITÓRIO E GEOPOLÍTICA NASTERRITÓRIO E GEOPOLÍTICA NASTERRITÓRIO E GEOPOLÍTICA NASTERRITÓRIO E GEOPOLÍTICA NASMINAS GERAIS DO SÉCULO XIXMINAS GERAIS DO SÉCULO XIXMINAS GERAIS DO SÉCULO XIXMINAS GERAIS DO SÉCULO XIXMINAS GERAIS DO SÉCULO XIX

geralistas: boiadeiros, fazendeiros, posseiros, etc. A chegadade geralistas de forma mais intensa, a partir da década de 80 doséculo XVIII, deu início aos conflitos com as autoridades deGoiás, que alegavam o direito sobre o território. Os mineiros,porém, reivindicaram a posse efetiva, por terem desbravado,lutado contra os índios, enfrentado dificuldades, construído oscaminhos e estabelecido as lavouras e a pecuária. No final,prevaleceu a lógica da posse efetiva do território.

Em 1797 o Visconde de Barbacena, Antônio de Men-donça, nomeia Antônio Pamplona como mestre-de-campo (co-ronel), dando-lhe plenos poderes para fazer valer os interessesde Minas, expressos na reivindicação da Câmara de Tamanduáe da população de Araxá, dirigida à Rainha D. Maria, pedindo-lhe a incorporação às Minas Gerais. Esse processo adensou-sena medida em que cresceu o número de geralistas na região e, em1815, o governo cria a Comarca de Paracatu, a quinta de Minas.No ano seguinte o Julgado do Desemboque é incorporado àComarca de Paracatu. As definições de autoridades criaramuma estabilidade jurídica e social, que tiveram como conseqü-ência o adensamento populacional e econômico. Em 1818Uberaba contava 500 habitantes, mas, decorridos cinco anos,esse número havia saltado para dois mil. Em 1836 foi criada aFreguesia de Uberaba e, quatro anos depois, a Comarca erainstalada. O governo de Minas incentivou a ocupação por meioda distribuição de terras e da isenção de tributos, ou seja, estápresente a mesma orientação geopolítica de longa duração queencontramos no processo de ocupação dos vários sertões minei-ros. A chegada da estrada de ferro, vinda de São Paulo, e dapecuária zebuína, no final do século XIX, trouxe uma vinculaçãoestreita do Triângulo à dinâmica paulista, porém não havia maisameaça à jurisdição territorial de Minas Gerais sobre a região.

Se acompanharmos o processo formador das MinasGerais, perceberemos uma lógica geopolítica fundamentadana unidade política e territorial, que se impõe sobre a diversi-dade produzida pelas várias frentes de ocupação dos sertõesmineiros. A diversidade territorial resultante desses movimen-tos produz diferenciações regionais, porém não rompe a

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unidade que funda as Minas Gerais. Isso faz com que, de certaforma, possamos dar razão ao governador do Espírito SantoJones Neves, quando discursou sobre o movimento incessantedos mineiros. Duas forças operaram essa geopolítica: de umlado, uma força centrípeta, que manteve a unidade ao centro;de outro, uma força centrífuga, que produzia o movimento dedispersão a partir do centro. Foi o equilíbrio entre essas duasforças que garantiu a construção do Estado de Minas Gerais.Esse equilíbrio decorreu fundamentalmente do poder político,isto é, da capacidade das elites mineiras atuarem respondendoa uma estratégia geopolítica de longa duração. Portanto, pode-se afirmar que Minas é o resultado de uma construção do poderpolítico capaz de responder aos movimentos efetivos de ocu-pação demográfica e econômica, convertendo-os em resultadoterritorial, ou seja, em ampliação do território mineiro.

O último conflito de limites de Minas Gerais somentefoi resolvido em 1963 pelo governador Magalhães Pinto.Estamos nos referindo ao problema de limite com o EspíritoSanto, envolvendo a microrregião de Mantena, conhecidacomo Contestado. No final da década de 1950 a região foiobjeto de uma Comissão Parlamentar de Inquério na Assem-bléia Legislativa de Minas Gerais, em função do vazio jurídicofacilitar o comércio ilegal de madeira e a sonegação fiscal,além de favorecer o refúgio para criminosos e assassinos dealuguel. A falta de uma jurisdição definida, mineira ou capixaba,fragilizava a autoridade e, conseqüentemente, favorecia ailegalidade. A região foi palco de um movimento sociorreligiosoainda não estudado, que chegou a proclamar o Estado de Uniãode Jeovah separado do Brasil.

Espero ter demonstrado a relação entre território egeopolítica no processo formador das Minas Gerais. Ao tratar-mos da formação história do território, precisamos ter claroque estamos diante de processos de longa duração. As ques-tões geopolíticas e territoriais precisam ser melhor estudadas,para alargar a nossa compreensão sobre o papel do poder naconstrução do território, bem como sobre o território comodimensão cultural e identitária.

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Resumo: O conteúdo aqui apresentado e discutido abordaMinas Gerais na contemporaneidade tendo como foco asquestões da identidade, da diversidade e das fronteiras simbó-licas que emergem nas fímbrias da sociedade. Embora retomeo processo inicial de consolidação da sociedade mineira noséculo XVIII é realizada uma leitura de processos sociais queevidenciam diferenças culturais no interior dessa mesma soci-edade, com a obliteração permanente da existência de umadualidade que fragmenta a identidade construída pela ideolo-gia da mineiridade como una.

Palavras-chave: Minas Gerais, Mineiridade, Diversidade,Fronteiras Regionais, Populações Tradicionais

Abstract: The content here presented and discussed is aboutMinas Gerais in its contemporaneousness taking as a focus ofattention the questions of the identity, of the diversity and ofthe symbolic frontiers that surface in the borders of the“mineira” society. Though it retakes the initial process ofconsolidation of the mining society in the century XVIII, a

MINAS GERAIS NAMINAS GERAIS NAMINAS GERAIS NAMINAS GERAIS NAMINAS GERAIS NACONTEMPORANEIDADE: IDENTIDADECONTEMPORANEIDADE: IDENTIDADECONTEMPORANEIDADE: IDENTIDADECONTEMPORANEIDADE: IDENTIDADECONTEMPORANEIDADE: IDENTIDADE

FRAGMENTFRAGMENTFRAGMENTFRAGMENTFRAGMENTADA, A DIVERSIDADEADA, A DIVERSIDADEADA, A DIVERSIDADEADA, A DIVERSIDADEADA, A DIVERSIDADEE AS FRONTEIRAS REGIONAISE AS FRONTEIRAS REGIONAISE AS FRONTEIRAS REGIONAISE AS FRONTEIRAS REGIONAISE AS FRONTEIRAS REGIONAIS*****

JOÃO BAJOÃO BAJOÃO BAJOÃO BAJOÃO BATISTTISTTISTTISTTISTA DE ALMEIDA COSTA DE ALMEIDA COSTA DE ALMEIDA COSTA DE ALMEIDA COSTA DE ALMEIDA COSTAAAAA**********

* Originalmente o con-teúdo deste artigo foiapresentado no ciclode palestras Forma-ção do Povo Mineiro edialogado com a pla-téia que se encontra-va no evento, a quemagradeço pela possi-bilidade de discussãode temática até entãopouco compreendida.** Doutor em Antro-pologia. Professor ePesquisador no Cur-so de Ciências Soci-ais e no Programa dePós-Graduação emDesenvolvimentoSocial na Universida-de Estadual de Mon-tes Claros. Coorde-nador de Pesquisadas Faculdades San-to Agostinho.

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 11, n. 16, p. 117-137, jan./jun. 2009

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reading of the social processes that express the existence ofcultural differences in the interior of the same society has beencarried out, with the constant obliteration of the existence of adualism that breaks up the identity built by the ideology of the“mineiridade” like one.

Keywords: Minas Gerais, Mineiridade, Diversity, ReginalFrontiers, Traditional Populations

O multiculturalismo constitucional e a permanência deO multiculturalismo constitucional e a permanência deO multiculturalismo constitucional e a permanência deO multiculturalismo constitucional e a permanência deO multiculturalismo constitucional e a permanência deideologia da unicidadeideologia da unicidadeideologia da unicidadeideologia da unicidadeideologia da unicidade

Durante o processo de constituição e de formação dosEstados-Nação, o foco da identidade foi posto na unidade daNação, conforme discutido por Simon Schama (1996) eBenedict Anderson (1989). No século XX, ocorreu a passa-gem desse foco para o multiculturalismo. Se Minas Gerais,durante a proeminência da unidade, construiu a ideologia damineiridade1, afirmando a sua identidade una e obliterando asdiferenças existentes internamente, dentro do Estado, mesmoque alguns autores, como Sylvio de Vasconcellos (1968), JoãoGuimarães Rosa (1978) e outros tenham abordado a diversida-de ou a existência de uma dualidade, o conteúdo dado àidentidade mineira alicerçou-se na unidade e toda a história deMinas foi construída tendo como foco sua unicidade. Arealidade que dá fundamento à identidade mineira, nesseperíodo, é a realidade aurífera.

Se com a Constituição brasileira de 1988 o foco daidentidade nacional saiu da unidade para a multiculturalidadecom a afirmação e a construção de sujeitos de direito baseadosna perspectiva do multiculturalismo, pode-se dizer que MinasGerais permanece sendo a síntese da Nação, porque elaarticulou todos os grandes movimentos civilizatórios brasilei-ros, que propiciaram a emergência de diferenças culturais nointerior de sua sociedade. Sendo assim, Minas Gerais contém,em si, uma multiplicidade cultural. Portanto, para se falar hojeda contemporaneidade mineira, é necessário enunciar a exis-

1 Vide Arruda (1990)que enfoca a mitolo-gia da mineiridade noimaginário político esocial brasileiro.

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MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:IDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE E

AS FRONTEIRAS REGIONAISAS FRONTEIRAS REGIONAISAS FRONTEIRAS REGIONAISAS FRONTEIRAS REGIONAISAS FRONTEIRAS REGIONAIS

tência de uma dualidade desde o seu processo de formação, dediferenças regionais, dadas as fronteiras simbólicas existentesinternamente em nosso estado, e ainda evidenciar a presençade povos e de comunidades tradicionais em Minas Gerais.

A dualidade mineira: leitura crítica para além deA dualidade mineira: leitura crítica para além deA dualidade mineira: leitura crítica para além deA dualidade mineira: leitura crítica para além deA dualidade mineira: leitura crítica para além deGuimarães RosaGuimarães RosaGuimarães RosaGuimarães RosaGuimarães Rosa

Para abordar as diferenças regionais, escolhi analisar oartigo “Minas Gerais” de João Guimarães Rosa, publicado nolivro “Ave, Palavra”. Ele apresenta oito regiões culturais queconstituem a geopolítica estadual. Como diz o autor, “sua orbeé uma pequena síntese e uma encruzilhada, já que MinasGerais são muitas ou pelo menos várias” (1978, p. 217). Ele serefere primeiro à Minas antiga e colonial, das comarcasmineradoras, localizadas na extensão da chamada ZonaMineralógica. Essa é a chamada “Minas geratriz, do ouro, queevoca e informa o seu nome”. O autor também informa que osmineiros se estenderam a partir daí para constituir as outrasregiões. A segunda região é caracterizada como “a Mata,cismontana, molhada de marinhos ventos, agrícola ou madei-reira espessamente fértil”. A terceira é “o Sul, cafeeiro, assen-tado na terra roxa de declives ou em colinas que européias searrumam, quem sabe numa das mais tranqüilas jurisdições dafelicidade neste mundo”. A quarta região, o “Triângulo,saliente, avançado, forte, franco”. A quinta, o “Oeste, caladoe curto nos modos, mas fazendeiro e político, abastado emhabilidades”. A sexta região, o autor enuncia aqui a grandediferenciação – é “o Norte, sertanejo, quente, pastoril, umtanto baiano em trechos, ora nordestino na intratabilidade dascaatingas e recebendo, em si, o polígono das secas”. A sétimaé “o centro corográfico do Vale do Rio das Velhas, ameno,claro, aberto à alegria de todas as vozes novas”. E, por fim, aoitava região é “o Noroeste, dos chapadões, dos campos geraisque se emendam com os de Goiás e com os da Bahia esquerda,e vão até o Piauí e ao Maranhão ondeantes”.

Ao final do artigo, João Guimarães Rosa afirma: “se sãotantas Minas, porém e, contudo uma, o que a determina, então,

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apenas uma atmosfera, sendo o mineiro o homem em estadominas-gerais?” (1978, p. 222). Apesar de o autor enfocar amineiridade, realiza um deslizamento para enunciar a dualidade,ou seja, um homem em estado minas-gerais. Há neste artigo oapoio à ideologia da mineiridade. Com o deslizamento reali-zado, porém, é desvelada a existência de umainterdiscursividade no interior dessa mesma ideologia.

As regiões aí postas – Mata, Sul, Oeste e Triângulo –são todas elas um desdobramento da região Minas Geratriz. Acaracterização que o autor faz do Norte coloca a região parafora de Minas, ou seja, é Norte, mas é sertão. Mais do quereferência a Minas, o sertão é uma referência ao Brasil. Emseguida, é enfocado o aspecto baiano, nordestino. Sobre aregião noroeste, ocorre um completo esvaziamento de gentes,enfatizando-se as perspectivas ambiental e geográfica, sendo,assim, parte do sertão. O centro é justamente onde Norte eNoroeste se articulam com a Minas geratriz e os seus desdo-bramentos em suas diferenças.

Pensando nas temporalidades das regiões de MinasGerais, a Minas Geratriz se origina a partir da descoberta doouro pelos bandeirantes paulistas em fins do século XVII,exatamente em 1694, no Tripuí, mas a sua exploração sócomeçou, efetivamente, a partir da descoberta do ouro, no dia16 de julho de 1696, na região de Mata Cavalos, no Ribeirãodo Carmo, na atual cidade de Mariana.

O Norte teve a sua formação histórica vinculada aobandeirismo apreador de índios e exterminador de quilombos eà marcha progressiva das fazendas nordestinas de gado, pelointerior do País, em meados do século XVII2. As afirmações aseguir baseiam-se na articulação das historiografias mineira,paulista, baiana e pernambucana, a partir das quais pude desen-volver a questão histórica na tese de doutoramento em que tratodo lugar do norte de Minas em Minas Gerais3. Foi aí quedescobri que o Norte de Minas, nesse período, era denominadoCurrais do São Francisco formados pelos currais da Bahia epelos currais de Pernambuco. A ocupação iniciou-se em 1664,com um bandeirante chamado Mathias Cardoso de Almeida.

2 Neste sentido vide,Taunay (1948), Pi-res (1979) e Aragão(2000).

3 Vide Costa (2003).

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MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:IDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE E

AS FRONTEIRAS REGIONAISAS FRONTEIRAS REGIONAISAS FRONTEIRAS REGIONAISAS FRONTEIRAS REGIONAISAS FRONTEIRAS REGIONAIS

Originariamente pertencente à Bahia e a Pernambuco,o Norte de Minas foi incorporado em 1720 à nascente Capita-nia de Minas Gerais. Nesse período, os currais da Bahiapassaram a integrar o território mineiro e, em 1832, os curraisde Pernambuco que chegavam até o rio Paracatu foram tam-bém anexados. Em decorrência da Confederação do Equador,o Império retira de Pernambuco grande parte do seu territórioque chegava às proximidades da cidade de São Romão. Oscurrais da Bahia tinham início na região da cidade de Curvelo.Na criação da Capitania de Minas Gerais em 1720, duasregiões, uma vinculada ao ouro e a outra ao gado, foramarticuladas para dar fundação à sociedade mineira.

Na obra de Antonil (1997), “Cultura e Opulência doBrasil por suas Drogas e Minas”, é apresentada sua visão sobrea colônia com base em sua vivência por cerca de 20 anos emterras brasileiras. Quando aborda a atividade aurífera, é narra-do o problema do esvaziamento das regiões das minas, emdecorrência da fome. Em 1701, os criadores de gado doscurrais da Bahia e de Pernambuco fazem a conexão com amineração e passam a alimentar os mineradores. Então amineração se consolida e passa a ser contínua. Nesse momen-to, temos o início da articulação dessas duas formações histó-ricas, com economias distintas.

Em sua dissertação sobre a economia da regiãomineradora, Carla Anastasia (1983) afirma que ela era mono-polizada pela Coroa portuguesa e que a economia da zonapastoril era privada. Em 1736, com a sedição dos criadores degado norte-mineiros, a economia privada foi abafada emdecorrência do chamado desvio do ouro. Havia um intensocomércio de abastecimento alimentar para a região das minas,propiciando o deslocamento de muito ouro para o sertão e, delá, para a Bahia. Havia, também, o contrabando de ouro.Houve o abafamento dessa economia privada que emergia,ainda muito incipientemente, na região dos currais da Bahia.

É possível falar que as outras regiões mineiras sedesdobram destas duas regiões que dão constituição à socieda-de mineira, a do ouro e a do gado.

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As regiões desmembradas da Minas Geratriz são três:a da Mata, a Sul e a Oeste, que, apesar de ter sido ocupada porpaulistas, apresenta especificidades a partir da migração ou dadiáspora dos mineiros com a decadência do ouro. As outrasregiões estão vinculadas em sua economia ao Norte Sertanejo.O Triângulo surgiu pelas entradas e bandeiras oriundas de SãoPaulo que percorriam o sertão em busca de novas áreasmineradoras, graças à descoberta do ouro em Paracatu, Goiáse Mato Grosso. Sua ocupação socioeconômica e sua formaçãocultural estão vinculadas à criação de gado, que se expandiu apartir dos currais da Bahia e de Pernambuco até o Triângulo.O Noroeste teve sua ocupação também vinculada aos bandei-rantes paulistas e aos criadores de gado dos antigos currais deSão Francisco, região caracterizada por Guimarães Rosa comoNorte Sertanejo. O centro apresenta-se como espaço intersticialonde as duas economias distintas se encontram: a exploraçãoaurífera, que se ampliou a partir da Minas Geratriz por toda aSerra do Espinhaço no sentido sul-nordeste, e a criação degado, descida das barrancas são-franciscanas.

Em seu ensaio de caracterização de mineiridade, Sylviode Vasconcellos abre a apresentação dizendo que, no livro,pretende

despertar a atenção para possíveis especificidadesde uma região brasileira contida nos precisos limitesda ocupação humana, condicionada pelo ouro, nãoampliadas as fronteiras do território que se chamaMinas Gerais. Isso porque, ao que parece, as Minasse diversificam das Gerais, que se deitaram posteri-ormente pelos Vales dos Rios Doce, São Francisco,Parnaíba e Rio Grande (1968, p. 9).

Baseando-se no conhecimento do campo semântico, épossível fazer uma crítica ao “das Gerais”, pois, quando se usaessa expressão, se está falando das minas gerais, das minasgeneralizadas. Se se quiser falar dos campos gerais, há quedizer “dos Gerais”, ou seja, ao afirmar “das Gerais”, se estáreferindo às Minas e não aos Gerais.

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MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:IDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE E

AS FRONTEIRAS REGIONAISAS FRONTEIRAS REGIONAISAS FRONTEIRAS REGIONAISAS FRONTEIRAS REGIONAISAS FRONTEIRAS REGIONAIS

Outra consideração crítica possível: Vasconcellos(1968) afirma que o sertão de São Francisco, após a decadên-cia do ouro e a diáspora dos mineiros, teria sido ocupado. Essaé uma inverdade histórica. Os livros de história de MinasGerais afirmam que a partir da decadência do ouro o sertão doSão Francisco é ocupado. Sua ocupação e povoamento éanterior à descoberta do outro e à fundação de Minas. Arinosde Melo Franco (apud Vasconcellos, 1968), fazendo a apre-sentação deste mesmo livro, afirma a dualidade, assim comoo próprio Vasconcellos. Para este,

Minas não há mais, mas Minas é ouro? Sempreentendi que sim, porém múltipla, e isso procureimostrar em páginas já antigas. Mineiro do Gerais –Campos – e das Minas, sinto em mim mesmo amultiplicidade dos meus dois sangues mineiros. Enoto que a aparente contradição da leviandade com aprudência brinca com o cálculo da ambição comindiferença que tantos de nós carregamos. É o destinouma formação histórica contraditória (1968, p. 14).

Se se coloca em um mapa essa dualidade baseando-sena expansão dessas duas formações históricas econômicas eculturais distintas, têm-se estes movimentos: o dos currais, apartir da atual cidade de Matias Cardoso, o Norte, o Nordeste,o Noroeste e o Triângulo e, a partir de Mariana, o Sul, o Oeste,o Leste e o Nordeste. No centro, há a articulação dos doismovimentos de constituição da sociedade mineira.

A perspectiva da dualidade em Minas Gerais, entretan-to, não se restringe a eventos fundantes da sociedade mineira.Em um estudo sobre o planejamento da modernização daeconomia estadual, Otávio Soares Dulci (1999) informa duasdinâmicas distintas que viabilizaram as transformações daeconomia mineira contemporânea. Por um lado, as elitesmineiras articuladas pelo Banco de Desenvolvimento de Mi-nas Gerais (BDMG) desenvolveram o planejamento do desen-volvimento do estado internamente, enquanto o Norte deMinas ficou fora desse planejamento estratégico. Dada avinculação do Norte de Minas à Área do Polígono das Secas

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em 1965, a região norte-mineira foi anexada à área da Superin-tendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e toda amodernização de sua economia foi feita com recursos dogoverno federal, sendo que esse planejamento estratégico foipensado externamente.

Todo o planejamento feito pelo governo federal e pelaSudene, toda a implantação de parque industrial em MontesClaros, Pirapora, Bocaiúva, Várzea da Palma e Capitão Enéase a expansão da modernização da agricultura e da pecuária naregião foram executados com recursos do Fundo de Investi-mento do Nordeste e com incentivos fiscais federais, princi-palmente, e com recursos estaduais e municipais, conformediscutido por Marcos Fábio Oliveira e Luciene Rodrigues(2000). Os empresários, em sua maioria mineiros, captaram osrecursos, montaram fábricas extremamente modernas e quan-do se extinguiram os 10 anos dos incentivos fiscais, transferi-ram toda a planta industrial da fábrica para cidades mineirascomo Belo Horizonte, Contagem, entre outras cidades. Assim,o Norte de Minas contribuiu para a modernização da economiade Minas Gerais duplamente, transformando sua economia erepassando recursos para a ampliação da industrialização dorestante do estado. Houve um processo de industrialização quenão se consolidou como planejado devido ao deslocamentodas fábricas da região para outras regiões mineiras. Todaviaesse processo permanece se desenvolvendo, apesar de o gran-de foco da economia do Norte de Minas ser a agropecuária. Aprodução agrícola, a pecuária e a fruticultura norte-mineiratêm abastecido o Mercosul, a Europa e o Brasil com aprodução de frutas, de carne e de outras culturas agrícolas.

Mesmo recentemente, a dualidade permanece. Os nor-te-mineiros aprendem na escola que são mineiros, o que ostorna apaixonados por Minas Gerais. Quando saem do Norte,porém, e começam a falar em outro lugar, outros mineiros lhesperguntam: “Você é baiano de onde?” Não existe nada maistriste para a gente norte-mineira do que o não-reconhecimentopelos mineiros de que são, culturalmente, parte de MinasGerais.4 Por essa razão é que, atualmente, existe o Movimento

4 Vide Ferreira(1975) e Maurício(1995).

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MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:IDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE E

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Catrumano, que propõe a valorização simbólica do Norte deMinas e sugere que Minas Gerais deva reconhecer a existênciade sua dualidade.5 Como Mariana é celebrada por ter sidoberço da cultura e da civilização mineira, esse movimentoencaminhou pelos deputados regionais a celebração da cidadede Matias Cardoso como o outro berço da cultura e dacivilização mineira. O projeto de emenda constitucional pre-tende que ocorra a transferência simbólica da Capital doEstado para a cidade que foi o berço do povoamento da regiãonorte-mineira. Assim, pode-se reconhecer a existência dessadualidade e valorizar a participação da realidade do Norte deMinas como parte da realidade de Minas Gerais.

Atualmente a mídia financiada pelo governo estadualsó enfoca as Minas. E os Gerais? Para viabilizar a valorizaçãoda segunda formação histórica, socioeconômica e cultural deMinas Gerais, é necessário também colocar o foco nos Gerais.Existem muitas Minas e muitos Gerais. Assim como as regiõesdas Minas são distintas, as regiões dos Gerais também sãodistintas entre si. O Gerais do Norte de Minas é muito diferentedo Gerais do Triângulo, que, por sua vez, é diferentes doGerais do Jequitinhonha. Há diferenças entre os Gerais, quenão são todos iguais, como não são todas iguais as Minas. Amídia tem um papel fundamental na construção do imagináriomineiro com base na dualidade. Nesse sentido, pode-se funda-mentar em Felix Guattari (2005), que discute a micropolíticaa que se está submetido com base na subjetivação do desejopela mídia. Para esse filósofo, encontramo-nos“midiocrizados”, já que o nosso desejo é o desejo construídopela mídia. Fundamentados nessa compreensão, é possívelafirmar que a mídia mineira, financiada pelo governo doestado, veicula a existência das Minas e dos Gerais e queMinas Gerais teve dois berços, um aurífero em Mariana e outropastoril em Matias Cardoso. Ao midiocrizar o desejo, naperspectiva do filósofo, a população mineira passará a valori-zar o Norte de Minas, e o preconceito que se sente na pele nãomais se verificará. Nesse sentido, em sua teoria daestigmatização, Erving Goffman (1988) afirma a possibilida-de de se positivar um estigma que desvaloriza e negativiza

5 Sobre o MovimentoCatrumano videCosta (2008).

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grupos sociais. Essa dinâmica deve emergir do próprio grupoestigmatizado que em processos de afirmação positiva de siconsegue reverter a desvalorização e a negativização.

O Norte de Minas tem realizado uma contribuiçãosignificativa e valiosa para a sociedade. Se se abre o olhar,pode-se compreender a posição geratriz dessa região dosGerais. É uma outra história, uma outra cultura, uma outraeconomia no passado e no presente e, nessa mesma dinâmica,será no futuro.

Por fim, afirma-se que o posicionamento regional estáalicerçado em ressentimentos, mas as lideranças e a populaçãoregional assumiram, pelo Movimento Catrumano, buscar cons-truir o valor simbólico que o Norte de Minas tem em MinasGerais. Já houve muito ressentimento, como evidenciam asdiversas tentativas, todas fracassadas, de autonomia com acriação de uma nova unidade estadual no concerto geopolíticobrasileiro. Essa realidade é diferente da realidade do TriânguloMineiro, que anuncia sua busca de criação de novo estadocomo “carta na manga” de barganhas políticas, conformeestudos de Herbert Toledo Martins (2003) sobre criação deunidades estaduais no Brasil. Atualmente encontra-se emcurso, no Congresso Nacional, mais uma tentativa de separa-ção da região. Essa tentativa é articulada por um grupo depolíticos diverso do referido movimento. Esse atua no intuitode manter a articulação entre as duas regiões geratrizes queconsolidaram a sociedade mineira.

Em minha tese de doutoramento sobre o lugar do Nortede Minas em Minas Gerais (João Batista de Almeida Costa,2003) evidenciei que em termos político-adminstrativos oNorte de Minas pertence a Minas Gerais, mas em termossimbólicos ele não existe para Minas Gerais. Em termos deidentidade, não há reconhecimento de que o norte-mineiro sejamineiro, pois ele é chamado de baiano, baiano cansado oubaianeiro. Ao ser assim classificado, é enfatizado para o norte-mineiro que ele não é parte de Minas Gerais, que não compar-tilha da mesma identidade mineira e é colocado para fora deMinas Gerais. Esse estar fora pode ser lido na história, na

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MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:MINAS GERAIS NA CONTEMPORANEIDADE:IDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE EIDENTIDADE FRAGMENTADA, A DIVERSIDADE E

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simbologia e na identidade, embora o Norte de Minas façaparte do estado. Essa ambigüidade de se estar dentro e se estarfora é muito incômoda para quem a vive, principalmentequando também se é discriminado.

Essa ambigüidade foi interpretada por meio da teoria dahierarquia do antropólogo francês Louis Dumont (1992), paraquem, na ideologia, a hierarquia engloba o contrário. Se em umnível se pode diferenciar, em outro não há diferença. Paraexemplificar, ele usa a questão do homem e da mulher. Numcerto nível, o homem é diferente da mulher, mas no nívelsuperior, quando queremos nos referir à humanidade, falamoshomem com “h” maiúsculo. Para a ideologia hierárquica, oHomem engloba a mulher e o homem nesse nível superior. EmMinas Gerais, acontece o mesmo. O segredo de Minas está noseu próprio nome. Se originalmente a expressão “MinasGerais” significava a região das minas gerais, ao incorporar aregião dos campos gerais, esse nome não pode estar vinculadoapenas às Minas ou aos Gerais. Ele se refere às Minas e aosGerais, hierarquicamente se fala do estado e não de uma ououtra região que está englobada na unidade política estadual.Mas, na ideologia, as Minas englobam os Gerais e obliterama dualidade mineira. Quando se diz “das Gerais”, o que se estáafirmando, quando se lê o campo semântico, não são oscampos gerais, mas as Minas generalizadas.

Interessante compreender, com base na teoria da hierar-quia construída por Norbert Elias e John Scotson (2000), comose deu o processo do englobamento. Em seu estudo sobre osestabelecidos e os outsiders, os autores afirmam que é neces-sário compreender a sociodinâmica por meio da qual um grupose julga superior ao outro e o faz inferiorizado. No início doprocesso, a região das Minas Gerais foi chamada de Sertão dosCataguá e a do Norte de Minas de Sertão do São Francisco.Então, as duas se encontravam no mesmo patamar. No proces-so histórico da sociodinâmica da construção dessa hierarquia,é possível ler o deslocamento baseando-se na construção daideologia da mineiridade. É ela que alicerça o englobamentodo contrário.

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A diversidade na periferia do imaginário mineiroA diversidade na periferia do imaginário mineiroA diversidade na periferia do imaginário mineiroA diversidade na periferia do imaginário mineiroA diversidade na periferia do imaginário mineiro

A segunda questão que se faz necessário abordar aquise refere aos povos e comunidades tradicionais existentes emMinas Gerais. Os povos tradicionais são dois: indígenas equilombolas.

Se se analisa as características dos indígenas em MinasGerais, pode-se dizer que o índio mais vinculado à perspectivaromântica com língua e cultura próprias e que anda quase nué o Maxacali. Todos os outros povos indígenas chocam aspessoas, como os Xakriabá, que não têm feições indígenas, sãouma população miscigenada, híbrida, que esqueceu sua línguae religião. Isso é fruto da política implantada em relação aosíndios tanto no período colonial quanto no imperial. Noperíodo colonial, houve a criação de aldeias e a mistura dediversos povos – mesma técnica utilizada com os negros, quejá eram misturados ainda em África. Misturaram os índios paraque perdessem sua “indianidade”. Em decorrência disso, essespovos perderam sua língua e religião, mas não sua identidade.No momento que puderam, com o avanço democrático doPaís, emergiram reivindicando sua “indianidade”. O caso quemais conheço é o dos Xakriabá, no Norte de Minas. Eles nãosão originários de Minas Gerais, para onde vieram. Durante oprocesso de penetração dos paulistas em Mato Grosso, come-çou o deslocamento desse e de outros povos indígenas. MathiasCardoso já havia exterminado as sociedades indígenas queexistiram na região do Norte de Minas e havia o esvaziamentode índios na região.

Por volta de 1720, chegaram grupos Kaiapó, os Xakriabáe outros povos vindos do Mato Grosso, conforme AlessandroRoberto de Oliveira (2004). Januário Cardoso, Governador dosÍndios do São Francisco, fez um acordo com os Xakriabá, quese tornaram a mão armada dos fazendeiros na luta contra outrospovos indígenas, que foram expulsos da região. Existe umdocumento assinado por ele, um tratado dele como Governadordos Índios do São Francisco com as lideranças Xakriabá em quefoi feita a doação do território pertencente a esse povo indígena.Em 1850, com a Lei da Terra e o processo de ordenamento

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fundiário no Brasil, um grupo de índios Xakriabá saiu do seuterritório para ir ao encontro do Imperador, em Petrópolis. OImperador reconheceu o território doado por Januário Cardosoe encaminhou correspondência para o cartório de Januária, quereconheceu a terra Xakriabá como coletiva.

Em 1960, à época do processo de ordenamento fundiáriofeito pela Ruralminas em Minas Gerais para a ocupaçãodaquela área de terra devoluta, essa empresa não aceitoureconhecer o território coletivo dos Xakriabá. Diziam que elesnão eram índios, mas caboclos, apesar de a população afirmarque viviam em território coletivo e tinham sua “indianidade”.Eles foram à Funai, que também recusou o reconhecimentodeles como índios. A Ruralminas, então, começou o processode parcelamento do território coletivo dos Xakriabá até queuma de suas lideranças foi assassinada. Naquele momento, osíndios brasileiros estavam fazendo denúncias na Unesco e naONU da situação por eles vivida, e rapidamente a Funai osreconheceu como índios. Os outros índios de Minas, Kaxixó,Pankararu, Xukuru-Kariri, Atikum, Kiriri, Puri e Tuxá, comexceção dos Maxacali, emergem em sua indianidade depois daConstituição de 1988, e se apresentam como sendo índiosmisturados. Essa mistura decorre das políticas para os índiosno período colonial e imperial.

Há um estudo de Nelson de Senna (1926) em que éinformada a existência histórica de dezenas de sociedadesindígenas que existiram no atual território de Minas Gerais.Não há estudos sobre essas populações que aqui viveram e queforam exterminadas, expulsas ou escravizadas durante o pro-cesso de ocupação e povoamento desse Estado. Entretanto, associedades indígenas que contemporaneamente estão situadasno espaço territorial mineiro podem ser lidas com base nasetnografias que estudantes de antropologia apresentam comomonografias de graduação, dissertações de mestrado ou tesesde doutoramento. Essas informações podem ser acessadas nainternet, na página do estudioso dos indígenas Julio CésarMelatti.6 Esse pesquisador procura evidenciar as característi-cas específicas de cada uma das sociedades etnografadas.

6 http://www.geocaities.com/juliomelatti/ias-a/txpq.htm

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Quanto aos quilombolas, no Centro de DocumentaçãoEloi Ferreira da Silva tem sido feito o levantamento dessascomunidades em Minas Gerais. Já foram levantadas 467comunidades, e esse não é o número definitivo. À medida queas comunidades negras tomam conhecimento da possibilidadede manutenção e acesso ao território pensado coletivamente,solicitam seu reconhecimento como quilombola. Portanto, onúmero de quilombos em Minas Gerais é de exponencialcrescimento. No estado, o único quilombo com sua terratitulada é o Quilombo de Porto Coris, em função da construçãoda hidrelétrica de Irapé. A Cemig viabilizou, articulou eagilizou o reconhecimento de Porto Coris e a titulação de suaterra. Os outros quilombos estão em processo de reconheci-mento. Alguns como Mumbuca, no vale do Jequitinhonha,Brejo dos Crioulos e Gurutubanos, no Norte de Minas, PortoPontal e Machadinho, esses dois últimos na região de Paracatu,têm processos de reconhecimento e titulação de terras maisavançados.

O acesso dessas comunidades ao direito foi estabeleci-do na Constituição de 1988. A Constituição, no artigo 216,tombou todos os sítios de referência a quilombos no Brasil. Otombamento foi feito no momento da promulgação da Cons-tituição. O Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucio-nais Transitórias reza que, ao ser reconhecida a comunidadecomo remanescente de quilombo pela Fundação Palmares, apopulação negra passa a ter direito à regularização fundiária.E Minas Gerais é o estado mais atrasado nessa questão. OMaranhão, a Bahia e o Pará estão bastante avançados, e SãoPaulo tem uma característica muito específica: o próprioestado tem feito o maior número de reconhecimento de regu-larização fundiária dos seus quilombos, e não a União, ou seja,são poucos os quilombos reconhecidos e titulados pela União.Diferentemente em Minas Gerais, mesmo que a comunidadeesteja situada em terras devolutas, o estado não reconhece asituação dessa comunidade.

Quando surgiu a categoria de direito quilombola, afir-mou-se que em Minas Gerais existiam 67 quilombos. Essa

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classificação partiu de um levantamento baseado em documen-tação histórica existente no Arquivo Público Mineiro. Essarelação enuncia quilombos históricos. Entretanto, a Procurado-ria-Geral da República e a Associação Brasileira de Antropolo-gia estabeleceram um convênio que ressemantizou o conceito,retirando-o do passado colonial para atualizá-lo, a par daConvenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, daqual o Brasil é signatário. Nela é expresso que a definição étnicade um grupo se dá com base na auto-afirmação e não com baseem qualquer outro critério externo. No caso mineiro, se se basearo direito das comunidades negras rurais na documentaçãoexistente no Arquivo Público Mineiro, a maioria das populaçõesque passaram a se identificar como quilombo – existência de umgrupo negro que se articula na defesa de um território por meiode sua organização social – não poderiam acessar os direitosconstitucionais. Há regiões de Minas Gerais, como aquelassertanejas em que não existe documentação nem colonial e nemimperial. Só a partir de 1831, com a instituição das vilas nosertão, é que a vida social passa a ser documentada. Entretanto,pela memória social de cada comunidade negra rural é possívelvoltar no tempo para resgatar a historicidade, a territorialidadee a identidade desses grupos negros rurais. No caso de Brejo dosCrioulos, por exemplo, foi possível retornar até as proximidadesdo ano de 1750 (Costa, 1999), mesmo com a referência que aliexistiam crioulos.

Atualmente Minas Gerais possui 467 quilombos levan-tados pela relação do Cedefes. Esse salto se deu quando ascomunidades negras começaram a tomar conhecimento dodireito ao território legado por seus antepassados e solicitaramo reconhecimento, além de muitas prefeituras municipais quepassaram a também fazê-lo após a instituição do ProgramaBrasil Quilombola do governo federal. O programa destinarecursos exclusivos para essas comunidades, e as administra-ções municipais têm usufruído desses recursos, que muitasvezes não chegam aos beneficiários legítimos.

Pode-se dizer que a Constituição expressa o desejoprofundo da sociedade brasileira de que sociedade se quer que

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seja o Brasil. Nesse sentido, a Constituição enuncia as diretri-zes da criação da sociedade brasileira que os brasileiros,durante a Constituinte, pensaram, lutaram e conquistaram, emtermos constitucionais, para o Brasil. Entretanto, na constitui-ção do Estado-Nação, o sujeito que emerge como pleno dedireito é o homem branco, letrado e proprietário (Leite, 2008).Isso permanece até hoje, porque todo o arcabouço jurídicofunciona para defender o sujeito proprietário, branco, homemletrado. A transformação das populações negras rurais emsujeito pleno de direito propicia a essas populações minoritárias,discriminadas e excluídas da sociedade, que sofreram o impac-to da expansão da modernização da economia do País emergi-rem no cenário político atual com outro estatuto. Seus gruposnegros rurais foram encurralados nas terras que detinham,como posse, desde seus antepassados. Na teoria que funda-menta estudos sobre quilombos é informado que a origem dosquilombos, no período escravocrata, normalmente surgiu emterra ou lugar que ninguém queria, devido a incidência dedoenças endêmicas, a dificuldades de acesso e a nenhum valormercantil das terras. Nessas áreas, os negros fugidos daescravidão instituíram os quilombos históricos, mesmo quenão tenham sido documentados, devido à estratégia deinvisibilização a que recorriam para viverem livres e autôno-mos no interior do País.

A falta de acesso das comunidades reconhecidas comoremanescentes de quilombo aos seus territórios se deve ao poderque a terra dá a indivíduos que especulam imobiliária e financei-ramente o espaço historicamente ocupado pelas populaçõesnegras rurais. Para essas populações conquistarem ser sujeito dedireito, contra o branco, homem, proprietário, letrado, deman-dará muita luta, muito sangue, muito tempo. Não será fácil. Nasociedade mineira é mais difícil, porque essa sociedade éextremamente conservadora e não reconhece a grande contri-buição que os negros deram para a sua constituição como umadas sociedades mais importantes da história brasileira.

Com a expansão da economia moderna, essas popula-ções foram encurraladas em pequenas áreas de terra dos

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territórios legados pelos antepassados. Atualmente, em MinasGerais, além de nova onda de expansão da modernização daeconomia, pelo agronegócio, há um novo ordenamentoambiental que incide, exatamente, sobre os territórios onde seencontram situadas as comunidades de quilombo e as comu-nidades tradicionais. Isso se vincula aos seus sistemas deprodução com o qual reproduzem a vida material de cadaindivíduo, de cada família e da coletividade como um todo. Écaracterística desses modos de vida tradicionais ainterdependência com a natureza onde se encontram situadasessas comunidades. Assim, as populações preservaram a natu-reza. Com relação aos direitos quilombolas face aos direitosambientais, a Constituição Federal define no artigo 216 otombamento dos sítios de reminiscência dos quilombos. Aoserem reconhecidas pela Fundação Palmares, as comunidadesnegras passam a deter o controle sobre o território étnico.Porém, novas unidades de conservação estão sendo implanta-das nesse estado e não se respeita o direito constitucional, queem sua promulgação tombou os sítios quilombolas e o reco-nhecimento lhes transfere a posse. A anterioridade de direitodas comunidades negras é descartada pelo poder que osambientalistas, em organismos estatais, têm sobre populaçõesnegras rurais, em sua maioria e excluídas dos benefíciosgerados pela sociedade nacional e estadual.

Esses são os nossos dois povos tradicionais.

As comunidades tradicionais em Minas GeraisAs comunidades tradicionais em Minas GeraisAs comunidades tradicionais em Minas GeraisAs comunidades tradicionais em Minas GeraisAs comunidades tradicionais em Minas Gerais

No momento atual, algumas populações têm reivindi-cado uma tradicionalidade vinculada aos Artigos 15 e 216 daConstituição Federal. O Artigo 215 afirma a necessidade dereconhecimento dos grupos que contribuíram para a formaçãoda nacionalidade brasileira, e, no País inteiro, inclusive emMinas Gerais, algumas comunidades têm buscado para si osdireitos decorrentes dessa tradicionalidade.

É interessante que, em nosso Estado, todas as comuni-dades que têm solicitado tal reconhecimento estão no Norte de

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Minas, onde há uma situação muito peculiar. Essa é umaregião de transição entre o cerrado, a caatinga e a florestatropical úmida. Dada a apropriação que as populações fizeramdesses espaços, surgiu uma relação com o ambiente que, emantropologia, é conceituada “etnicidade ecológica”7. Essaspopulações passaram a se denominar, umas a outras, emdecorrência do bioma onde vivem. Os geraizeiros, por exem-plo, ou gente dos gerais é um nome que decorre da existênciado povo chamado caatingueiro8. E, interessantemente, osgrupos denominados caatingueiros são descendentes, em suaquase totalidade, de italianos que, no final do século XIX,vieram para o Brasil e se localizaram no Norte de Minas. Outracomunidade tradicional são os veredeiros, ou a gente dasveredas, e eles vivem, principalmente, na região Noroeste9.Por fim, há os vazanteiros, que vivem nas vazantes do SãoFrancisco10. Algumas pessoas moravam nas margens e nasilhas do São Francisco, mas, com o processo de expansão dafronteira agrícola nos anos 1960, perderam acesso às margense hoje vivem nas ilhas.

Essas populações estão reivindicando atualmente seureconhecimento como grupos étnicos diferenciados, e essanão é uma invenção de antropólogos nem deles. A Constitui-ção legitima suas etnicidades.

Donald Pierson (1972) realizou uma pesquisa financi-ada pela Suvale, que antecedeu a Codevasf, para compreendertoda a realidade do São Francisco. Foi publicado depois orelatório como livro, que se chama “O Homem no Vale do SãoFrancisco”. No primeiro volume, é informado que no Norte deMinas, no Alto e Médio São Francisco, existem essas quatropopulações tradicionais com modos de vida característicos,cada uma com sua especificidade e com diferenças entre elas.Então, há um registro histórico de 1950. Dizem que nós,antropólogos, estamos inventando identidades. Mas essasetnicidades foram encontradas por Donald Pierson na regiãodo Médio São Francisco de Minas Gerais dadas as diferençaspor meio das quais as populações se reconheciam a si mesmase afirmavam a diferença de outras populações com quem serelacionavam.

7 Sobre a concei-tuação vide Oli-veira (2005).

9 Sobre os veredeirosvide Costa (2005).10 Sobre os vazanteirosvide Oliveira (2005).

8 Sobre osgeraizeiros videDayrell (1998) e so-bre os Caatingueirosvide D´Angelis Filho(2005).

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