caderno de textos

157
á çã í á Dezembro 2014

Upload: rua-juventude-anticapitalista

Post on 07-Apr-2016

226 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Caderno de Textos do I Seminário Nacional de Formação Política da Frente de Movimento Estudantil Universitário Movimento RUA - Juventude Ancitapitalista

TRANSCRIPT

Page 1: Caderno de Textos

á çã í

á

Dezembro 2014

Page 2: Caderno de Textos

1. ATUALIZAR O PROGRAMA PRAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS ....................... 4

Texto 1: A CONTRA-REFORMA UNIVERSITÁRIA DE LULA DA SILVA ................................................................ 4

Texto 2: EDUCAÇÃO SUPERIOR MINIMALISTA: A EDUCAÇÃO QUE CONVÉM AO CAPITAL NO CAPITALISMO DEPENDENTE ............................................................................................................................................. 14

Texto 3: Universidades Pagas – Democratizando a Universidade: PROUNI E FIES? .................................... 37

Texto 4: Universidades Privadas – Regulamentação já! ............................................................................. 41

Texto 5: Tese do Movimento Honestinas – Universidade pra quê? ............................................................ 44

Texto 6: A PRÁTICA DA EXTENSÃO COMO RESISTÊNCIA AO EUROCENTRISMO, AO RACISMO E À MERCANTILIZAÇÃO DA UNIVERSIDADE ..................................................................................................... 55

2. CONCEPÇÃO DE MOVIMENTO ESTUDANTIL E TRABALHO DE BASE ................. 90

Texto 1: Nós não vamos pagar nada - Unificando diferentes pra fazer a diferença! ................................... 90

Texto 2: Os valores e os desvios na militância .......................................................................................... 100

Texto 3: Princípios e elementos organizativos para iniciar um debate ..................................................... 108

Texto 4: MOVIMENTO ESTUDANTIL: PROCESSO DE CONSCIÊNCIA & TRABALHO DE BASE- “ABRINDO CAMINHOS DE LUTA” ............................................................................................................................... 112

3. REORGANIZAÇÃO DO MOVIMENTO ESTUDANTIL – OPOSIÇÃO DE ESQUERDA DA UNE E FEDERAÇÕES/EXECUTIVAS DE CURSO ................................................. 122

Texto 1: Lutar quando é fácil Ceder! – A reorganização do ME ................................................................ 122

Texto 2: POR QUE SER OPOSIÇÃO DE ESQUERDA À MAJORITÁRIA DA UNE?............................................ 137

Texto 3: Movimento de área .................................................................................................................... 139

4. EDUCAÇÃO LIBERTADORA E COMBATE ÀS OPRESSÕES ................................ 148

Texto 1: Vermelha flor, vermelha bandeira. ............................................................................................ 148

Texto 2: Hoje você é quem manda, falou tá falado... ............................................................................... 149

Texto 3: Aqui eu poderia cantar uma canção veemente .......................................................................... 151

Texto 4: Por um movimento estudantil feminista .................................................................................... 152

Texto 5: Mudar a sociedade, não a nossa cor ........................................................................................... 154

Texto 6: Por que nos auto-organizamos? ................................................................................................. 155

Page 3: Caderno de Textos

Texto 7: Pelo direito de decidir ................................................................................................................ 156

Page 4: Caderno de Textos

4

1. Atualizar o Programa pras Universidades Brasileiras

Recomendamos, também, o Caderno 2 do Andes SN, disponível em Andes.org.br e na lista de e-mails do RUA.

Texto 1: A CONTRA-REFORMA UNIVERSITÁRIA DE LULA DA SILVA

Roberto Leher

O governo Lula da Silva recolocou em movimento a engrenagem de uma

reforma universitária que, se exitosa, estraçalhará a concepção de universidade

da Constituição Federal de 1988 e o futuro dessas instituições. A partir de um tripé

constituído pelo Banco Mundial, pelo próprio governo Lula da Silva e por uma

ONG francesa, ORUS, dirigida por Edgar Morin, está sendo erigido um falso

consenso que poderá redefinir profundamente a universidade brasileira e quiçá de

diversos países latino-americanos, representando a vitória de um projeto

asperamente combatido por sindicatos, estudantes, reitores, entidades científicas,

fóruns de educadores e partidos, no curso da última década: a conexão com o

mercado e, mais amplamente, a conversão da educação em um mercado. E, não

menos relevante, será mais uma oportunidade perdida de reforma verdadeira

dessas instituições que, ao longo de sua breve, mas intensa história, ainda não

viveram um processo democrático de reforma, a partir de seus protagonistas, para

afirmá-la como instituição pública, gratuita, autônoma, universal, locus de

socialização e de produção de conhecimento novo.

Com efeito, após duas décadas de resistências às reformas do Banco

Mundial, a realização de seu programa educacional seria uma amarga e profunda

derrota para a universidade pública. Os (neo) crédulos poderiam objetar que o

Banco aceitaria uma nova agenda menos deletéria para a universidade, pois a

organização criada em Bretton Woods, conforme certa leitura sui generis de sua

história recente, tem demonstrado maior preocupação social. Ademais, a

assessoria do ORUS, entidade dirigida inclusive pelo ministro da educação

Page 5: Caderno de Textos

5

brasileiro, e a própria natureza do governo Lula, cujo partido tem estreita ligação

com as lutas educacionais, poderiam criar um novo marco, superando, assim, os

históricos propósitos neocoloniais do Banco.

Os objetivos do Banco Mundial e suas consequências nas nações periféricas

Somente renunciando ao pensamento crítico, é possível edulcorar a ação dos

organismos internacionais na América Latina, uma região compungida a exportar

capitais para o circuito comandado por Wall Street e Washington, em troca de

estagnação, miséria e sofrimento de milhões de pessoas [1]. O objetivo supremo

das políticas de ajuste estrutural do Banco Mundial e do FMI segue sendo

viabilizar o pagamento dos ignominiosos juros e serviços da dívida, em favor do

capital rentista. Ao assinar um acordo com o FMI, o país "flexibiliza" a sua

soberania, chegando, até mesmo, a mudar os seus textos constitucionais para

atender "as condicionalidades inscritas nesses acordos, como fizeram a Argentina,

o Brasil e o México, tristes exemplos dessa situação. Em continuidade, os acordos

reduzem as políticas sociais a ponto de, no limite, restringir os direitos sociais à

manutenção vegetativa da vida dos miseráveis (campanhas contra a fome) e, para

assegurar a governabilidade, sustentam medidas focalizadas capazes de aliviar a

pobreza para assegurar o controle social, atualmente uma das maiores

preocupações do Banco Mundial, em virtude da devastação social, e do

conseqüente aumento na tensão social, provocado pelas políticas neoliberais.

No plano educacional, é sobejamente conhecido que as políticas de ajuste

estrutural do Banco Mundial contribuíram decisivamente para inviabilizar a

educação e em particular as universidades da África subsaariana [2] e, no caso da

América Latina, impediram que os governos mantivessem as universidades entre

as prioridades das políticas públicas, contrapondo o direito aos conhecimentos

científico, tecnológico e artístico à alfabetização e às primeiras letras, estas

últimas tidas apenas como ações focalizadas para os que foram eleitos como os

mais pobres. Como desdobramento, o fornecimento privado conheceu um

Page 6: Caderno de Textos

6

crescimento colossal no Brasil [3] e em toda a região, aprofundando o

neocolonialismo.

De fato, o abandono da responsabilidade do Estado no fomento a produção

de conhecimento estratégico agrava a condição capitalista dependente dos países

periféricos. Conforme o relatório anual da UNCTAD (2003), países como Argentina

e Brasil passaram a conhecer um processo de desindustrialização, enquanto

outros, como o México, vivem uma industrialização de enclave (maquilas). É muito

importante observar que essa política subalterna é praticada pela coalizão de

classes dominantes locais, dirigidas em conformidade com os centros

hegemônicos do capital. No Brasil, o exemplo mais ilustrativo dessa situação pode

ser simbolizado pelo presidente do Banco Central, Henrique Meirelles[4] que, junto

com os ministros da agricultura e do desenvolvimento, representa os setores que

hoje têm a supremacia na coalizão de governo: financeiro, agrobusiness e

commodities.

Coerentemente, recente "pacote" que vem sendo operacionalizado entre o

Banco e o governo brasileiro tem como condicionalidade o fim da gratuidade do

ensino superior [5], posição que, como ficou exposta no discurso do ministro da

educação na UNESCO, conta com sua plena simpatia [6]. Maior entusiasmo pelo

fim da gratuidade pode ser encontrado na área econômica, visto a sua ortodoxia

neoliberal, como fica evidente nos documentos do Ministério da Fazenda e, em

particular, no documento "Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002" que, em

conformidade com o teórico da direita da Escola de Chicago, Gary Becker, postula

que o ensino superior gratuito é o principal obstáculo à concretização da justiça

social no país, recomendando empréstimos aos estudantes para que estudem nas

escolas privadas, uma opção mais econômica segundo o documento.

Os objetivos dos lacaios do Banco Mundial e as consequências no Brasil

No que ainda restar como setor público, o Chefe da Casa Civil, José Dirceu,

sugere que as instituições terão de se ajustar ao mercado, como previsto na Lei

de Inovação Tecnológica, originalmente proposta pelo governo Fernando Henrique

Cardoso (PL 7282/2002) e vigorosamente criticada na academia, notadamente por

Page 7: Caderno de Textos

7

significativos setores da SBPC, colegiados superiores e sindicatos: "Vamos mudar

toda a relação da universidade com o empresariado, empresas, fundos de

investimento. Citou, como bons exemplos, o ensino superior da China e da Coréia

do Sul" (FSP, 5/12/03), casos que não poderiam ser mais desastrosos para a

universidade brasileira: ambos países flexibilizaram a gratuidade e não asseguram

liberdade de cátedra, sendo que, no que refere-se a relação entre a oferta pública

e privada, o modelo coreano é muito semelhante ao existente no Brasil, ademais,

na Coréia grande parte da pesquisa é direcionada para três grandes

conglomerados: Daewoo, Hyundai e Lucky-Gold Star [7].

Com efeito, a manutenção do superávit primário de 4,25% do PIB até o final

do mandato impossibilita a expansão do fornecimento público e, pior, até mesmo a

manutenção das instituições existentes. Por isso, o mercado é tido como a tábua

de salvação das promessas de campanha, concorrendo, para a perseguida

governabilidade da ordem existente. Com a reforma, dois problemas que afetam a

governabilidade poderiam ser operados: a despolitização do desemprego

(reconfigurado como um problema de qualificação), ocultando o debate sobre o

modelo econômico adotado por Lula da Silva, e a desestruturação dos principais

loci em que o pensamento crítico sistemático vem sendo produzido. Por isso, são

compreensíveis as ameaças do Chefe da Casa Civil: como a reforma não objetiva

o fortalecimento da universidade pública, gratuita, autônoma e capaz de produzir

livremente conhecimento, José Dirceu adiantou, antes mesmo de submeter suas

propostas ao debate, o método obscurantista para a sua aprovação: "o pau vai

comer", disse o Ministro [8].

A admissão do uso de coerção contra os que se opuserem à reforma,

encaminhada pela tríade mencionada, indica que a coalizão governamental

pretende, de fato, redefinir as universidades em organizações sociais competitivas

e inseridas no mercado, concluindo o Plano Diretor da Reforma do Estado,

encaminhado por Cardoso. Mais do que por uma razão econômica concreta, visto

que o mercado capitalista dependente não requer a produção de conhecimento

novo, a expansão virtual [9] e a vinculação estreita universidade-empresa atendem

a imperativos políticos no complexo terreno das ideologias. Em um contexto de

Page 8: Caderno de Textos

8

terrível desemprego, notadamente entre jovens, e de impossibilidade – nos

marcos da política macroeconômica com foco na inflação [10] - de políticas que

permitam a reversão desse quadro [11], a transformação das instituições de

ensino em depositárias das esperanças de inserção social de vastos setores da

juventude é – e tem sido – largamente utilizada pelos governos neoliberais como

um importante instrumento de governabilidade.

Os métodos "pós modernos" da ORUS - ONG à serviço do Banco Mundial e seus lacaios

Quanto ao ORUS, os seus antecedentes também não são alentadores. Edgar

Morin, a despeito de suas reflexões epistemológicas, que mereceriam um estudo a

parte, foi um dos mentores da contestada reforma de Claude Allègre, no período

de conversão neoliberal de Mitterrand, que pretendia adequar os liceus e

universidades às necessidades empresariais [12], projeto que, em virtude da

intensa oposição dos sindicatos, por meio de expandidas greves e manifestações,

e de intelectuais, como Pierre Bourdieu e outros [13] que não colocaram os seus

talentos a serviço dos governos neoliberais, acabou não se viabilizando, ao menos

não nos termos das pretensões primeiras. Fracassado no centro do capitalismo, o

"modelo da complexidade" está sendo vendido como uma nova referência a ser

seguida na periferia, em especial no Brasil e na Venezuela, coincidentemente

países com grandes mercados educacionais.

Os operadores do ORUS pensam que, com o seu projeto, os atrasados latino-

americanos poderão ser finalmente "civilizados" pelo que Morin denomina

pensamento "complexo". Como bons conhecedores dos métodos de ajuda aos

povos primitivos, sabem que não é possível aplicar um pacote sem que o mesmo

tenha um verniz de participação social autóctone. Na reforma Allègre, Morin

liderou uma consulta por meio de formulários padronizados distribuídos aos

estudantes e aos professores dos liceus (cujos questionários são um esplêndido

contra-exemplo de cientificidade, tanto ao nível da coleta de informação, como de

seu impossível tratamento estatístico)[14].

Page 9: Caderno de Textos

9

No Brasil, um território tido como menos exigente no trato democrático dos

assuntos públicos, optou-se por uma cyber participação através de uma lista de

discussão não publicizada. Este simulacro de participação seria apenas mais uma

mera formalidade burocrática, não fosse o seu conteúdo pleno de colonialidade:

em apenas duas páginas [15], os operadores do ORUS ensinam o que é uma lista

de discussão, como os brasileiros devem se portar para poder utilizá-la e o que

pode ser sugerido ou proposto como temas para "adequar as nossas

universidades às novas tecnologias e ao mercado". Após ORUS nos explicar que

um fórum de debates é um lugar de discussão e que, por conseguinte, devemos

estar atentos ao que dizem os demais participantes, e, ainda, após oferecer

instigantes "conselhos" sobre como redigir uma mensagem (objetivo, espaços

entre os parágrafos, resumo das idéias principais, etc), faz uma advertência: o

moderador do ORUS se reserva ao direito de "selecionar" as mensagens

"pertinentes" (SIC!). Para facilitar a comunicação da atrasada comunidade

acadêmica autóctone com o pensamento complexo, numerosos exemplos são

oferecidos aos participantes:

"Nesta sala de debates, os participantes deverão desenvolver mensagens que

exprimam o que significa para o Brasil a reforma do pensamento universitário e

como fazê-la. Deverão sugerir como mudar o pensamento sobre o ensino dado

hoje pelas universidades brasileiras, o que deve ser conservado e o que pode ser

aprimorado. Eles poderão dar exemplos específicos de algum curso em particular

ou falar de um modo geral. Também poderá incluir fatores externos que influencia

diretamente no pensamento da reforma."

A seguir, o ORUS informa aos internautas o que o MEC ainda não havia

comunicado aos cidadãos brasileiros ou, melhor, aos sujeitos caracterizados como

os interlocutores potenciais do MEC-ORUS:

"O MEC quer saber o que pensa e o que espera a sociedade brasileira do

ensino universitário, para poder prosseguir a reforma e, com isso, adequar a

educação brasileira às novas tecnologias e demandas do mercado. Não é de hoje

que ouvimos dizer que os recém-formados saem das universidades

despreparados para o trabalho. Por isso, esse fórum é destinado a todos os

Page 10: Caderno de Textos

10

setores da sociedade como: professores, alunos, pais, empresários, que terão a

oportunidade de contribuir para melhorar a formação dos futuros profissionais

(destaques, RL)."

Um Seminário internacional onde a participação do movimento foi vetada de

antemão

Cabe observar que, conforme a ORUS, o MEC já encaminha uma reforma e

que a mesma terá continuidade. Embora registre que o MEC quer saber o que

espera a sociedade brasileira, ORUS, a priori já tem uma resposta: "adequar a

educação brasileira às novas tecnologias e demandas do mercado". ORUS

comunica também que o trabalho acadêmico desenvolvido nas universidades

públicas brasileiras é incapaz de preparar para o trabalho. Curiosamente, ORUS

não menciona as urgentes providências para minorar a catástrofe que o país

deveria estar enfrentando em virtude do despreparo de seus engenheiros,

enfermeiros, médicos, etc, considerando que, até para que o ORUS (e o sujeito

oculto, o Banco Mundial) possa ensinar às universidades como formar

profissionais "aptos ao trabalho", ao menos cinco ou seis anos serão necessários

para atingir "profissionais -ORUS".

Após três meses de fórum ORUS, realizado, em tese, sob a égide do

paradigma da complexidade (que, nos trópicos, deve ter uma única idéia por

mensagem conforme nos ensina a referida instrução), foi realizado um seminário

internacional [16] co-patrocinado pelo Banco Mundial, em que os conferencistas

teriam acesso aos debates realizados e um documento consensual seria

aprovado. Nem mesmo Fernando Henrique Cardoso convocou o Banco Mundial

para ministrar as suas lições derivadas da experiência mas, com Lula da Silva, o

Banco assume lugar de destaque: apresenta e financia a sua proposta ou, antes,

o consenso em torno de sua proposta (sabemos que se não houver consenso, as

condicionalidades do Banco podem ser impostas!).

É certo que, entre os convidados ao referido Seminário, existem alguns

poucos intelectuais comprometidos com a universidade pública, mas este fato em

nada modifica o seu arcabouço geral. Considerando que os educadores estiveram

Page 11: Caderno de Textos

11

entre os principais protagonistas dessas lutas, a omissão de todos aqueles que

resistiram e defenderam o ensino público é ainda mais significativa. De outra

parte, a inclusão de intelectuais que formularam o projeto neoliberal de Ferrnando

Henrique Cardoso entre os conferencistas, sem a possibilidade de apresentação

de argumentos que critiquem esse projeto de universidade, assume ainda maior

dimensão: ratifica e busca legitimar uma opção política! Não é casual, portanto,

que, no referido seminário, não tenham sido convidados como conferencistas os

representantes dos sindicatos, das entidades científicas e dos dirigentes.

Educação: de direito à lucrativa mercadoria. Tudo em nome da "justiça social"!

A conclusão de que os países periféricos devem importar os modelos dos

países do Norte é crucial para o futuro do Acordo Geral sobre o Comércio de

Serviços da OMC. Os países do Norte exportarão conhecimento escolar, como

ocorre hoje com as patentes! Essa ofensiva, presente também na agenda do

ALCA, tem como meta edificar um mercado educacional ultramar, sacramentando

a heteronomia cultural. Mas o pré-requisito é converter, no plano do imaginário

social, a educação da esfera do direito para a esfera do mercado, por isso o uso

de um léxico empresarial: excelência, eficiência, gestão por objetivos, clientes e

usuários, empreendedorismo, produtividade, profissionalização por competências,

etc.

Esse léxico é contraposto às políticas públicas universais e ao modelo

universitário consagrado na Carta de 1988, cujos defensores são desqualificados

como corporativistas, elitistas, privilegiados, insensíveis ao drama social. Nesse

jogo de significações aparentemente difusas, o governo joga o povo pobre (os

camponeses, citados por Lula da Silva) contra os privilegiados servidores da

universidade (os professores, conforme o mesmo Lula da Silva) (mensagem: o

camponês é pobre porque os professores têm muitos privilégios, nada tendo a ver

com a estrutura fundiária!), a exemplo do que fizera na reforma da previdência.

Assim, reformas regressivas, privatistas, anti-republicanas e que beneficiam os

Page 12: Caderno de Textos

12

ricos, são apresentadas aos de baixo como uma vitória da justiça frente aos

privilégios.

Que fazer?

Diante dessa ofensiva sem precedentes contra o ensino público, reitores,

colegiados acadêmicos, sindicatos, professores, pesquisadores, técnicos e

administrativos e, sem dúvida, os estudantes, terão de criar espaços democráticos

de discussão para construir e difundir na sociedade uma agenda de reforma

verdadeira das universidades brasileiras. Questões como: estratégias de

universalização, autonomia, democracia, controle social das instituições privadas,

articulação ensino-pesquisa, financiamento público das instituições estatais,

condições de trabalho dos trabalhadores da educação, assistência estudantil,

democratização efetiva dos órgãos de fomento a C&T, colonialidade do saber,

integração com os países periféricos e centrais, criação de um espaço

universitário latino-americano, patentes e propriedade intelectual, entre tantos

outros que vêm sendo demandados pela maioria da sociedade brasileira.

Toda a experiência de coalizão dos setores devotados a causa do ensino

público, notadamente do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, terá de

ousar novos patamares organizativos para que a educação possa se fazer

presente, de forma massiva, no espaço público – nas praças, nas ruas, nas

escolas e universidades. A privatização não passará, apesar do Banco Mundial e

de seus velhos e novos aliados!

Roberto Leher foi presidente do ANDES-SN e é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - e do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ [1] Estudo de Saxe-Fernández a partir dos Informes do FMI e do BM, apresentado no Seminário Internacional sobre Imperialismo, Mundialização e Desenvolvimento, organizado pelo Centro de Investigações Interdisciplinárias e pelo Instituto de Investigações Econômicas da UNAM (23 a 28 de novembro de 03), registra que, em duas décadas, a AL transferiu aos centros de poder econômico das nações desenvolvidas 2,5 trilhões de dólares na forma de pagamentos da dívida externa, por fugas de capital e pelo diferencial de preço a que são vendidas as matérias primas. No mesmo Seminário, Eric Toussaint, declarou que, entre 1996-2002, as transferências de capital da região alcançaram 310 bilhões de dólares somente pelos depósitos líquidos realizados pelos grupos de poder locais nos sistemas financeiros dos países centrais; no mesmo período, os empréstimos foram de 267 bilhões de dólares.

Page 13: Caderno de Textos

13

[2] Para uma apreciação geral das conseqüências das políticas de ajuste estrutural da África, ver: Arrigui, G. The African crisis In: New Left Review, 15, may/june 2002; para um exame particularizado dos casos da Somália, Ruanda e Etiópia, ver: Chossudovsky, M. Globalización de la pobreza. México, Siglo XXI Ed., 2002.; a redefinição das políticas educacionais da região pode ser vista em: Laïdi, Z. Enquête sur la Banque Mondiale, Paris, Fayard, 1989. [3] Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais/ INEP, Censo de 2003: Menos de 20% das vagas de graduação do país são de universidades públicas. De acordo com relatório do órgão, a quantidade de vagas oferecidas em todo o país já corresponde a 86% do número de concluintes de ensino médio (1,8 milhão em 2001), mas somente 17% são gratuitas. O número de vagas oferecidas nos vestibulares no Brasil cresceu mais de 200% nos últimos anos, passando de 517 mil, em 1991, para 1,6 milhão, em 2002. Mais de 72% delas concentram-se em duas regiões do país: Sul e Sudeste. [4] Henrique Meirelles, deputado eleito pelo PSDB, é ex-presidente mundial do Bank of Boston, o segundo maior credor do país. [5] Marta Solomon, Gratuidade nas federais ainda provoca debate. FSP, C 4, 3/08/03. Em contrapartida a possível empréstimo de US$ 8 bilhões (a serem distribuídos nos próximos 4 anos), o Banco espera revisão do princípio da gratuidade. [6] Em conferência na UNESCO, Cristóvão defendeu projeto de imposto diferenciado para egressos de instituições públicas que, com o imposto diferenciado, pagariam o custo de seus cursos, medida que exigiria a modificação do Art. 206, CF que estabelece a gratuidade nos estabelecimentos oficiais. [7] A menção a reforma chinesa deve ser vista com preocupação. Com as recentes reformas, a China passou a cobrar taxas escolares dos estudantes, extinguindo a gratuidade e o cerceamento a liberdade de pensamento é rigoroso. A Coréia segue o modelo estadunidense, 70% das instituições são privadas (correspondendo a cerca de 80% do total de alunos). Neste país, os docentes não dispõem de estabilidade em seus cargos e é comum afastamento por delitos de opinião (Altbach, Philip G. Educación Superior Comparada. Bs. As. Universidad de Palermo, 2001, p.113-116, 352-354). [8] O Globo, 05/12/03, p. 3. [9] Em discurso proferido na 69o Reunião Plenária do CRUB, o Ministro afirmou ser possível triplicar o acesso ao ensino superior por meio da educação a distância (www.universia.com.br). [10] Ver Reinaldo Gonçalves.Política econômica e macrocenários nacionais: 2003-2006 (www.outrobrasil.net). [11] Segundo o IBGE, o rendimento médio da classe trabalhadora caiu 11,6% de dezembro de 2002 a outubro deste ano. No mesmo período, ainda segundo os dados oficiais do IBGE, o desemprego aumentou de 10,5% para quase 13%. A.economia está estagnada e sufocada pela dívida pública, cujo principal já ultrapassa metade do PIB, sendo que o pagamento efetivo dos juros corresponde a 10% de toda a riqueza anualmente produzida. Em 2003, as despesas com o serviço da dívida pública mais do que dobraram em relação a 2002, tendo superado em 22,5% todos os gastos da Previdência Social (ver: Até quando, companheiro?, Carta Aberta ao Presidente Lula, FSP, 8/12/03). [12] Segundo o seu ministro da educação, C. Allègre: "É imperativo que todo o nosso dispositivo de ensino superior se impregne, tanto no recrutamento, como na formação, do espírito de inovação, de criação, de empreendimento e de iniciativa" (CPS N° 73, 24 JUIN 1998). [13] Pierre Bourdieu et Christophe Charle. Un ministre ne fait pas le printemps, Le Monde, 8 avril 2000. [14]Olivie rBRIFFAUT .Papiers universitaires. Thèmen.3. http://perso.wanadoo.fr/papiers.universitaires/chaine.htm) [15] Ver a íntegra da proposta "As características do pensamento da reforma" em http://www.orusint.org/mailgust/index.php? [16] Seminário Internacional Universidade XXI, 25, 26 e 27 de novembro de 2003, Brasília – Brasil.

Page 14: Caderno de Textos

14

Texto 2: EDUCAÇÃO SUPERIOR MINIMALISTA: A EDUCAÇÃO QUE CONVÉM AO CAPITAL NO CAPITALISMO DEPENDENTE

Roberto Leher (UFRJ)*

Nações situadas na classe de renda baixa ou médio-baixa [...] devem se limitar a desenvolver a capacidade para acessar e assimilar novos conhecimentos (p.38, grifos nossos). World Bank: La Educación Superior en los países en desarrollo: peligros y promesas, 2000)

Embora seja um propósito mais antigo, é a partir de 1994 quando o Banco

Mundial publicou o seu já célebre documento “lições derivadas da “experiência”1,

que as políticas para a educação superior de muitos países latino-americanos, em

conformidade com as suas frações burguesas dominantes, passaram a perseguir

o objetivo de desconstituir o chamado modelo europeu de universidade. Conforme

o Banco Mundial, a indissociabilidade entre ensino e pesquisa e a gratuidade das

instituições públicas, os traços mais distintivos deste modelo, seriam anacrônicas

com a realidade latino-americana.

As estatísticas sobre a natureza das instituições de ensino superior latino-

americanas organizadas pela UNESCO e os levantamentos do INEP, no caso

brasileiro, confirmam que, de fato, o modelo universitário deixou de ser

reivindicado pelos governos locais. Os indicadores confirmam que nas duas

últimas décadas ocorreu uma forte diversificação de instituições2 de ensino

superior na região, sobretudo no setor privado. Proliferaram todos tipos de

instituições: tecnológicas, isoladas, centros universitários e até mesmo as

universidades privadas, em virtude da flexibilização dos critérios para o

credenciamento como universidade, são atualmente, via-de-regra, unidades de

ensino quase que completamente desvinculadas da pesquisa, nada tendo de

emulação humboldtiana3. A natureza jurídica dessas instituições e organizações

1 . WORLD BANK. Higher Education: the Lessons of Experience (1994).

2 O exame das reformas do Estado e da desregulamentação do setor privado evidenciam

que muitas universidades seriam melhor definidas como organizações de negócio e não instituições sociais. Marilena Chauí ofereceu uma importante contribuição ao debate em A universidade operacional (Folha de S.Paulo, Caderno Mais, em 9 de maio de 1999).. 3 . Relativo ao modelo apregoado por Humboldt na universidade de Berlim (1809),

referenciado na indissociabilidade entre ensino e pesquisa, gratuita e mantida pelo Estado. A

Page 15: Caderno de Textos

15

também se alterou, predominando, largamente, instituições com fins lucrativos de

natureza empresarial frente às ditas sem fins lucrativos4.

A despeito das profundas mudanças nas instituições universitárias públicas,

também alteradas pela mercantilização e pela hipertrofia das atividades de

serviços, a grande maioria destas instituições seguiu ofertando cursos de

graduação plenos, inclusive ampliando o tempo de formação em diversas

carreiras.no bojo de longas reformas curriculares A indissociabilidade ensino,

pesquisa e extensão, embora nem sempre sistemática, se mantém como uma

prática estabelecida nas públicas, por meio de programas como o Programa

Especial de Treinamento (CAPES/SESU-MEC), o Programa de iniciação científica

(PIBIC/ CNPq), monitorias e mesmo por atividades docentes em que a pesquisa

desenvolvida nos programas de pós-graduação repercute nas salas de aula da

graduação.

As resistências das universidades públicas aos projetos que pretendem

imprimir um caráter aligeirado e massificado sem qualidade têm gerado críticas

sistemáticas por parte dos sucessivos governos brasileiros. Todas as políticas de

Collor de Mello a Lula da Silva, inclusive, são enfáticas a esse respeito. A

acusação mais comum é que as universidades públicas são burocráticas,

conservadoras, elitistas e vivem protegidas por uma redoma de vidro que impede

que se tornem instituições “integradas” com a sociedade, como se pudesse existir

instituição social fora da sociedade!

Mas essa resistência – expressa em atos acadêmicos em prol da

concepção universitária e por mobilizações e greves – pode estar sendo quebrada

pelas sucessivas medidas adotadas pelo governo Lula da Silva que, diferente de

Cardoso, tem obtido apoio mais ativo por parte das administrações universitárias.

Em geral, todos os projetos governamentais que pretendiam “harmonizar” os

cursos de graduação das públicas com os das privadas, tendo o padrão destas

instituição nos termos de Humboldt, deveria ser autônoma, possuindo prerrogativa do autogoverno e da autonormação. 4 . Ver: Roberto Leher “A problemática da universidade 25 anos após a ‘crise da dívida’”,

Universidade e Sociedade, n. 39, DF: ANDES-SN, 2007.

Page 16: Caderno de Textos

16

últimas como referência, foram compreendidos como heterônomos e não

contaram com o apoio ativo das administrações.

A partir do mandato de Lula da Silva a realidade é outra. Projetos que

outrora foram apresentados pelo MEC e recusados pelas universidades voltaram à

baila, mas agora assumidos como se de autoria das próprias universidades,

retirando o MEC do foco do conflito. Assim, diferente dos períodos anteriores em

que os embates eram externos à universidade, o que facilitava a unidade da

comunidade acadêmica, atualmente, o cerne dos conflitos se volta para dentro das

instituições, ampliando o grau de liberdade do governo para levar adiante a sua

agenda.

Outro aspecto novo a ser considerado é que setores mais empenhados no

“capitalismo acadêmico”5 têm assumido um posicionamento mais ativo,

protagônico, nesse processo, justo por vislumbrarem a possibilidade de mais e

melhores negócios em uma universidade massificada e aligeirada, em especial

por meio de cursos a distância. A este setor se somam docentes que apóiam a

contra-reforma como uma tarefa política, por se sentirem comprometidos partidária

ou ideologicamente com o governo de Lula da Silva, posicionamento presente em

militantes petistas e de outros partidos da base governista (PC do B, PDT, PMDB,

PP, PR, PSB), de distintas forças presentes na CUT e na direção majoritária da

UNE.

Em que consiste essa reestruturação das universidades federais como

instituições que ofertam cursos aligeirados? Quais as medidas que pretendem

implementar esse modelo? O que é novo em relação às iniciativas que buscavam

implementar cursos de curta duração?

Duas medidas recentes – estreitamente interligadas – têm o objetivo de

modificar a forma de graduação, tornando-a mais breve, para que as

universidades federais possam ampliar, sem recursos adicionais, a oferta de

vagas: o projeto “universidade nova” e o programa de reestruturação das

universidades federais (REUNI).

5 . SLAUGHTER, S.; LESLIE, L.L. Academic capitalism: politics, policies and the entrepeneurial

university. Baltimore, USA/London, England: The Johns Hopkins University Press (1999).

Page 17: Caderno de Textos

17

Inicialmente, o artigo analisa a Universidade Nova, por ser um projeto mais

detalhado e explícito em relação ao propósito de aligeirar a formação universitária.

A seguir, o artigo discute o REUNI, a materialização do projeto universidade nova,

estabelecendo, ao final, nexos com o padrão de acumulação em curso no país.

Universidade Nova

O projeto Universidade Nova, apresentado originalmente em um seminário

promovido pela UFBa6, pretende promover uma “nova arquitetura curricular” nas

universidades, promovendo um ciclo básico, curto, de natureza não profissional,

que garantiria aos concluintes um diploma de estudos gerais. A formação

profissional seria exclusivamente para os mais aptos a prosseguir em sua

formação.

O documento “Universidade Nova: Reestruturação da Arquitetura Curricular

na UFBa” doravante denominado Universidade Nova-UFBa, parte da mesma

premissa dos documentos do BM e dos teóricos da Escola de Chicago, como Gary

Becker, um Nobel neoliberal que pertence a ala direita desta Escola, que afirmam

o fracasso do projeto de construção de universidades públicas e gratuitas no

Brasil. Nos termos de Becker, manter o modelo europeu (humboldtiano) no Brasil

é uma irracionalidade, pois as suas universidades tão somente redescobrem o

conhecimento e, ademais, significam subsídios às pessoas erradas (à dita elite).

6 . Em sua atual versão, o projeto Universidade Nova foi divulgado no I

Seminário Nacional da Universidade Nova, realizado em Salvador entre 1º e 2

de dezembro de 2006, sob o patrocínio da SESu/MEC e da ANDIFES. O evento

tratou dos temas: estrutura curricular do Bacharelado Interdisciplinar (BI),

dos Cursos profissionalizantes e da Pós Graduação, modalidades de processo

seletivo para o BI e para os Cursos Profissionais, antecedentes históricos da

Universidade Nova, modelos de arquitetura acadêmica utilizados no mundo,

impacto do projeto Universidade Nova na estrutura administrativa da

universidade pública brasileira, dentre outros tópicos. Grupos de trabalho

discutiram e sintetizaram as propostas do documento final. O II Seminário

Nacional da Universidade Nova realizou-se na Universidade de Brasília – UnB,

no Auditório Dois Candangos, no período de 29 a 31 de março de 2007, tendo

como tema “Anísio Teixeira e a universidade do século XXI”.

Page 18: Caderno de Textos

18

A partir da construção dessa imagem negativa, os governos neoliberais, a

Escola de Chicago e o BM propugnam que, em virtude de seu descolamento com

a sua época, a universidade pública precisa ser completamente reestruturada:

novo aqui significa a rejeição completa do que foi construído no período do pós-

Segunda Guerra, no contexto das políticas nacional-desenvolvimentistas em que

se forjou, contraditoriamente, um pensamento crítico à ideologia da modernização

e do desenvolvimento, crítica esta que supunha que o país desenvolvesse suas

universidades para fortalecer a luta contra a heteronomia cultural, cujo expoente

máximo foi Florestan Fernandes.

O precioso patrimônio asperamente construído em um intervalo de tempo

incrivelmente exíguo, o Brasil foi o último país da América Latina a ter instituições

propriamente universitárias, passa ser considerado um estorvo a ser reformulado

inteiramente para atender às necessidades de um mercado capitalista dependente

que já não estaria demandando formação acadêmico-profissional sólida e longa.

Sobressaem as fórmulas bancomundialistas, os esquemas da área de negócios

de educação superior estabelecidos pelo processo de Bolonha e da OCDE/

Unesco, almejando a criação de um espaço europeu de negócios educacionais

com “competitividade internacional”, o AGCS/OMC e, sobretudo, o modelo

aligeirado para os mais pobres nos EUA, os Community Colleges.

Em termos práticos, o projeto UNIVERSIDADE NOVA diagnostica que o

problema central das instituições universitárias brasileiras é o “velho recorte

disciplinar” que a tornou uma instituição esclerosada, moribunda, inserida em um

sistema classificado de "ultrapassado", "condenado" e "arruinado" incapaz de

dialogar com as necessidades do tempo presente. A partir dessa consideração, os

seus autores concluem que a alternativa mais sensata é adotar o modelo

bancomundialista, pincelando aspectos do acordo de Bolonha e carregando nas

tintas do modelo dos Community Colleges.

Uma universidade a ser descartada?

Page 19: Caderno de Textos

19

A premissa fundamental do projeto Universidade Nova é que o atual modelo

universitário é nefasto, gerando uma instituição anacrônica e inviável,

especialmente por não ter semelhança com as universidades reformadas pelas

políticas neoliberais nos países centrais. É preciso, preliminarmente, examinar

esse pressuposto fundamental para seguir examinando os demais fundamentos

da proposta.

Os autores do referido projeto partem do que julgam ser uma análise histórica

da constituição da universidade brasileira para, a partir do histórico, apresentar um

diagnóstico e as supostas alternativas (já contidas na narrativa histórica que é

escrita para corroborá-la, uma evidente teleologia). O documento qualifica as

universidades federais como híbridas, reunindo o pior do modelo estadunidense e

da universidade européia do século XIX. É desconcertante que o documento não

considere que, apesar das políticas governamentais, as instituições possuem uma

dinâmica própria engendrada pelas contradições do real. A rigor, nenhuma

universidade federal se encaixa no diagnóstico da Universidade Nova. Existiram

resistências, lutas, greves (qualificadas no documento como inúteis) que

impediram que as determinações oficiais fossem implementadas de modo

mecânico e absoluto. Ao deixarem de examinar as instituições em suas

particularidades, os autores ignoram que existe uma história não governamental

que expressa as lutas, tensões e contradições que pulsam em toda instituição

universitária.

A análise histórica contida no documento confunde contradição com

incoerência. O fato de existir tensões na universidade provocadas por

perspectivas distintas de universidade, longe de ser algo negativo é, ao contrário,

alvissareiro, pois indica que em um determinado contexto existiram forças criticas

ao projeto hegemônico. Para os autores do referido projeto, a existência de forças

emancipatórias que reivindicam a dimensão libertária da modernidade é “o”

obstáculo a ser removido, pois estas forças criam resistências e arestas à

universidade operacional que defendem.

Embora as primeiras instituições propriamente universitárias tivessem sido

criadas por frações dominantes com propósitos conservadores – no caso da USP,

Page 20: Caderno de Textos

20

a afirmação da burguesia paulista frente ao novo bloco de poder que se afirmava

sob a liderança de Getúlio Vargas – a vitalidade da universidade produziu

contradições muito mais profundas do que supunham os seus criadores. O mesmo

efeito aconteceu no período da modernização conservadora do governo

empresarial-militar. O fortalecimento da pesquisa e da pós-graduação assumiu

contornos muitas vezes distintos do que preconizava o modelo desejado pela

ditadura.

Por isso, na segunda metade do século XX, o período em que a maior parte

das universidades foi constituída, a função social da universidade não pôde deixar

de ser contraditória, produzindo majoritariamente conhecimento funcional ao

modelo capitalista dependente, mas, embora de forma minoritária, elaborando,

também, conhecimento novo, crítico, de alta qualidade que tem contribuído para

tornar pensável a formação social brasileira, a agricultura camponesa, a saúde

pública, as formas alternativas de energia, os conhecimentos históricos das lutas

sociais dos trabalhadores brasileiros etc.

Os autores do projeto em discussão concluem que a universidade existente

tem de ser superada a partir de um histórico que, pelo exposto, é sui generis:

desqualifica por completo a perspectiva emancipatória que, embora minoritária,

parece ser a causa de todos os males. Significativamente, os autores nada falam

dos setores mais capitalizados engajados na mercantilização e no

empreendedorismo que configuram o capitalismo acadêmico periférico.

Se a universidade que pode dar certo é a universidade operacional (a

serviço de um mercado apresentado como virtuoso), como os autores da proposta

explicam que o país segue patinando no número de patentes7 e que a presença

7 . O Brasil perde espaço em inovação tecnológica. Em seu levantamento anual, a

Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) aponta que, entre 2004 e 2005, o número de patentes pedidas no País caiu 13,8%, enquanto em praticamente todo o mundo aumentou. A queda foi a maior entre os 20 principais escritórios de patentes no mundo.Hoje, um quarto de toda a tecnologia disponível no planeta já está nas mãos de apenas três países asiáticos: China, Japão e Coréia do Sul. Jamil Chade, Brasil perde espaço em inovação tecnológica Estadão, 10 de Agosto de 07.

Durante a década de 90 verificou-se um crescimento da ordem de 70% nos pedidos

de patentes junto ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI). Os pedidos passaram de 14.186 em 1990 para 24.572 em 2001. A participação dos residentes nos pedidos de depósito, que pode ser tomada como um indicativo da importância do esforço nacional de inovação, caiu durante toda a década, chegando a atingir, em 1998, a metade do nível de 1991.

Antônio Márcio Buainain e

Page 21: Caderno de Textos

21

internacional da ciência brasileira8 tem se dado, sobretudo, na pesquisa básica?

O que esses indicadores nos mostram é que, a despeito das políticas que tentam

subordinar a universidade ao utilitarismo e ao pragmatismo, a sua vitalidade reside

justamente nos domínios em que o fazer acadêmico é mais condizente com a

função social de produzir e socializar conhecimento científico e tecnológico do que

com a função de ser lócus da pesquisa e desenvolvimento (a chamada inovação

tecnológica).

Esses indicadores sobre patentes e produção do conhecimento na

universidade não surpreendem os que estudam a base material do país: nações

que estão inseridas na economia-mundo de modo capitalista dependente (como o

Brasil) não possuem um parque produtivo que requer inovação tecnológica

significativa, e não serão as universidades que poderão preencher essa lacuna

aberta pelas empresas que atuam apenas em parte da cadeia produtiva ou se

valem de tecnologias já consolidadas.

Os autores não explicam igualmente a expansão da pós-graduação

brasileira, estruturada a partir dos quase heróicos mestrados (que chegam a ser

ridicularizados no documento) há apenas três décadas – uma experiência

extremamente bem sucedida, pois ainda hoje é o primeiro momento em que

grande parte dos novos professores e pesquisadores faz um trabalho científico

completo – tenha alcançado a dimensão do Sistema Nacional de Pós-graduação

(em 2003):

Nº de Programas e Nº de Cursos 1.819 / 2.861

Sérgio M. Paulino de Carvalho

http://www.inovacao.unicamp.br/anteriores/colunistas/colunistas-amarcio.html. Neste início do século 21, definitivamente, não fomos brilhantes. O USPTO (sigla em inglês do escritório de patentes norte-americano) concedeu-nos, no triênio 2001-2003, 336 patentes, número que caiu para 304 no triênio subseqüente. Ou seja, tivemos uma perda de 10%. Roberto Nicolsky e André Korottchenko. Publicado no Jornal de Brasília, 15/05/2007.

8 . Em 30 anos, o número de trabalhos publicados por pesquisadores brasileiros aumentou

exponencialmente de 0,3% para quase 2% de todo o conhecimento científico mundial. Entre as 15 universidades com maior produção científica no momento, 11 cresceram mais de 200% em relação a dez anos atrás (1996-2006), segundo os dados mais recentes da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (O Estado de S. Paulo, 1/08/2007).

Page 22: Caderno de Textos

22

Doutorado 1020 cursos

Mestrado Acadêmico 1.726 cursos

Mestrado Profissional 115 cursos

Alunos titulados 35.724

Fonte: CAPES/PNPG (2005-2010)

Mais do que o crescimento das citações internacionais, um indicador em vários

sentidos frágil e controvertido, como explicar que uma universidade tida como

anacrônica, isolacionista, quase única no mundo por seu ecletismo, tem permitido

um diálogo tão intenso com os grupos de pesquisa estrangeiros de prestigiosas

instituições e a realização de doutorados sanduíches e dos pós-doutoramentos

exitosos? Se o sistema fosse tão anacrônico e descolado do que existe nos países

centrais, como esses diálogos aconteceriam de modo tão intenso?

O documento tampouco explica como a ciência brasileira foi capaz de produzir

conhecimento com amplo reconhecimento internacional, como o uso de soluções

hipertônicas no tratamento de choque hemorrágico, uma descoberta que ampliou

em cerca de 10% a sobrevida de acidentados com múltiplos fermentos aos

serviços de urgência dos hospitais, ou a participação brasileira no Genoma, ou

ainda a produção de vacinas contra a hepatite B no Butantan, ou os estudos sobre

a fixação de nitrogênio por bactérias associadas com raízes de plantas que

permitiram aumentar a produtividade do plantio de feijão em cinco vezes na

UFRRJ, ou os estudos sobre as conseqüências do uso de mercúrio no garimpo,

pela UFPa, ou os estudos sobre informática desenvolvidos na UFPE ou a

prospecção de petróleo em águas profundas pela UFRJ que hoje garante a quase

autonomia de combustível fóssil no Brasil9.

A base da infra-estrutura nacional, estradas, portos, pontes, hidrelétricas,

petróleo, o conhecimento geográfico, o levantamento da biodiversidade, a

produção de sementes adaptadas ao solo e ao clima do país, tudo isso

dificilmente teria sido edificado sem os profissionais formados pelas universidades

públicas. A avaliação social reiterada no cotidiano de que os melhores

9 . A presença da universidade pública. USP, Gabinete do Reitor, 2000.

Page 23: Caderno de Textos

23

professores, enfermeiros, sociólogos, bioquímicos, médicos, agrônomos são

provenientes dessas instituições supostamente fracassadas também não é

mencionada pelos detratores da universidade pública.

Ao mencionar o elitismo das públicas, os autores ocultam que atualmente as

públicas sequer alcançam 20% das vagas disponíveis na educação superior e que

a renda familiar dos estudantes das Públicas que estão entre os 20% mais pobres

é de cerca de R$ 750,00 e que 75% dos estudantes possuem renda familiar de até

R$ 2700,00. Isso seria a elite da Universidade Nova, da Escola de Chicago e do

BM? Desconhecem os autores o estudo do IBGE que constata que, apesar de tão

reduzida, ainda assim, em todas as situações, a universidade pública é mais

democrática do que as privadas: em todos as carreiras a renda média dos

estudantes das públicas é menor do que a renda média das privadas?10

Considerando a devastação provocada pela tese de que cada país deve ter

uma universidade compatível com as expectativas que o imperialismo tem sobre a

sua inserção na economia-mundo – cujo exemplo africano certamente é o mais

dramático – que país seria o Brasil sem a sua “arcaica, velhaca, obtusa”

universidade pública?

O que realmente querem dizer os elaboradores do projeto Universidade Nova

quando dizem que tudo o que foi acumulado historicamente com base em

trabalhos tão árduos e penosos é anacrônico e irrelevante? É como se vinte anos

de debates sobre a formação de “professores como intelectuais e produtores de

conhecimento” fosse apenas motivo de comentários jocosos, lastreados em

pressupostos frágeis de Edgar Morin, um autor que se celebrizou por ter sido um

operador de políticas neoliberais em seu país, como na reforma da educação

tecnológica que, a exemplo da Universidade Nova, aligeirava a formação dos

jovens, promovendo um levante da juventude francesa contra o seu modelo,

situação finamente criticada por Pierre Bourdieu e que, recentemente, tentou

vender o pacote de sua ONG, o Instituto ORUS em associação com o BM, para

“reformar e criar uma universidade nova”, dita do Século XXI, no Brasil.

10

. Sobre acesso, ver indicadores muito bem elaborados em José Marcelino Rezende Pinto, Educação e Sociedade, vol. 25, n.88, p.727-754, Especial, Outubro 2004.

Page 24: Caderno de Textos

24

Disciplina e interculturalidade

A discussão prioritária sobre a interculturalidade, o método de construção do

objeto, a forma de fazer perguntas e definir os problemas, o problema da unidade

do ser e do saber, a unidade das ciências, das técnicas, das artes e das

humanidades, em suma, a reflexão a propósito das questões epistemológicas e

epistêmicas, ao ser desenvolvida pelos autores da Universidade Nova é dissolvida

na fórmula simplista da interdisciplinaridade epidérmica.

Os seus autores criticam o recorte disciplinar das faculdades, mas sustentam a

interdisciplinaridade. Como é possível estabelecer relação entre várias disciplinas

em que se divide o saber-fazer humano se a proposta em discussão desqualifica a

existência da disciplina e das faculdades? Tudo indica que os autores

desconsideram que a expressão disciplina está relacionada ao “propósito de rigor,

exatidão que se identificam com a posse de ´um saber´ ou o ´domínio de uma arte

ou técnica´ e também com divisões do trabalho intelectual em campos, áreas ou

aspectos de um fenômeno. Ao mesmo tempo, (...) disciplina e faculdade evocam

os problemas do poder estabelecido e alternativo.”11 A leitura dos documentos da

Universidade Nova indica, antes, que o sentido assumido na crítica às disciplinas

é o oposto desta expressão: indisciplina, isto é, ausência de rigor e exatidão,

relativismo epistemológico, nos termos do pós-modernismo midiático.

A interdisciplinaridade somente pode buscar novas formas de rigor e

profundidade se estabelecer real diálogo com problemas bem elaborados e

demarcados, pois é a busca do rigor disciplinar que exige combinações e

interseções de duas ou mais disciplinas, superando a divisão do trabalho anterior,

conferindo novos sentidos para a totalidade12. O abandono do rigor reacende o

empirismo vulgar e a celebração do senso comum como saber científico. As

ideologias dominantes, com isso, jamais poderão ser questionadas, assegurando

a ordem estabelecida como uma ordem natural. É a capitulação ao fim da história.

11

. Pablo G. Casanova, interdisciplina e complexidade. In: Casanova, P. G. As novas ciências e as humanidades. SP: Boitempo, 2006, p.13. 12

. Idem, p.13.

Page 25: Caderno de Textos

25

Baseado no modelo pretendido no Bacharelado Interdisciplinar, a vida

acadêmica do estudante será equivalente a do consumidor em um shopping

center: os estudantes percorrerão as diversas temáticas como se estivessem

diante de vitrines, mas, tal como nesses templos de consumo, nem todos poderão

freqüentar as mesmas “lojas” (percursos escolares), posto que, como discutido

adiante, alguns domínios estarão reservados aos “vocacionados”. A massa terá de

se contentar em adquirir alguma quinquilharia (O Bacharelado Interdisciplinar) em

alguma loja de departamento.

Com base nessa noção rala que não enfrenta o debate epistêmico (que saber

está sendo produzido? Como esse saber está sendo elaborado?) os piores

projetos em curso, como a transposição das águas do Rio São Francisco ou a

hidrelétrica do Rio Madeira podem ser concebidos como exemplos bem sucedidos

desse enfoque interdisciplinar epidérmico. Se compreendemos a

interdisciplinaridade como justaposição de saberes, é indubitável que esses

projetos são interdisciplinares, reunindo saberes da engenharia, da física, da

metereologia, da hidrologia, da ecologia etc. Mas nem por isso anunciam

perspectivas emancipatórias, críticas à colonialidade do saber, referenciadas em

estudos desenvolvidos em perspectivas históricas. Essa interdisciplinaridade

epidérmica já é uma realidade em quase todos os cursos, o que não altera o peso

da razão instrumental que segue guiando os mesmos.

Mas a questão de fundo do projeto Universidade Nova não é o debate

epistemológico e epistêmico, mesmo porque estas preocupações inexistem no

projeto Universidade Nova. A mal denominada “arquitetura curricular” da

Universidade Nova é, sobretudo, uma “reestruturação” gerencial para aumentar a

produtividade da universidade, em termos da administração racional do trabalho

taylorista. Nesse sentido, o Decreto 6069/07 do MEC (REUNI) é mais honesto:

trata-se mesmo de uma reestruturação da universidade. Assim como as empresas

viveram reestruturações baseadas na qualidade total, na reengenharia etc, agora

é a vez das universidades se ajustarem aos preceitos da economia capitalista

dependente.

Page 26: Caderno de Textos

26

A questão central do projeto da Universidade Nova, que não pode ser objeto

de confusão, é a graduação minimalista com a concessão de diploma, objetivando

ampliar o número de estudantes sem contrapartida de recursos e promover um

novo e perverso gargalo que tornará a profissionalização um privilégio de poucos

“vocacionados”.

As inspirações do modelo

Após as críticas à universidade à bolonhesa, as referências a Bolonha13

acabaram ocultadas, em favor de um educador respeitado: Anísio Teixeira, autor

de um projeto de educação nacional-desenvolvimentista, que, ao criar a UnB,

desenvolveu fundamentos radicalmente distintos dos presentes na Universidade

Nova. Embora o projeto da UnB14 previsse um ciclo básico em grandes áreas,

seguido de um bacharelado de três anos, perfazendo uma graduação de cinco

anos, este projeto foi pensado com os estudantes cursando o ciclo básico em

horário integral, em pequenos grupos, acompanhados pari passu por docentes. A

meta, em dez anos, era que o número de estudantes por professor fosse de 6:1! A

Universidade Nova prevê no ciclo básico (O Bacharelado Interdisciplinar) 80:1 a

40:1. O REUNI 18:1! Obviamente, não há como comparar os termos da UnB com

os da Universidade Nova.

A leitura do texto do Documento Universidade Nova: UFBa e do referido

artigo do reitor da UFBa não deixam dúvidas de que as referências mais

importantes são mesmo as de Bolonha e dos Community Colleges. E isso fica

claro não apenas pela adoção do modelo do ciclo básico (o Bacharelado

Interdisciplinar) de curta duração, mas de todo o léxico dos textos, estruturado a

13 . O processo de Bolonha propugna a criação de um espaço europeu de educação superior que,

na ótica dos que mercantilizam a educação, pode significar um robusto mercado educacional: essa é a

expectativa da OCDE-UNESCO que incentiva a difusão do comércio transfronteiriço de educação superior

por meio da EAD. O modelo preconizado pelo Relatório Attali, a graduação genérica em três anos,

representa a possibilidade de um sistema abreviado e massificado que os mercadores gostariam de ver

difundido em toda a Europa. (Roberto Leher “Fast delivery diploma: a feição atual da contra-reforma da

educação superior Notas sobre a Universidade Nova”, publicado originalmente no sitio da Carta Maior,

espaço de controvérsias)

14

. Plano Orientador da Universidade de Brasília. Ed. UnB, 1962.

Page 27: Caderno de Textos

27

partir de expressões muito bancomundialistas e muito bolonhesas, a “nova vulgata

planetária”15 como: “ciclos”, “mobilidade”, ‘qualidade”, “competitividade”,

“flexibilidade”, “empreendedorismo”, “inevitabilidade da transnacionalização”,

“globalização”, “sociedade da informação”, “competências genéricas”,

“polivalência”, “adaptação ao mercado” etc. Nos termos de Bourdieu e Wacquant

(2001), essa vulgata opera a ideologia neoliberal que difunde as ‘disposições de

pensamento´ necessárias para a nova ordem: o capitalismo de livre mercado

inexorável e irreversível.

Em todo texto está suposto que o mercado é um agente. Quando não é o

mercado, os atores que induzem as transformações são não-humanos,

inanimados (as novas tecnologias) ou nominalizados (a transformação, a

mudança). O ator mais proeminente é o “novo mundo globalizado”. Não há

protagonismo humano. A partir desses pressupostos o documento da

Universidade Nova conclui que a universidade brasileira está em descompasso

com esses “agentes transformadores”. Daí a obsessão com a forma distinta de

organização da educação superior brasileira em relação aos países centrais e ao

mercado global, um sujeito que requer que a universidade faça os ajustes em

conformidade às suas necessidades.

De fato, a localização das IFES fora do padrão de Bolonha ou dos

community colleges é provavelmente um dos pontos mais reiterados do

documento da Universidade Nova-UFBA, estruturando a crítica à universidade

atual e propugnando o ajuste aos referidos modelos sob o risco de “isolamento”,

como se não estar com o mesmo formato mercantilizado e “mercadocêntrico”

fosse impedir o diálogo da universidade brasileira com os demais centros de

produção de conhecimento: “se (...) não aproveitarmos a chance de criar um novo

sistema universitário articulado ao que é dominante no mundo o Brasil vai ficar

isolado” (citação com ajuste de redação) (Universidade Nova-UFBa, p.13).

15

. Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loïc 2001 NewLiberalSpeak: notes on the new planetary

vulgate. Radical Philosophy, 105, p.2-5. URL:

http://www.radicalphilosophy.com/default.asp Access in july, 2003 .

Page 28: Caderno de Textos

28

A solução miraculosa para esse descompasso é, como visto, a revisão

curricular, sem qualquer indicação de alteração nas políticas macroeconômicas do

imperialismo que somente mantém empregos precários e de péssima qualidade,

sem qualquer menção ao encolhimento da oferta pública, ao congelamento das

verbas para a educação federal, ao robusto sistema de subsídios públicos para as

instituições privadas-mercantis (PROUNI) e ao problema da propriedade

intelectual que opõe as nações centrais e periféricas. É observável ainda a adesão

à ideologia de que as pessoas trabalham em áreas distintas de sua formação ou

estão desempregadas em função do anacronismo do currículo presente em sua

escolarização, uma afirmação que causaria orgulho em Schultz e Becker, dois dos

mais importantes ideólogos do capital humano da universidade de Chicago que,

em sua época, teriam ficado encantados com seus discípulos brasileiros.

Graduação minimalista para um mercado de trabalho flexível e

desregulamentado

Em linhas gerais, a Universidade Nova preconiza a seguinte estrutura: após o

invertebrado Bacharelado Interdisciplinar (BI) de 2 a 3 anos (p.18), o estudante

ganharia um diploma que o habilitaria a seguir os seus estudos, se aprovado em

seleção, conforme o seu perfil “vocacional”:

Aluno(a)s vocacionados para a docência poderão prestar seleção para

licenciaturas específicas com mais 1 a 2 anos de formação profissional, o

que habilita o aluno(a) a lecionar nos níveis básicos de educação;

Aluno(a)s vocacionados para carreiras específicas poderão prestar seleção

para cursos profissionais (p.ex. Arquitetura, Enfermagem, Direito, Medicina,

Engenharia etc.), com mais 2 a 5 anos de formação, levando todos os

créditos dos cursos do BI;

Aluno(a)s com excepcional talento e desempenho, se aprovados em

processos seletivos específicos, poderão ingressar em programas de pós-

graduação, como o mestrado profissionalizante ou o mestrado acadêmico,

Page 29: Caderno de Textos

29

podendo prosseguir para o Doutorado, caso pretenda tornar-se professor

ou pesquisador16 (grifos e destaques meus).

Está evidente que essa diferenciação tem como fundamento o padrão de

acumulação por despossessão17 que pressupõe níveis de “competência” distintas

no mercado de trabalho.

A lógica da Universidade Nova é mesma da de Bolonha. Espera-se aqui uma

instituição de ensino superior capaz de servir a demandas de mercado, operando

a hierarquia baseada em supostas competências gerais e específicas, lastreando

conhecimentos subjetivos que vão separar “os mais talentosos” que terão uma

formação mais sólida, da maioria que terá apenas uma formação panorâmica de

uma grande área.

No México, por exemplo, o instituto de estudos estatísticos desse país

menciona que apenas 10% dos postos de trabalho exigirão formação universitária

completa. No Brasil não temos indicadores prospectivos abrangentes, mas, muito

provavelmente, não serão muito distintos dos mexicanos.

Essa cisão não é vista como problemática, ao contrário, é celebrada como um

ajuste da educação superior ao mercado mundializado: “Um mundo do trabalho

marcado pela desregulamentação, flexibilidade e imprevisibilidade não demanda

apenas especialistas, mas também profissionais qualificados e versáteis, com

competência para atuar em diferentes áreas” (Razões para a reestruturação. In:

Universidade Nova: uma nova arquitetura para um novo tempo, UFBA Revista,

n.4, 2007). A lógica não poderia ser mais instrumental: como o futuro do trabalho

será precário para a grande maioria é preciso “ajustar” as universidades públicas

criadas em um contexto de Estado de bem-estar social para o áspero mundo do

trabalho flexível e desregulamentado, por isso os ciclos. Claro que o “velho”

modelo universitário orientado para o trabalho regulado não cabe mais aqui.

16

. http://www.universidadenova.ufba.br/arquivo/Projeto_Universidade_Nova.doc 17 . Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loïc 2001 NewLiberalSpeak: notes on the new planetary

vulgate. Radical Philosophy, 105, p.2-5. URL:

http://www.radicalphilosophy.com/default.asp Access in july, 2003 .

Page 30: Caderno de Textos

30

Este mesmo padrão de acumulação requer a diferenciação das instituições de

ensino superior mundiais. No caso brasileiro, uma conseqüência do projeto será a

conformação das universidades federais em “escolões”, em detrimento da

pesquisa acadêmica, tendo em vista que para cumprir o contrato de gestão,

discutido adiante, o grosso do corpo docente terá de se empenhar em atender

enormes turmas no primeiro ciclo, institucionalizando, ainda mais, o afastamento

do modelo humboldtiano de universidade como instituição de ensino e pesquisa,

capaz de garantir uma formação ampla, bildung, aos estudantes.

O modelo preconizado pelo processo de Bolonha não é distinto da

formulação bancomundialista e está sendo difundida não apenas na Europa,

objetivando o espaço de negócios europeus de educação superior, mas está

promovendo o redesenho da educação superior em muitos outros países

capitalistas dependentes. A mesma estrutura pode ser encontrada na Guatemala,

está em discussão na Argentina e encontra-se em implementação na Romênia e

em Portugal. Na Romênia, o ajuste ao processo de Bolonha tem como

argumentação central a recusa a especialização excessiva e precoce, buscando

uma formação mais geral e ajustada ao mercado de trabalho, assumido, tal como

na Universidade Nova, como precário e flexível18.

Não casualmente, em Portugal a Comissão de educação do Parlamento

encarregada de examinar o processo de Bolonha sugeriu a sua não

implementação, pois essa dinâmica iria aprofundar a condição periférica do país

no continente europeu. As principais universidades portuguesas não aderiram

justo porque compreendem o modelo como prejudicial à autonomia científico-

cultural do país.

As lutas dos estudantes franceses contra o processo de Bolonha

expuseram todo o arcaísmo do modelo, pois cerca de 90% dos estudantes não

podem alcançar os níveis mais elevados do sistema. Também os estudantes

gregos estão em luta contra o modelo bolonhês. Nenhuma dessas resistências é

18

. Fairclough, N. (2006) Language and Globalization, London: Routledge.

Page 31: Caderno de Textos

31

mencionada pelo Documento que se alia aos governos social-liberais na defesa da

diferenciação social.

Universidade Nova e o MEC

A pretensão de originalidade do projeto é descabida, pois não apenas em

âmbito internacional projetos semelhantes estão sendo implementados em

diversas partes do mundo, como, em âmbito local, vem sendo diligentemente

encaminhado pelo MEC desde Cardoso. Na proposta do Grupo de Trabalho

Interministerial (2003), a idéia era expandir as vagas públicas por Educação a

Distância, uma idéia que faz parte do núcleo sólido da política do governo de Lula

da Silva e que compunha o cerne da Minuta de Decreto de implementação da

Universidade Nova apresentada pelo MEC em março de 2007. O crescimento das

matrículas nessa modalidade é inédito e vertiginoso, passando de 28 cursos de

graduação em 2003, sendo 70% públicos, equivalendo ao ingresso anual de 21

mil estudantes, para 189 cursos em 2005, 40% deles públicos, correspondendo ao

ingresso neste ano de 172 mil estudantes!

Outra idéia força foi a criação de uma graduação em moldes pós-

secundários, à semelhança da reforma conservadora do Pacto de Bolonha. A

expansão da educação tecnológica, dos centros universitários (2002:70,

2005:120) e das instituições com fins lucrativos (2003: 1600, 2005:1850)

comprovam que a expansão aligeirada, uma realidade nas privadas, já vinha

sendo incentivada pelos governos.

A idéia de um sistema organizado para ofertar ensino massificado e

desvinculado da pesquisa, presente no Projeto GERES19, qualificado como

positivo pelo Documento da Universidade Nova20, é sumamente significativa.

Distintamente do afirmado no referido documento, o ANDES-SN combateu

intensamente o GERES por compreender que o mesmo institucionalizaria um

19

. Em novembro de 1985 foi criado o Grupo Executivo para a Reformulação da Educação Superior (Geres). Composto por cinco membros, o Grupo elaborou uma proposta de lei, na qual pretendeu reformular as instituições federais de ensino superior. 20

. Universidade Nova - UFBa, p.11.

Page 32: Caderno de Textos

32

sistema dual nas IFES: alguns poucos “centros de excelência” e muitos

“escolões”, perpetuando, assim, as desigualdades sociais e regionais. Também

importante é a avaliação do documento (p.12) de que o PL 7200/06 é um avanço,

indicando o escopo em que o projeto Universidade Nova está situado.

No âmbito do MEC, os fundamentos do Projeto Universidade Nova estão no

Projeto de Lei Orgânica (versão de dezembro de 04) que previa graduação em

três anos (Art. 7) e o desmembramento da graduação em dois ciclos, o primeiro

deles de “formação geral” (Art. 21). Entretanto, as críticas impediram a

concretização desse intento, agora retomado pelo MEC, com apoio de parte da

ANDIFES, com a Universidade Nova. A primeira menção explícita pode ser

encontrada na Minuta de Decreto Presidencial Plano Universidade Nova de

Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (versão de

março de 07). A incorporação do princípio da graduação minimalista pelo MEC é

muito importante, pois indica que, enquanto política governamental, o MEC

propugna que também as públicas devem se harmonizar com a tendência geral de

adequação da educação superior ao mercado capitalista dependente, equiparando

públicas e privadas a partir do metro do mercado.

Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais

(REUNI)

Recentemente, com o chamado PAC da Educação, o governo lançou um

conjunto de medidas denominadas de Plano de Desenvolvimento da Educação.

No caso da educação superior federal editou o Decreto 6.096/2007 (24/04/07) que

“Institui o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais”

(REUNI) que opera a implementação da universidade nova (incisos II, III e IV do

art. 2o do decreto 6.096/2007). O inciso II garante condições para a mobilidade e a

“harmonização” dos ciclos básicos, criando um vasto mercado para as privadas

que disputarão a absorção dos excedentes do ciclo básico. O Inciso III permite o

desenho curricular previsto na Universidade Nova e o IV a diversificação das

modalidades de graduação. O Decreto também fixa metas de desempenho a

Page 33: Caderno de Textos

33

serem alcançadas, em moldes do contrato de gestão de Bresser Pereira: os

recursos financeiros serão reservados a cada IFES na medida da elaboração e

apresentação dos respectivos planos de reestruturação (Art. 3o):

a) 90% de formados em relação aos ingressantes (Art. 1o, §1o), um índice que não

tem paralelo nas comparações internacionais e que somente seria possível com a

implementação também na educação superior da aprovação automática e uma

agressiva política de assistência estudantil e

b) a meta de relação professor/ estudante que deverá passar dos atuais 12

estudantes por docente para 18 alunos por docente em um prazo de cinco anos.

Vale notar que a ANDIFES queria empurrar o cumprimento dessas metas para 10

anos, mas o decreto não acatou o seu pleito. É importante registrar que os

números do MEC estão fundamentados em comparações internacionais

descabidas (pois não considera que em muitas universidades estrangeiras os

docentes podem contar com apoio de doutorandos e assistentes que não

compõem o quadro permanente da instituição), ignora a expansão da pós-

graduação e a especificidade de áreas.

Toda a lógica de implementação do REUNI está baseada no conceito de

contrato de gestão, tal como formulado por Bresser e Cardoso. Os recursos

somente serão liberados em função da atendimento de determinadas metas, na

melhor tradição bancomundialista, referenciada no léxico próprio do

neoliberalismo, já citado.

Nem os recursos previstos na primeira Minuta de Decreto para instituir a

Universidade Nova, nem o REUNI agregam montantes significativos de recursos

ao orçamento geral das IFES. A previsão da primeira versão era de R$ 3,7 bilhões

até 2012 (R$ 625 milhões/ ano), sendo 52 universidades federais, teríamos 12

milhões por ano/ universidade. A versão atual foi mais pragmática, indicando a

possibilidade de um montante que não poderá ultrapassar o equivalente a 20%

das despesas de custeio e de pessoal (excluindo os aposentados e pensionistas),

montante este que será distribuído ao longo de cinco anos (Art 3, parágrafo 1o).

Page 34: Caderno de Textos

34

Admitindo que todas apresentem planos de adesão ao REUNI, que o MEC

trabalhe com o teto de 20% e, ainda, que os 20% serão distribuídos todos os

anos, ao longo do período de contrato, grosso modo, o montante seria de

aproximadamente R$ 1,12 bi ano, cerca de R$ 21 milhões/ano por instituição que,

com esses recursos, terá de arcar com a expansão da infra-estrutura e com as

despesas adicionais de pessoal (Art.3, inciso III).

O atendimento do Plano de cada IFES é condicionado à capacidade

orçamentária e operacional do MEC (Art.3, §3o), o que pode confirmar um

montante inferior a 20%, assim, a hipótese de que as universidades contratem

docentes e invistam em infra-estrutura e não recebam os magros recursos

adicionais não pode ser descartada. A rigor, com o decreto 6069/07, o MEC não

fica obrigado a se responsabilizar com a garantia dos recursos adicionais

acordados. Considerando o PAC e o virtual congelamento das despesas correntes

da União, essa possibilidade não é pequena. Outro detalhe: a decisão sobre a

pertinência ou não do contrato de gestão elaborado pela IFES compete

exclusivamente ao MEC.

Está claro que os parcos investimentos serão direcionados para a função

de escolão. As licenciaturas pós BI estarão reservadas a possivelmente um terço

ou menos do número de estudantes do BI, abrindo um imenso mercado nas

privadas que terão um novo ‘nicho´ de mercado: como a grande maioria dos que

concluírem o BI não poderá se licenciar de modo pleno nas públicas, o setor

empresarial buscará “captar” parte desses “clientes”.

Esse processo levará a uma renhida disputa dos estudantes por conceitos.

Cada colega passará a ser visto como um inimigo em potencial, pois, o estreito

funil para as licenciaturas plenas selecionará os estudantes de maior coeficiente

de rendimento (ou outro processo de avaliação similar). As lutas estudantis

poderão ser duramente atacadas com a quebra da solidariedade e do

companheirismo entre os estudantes, cada um concorrente do outro na luta pela

formação plena.

Mas a difusão da cizânia não estará restrita aos estudantes em competição

pela formação profissional. Como os recursos para a contratação de professores

Page 35: Caderno de Textos

35

serão liberados em função de “professores-equivalentes”: uma unidade

corresponde a um professor doutor com dedicação exclusiva ou a três docentes

de 20h e considerando a pressão para dobrar o número de estudantes, é

previsível que no futuro próximo se expanda uma nova categoria de professores:

os docentes que atuam no escolão. Estes, certamente, terão o caminho para a

pesquisa interditado, conformando duas categorias de professores: os docentes

que desenvolvem todas as atividades universitárias e os que devem restringir a

sua atividade as aulas do Bacharelado Interdisciplinar ou do ciclo básico.

Método de implementação

Novamente, a falsificação do consenso. O MEC não promoveu qualquer

debate com a comunidade acadêmica, não escutando os docentes organizados no

Andes-SN e tampouco os estudantes autônomos frente ao governo. O debate do

MEC com os reitores foi terceirizado por um reitor que serviu de porta-voz dos

anseios do governo. A proposição de que a adesão das universidades ao projeto é

livre por parte das universidades também contribui para escamotear a ausência de

debates. De fato, estranguladas pelo contingenciamento de recursos e pelo virtual

congelamento de recursos, mesmo os muito parcos recursos disponibilizados, em

tese, pelo MEC são uma forma de constrangimento ou chantagem econômica,

pois os recursos adicionais para a infra-estrutura e a possibilidade de realizar

concursos a partir de uma definição da própria instituição, um anseio das IFES,

somente serão possíveis para as universidades que se ajustarem ao projeto da

Universidade Nova-MEC. Essa é a “democracia” dos contratos de gestão.

Se o consenso é falsificado no andar de cima, não surpreende que o

mesmo processo esteja acontecendo nas IFES21 que, para cumprirem o apertado

calendário do MEC (do esboço ao projeto final em aproximadamente dois meses),

estão ignorando o processo democrático que seguramente evidenciaria, a todos

os que estão comprometidos com a causa da universidade pública, que a

21 . Roberto Leher, “Metamorfoses na deliberação do Consuni impõem o Reuni como fato

consumado na UFRJ”, Jornal da Adufrj, 22 de maio de 2007.

Page 36: Caderno de Textos

36

reestruturação é uma reengenharia produtivista que desconstituirá o modelo

universitário conquistado na Constituição Federal de 1988.

Universidade Nova e a contra reforma

O projeto Universidade Nova/ REUNI é um ajuste na tática governamental.

A política de aligeiramento e de criação de um mercado educacional mais robusto

é a mesma, mas a forma contém novidades. O Decreto 6.096/2007 a primeira

vista permite um amplo grau de liberdade para instituições, afirmando que as

universidades são livres para aderir ou não ao projeto (mas sem aderir não

receberão os magros recursos). Em todo processo foi muito difundida a idéia de

que a proposta nasceu da livre elaboração das universidades federais, em

especial da UFBa e UnB, inspiradas em Anísio Teixeira, situação que não se

situação, como visto anteriormente.

O retrospecto das iniciativas de criação de uma graduação mais aligeirada

para os pobres é suficientemente longo para comprovar que o mesmo é parte de

um padrão de acumulação muito próprio do imperialismo de hoje, em que os

países periféricos e semiperiféricos não ocuparão um lugar relevante na produção

de conhecimento e em processos produtivos em que o conhecimento se constitui

em vantagem comparativa importante.

Seria um grave erro situar esse projeto como uma peça secundária no

processo de contra-reforma em curso, assim como seria um grave equívoco

localizá-lo como uma iniciativa de reitores. Assim, as frentes de luta serão mais

complexas, tendo de conjugar a luta no âmbito interno as universidades e nas

lutas anti-sistêmicas mais amplas.

Page 37: Caderno de Textos

37

Texto 3: Universidades Pagas – Democratizando a Universidade: PROUNI E FIES?

CARTILHA – REGULAMENTAÇÃO DAS ESCOLAS MÉDICAS PAGAS - produzida pela COORDENAÇÃO DE POLÍTICAS EDUCACIONAIS (CPE) – 2014 da DENEM (Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Direito) Grace Urrutia (FCMMG)– Coordenação de Políticas Educacionais da DENEM (CPE) – Gestão 2013/2014

A universidade brasileira sempre foi marcada por um caráter fortemente

excludente. Além de criada tardiamente em relação a outros países, somente a

partir da vinda da família real e de acesso bastante elitizado, nunca se teve uma

rede de ensino superior capaz de atender a totalidade dos jovens. Isso se

expressa num país que com cerca de 50 milhões de jovens, menos de 15%

daqueles entre 18 e 29 anos estão nas universidades, sendo que quase 80%

destes concentram-se no ensino particular.

Um dos períodos de maior crescimento das instituições do ensino superior

(IES) aconteceu nas ultimas décadas, sobretudo nos anos 90, porém com

predominante ampliação do setor privado de ensino (só entre 1999 e 2001, o

número de escolas pagas cresceu quase 300%). Esse processo de privatização,

que se dá pela retirada de gastos e responsabilidade da estrutura estatal, atinge

duramente a educação, que pensada como a única atividade social capaz de

promover a inserção no mercado de trabalho, transforma-se num campo

altamente rentável, passível de grandes investimentos privados e geração de

lucros. O que constitucionalmente é um direito de todos e dever do Estado, passa

a ser um mero serviço disponível de acordo com sua competência e capacidade

individualizada.

Outra estratégia usada para ampliação do setor privado e ataque a uma

educação de qualidade, foi a indissocialização do tripé ensino-pesquisa-extensão

para a universidade, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

(LDB/1996) que prever a possibilidade das “universidades especializadas por

campo do saber”, como as faculdades, centros universitários e universidades, com

e sem fins lucrativos.

Page 38: Caderno de Textos

38

A universidade que deveria ter um papel emancipador e oferecer uma

educação de qualidade, referenciada no trabalho e desenvolvimento humano, para

todos e todas que nela queiram ingressar, hoje apresenta um recorte de classe,

cor e gênero e passa ao longo dos anos por várias formas de incentivo ao ensino

subordinado a lógica de mercado, que a transforma em verdadeiras linhas de

produçãode bens e serviços educacionais para a fábrica de diplomas e

certificados de formação simplificada e tecnicista.

A crescente participação do capital estrangeiro na educação é outro

fenômeno resultado de anos de vantagens do Estado para com essas instituições

que geram uma grande desnacionalização do setor. Apenas quatro grupos

financeiros controlam a grande maioria do setor: Anhanguera, Kroton Educacional,

Estácio Participações e SEB. Um exemplo disso é a compra de uma das maiores

universidades paulistas, a Anhembi-Morumbi pelo grupo norteamericano Laureate

Education. Para conseguir comprar a universidade, o grupo recebeu do Banco

Mundial U$ 150 milhões. Com essa ajuda, estes grupos têm entrado no Brasil

aumentando a concentração e oligopolização da educação superior. A

oligopolização chega a tal ponto, que o Laureate Education conta com um total de

750 mil estudantes distribuídos em 29 países e mais de 65 estabelecimentos de

ensino. A demissão em massa de professores é uma marca dessa concentração.

O maior grupo brasileiro, o Anhanguera Educacional, demitiu entre 2011 e 2012

cerca de 1500 docentes, sendo que em apenas uma instituição, a UNIBAN (SP)

demitiu 50% do quadro de professores.

Assim, vemos um grande investimento na educação privada em

contraponto ao subfinaciamento da educação pública que se tornam nítidos com

os programas governamentais de expansão do ensino superior como o Programa

Universidade Para Todos (PROUNI) e Fundo de Financiamento Estudantil (FIES).

É inegável que tais ações colocaram milhões de jovens nas universidades,

mas vale a pena refletir sobre o real papel ele cumpre na formação desses

conglomerados educacionais e incentivo ao ensino pago. O FIES, Fundo de

Financiamento Estudantil, substitutivo em 1999 ao Crédito Educativo, CREDEC,

atua como fonte de financiamento direto do setor publico para o privado através de

Page 39: Caderno de Textos

39

empréstimo ao estudante para o pagamento da mensalidade. Desde 1999, injetou

mais de 6 bilhões nestas universidades, alcançando menos de 600 mil estudantes.

Com esse dinheiro seria possível construir e manter nos primeiros anos pelo

menos doze novas universidades federais. Fortuna essa que somada ao

investimento do PROUNI e do financiamento de Bando Nacional de

Desenvolvimento Econômico e Social, contribui para o enriquecimento desses

conglomerados.

Além de criar um endividamento por um direito que não é garantido, a

educação, há grande obscuridade no processo seletivo que demanda mais de

sorte do que critério socioeconômico, tendo vista varias denuncias e insatisfações

de como ele é realizado.

Já o programa universidade para todos, PROUNI, atua como forma de fonte

indireta de recurso publico ao setor privado através de isenções fiscais em troca

de bolsas totais ou parciais, comprando vagas ociosas em instituições privadas de

ensino superior para atender a demanda de estudantes de baixa renda que não

foram contemplados pelo vestibular com uma vaga no ensino público.

Com a implantação do programa, garantiu-se em lei a participação das

universidades com fins lucrativos que ao aderir, passaram a ter isenção total no

pagamento do Imposto de Renda (IR), da Contribuição Social sobre o Lucro

Liquido (CSLL), da contribuição para o financiamento da Seguridade Social

(COFINS) e do Programa de Integração Social (PIS). Que outro setor da economia

conta com tantas isenções? Tais isenções fiscais que faz com que todos os anos

um montante de dinheiro que, se investido na educação pública, poderia criar

milhares de novas vagas nas universidades federais, vá parar no bolso dos

empresários do ensino, sem levar em consideração a qualidade das vagas

geradas. Só em 2010, cerca de 120 milhões foram destinados para ofertar bolsas

integrais. Na verdade, vale lembrar que esse programa foi criado com todo apoio

dos tubarões do ensino, que acumulavam grandes dificuldades financeiras por

conta da inadimplência e da evasão, consequências naturais das altas

mensalidades cobradas.

Page 40: Caderno de Textos

40

Entre 2005 (quando foi editado) até o ano de 2012, o ProUni ofereceu 1,043

milhão de vagas, porém apenas 518,6 mil foram utilizadas. Estudos do Ministério

da Educação apontam ainda um forte índice de evasão: 25% dos estudantes que

ingressam no programa abandonam. Será dúvida quanto ao curso escolhido ou a

ineficiência de políticas que garantem sua permanência na IES?

Afinal, o que é Assistência Estudantil?

Em suma, ela compreende políticas públicas para enfrentar qualquer

obstáculo que o estudante possa ter para a conclusão do seu curso. Nesse

sentido, além das pautas fundamentais (e essenciais), como Bandejão (seja pela

construção de mais restaurantes universitários ou pelo barateamento do preço da

refeição), mais moradias estudantis, a luta por mais bolsas, essa política inclui

questões tão importantes quanto: como o acesso à informação e ao conteúdo das

aulas ministradas nas universidades (na prática, o acesso aos livros e textos dado

pelos professores ou à internet) e a questão da saúde do aluno, como os Hospitais

Universitários, Centro de Práticas Esportivas (clubes com piscina, quadras,

academia) e assistência em tratamentos de problemas psicológicos, dentários, e a

criação de creches.

Considerando a assistência estudantil enquanto política social de caráter

assistencial, que de acordo com a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei

nº 8.742/93, tem natureza não contributiva, se configurando, portanto como direito

do cidadão e dever do Estado, que não estabelece condições ou contrapartidas no

seu processamento.

Todo esse blá blá de assistência estudantil nos remete às históricas lutas

do movimento estudantil nas escolas públicas, porém essa uma dificuldade

também muito encontrada nas instituições privadas que não garante sequer uma

alimentação barata e de qualidade. Não basta somente a “cadeira” nasala de aula,

é essencial a implementação de medidas que garantam nossa permanência na

universidade e evite um índice de evasão tão alto.

Não há dúvidas que o PROUNI e FIES permitiram uma parcela de jovens,

anteriormente com muitas dificuldades de ingressar no ensino superior o seu

Page 41: Caderno de Textos

41

acesso. No entanto, após todos esses anos de adoção e diversos levantamentos

de entidades de educação e mesmo de órgãos do governo, se esse mesmo

dinheiro da isenção fiscal fosse investido em educação pública garantindo o

acesso para essas novas vagas com os mesmos critérios adotados pelo PROUNI,

todos esses jovens atendidos pelo programa estariam hoje matriculados nas

universidades federais, que contam com uma melhor infra-estrutura, laboratórios,

pesquisa e extensão.

Um dos pilares fundamentais para o Brasil se tornar um pais justo e

soberano é a urgente priorização e investimento na educação, que não ocorrerá

enquanto míseros 3,44% do Orçamento Geral da União for destinado a ela em

contraponto a quase 43% para pagamento dos juros e amortizações da dívida

externa.

Assim formaremos milhares de médicos, engenheiros, professores,

cientistas e profissionais capazes de pensar e construir o desenvolvimento do país

do ponto de vista da população e não das grandes corporações e monopólios.

A universidade faz parte da democratização do acesso ao conhecimento e

é histórica a luta pelo livre acesso a ela. O movimento estudantil e a DENEM

devem jogar um grande peso na mobilização e organização dos estudantes das

escolas pagas na defesa de seus direitos, passando por uma justa

regulamentação do ensino privado como estratégia de desgaste da

mercantilização da educação. Alcançando uma educação libertadora e de

qualidade para todos, pintando a universidade de branco, negro, amarelo, índio.

Pintando de povo!

Texto 4: Universidades Privadas – Regulamentação já!

Grace Urrutia (FCMMG) – Coordenação de Políticas Educacionais da DENEM (CPE) - Gestão 2013/2014 *Texto com a contribuição de Katerine Oliveira – Vice Presidente da União Nacional dos estudantes 2014 pela Tese Rebele-se

Page 42: Caderno de Textos

42

Há muito sabemos que a situação do ensino superior privado no Brasil não

é boa. Principalmente após a criação do Programa Universidade para Todos

(Prouni) e o Financiamento Estudantil (FIES) pelo Governo Federal, as vagas

nesse setor cresceram de maneira descontrolada. Essa expansão não foi

acompanhada de uma ampliação da fiscalização da qualidade dos cursos por

parte do Ministério da Educação (MEC), o que torna os estudantes reféns de

aumentos abusivos de mensalidades, cobranças de taxas injustificáveis, falta de

democracia e participação estudantil nos espaços deliberativos, inexistência de

políticas efetivas de assistência que garantam a permanência estudantil na

universidade. Além disso, os estudantes acabam por sofrer grande criminalização

com o movimento estudantil.

Todos esses problemas ocorrem devido a falta da regulamentação do

ensino superior privado, a mercantilização e desnacionalização da educação

brasileira e a impunidade dos responsáveis por esses absurdos. É preciso uma

campanha e organização estudantil para a criação de instrumentos que nos

protejam da avidez por lucro que a educação hoje demonstra.

Há meses tramita o Projeto de Lei nº 4372/2012 que cria o Instituto

Nacional de Supervisão e Avaliação da Educação Superior (INSAES). Esse PL é a

tentativa do governo de atender as reivindicações estudantis quanto à

regulamentação do ensino pago, tendo em vista a anarquia que reina nesse setor

e os lucros exorbitantes, muitas vezes ilegais.

No entanto, se esse projeto quer atender a demanda de regulamentação

como é pauta histórica dos estudantes, ele precisa ser discutido e modificado. O

pior do PL é que ele não trata especificamente de algumas questões

fundamentais: nada fala sobre aumento de mensalidades e taxas, ou seja, as

instituições continuarão livres para extorquir os estudantes a seu bel-prazer,

apesar de dizer que é papel do INSAES “avaliar” fusões, cisões e vendas das

instituições; Não proíbe ou sequer regulamenta o ingresso de capital estrangeiro

na educação paga; Não incide sobre a questão da estatização das instituições em

crise financeira e/ou administrativa e não prevê participação estudantil.

Page 43: Caderno de Textos

43

Precisamos de uma regulamentação que enfrente as principais contradições

encontradas.

Várias foram as formas de lutas feitas pelos estudantes contra esses

abusos: assembléias, apitaços, manifestações, greves, audiências. Dentre eles,

vale ressaltar a criação da CPI para algumas instituições pagas do Rio de Janeiro,

que trabalhou durante dez meses ouvindo representantes de sindicatos,

federações, reitores, representantes das mantenedoras e de entidades estudantis.

O relatório apresentou denúncias de irregularidades no funcionamento de

algumas universidades como venda de diplomas, apropriação indébita de

recursos, convênio de IES filantrópicas com empresas de fins lucrativos (proibido

por lei), ilegalidade na compra de imóveis utilizando-se da filantropia, sonegação

de impostos, atrasos e falta de pagamentos aos professores e técnicos-

administrativos, não pagamento de imposto sindical, INSS e FGTS, aumento

abusivo de mensalidades em 64 instituições, convênios com prefeituras sem

licitações, irregularidades em vendas e fusões de instituições. Uma das questões

abordadas pela CPI é a qualificação acadêmica não levar em conta a saúde

financeira das instituições, que deveria ser fiscalizada por auditores fiscais e não

por professores.

Enquanto isso, os lucros nas IES privadas bateram recordes nos últimos

anos. Exemplo disso é a Kroton Educacional, que obteve um crescimento de 99%

em 2012, e acaba de fundirse com a Anhanguera Educacional, transformando-se

num dos maiores conglomerados “educacionais” do mundo. Agora, o grupo tem

mais estudantes no Brasil que todas as universidades federais juntas!

Outro investimento altamente lucrativo é o Ensino a Distância, que

,somente no Rio, teve um crescimento de 80% em 10 anos (5.359 vagas em 2001

e 930.179 vagas em 2010). O MEC mais uma vez falha na fiscalização das

condições nas quais essas graduações são oferecidas. A maioria das

universidades substitui disciplinas de cursos presenciais com aulas online,

prejudicando o aproveitamento total do currículo na aprendizagem dos estudantes.

O relatório aponta o investimento de dinheiro público nas IES privadas,

através dos programas FIES e PROUNI, como fator fundamental para o aumento

Page 44: Caderno de Textos

44

absurdo do lucro de algumas. A CPI foi importantíssima para o levantamento de

provasda existência de todas essas irregularidades. A situação mais preocupante

é da Universidade Gama Filho e do Centro Universitário da Cidade, instituições

adquiridas pelo grupo Galileo Educacional, que vivem uma grave crise.

Atrasos no pagamento dos salários de professores e funcionários, quatro

campi fechados, greve estudantil, ocupação do prédio do Ministério do Trabalho

pelos estudantes e da maior ocupação de uma reitoria da história de uma IES

privada, mais de 70 dias. As instituições foram descredenciadas e a transferência

assistida dos estudantes em realização. Vale ressaltar que a luta pela

federalização de tais IES não foi feita, mas a ampla denuncia e mobilização

estudantil contra os abusos dos monopólios educacionais é um importante passo

para desgastar o processo mercadológico que a educação se encontra e cobrar

pela responsabilização do Estado com esse direito.

Texto 5: Tese do Movimento Honestinas – Universidade pra quê?

Parte da Tese do Movimento Honestinas da UNB ao CONUNE de

2013

“As lições fundamentais do primeiro ano de vida universitária ficaram indeléveis. (...) Uma concepção nova de ensino, ainda em caráter experimental, voltado para os reais problemas de nossa terra e nosso povo, com métodos democráticos – não paternalistas e autoritários, não expositivos e magistrais. A existência já efetiva de um real diálogo entre professor e aluno, sem a distância que o sistema catedrático colocava. Depois a imagem de tudo isto calcado por uma bota militar. A demissão coletiva de quase todos os professores, a parada por vários meses e o vazio do reinício.”

Honestino Guimarães

“Foi num ato de defesa própria que a ditadura dispersou aquele corpo de professores irredentos. Eles acreditavam que fôssemos perigosos. Gosto de pensar que éramos mesmo.”

Darcy Ribeiro

Page 45: Caderno de Textos

45

Não passamos duas horas das nossas vidas sem aprender, nem sem

ensinar. Aprendemos e ensinamos com atitudes, com experiências novas,

conversas, quando ouvimos gente mais velha e crianças, com viagens e pessoas

que pensam diferente, quando dançamos, beijamos, quando abrimos mil abas na

internet durante uma aula, e até mesmo, vejam só!, com as próprias aulas.

O que estamos aprendendo e ensinando na universidade, hoje? Que o

único espaço de aprendizado é uma sala de aula, onde nos enfiamos cada vez

mais apertados para ouvir uma sumidade das galáxias nos repassar todo-o-

conhecimento-que-existe-no-universo? Que a universidade é uma fábrica de

diplomas que serve para distinguir certas pessoas socialmente, e dizer que as

outras são ignorantes e por isso não devem ser ouvidas, prestigiadas nem

dignamente remuneradas? Que a única forma de aprender é enfiar a cara em

livros empoeirados ou se virar nos trinta pra ler artigos de periódicos estrangeiros

em inglês? (E se você não teve condições de aprender inglês, sorry, isso é

problema seu... Universidade é só pra gente diferenciada, e não tem culpa de

você querer invadir esse espaço).

Sim, os livros têm muito a nos ensinar, e a gente também aprende em salas

de aula e bibliotecas, principalmente quando há espaço e condições ambientais

adequadas, que têm faltado. Para garanti-las, é urgente a ampliação significativa

dos investimentos na educação pública gratuita, e lutamos pelos 10% do PIB para

a educação já! Mas não basta reivindicar mais verbas, porém, se ao mesmo

tempo não lutamos também pela democratização da universidade brasileira em

sua estrutura e em seu projeto pedagógico, perspectiva de ciência, cultura e

saber. Não aceitamos ser apenas another brick in the wall, outro parafuso

moldado, inserido e apertado em máquinas que não escolhemos operar.

Clamamos à ruptura com o projeto de mercantilização da educação e de

tecnoburocratização da ciência que vem sendo implementado pelos sucessivos

governos nas últimas váaaaaaarias décadas.

Superamos uma ditadura escancarada, mas ainda hoje precisamos

escancarar e enterrar o seu legado autoritário e fechado à participação e à

emancipação social. Por isso, somos a luta de Honestino Guimarães e suas

companheiras contra um passado que ainda se faz presente por meio da

indiferença da Universidade às lutas populares, da ilusão ideológica do

conhecimento despolitizado, da elitização e da repressão velada à real

democracia. Somos o espírito de rebeldia criativa da juventude latino-americana.

Somos o movimento universitário de Córdoba, a memória da efervescente rebelião

estudantil de 1918 contra o autoritarismo e o elitismo da educação superior, em

defesa da universidade pública, gratuita, laica, autônoma, popular, extensionista e

comprometida com a superação das injustiças sociais. Com Córdoba e Honestino,

Page 46: Caderno de Textos

46

assumimos, como movimento estudantil, a postura de sujeito produtor da

universidade democrática, como parte da missão de democratizar radicalmente,

junto a outros sujeitos políticos insurgentes, a sociedade brasileira e latino-

americana.

Cada estudante que se rebela contra a educação como processo de

dominação de si e das outras contribui para forjar não apenas uma universidade

democrática e uma cultura participativa, mas também a libertação social com a

qual sonhamos. Esse movimento de tomar o controle da universidade nas nossas

mãos só pode realizar-se plenamente se for feito em conjunto com servidoras/es e

professoras/es, mas também com os setores subalternos da sociedade, hoje

invisibilizados e dominados. Só assim pode ser parte da construção de uma

universidade comprometida com as lutas por um Brasil que pare de queimar

índias, negras, trabalhadoras, homossexuais como combustível de seu

“progresso”.

Para além de espasmos de solidariedade a outros movimentos,

convocamos todo o movimento estudantil a questionar(-se): a Universidade tem

tomado o genocídios dos povos indígenas e da juventude negra, por exemplo,

como problemas centrais de sua pauta cotidiana de ensino-pesquisa-extensão, ou

tem se omitido? Como os currículos dos nossos diversos cursos contemplam essa

questão? Produzimos conhecimento sistematicamente com esses grupos, como

estudantes, ou estamos enclausurados na bolha de elitismo, colonização e

segregação espacial, epistemológica, cultural e política da universidade?

A gente quer um movimento estudantil que volte a ser subversivo e

transformador não apenas na rua e no palanque, mas na própria práxis cotidiana

de estudantes. Para isso, o nosso grande norte (ou sul...) é a extensão, sob a

perspectiva da educação popular e da co-pesquisa com comunidades e

movimentos sociais. Extensão não é assistencialismo, nem é mera difusão de

conhecimentos produzidos na universidade; é servir à integração dos grupos

sociais marginalizados à produção de certos conhecimentos e à formação de

profissionais realizadxs na universidade.

As cotas para negros/as, indígenas, estudantes de baixa renda e

provenientes de escolas públicas foram um avanço importante, conquistado pela

luta dos setores oprimidos. Porém, não basta garantir sua presença de maneira

compensatória, marginal ao projeto de universidade. É preciso ampliar os canais

para a sua presença como produtores de conhecimento nas universidades

brasileiras.

Queremos uma Universidade-Laboratório: de novas práticas e

mentalidades políticas, pedagógicas, artísticas e científicas, da educação que

queremos, da sociedade com que sonhamos. Uma Universidade em que a arte, a

Page 47: Caderno de Textos

47

literatura, a cor, a diversidade, a rebeldia tenham espaço – quando a criatividade

seja objetivo pedagógico, e não rejeitos de uma pedagogia morta. Esse era o

sonho de Honestino Guimarães. Tentaram destruí-lo debaixo de botinas e

tanques. Tentaram e tentaram, de novo e de novo, mas não conseguiram, porque

"Podem nos prender, podem nos matar, Mas um dia voltaremos, e seremos milhões"

Honestino Guimarães

O sonho vive, e o Movimento Honestinas convida você a não deixar o

sonho morrer. A sonhar junto com a gente o sonho ousado de uma universidade

que faça todas e todos também poderem sonhar. De uma univer(cidade)

cooperativa, solidária, popular, que ecoe os sonhos da sociedade, em especial

das exploradas e oprimidas do nosso povo.

Não quero mais saber da

universidade que não é libertação!

Universidade pra quem?

A história da Educação é uma história de privilégio. Se a gente pensar bem, a exclusão é um processo decisivo pra quem tem acesso à Universidade, porque faz com que o conhecimento científico, acadêmico, se torne cada vez mais legítimo (já que é tão difícil ter acesso ao *processo mágico* de construção desse saber-verdade). As conseqüências disso são aquelas ideias socialmente difundidas que beneficiam sempre mais as elites: só elas podem “produzir verdade”, porque só elas tem representação na academia. A Educação é, então, um direito que foi negado ao povo, historicamente, para manter o controle de uma parte da população sobre a produção de ~conhecimento legítimo~.

Hoje a gente vê que as classes sociais que são maioria na população são, ao contrário, minoria na Universidade. Se só as “elites educadas” podem ocupar os principais cargos da condução política do país, que exigem diploma ou prestígio, a formulação de políticas está concentrada nas mãos de uma parte (uma pequena parte!) da população. E time que tá ganhando não se mexe! É assim que essa minoria privilegiada, na forma de Estado, segue administrando pela manutenção da estrutura social – e contra a democratização da universidade e o

Page 48: Caderno de Textos

48

time de quem tá perdendo. Reproduza essa lógica muitas vezes e tcharam! aqui estamos no Brasil de 2013, onde a educação continua sendo privilégio, e privilégio de classe. Só que educação deveria ser direito de todxs, certo? Por isso o Movimento Honestinas acredita que a expansão universitária (e uma política de assistência estudantil condizente) é fun-da-men-tal para a democratização da universidade, da educação, da ciência e do Brasil!

Mas como essa expansão tem sido conduzida hoje, por um governo que administra a Educação segundo seu projeto de aliança de classes? Pra começar, como falar em democratização de cima pra baixo, sem debate e sem possibilidade de questionamento ou proposição? Como combater a desigualdade defendendo uma Educação diferente, sem acesso pleno à pesquisa, extensão, organização política, vivência etc., pra população que sempre foi excluída? Pois é: é esse “meio-acesso” que as políticas do REUNI e PROUNI ~proporcionam~, já que a gente pode ver a diferença entre a vida universitária de quem é pobre e de quem é de classe média. Essa diferença é estimulada pelo governo quando as/os estudantes não podem acumular bolsas de caráter sócio-econômico com bolsas acadêmicas de pesquisa e extensão; a gente vê o descaso com os RU’s e Casas do Estudante, e sabemos quem precisa mais deles; é questionável ainda que muitas das universidades privadas não cumpram os parâmetros educacionais nacionalmente estabelecidos, prejudicando a formação da/o estudante do PROUNI.

Defendemos 2 bilhões para o PNAES já! Mas por tudo isso, defendemos com mais gravidade a revisão dessas tais políticas de ~democratização~ da Universidade brasileira, que na verdade representam uma expansão conservadora que não é (não mesmo!) a revolução educacional com que as Honestinas sonham. Porque essa “nova” forma de enxergar a educação, como serviço, só faz criar aquela visão assistencialista e limitada das políticas de acesso e permanência... Ao governo, quando conveniente, cabe dar uma ajudinha (oi?) pra quem “não pode”? A gente acredita que o papel do governo não é ajudar-por-ajudar algumas das exceções que superam o acesso excludente e entram na Universidade: é, mais do que isso, se comprometer a transformar toda essa estrutura social de desigualdade.

Pra isso, a gente tem que se posicionar contra o tal do conservadorismo que se expressa hoje avesso às cotas, idealizando a meritocracia, põe a segurança do patrimônio em primeiro lugar e a extensão popular em último. O conservadorismo só pode ser receptivo à assistência estudantil como caridade: ele treme diante possibilidade de democratização da Universidade (e da sociedade!), na recusa em abrir mão de privilégios políticos, econômicos e culturais. Contrárias/os a esse projeto de manutenção, a gente do Honestinas compreende a democratização da universidade como parte de um projeto popular beeeeem mais amplo de sociedade. E esse projeto nega a meritocracia como forma de legitimar essas estruturas históricas de privilégio da elite sobre a educação. Porque nesse contexto, o discurso da meritocracia serve pra que a gente pense que a superação individual é a superação das limitações da sociedade. Mas a

Page 49: Caderno de Textos

49

gente não se ilude com essa: queremos uma Universidade democrática e democratizante!

O Movimento Honestinas luta sim pela assistência que viabilize as políticas afirmativas de acesso e combata a evasão; acreditamos sim na assistência que promova excelência acadêmica, pelo fim do “meio acesso” segregador e pela garantia da formação plena para todas as universitárias e universitários. Mas temos que pensar que, mais que isso, a democratização não é só garantia de acesso que beneficie o individuo em situação de vulnerabilidade: é parte do nosso projeto revolucionar a composição social da universidade, pra que ela seja democrática e popular. Deve ser parte do nosso projeto enquanto movimento estudantil de esquerda revolucionar o conhecimento e a educação, pra que deixem de ser produzidos com parâmetros elitistas e colonizados. Precisamos da sociedade brasileira na universidade e vice-versa, pra que a sociedade brasileira, inteira, pense os problemas do Brasil. Mas cadê o povo brasileiro no meu campus, pensando os seus próprios problemas, não só recebendo, mas criando conhecimento critico?

“Precisamos permitir que todas possam se identificar com a

Universidade de Brasília e, mais, fazê-la, sê-la, existir nela.”

Programa do Movimento Honestinas, 2012

Para além da lógica excludente de segregação segundo a classe sócio-

econômica, a assistência estudantil deve ser referenciada como parte da política

universal que é (ou deveria ser) a Educação no Brasil. Fato que a igualdade deve

ser promovida pelo combate às desigualdades, e as/os estudantes em

vulnerabilidade social devem ter direito a políticas específicas que garantam sua

permanência e vivência plena na Universidade. Mas o principio de Universidade

Pública deve ser pensado assim como o da Saúde Pública: não podem ser

algumas/alguns que pagam por ela, enquanto outras/os são subsidiadas/os pelo

Estado. O conservadorismo vive aterrorizado com a possibilidade de mudança,

mas se a política é pública e universal, ninguém deve pagar por ela! Para isso,

precisamos garantir que a taxação (que deve ser feita sobre renda e patrimônio,

não sobre o uso do serviço, orientada pela isonomia) consiga prover os recursos

necessários e justos para a Educação. Desse jeito, defendemos a universalidade

por princípio e por resultados.

Isso porque sonhamos com uma Universidade onde todxs estudantes

possam fazer extensão, mesmo que a família (e a $ajuda$ da família) seja

contrária a ~essa perda de tempo~; onde nenhum/a estudante deixe de fazer

pesquisa de gênero por sofrer ainda mais uma pressão (financeira, no caso) pra

não sair do armário; onde nenhum/a caloura/o, de classe média ou não, precise

Page 50: Caderno de Textos

50

ser já enquadrada/o pela lógica de mercado, condicionando sua formação por

influência das demandas das empresas. A autonomia da Universidade e da

produção acadêmica depende, ainda que indiretamente, do financiamento dxs

estudantes.

Além disso, separar as/os estudantes entre “ric@s” e “pobres” pode

funcionar pra agravar ainda mais a disparidade. É claro que a consideração dessa

diferença se mostra necessária na busca da isonomia de fato; mas é também

verdade que os e as estudantes beneficiárias dos programas da assistência

estudantil são várias vezes guetificadas pela sua ~condição especial~ (ainda mais

nas universidades mais elitizadas!), de um jeito que as suas movimentações são

invisibilizadas por uma pulverização mesmo da organização estudantil. As bolsas

atrasam, as casas do estudante estão caindo aos pedaços, a vida das pessoas é

afetada por todo tipo de problema da concentração burocrática, e a maioria das

estudantes nem faz idéia do que seja isso... Aí fica difícil ampliar a solidariedade

na luta e pressionar reitorias e governos se a maior parte das/os estudantes não é

afetada pela ineficácia dos programas de assistência. É´ como chegar num

hospital do SUS e a equipe decidir se vai cobrar ou não sua consulta ou exame

com base na sua renda, ao invés de fazer essa diferenciação direto nos impostos:

dá pra imaginar como todo mundo seria atendido igualzinho, né? Sóquenão, isso

já acontece nas clínicas particulares e a gente não quer pras nossas

universidades! Educação é política pública U-NI-VER-SAL! Também por isso,

assistência para todxs!

Então o Movimento Honestinas não cede seus sonhos: assistência

estudantil para todxs estudantes! Essa é uma luta que vemos lá no horizonte

porque, mesmo que distante das nossas possibilidades atuais de transformação

da educação universitária, esse é um avanço muito importante pra consolidação

da Universidade que a gente quer. No momento certo, a universalização do

acesso e da assistência estudantil vai aparecer como uma reivindicação central

pra esquerda. Porque o sonho é isso mesmo, é tipo o sol lá no horizonte que não

deixa a gente esquecer o caminho certo, mesmo enquanto a gente vai construindo

a luta no pequenininho, em cada meta, cada transformação, a cada passo da

estrada.

Enquanto Movimento Estudantil, nossos sonhos são luta nas reivindicações

que apresentamos. Mas o tamanho dos nossos sonhos não cabe hoje nesse

papel: vemos no horizonte uma Universidade Universal, onde o vestibular e a tal

vulnerabilidade econômica são só uma lembrança da época em que a Educação

era um privilégio. Sem ceder nossos sonhos, gira o mundo, Honestinas!

Page 51: Caderno de Textos

51

“É fundamental ter em mente, ainda, que as desigualdades econômicas não são os únicos empecilhos ao aproveitamento da universidade de modo pleno e em igualdade de condições. Os dados têm mostrado que, muitas vezes, as razões para a evasão e para as dificuldades acadêmicas têm razões psíquicas, relacionadas, por exemplo, ao enfrentamento de preconceitos, à falta de auto-estima e de interesse por parte das/dos estudantes. Essas razões psíquicas são condicionadas por processos sociais e pela estrutura pedagógica da universidade: por um lado, as opressões geradas pelo racismo, machismo, homofobia e preconceito social e regional impedem que a/o estudante sinta-se à vontade e confiante no ambiente universitário; por outro lado, a pouca abertura de professoras/es e da estrutura de poder da universidade à participação estudantil cria currículos e aulas desconectados dos interesses e anseios da maioria das/dos estudantes. As políticas pedagógica e de combate às opressões deste programa, assim, também devem ser entendidas como partes integradas às políticas de acesso e permanência.”

Programa do Movimento Honestinas, 2012

Universidade de quem?

Opressão é um termo transmórfico. Ora é ação, ora é ausência. Ora é substantivo, ora é adjetivo; mas nada impede que seja, também, advérbio. Opressão pode ser sufoco, sufoco que transborda em choro – angústias sem nome, mas tão compartilhadas nos espaços de exclusão. Opressão é a dialética dos semelhantes desconsiderados como tal; é fetiche: instrumento de coisificação do outro e de nós.

Oprimidas somos todas que dançamos no tombadilho, sob o tinir dos ferros e estalar do açoite, legião de seres esquecidos pela noite, (con)fundidos em um só. Somos as negras mulheres madrugantes no transporte público a buscar o leite de todo dia. Somos as magras crianças, cujas bocas pretas racham o sofrimento da fome. Somos as moças nuas, violentadas e espantadas no turbilhão indigesto de um espectro monstruoso: machismo. Somos o amor preso nos elos de uma só cadeia, multidão faminta que, mesmo contra a ventania, não-cambaleia, na luta por um horizonte- horizontal. Somos a cara-a-tapa no combate de todo dia, o delírio consciente, corações sem raiva; somos o recrudescimento da coragem. Somos o branco que emerge tão puro sobre o mar; somos o olhar que ao fitar o céu que se desdobra, desmanda o capitão que manobra – somos a flor a quebrantar o rijo chicote do marinheiro.

Oprimir é ignorar o locus de cada ser; é condensar a trama social em um bloco assimétrico de fios feito fôssemos linhas pré-dispostas à redução da forma.

Page 52: Caderno de Textos

52

Oprimir é hierarquizar o gênero, a sexualidade, os caminhos. É fantasiar os trejeitos e futuros e aplicá-los indistintamente, reproduzi-los (in)conscientemente. Nós, Honestinas, por isso, recusamos a inércia do silêncio que perpetua a opressão; assumimos o papel da luta e da voz; transcendemos ao outro: ocupamos a pele que é sua, dele, dela, nossa. Somos, assim, também oprimidas; somos, assim, a recusa definitiva do opressor que reside (e resiste) em todas nós.

Somos presente e memória num desenho livre da dogmática das cores, dos símbolos desbotados, da moral contraditória e discriminatória. Somos a identidade que desbrava a margem, sob o Sol dos Trópicos a colorir a pele já colorida pela melanina da diferença. Acreditamos e defendemos que ser livre repousa justamente na inquieta (e genial) maneira de ser o que se é (e o que se quer) e poder, embora a sobra ou falta de arestas, ser visto por ângulos convertidos em uma só forma geométrica: a da pessoa humana. Entre a vigília e o son(h)o, a luta.

A opressão está presente em todos os âmbitos da vida social (da nossa vida!). Ela é presente e contundente, antes, durante e depois da Universidade. A exclusão aos espaços de poder e produção de conhecimento é auto-reprodutora, à medida que torna mais legítima a voz daquelas em posição dominante dentro da sociedade. Este processo é História no Brasil, especialmente sob a perspectiva das classes sociais. Mas alguns grupos de pessoas (porque isso é problema sociológico, não do indivíduo) estão naturalizados no imaginário geral como pertencendo a ~posições inferiores~, retraídas ou marginalizadas, também conforme a cor da pele, o gênero, a sexualidade, as condições físicas, enfim, conforme os padrões de opressão arraigados na sociedade brasileira. Muitas vezes as opressões são pensadas como uma coisa da esfera do outro, do ultrapassado, do absurdo, que só existe na forma de agressão física, ou como subproduto umas das outras, ou sob perspectiva individualizante de meritocracia (como se a superação individual fosse a superação das limitações e privilégios estruturantes da sociedade).

“Mas pera aí, a Universidade tem aquelas tais de cotas raciais, num é? Então qual foi desse papo? E aliás, a capacidade no vestibular depende da cor da pele?” É claro que os indivíduos não se diferenciam naturalmente conforme sua ascendência étnica! Mas existe um processo social e cultural de inferiorização e periferização de negras e índias, por padrões históricos cujas estruturas, em grande parte, se mantiveram. Esta opressão está presente na manutenção, pela mídia, de padrões de beleza europeizados; tá nas piadas de bar; está no mito da hipersexualização aplicado à mulher não-branca, resquício da cultura de estupro que deu origem à ~famigerada~ miscigenação brasileira; está no tratamento diferente que as negras, pardas e indígenas recebem independentemente de suas classes sociais (não que justificasse...); está na concessão de privilégios às pessoas brancas; está na estrutura histórica que mantém as negras e as indígenas com níveis mais baixos de renda e escolaridade e com menor grau de contato e socialização com o que se tem como cultura brasileira “oficial”.

Por isso, as cotas raciais devem ser defendidas e garantidas, e não dissolvidas em meio outros tipos de políticas afirmativas! É necessário que se informe o que elas são, como funcionam, qual seu motivo de implementação, o

Page 53: Caderno de Textos

53

que se pretende combater e o porquê. Que elas sejam mantidas não “só” por reparação histórica, mas por excelência acadêmica; pelo protagonismo na pesquisa de suas próprias condições, por perspectivas de diferentes socializações, para impedir a colonização da intelectualidade. É necessário, ainda, que o mecanismo de efetivação desta política de acesso sejam definidos em articulação com os Movimentos Negros.

“Ok, pode ser, mas a Universidade tá cheia de mulher e de homossexual, certo?” Certo, e ainda bem, graças a muita, muita luta! Mas ela não para por aí, na “mera” presença destas pessoas em ambiente universitário e em espaços de poder. Na medida em que o (antes) invisível assume a coragem de ser o que é, e esse processo de auto-reconhecimento se torna disponível ao olhar externo, há uma ruptura com os paradigmas tradicionais e aflora a necessidade do diálogo, respeito e alteridade entre os grupos que convivem e dividem o mesmo espaço. Uma sociedade patriarcal, enraizada de machismo e de homofobia, não só dificulta a saída do armário, como também retarda (e impede) a livre construção e exercício da identidade e individualidade de cada um/a.

O direito de ser quem somos é bloqueado pela violência que se personifica no olhar de repúdio; na determinação de papéis sociais que orienta até mesmo nossas escolhas profissionais; na mão que roxeia o corpo; na recusa diária que gera evasão e prejudica o rendimento e o empoderamento; no assédio, potencializado pela hierarquia limitadora da Universidade; na linguagem que agride em apelidos e nomes insossos; no “estupro corretivo”; na diminuição, caricaturização e rejeição da transsexualidade; na falta de estrutura que culpabiliza as mães em vez de promover sua autonomia; na proibição de usufruir os espaços de maneira plena. Por tudo isso, a gente tem é que abandonar o mito da igualdade formal e assumir a (des)igualdade substantiva como ponto de partida para a construção de uma sociedade mais justa, escancaradamente colorida e horizontal.

Queremos garantir a utilização de nome social por estudantes, servidorxs e professorxs transexuais e a continuidade e expansão dos serviços que hoje são prestados pelos HU’s à comunidade LGBTTT, especialmente em vista da atuação da EBSESRH; criar creches para alunas, professoras e servidoras (e para alunos, professores e servidores, certo?!); criar órgãos, internos e externos à Universidade, para recebimento de denúncias e acompanhamento de casos de violência; e remodelar os trotes, combatendo o trote homofóbico, machista e racista, a fim de que o trote possa ser um instrumento inicial de modificação do olhar do calouro e de inclusão.

Existem outras opressões, tão naturalizadas e invisibilizadas que não costumam ser sequer problematizadas, são secundarizadas e vistas como alguma forma de caridade. “Como é que é? Deficientes? Já não é o bastante colocarem vaga de trânsito pra eles?” Não! Pessoas com deficiência são todas aquelas que tenham adquirido, ao longo da vida ou desde a concepção, alguma característica, física ou cognitiva, às quais a estrutura de nossa sociedade, de forma geral, ainda é deficiente em adaptações. Pessoas que, durante a vida, passam por processos de inferiorização e desincentivo à participação de ambientes públicos, e, por isso,

Page 54: Caderno de Textos

54

são esquecidas pelos interesses públicos, e é naturalizado o seu não-pertencimento a eles. “Necessidades especiais”, todas nós temos. Mas, para algumas adaptações, a sociedade “não está preparada”. Será mesmo? Mais do que adaptar a deficiente à sociedade, é preciso adaptar a sociedade à deficiente; afinal, essas adaptações só são necessárias porque os processos e espaços não são pensados por deficientes, nem para deficientes. É necessário então que se incentive (possibilitar já é um começo, né, reitorias?) a participação e vivência destas pessoas tanto nos meios estudantis quanto profissionais, culturais, artísticos e esportivos para não limitar sua vida em sociedade, sua autonomia e suas particularidades.

Queremos garantidas condições (ao menos) igualitárias de ingresso na Universidade, com apoio institucional específico, com tecnologias assistivas, acessibilidade física e cognitiva, orientação a funcionárias e contratação de intérpretes. Somos pelo direito a uma escolaridade não padronizada, nas várias possibilidades modelos de ensino; pela opção entre escolas mistas ou de atendimento exclusivo a pessoas com necessidades especiais; e pelo direito de todas brasileiras de aprenderem suas duas línguas oficiais: português e LIBRAS; e pela cidadania plena das pessoas com todos os diferentes tipos de deficiência!

As instituições de ensino, embora ambiente de sujeitos cognoscentes, têm vestido faz tempo os farrapos calados de mera reprodução das estruturas dominantes e conservadoras da sociedade. Os conflitos e as diferenças são relegados a pinturas nos corredores cobertas por cartazes quaisquer. Vigora a política da mídia; o debate só se introduz depois do consumo do trágico: quantas outras alunas terão de ser agredidas no estacionamento para que se combata a lesbofobia? Quantxs travestis terão de ser assassinadxs para que se encare o pré-conceito? Qual o abismo de desrespeito e violência que nos deixaremos cair?

É nesse contexto que a gente visualiza a necessidade de adotar uma postura preventiva e combativa. É preciso promover o acesso à informação, a divulgação de meios e instituições que atuam tanto na repressão quanto na reparação nesses processos de exclusão; dialogar com a sociedade civil e acadêmica com muito ato e muita intervenção, eventos culturais, palestras e oficinas; criar órgãos internos, formados por discentes, docentes, servidorxs e movimentos sociais, responsáveis por receber denúncias, desenvolver políticas de inclusão dentro e fora da Universidade, para acompanhamento, inclusive psicológico, de casos de violência; desconstruir o uso da linguagem heteronormativa por meio da utilização da linguagem inclusiva nos “atos escritos” da Universidade. A gente precisa de esforço ativo pela abertura da sociedade atual, em seus mais diversos âmbitos, para a discussão das opressões, assim como são necessárias políticas públicas e leis que garantam direitos iguais e também direitos reparatórios àquelxs que estejam em situação de exclusão e opressão social!

Page 55: Caderno de Textos

55

Texto 6: A PRÁTICA DA EXTENSÃO COMO RESISTÊNCIA AO EUROCENTRISMO, AO RACISMO E À MERCANTILIZAÇÃO DA UNIVERSIDADE

José Jorge de Carvalho – Professor da UnB

1. Questões iniciais

Prezados colegas da UFRGS, Realmente, confesso que surpreendeu-me

este convite porque, apesar de ter amigos queridos na Extensão em Brasília, esta

não é minha área de atuação na universidade.

Por isso peço-lhes que tomem estas reflexões como contribuições trazidas

para uma reunião de trabalho - um diálogo de pautas e temas, que neste momento

me preocupam e fica em aberto em que posso contribuir com elas para a

discussão na UFRGS. Pelo que me informou o professor Fernando Meirelles, a

UFRGS já conta com uma grande experiência de Extensão, que pode inclusive

exportar para outras universidades. Portanto, não se trata aqui de pensar a partir

do zero, mas em ampliar o leque de intervenções, na tentativa de sacudir, talvez,

uma atitude ainda muito fechada das nossas universidades públicas. Espero

apresentar alguns argumentos que ajudem a entender as razões desse

fechamento e oferecer algumas alternativas de ampliação.

Neste momento, duas questões me preocupam principalmente sobre o

perfil das nossas universidades. Em primeiro lugar, a questão da inclusão social,

étnica e racial, tema que nós silenciamos ferozmente ao longo de muitas décadas,

a ponto de tornar-se praticamente inexistente. Ressalto o tema da inclusão porque

ele toca diretamente o que tem sido o meu esforço diário ao longo dos últimos

cinco anos: a luta pelas ações afirmativas para negros e índios no ensino superior

brasileiro. O segundo tema que me preocupa particularmente é a falta de abertura

das universidades para os saberes não europeus, bem assim como para os

saberes europeus ainda não legitimados pela nossa academia. Desde que

ingressei como professor na Universidade de Brasília, trazendo uma formação

eclética adquirida na Venezuela e na Irlanda do Norte que me permitia incursões

Page 56: Caderno de Textos

56

em várias áreas sem destruir minhas especializações, as expectativas que eu

tinha em relação ao cosmopolitismo do saber na universidade brasileira não se

cumpriram jamais. E cada vez mais me parece uma dissonância inexplicável,

crônica e indefensável, o eurocentrismo quase cego que é perpetuado no nosso

meio sem ser submetido à menor crítica.

Essas duas questões se combinam, obviamente, na medida em que fazem

parte de uma mesma tentativa de renovar os saberes, de reabrir a imaginação

bloqueada e desvalorizada e de deselitizar, social, étnica e racialmente, as nossas

universidades, todas elas escandalosamente brancas e de classe média. A

Extensão pode ser, neste sentido, um lugar chave na tentativa de chacoalhar

esses dois elementos difíceis, primeiro, ao conectar-se com a sociedade; e logo,

ao trazer os agentes sociais excluídos para dentro da universidade, superando

assim uma resistência que ela mostrado ao longo de toda a sua história no século

vinte.

Nossa forma principal de relacionamento com a sociedade sempre foi

objetificadora. Afirmo-o inclusive porque a própria disciplina com que sou

identificado, a Antropologia, que em princípio alega exercitar um diálogo com as

chamadas sociedades “nativas”, continua trazendo seus vários “outros” para perto

de nós apenas como objetos de estudo. E esta não é, na verdade, a maneira de

trazê-los ao nosso meio como iguais, mas apenas de observá-los para fins

científicos. A consciência dessa objetificação tem crescido tanto ultimamente entre

os excluídos que em uma discussão sobre cotas, no Rio de Janeiro em 2003, um

estudante disse a um professor que era contra as cotas: “O senhor está com medo

de que o micróbio assuma o microscópio?”

Impressionante! Agora o micróbio vai assumir o microscópio! Já não vai ser

mais o objeto, apenas, do olhar escrutinador e dissecante do professor. E isso

conduz a um processo muito mais complicado de equacionar, que é construir os

parâmetros para a legitimação de novos saberes - no caso, os saberes que os

nativos, até agora objetificados, escolham como importantes para fazer parte do

cânon acadêmico. Promover um envolvimento de mão dupla com as comunidades

Page 57: Caderno de Textos

57

excluídas é o caminho para se propor esses novos saberes, até agora tidos como

não-acadêmicos e torná-los legítimos. E exatamente o quê vamos construir com

esses novos saberes que passarão a circular agora como legítimos? É esta, em

síntese, a base dos questionamentos que trago aqui para sua consideração.

Curiosamente, essa parte da revisão dos saberes, que deveria ser central

para uma reorientação de sentido das nossas instituições de ensino superior, não

parece constar da pauta da atual reforma universitária. A partir da leitura das

posições defendidas pelo Ministério da Educação e rebatidas agora pela

Associação Nacional dos Docentes e pela UNE, entendo que a Reforma se baseia

em três eixos principais. O primeiro diz respeito ao financiamento, fonte de grande

polêmica: se público, se privado, ou se misto. O segundo eixo diz respeito à

autonomia das universidades e não incide tão significativamente sobre nosso

tema. E o terceiro se refere à questão da inclusão, estando o debate concentrado

principalmente na definição apenas social do beneficiado. Até onde sei, portanto, o

conteúdo mesmo do saber acadêmico não está sendo colocado em pauta; os

atores da reforma agem como se não existissem problemas com os paradigmas

de ciência e arte atualmente vigentes. Enfim, se não ampliarmos esse debate para

discutir os conteúdos que reproduzimos na universidade, podemos imaginar o

perfil da universidade pública brasileira após uma reforma tida como radical e

desestabilizadora: mais ou menos autônoma, com estudantes da escola pública;

mais ou menos mista, mais ou menos privada; e, ao mesmo tempo perpetuando,

como faz há já um século, o mesmo eurocentrismo e a mesma objetificação do

outro.

Para oferecer uma resposta mais libertária, ou pelo menos para pensar em

uma atitude mais radical, a partir de uma lógica mais ampla e crítica do capital

sobre a situação das universidades hoje, proponho utilizar como referência um

artigo de Robert Kurz, pensador alemão do Grupo Krisis, publicado recentemente

na Folha de São Paulo.

Seu texto, original e corajoso, discorre sobre o que chama de efeito

colateral da educação fantasma, expressão metafórica da crise da educação,

Page 58: Caderno de Textos

58

tanto no Primeiro quanto no Terceiro Mundo. Gostaria, então, de propor uma

síntese entre o raciocínio de Kurz e outras evidências que lhes apresento para

analisar a situação da Extensão a partirda trajetória histórica do ensino superior no

Ocidente moderno.

2. A crise da nossa academia eurocêntrica

As universidades públicas brasileiras são herdeiras, em sua auto-

representação, das universidades européias do princípio do século XIX,

principalmente das portuguesas, francesas e alemãs. Kurz argumenta que na

maioria dos cursos desse modelo clássico de universidade havia uma forte divisão

qualitativa e ideológica. De um lado estavam os cursos técnicos, destinados

exclusivamente para as classes trabalhadoras mais qualificadas da revolução

industrial; e do outro, aqueles cursos que seriam destinados exclusivamente para

a formação da classe dominante, que poderia se dar ao luxo de introjetar um

saber não-prático, sustentado em si mesmo. Enquanto o saber técnico seria

meramente utilitário, concebido e ensinado como exterior e colado às

necessidades de reprodução da vida material, o outro serviria para formar um

indivíduo com um mundo interno supostamente mais rico. Essa dicotomia entre

um saber aplicado à indústria, à reprodução da vida, à acumulação do capital; e o

saber que formaria o caráter da classe burguesa (e cujo modelo foi a formação

aristocrática), foi levada adiante sem rupturas por dois séculos e sói ser expressa,

até hoje, na oposição entre os cursos de Ciências Exatas, por um lado, e os de

Humanidades, por outro, que ainda é a nossa idéia-mestra organizadora do saber

universitário. Ou, para usar a elegante expressão de Pascal, a oposição entre o

esprit géométrique e o esprit de finesse.

Segundo Robert Kurz assistimos, no momento presente, a um colapso

desse sistema educativo por vários lados, porém sobre tudo em consequência do

ímpeto suicida do capitalismo neoliberal de nossos dias. Na verdade, seu

argumento central é que esse modelo de ensino não se sustentará por mais

Page 59: Caderno de Textos

59

tempo, visto que o capital não quer mais continuar financiando esse saber para

todos. Ou seja, o ensino tende a se reduzir a zero pelo seu lado de formação

humanizadora; e se tornará ainda mais estreito e simplificador pelo lado da

formação técnica. Por um lado, o curso universitário foi ficando cada vez mais caro

para os estados; por outro lado, as empresas pressionam cada vez mais para não

pagar os impostos que permitiriam a reprodução do ensino superior gratuito e

universalizado.

Feito o diagnóstico com precisão, todas as alternativas apontadas por Kurz

são impressionantemente negativas. Uma alternativa sedutora para os nossos

governantes do Terceiro Mundo seria privatizar de vez o ensino superior pleno e

integrado. A partir daí, quem quiser obter esse saber especial terá que pagar por

ele. Segundo a visão de muitos colegas, este é o espectro que ronda a atual

proposta de reforma universitária.

Uma outra saída seria elitizar de fato as universidades, na linha do que já

acontece nos Estados Unidos: ela pode até continuar sendo pública, porém

somente uma pequena elite vai poder jogar esse jogo sofisticado de estar além do

saber técnico e absorver um saber amplo, a atualização da Bildung humanizadora

e desalienante do século XIX.

Enfim, apenas uns poucos eleitos terão o privilégio de estudar o que

quiserem de acordo com a sua “vocação”, ou com o seu chamado interno; a

maioria terá que se satisfazer com uma formação mais rasa e limitada (ou

aplicada, digamos). Resta ainda uma terceira possibilidade, igualmente terrível (e

temo que talvez esteja também no horizonte da reforma atualmente em curso):

que cheguemos a desenvolver uma atitude de rendição em relação ao caráter

prático do mercado, de modo que a universidade – pública ou privada,

indistintamente – terá todo o seu saber, toda a sua orientação cognitiva dirigida

para um chamado desenvolvimento econômico, isto é, para algum tipo de projeto

imediatista de interesse exclusivo do grande capital que dá as ordens na nossa

política. E aí os temas de ensino e pesquisa poderão ser definidos fora das

universidades - pela Câmara dos Deputados, pelos Senadores, por um conjunto

Page 60: Caderno de Textos

60

de membros do executivo, etc. Todos, na verdade, como acaba de explicar István

Mészáros na sua conferência do Fórum Mundial de Educação em Porto Alegre,

apenas obedecendo à lógica desumanizante do capital globalizado.

Essa proposta significaria colocar toda a sociedade – e em particular todos

os estudantes e professores universitários – a reboque desse projeto de economia

empresarial. Faremos aquilo que a elite política defina como sendo o seu projeto:

desenvolvimentista para os ricos, atado ao FMI para (des)equilibrar as contas da

nação, fazer crescer perenemente o bolo do PIB sem jamais distribui-lo. Diante

desses três cenários apocalípticos, Robert Kurz (e também István Mészáros)

propõem a destruição desse totalitarismo econômico a escala mundial – somente

assim salvaremos a educação humanizadora, porque somente assim poderemos

salvar a humanidade.

Podemos agora tentar unir essa radiografia do ensino superior sob a égide

do capital monopolista globalizado com a discussão sobre Extensão que aqui nos

convoca.

Uma das características mais dramáticas do processo educativo dos

últimos dois séculos é o seu extremo disciplinamento, antes parecido com o

regime de vida militar e agora perigosamente próximo de um outro tipo de

instituição igualmente totalitária: as corporações do grande capital. A escola

(incluindo o mundo universitário) exerce atualmente o mesmo tipo de disciplina

intensa e irredutível dos conventos, dos quartéis e das empresas. As horas, os

minutos, os intervalos, as provas; os projetos, as qualificações, as monografias, as

comissões, os currículos, tudo se tornou absolutamente quantificado e

verticalizado, como na ordem militar e empresarial que despersonaliza o neófito e

o predispõe a obedecer e reproduzir sem crítica um mundo hierárquico, conflitivo e

excludente. Há uma cativante caricatura, desenhada por Moshe Süsser, em forma

de charge desse cotidiano asfixiante da escola no livro Foucault for Beginners, de

Lydia Alix Fillingham. O desenho expõe graficamente, em tom jocoso, a verdadeira

insanidade de uma agenda escolar que prescreve, no melhor estilo

Page 61: Caderno de Textos

61

esquizofrenizante do duplo vínculo proposto por Gregory Bateson, a ordem severa

de brincar por exatos 15 minutos!

Kurz retira dessa evidência uma conclusão surpreendente: por muito

tempo, enquanto estavam todos imersos nesse processo foucauldiano de inclusão

na escola, o estado (e o capital) conseguiam disciplinar a sociedade como um

todo. O grande exemplo da realização ideológica negativa desse disciplinamento é

os Estados Unidos nos dias de hoje: um Estado que ameaça destruir o planeta,

comandado abertamente pelo complexo industrial-militar (como também o foi o

Terceiro Reich), porém que produziu um disciplinamento tão grande na população

(exercido em grande medida por um ensino chauvinista e colado ao projeto

militarista dominante) que a resistência às decisões políticas é baixíssima,

comparada com as perigosas conseqüências mundiais dessas decisões isoladas.

A mobilização na esfera pública norte-americana é notoriamente muito pequena,

também porque o disciplinamento escolar tem trabalhado contra o

desenvolvimento de um mínimo de senso crítico. Eis a dedução de Kurz: se

declina o projeto de universalizar a escola (rejeitado agora pelo capitalismo em

crise), o qual formaria os membros do estado-nação, extingue-se também a

possibilidade de se disciplinar toda a população. A relação conflitiva entre os

interesses do capital e os projetos clássicos do Estado-nação interpelam

diretamente as instituições de ensino superior em que atuamos.

O passo seguinte é o surgimento dos chamados excluídos como novos

atores sociais, munidos de uma vantagem cognitiva de pensamento lateral

comparada com os incluídos: contarão com um excedente de lucidez porque

foram menos “institucionalizados” que os “normais” e “integrados”. Esses

excluídos irrequietos não vão estar disciplinados pelo regime escolar e poderão

fazer uma resistência monumental ao sistema, e no limite, tentar até destruí-lo. É

de se esperar que as rebeldias mais poderosas e articuladas surgirão dos não

disciplinados pela escola. Kurz termina o artigo abrindo para a possibilidade de

que nem tudo está perdido neste mundo em que se exclui as pessoas, porque

elas certamente pensarão em formas de dar o troco ao sistema excludente e

repressor. Ressaltemos aqui mais uma vez a consciência advinda da experiência

Page 62: Caderno de Textos

62

de exclusão, a condição de exterioridade articulada e o campo de forças de que

todos nós, sem exceção, fazemos parte: se excluímos ou incluímos a alteridade,

comprometemos, de um modo ou de outro, o nosso próprio futuro.

Vendo essa realidade de dentro da universidade e na condição de

professores, os projetos em que nos envolvemos parecem em geral mais tímidos,

quando comparados com a radicalidade proposta por Robert Kurz. Pelo menos,

não costuma ser esta a discussão principal da Extensão. Há alguns pontos em

comum, porém, porque esse disciplinamento nos atinge e em boa medida limita a

nossa imaginação. A Extensão poderia ser, portanto, uma forma de realimentar a

imaginação interna ao nosso mundo, dela profundamente carente. Retomo por um

momento uma reflexão que já desenvolvi em outro lugar sobre esse modelo da

universidade humboldtiana do século XIX, que teria separado as “ciências exatas”,

o saber técnico, do saber “filosófico”, de formação humanística.

Procurando ser positivo e indo mais além dos problemas advindos dessa

dicotomização alienadora e falsa, há um aspecto interessante a ser resgatado no

projeto humboldtiano: a sua flexibilidade pedagógica. Vejamos.

É interessante como nós, que nos dizemos herdeiros e continuadores do

ensino superior europeu, fechamos inteiramente esse sistema antes tão aberto em

seu lugar de origem. Em uma universidade européia do princípio do século XIX,

um estudante poderia estar assistindo um curso de duas semanas de duração e,

ao mesmo tempo, estar terminando a terceira semana de um curso de outro

professor que talvez tivesse vindo como visitante por quatro semanas; e logo

começaria um novo curso que duraria uma semana. O sistema de créditos não era

tão rígido como é agora. Alguém podia passar cinco anos na universidade, e

suspender sua formação, por várias razões, porém sem uma noção muito

formalizada de que havia encerrado a carreira universitária (como é o caso da

Áustria, ainda hoje em dia, em que, rigorosamente, o estudante somente “se

forma” de fato na universidade quando defende o seu doutorado!). O sistema de

créditos era aberto, o regime de classes não era rígido, o fluxograma de cursos

menos ainda e o corpo docente flutuava de tamanho a partir da oferta de

Page 63: Caderno de Textos

63

intercâmbio entre as universidades, que eram todas de menor porte. Havia uma

flexibilidade na composição das aulas e de alguma maneira isso facilitava a

ligação da universidade com a comunidade, porque haviam menos barreiras

disciplinares para a realização desse trânsito. Paradoxalmente, tratava-se de um

ensino menos alienado.

É preciso lembrar que não utilizamos praticamente nenhum desses

recursos pedagógicos – a não ser, justamente, através da Extensão. Contudo, em

alguns países, como na França, continua a tradição da aula livre, aberta para

quem queira assistir. Um exemplo recente e espetacular dessa cátedra livre foram

as aulas magistrais que Michel Foucault ministrava uma vez por ano em Paris, nas

décadas de setenta e oitenta, em apenas 26 horas, de janeiro a março, em

palestras de 2 horas. Conforme o descreveu Edward Said, que assistiu a uma

dessas aulas em 1 de fevereiro de 1978, centenas de pessoas superlotavam o

auditório, de mendigos a pesquisadores tão ilustres como o próprio catedrático.

Sua descrição é surpreendentemente parecida com a reconstrução feita por

Frederic Ungar de como foram as aulas do primeiro curso livre de História dado

por Friedrich Schiller, na última década do século XVIII, na Universidade de Jena,

em um salão lotado, com uma multidão de ouvintes disputando um espaço mínimo

nas escadarias do lado de fora.

Quero então dizer que nós estamos procurando cobrir com a Extensão

uma rigidez enorme, que talvez nem sequer seja mais percebida por muitos de

nós, tal o ponto em que naturalizamos esse engessamento das possibilidades

abertas à experimentação. Somos levados a ponderar, infelizmente, que é na

verdade bastante limitado o jogo acadêmico que nos ensinaram a jogar no Brasil.

Desejo ressaltar, portanto, o efeito de contigüidade entre um projeto formal

e Extensão, em uma rígida grade curricular (que é o nosso caso), e a porosidade

da universidade de pequena escala que foi de onde partimos, não faz tanto tempo.

Efetivamente, passamos de uma universidade de pequena escala para uma

universidade de grande escala. Contudo, creio que é possível imaginar uma

possibilidade de se estar em uma universidade de grande escala e tentar construir

Page 64: Caderno de Textos

64

uma vida acadêmica ainda mais porosa e sensível em sua relação com a

sociedade e com o mundo de um modo geral. É claro que não expresso aqui

enhum voluntarismo acrítico: as contingências do capital que forçaram o aumento

da escala das universidades compõem o quadro em que devemos atuar. Sempre

cabe a nós, porém, render-nos à sua lógica ou resistir a ela. E para resistir é

preciso mentalizar modelos alternativos, seja recuperando o melhor do passado

ou experimentando com formatos inteiramente novos.

Evidentemente, carregamos ainda uma carga muito forte de eurocentrismo,

dado que todo esse modelo de academia exclusivista foi gerado no mundo

europeu, que se via como homogêneo etnicamente. Dito em termos

antropológicos mais soltos, havia uma etnia dominante, tanto na Europa Central,

como na Inglaterra e na França: os brancos.

As minorias de outras línguas que não as línguas coloniais, estavam fora

desse jogo político e acadêmico. Tratava-se, na verdade, de um mundo branco,

ocidental, que funcionava como se não tivesse fraturas internas de visão de

mundo, que se autoproclamava universal. Todavia, quando transladamos essa

configuração sócio-racial para o nosso mundo, fomos forçados a pagar um preço

muito alto em termos de silenciamento, de censura, de repressão de outras visões

de mundo, porque nós não estamos nesse espaço austríaco, prussiano, britânico

ou parisiense. Existem pelo menos 180 línguas indígenas faladas hoje no Brasil.

Não é a mesma coisa, pois na Áustria, Inglaterra, França, Itália, o que existe são

apenas dialetos de uma única língua nacional, com suas diferenças respeitáveis,

porém escritos todos de um modo padronizado. Daí que pelo menos a nossa

Extensão deveria manter, ao meu ver, a especificidade manterse conectada com a

parte não-eurocêntrica da nossa sociedade. Deve ser o lugar onde se faz o

esforço por incorporar saberes não europeus que foram definidos por nós,

brancos, como não-acadêmicos. Dou o exemplo das línguas indígenas,

entendidas talvez como uma referência muito forte nas nossas universidades,

porque reproduzimos uma noção altamente preconceituosa, que é a idéia de

“língua de cultura”.

Page 65: Caderno de Textos

65

Sempre que se vai abrir uma vaga nova na área de Línguas, há uma

pressão para que se contrate mais um professor de francês, ou de inglês, ou de

alemão. Então, se nós olharmos as línguas ensinadas nas nossas universidades,

podemos detectar o descolamento das nossas universidades públicas com relação

à realidade do nosso país.

Por exemplo, se eu for à Universidade de Alepo, na Síria, com certeza

encontrarei cursos de árabe, curdo, armênio e aramaico; se eu for à Universidade

de Lahore, no Paquistão, poderei aprender árabe, urdu, pashtu e talvez persa. Se

eu for ao Cuzco, no Peru, poderei freqüentar cursos de espanhol e também de

quechua. Pela mesma lógica, na Universidade Federal do Amazonas eu poderia

fazer cursos de tukano, baniwa, tuyuka, tikuna, nheengatu, mas esses idiomas

não são oferecidos na UFAM.

Semelhantemente, a UFRGS deveria ensinar kaingang, guarani, xokleng,

iorubá, mas tal nãosucede. A Universidade Federal de Minas Gerais deveria

ensinar quimbundo e kicongo e a Universidade Federal do Maranhão deveria

ensinar o fon (mais conhecido no Brasil como gêge), além de várias línguas

indígenas.

Infelizmente, nenhuma dessas línguas locais não-européias são ensinadas

em nossas universidades. Em todas elas são ensinadas, quase que

exclusivamente, as línguas européias dos países de maior poder político e

econômico: inglês, francês, italiano, espanhol, russo, polonês. O fato de o japonês

(uma língua não-européia) ser ensinado em algumas universidades brasileiras

talvez seja mais um reflexo do prestígio geral e do poder econômico daquele país

na geopolítica mundial atual do que o fato de ser um idioma não-europeu falado

no Brasil.

3. Insuficiências do modelo pedagógico

Avançando nesse diagnóstico, um primeiro ponto de mudança de rumo

seria admitir que muitos dos nossos cursos estão montados sobre saberes

Page 66: Caderno de Textos

66

desatualizados de 30, 40, até 50 anos atrás. As técnicas podem estar atualizadas

(às vezes acriticamente), mas não assim a visão de mundo que orienta as

decisões sobre o que pesquisar. A grande revolução de paradigmas que sacode o

mundo científico e humanístico ocidental desde a metade do século passado não

foi ainda incorporada devidamente às nossas ementas, grades disciplinares e

abordagens teóricas (Estou falando, devo advertir, a partir do que vivo na

Universidade de Brasília: se serve ou não para a UFRGS, não cabe a mim

avaliar.). A propósito, lembro aqui que a UnB foi uma universidade fundada dentro

de um espírito interdisciplinar e transversal, capaz de favorecer cursos livres,

personalizados e com sistemas alternativos de avaliação. Tive o privilégio de

participar dos últimos momentos de plena liberdade curricular quando ingressei na

UnB em 1969. Naquela época, era possível cursar praticamente qualquer

disciplina da universidade, tal a maleabilidade das grades curriculares dos cursos

oferecidos.

Atualmente, as grades disciplinares da UnB estão cada vez mais fechadas

e muitos cursos funcionam, na prática, como se fossem ministrados por institutos

técnicos superiores, em que os estudantes só fazem as matérias específicas dos

seus cursos. As faculdades funcionam como escolas, porque não existe mais nem

integração nem circulação de saberes. Em muitas carreiras, os alunos são

encorajados ou pressionados pelos seus coordenadores de graduação a não

perder o fluxo e não “perder tempo” com disciplinas alheias aos seus cursos.

Observamos agora uma prática de orientação à inversa: os alunos chegam

à universidade e são (des)orientados pelos coordenadores, que os limitam em

suas escolhas, ao mesmo tempo que dificultam a matrícula das matérias para os

estudantes que vêm de outros departamentos. As vagas nas disciplinas são agora

reservadas exclusivamente para os que optaram pelo curso. O caráter

humanístico tão apregoado, de se ter as disciplinas abertas para a formação

integral do jovem, para essa Bildung renovada, está desaparecendo a passos

largos. Não sou só eu que reclamo, vários dos meus colegas têm lamentado essa

situação em inúmeros debates. Cursos formativos como Introdução à Filosofia,

Page 67: Caderno de Textos

67

Introdução ao Cinema, Introdução ao Direito, por exemplo, são agora restritos aos

alunos dos cursos de Filosofia, de Comunicação e Direito. Pode-se imaginar que a

disciplina de Filosofia interessaria também a um estudante de Engenharia, ou de

Biologia, por exemplo. Essa tendência cresce com a pressão por terminar o curso

em 4 anos e aponta para um apequenamento da formação universitária.

Creio ser papel da Extensão chacoalhar essa rigidez alienante. Além

da relação agonística entre capital e estado-nação, fator determinante dessa

conjuntura que analisamos aqui, um outro fator condicionante da rigidez face ao

saber é a nossa pedagogia, baseada na exposição intensiva e longa na sala de

aula. Na graduação são aulas de duas horas, na UnB e provavelmente em todo o

país. Cursando duas matérias seguidas, o aluno passa diariamente 4 horas

imobilizado em uma sala de aula! A pós-graduação é ainda pior, com extenuantes

encontros de 4 horas para os cursos em forma de seminário, tensos pela cobrança

recíproca docente-discentes e, não raro, pela falta de liberdade e espontaneidade

na interação com o saber. Insisto em que essa unidade de duas horas é uma

forma particular e idiossincrática de conceber o

tempo de uma aula. É muito diferente, por exemplo, da Irlanda do Norte,

onde estudei (e do Reino Unido em geral), em que cada disciplina consta de

apenas uma aula por semana de 50 minutos e o resto é estudo individualizado. E

por que um tempo de aula tão breve? Porque acredita-se que o centro do ensino é

o estudo individualizado. O estudante tem que estar só, na biblioteca, lendo os

textos, e não ouvindo horas a fio, seu ouvido sendo alugado na sala de aula. Esse

modelo das Ilhas Britânicas pelo menos oferece uma margem de autonomia e de

escolha um pouco maior que a nossa. Some-se a isso o fato de que as disciplinas

são anuais e um ano letivo, na Queen's University, por exemplo, tem

aproximadamente cinco meses. Em algumas universidades, como a de

Cambridge, nem sequer passa de quatro meses e meio.

Ofereço esses contra-exemplos simplesmente na expectativa de que nos

ajudem a repensar nossos dilemas acadêmicos. Discutirei mais adiante a

concepção pedagógica de alguns grupos indígenas brasileiros. Lembremos por

Page 68: Caderno de Textos

68

enquanto que a experiência da Universidade de Cambridge, campeã em Prêmios

Nobel (e bem sucedida devido a vários fatores, obviamente), indica claramente

que não há uma relação linear entre o número de horas de aula e a produção de

saber de ponta (obviamente, sem perder de vista o viés ideológico dessa noção de

“ponta”). No caso brasileiro, se já temos um sistema que está baseado no

seqüestro do estudante para ficar sentado na sala de aula; e se ainda por cima a

grade está fechada, imaginemos o efeito da relação do aluno com o saber como

um todo: seu interesse intelectual pelo curso tende a diminuir, infalivelmente.

Acredito sinceramente que esse exagero de aula imobiliza e freia a

imaginação. São exposições excessivas a um mesmo regime de relação com o

conteúdo e com o professor. Dito em outros termos, nós estamos exercitando

nesse caso muito mais o tempo cronológico do que aquilo que Lacan chamava de

tempo lógico. O tempo lógico, como em uma sessão lacaniana, pode ser

curtíssimo. Digamos que nos primeiros 30 minutos de uma aula ocorre um certo

clic, o limiar de uma nova idéia, a partir da dinâmica específica entre professor e

alunos. A aula podia então ser suspensa e os alunos teriam a permissão de

elaborar, ler outras coisas, sair, meditar e introjetar aquele conhecimento que se

apresenta agora vivo. Mas isso não é possível: todos devem pemanecer sentados,

porque ainda falta uma hora e 30 minutos para o encerramento da aula, e o que é

pior, quem sabe os 90 minutos restantes matarão a intuição criadora surgida nos

primeiros 30 minutos. E há aqui uma esquizofrenia na nossa dupla função de

educadores e pesquisadores: pautamo-nos pelo tempo lógico no momento

solitário e inspirador da criação científica e humanística; porém regressamos ao

nada inspirador tempo cronológico na hora de ensinar e interagir com os alunos. A

autonomia e a liberdade do tempo lógico são prerrogativas nossas, enquanto aos

alunos resta a dependência intelectual e a redundância entediante da cronologia

burocratizada.

4. O poder no ensino e na pesquisa

Page 69: Caderno de Textos

69

A verdade é que no caso do ensino, a estrutura de poder tende a ser

especialmente pesada. De todos os aparelhos ideológicos do estado, o ensino

talvez seja um dos mais rígidos (ao lado do aparelho militar) e submetido agora a

uma pesada chantagem por parte do capital, daí ser o mais difícil de transformar.

E de fato não é fácil reformar o ensino superior, pois a dinâmica consolidada pelos

colegiados aborrece qualquer movimento de mudança ou revisão profunda de

valores e práticas.Experimentar, inovar, auto-criticar-se, abrir-se para outros

registros de fala não são características da nossa corporação. Em primeiro lugar,

há os nichos de especialização dos professores que já estão muito demarcados.

Logo nos deparamos com uma determinada grade disciplinar pouco flexível,

construída para adaptar-se ao modo como alguns professores concebem suas

disciplinas. Finalmente, e mais grave, trata-se muito mais de passar um conteúdo

consagrado e consolidado do que propor-se a resolver novos problemas prático-

teóricos surgidos a partir de uma determinada interação com a comunidade ou

com outras áreas disciplinares. Optou-se por uma linha de formação que consagra

um cânon já banalizado por sua rotineira repetição, ao invés de buscar a

resolução de novas questões e de novos paradigmas de pensar. De ser assim, é

difícil propor mudanças pelo lado do ensino: as resistências hão de ser maiores

que em qualquer outro lado.

No caso da pesquisa, a taxa de criatividade pode ser maior que a do

ensino, adepender também das relações estabelecidas com as agências

financiadoras. O mantra atual da academia é “agência financiadora”: pode-se ser

mais ou menos criativo a depender de como se luta e se rebela contra o que está

sendo determinado ou imposto pela agência financiadora. A partir do que venho

observando, em inúmeras situações, os professores não pesquisam o que

gostariam ou o que julgam ser socialmente relevante, ainda quando têm a clareza

do que desejariam explorar. O mesmo sucede com os alunos, de graduação ou de

pós, que procuram também adequar seus projetos para atender às linhas abertas

de financiamento nos editais ou pelas necessidades de seus professores. Uma

coisa é que se tenha uma grande urgência interna de pesquisar um tema, outra é

Page 70: Caderno de Textos

70

é que os editais apontem os rumos da pesquisa. O acadêmico acaba pesquisando

o que os editais propõem e não aquilo que a sua intuição teria proposto.

Neste momento presente, essa operação de conformismo já é realizada

com um mínimo de resistência, às vezes automaticamente: o pesquisador apenas

lê os editais e começa a reorientar, adaptar ou até negar o que desejava pesquisar

para concorrer às verbas oferecidas. Essa mesma lógica opera tanto com os

editais públicos como com os privados. Na verdade, a distância entre os dois só

vem diminuindo na medida em que o Estado perde o controle das áreas

estratégicas e passa, na prática, a ser controlado diretamente segundo os

interesses do grande capital. Foi esse, inclusive, um dos pontos abordados por

István Mészáros na sua conferência no Fórum Mundial de Educação, acima

mencionada.

Essa migração de idéias, valores e teorias científicas não é trivial, porque

significou uma transferência de uma massa muito grande de intelecto da

universidade para um grupo pequeno que comanda a reprodução da academia.

Ou seja, há uma minoria de especialistas no poder estatal que emite os sinais da

direção; e um outro grupo, majoritário dentro da universidade (e que, bem ou mal,

tinha antes sua própria capacidade de imaginar), que é agora obrigado apenas a

reagir e se adaptar à agenda formulada pelo pequeno grupo. E as propostas

recentes de mudanças nas políticas de fomento anunciadas pelo CNPq e a FINEP

têm causado enorme preocupação nos pesquisadores negros. Eis o problema:

essas instituições financiadoras não estão querendo mais aceitar projetos

individuais de pesquisa que não estejam inseridos em grupos ou linhas coletivas já

cadastrados. Essa exigência incide negativa e diretamente contra os (poucos)

acadêmicos negros atualmente ativos no nosso meio. Se muitos dos professores

negros não têm conseguido encaixar as suas linhas de pesquisas naquelas

atualmente estabelecidas pelos colegas brancos (justamente porque não foram

contempladas há décadas atrás, quando as redes se consolidaram),

encontrarão ainda mais dificuldade em entrar nesse campo a partir de agora,

Page 71: Caderno de Textos

71

porque ele se tornará ainda menos competitivo e mais clientelista – e obviamente,

mais racista.

Sejamos claros: não é nada bom que se vincule todos os projetos

individuais de pesquisa a grupos já consolidados, pois isso implicará em

reproduzir um pequeno número de grupos, ao preço de mais uma vez limitar a

inclusão racial e, com ela,

cercear de novo a possibilidade de uma revisão e ampliação dos saberes

legitimados.

Trata-se de um mecanismo poderoso de controle político-acadêmico e de

limitação da imaginação científica. Pode ser bom para os brancos inseridos na

rede em termos de organizar e administrar a ciência (na medida em que fica mais

fácil para o gestor homogeneizar o perfil dos seus gerenciados); contudo, além de

imoral, pela reprodução consciente da desigualdade racial, certamente não é o

mais rico para a comunidade de pensamento como um todo. Esse alinhamento

temático, se implementado, provocará, portanto, uma dupla discriminação: racial e

intelectual.

Enfatizar as disciplinas como fulcro do ordenamento acadêmico é favorecer

ortodoxia, o que é gravíssimo nos dias de hoje, quando testemunhamos um

grande rearranjo dos saberes e dos paradigmas científicos e artísticos

consolidados no início do século passado. E a maioria dos grupos consolidados na

CAPES e no CNPq são grupos disciplinares. Os projetos interdisciplinares sempre

têm mais dificuldade de ser aprovados. Se um pesquisador solicita apoio à sua

área para uma experiência de pesquisa de fronteira com outra área, receberá dos

colegas uma recusa, com a recomendação de que busque apoio na outra área...

que, obviamente, se negará a financiar um pesquisador que não pertence à sua

rede específica. Há muito dessa lógica posta em prática e sua conseqüência é a

ortodoxia e o conservadorismo. Muitos dos grupos de pesquisa são extremamente

fechados; e do controle da rede muitas vezes se passa ao controle científico, das

idéias e dos temas definidos como legítimos. É claro que o modelo do grupo de

pesquisa integrado faz sentido e deve continuar existindo. Mas este é um modelo

Page 72: Caderno de Textos

72

apenas. O que não devemos fazer, parece-me, é generalizar o modelo de

laboratório controlado como se fosse o único modelo de pesquisa coletiva

autorizado. E temo que já estejamos a caminho da sua absolutização por razões

menos substantivas, da dinâmica da descoberta científica, e mais ligadas

diretamente à baixa autonomia do campo da ciência com relação à elite de poder

político e econômico do país. Dito telegraficamente, e em forma apenas de

hipótese, acredito que uma boa parcela da rede social da academia replica a rede

da elite do poder político e econômico. Essa promiscuidade de relações tinge as

reivindicações que deveriam ser de cunho estritamente científico de uma aura de

favor pessoal. Em um clima como esse, é sempre um risco para um acadêmico

assumir posições autônomas, pois pode ser alijado de ambas redes, as quais

freqüentemente se superpõem.

5. Extensão como espaço de integração de saberes

Diante desse panorama, o que pode fazer a Extensão? Pode estar

mais livre para tomar decisões sobre que projetos privilegiar. Exemplos? Para

começar, acolher e experimentar com a estrutura modular dos cursos, testando as

novidades para expandir e revisar o conteúdo acadêmico vigente em cada área.

Provavelmente seria mais eficaz, hoje em dia, em plena “sociedade da

informação”, ensinar disciplinas por módulos e não por semestre. A estrutura do

semestre foi um decisão tomada pelo MEC em um determinado momento na sua

política de unificação e homogeneização do ensino. Somos 180 milhões de

pessoas e temos que nos pautar todos pela mesma regra escolar, o que indica

quão pouco temos usado a imaginação, a criatividade e o respeito à diferença

regional. Se pensamos em módulos, nem sequer é preciso adequar um formato

para cada estado. Na verdade, cada universidade deveria ser capaz de

experimentar com o formato que melhor lhe aprouvesse. Absurdo maior torna-se

então admitir que os formatos sejam padronizados nacionalmente. Mesmo que o

sistema universitário se tornasse mais complexo, menos cartesiano e mais difícil

de administrar, ainda assim acredito a produção de conhecimento seria maior,

Page 73: Caderno de Textos

73

mais diversificada e mais sensível aos contextos locais e regionais. Se a

articulação de módulos de tamanhos vários fosse uma prerrogativa de cada

universidade autonomamente, estou convencido de que o caminho da inovação e

da vinculação com a sociedade seria mais transitado, pois a experimentação com

a forma estimularia uma revisão do conteúdo. Uma função importante da Extensão

pode ser, nesse sentido, a de acolher projetos de inovação com as formas

pedagógicas e também projetos que avaliem a incidência das inovações

modulares na expansão e revisão do saber acadêmico.

Outro ponto, complementar à flexibilização do ensino, e em que a Extensão

pode e deve intervir com conseqüências muito positivas, é em acolher e estimular

os projetos inter-disciplinares – ou transdisciplinares, ou multidisciplinares, sejam

quais forem os nomes que lhes dermos. Enfim, deve cobrir aqueles espaços de

interseção em geral bloqueados pelas financiadoras e pelo corporativismo dos

colegiados, como mencionado acima. Por exemplo, sou consciente de que a

UFRGS desenvolve atualmente um projeto de educação bilíngüe guarani,

montado segundo acordo estabelecido com os caciques das aldeias beneficiadas.

Este é um modo da universidade conectar-se com esses saberes extra-europeus

e não canônicos, em um caráter franco de experimentação.

Neste momento, estou fascinado pelo tema da educação indígena e tenho

tido o privilégio de participar de algumas discussões sobre o ensino médio

indígena bilíngüe.

É altamente desafiador o modo como os índios propõem o ensino médio

bilíngüe no Alto Rio Negro, por exemplo. Pude acompanhar as propostas das

escolas indígenas Baniwa e Tuyuka, que já deram excelentes resultados.

Professores e alunos se reúnem regularmente durante dois meses na escola,

período em que formulam mutuamente os temas e problemas a serem

pesquisados. Após esses dois meses, fecham a escola e todos, alunos e

professores, vão para as aldeias pesquisar aquele tema, cada um com seus

recursos acadêmicos próprios. Dois meses depois, regressam à escola e discutem

os trabalhos realizados. Aí fecham aquela fase de pesquisa/ensino e pensam

Page 74: Caderno de Textos

74

juntos novos temas a serem pesquisados; e como antes, saem a campo e apenas

dois meses depois vão reencontrar-se no ambiente escolar. Em resumo, trata-se

de um ensino médio que está inteiramente pensado para a formulação de

problemas e para a produção de conhecimento. Nós deveríamos pautar nosso

ensino médio por esse tipo de ensino médio indígena, já que o nosso foi reduzido

a decorar e aprender conteúdos visando unicamente a aprovação no vestibular.

Podemos concluir que o ensino médio indígena é de ponta, se visto nos termos

dos nossos critérios de avaliação de inovação em educação. Somos nós que

precisamos ter o saber indígena em educação por perto, porque ele está

colocando alternativas que estão nos faltando neste momento.

Esclareçamos dois pontos que podem haver ficado ainda mal entendidos.

Em primeiro lugar, a oposição humboldiana entre saber humanístico e saber

técnico analisada por Robert Kurz é um modelo evidentememente a ser superado.

A formação superior integral deve estar acessível a todos os estudantes, se

entendemos a universidade como um patrimônio público, o que significa: aberto a

todos os cidadãos.

A crise desse modelo permite expor o seu conservadorismo pelo avesso,

argumenta Kurz, lançando mão de um argumento possivelmente inspirado nas

teses sobre a Filosofia da História de Walter Benjamin: a hierarquia implícita na

oposição entre saber

técnico e saber humanizante é sustentada por um disciplinamento

específico, que alcança tanto as classes populares quanto as classes burguesas.

O declínio dessa força disciplinadora permite o surgimento de uma terceira

posição, não necessariamente interessada na integração entre os dois saberes,

mas em reagir contra a instituição que produz essa dicotomia mal resolvida.

Meu interesse em escutar as propostas da educação indígena é retirar dela

novos argumentos para retomar uma perspectiva integral dos saberes humanos,

idealmente ensinados em um tipo de universidade adaptada para a realização

dessa integração e enquanto ela se mostra distante, no tempo e na concretização,

Page 75: Caderno de Textos

75

seus primeiros passos podem ser dados pelas atividades de Extensão,

devidamente informadas e fundamentadas na direção da busca dessa integração.

Em segundo lugar, é preciso insistir em que o lugar da Extensão não

admite evasivas: ou ela se deixa reger pelo capital e se transforma no seu fulcro

dentro da universidade pública (afinal, na cabeça dos privatistas, Extensão é fonte

de dinheiro), ou ela se coloca como uma força assumidamente anti-capital da

academia, dedicada ao valor de troca e à dádiva da instituição universitária

ofertada à sociedade circundante.

Podemos associar aqui a prática da Extensão como uma atitude crítica

frente à ideologia elitista da universidade neo-humboldiana que praticamos.

Podemos fazê-lo ao oferecer eventos de Extensão que experimentem com

formatos flexíveis e expor a dupla ilusão da idéia de “hora-aula”, conceito nascido

inteiramente dentro de uma visão capitalista do ensino: o pressuposto de que se

pode quantificar o saber e que se pode quantificar o tempo. Essas duas

dimensões qualitativas são atualmente o motor da mercantilização da sociedade.

E mesmo no modelo humboldiano clássico, o saber técnico guardaria uma

afinidade eletiva com a mercadoria, porque ele seria quantificado como

mercadoria para ser utilizado por um técnico, cuja função estaria, de um modo ou

de outro, conectada também com a produção de mercadoria. Quanto ao saber

humanizante, do mesmo modo implicaria, pela sua negação, a presença da

mercadoria.

A Bildung, enquanto conceito, surgiu justamente na época da passagem do

mercantilismo para o capitalismo, na primeira revolução industrial. Foi quando a

ideia de um tempo inútil, de não-produção, começou a invadir uma visão de

mundo que ainda não media a reprodução da vida em horas. Desenvolver as

“ciências puras” era resistir, ilusoriamente, a uma servidão ao tempo produtivo –

ou pelo menos postergar, para a classe dos poderosos, o momento dessa

rendição, que em nossa época iguala a todos, ricos e pobres, letrados e iletrados,

a uma batalha sempre perdida contra o tempo produtivo. A Extensão, ainda que

Page 76: Caderno de Textos

76

em escala reduzida, permitiria o exercício de imaginar a possibilidade de uma

atividade produtiva, criativa, coletiva e solidária, porém sempre no tempo.

Jacques Derrida, em seu ensaio sobre a dádiva, leva a discussão ao limite,

quando afirma que a verdadeira dádiva, que se dá no tempo, é o próprio tempo.

Nosso ensino é absolutamente cronometrado, o que quer dizer: não tem tempo

nenhum para dar e sim para trocar – e, com a troca, produzir. A prática mais

radical da Extensão deveria ser, então, a abertura para o tempo, que é barrada na

sala de aula e no laboratório. A Extensão no tempo não pode ser, fixe-se bem,

uma mera extensão do tempo (em tal caso ficará presa à mesma lógica da

temporalidade que instrumentaliza e legitima um modelo que favorece,

inevitavelmente, a transformação do saber acadêmico, de dádiva pública (os

membros da sociedade que dão a si mesmos o saber que desenvolvem) em valor

de troca: mais saber em menos tempo, mais tempo para mais saber, meio saber

em meio tempo, o mínimo saber possível no menor tempo gasto.

Enfim, comprar o saber que ensina a comprar, acumular e vender tempo.

Mais ainda, dito em termos da crítica de Marx ao capital, a escola em geral (e a

universidade em particular, na medida em que congrega exclusivamente os

adultos) ensina fundamentalmente, segundo um mecanismo implícito em todos os

cursos científicos e humanísticos, a absorver a noção, desumanizadora e

predatória, da mais-valia relativa.

É preciso falar sobre esses dilemas justamente agora, quando

vislumbramos uma onda de mercantilização sem precedentes da instituição

universitária e experimentamos uma grave sensação de impotência. A discussão

do tempo e dos saberes indígenas e africanos (defendidos ainda da razão

instrumental que ameaça generalizar-se por toda a tradição de saberes ocidentais)

nos conduz a meditar sobre a possibilidade, positiva e esperançosa, de que a

universidade seja uma instituição que ainda mantém traços estruturais não-

capitalistas (e, dentro da lógica do capital, qualquer atitude nãocapitalista é anti-

capitalista). E isso não é pouco, em uma época em que o grande capital ameaça

com a mercantilização de todas as dimensões da vida. Repensar a Extensão

Page 77: Caderno de Textos

77

nesses termos, de resistência intra-campus e extra-muros é contribuir para as

propostas de reformar a universidade, não para aumentar a produção de bens de

ensino (o que seria o seu fim definitivo), mas para a produção de vida.

6. Experiências inovadoras de Extensão e seus desafios

A Universidade Federal de Minas Gerais conta com um projeto

originalatualmente, conduzido pelas professoras Rosângela Pereira, da Escola de

Música, e Maria Inês de Almeida, do Instituto de Letras. Elas estão trazendo os

índios Maxakalis, do norte de Minas, para fazer estágios na universidade e

participar de oficinas. Os Maxakalis são muito pobres, vivem em uma situação

miserável em uma área muito pequena, mas sua imaginação artística e científica é

enorme. Vários dos índios estão participando de oficinas em Artes Visuais,

Gráficas, Música, Literatura, Arquitetura, Antropologia, Arqueologia, Lingüística,

Ecologia e Turismo, a cada vez por um período de até quinze dias. Esse projeto é

um primeiro passo no longo caminho da inclusão mais regular dos índios na nossa

academia. Esta é então uma interação, uma troca, um exemplo excelente de

Extensão, capaz de testar inclusive a resistência de muitos professores, que se

sentem perturbados com a presença de índios na sala de aula, conversando,

fazendo perguntas, trocando idéias e informações com os alunos e com eles

próprios.

Outro projeto de Extensão desafiador, da Universidade Federal de Alagoas

(UFAL), é a introdução de um curso de Capoeira Angola, não como

educação física, apenas, mas como disciplina formativa, no sentido da integração

corpo-mente. Esse curso, de duração anual, é possivelmente o único curso de

capoeira assumido por uma instituição pública de ensino superior no Brasil.

Questionando o conteúdo eurocêntrico embutido na formação universitária, a

capoeira passa a ser acolhida na universidade como uma filosofia de vida, uma

visão de mundo, um saber que interioriza, que promove equilíbrio, resgatando

inclusive a figura do mestre capoeirista exatamente como é: um mestre de um

Page 78: Caderno de Textos

78

saber afro-brasileiro que pode conviver e trocar com os outros mestres de saberes

europeus. Esse projeto está vinculado ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da

UFAL e seu coordenador, Professor Moisés Santana (também um praticante de

capoeira), enfrenta agora o desafio de contribuir para ampliar o campo intelectual

e espiritual de sua universidade. E as resistências ainda não são poucas.

Tocar nos núcleos corporativos e eurocêntricos no nosso meio não é tarefa

fácil. Um exemplo que expõe a relação tensa (e necessária, por outro lado) entre

os projetos de Extensão e os valores fechados de muitos Departamentos e

Institutos foi um encontro de xamãs que ocorreu na Universidade de Brasília há

dois anos. Um professor do Departamento de Antropologia foi convidado a

participar do evento, na sua qualidade de etnólogo e de alguém vinculado com a

causa da promoção dos saberes e da educação indígenas. Assim que soube do

evento em preparação, a Chefia do Departamento comunicou à Pró-Reitoria de

Extensão que não autorizava a menção do nome da Antropologia nos panfletos e

cartazes de divulgação do evento, deixando claro que o colega participaria em

caráter estritamente individual, e não como membro do colegiado departamental.

Ficou patente que a Chefia não queria dar legitimidade à presença de pajés

indígenas na UnB. Sem entrar em maiores detalhes, este incidente ilustra vários

dos problemas que discutimos anteriormente. Vejamos alguns deles.

Essa recusa em acolher os líderes espirituais dos índios pode estar

relacionada com o medo de infringir o cânon etnocêntrico e sofrer represálias por

isso: quem sabe, dada a dependência paranóica dos programas de pós-

graduação em relação aos humores das agências financiadoras, se o nome do

Departamento de Antropologia da UnB fosse associado a um encontro nacional de

xamãs (que representam um tipo de saber até agora não legitimado), a CAPES ou

o CNPq poderiam retirar as verbas do programa, rebaixar pontos na próxima

avaliação, etc. Aqui se evidencia o quanto a estrutura disciplinar e departamental

pode tolher processos dinâmicos de intercâmbio e exploração de novas fronteiras

de conhecimento no interior das nossas universidades.

Page 79: Caderno de Textos

79

Aponta ainda para o problema grave do corporativismo e indica que o

melhor caminho a ser trilhado pela Extensão deve ser o de contrapor-se aos

fechamentos exercitados pela estrutura formalizada e fossilizada do ensino e da

pesquisa.

Esse assunto dos pajés nos permitiria dar ainda várias outras voltas no

parafuso do fechamento acadêmico. Por um lado, está o pressuposto de que o

saber do outro, não-ocidental, só vale enquanto crença, e não enquanto saber

equivalente ao nosso: nós, acadêmicos, apenas acreditamos que eles acreditam

que sabem. Em segundo lugar, ele pode até valer algo, porém unicamente em

seus próprios termos, isto é, desde que fique confinado ao ambiente da selva, ao

mundo tribal: aqui na universidade ele já passa a ser embuste, oba-oba,

ingenuidade, irracionalismos de neo-hippies, ou mercadoria falsa.

Enfim, acreditamos que eles acreditam que sabem, mas acreditamos

também que eles não sabem com o mesmo grau de verdade com que nós

sabemos. Indo adiante nessa análise, é possível interpretar a atitude da Chefia do

Departamento de Antropologia como uma reação contra o que poderia ser

entendido como uma exotização da pajelança indígena – o evento estaria

retirando a pajelança do seu contexto tribal para trazê-la para um mundo alheio ao

seu sentido original. Plausível e compreensível, restam para o extensionista

favorável à realização do evento ainda alguns argumentos na manga. Afinal, os

xamãs indígenas brasileiros estão entre nós e podem viajar; por que a

universidade não pode recebê-los e reconhecê-los, ela que já recebe xamãs de

outras civilizações? Lembro apenas dois “super-xamãs” que visitaram a UnB e

receberam o título de Doutor Honoris Causa: o Bispo Desmond Tutu e o Dalai

Lama. Não importa quão complexas sejam essas situações, a legitimização

nesses casos é sempre mútua: a academia passa a ser mais academia por

receber o homenageado; e o homenageado passa a ser mais eminente por ter

recebido as honrarias da academia.

Finalmente, no caso dos saberes subalternos, como é o caso dos pajés,

fica ainda no ar uma variável meio solta, que são os estudantes: quais serão as

Page 80: Caderno de Textos

80

conseqüências para nós, professores, caso os representantes dos saberes não-

europeus impactem positivamente os alunos? Não correremos o risco de nos

desautorizarmos no nosso papel de até agora incontestes intérpretes de todos os

saberes legitimados? Via de regra, nosso saber objetifica o outro; e o sintoma

mais claro dessa objetificação é a ausência do outro no nosso meio. Trazer os

pajés para que se apresentem como sábios é admitilos como sujeitos de

conhecimento. Operação nada trivial para um universo pulverizado em

departamentos autônomos e sempre prontos a se auto-representarem como

primeiros sem segundos, fechados sobre si mesmos. Somente a Extensão parece

ter essa flexibilidade e essa liberdade para romper falsas barreiras.

Que fique claro que o incidente dos pajés na UnB nada tem de excepcional

e é emblemático da atitude defensiva comum à nossa classe em todas as

universidades públicas. Tive notícias de um caso análogo ocorrido em outra

universidade, em que o colegiado de Educação Física quis impedir a presença de

um mestre de yoga em um evento de Extensão, alegando que ele não tinha os

títulos necessários para discorrer sobre Anatomia Humana. Essa auto-proteção

possui uma história, que precisa ser explicitada constantemente para que

convivamos nesse nosso meio com um pouco mais de realidade e menos fantasia

de superioridade. Esses incidentes devem surgir a cada vez que a Extensão

propuser um debate que ameace os nichos de poder e legitimidade científica dos

departamentos ou dos grupos de pesquisa estabelecidos. Pelo que ouço dizer,

não está sendo fácil abror a discussão dentro da comunidade universitária sobre

os riscos dos alimentos geneticamente modificados (como a soja trangênica) e

das manipulações genéticas em geral, porque os grupos que recebem

financiamentos para desenvolver pesquisas nessas áreas (em geral de interesse

de mega-empresas, mesmo que apoiadas com verbas estatais) não querem correr

o risco de ser questionados por colegas e por alunos. Em tais casos, somente a

Extensão ainda pode responder às legítimas demandas por informação e

esclarecimento advindas da sociedade.

Nossas universidades, quando foram constituídas, desautorizaram

sistematicamente todos os saberes dos indígenas e todos os saberes dos

Page 81: Caderno de Textos

81

africanos escravizados no Brasil. Esta desautorização está até hoje embutida nos

conteúdos das nossas aulas e nos nossos temas de pesquisa. Daí que o papel da

Extensão deve ser justamente caminhar na contra-corrente desse processo de

discriminação. Para tanto, tem que atrever-se a reautorizar os saberes negados e

reintroduzi-los no seio da vida universitária, através de duas intervenções:

trazendo as expressões culturais e os conhecimentos dos subalternos para o

campus e estabelecendo vínculos concretos de parceria com as comunidades que

perpetuam esses saberes. Em suma, deve deslocar docentes para perto das

comunidades através de projetos de parcerias e trazer representantes dessas

comunidades para dentro da universidade.

Mais dois exemplos positivos dessas práticas inclusivas, anti-

discriminatórias e anti-corporativas da Extensão. Um dos momento mais

marcantes da Extensão na UnB foi justamente a gestão de um professor gaúcho,

Volnei Garrafa. O professor Garrafa criou o Fórum Nacional dos Pró-Reitores de

Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, em 1987 e desenvolveu os

Núcleos Permanentes de Extensão, destinados a conectar a UnB com a realidade

social do Distrito Federal, tanto nas cidades-satélites como nas invasões e nos

municípios do Entorno. Os Núcleos chegaram a envolver 40 departamentos da

universidade. Dois projetos desenvolvidos na Ceilândia merecem destaque: o

apoio jurídico oferecido na Casa da Ceilândia (órgão da UnB) e a disciplina da

Comunicação chamada Jornalismo Comunitário (já desativada), que ajudava na

confecção do jornal “Nós da Ceilândia”, primeiro veículo local de imprensa gerado

naquela cidade. Outro projeto integrado importante, em parceria com o governo do

Distrito Federal, foi o assentamento das invasões do Paranoá e da Vila Planalto,

que envolveu estudantes e professores de Arquitetura, Serviço Social, Psicologia,

Educação, Sociologia, Antropologia. Foi a Extensão da UnB que possibilitou,

naqueles momentos, a formação de uma equipe deveras multidisciplinar capaz de

comunicar-se de um modo criativo frente a um tema comum, façanha que nunca

havia sido realizada, nem pelo lado do ensino nem pelo da pesquisa.

Foi igualmente o Decanato de Extensão que contribuiu, no âmbito da

Reitoria, para a consolidação da nossa proposta de vagas para índios na UnB,

Page 82: Caderno de Textos

82

justamente pela experiência da Decana, Profª Dóris Faria, em confrontar com

versatilidade contextos sociais diferentes do campus estratosfericamente elitizado

da Universidade de Brasília.

A primeira reunião, histórica, por mim articulada e conduzida, que as

lideranças indígenas e representantes da FUNAI tiveram com a UnB para discutir

a abertura de vagas para índios, não foi feita em nenhuma Faculdade em princípio

afim com o tema da educação para índios (como a Faculdade de Educação ou de

Ciências Humanas e Sociais), mas na Pró-Reitoria de Extensão.

Também a solução final da proposta de cotas para negros foi feita de

comum acordo com a Extensão, que coordenará um programa de apoio à escola

pública da periferia do Distrito Federal, em articulação com a Faculdade de

Educação e o Instituto de Psicologia. Esta solução evidenciou uma análise mais

refinada da situação da escola pública que o Decanato de Extensão pôde trazer.

Por que o apoio às escolas da periferia? Porque a escola pública não é

homogênea. Colocar cotas para escola pública, sem perceber, por exemplo, que

no caso de Brasília as escolas do Plano Piloto certamente têm uma capacidade de

preparar para o vestibular muito maior que a das satélites, seria um equívoco. Se

quisermos fazer uma ação afirmativa realmente inclusiva, social e racialmente,

temos que fortalecer a escola pública das satélites, não as do Plano Piloto, caso

contrário continuarão entrando na universidade apenas os alunos brancos

egressos da escola pública elitizada. E o objetivo das cotas é justamente

deselitizar o ensino público. Essa reflexão, mais sutil, é conseqüência também da

relação do Decanato de Extensão com a realidade extra-campus.

Finalmente, gostaria de mencionar algumas intervenções extensionistas

realizadas pela Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT). Nas

palavras do seu Reitor, Taissir Mahmudu, mais que uma universidade pública, ele

espera que a UNEMAT seja uma universidade popular (idéia que ainda horroriza

uma boa parte dos nossos colegas da UnB e, quem sabe, também da UFRGS).

Pioneira e revolucionária, a UNEMAT é a primeira (e ainda única) universidade

brasileira que abriu um terceiro grau inteiramente para os índios. No campus de

Page 83: Caderno de Textos

83

Barra do Bugres funciona a primeira turma do terceiro grau de formação de

professores, com 200 estudantes, que se formarão em janeiro do próximo ano.

Dos 200 alunos, 180 são índios do Mato Grosso e 20 oriundos de outros estados,

cobrindo todas as regiões do país. A coordenação do Terceiro Grau Indígena

acaba de consolidar a abertura da segunda turma, que será de 100 alunos, a

começar em 2005. A UNEMAT também oferta um curso de graduação de

Pedagogia da Terra para assentamentos agrários em convênio com o INCRA; um

terceiro grau modelar para o MST; e prepara agora, também para o Movimento,

um curso de Ciências Agronômicas.

Assim, a UNEMAT confronta na prática a política estadual excludente e

predatória, de prioridade à mega-produção de soja e que se transforma em uma

patologia disfarçada de ideologia desenvolvimentista do agro-negócio. Enquanto o

governador quer transformar o Mato Grosso no maior celeiro de soja do mundo,

mesmo que para isso tenha que destruir toda a floresta amazônica e o modo de

vida dos índios e camponeses que nela habitam (são palavras do próprio

governador), a Extensão da UNEMAT atua em projetos que fortalecem a opção

pela escala humana da relação com o meio ambiente. Na linha de flexibilização do

ensino comentado anteriormente, a UNEMAT, sobretudo através da Extensão,

oferta ensino a distância, em cursos parcelados e modulares, voltados para a

inclusão social de grupos específicos. Outros dois projetos importantes liderados

pela Pró-Reitora de Extensão, Profa. Solange Ikeda, foi o Encontro de Agricultura

Familiar, em Tangará da Serra, destinado a pequenos agricultores e assentados e

o Festival Ecológico e Cultural das Águas de Mato Grosso, em homenagem a D.

Pedro Casaldáliga e solidário com a luta das populações locais em defesa do meio

ambiente, da cultura regional e dos direitos humanos. Obviamente, é preciso

coragem para enfrentar a política regional, o capital bilionário do agronegócio e

mesmo as pressões, supostamente neutras do ponto de vista acadêmico,

advindas da CAPES, da FINEP, do CNPq, exigindo que a UNEMAT seja tão

“neutra” academicamente e tão eurocêntrica como todas as outras universidades

brasileiras. E mais, que esteja a serviço da lógica do desenvolvimentismo

predatório cujo futuro será a destruição completa do Centro-Oeste brasileiro –

Page 84: Caderno de Textos

84

flora, fauna e modos de vida. (Enquanto escrevo, sou informado de que a

UNEMAT está sendo ameaçada de federalização – uma espécie de “destruição

branca”, dada a sua inviabilidade – por parte do atual governo do estado do Mato

Grosso; uma retaliação, também, ao excelente trabalho de Extensão promovido

por uma universidade estadual que de fato cumpre o seu papel social de

desenvolver todas as regiões e todas as populações e grupos étnicos do estado).

7. A Extensão na encruzilhada: rebeldia ou submissão

O ponto básico dessas reflexões é enfatizar que para pensar a Extensão é

preciso entender como opera a estrutura de poder dentro das universidades

brasileiras. Na maioria, se não em todas as universidades públicas, o poder

decisório está concentrado nos Departamentos, que são unidades extremamente

reduzidas dentro do organograma da instituição e que compõem colegiados

autônomos, os quais não passam em geral de duas dúzias de docentes. As

unidades maiores, que são os Institutos ou Faculdades, pouca interferência

exercem sobre as decisões dos colegiados departamentais; menor ainda é a

capacidade das Pró-Reitorias de interferir nas decisões dos Institutos. Esse grau

tão alto de autonomia e os reduzidos mecanismos de controle externo favorecem

a cristalização de focos de poder e de definição das linhas acadêmicas nas mãos

de um número extremamente reduzido de professores, que podem impor-se a

seus colegiados durante décadas seguidas, às vezes praticamente sem nenhum

desafio. Ou seja, o colegiado departamental, concebido inicialmente como uma

instância de poder, visa transformar-se, na prática, na única instância real de

poder e representação.

Em um clima de tanta centralização (e muitas vezes de alta impunidade) a

tendência comum é o fundamentalismo disciplinar e o conservadorismo teórico e

temático. É esse o pano de fundo em que deve operar a Extensão. Em inúmeros

casos, a tendência normal dos Departamentos será tentar barrar abertamente as

propostas tidas como “ousadas” da Extensão.

Page 85: Caderno de Textos

85

Aqui poderíamos ponderar se não há ainda mais uma fundamentação

teórica para a prática extensionista. Cada Departamento, cada Instituto ou

Faculdade, cada curso, de graduação ou pós, opera com um determinado cânon

do saber científico e assim delimita o que deve ser ensinado e pesquisado – nessa

delimitação está a sua positividade, ao distanciar-se idealmente da doxa e do

conhecimento superado.

Contudo, todo cânon opera com um grau de censura; ou melhor, é somente

através da censura que se converte uma seleção, arbitrária e sempre interessada,

de temas e abordagens, em um cânon. O tema da censura universitária tem sido

inclusive retomado nos últimos anos por Jacques Derrida, ao discutir a crise da

universidade estatal pública.

Podemos ler os seus textos como um alerta para as dificuldades e a

atualidade generalizada do tema, pois Derrida criou o Colégio Internacional de

Filosofia na Universidade de Paris nos anos 80 justamente como se fosse uma

mega- Pró-Reitoria de Extensão filosófica, destinada a acolher e estimular os

temas censurados pelos vários departamentos de Filosofia da Universidade,

reacionários e ortodoxos. Indo mais adiante, há sempre um não possível de ser

formulado – um Denkverbot, para utilizar uma expressão retomada recentemente,

e de um modo igualmente metafórico, por Slavoj Zizek, ao comentar o novo

totalitarismo intelectual que ronda nosso mundo atualmente, correlato dos

totalitarismos, mais dolorosos, econômico e militar. Seria plausível conceber a

prática extensionista como uma intervenção diagonal e contundente nesses

pontos cegos dos saberes disciplinares, nessas terras-de-ninguém entre os

Departamentos e as Faculdades. Esse seria o caráter necessário e positivamente

subversivo da Pró-Reitoria de Extensão.

Ao referir-nos às instâncias acadêmicas como nichos ou pólos de poder, a

questão recai, quase inevitavelmente, sobre o grau de autonomia do campo

científico enquanto tal. Pierre Bourdieu parte do princípio de que esse campo se

constituiu e se reproduz a partir de sua dinâmica interna e formula a hipótese de

uma independência do campo acadêmico em relação às disputas políticas que

Page 86: Caderno de Textos

86

sucedem no interior do Estado. Bourdieu construiu sua teoria da análise do mundo

acadêmico da França, país rico do Primeiro Mundo e com instituições científicas

de mais de dois séculos de existência e que se reproduzem ainda hoje com

grande estabilidade. Na verdade, essa suposta e tão apregoada neutralidade

política do mundo científico tem sido questionada por vários historiadores e

pesquisadores, tanto para o caso europeu como para o norte-americano.

Christopher Simpson e Noam Chomsky mostram, por exemplo, que as escolhas

dos temas de pesquisa e mesmo de etiqueta acadêmica vigentes nos Estados

Unidos e na Europa Ocidental foram construídos segundo parâmetros políticos

formulados para a Guerra Fria. E István Mészáros mostra claramente como a

pesquisa científica, no mundo ocidental, tornou-se dependente do complexo

industrial-militar.

No caso brasileiro, estamos falando de redes construídas majoritariamente

na década de 70, em plena ditadura militar. Apesar do esforço continuado de

muitas lideranças do campo científico em apregoar a existência uma

independência da sua atividade em relação às disputas ideológicas e partidárias,

eu particularmente defendo que sempre existiu uma evidente contaminação entre

as duas áreas, inclusive porque a política universitária, mais encarnada na disputa

pelos cargos de representação na Reitoria, esteve sempre vinculada à disputa

partidária regional e nacional. E o poder no campo científico e acadêmico é assim

constantemente conectado com o poder político da Reitoria e da sociedade como

um todo. Nesse sentido, o modelo bourdieano, que certamente possui um valor

heurístico, por um lado ajuda-nos a fazer uma leitura específica da instituição; por

outro lado, ele pode trazer-nos uma ilusão de autonomia que não é realista.

E aqui a Extensão é uma área particularmente politizada, na medida em

que essa conexão com o mundo extra-muros é sempre uma escolha de relação

com agentes sociais inevitavelmente posicionados no campo político. Para ficar no

exemplo da UnB, poderíamos facilmente traçar as conexões entre os momentos

mais “corajosos” e “rebeldes” dos seus projetos, em contraste com os momentos

mais “alienados” ou simplesmente conformistas, com alinhamentos políticos da

administração da Reitoria com a dinâmica política local e federal. Mais do que

Page 87: Caderno de Textos

87

resistir a essa vinculação, ou performar uma desconexão que não existe, talvez

uma alternativa melhor seja explicitar abertamente essas posições e re-significar a

vinculação com a política externa nos termos específicos das disputas

acadêmicas. Assim, por exemplo, se a abertura para os saberes não-

eurocêntricos passar a ser uma política de Extensão, os acadêmicos envolvidos

nos projetos estarão enviando mensagens e reagindo, de um modo prático e

contundente, a posturas governamentais – estaduais ou federais – que dizem

respeito à construção de uma nação deveras multicultural.

A política da Extensão deve passar a ter também um “p” maiúsculo: ou bem

os poderes constituídos são sérios no respeito à diferença (valor maior na

construção da democracia) e terão na Extensão um interlocutor qualificado e

disposto, ainda que autônomo; ou bem continuam reféns de uma elite brasileira

branca, eurocêntrica e discriminadora – e em tal caso será de novo em nome da

autonomia que os projetos multiculturalistas da Extensão assumirão uma feição

mais aberta, subversiva e coerente com sua missão de engajamento e retorno do

saber acadêmico para a sociedade. Em qualquer dos dois casos, teremos

admitido com toda consciência que somos atores políticos em um mundo que é

sempre perpassado pela política; e teremos exercido também nosso lugar de

posicionamento, seja para influenciar uma política externa com a qual

concordamos, seja para resistir, com uma ação concreta de intervenção, a uma

política de governo que nos parece inadequada para uma nação multicultural

plena. Em ambos os casos, portanto, estaremos rompendo a barreira da ilusão de

uma neutralidade acadêmica que nunca existiu e nem provavelmente algum dia

existirá.

Com um grau maior de controle dado pelo macartismo no caso norte-

americano e um grau mais sutil de independência dado pela etiqueta pós-colonial

francesa, é provável que até nossa concepção de Extensão não esteja isenta das

agendas geopolíticas que mencionamos acima. Essa conexão mais mediada que

absorvemos de uma ideologia de neutralidade centífica que silenciou o discurso

anti-capitalista foi o que nos levou, por exemplo, a não refletir abertamente sobre a

natureza das relações da nossa academia com as fundações estrangeiras de

Page 88: Caderno de Textos

88

financiamento e apoio à pesquisa e à pós-graduação. Acredito que o momento

presente, de repensar a Extensão no contexto agonístico de uma reforma

universitária que dilacera a nossa comunidade, seja também uma boa ocasião

para se iniciar uma discussão franca sobre o campo acadêmico brasileiro no

contexto internacional, com todas as suas articulações e mediações, do Estado-

nação às empresas multinacionais que financiam pesquisas científicas e formação

de especialistas, segundo os seus interesses de acumulação e reprodução do

capital.

Para ir um pouco mais adiante, a Extensão, como a raiz do próprio nome

indica, existe para trazer tensão a um campo domesticado, qual seja, o do saber

acadêmico institucionalizado: identificar a tensão gerada pela censura e a

exclusão de saberes não legitimados; formular projetos, em parcerias com os

grupos e comunidades detentores desses saberes; e assim, ampliar o universo de

reflexão acadêmica, dissolvendo de um modo positivo e enriquecedor a tensão

excludente inicial (gerando, de fato, uma extensão).

Parafraseando Kant em sua célebre luta por publicar A Religião nos Limites

da Razão Pura, que havia sido censurado por uma comissão obscurantista de

colegas seus a mando do monarca, a Extensão deve estar sempre preparada para

provocar, em nome da abertura dos saberes, um “Conflito entre as Faculdades”,

parafraseando o título do famoso ensaio kantiano em que ele comentou e teorizou

sobre o conflito de legitimidades no mundo acadêmico, do qual havia sido vítima.

Este ensaio foi retomado recentemente por Derrida, em mais de uma reflexão

sobre a instituição universitária contemporânea.

Julgo importante enfatizar o lado irrequieto e inovador da Extensão

justamente como um alerta, pois ela corre o risco de exacerbar os malefícios e as

distorções que encontramos hoje na prática do ensino. Por exemplo, se a

tendência agora é privatizar a universidade sub-repticiamente, através de cursos

pagos, a Extensão pode ser o lugar por excelência da prática mercantilista

intransparente e imoral. E se os colegiados estão fechando os cursos ao diálogo

interdisciplinar, de novo a Extensão pode seguir na mesma linha, apenas

Page 89: Caderno de Textos

89

replicando, em um formato reduzido e muitas vezes pago, a prática conservadora

da grade curricular existente. Assim, para além de qualquer caso específico, os

dilemas da Extensão são os mesmos dilemas que deveriam ser colocados

também para a Reforma Universitária atualmente em discussão. E que é um

dilema também internacional, conforme demonstra, com precisão e detalhe,

Robert Kurz. Repassemos. Robert Kurz nos alerta para a possibilidade de uma

insurreição que vem de fora, baseada na exclusão social por nós perpetrada, a

qual significará uma ruptura radical de comunicação e o abandono definitivo da

construção de uma proposta coletiva de convivência entre classes diferentes no

interior da mesma sociedade. Em suma, essa ruptura poderá gerar uma atitude

niilista e violenta por parte dos excluídos. Se tal ocorrer, perderão tanto os

incluídos quanto os excluídos. Praticar Extensão é manter esse canal aberto com

os grupos que mais se ressentem do poder injusto na nossa sociedade e que

identificam a universidade como uma das instituições principais de reprodução da

opressão a que são submetidos. Se a universidade não se abrir para esses

grupos, ajudará a confirmar essa percepção (que eles já nutrem) sobre o seu

papel de inimiga das camadas sociais injustiçadas pelo nosso Estado capitalista

desigual e excludente.

Finalmente, lembremos que, do lado do ensino, a grade curricular

homogeneizadora do MEC não permite quase nenhuma aproximação com os

subalternos excluídos. Do ponto de vista da pesquisa, é a dependência das

instituições financiadoras públicas e das empresas privadas que colocam barreiras

contra uma escuta de temas emergentes e/ou insurgentes. Por esses dois lados,

portanto, a universidade está deixando de escutar as vozes dos excluídos. A

Extensão ainda é o elo que deve ser mantido para um enriquecimento mútuo e

para evitar uma ruptura de comunicação muito mais dramática, a qual na verdade

já começa a instalar-se na sociedade brasileira, entre a pequena elite universitária

e a maioria esmagadora de pessoas sem formação escolar suficiente para que

possam sequer sonhar com a possibilidade de inclusão com dignidade nas redes

sociais e no mercado de trabalho minimamente digno, no contexto de um Estado

periférico, dependente e que desnacionaliza e privatiza seus recursos a um passo

Page 90: Caderno de Textos

90

cada vez mais acelerado – entre eles, os preciosos recursos destinados à

educação superior pública. Essas são as questões que eu gostaria de trazer e

poder dialogar com vocês a partir delas. Muito obrigado!

2. Concepção de Movimento Estudantil e Trabalho de Base

Texto 1: Nós não vamos pagar nada - Unificando diferentes pra fazer a diferença!

José Rodolfo,

“Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e, sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir”. A.Gramsci

O movimento estudantil brasileiro assumiu no século XX um papel de

protagonismo nas lutas sociais. A campanha “O petróleo é nosso” (1947-50) foi o

primeiro grande momento histórico do movimento estudantil brasileiro atuando

como eixo ordenador da União Nacional dos Estudantes. Campanha esta que

assinala pela primeira vez na entidade uma posição anticapitalista.

A fundação da UNE possuía bases de despolitização mesmo que esta

tivesse caráter progressista e que uma leitura de esquerda na entidade tenha sido

amadurecida paulatinamente. A UNE e o conjunto do movimento estudantil

assumiram preponderantemente ao longo de sua historia um caráter de entidade

atrelada à construção de um novo projeto de desenvolvimento para o país, mesmo

que isso não fosse uma constante. De 1950 a 1956 por exemplo, a UNE foi

dirigida pelo grupo de direita “Aliança Libertadora Acadêmica” ligada a UDN

(União Democrática Nacional).

Page 91: Caderno de Textos

91

A história da UNE é repleta de campanhas que ultrapassaram os muros da

Universidade: O petróleo é nosso, campanha contra o aumento dos Bondes

(1956), contra as multinacionais (1957), Contra o Estado Novo, pelo fim da

ditadura, diretas já, fora Collor, fora FHC, etc...Vale ressaltar esse elemento para

um balanço adequado, em termos de cultura política, da maioria do movimento

estudantil hoje.

A rearticulação da UNE na década de 80 após muitas mortes nos porões da

ditadura recolocou a entidade em papel central no cenário político brasileiro.

Nesse momento a UNE começa a contar com novos parceiros para a construção

da luta, surgidos na grande efervescência que foi a década de 80. Os parceiros

maiores e mais centrais, a CUT nascente e o MST, constituíram relação orgânica

na disputa por uma nova hegemonia na sociedade brasileira. Para além dos caras

pintadas e do “fora Collor” muito ocorreu sob a década de 90 na UNE. A

consolidação da hegemonia da UJS através do controle burocrático da entidade e

da instauração da carteira da UNE como obrigatoriedade para meia-entrada foram

os fatos de maior relevância.

Na década de 90 a disputa política da UNE toma novos rumos, o debate

programático em termos apenas das bandeiras a serem defendidas se ampliou

para um debate em torno da forma e do programa do movimento estudantil

brasileiro. A maior parte da esquerda da UNE nesse momento percebe que não se

trata apenas de modificar a direção da UNE para se resolver os problemas do

movimento estudantil (ME), cada vez mais em refluxo e com graus de

despolitização ascendente. A UNE das grandes campanhas havia sido substituída

pela UNE dos grandes congressos, com megashows e pouco debate político.

Os congressos da UNE se converteram nos últimos anos sob domínio da

UJS em espaços despolitizados que apenas legitimam uma hegemonia política

construída sobre as mais diversas estruturas que não a construção autônoma do

ME. A disputa que noutros momentos se dava a quente no debate político na

base, cada vez mais se tornou a disputa por quem tem mais grana para pagar

ônibus. A intervenção da esquerda também foi tomando caráter complicado.

Nas ultimas décadas de ME, além do controle das estruturas, a hegemonia

da UJS se deu por diversos fatores, entre eles pela capacidade de acomodação

do discurso que essa juventude demonstrou diante do avanço neoliberal. Para

exemplificar, não é de hoje que a política cultural da UNE é atrelada a rede globo

de TV, a exemplo de um festival de música realizado em 2002 pela entidade para

a rede filmar uma de suas novelas.

O crescimento da rede privada de ensino superior em ritmo acelerado foi outro

fator que contribuiu em muito para a atual situação do movimento estudantil, só

Page 92: Caderno de Textos

92

para se ter uma idéia o contingente de alunos em 2003 dividia-se entre as

instituições públicas e privadas na razão de 31% para 69%, respectivamente, em

1995 essa razão era de 39% para 61%. A mudança de base operada pela UNE

não refletiu uma ampliação da base militante no movimento estudantil, mas uma

tática da UJS/PC do B no sentido de neutralizar a oposição de esquerda na

entidade. Para tanto, o campo incorreu na flexibilização do seu discurso de forma

cada vez mais acentuada.

A isso, soma-se a reprodução da lógica burocrática de movimento estudantil, da

hierarquia do levantamento de crachá por vários setores da esquerda da entidade

e a extrema fragmentação, fruto do fenômeno de crise das esquerdas após a

queda do muro de Berlim, que atuam na contramão da construção de unidade de

ação nas lutas entre as forças e nos mais diversos setores.

A falta de unidade entre diferentes concepções impossibilitou a produção de novas

sínteses para o momento histórico que vivemos e contribuiu para acomodações da

esquerda em torno de mitos do neoliberalismo. Um deles foi a instauração de um

novo padrão normativo no estado que o tornaria muito mais permeável, argumento

esse incoerente com o seu encrudescimento, mas legitimado no Brasil pelos

efeitos ainda existentes das diversas conquistas democráticas da década de 80.

A emergência da nova cultura política - “o novo (nem) sempre vence”

Parte da esquerda da UNE, a partir do diagnóstico de progressivo afastamento da

entidade do que se espera de uma ferramenta para a construção de uma nova

sociabilidade, identificou na cultura política vigente, reproduzida pelo movimento

estudantil presente na UNE, o problema central para a construção de um

movimento estudantil que opte pela transformação. É importante salientar que

cultura política é mais que a forma da política, que o tom do debate, que a cor da

camisa, que um tambor ou “fumaça amarela”, mas, sobretudo é a construção de

um novo padrão de valores relacionais e ideológicos no intento de ultrapassar a

cultura política atual, geradora de consensos em torno de uma sociabilidade de

opressão e exploração. Acredita-se que esta nova cultura não brota da mente de

um novo dirigente de uma nova esquerda, mas de uma coletividade em exercício

incessante de novas sínteses. Nas palavras do filósofo italiano Antônio Gramsci:

“Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas

originais, significa também e, sobretudo, difundir criticamente verdades já

descobertas, “socializá-las” por assim dizer; e, portanto, transformá-las em base

de ações vitais, em elemento de coordenação e ordem intelectual e moral.”

Page 93: Caderno de Textos

93

Uma nova cultura política no movimento estudantil redireciona a concepção de

movimento estudantil para novas bases. Abaixo o que considero essencial nessa

concepção de movimento que nosso coletivo adota ainda hoje:

- Um movimento estudantil engajado, para além do corporativismo no debate de

educação. Apesar de identificar no debate de educação o elemento de coesão e

legitimação central no movimento estudantil, a construção de uma nova cultura

política implica ampliar as pautas do movimento para além de bandeiras

corporativas. O desenvolvimento de parcerias entre o movimento estudantil e

outros movimentos sociais e a reflexão crítica da totalidade social são essenciais

para essa ampliação das bandeiras que extravase o movimento estudantil para

além dos muros dos muros da universidade.

Essa postura engajada no espaço onde se formam novos trabalhadores e se

forjam novos conhecimentos é essencial para a disputa por uma sociabilidade

onde o ser ultrapasse o ter, a partir da auto-organização de oprimidos e

explorados e para a demarcação de um projeto alternativo de sociedade sem

exploração e opressão.

- Um movimento estudantil combativo, na defesa da liberdade sem pedir licença. A

resposta ao marasmo neoliberal não é, portanto, a adequação do discurso a

despolitização e desmobilização reinantes, ao contrario, é a afirmação de nossas

bandeiras históricas, buscando demonstrar a sua pertinência na vida das pessoas

através das mais diferentes formas.

- Um movimento estudantil autônomo e democrático: são elementos fundamentais

para viabilizar a mais ampla mobilização de massas. Uma pratica política coerente

com o projeto de sociedade que defendemos: auto-organização dos oprimidos e

explorados e emancipação dos mesmos. Diante disto o movimento estudantil não

deve servir de correia de transmissão para correntes, partido, movimentos e

organizações externas a sua realidade, sendo autônomo em relação a partidos,

governos e reitorias e onde quem decide sobre seus rumos são os estudantes que

atuam nesses movimentos.

- Autonomia não implica em rejeitar o acúmulo que os partidos, movimentos e

organizações políticas da esquerda oferecem como instrumentos importantes para

construção da luta dos oprimidos e explorados, e muito menos perseguir ou

impedir a plena participação de militantes organizados no movimento. Ao

contrário, autonomia requer o mais amplo respeito à pluralidade de posições e

opções organizativas, inclusive a opção de não estar organizada, cuidando para

que os próprios fóruns do movimento estudantil definam seu futuro e não grupos e

organizações externas a esse movimento.

Page 94: Caderno de Textos

94

- Democracia. A defesa de um mundo radicalmente democrático passa pela

defesa de um movimento estudantil democrático e principalmente pela existência

de uma prática democrática de movimento estudantil. Uma prática democrática de

movimento estudantil está vinculada também à ousadia de demonstrar às pessoas

que elas podem e devem interferir nos rumos da história de que elas participam,

fomentando o debate nas bases através de espaços de democracia direta como

assembléias aliado a uma preocupação de não subrepresentar ninguém.

- Um ME democrático deve levar em consideração as dificuldades enfrentadas

pelo conjunto dos estudantes para participar do movimento estudantil, tais como

dificuldades econômicas, de tempo (ocasionadas por situação econômica muitas

vezes), dificuldades de expressão em público, etc... Além disso, é preciso construir

estruturas horizontais de gestão, rechaçando hierarquias do tipo presidencialista

em nossas entidades, esforçando-se na construção do método de “Voz, voto e

ação” para todo o estudante que ingresse em entidade de base.

-Um ME antimachista. Um movimento estudantil que combata a opressão sobre as

mulheres deve, para além do discurso, transpor em sua prática um combate

radical a opressão de gênero. Para tal, a relação com o movimento feminista

transversal ao movimento estudantil deve atuar no sentido de transpor as pautas

das mulheres, historicamente oprimidas e super exploradas na ordem capitalista,

para o movimento e instaurar uma lógica geral menos opressiva em relação.

- Um ME anti-racista. A realidade das universidades é profundamente atingida

pela opressão aos negros e negras. Desde a composição até o espaço ocupado

pelos negros na Universidade. Um problema que atinge a sociedade brasileira

como um todo. No ensino fundamental brasileiro, pretos e pardos representam

53,2% do total de alunos e os brancos são 46,4%, enquanto no ensino superior a

proporção de pretos e pardos é de 17,6% e a de brancos é de 81,5% (segundo os

dados do IBGE tabulados pelo INEP de 2001). Esta realidade extremamente

excludente já impõe uma demanda ao movimento estudantil que é a pouca

expansão deste debate em nossas universidades, já que a maioria dos atingidos

por esta opressão está excluída do espaço da Universidade.

A realidade do movimento estudantil é ainda mais brutal, basta

observarmos a quantidade de militantes negros e a pouca relevância que a

questão étnico-racial assume em nossa prática quotidiana. O fenômeno de

“branqueamento” (que consiste na adoção de padrões brancos pela raça negra) é

reforçado por uma prática de movimento que não põe em xeque esta questão e

continua atribuindo ao debate setorial de negros, defensivamente o ônus da

divisão, acusando a militância negra de racismo inverso. “Isso é racismo, defender

cotas, porque separa”, como se já não houvesse uma cisão entre os que são

Page 95: Caderno de Textos

95

oprimidos e os que não são, assim toda reação que enfrente o mito da igualdade

racial é tida como separatista.

A necessidade de ampliação deste debate no movimento estudantil está

relacionada ao modelo de universidade e de sociedade que queremos construir. A

opressão étnica não está apenas relacionada à exploração econômica, o que se

observa pela diferença brutal entre os padrões econômicos e étnicos da

universidade brasileira. O fenômeno racista em nossa sociedade, infectada pelo

mito da igualdade racial, está vinculado também a questão identitaria e as mais

diversas trocas valorativas que legitimam diariamente uma violência simbólica aos

homens e mulheres afro-descendentes.Um dado para análise deste fato é que nas

ultimas gestões do DCE-UFF @s militantes negr@s sempre foram poucos.

- Um ME anti-homofóbico. A opressão a lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros

é também elemento a ser enfrentado pelo movimento estudantil e que corrói

profundamente a construção do movimento como espaço de experiência

democrática. Pense rápido em alguns comentários pejorativos entre as forças

políticas e talvez você veja isso com mais clareza. A relação que o movimento

estudantil estabelece com o movimento LGBT é ainda precária para quem

considera importante o enfrentamento desta questão.

- Um ME ambientalista. É essencial que o movimento estudantil esteja engajado

na construção de um novo padrão de relação com o meio ambiente na nossa

sociedade. O capital tem nos imposto faz décadas seus nefastos padrões de

degradação ambiental e parte da construção de uma nova cultura política é a

afirmação disto e a denúncia deste sistema de morte.

- Um ME plural, horizontal, autônomo e democrático. Em suma, a defesa de uma

nova cultura política abarca uma radicalidade, no sentido de ir a raiz dos

problemas, que concebe os problemas do movimento estudantil para muito além

da direção da UNE, são problemas de cultura política, que orbitam em torno da

concepção de movimento estudantil defendida e praticada pela maior parte das

forças políticas do ME.

“A nova cultura virou fumacinha amarela?!”

Aqueles que regressam que lhes importa vossas tristezas? Que falta lhes faz

Page 96: Caderno de Textos

96

a franja de alguns versos? Basta-lhes um par de muletas

com que renguear pelo resto da vida. Tens medo?

Covarde! Te matarão! Maiakovsky

O governo Lula marca um novo ciclo para a esquerda e para o conjunto dos

movimentos sociais brasileiros. Uma série de processos em aberto é concluída e o

seu fim não foi o melhor fim possível. A ascensão do governo lula representou um

novo impasse na construção efetiva de uma nova cultura política e de uma

sociedade radicalmente diferente.

Os ataques dirigidos às conquistas históricas dos trabalhadores e dos

estudantes no Brasil não tardaram, no primeiro ano a reforma da previdência,

depois a reforma universitária e as diversas políticas que atacaram direitos e

conquistas históricas dos movimentos sociais. O primeiro momento no movimento

estudantil foi de crise na esquerda, já que parte dos campos que defendiam uma

“nova cultura política no movimento” foram engolidos pela força centrífuga do

campo governista, contudo a guinada destes campos para a concepção de

movimento estudantil a que se opunham não foi um processo pacífico e muito

menos um processo consensual nestes campos.

Muitos estudantes e lutadores da esquerda em geral se desiludiram por

sentirem-se órfãos diante da traição de antigos companheiros e outros tantos

travaram e travam até hoje a disputa por um referencial de construção de uma

nova cultura política no movimento estudantil. Os últimos fóruns da UNE foram

marcados pela guinada da maioria dos campos que defendiam uma nova cultura

política no movimento estudantil para o campo atrelado ao governo, triturando a

defesa histórica de autonomia do movimento estudantil, chegando ao limite de

defenderem a votação indireta para presidente da entidade, pauta que sempre

combateram.

O governo Dilma, iniciando o ano de 2011 com um corte de verbas nos

setores sociais, segue o mesmo caminho do governo anterior, aprofundando as

políticas de enquadramento à ordem internacional, principalmente no que tange à

viabilização da realização dos megaeventos no Brasil, gerando desocupações,

ocupações militares de morros e favelas, restrição de direitos e desrespeito aos

direitos humanos.

Mais uma vez os movimentos sociais são colocados em xeque e levados a

se posicionar diante da opressão da classe trabalhadora, uma política de

Page 97: Caderno de Textos

97

autonomia a governos, partidos e reitorias é o que garante a independência

necessária para não assumir o discurso desenvolvimentista pregado pela mídia e

pelo governo, possibilitando a resistência e a luta contra a retirada de direitos.

“Quem não se movimenta não sente as cadeias que o prendem”

A luta não é luto, é nascimento. Tenho pena de quem nunca teve essa prática de convívio.

Viva a nós e a uma humanidade mais humana, mais justa e, por que não, mais poética.

Que todos aqui têm algo em comum e que as diferenças devem ser encaradas com mais sensibilidade.

Trecho do poema escrito no primeiro seminário do Coletivo Nós Não Vamos Pagar Nada Por um movimento estudantil autônomo, plural e combativo

Quem tem consciência para ter coragem E ter a força de saber que existe E No Centro Da Própria Engrenagem Inventa a Contra-Mola Que Resiste Quem Não Vacila Mesmo Derrotado Quem Já Perdido Nunca Desespera E Envolto Em Tempestade Decepado Entre Os Dentes Segura A Primavera

Movimento Estudantil para nós é plural. Expressa-se de vários modos na

nossa vida cotidiana. Entre os estudantes há uma diversidade de grupos e

diferentes prioridades de intervenção e opiniões distintas. O movimento estudantil

não se limita aos Diretórios e Centros Acadêmicos, DCE’s, e muito menos a forças

políticas que atuam dentro do movimento estudantil.Sendo assim, consideramos

parte do movimento estudantil, todo intento de organizar e mobilizar os estudantes

em torno de determinado projeto de universidade ou de sociedade, inclusive as

entidades como CA’s e DA’s. Consideramos que as diversas formas de atuação

que avancem para além da defesa de interesses corporativos e que não quer de

forma alguma prescindir do necessário combate a toda forma de opressão e

exploração. (coletivos de cultura, gênero, etnia...) têm a mesma importância para

operar as transformações sociais que preconizamos.

Page 98: Caderno de Textos

98

Hoje a maioria dos movimentos sociais vive grande impasse e no

movimento estudantil não é diferente. A já flagrante falta de autonomia dos

movimentos sociais frente a partidos e organizações políticas aflorou com maior

intensidade pela polarização fruto da divergência entre os que acreditam que hoje

a tarefa central do movimento é defender o governo e o restante do movimento.

Nas entidades de movimento geral isso ficou bem claro, a ver pelo exemplo de

nossa entidade representativa nacional, a UNE, e a sua política de defesa do

governo, mesmo quando esse se contrapõe aos interesses dos estudantes. Para

esses os fins justificam os meios, acreditam que esse governo é bom e fazem o

que for possível para defendê-lo. Uma alternativa de construção de um movimento

autônomo tem sido feito através da organização dos estudantes em seus cursos.

Os encontros de área com suas formas inovadoras e flexíveis têm atraído milhares

de estudantes para o debate. As executivas de curso se configuraram em espaço

central protagonizando momentos importantes como o boicote ao ENADE e na

resistência contra o REUNI e a expansão universitária que como está apresentada

mercantiliza a educação. As executivas têm defendido um modelo de universidade

diferente, com mais verbas, debate democrático e autonomia didático-científica,

entre outras coisas.

O Movimento de área, que ultimamente tem preenchido em muito o papel

que devia ser da UNE, de conduzir com autonomia as lutas gerais dos estudantes

brasileiros, é imprescindível para a disputa de rumos da sociedade, e não pode

nem deve ter um fim em si mesmo ou no movimento geral servindo de correia de

transmissão de correntes de oposição a UNE. É preciso que construamos saídas

alternativas ao imobilismo e adesismo da UNE sem repetir suas praticas

aparelhistas nas executivas de curso.

Pois bem, para nós o central é a contraposição à forma aparelhista e

autoritária de conduzir as entidades e os movimentos, pois é essa forma

antidemocrática de representação e direção que norteia a maior parte da militância

do movimento estudantil hoje. Para nós também não existem soluções relâmpago.

Não julgamos adequadas rupturas pirracentas com nossas entidades históricas

sem debate mais profundo.

Estas acabam servindo mais pra fragmentação da parte crítica do

movimento estudantil que para o combate aos aparelhismos de partidos e

governos. Acreditamos que é cental unificar a parte crítica do movimento

estudantil, com autonomia e disposição para construir consensos. Experiências

desse porte vêm se desenvolvendo em diversos DCE´s executivas de curso e na

Frente de Oposição de esquerda na UNE, tocando as lutas dentro das

Page 99: Caderno de Textos

99

universidades, nos encontros estudantis, nas praças, ruas e em todo lugar.

Não acreditamos no movimento estudantil que adere aos projetos do

governo acima de tudo e muito menos acreditamos no “Contrismo” de quem é

contra tudo e todos. O movimento que queremos e fazemos é propositivo. Deve

sempre formular novos caminhos e estratégias para construir universidade e país

melhores com a devida flexibilidade para compreender a complexidade dos

processos em que estamos inseridos.

Outras formas organizativas que recentemente tem tomado vulto no

movimento estudantil:

- Coletivos de mulheres Reunindo estudantes mulheres no combate ao machismo

estes coletivos se multiplicaram Brasil a fora, combatendo tanto o machismo

dentro do ME quanto na sociedade como um todo. Em 2011 aconteceu o quarto

encontro de mulheres da UNE, que pontuou debates combativos discutindo a luta

contra o machismo de forma contextualizada e séria;

- Coletivos de negros e negras: Tem sido fundamentais no aprofundamento do debate sobre a questão racial, carece portanto de maior articulação com outros grupos; - Coletivos de diversidade sexual: Ganharam maiores proporções e iniciaram sua ampliação a partir da experiência do ENUDS (Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual) a partir de 2002;. - Coletivos Ecológicos: Em diversas universidades grupos que lutam contra a exploração predatória fruto da mercantilização da natureza e da vida tem atuado; - Coletivos de cultura: Não é algo tão recente mais tem ganhado um vulto abandonado desde o tempo dos CPC´s através da instauração de grupos que discutem e fazem arte em todo o pais, participando dos festivais de arte assim como da Bienal de cultura da UNE, que infelizmente cumpre papel muito inferior ao que foram os CPC´S, a arte engajada é geralmente independente, e nem sempre mantêm relação com as entidades do ME. Cada estudante deve se sentir parte do Movimento Estudantil. É preciso então que encaremos práticas maléficas a um movimento plural que aceite as divergências e as resolva pela discussão democrática. 1) “A boa e velha conversa de forças”- muitas vezes decide o futuro do movimento estudantil, passando por cima do debate democrático.

Page 100: Caderno de Textos

100

2) “Papo de homem pra homem”- O movimento estudantil reproduz o machismo em seus espaços de forma desenfreada. 3) “Eu sou mais eu sigo adiante, romper com tudo e até com o estudante” – divisionismos e sectarismos não nos ajudam nesse momento, precisamos unificar todos os que não se venderam por um cargo no governo e ampliar. 4) “Eu já falei vou repetir”- Acreditamos que o movimento estudantil precisa muito mais de propostas que de palavras de ordem, isso é muito importante para lembrar sempre. Essa pequena contribuição não pretende responder as questões do ME atual mais levanta-las e propor método de superá-las, espero que ajude a construir o ME autônomo e de luta que preconizamos.

Texto 2: Os valores e os desvios na militância

(texto para debate na comissão de organização do III EIV SP)

A gente deve varrer o chão e lavar o rosto todos os dias, pois, se não fizermos isso, a poeira se

acumula.

Mao Tse-Tung

No interior do processo de proletarização do nosso pensamento, da revolução que se processava

em nossos hábitos e nossas mentes, o indivíduo foi fundamental. /.../ Na atitude dos nossos

combatentes, visualizava-se o homem do futuro.

Che Guevara

Valores são traços da conduta, do comportamento, da postura, do hábito. Os valores são uma necessidade no interior de qualquer projeto de humanidade. No limite, são o objetivo maior do próprio projeto de humanidade. Cada projeto define os seus valores. Para os socialistas, a solidariedade é um valor; para os capitalistas, o individualismo é um valor. Por isso, os anti-valores são desvios: desvios do caminho que se deve seguir. Para todo valor há um desvio correlato: disciplina x indisciplina; solidariedade x individualismo; organização x desorganização etc. Entre um valor e seu correlato, há uma articulação dialética, de modo que a construção de um confunde-se com a desconstrução do outro. Quais são os valores que os socialistas devem cultivar, e quais desvios devem corrigir?

Page 101: Caderno de Textos

101

Qual é a origem da conduta? Por que um indivíduo se comporta de uma maneira X e não de uma maneira Y? Ele é “culpado” pelo seu comportamento? O comportamento nasce somente e tão somente da vontade e pronto? Ou, inversamente, o comportamento é fruto de determinações externas, não tendo o indivíduo qualquer responsabilidade sobre ele? A origem do comportamento é um dos maiores mistérios da humanidade. A filosofia discute esse tema desde sua origem. A bem da verdade, esta é uma das grandes polêmicas da filosofia e, mais recentemente, da psicologia. O que se sabe é que os indivíduos são influenciados desde o nascimento e permanentemente pelo ambiente onde vivem, entendido como as condições históricas, sociais, políticas, culturais e psicológicas de sua existência, bem como o ambiente local propriamente dito. O ambiente influencia, condiciona, em alguma medida determina. Nestes termos, a conduta é uma síntese: nela, tanto a vontade como determinações externas estão presentes. Em que medida cada uma opera, em que grau, em que momento... pouco se sabe e muito se especula sobre. O fato é que a conduta não pode ser reduzida nem a determinações externas nem à vontade. Ambas estão presentes, articulando-se dialeticamente. De qualquer forma, é certo que, se não somos culpados pelos desvios em nós, somos responsáveis pela sua correção, mas isso depende de uma motivação interna - Che: “ter essa motivação interna que incita constantemente a observar os próprios defeitos, a buscar os defeitos para tratar de superá-los”. Como despertar no indivíduo essa motivação interna? A sociedade de classes é um obstáculo à superação dos desvios nos indivíduos; inversamente, os desvios nos indivíduos constituem-se como obstáculo à superação da sociedade de classes. Um e outro formam um ciclo vicioso: a sociedade de classes alimenta os desvios e vice-versa. Do mesmo modo, a correção dos desvios nos indivíduos e a superação da sociedade de classes são aspectos diferentes de um mesmo processo. Entre uma e outra não há etapas, mas uma articulação dialética. No entanto, no bojo do processo, é necessário que haja organizações que sejam capazes de intervir no processo para garantir a justeza de seu rumo. Organizações são feitas de militantes, os quais são indivíduos, que também sofrem influência das condições postas nessa sociedade de classes. Por isso, a conduta dos militantes é um dos pontos mais importantes da conspiração revolucionária. A conduta dos militantes é determinante para o sucesso da ação revolucionária. Podemos dizer que os desvios na militância são um dos maiores empecilhos à práxis revolucionária. Por isso, é necessário corrigir os desvios na militância desde já. Como corrigir os desvios na militância desde já, ou seja, no interior da sociedade de classes? Os desvios na militância se corrigem pela práxis, desde que se assuma como tarefa identificá-los e corrigi-los, numa ação permanente e planejada, que envolve organização, formação e lutas. Numa organização, os quadros devem ser antes de tudo educadores, guardiões do exercício da critica e da autocrítica, da tarefa permanente de superação dos desvios. O que faz dele um educador é a sua práxis, a sua militância. Ele educa pelo exemplo, muito mais do que pelo discurso. Nós temos nos portado como educadores? Se não, por que não?

Page 102: Caderno de Textos

102

Os valores e os desvios expressam-se também no discurso, mas como o discurso foi banalizado – qualquer um fala qualquer coisa, sendo que nem sempre realmente se faz o que se fala –, o discurso deixou de ser critério da verdade. A prática é o critério da verdade, o critério para saber quem de fato cultiva valores e quem não os cultiva, quem de fato se esforça em corrigir os desvios e quem os mantém. Qual é a nossa prática? O que nós temos feito? Que desvios há em nossa prática? Nós os percebemos? Se sim, nós temos nos esforçado por corrigi-los? Se não, por que não? O movimento estudantil é um ambiente repleto de adversidades à correção dos desvios: a origem de classe dos estudantes; o fato de o movimento estudantil não ser uma organização, mas nele haver organizações em disputa; o fato de a condição de estudante ser passageira e a alta rotatividade dos militantes num curto período de tempo; etc. Essas adversidades não devem ser vistas como limites, entraves intransponíveis. Devemos superar a idéia de que o movimento estudantil possui vícios que não podem ser superados, como se estes vícios fizessem parte da natureza do movimento. Estas adversidades devem ser encaradas como desafios. Nós encaramos estas adversidades como desafios ou como limites? Se como limites, por quê? Se como desafios, nós temos conseguido organizar uma práxis que dê resposta a estes desafios? QUAIS SÃO OS DESVIOS QUE DEVEMOS CORRIGIR? Perante as tarefas: Voluntarismo – Voluntarista ou espontaneista é aquele companheiro que age por impulso, seja por ingenuidade, por não compreender a importância do planejamento e da organização, seja por má fé, por querer dirigir um processo à força, na marra. Nesse caso, é aquele que nas manifestações age contra a decisão coletiva, que toma uma iniciativa por si só, sem consultar ninguém, e que coloca tudo a perder. O voluntarismo pode ser uma ação pontual, mas pode ser uma postura: nesse caso, o sujeito é voluntarista. Do voluntarista não se pode esperar nada, pois ele faz as coisas que quer e na hora que bem entender. Não se compromete com nada, não gosta de ver nada organizado. E se ele espera isso dos outros, ele resiste à organização e ao planejamento. (Não se deve confundir o voluntarismo com o trabalho voluntário, e que Che pregava com tanto entusiasmo. São coisas bem diferentes. No trabalho voluntário, o “voluntário” é sinônimo de militante. Nele, a organização e o planejamento estão sempre presentes). Indisciplina – A indisciplina é a postura daquele que não segue a linha definida pelo coletivo, que não entende a diferença entre fazer parte de um coletivo e não fazer parte de um coletivo. Nunca um militante vai concordar com absolutamente tudo que é decidido. Todo aquele que faz parte de um coletivo ocasionalmente diverge de orientações, encaminhamentos, decisões do coletivo, mas, se ele tem disciplina, ele as segue, sem deixar de divergir e expor sua divergência nos espaços adequados. Mas aquele que é indisciplinado não consegue ter essa postura. Se ele diverge, ele faz as coisas da sua cabeça ou simplesmente não

Page 103: Caderno de Textos

103

cumpre as tarefas que deveria cumprir. E, quando pode, ele sabota o coletivo. Ao contrário do voluntarista, aquele que é indisciplinado segue uma organização e um planejamento, mas aquelas definidas por ele próprio, e não pelo coletivo. Pessimismo exacerbado e otimismo exacerbado – O pessimismo exacerbado ou o derrotismo é a postura daquele que se sente sempre acha que o que é feito vai dar errado ou que não vai dar em nada. Geralmente é a postura de quem superestima as condições objetivas e subestima a própria capacidade. O otimismo exacerbado é o contrário: é a supersimtação da própria capacidade e a subestimação das condições objetivas. Tanto um como outro são duas formas de subjetivismo, pois surgem da incapacidade de avaliar friamente as condições objetivas e a própria capacidade e de orientar sua ação considerando ambas as variáveis, na justa medida, sem hiperdimensionar uma e subdimensionar a outra. Desleixo – O desleixo é a desorganização, é a postura daquele que faz as coisas de qualquer jeito, sem cuidado, sem atenção, sem se preocupar se a tarefa está sendo bem feita ou não. O desleixado, enxerga as tarefas como meras obrigações, e se preocupa mais em cumprir as obrigações o mais rápido possível do que em garantir que o objetivo da tarefa seja alcançado. Isso quando se preocupa. O desleixo é a falta de cuidado e de atenção em geral. É desleixo não cuidar do espaço físico, da organização das coisas, da limpeza dos espaços, da preservação das coisas. O militante que age assim não percebe a importância da organização das coisas para o trabalho político. A falta de pontualidade também é uma forma de desleixo, que prejudica imensamente o trabalho político. São diversas formas de desleixo, que têm na base a inconsistência no compromisso do militante com a causa no qual está envolvido. Falta de iniciativa – Na luta pelo socialismo, é necessário que o militante tenha iniciativa. Todas as situações impõem essa postura. Iniciativa de fazer alguma coisa, de pensar alguma coisa, mesmo de tomar decisões, o que não se confunde com voluntarismo. Essa é a postura daquele que se desdobra para cumprir com os objetivos, para garantir que a tarefa seja cumprida fora dos meios previstos originalmente. A falta de iniciativa é a falta de protagonismo, é a postura daquele que se contenta em “fazer a sua parte”, mesmo sabendo que, numa situação, se ele só fizer a sua parte, o que estava previso para ele fazer, a tarefa não será cumprida. A falta de iniciativa é por isso também falta de compromisso com a causa. É a postura daquele que se coloca como se fosse um funcionário de uma empresa capitalista, e não como militante. Irresponsabilidade – A irresponsabilidade é a postura daquele que não mede as consequências do que faz edo que fala, e que em função de sua irresponsabilidade coloca os objetivos da organização a perder ou compromete outros companheiros. O irresponsável cria situações que atrasam o trabalho político, que desviam o foco, que retrocedem o acumulo alcançado. É irresponsável aquele que age de maneira irresponsável, mas também aquele que se omite de maneira irresponsável.

Page 104: Caderno de Textos

104

Comodismo – No atual estágio da luta de classes, um dos desvios mais generalizados entre os socialistas é o comodismo ou o burocratismo. Ao contrário do que prega um certo senso comum, o burocrata não é necessariamente aquele que atua na retaguarda, pois a atuação na retaguarda de uma parte da militância é essencial para o sucesso do trabalho político. O burocrata é o acomodado. Ele pode fazer o discurso mais radical, mas se na prática ele estiver acomodado, ele é um burocrata. O comodismo é a postura daquele que não se preocupa em aperfeiçoar suas tarefas e o modo de executá-las. É aquele para quem do modo como está sendo feito está bom. É a postura daquele que não cria, mas se limita a reproduzir operações padrão, que não toma a iniciativa de procurar melhorar seu trabalho, sua militância. Em última instância e em situações em que se exige mais do militante, é a falta de espírito de sacrifício, quando a luta pelo socialismo exige sacrifícios. Inconstância – A inconstância é a característica daquele que ora está presente e se compromete com as tarefas, ora está ausente, e neste momento não dá pra contar com ele pra nada. A inconstância é sintoma de inconsistência ideológica, de falta de compromisso real com a organização, de um meio compromisso. 2. Perante os outros companheiros, as outras organizações e as massas: Individualismo – O individualista é aquele que só faz as coisas se ele pensar, se ele comandar, não raras vezes se ele fizer sozinho. O individualismo não se confunde com a postura de reserva. Há companheiros que são reservados: falam pouco, guardam sua privacidade etc. Estes companheiros não são individualistas. O individualismo é a postura daquele que quer que as coisas sejam “do seu jeito”, e que as tarefas acumulem não para a organização e para a classe, mas para si, para a sua auto-satisfação. Geralmente o individualista se sente oprimido pelo coletivo. Aliás, o invididualismo é exatamente o oposto do espírito de coletividade. Sectarismo – O sectarismo é a postura daquele que não sabe lidar com a divergência e a diferença daqueles que compartilham da mesma causa, mas acreditam que os caminhos para alcançá-la são outros. O sectário é aquele que, face à divergência, elege como inimigo aquele que na verdade é adversário. Existem dois tipos de postura sectária. Na primeira, o sectário é ostensivo: ele agride, denúncia, gasta boa parte de seu tempo com patrulhamento ideológico sobre seu adversário. Na segunda, o sectário, despreza totalmente seu adversário, evitando qualquer tipo de diálogo, mesmo a crítica, e quando fala do adversário, evitar falar o nome. Em ambos os casos, o sectarismo envolve um sentimento de superioridade perante o adversário, sentimento esse que precisa ser expresso como mecanismo de auto-proclamação. Em suma, o sectarismo se manifesta quando não se tem a incapacidade de diferenciar o inimigo do adversário. Moralismo – O moralismo é a postura daquele que reduz o comportamento à vontade, tanto nos outros como em si mesmo. Geralmente aquele que é moralista

Page 105: Caderno de Textos

105

em relação aos outros é também em relação a si. O moralista desconsidera as influências do ambiente, da conjuntura, as situações. No lugar disso, ele sempre procura identificar a culpa e a não culpa: “fulano tem culpa”, “ciclano não tem culpa”. É comum o argumento da culpa servir de pretexto para encobrir a realidade e impedir a auto-crítica e a correção dos próprios desvios: “nós não temos culpa”. O moralista acha que tudo é uma questão de vontade. Por isso, geralmente o moralismo vem acompanhado do voluntarismo. Vanguardismo – A revolução é uma tarefa de milhões. Isso é consenso entre todas as organizações revolucionárias. Só que, quando se entra no mérito da forma de mobilizar estes milhões, há uma grande divergência. Para alguns, o papel dos revolucionários é rebocar as massas. Isso vale no geral, mas também nas frentes de massas, inclusive no movimento estudantil. O vanguardismo é a postura daquele para quem as massas (sejam as massas estudantis, sejam outras) podem ser rebocadas ad infinitum, mesmo fora de uma conjuntura revolucionária. O vanguardista não se preocupa com o nível de consciência das massas. Ele superestima o papel do discurso mobilizador e subestima o papel da educação das massas. Para ele, as condições para a revolução estão dadas, basta aqueles que ocupam o papel da direção agirem da maneira certa que as massas seguirão o caminho. Por isso, o vanguardista desdenha a idéia de acumulo de forças. Por isso, o vanguardista é sempre se isola das massas. Basismo – O basismo ou o assembleismo é a postura daquele para quem tudo tem sempre que passar por assembléia. Isso vem geralmente de uma rejeição a priori à direção política. Ele acredita que a direção tem sempre uma postura dirigista, autoritária, mesmo quando não há essa postura. Ele sempre acha que a direção quer manipular a base, enganar a base. Entretanto, embora basista, ele desdenha a organização da base, a formação política para a base, pois isso soa como manipulação. Ele quer que a base fale e pronto. Para ele, o importante é que os processos sejam conduzidos pela ação espontânea da base. O caráter espontâneo é essencial. Para ele, se a base fala sob influência da direção, a base está sendo manipulada. Este é o basista autêntico, sincero. Mas existe também o falso basista, ou aquele que é basista por conveniência. Este é basista por má-fé. Isso acontece quando, numa conjuntura de assembléias esvaziadas, mas favoráveis às suas posições, ao invés de se engajar na formação de novos militantes e no trabalho de base, o falso basista insiste que tudo tem que passar por assembléias, caso contrário o encaminhamento não será democrático, será burocrático. Seja ele vanguardista, seja ele direitista e contra o movimento, não importa: se a situação de esvaziamento lhe é favorável, ou seja, se a assembléia esvaziada lhe é favorável, ele se torna um basista. Mas esse basismo não é consistente. A evocação à vontade da base não passa de pretexto. O que está em jogo para o falso basista não é que a base imponha a sua vontade, mas, ao contrário, é que suas posições prevaleçam. Por isso, os falsos basistas combatem toda e qualquer proposta que visa a ampliar a participação.

Page 106: Caderno de Textos

106

Autoritarismo – O autoritarismo é a postura daquele que quer definir as linhas políticas, as ações e o comando dos outros companheiros sozinho, e que enfrenta a resistência dos companheiros quando questionam essa conduta. O autoritário é aquele que no discurso diz valorizar a direção coletiva e a democracia interna, mas que na prática desdenha tanto um como outro e passa por cima de ambos. Existem diversas maneiras de organizar a democracia interna, a ampla participação e a direção coletiva numa organização. Elas dependem de esquemas formais, mas também de uma postura. Numa organização, uma instância pode formalmente ter o direito de tomar uma decisão, mas se não existe uma opinião amadurecida sobre o assunto na base, a direção sabe que a decisão não pode ser tomada, mesmo que formalmente possa. Uma direção autoritária não assume essa postura. Omissão do exercício da critica e da auto-crítica – Numa organização, qualquer militante é suscetível de cometer erros e ter desvios de conduta, mesmo os mais experientes e coerentes. Por isso, o exercício da crítica e da auto-crítica é essencial, o que não se confunde com policiamento, muito menos com patrulhamento ideológico. Muitas vezes, por vergonha, sentimento de impotência, falta de convicção ou qualquer outro motivo, deixa-se de criticar um companheiro quando é necessário criticar, dizer que ali existem desvios. O mais comum é ou não criticar ou criticar para ofender, humilhar, desmoralizar. Ambas as posturas são um desvio. Assim como o é a falta da auto-crítica. Como sabemos, é raro um militante ter o hábito de fazer a autocrítica. E, quando vemos um militante fazer auto-crítica, o mais comum é a auto-crítica se resumir ao apontamento de insuficiências: “eu fiz tal coisa, mas foi insuficiente”, “nós fizemos tal tarefa, mas foi insuficiente”. O fato é que a maioria dos companheiros têm um forte bloqueio ao exercício da auto-crítica. Para eles, fazer a auto-crítica é como humilhar a si próprio. Não perceber a importância e o lugar da crítica e da auto-crítica é um desvio dos mais graves, pois a correção de todos os desvios depende exatamente do exercício da crítica e da auto-crítica. Por isso, as organizações revolucionárias devem ter como prioridade educar os militantes ao exercício da crítica e da auto-crítica, instituindo maneiras, momentos e espaços adequados para isso. Por mais dura que seja essa educação. 3. De grupo: Auto-suficiência e auto-proclamação – A auto-suficiência e a auto-proclamação são desvios que vêm sempre acompanhados um do outro e que são típicos de grupos (organizações, movimentos, correntes, partidos etc.). É auto-suficiente aquele grupo que considera desnecessário somar forças com outros grupos, ou mesmo que soma forças, mas apenas quando isso lhe fortalece enquanto grupo. O grupo auto-suficiente tem sempre uma postura e um discurso auto-proclamatórios, ou seja, gosta de falar de si como o melhor, o único, a alternativa. Aparelhamento – O aparelhamento é também um desvio típico de grupos. Ocorre quando um grupo confunde o coletivo com o privado, e faz do espaço coletivo –

Page 107: Caderno de Textos

107

geralmente uma entidade – extensão de si. O aparelhamento não é o esforço em tornar coletivo a linha política do grupo. Este esforço é natural. Todo e qualquer grupo almeja difundir suas idéias e propostas. O problema é quando a adoção de uma linha não se dá num processo de debates e apropriação da linha, mas de maneira artificial e burocrática, sem que haja convencimento e sem que seja garantido o espaço democrático de discussão e decisão. Por isso, o aparelhamento acaba sempre sendo uma versão do burocratismo.

4. De personalidade:

· Deslealdade à classe

· Personalismo

· Oportunismo

· Competição

· Incoerência

· Agressividade

· Impaciência

· Exibicionismo

· Picuinhagem

· Dogmatismo

· Arrogância

Page 108: Caderno de Textos

108

Texto 3: Princípios e elementos organizativos para iniciar um debate

A ideia é debater alguns princípios organizativos que possam fazer

avançar as formas organizativas que escolhermos para a organização e para

qualquer outra frente de atuação. Também é importante, junto aos princípios

organizativos, alguns elementos organizativos que são importantes para

debatermos e chegarmos ao que queremos daqui pra frente pra nossa nova

organização.

Princípios organizativos são aqueles que norteiam uma organização e que,

independente da conjuntura, seguirão presentes e necessários - como um norte a

ser seguido, sem nunca rebaixá-lo. Os elementos de organização são mais

voláteis, são os elementos que compõe uma estrutura a ser tocada pela

organização. Eles são orientados pelos princípios. Fazer um debate de princípios,

sem debater os elementos, ou vice e versa, não traz o debate organizativo por

completo numa perspectiva marxista. Os princípios e elementos que elencarei

aqui, de maneira solta, são dialeticamente relacionados, e não necessariamente

existe uma ordem de prioridade ou de realização entre eles.

***Podemos iniciar o debate em si pelas questões que podem ser

classificadas como mais gerais (princípios), para depois partir para as mais

práticas (elementos). Talvez, o central das questões gerais organizativas, o

princípio basilar de uma organização marxista, é a busca incessante pela direção

coletiva. Karl Marx tem essa ideia como central para a construção de uma

sociedade socialista e comunista, ainda que não use esse conceito. Direção

coletiva é fazer com que, cada vez mais, todos os militantes tomem parte de todas

as discussões possíveis, e, por que não, que toda a sociedade tome parte das

discussões e decisões dos rumos das mesmas. Para que haja direção coletiva é

necessário que, individual e coletivamente, os militantes sigam a práxis marxista.

Práxis é a unidade dialética entre a teoria e a prática. É formação política

simultânea à luta e organização cotidiana com a disposição de um socialista.

Mas só são necessárias práxis e direção coletiva se elas forem

acompanhadas do princípio do projeto anticapitalista. É esse projeto, e suas

Page 109: Caderno de Textos

109

implicações teóricas e práticas, que nos coloca em movimento, que faz com que

nos organizemos. Nunca podemos abrir mão dele na militância, nem deixar de

debatê-lo. Para tanto, faz-se necessário analisar não só o que dizemos defender,

mas também o que fazemos.

Agora vamos passar a elencar algumas outras questões sobre esse debate

de princípios e elementos organizativos que baseiem a nossa discussão para

levantarmos e chegarmos a uma síntese para o que acreditamos que deverão

nortear o nosso debate.

ALGUNS PRINCÍPIOS ORGANIZATIVOS:

Conjuntura, estratégia e tática: uma das coisas que é fundamental de

debater em nossas instâncias. Muitas vezes me parece que tendemos a debater

apenas as ações, de maneira muito rasa, sem tentar analisar a conjuntura na qual

determinado tema está inserido. Essa atitude prejudicial às nossas próprias ações,

por mais que ela faça com que encaminhemos mais rapidamente. Análise de

conjuntura não é apenas a parte chata das teses onde se escreve qualquer coisa

sobre o que acontece no mundo, é o instrumento fundamental para a ação, para a

práxis! Uma organização deve debater sempre a conjuntura, constantemente rever

suas análises, e usá-la para os debates mais específicos. Isso não significa que

antes de cada reunião tenhamos que fazer uma análise de conjuntura, mas

devemos começar a pensar em, pelo menos mensalmente, fazer esse debate.

A análise de conjuntura é também o instrumento teórico que nos possibilita

delimitar nossas estratégias e táticas para as mais diversas ações. Esse debate,

sim, deve ser feito em todas as reuniões. Estratégias são os objetivos gerais que a

organização quer alcançar e táticas são as ações que serão utilizadas para chegar

à estratégia. Táticas são flexíveis e mutáveis, a estratégia não. Elas, porém,

relacionam-se dialeticamente. O que é uma tática para algum tema pode ser

estratégia para outro, e vice-versa.

Por isso, a importância de que nossa organização deve debater sempre as

estratégias e táticas gerais, da organização como um todo. E que a cada nova

ação devemos debater, em reunião, as estratégias e táticas para ela. O

aperfeiçoamento desse debate irá, aos poucos, fazer com que os militantes se

atenham às questões mais centrais dos debates e das caracterizações. Fará com

que nossa organização baseie suas ações (como, por exemplo, uma eleição de

DCE) não só sobre as aparências, mas sobre o que queremos e como o faremos.

Formação política: a formação política constante é dever da organização e

dos militantes. Não há prática sem teoria, e para isso é necessário estudar! A

Page 110: Caderno de Textos

110

organização deve possibilitar espaços de formação política coletiva, que sirva para

ensinar, aprender e nivelar o debate dos militantes. Os militantes também têm o

dever de estudar individualmente, e para isso têm de sacrificar outras atividades

de fora da militância. É importante estudar economia, filosofia, história dos

movimentos de esquerda, teoria da organização política, opressões e também

temas específicos de áreas de atuação, como educação e saúde. É importante ler

Marx, Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Moreno, Mandel (entre muitos outros).

Estudar os formadores de opinião da burguesia também é fundamental, assim

como assistir ou ler jornais. Formação política constante é a melhor maneira de

criar direção coletiva dentro de uma organização, e também é muito profícua para

a militância cotidiana.

Militância, método e moral: Todos nossos militantes devem se debruçar a

fundo sobre esses temas para que não criemos um paradoxo de defender uma

nova sociedade, mas manter o método e moral burgueses. Nossos militantes têm

de sempre tentar fazer análises das situações, não se deixando levar pelas

aparências, pelo estômago e pelo pragmatismo.

Devemos, também, construir a moral marxista na prática, aos poucos.

Temos de subverter conceitos construídos pela moral burguesa, com o que é

moralmente certo e o que não é (o debate sobre o vandalismo é um exemplo

disso). Camaradagem, respeito e prioridade do coletivo em detrimento do

individual são alguns dos elementos nos quais temos que avançar, sempre

sabendo que a sociedade capitalista nos condiciona à moral burguesa, e que

temos que superar a ambas para chegar ao socialismo.

A militância não é um mar de rosas e, infelizmente, temos de abrir mão de

algumas coisas em nossas vidas, mas também não deve ser uma coisa

desprazerosa, mas algo com que façamos na medida do possível da nossa

disponibilidade, entendendo que alguns militantes tem tempo maior a se dedicar à

militância, enquanto outros não. Alguns deixam coisas de lado e colocam a

militância como prioridade, bem como outros não. Nesse sentido, a militância deve

ser algo prazerosa dentro de nossas vidas, para a luta contra todas as

desigualdades e opressões vivenciadas cotidianamente com um horizonte para a

superação do sistema capitalista.

Avaliação das intervenções: Outro elemento importante é o balanço, que

muitas vezes é confundido com a crítica. O balanço é algo coletivo, de toda a

organização, não sobre um militante, mas sobre uma linha política ou ação que

passou ou que mudou de forma. Nele se apresenta o que tinha sido pensado para

o tema, como as ações foram desenvolvidas e como foram os resultados. O

balanço pode ser tanto positivo quanto negativo, e deve apresentar, ao seu final, a

síntese do debate, as perspectivas para seguir acertando ou parar de errar.

Page 111: Caderno de Textos

111

ALGUNS ELEMENTOS ORGANIZATIVOS:

Comunicação: quem não comunica se trumbica, até mesmo na militância.

Para que haja direção coletiva é preciso que todos os militantes saibam o que se

passa na organização, nas frentes de atuação e no movimento em geral. Para isso

é fundamental que todo militante que for a alguma atividade pela organização

passe um relato detalhado o quanto antes para a lista de e-mails da organização.

E é dever dos militantes ler os e-mails/informativos e se informarem sobre o tema.

Além de isso possibilitar um debate mais profundo, também faz as reuniões

ficarem mais curtas, trocando o tempo de informes (já mandados na lista) por

debate das pautas. As relatorias das reuniões também entram nesse bojo, pois

servem, além de memória do debatido, para que militantes que não puderem

comparecer se inteirem das discussões e posições do coletivo.

Organização das reuniões: essa discussão é fundamental. Um grande

problema é quanto aos dias e horários, pois nem todos tem uma grande

flexibilidade. Outro problema são os atrasos. A ausência em reuniões e atividades

é outro ponto a ser debatido.

A convocatória da reunião deve ser feita com antecedência, pois nem todos

os militantes tem a mesma possibilidade de acesso à internet. Nela devem estar

todas as pautas. É tarefa de cada militante pensar nas linhas de cada uma das

pautas antes de sair de casa, para que o debate em reunião seja mais qualitativo.

A reunião deve ser organizada a ponto de que possamos debater sem perder

muito tempo. Isso implica na necessidade de repensarmos nossa prática de

inscrições. Sem a definição prévia de uma mesa e de uma relatoria é muito difícil

organizar uma reunião. Debatemos informes, quando esses deveriam ser postos

como pontos de pautas se fossem ser debatidos. Muitas vezes tem a chance de

falar aquele que fala mais alto ou que se impõe, algo bastante antidemocrático.

Outra prática interessante que podemos tentar é a divisão prévia de qual

militante abrirá cada um dos pontos da reunião, priorizando uma divisão que ajude

também na formação política dos militantes mais novos.

Divisão de tarefas: Lenin, em sua Carta a um Camarada, diz que é

necessário dar tarefas "a todos e a cada um". Isso significa que as tarefas, para

além do importante resultado de seu cumprimento, tem uma importância interna à

organização. Dar tarefa a cada um é dividir tarefas entre os militantes,

possibilitando que a organização avance coletivamente. Dar tarefa a todos é fazer

com que todos os militantes façam parte, de verdade, da organização. Só com

militantes fazendo parte do cotidiano da organização, por mais que com as mais

diversas tarefas, é que poderemos avançar rumo a uma organização com direção

coletiva. Dividir tarefas é também pensar nas estratégias e táticas da organização.

Page 112: Caderno de Textos

112

Texto 4: MOVIMENTO ESTUDANTIL: PROCESSO DE CONSCIÊNCIA & TRABALHO DE BASE- “ABRINDO CAMINHOS DE LUTA”

Por Vinícius Oliveira “Doug” *

Coordenador Geral ENECOS-2009 Barricadas abrem caminhos

Coletivo Socialismo e Liberdade – PSOL

“A questão de atribuir um pensamento humano, uma verdade objetiva não é uma questão

teórica, mas sim uma questão prática. É na práxis que o homem precisa provar a verdade”

Karl Marx Introdução.

Todo movimento social necessita criar suas trincheiras fortes para que

possa resistir e agir . E o primeiro passo na construção dessa barricada é definir

um objetivo, concepção e organização.

O movimento estudantil localiza-se dentro do movimento de educação mas

não para limitar-se à ele, mas para a partir dele conseguir pintar de povo a

universidade, a educação, o Brasil e o mundo.

Nesse contexto compreendemos a concepção do movimento estudantil

classista como movimento social, que alia-se à classe trabalhadora e suas

organizações, mas respeita a autonomia de si e de outras organizações. Para que

o ME não vire correia de transmissão de pautas que não possam ter consonância.

Todo movimento só tem razão social de ser quando consegue entender as

contradições sociais com que trabalha e qual a base social que o sustenta.

Por isso a discussão de trabalho de base é importantíssima no movimento

estudantil, mas não basta apenas repetir as cartilhas traduzidas de outros países,

ou do MST (sem dúvida o movimento social mais importante da América latina) e

de outras organizações, temos que formular a discussão de trabalho de base

aproveitando as diversas experiências, mas com um olhar firme para nossos

Page 113: Caderno de Textos

113

objetivos e nossa concepção e realidade.

Encarando de tal forma, o debate sobre o projeto de educação do nosso

país, da nossa universidade, polarizado hoje dentro da reestruturação da

educação brasileira, e particularmente da universitária, através da REFORMA

UNIVERSITÁRIA, é vital para amadurecer qualquer espécie de discussão e

atuação do movimento estudantil brasileiro, se defendemos uma educação voltada

para as elites ou voltada para o povo e a posição da reforma atualmente reflete

isso.

Assim, pretende-se formular CONTRIBUIÇÕES, no sentido dialético, para a

discussão do trabalho de base no movimento estudantil para potencializar nossas

organizações contra o capital e abrir caminhos de Luta.

O que seria trabalho de base?

Trabalho de base consiste em diferentes métodos de trabalhar uma causa

dentro de uma coletividade específica (no caso estudantes), casado com uma

leitura da realidade material e subjetiva, para formular sujeitos ativos da

transformação social.

A importância do trabalho de base?

“É muito mais difícil e muito mais precioso mostrar-se revolucionário quando a

situação não permite ainda a luta direta, declarada, verdadeiramente macia,

verdadeiramente revolucionária, saber defender os interesses da revolução (pela

propaganda, pela agitação, pela organização) em instituições não revolucionárias, ou mesmo

claramente reacionárias, num ambiente não revolucionário, entre massas incapazes de

compreender de imediato a necessidade de um método de ação revolucionária...”

Vladimir Lênin

Marx já dizia que não são as idéias que moldam o mundo, mas o mundo

na relação dialética com as idéias que determinam a realidade social. Então não

basta que apresentemos o programa mais revolucionário ou mais à esquerda. O

programa tem que apresentar consonância material e subjetiva com a atuação

práxys do movimento.

Nesse sentido a leitura da realidade (ou conjuntura) mais acertada

Page 114: Caderno de Textos

114

localmente, nacionalmente e internacionalmente reflete na construção do

movimento, casado com sua concepção e organização que interfere no seu modo

de ser e trabalho de base.

Na dinâmica da luta de classes a história não se move em forma linear,

nem de forma evolutiva. A dialética da realidade não é estática, é movimento. Não

podemos acreditar que porque a organização vai bem, ela sempre irá bem, está

“evoluindo”. Nos momentos de Ascenso e descenso da organização a avaliação

deve permanecer.

Prestemos atenção em 2 aspectos:

Fatores externos: que influi a conjuntura sua de outras organizações,

inimigos de classe, descenso das lutas sociais.

Fatores internos: como pode haver um quadro grande de renovação de

militância, erro no ritmo da luta, ou até mesmo o “tarefismo”,a falta de formação

política e disciplina consciente.

Quem faz o trabalho de base?

Quem deve executar o trabalho de base é a ORGANIZAÇÃO. Por mais que

algumas vezes a organização apresente-se com um ou poucos indivíduos, é para

o chamado à coletividade que devemos apresentar nossa pauta.

A falta da organicidade à luta podem levar a erros históricos como a luta

individual ou ao ativismo. E muitas vezes leva a atuação a um ciclo vicioso da

eterna partida do ponto 0. Porque as pessoas não conseguem visualizar que cada

luta é tocada pela organização. E que além da disputa pelo ganho material da

pauta é a organização dos mesmos que garante qualquer conquista.

As formas de organização mais abertas, democráticas e formuladoras que

estimulam o protagonismo social, a discussão dos pontos do problema ligados a

questão mais ampla e entendem a importância dos VALORES SOCIALISTAS

como: companheirismo, respeito ,solidariedade, alegria e ousadia na luta

cotidiana, ecoam mais enfaticamente nas escolhas.

A ideologia e os perfis dos estudantes

Page 115: Caderno de Textos

115

Uma discussão vital no campo da esquerda é a discussão da ideologia e do

processo de consciência. A classe trabalhadora e os estudantes são doutrinados

pela ideologia a seguir a vida material, os anseios e os sonhos burgueses. A

família, o trabalho, a religião, a educação formal, a mídia e o Estado tentam

garantir a sobrevivência da ordem burguesa e também a sua legitimação, tanto no

campo material quanto na subjetividade.

De tal forma, que não podemos compreender o movimento estudantil

apenas analisando-o por dentro, tanto seus acertos quanto os seus erros, mas

analisar a atuação do mesmo dentro da conjuntura social. Vivemos uma

conjuntura no Brasil de descenso das lutas sociais, cooptação das maiores

organizações da classe trabalhadora (PT, UNE e CUT), sectarismo dentro da

própria esquerda e um consenso conservador e individualista que nada se

transforma pela coletividade. Vivemos em uma conjuntura de resistência e

reorganização.

Então resta-nos entender o nosso campo de ação, ou seja nossa base

social: os estudantes. Sabemos que os estudantes são policlassistas o que

dificulta nossa intervenção de classe. Mas mesmo assim é dever nosso fazer a

disputa da consciência de classe.

Dessa forma existem diversos interesses IMEDIATOS da estudantada na

sua relação com a universidade o que pode refletir tanto na sua relação com a

mesma, quanto com o movimento estudantil. Essa relação se dá também pela

condições materiais que o individuo está submetido. Os interesses IMEDIATOS

podem ser:

Acadêmicos - em uma formação acadêmica, formar-se intelectual (podendo

cair na falsa separação trabalho braçal x intelectual)

Interesses puramente festivos- curtir a universidade, aproveitar os

momentos lúdicos, conhecer novas pessoas e visões.

Carreiristas- por questão de emprego e sobrevivência. Estar na

Page 116: Caderno de Textos

116

universidade para crescer no trabalho ou fazer concurso. Ou para garantir a

famosa independência financeira.

Poder -assumir status na sociedade burguesa, afirmação pessoal ou

familiar.

Transformação- pode ser individual,familiar, coorporativa e até de classe.

As vezes pela ótica trabalhador ético e honesto que faz o “bem” pelo seu “bom”

trabalho.

Não se trata de demonizar ou vangloriar um perfil acima do outro. Nem se

trata de encaixar as pessoas dentro desses perfis. Esses tipos de perfis podem

tanto se adentrar nas organizações estudantis de luta, quanto nas pelegas. Podem

existir diversos interesses ou perfis não mencionados.

Esse tipo de discussão nos leva a pensar em como entendendo os

interesses imediatos dos estudantes possamos fazem uma disputa de

consciência, e pautar nossa atuação. É mais um recurso metodológico do que

uma linha política.

Exemplo: Organizando uma semana acadêmica, envolvermos a

companheirada com interesses imediatos acadêmicos. Com uma cultural que

debata valores, podemos atingir os mais festivos. Debatendo formação

profissional, os carreiristas e que anseiam por poder. Fazendo uma jornada, ou

mistica, envolvermos os que querem transformar, em um convite à luta

organizada.

Processo de “Engajamento” no ME. (ou quem sabe de consciência)

A- Contradição x Indignação.

Não é o movimento em si que desperta, mas a contradição em movimento

que pode indignar os indivíduos. Precisamos entender que os estudantes muitas

vezes sabem que as contradições existem, mas sempre de forma “mediada”.

Page 117: Caderno de Textos

117

Trabalhar com o ver, sentir, cheirar, tatear,ouvir e para evitar o desânimo trabalhar

a contradição apontando a organização.

Entender que o capital tem “contradições” em todas as suas etapas e

dentro da universidade como fora dela. Existem diferenciações dentro de um curso

para outro, da relação entre professor e estudante, dos apadrinhados pelos que

topam enfrentamento, entre os próprios funcionários, entre a formação colocada e

o emprego imposto pelo mercado, entre a propaganda falseada e a realidade.

Exemplo: Na Universidade Federal de Sergipe, à 3 anos no primeiro dia de

aula levamos os estudantes calouros de comunicação a conhecer os espaços da

universidade e fazemos uma breve explicação sobre cada espaço e sua

importância. Mas particularmente sempre levamos os calouros a conhecer a ante-

sala do gabinete do reitor (sem aviso prévio) e pedimos que tirem uma “foto

mental”(sem mediações) desse espaço para comparar com o nosso

departamento. A contradição é alarmante e incontestável, porque falta estrutura

para um departamento enquanto o gabinete da reitoria ostenta algo que só existe

naquele espaço?

B-Indignação x participação

A partir do momento que trabalha-se a contradição e desperta a

indignação,muitas perguntas surgem. É preciso que fique claro que esse processo

não acontece com todos os indivíduos e também não ao mesmo tempo.

A indignação não é um passo completo na consciência, ela também pode

se perder, por ser um sentimento ela passa. O indignado ainda pode-se mover

pelos interesses individuais e achar que a resolução dos seus problemas por

meios que apenas o favoreçam. Então dizer que o mundo vai mal, a universidade

tá ruim pode trazer a linha de raciocínio:“ Então vou fazer o meu e foda-se o

resto”. Ou seja também, pode cair na indignação INDIVIDUALISTA.

Devemos enfrentar a ideologia, que trata-se do falseamento da realidade e

a universalização das idéias da classe dominante. Na hora da indignação

Page 118: Caderno de Textos

118

devemos trabalhar a FORMAÇÃO. Através de debates que partam da realidade

IMEDIATA. E combater os “mitos” ou as “verdades” que são minimamente

perigosas para o avanço do trabalho de base no movimento estudantil.

Combater qualquer saída individualista, mostrando a importância da

coletividade e da organização até mesmo para a conquista das pautas minimas. E

que nós devemos ser os construtores da nossa própria história. Jogando qual o

compromisso que nós devemos ter com a sociedade.

Exemplo: 1-Na mesma calourada (ou semana do calouro) no segundo dia

realizamos um espaço sobre “Universidade e Formação”, convidando um

estudante e um professor(ou convidado), para quebrar a idéia do professor como

latifundiário do conhecimento e juntos teorizarmos sobre o que vemos e

vivenciamos. Mostrar que conhecimento e educação no sentido epistemológico

paulo freiriano são as idéias da classe dominante e que eles não vão sair da

universidades “formados”, mas que estão passando por um processo de

formação, e que o tempo todo vão ter que escolher se produzem conhecimento

para os dominantes ou para povo.

Exemplo 2- Na mobilização por qualidade, realizar uma assembléia, discutir

a pauta e propor comissões abertas além da organização, para que outras

pessoas se inseriam na pauta e a partir dela na organização. Mostrando que

temos que propor e agir.

C-Participação x ORGANICIDADE

Acreditar na coletividade é um passo. Exercitar a coletividade é um desafio!

Não somos formados para viver a coletividade. É difícil pensarmos

enquanto organização e nos sentirmos parte dela. Adentramos em uma

organização e sempre a testamos para saber se ela serve ou não, se aquele era

discurso tem consonância prática.

Mostrar abertamente a organização como algo aberto e móvel . Que ela é

instrumento da luta.

Exemplo: As pessoas quando entram nas organizações e pegam as tarefas

Page 119: Caderno de Textos

119

que mais se identificam, não se desafiam em expandir seus horizontes. Não se

desafia a pensar a organização.

Organicidade no planejamento e divisão equitativa das tarefas.

A organicidade real do movimento é sentida quando existe uma formação

coletiva e quando as tarefas também são encaradas dessa forma. Organizações

que legitimam a concentração de tarefas e o personalismo não tendem a durar

muito. Isso não desqualifica a formação de referências.

É preciso sensibilidade no cotidiano da organização. Prestar atenção na

companheirada mais nova, envolver nas discussões, leituras e tarefas. Cobrar das

pessoas mais experientes atenção, cuidado e compromisso. Trazer pautas para

organização que contemplem os diferentes perfis de militantes, trabalhando

discussões acadêmicas,culturais, mobilizadoras.

Importante também nesse aspecto sair um pouco da universidade. Mostrar

que existem outras organizações, movimentos sociais e que nossa tarefa é estar

aliada a esse setores.

D- POSICIONAMENTO DE CLASSE

A partir do estudante vivendo a contradição, organizando-se e colocando-se

em movimento. Os caminhos para a construção e posicionamento de classe

entrelaçam dialeticamente com a nossa forma de fazer movimento. Nossas

referências de movimentação, leituras, até uso de roupas abrem a mente da

galera para que possamos dialogar sobre qual a grande questão da classe

trabalhadora: a Luta de classes.

Nesse momento é adequado unirmos as pautas estudantis as pautas da

classe trabalhadora, sem menosprezar a luta estudantil. A importância de

estarmos juntos aos movimentos sociais de maneira critica (para também não

virarmos correia de transmissão!). Enfim, de fazermos luta para quebrar os muros

da universidade.

Não trata-se de dissociar a luta de classes da luta do movimento estudantil.

Mas sim de saber como vamos relacionar a luta do movimento estudantil com a

Page 120: Caderno de Textos

120

luta da classe trabalhadora.

* Formação Política

Sempre que entramos no movimento estudantil, temos a impressão que a

luta começa quando entramos. A formação política é fator fundamental no trabalho

de base. Compreender o que fazemos, porque fazemos e que a nossa luta é muito

anterior a nossa existência e que continuará além dela.

É fundamental termos um referencial teórico nos nossos cursos dentro do

marxismo. E compreender a luta de classes e sua história de lutas no Brasil e no

mundo. Entender o capitalismo e suas bases econômicas-políticas. Compreender

qual o projeto de educação defendido pelo capital na atual conjuntura e dentro de

todo o contexto qual o papel do movimento estudantil.

*Quantitativo x Qualitativo.

Um dos erros que os diferentes movimentos fazem é avaliar o trabalho de

base pelo critério apenas quantitativo. E também não podemos avaliar pelo critério

apenas qualitativo (companheirada bem politizada!).

O sentido do trabalho de base é seguir a dialética de quantitativo e

qualitativo. Não adianta formar um grupo qualificado que não consegue organizar

a estudantada para mobilizações, e não adianta um grupo massivo que não tem o

debate tático e estratégico claro.

7- PARA OS QUE VIRÃO

“A experiência demonstra que é fundamental romper com esse esquema (da

Universidade Pública). E também que não se deve subestimar as dificuldades para fazê-lo.

Nos países com governos débeis, os estudantes com suas reivindicações podem representar

uma ameaça à estabilidade política. Portanto, os governos devem atuar com muita cautela

ao introduzir as reformas...”

(Extraído do documento oficial do Banco Mundial chamado “Las lecciones

derivadas de la experiencia, pagina 29

Page 121: Caderno de Textos

121

Quem trata de fragmentar o ser é o capital. Não podemos cair na dicotomia

entre sentir e pensar. A sensibilidade militante deve nortear nossa luta cotidiana

colado com o nosso sonho da revolução socialista.

A criatividade e a ousadia devem também fazer parte da nossa atuação. É

na ousadia, no fazer diferente que as pessoas sentem o tesão pela luta e pela

organização, devemos ser o estimulante dos militantes criativos e ousados.

Sempre ouvimos que o Movimento estudantil é passageiro, mas o

movimento deve ser permanente quem é passageiro é o militante.

É papel da organização e dos militantes INSPIRAR. Trazer a cabeça e o

coração para pensar a luta. Estimular valores de lutadores que sabem que não

carregam as verdades do mundo, mas que sabem e sentem o compromisso que

nossa história não nos deixa esquecer.

Então o nosso trabalho de base deve ser voltado para os que virão. Para os

novos. Para o despertar de novos lutadores e lutadoras. Para que em meio a essa

sociedade que queima de ódio, egoísmo e desigualdades façamos chuvas de

contestação.

Chuvas de Contestação por Vinícius Oliveira

A seca de esperanças

faz com que criemos chuvas de contestação Correr atrás do objetivo da transformação cair na realidade e dar de cara no chão

morrer enquanto individuo e renascer enquanto organização organizar nossa teoria organizar nossa ação

sensibilizar os indivíduos para a transformação formar a militância com a cabeça e o coração

lutar, mesmo de mãos atadas, pois, o compromisso é com a nossa classe

criatividade e ousadia devem ser a nossa agitação inspirar a nossa juventude

inspirar o sujeito na atuação criando barricadas de idéias

abrindo caminhos para a revolução

Page 122: Caderno de Textos

122

3. Reorganização do Movimento Estudantil – Oposição de Esquerda da UNE e Federações/Executivas de Curso

Texto 1: Lutar quando é fácil Ceder! – A reorganização do ME

*Texto sobre a Reorganização do Movimento Estudantil. Contribuição do Coletivo Rompendo Amarras, escrita pela militante Clarissa Viana, ex-Diretora de Mulheres da UPE e integrante da CN do Rompendo Amarras

Quando nos propomos a fazer o debate sobre em que estágio está a

reorganização do movimento estudantil, precisamos partir da análise de alguns

elementos conjunturais. Boa parte das organizações e coletivos de esquerda tem

diferenças de avaliação sobre como se dá e como se dará o processo de

reorganização. Entre essas diferenças está a própria divergência quanto à

profundidade do processo e as conseqüências disso na reformulação de um

projeto de transformação social, nos instrumentos da classe, e nos demais

movimentos sociais, incluindo o estudantil.

Essas diferenças justificam em parte recentes acontecimentos que

dificultam inclusive a unidade na ação em oposição ao governo federal. Podemos

usar como exemplo a divisão do Conclat em 2010 (que sabemos, já vinha de

outros processos de fragmentação), outro bom exemplo foram as candidaturas

separadas do PSOL e PSTU para presidência da república no mesmo ano ou

mesmo a divisão nas instrumentos de luta no movimento estudantil. Essas

situações não se justificam somente pela diferente visão do processo de

reorganização. A dinâmica de divisão estabelecida diante desses fatos

potencializou, e muito, a priorização absoluta da auto-construção. Mesmo que as

divisões tenham origem na lógica da sobrevivência das organizações de

esquerda, de sua preservação ou auto-proclamação, está colocado um desafio

ainda maior para os socialistas no Brasil: a retomada da bandeira da unidade

enquanto necessidade imprescindível da classe trabalhadora e da juventude e a

Page 123: Caderno de Textos

123

perspectiva de que a reorganização é muito maior do que as próprias

organizações existentes.

Rompendo Amarras no CONUNE de 2011

Para refrescar a memória

O movimento estudantil também foi influenciado pelo processo de

fragmentação. Prova disso, é que depois do FLCRU (Frente de Luta Contra a

Reforma Universitária) em 2006, somente na greve nas federais em 2012 a partir

do CNGE (Comando Nacional de Greve Estudantil) foi vista uma ação em unidade

em âmbito nacional dos setores de oposição ao governo federal.

A experiência do FLCRU, mesmo que um pouco atrasada diante da reforma

que vinha sendo aplicada aos poucos pelo governo federal, foi um marco

importante, já que fazia um recorte entorno de um eixo político, possibilitando a

unidade e polarizando de maneira efetiva com o governismo. O que unificava os

setores da esquerda combativa era evidente: a oposição à reforma universitária.

Antes disso, parte do movimento – amplamente resumida o PSTU –

enxergou a necessidade de ruptura com a UNE. Foi criada a Conlute, em

2004/2005. Parte da vanguarda deslocou assim grande parte dos debates entorno

do instrumento de luta do ME. Viu-se assim, aquilo que unificava – a luta contra a

Reforma Universitária – se transformar em uma luta entre a própria esquerda

sobre se seria correto ou não romper com a UNE e fundar uma nova entidade,

mesmo que esses diversos setores tivessem acordo na bandeira de luta e que

milhares de estudantes sequer tivessem contato com esse debate. A própria

FLCRU, que buscava retomar espaço de unidade, se esgarçou por conta deste

debate. Naquela época, as companheiras e os companheiros que decidiram pela

construção da Conlute já anunciavam “um novo movimento estudantil” como

argumento para tal política.

Em um texto em 29/06/2005, o PSTU afirmava: “Dezenas de Centros

Page 124: Caderno de Textos

124

Acadêmicos, DCEs e Executivas de Cursos já romperam com a UNE e a

tendência é que esse processo se aprofunde a partir do congresso que será

realizado em Goiânia (GO) a partir de 29 de junho. Trata-se de um movimento

histórico e objetivo diante do caminho sem volta tomado pela entidade”.

“Permanecer nos marcos da UNE é semear ilusões e gastar energia numa

luta estéril, inglória, uma vez que os estudantes, principalmente das universidades

públicas, não a tem mais como referência. Pelo contrário, a UNE e o PCdoB foram

literalmente expulsos dos DCEs das federais”.

Em outro texto, de 17/05/2005, o PSTU dizia:

“A ruptura com a UNE é um processo objetivo que está apenas se iniciando

e tende a aumentar após o Conune”.

Alguns anos se passaram. A reforma, por conta do enorme peso do

governo, foi sendo aprovada. Junto com isso, as políticas do governo Lula

provocaram um aumento brutal no ensino privado. A base governista correu para

organizar estes setores. E as rupturas com a UNE não ocorreram de maneira

massiva, como visualizava o PSTU.

A pouca resistência que havia não foi capaz de manter vivos os espaços de

unidade. Apesar de todo o esforço, de todas as lutas travadas, ocupações,

marchas, atos, a esquerda combativa foi derrotada. E com o passar dos anos a

própria Conlute deixou de existir, sem nem sequer se despedir. A própria Frente

de Oposição de Esquerda da UNE também enfrentou muitas dificuldades.

Em 2007, com uma nova onda de ocupações de reitorias pelo país, como

na USP e em mais de dez federais, que se chocavam contra medidas de

precarização do ensino, principalmente o Reuni. Novamente, apesar da unidade

na ação em muitas universidades, as companheiras e os companheiros do PSTU

voltaram a colocar a ruptura da UNE como um passo determinante. E novamente

a esquerda combativa de oposição ao governo petista, se viu debatendo o

instrumento, a superestrutura – um debate legítimo, mas que na prática cotidiana

de atuação colocou enormes dificuldades à unidade do movimento. Nesse

momento, o ativismo do PSTU fez um chamado para a construção do Congresso

Nacional dos Estudantes, em mais um texto, de 4/08/2009 “nós não podemos ficar

parados! Apesar da traição da UNE, o movimento estudantil brasileiro segue

lutando e deve dar um passo à frente. É preciso construir uma nova entidade

estudantil nacional que possa recuperar a confiança de cada estudante na luta

unificada do movimento estudantil.”

O CNE seguiu ao ritmo da música da fragmentação e terminou com parte

da esquerda fundando uma nova entidade, a ANEL, e parte dela reivindicando a

composição da Oposição de Esquerda da UNE (este tema em especial será

Page 125: Caderno de Textos

125

melhor debatido nos itens subseqüentes do texto).

Sem compreender o governo, não compreendemos a reorganização

Há, portanto, uma primeira diferença na leitura sobre o processo de

reorganização da esquerda. A leitura de que o governo Lula vivia uma crise em

seu início que provocaria muitas rupturas não conseguiu se comprovar na

realidade. Houve sim um setor da vanguarda que se deslocou do petismo, mas

nem a UNE nem o Governo se enfraqueceram de lá pra cá. Se depois

do boom das universidades privadas os setores governistas ocuparam espaço

político nesta base social, depois da implementação do Reuni esses mesmos

setores voltaram a disputar a sério o espaço nas universidades federais. As teses

de enfraquecimento objetivo das forças governistas, nesses dois momentos

históricos, devem ser melhor pensadas. É verdade que em momentos de maior

unidade dos setores combativos, os DCEs e CAs voltam para as mãos da

esquerda. Mas isso é muito diferente de afirmar que o setor governista agoniza,

inclusive pelo enorme peso que as privadas têm no quadro atual. Os índices

recordes de aprovação dos governos petistas – em aliança com a direita

tradicional – apontam para isso.

É de conhecimento geral do ativismo do ME brasileiro como um todo que a

UJS (União da Juventude Socialista) hoje dirige a maioria dos estudantes

organizados do país. Com o processo de ampliação das vagas nas universidades

privadas através das políticas de governo que beneficiaram esse setor, a

correlação de forças no movimento estudantil mudou bastante. É importante

lembrar que hoje cerca de 74% dos estudantes do país estão nas universidades

privadas. Além disso, o governo Lula dobrou o número de vagas nas

universidades federais, de aproximadamente 100 para 200 mil. Com isso, é

inegável que se abriu um considerável espaço para os militantes da base ou da

base aliada do governo no próprio ME de públicas – este que sempre foi um

terreno difícil para a majoritária da UNE. É impossível pensar um processo a sério

de disputa de hegemonia da sociedade, da qual o movimento estudantil faça

parte, que não inclua um planejamento de disputa destes novos estudantes.

Na avaliação do Rompendo Amarras a perspectiva ainda é, e continuará

sendo, de defesa intransigente da unidade entre os setores combativos do

Movimento Estudantil, em que pesem todas as dificuldades, diferenças na leitura

da reorganização, nos métodos de construção do movimento. Talvez através da

identificação dessas diferenças conseguiremos pensar melhor as iniciativas

unitárias que superem os famosos “chamados” à unidade – por coincidência, a

unidade proclamada sempre é entorno do instrumento ou da luta que as

organizações já estão construindo, ignorando assim essas diferenças, e raramente

entorno de espaços realmente unitários a serem construídos.

Page 126: Caderno de Textos

126

Dessa forma, entendemos que o ME é consoante com a reorganização da

esquerda de modo geral no Brasil e enfrenta novos desafios diante das últimas

políticas educacionais instituídas. É importante pontuar, pois esta pode ser uma

segunda diferença fundamental, que na nossa visão, falar de reorganização do

movimento estudantil vai muito além da soma automática dos setores já

organizados. O desafio da reorganização vai muito além – da já muito difícil –

unidade na luta dessas organizações. Reorganização, para nós, é muito mais do

que a soma matemática da Oposição de Esquerda da UNE com a ANEL. Quando

falamos em reorganização, estamos falando da construção de um processo de

massas, que recoloque bases programáticas no seio do movimento, que seja

capaz de polarizar a conjuntura.

Na nossa avaliação, a conjuntura de fragmentação da esquerda como um

todo impõe pressões também ao movimento estudantil. A auto-construção acima

de tudo, o hegemonismo, o sectarismo, a burocracia juvenil, o parlamentarismo

estudantil, etc. Até pelo momento de defensiva, as organizações buscam atalhos,

subterfúgios – por vezes com um “programa político” supostamente revolucionário

para justificar tais opções.

O Rompendo Amarras reivindica o acúmulo histórico do movimento

estudantil e antigas experiências de unidade (mesmo compreendendo a

dificuldade de transpor esse acúmulo a cada geração no ME). A criação de

slogans que reivindiquem o nascimento de “um novo movimento estudantil” não

tem sido suficiente para acelerar tal processo de reorganização. O ME sempre

será novo, desde que esteja aberto a superar os desafios de seu próprio tempo e

superar os vícios de seu passado no presente. A nossa geração do Movimento

Estudantil brasileiro está experimentando as lutas de maneira mais isolada do que

em outros momentos. Basta ver o quanto todas as bandeiras que conseguiram

alguma repercussão por parte da esquerda foram entorno de pautas defensivas,

de resistência a projetos neoliberais do governo. Precisamos inicialmente admitir o

movimento de refluxo, bem como devemos tentar buscar entender quem é o

estudante brasileiro hoje, depois de 10 anos de petismo.

A compreensão de quem é o novo estudante contribui para pensarmos

como o movimento estudantil pode cumprir um papel de longo prazo e

protagonizar movimentações em busca da transformação social. Podemos usar,

como um rápido exemplo, o movimento estudantil chileno, que foi pólo

impulsionador de uma das maiores mobilizações ocorridas na América latina na

última década, assim como o papel que o ME cumpriu em processos de luta no

século passado.

O desafio de construir um ME com envergadura capaz de influenciar em

processos massivos de luta não é uma tarefa simples. Ainda mais sob algumas

Page 127: Caderno de Textos

127

características das políticas educacionais dos últimos anos na qual elencamos

alguns pontos. O primeiro, pela diferenciação do papel da educação a partir das

necessidades impostas pela reestruturação produtiva do sistema capitalista.

Podemos aferir isso com o ensino superior brasileiro, que antes era um reduto de

formação das elites nacionais e dos grandes quadros da direita. Hoje, é

pressionado a cumprir o papel de formar a mão de obra ainda barata, porém com

a qualificação técnica, que essa nova forma de gestão do capital precisa.

O estudante hoje é mais proletarizado, em especial e contraditoriamente,

nas universidades privadas. Além disso, fica expressa de forma clara no setor da

educação a característica dupla do governo petista de privatização velada dos

bens públicos, em conjunto com o discurso da justificativa paliativa para priorizar

sempre o investimento na esfera privada.

A intervenção no campo da educação, e mais especificamente a partir do

sujeito estudante, incide sobre pontos que estruturam a forma de funcionamento

do sistema capitalista, incide em contradições importantes abertas pelo atual

governo e tem o potencial, caso a esquerda tome de forma séria e com tal

intenção, de movimentar um número considerável de estudantes, que são

imprescindíveis no processo de reorganização das lutas da esquerda no Brasil. É

entendendo esse papel, que não acreditamos que o movimento estudantil se

resume como um “estágio” da luta que virá, uma mera formação de quadros pra

outros movimentos sociais.

Não que a partir dessa conclusão estejamos negando a importância que o

movimento estudantil representa no convencimento de inúmeros militantes

valorosos, que depois de sua passagem pelo ME, continuam atuando em diversas

frentes de atuação da esquerda brasileira. Mas trata sim, de reafirmá-lo enquanto

um movimento social, e que por isso, não deve estar subordinado à política de

captação de quadros. Se a idéia é buscar a construção de uma força com

perspectiva revolucionária no movimento estudantil de massas, precisamos iniciar

esta caminhada de maneira a apresentar política concreta para o próprio

movimento, o fazendo agente e não uma antessala nas organizações.

A entidade, a majoritária e o governo

O PCdoB, há pelo menos duas décadas, faz parte da base de aliança

prioritária do Partido dos Trabalhadores, que este ano completa dez anos de

governo. Este governo teve como prioridade apresentar um projeto de

desenvolvimento (chamado por alguns de neo-desenvolvimentista) econômico do

país, baseado no fomento ao agronegócio, aos grandes bancos brasileiros e a

exploração cada vez mais agudizada dos recursos naturais do Brasil, etc. Ao

Page 128: Caderno de Textos

128

mesmo tempo, no que diz respeito a direitos sociais, não existiu nenhum avanço

concreto e, sim, vimos a retirada dos mesmos.

A lógica dos governos Lula e Dilma foi de estímulo ao consumo em

detrimento dos direitos sociais como concebemos. Quando aumentou o acesso ao

ensino superior, aumento o investimento direto e indireto de dinheiro público na

educação privada, nos levando a absurdos, como hoje um dos principais

acionistas das Faculdades Anhanguera (um dos maiores conglomerados de

empresas da educação do mundo, ser a empresa google). Quando pautou

políticas de moradia, jamais a colocou como um direito. Executou ou foi conivente

com milhares de remoções, colocando como alternativa à – recém despejada –

classe trabalhadora, programas de financiamento como o “Minha casa, minha

vida” programa esse que, às custas do endividamento das famílias das

trabalhadoras e trabalhadores brasileiros, recheou os bolsos das principais

empreiteiras do país.

É essa mesma lógica do desenvolvimento do país, que enterrou a reforma

agrária e fortaleceu o agronegócio, e é o mesmo projeto que massacra qualquer

movimentação anti-sistêmica, como a luta pela terra dos Guarani-Kayowá no Mato

Grosso do Sul, que têm suas vidas ameaçadas todos os dias, por milícias de

jagunços armados com a autorização da Polícia Federal brasileira.

O mesmo PCdoB é um dos principais impulsionadores da Copa do Mundo

no Brasil e das Olimpíadas no Rio de Janeiro. Com a justificativa de que tais

eventos trariam um grande legado ao Brasil, são responsáveis direta e

indiretamente por milhares de famílias despejadas por todo o país e, também, pela

recente retirada dos indígenas da aldeia maracanã. É importante situar que com o

tal “legado” deixado por tais eventos no país, o Eike Baptista concorda, a gente

não.

A educação, não está desconexa de tal projeto de desenvolvimento, o

projeto de país apresentado por estes setores é um só, a esquerda tem a tarefa de

se posicionar perante o mesmo. Nós optamos por negá-lo.

É com essa leitura que vamos aos fóruns da UNE, compreendendo que há

tempos o PCdoB se adequou à ordem. Como disse o recém ingressante nas

fileiras da oposição de esquerda da UNE, Pedro Fonteles, “penso que o PCdoB

tem aplicado uma política da ordem burguesa e da manutenção do status quo da

sociedade. E em nome da manutenção do projeto de governo Lula-Dilma, aliando-

se ao que existe de pior na vida política do Brasil, com figuras como Sarney,

Calheiros, Eduardo Paes e Jader Barbalho, de oligarquias regionais como da

família Andrade no Pará ou de figuras ligadas ao latifúndio como o Deputado

Federal Giovany Queiroz ou a Senadora Kátia Abreu. Penso que o PCdoB não

está se construindo como uma alternativa de esquerda e socialista de poder

Page 129: Caderno de Textos

129

político dentro do Estado burguês.”

Dessa forma, como não esperamos de nenhum partido da ordem, não

esperamos que o PCdoB facilite a intervenção da esquerda nos espaços da UNE.

O fato de não haver democracia da forma como concebemos na UNE, jamais

poderá frustrar a disputa de um projeto de oposição. Fazer a disputa com a

majoritária é fazer oposição ao projeto econômico do governo, à hegemonia do

mesmo e à práticas e métodos stalinistas. Não esperamos, portanto, uma disputa

“justa” ou “democrática” do ponto de vista da superestrutura. Mas nem por isso,

deixamos de enfrentar diretamente aqueles que não respondem mais às

aspirações da transformação da educação e da sociedade como um todo.

A UNE que tocou a campanha “O petróleo é nosso”, a luta contra a ditadura

militar e o “Fora Collor” ainda existe? Em nossa opinião, não como era antes.

Entendemos que para compreender o que é a UNE hoje, somos obrigados a

debater sua relação com os governos petistas, pois estes mudaram muita coisa do

que ela é.

É relevante resgatar algumas características da entidade antes mesmo da

eleição de Lula em 2002. A UNE, da década de 90, já não era independente

financeiramente de governos. Os mandatos de FHC, e antes desses, já

financiavam boa parte dos fóruns da entidade. Mesmo antes de Lula ser

Presidente do Brasil, a UNE fez campanhas em conjunto com a direita tradicional

e a rede Globo, como no caso da campanha “sou da paz”. Antes mesmo de o

petismo ser hegemônico no país, a UJS dirigia a UNE, sua direção era

burocratizada e já existia o monopólio das carteirinhas.

Ainda assim, a chegada do PT ao governo causou mudanças substanciais

na entidade. A majoritária da UNE ajudou a formular o modelo da reforma

universitária, ajuda a definir o curso ou como se destinarão os recursos do pré-sal,

para ficar somente em alguns exemplos. Nossas respostas retóricas a este

problema podem ser utilizadas em uma plenária de agitação, mas acreditamos

que pouco ajudam na análise. Em nossa opinião, dizer somente que a UNE “traiu”

e é “inimiga dos estudantes” são por demais insuficientes para explicar as

dificuldades de rearticulação do movimento estudantil combativo brasileiro. Ou

melhor, achamos que explica errado.

Podemos dizer que ela institucionalizou suas lutas de acordo com o projeto

de hegemonia petista. Neste sentido é coerente dizer que há uma “traição” e

abandono das bandeiras históricas do movimento estudantil. Por outro lado, temos

que compreender que há coerência da parte deles (e que nós discordamos em

absoluto), pela “lealdade” a este projeto em curso. Dessa forma, resumir a

“traição” da entidade é tentar esquecer o enorme peso social dos governos

petistas na área da educação.

Page 130: Caderno de Textos

130

Além disso, a retórica da “traição” carrega um sentido confuso de resumir

este enorme peso do governo a um restrito grupo que compõe a direção da

entidade. O discurso serve para “vender” a ideia de que existe uma outra direção

pronta, não traidora, no movimento estudantil. Nesta tese, resta ao estudante

escolher se vai atuar em uma entidade que tem uma “direção traidora” ou em uma

que tem uma “direção não traidora”.

Entendemos que a relação que a UNE tem com o Estado hoje, conduzida

pela direção majoritária, é substancialmente diferente. Antes, mesmo que já

burocratizada, ela tinha uma relação de maior, porém, não total independência

com os governos. A entidade deixou de ser somente contra ou a favor os projetos

governamentais, mas passou a ajudar em sua formulação e, mais ainda, em sua

consolidação no senso comum dos estudantes. Suas grandes ações, campanhas

e “mobilizações” são muitas vezes articuladas com o governo, não por somente o

apoiar, mas por defender o que ela mesma ajudou a formular. É evidente que a

quebra da independência da entidade é agravada pela quantia monstruosa de

dinheiro que o governo repassa e sua relação financeira com o Estado, já que isso

não é uma exclusividade dos governos petistas. A direção majoritária da UNE

tenta tornar seus eventos cada vez mais oficiais, seja pelos patrocínios do governo

federal (e ministérios), empresas estatais (e privadas), seja pela programação que

é composta em grande parte por ministros, parlamentares e representantes do

Estado de um modo geral.

Ainda que seja inimaginável qualquer deslocamento da entidade no que diz

respeito ao governo Dilma, é importante compreendermos que a UJS ainda utiliza

como tática, o lançamento de “grandes campanhas” da UNE que desemboquem

na aprovação destas políticas, como se houvesse uma “ação civilizada” do

movimento estudantil. Essas ações consolidam a idéia da “esquerda

conseqüente”, da “política do possível”. Reivindicam pra fora, mas claro, já

garantiram todas as suas “vitórias” com o Governo Federal. O peso da direção

majoritária tem a ver com essas “vitórias” concretas e materiais obtidas. O

exemplo mais emblemático que podemos usar é a campanha dos 10% do PIB,

que, claro, mal citou a educação pública durante suas manifestações. Se não

explicarmos a força da direção majoritária pelo que é considerado um “ganho

concreto” por parte da população, correremos novamente o risco de reduzir o

problema à “traição” da direção e não ao grande impacto dessas “vitórias”

concretas.

É a partir de todas essas caracterizações que pautamos a nossa relação

com a entidade e é por isso que não priorizamos seus fóruns como “O” espaço de

disputa e organização do ME. Deixar de compor os espaços também não é a

saída para a rearticulação, até por que, não queremos cometer o erro de

Page 131: Caderno de Textos

131

abandonar os cerca de 5 mil estudantes que se reúnem nos fóruns da UNE. Não

podemos de forma alguma confundir esses estudantes com a direção majoritária

da entidade, porque se estão num espaço como o do ME, por mais burocratizado

que seja, é porque são estudantes que se descolaram do senso comum e se

preocupam em fazer alguma coisa para alterar os rumos da sociedade. É a partir

desse tipo de reflexão que os jovens se tornam ativistas.

O ME atua em quase todos os momentos por fora da dos encontros

bianuais da UNE (como fazia há quase duas décadas atrás, quando nasceu o

“Rompendo Amarras” em sua primeira versão, a partir do comando de greve nas

universidades públicas, criado à revelia e contra a direção majoritária,

aproveitando apenas o espaço de um fórum da UNE – pois o comando se

constituiu numa reunião de DCEs realizada durante um CONEG, quando a

majoritária votou contra a greve estudantil em 1998. Passada a greve, veio a

histórica vitória contra os funis para eleger delegados aos CONUNES, no CONEB

de 1998). Precisamos admitir que o fato da esquerda combativa não estar em

melhores condições de impor mais derrotas à majoritária se devem à situação

política atual mas também à sua fragmentação.

O debate em torno da atuação na UNE é difícil, em primeiro lugar, pela

confusão posta na diferenciação entre entidade, frente única e fração pública. A

UNE é uma entidade, que, mesmo com todo o esvaziamento de enfrentamentos, é

reconhecida como a maior representante dos estudantes no Brasil. Reconhecida

por quem? Pelos governos, pela maioria dos partidos, pela mídia, e pela maioria

dos estudantes que sabem que existe movimento estudantil e isso é inegável.

Isso nãosignifica dizer que ela represente de fato os anseios deles, muito menos

que defenda de fato seus direitos. Não. Para nós, a UNE hoje passa longe disso.

Compreendemos que enquanto entidade ela poderá sempre abrigar as

mais diversas forças políticas, os mais diferentes projetos, que estarão em choque

permanentemente. E, diga-se de passagem, têm aspectos mais democráticos que

até algumas entidades do movimento sindical, já que na UNE nunca houve

cláusula de barreira para composição da direção, por exemplo. Faz parte do papel

da esquerda compreendê-la enquanto uma entidade (não a confundindo com a

sua força majoritária) e, portanto, apontar as críticas e contradições de como a

força majoritária conduz a entidade. A defesa da esquerda, neste momento, é a

defesa das bandeiras históricas do movimento estudantil. Reivindicaremos,

portanto, que a entidade estudantil seja independente política e financeiramente

dos governos, que mantenha autonomia diante do Estado, Igrejas, empresas, etc.

E que seja uma, claro, entidade democrática de fato.

É importante ressaltar que defender essas características para a

UNE não significa vender ilusões sobre as possibilidades da esquerda anti-

Page 132: Caderno de Textos

132

governista se tornar maioria dentro da estrutura atual e da correlação de forças

presente. Quase ao contrário. Significa dizer que as disputas políticas da entidade

incluem as bandeiras por democratização dela. E vice-versa. Só haverá um

processo de democratização da UNE se houver disputas políticas em alta

intensidade, de projeto de sociedade. Enfim, nossa disputa dos milhares de

estudantes também passa pela demonstração concreta com o que não é

possível conquistar na UNE dirigida pela UJS e pelo campo governista.

Não acreditamos que o nosso foco de atuação deve estar na luta interna da

UNE. Não temos interesse algum de deliberadamente trilhar um caminho que

limite a nossa disputa dentro do movimento estudantil. Muitas vezes se coloca

uma falsa contraposição entre estar na UNE e fazer lutas. Essa confusão

proposital não passa de mais uma agitação, já que a OE não depende nem

política nem financeiramente da entidade. Devemos sim nos utilizar – por que

não? – dos poucos espaços existentes promovidos por esta entidade, para fazer a

disputa das bases do movimento estudantil. E diante da dificuldade de

alcançarmos determinados setores estudantis, os fóruns – ainda que de forma

limitada – são espaços possíveis de se fazer isso.

É inegável, e ainda não encontramos argumentos convincentes do

contrário, que o processo de eleição de delegados para o CONUNE é um

momento muito importante da disputa dos projetos da sociedade, especialmente

para dialogar com os milhares (é importante enfatizar-se o milhares) de

estudantes que hoje são direta ou indiretamente influenciados pelas posições da

direção majoritária da UNE e do projeto petista. É, sem dúvida, um momento

privilegiado da disputa de suas bases. É possível dialogar com parcelas estudantis

de toda a universidade, e confrontardiretamente com as concepções, posturas,

opiniões da direção majoritária da UNE e do próprio governo. Consideramos,

portanto, uma disputa completa, total, ainda que saibamos que no geral é uma

disputa dura, já que eles têm – pelo menos – um aparato gigantesco e um governo

com altos índices de aprovação. Aí, não podemos fingir que não existe atuação

dos setores governistas para tiragem de delegados na maioria das universidades

do país. Existe. Diante disso, é melhor disputar ou deixar que existam como única

opção de ativismo? A Oposição de Esquerda da UNE está cada vez mais se

apresentando como alternativa nas universidades privadas, inclusive nos espaços

onde há um rechaço à direção majoritária da UNE.

Uma pergunta pertinente: precisamos estar na UNE para travar esta

disputa? Nós podemos travar esta disputa em vários espaços políticos do

movimento, concepção que defendemos e temos aplicado cotidianamente. Porém,

é só reivindicando que queremos derrotar essa direção majoritária, ainda que seja

dentro das regras impostas por eles, é que nos gabaritamos diante dos

Page 133: Caderno de Textos

133

estudantes. Na nossa avaliação, a disputa direta, por este instrumento – que se

não reconhecido, é conhecido por todos – é muito mais eficaz do que a postura

abstencionista como fazem alguns setores ou totalmente paralelista. Se quisermos

mesmo disputar uma ampla camada de estudantes, então precisamos

necessariamente atuar nos espaços onde conseguimos explorar mais diretamente

as contradições do atual sistema e do modelo de educação.

Por que somos Oposição de Esquerda da UNE?

Inicialmente, é importante colocar que a Oposição de Esquerda não é um

espaço no qual os coletivos se diluem ou deixam de existir. Ela é sim uma frente

de atuação conjunta dos setores de esquerda, anti-governistas, que avaliam

importante fazer a disputa dos espaços da UNE. A oposição de esquerda faz isso

respeitando as diversas forças políticas presentes na frente, que mantém suas

fronteiras organizativas. Essa, inclusive, é sua riqueza.

A OE, não é, e não deve ser, portanto, um espaço que deve cumprir o

mesmo papel que uma entidade cumpriria. A OE não pode – e não é função dela –

ser a UNE de esquerda nem mais uma entidade geral. Ela não se colocará para

“representar” o conjunto do movimento estudantil brasileiro, não filia CAs e DAs,

não organiza congressos, etc.

Discordamos frontalmente das posições que dizem que há um

enfraquecimento na OE pelo fato de existirem muitas diferenças em seu interior.

Essas diferenças são muito inferiores à sua importância histórica de buscar a cada

dia dar mais consistência a uma articulação de forças da esquerda da entidade,

principalmente no que diz respeito a uma agenda de ações nas bases do

movimento. O fortalecimento das forças políticas que compõem a OE é o

fortalecimento da própria frente, estimulando cada vez mais que esta seja um

espaço de síntese política no movimento estudantil.

A OE tem demonstrado um aumento da capacidade de atuação unitária na

base do movimento cotidiano. Sabemos que hoje o processo de reorganização

está longe de estar completo. Reconhecendo todas essas dificuldades, de acordo

com nossa leitura, nossa tarefa é defender sem tréguas a unidade com os setores

da Oposição de Esquerda. Na prática, tentamos agir sem sectarismo e sendo

propositivos na construção de políticas unitárias. Nós queremos, sim, que a OE

seja mais orgânica. Para isso devemos dar bases concretas para a sua existência,

tendo paciência histórica no que diz respeito a processos de reorganização reais,

não agitativos.

Através da construção de uma política cotidiana de oposição de esquerda

que os tensionamentos que fazemos sobre as forças repercutirão em anseios não

só nossos, mas de uma ampla base social. É por isso que hoje, cada vez mais

Page 134: Caderno de Textos

134

todos os setores da OE reivindicam atuação conjunta em outros espaços de

atuação.

Em nossa opinião, o debate franco a ser feito com toda a esquerda é a

necessidade de que a reorganização da esquerda se dê da maneira mais ampla

possível, com o maior número de organizações possível, porém, principalmente,

com as mais massivas camadas de ativistas. A disputa molecular da vanguarda

não vai nos possibilitar impor uma nova hegemonia no movimento estudantil do

país.

A ANEL

Consideramos importante lembrar que fomos ao Congresso Nacional de

Estudantes em 2009. Na avaliação que fizemos na época, justificamos nossa ida

assim: “nos dispusemos a participar do CNE, principalmente por acreditarmos na

construção da unidade do movimento estudantil combativo, na defesa de um

ensino público, gratuito, laico, presencial, de qualidade, a serviço dos

trabalhadores e trabalhadoras”.

Fizemos, no mesmo documento, uma comparação numérica, como forma

de ilustrar a nossa argumentação:

“O Conune, maior espaço da entidade, costuma juntar aproximadamente 4

mil delegad@s e 8 mil estudantes no total. A tiragem de delegad@s por

universidade, tendo quorum mínimo de 5 % do total de estudantes matriculados,

significaria que aproximadamente 4 milhões de estudantes estariam

“representad@ s”. A expectativa da oposição de esquerda da UNE é de ter

aproximadamente 400 delegad@s, sendo 400 mil “representad@ s”.

No CNE, a proporção era de 5 delgad@s a cada 300 votos, com quorum

mínimo de 5 % por curso, e não por universidade. Isso significaria 81 mil

“representad@ s” pelos 1350 delegad@s presentes (as aspas entre a palavra

representad@ s significa nosso questionamento sobre a real dimensão de

estudantes envolvidos, conscientes, ativistas de fato)”.

Seguimos com a análise: “Nas eleições para o CNE em que estivemos

presente, vimos que os debates foram abaixo do necessário para polarizar as

universidades em torno de alternativas para o movimento estudantil. O debate

entre a própria esquerda, ao mesmo tempo em que qualifica as diferenciações de

concepção do ME, pecam muitas vezes por “falar para nós mesmos”, pois, neste

caso, estamos lutando contra um inimigo que está ausente”.

E continua:

“Nos moldes como ficaram, foi completa a predominância do debate

simplista de criação de uma nova entidade para resolução de todos os problemas

Page 135: Caderno de Textos

135

estudantis. Além disso, as mesas de debate que foram canceladas e o “tempo

ocioso” ocupado por atividades de comemoração de 15 anos do Pstu, são

exemplo também de uma inabilidade do grupo político majoritário no congresso

para conseguir aprovar a sua política principal.

No início da plenária final, outra demonstração de ansiedade hegemonista.

Alguns grupos apresentaram uma questão de ordem pedindo que as votações

sobre conjuntura, educação, e demais resoluções políticas, fossem realizadas

antes da polêmica sobre o instrumento de luta.

Mesmo sabendo que estariam prestes a aprovar uma nova entidade sem

programa político, integrantes do Pstu foram ao microfone dizer que este tipo de

proposta tinha intenção de tumultuar o vitorioso congresso. Em uma metáfora,

seria como se o dono de uma festa de debutante esbravejasse aos convidados,

que aqueles que não dançassem a valsa na hora que ele quisesse, estariam lá

estragando a sua festinha”.

O baile então se tornou uma festa à fantasia. A plenária, daquele momento

em diante, passaria a definir coisas sobre a própria ANEL”.

Relembramos este texto não só pra colocar que vivemos a experiência de ir

a um espaço que não éramos bem-vindos, para tentar defender propostas

unitárias, mas também para reafirmar que muitas vezes o “novo” carrega uma

tremenda carga de “velho”.

Há um debate, este sim pujante em diversas parcelas do movimento

estudantil, sobre a relação entre partidos e movimentos. É muito comum a

antipatia de ativistas independentes com as organizações. Em grande parte são

motivadas, e devemos reconhecer isso, por erros cometidos por diversos setores

organizados. A dinâmica do movimento muitas vezes impõe uma lógica muito

destrutiva por parte dos setores organizados. Este sim é um debate que nós,

enquanto organização, acreditamos ser fundamental para a construção do

movimento estudantil. E o CNE que vimos se bateu de frente com essa demanda.

Vivenciamos também a tentativa de propor um Fórum de Mobilização

Estudantil. Este foi debatido e apoiado por diversas entidades de base e gerais do

movimento. Tentamos fazer com que a nossa proposta do FME não fosse votada

contra a proposta de criação da ANEL, já que a ideia era justamente propor a

unidade, e não combater a opção d@s camaradas. Mas a força majoritária do

CNE não permitiu.

No mesmo instante em que foi aprovada a nova entidade, se votou por sua

filiação à Conlutas. Lembramos que o primeiro passo para a construção da nova

entidade surgiu de um Encontro Nacional de Estudantes, em 2008, que reuniu

cerca de 500 estudantes e visava fazer a tiragem de delegados para o congresso

Page 136: Caderno de Textos

136

da Conlutas que se realizou em seguida no mesmo local.

Percebe-se que a filiação à central permeou a construção da ANEL, pois

esta não estando ligada à Conlutas não faria sentido para sua força majoritária, o

PSTU. O debate sobre a participação de estudantes na central é legítima, mas

ficou evidente que a prática da auto-construção que subordinou o movimento

estudantil a isso foi prejudicial à unidade, ainda mais depois do fracasso do

Conclat.

Hoje a ANEL age muito mais como uma corrente ou um campo de

movimento estudantil de uma força política do que uma entidade que representa

uma base estudantil. Não nos cabe aqui elencar críticas ao funcionamento atual

da ANEL, mas sim de reconhecer que, mesmo diante delas, continuamos

defendendo a construção da unidade com a militância organizada nela. Afinal,

para nós, a defesa da unidade não é condicionada à permanência destas forças

políticas na ANEL. Não achamos, diferente do que muitas vezes sentimos às

avessas por parte do PSTU, que este deve estar na Oposição de Esquerda da

UNE para ser considerado um aliado.

Daqui pra frente

Resta à esquerda combativa saber lidar com o atual quadro para, a partir

inclusive das diferentes concepções, análises e mesmo práticas, possamos

pensar em como desenvolver as enormes lutas que temos pela frente de maneira

unitária.

Em diversas universidades, no dia a dia, tem sido possível uma atuação

conjunta entre as organizações e militantes independentes de oposição de

esquerda ao governo. O Comando Nacional de Greve Estudantil foi mais uma

experiência, que mesmo com problemas, serviu de experiência concreta neste

sentido.

Motivada por movimentos, levantes, protestos e revoluções em outros

países, a juventude brasileira tem boas perspectivas de se inserir em lutas

importantes. Em conjunto com a Oposição de Esquerda da UNE, defenderemos

que em todas essas lutas possamos atuar em unidade, com a consciência de que

o inimigo não está entre nós. Com a ambição de reconstruirmos um movimento

estudantil de grande influência social, com um programa anti-capitalista, anti-

sistêmico e anti-governista, com lealdade entre os setores envolvidos, podemos

dar vários passos à frente. Aos poucos poderemos vencer à auto-proclamação

excessiva, o dirigismo, o hegemonismo, o capismo, a agitação acima do programa

e o sectarismo. Quem sabe, a ponto de evitar que velhos vícios venham

novamente nos impor vários passos atrás.

À luta!

Page 137: Caderno de Textos

137

Texto 2: POR QUE SER OPOSIÇÃO DE ESQUERDA À MAJORITÁRIA DA UNE?

*Texto escrito pelo núcleo Curitiba do Rompendo Amarras

"Quando a esquerda combativa não se faz presente em espaços e debates do

movimento, é maior o vácuo ocupado por outros projetos – que não são nossos e pior, se apresentam como única opção. Não há espaço vazio na política, logo: Oposição de Esquerda."

A União Nacional dos Estudantes já não cumpre seu papel, de lutar por melhorias concretas para a educação, coadunando com as políticas precarizantes realizadas pelos últimos governos. Mas ao mesmo tempo em que não cumpre esse papel, ainda reúne massas de estudantes sob sua bandeira. Então ficamos com o dilema: continuar ou não dentro da UNE? Qual a melhor alternativa?

Para responder a esta grande questão, que é “qual deve ser o projeto do movimento estudantil de esquerda?” devemos realizar uma mediação entre aquilo que buscamos construir (um movimento estudantil combativo, de massas e que enfrente o capital) e a conjuntura em que estamos inseridos.

A síntese é simples: não podemos negar todo o passado histórico realizado pela UNE. Relembramos que o Movimento Estudantil, impulsionado pela UNE em 1968, foi uma frente de luta muito importante contra a ditadura militar brasileira e contra as reformas da educação no período. Atualmente observamos que não existe perspectiva de um fim próximo da União Nacional dos Estudantes, pois ela ainda é legitimada por mais de 90% dos estudantes brasileiros – o que é comprovado por sua tiragem de delegados que acontece em praticamente todas as universidades brasileiras (concordando com a política de tiragem ou não).

A experiência de ir aos congressos da entidade demonstra que para desconstruir a ideia hegemônica de “UNE é sinônimo de movimento estudantil” não é suficiente ficarmos entre a vanguarda do M.E. das universidades públicas. É preciso alcançar, principalmente, os setores que ainda não estão mobilizados em torno de nossas lutas (frisamos aqui que aproximadamente 80% da juventude que se encontra no ensino superior estão dentro da rede privada, onde mesmo pesando a ausência de história de movimento, a entidade alcança e sua majoritária se elege).

À parte de todas as fraudes e práticas despolitizadas que a União da Juventude Socialista (UJS/PCdoB) pratica para se manter na direção majoritária da entidade há 30 anos, devemos reconhecer a existência de uma base real e massiva de estudantes que se referencia na UNE e constrói movimento estudantil, mesmo que discordemos da política tocada e dos métodos utilizados.

Page 138: Caderno de Textos

138

Muito se diz que a entidade tem se ocupado apenas de festejos, promovendo espaços políticos de menor importância. Concordamos em parte. É fato que a UNE não tem tocado processos de mobilização contestatória, mas é verdade também que ela tem conseguido corroborar, quer seja com seu silêncio ou com seus posicionamentos, com a legitimação do projeto educacional e societário mercantilizado do governo, que precariza sob a insígnia da democratização. Apontar tudo isso é necessário, e principalmente, apontar outro horizonte é um imperativo!

Não é a toa que o movimento estudantil como um todo se obriga a dar respostas quanto à participação na UNE: é fato que ela hoje tem uma legitimidade que não depende de nossa vontade, legitimidade esta que sempre é usada para defesa de propostas educacionais do governo com as quais não concordamos.

Agimos de acordo com o que o momento histórico nos oferece e nos cobra, assim, nossa militância não se restringe a posições puristas que afirmam ou impossibilidade de disputa dentro da UNE, ou a impossibilidade de militância por fora da entidade. Não abdicamos de qualquer frente e entendemos que a realidade nos impõe a necessidade de mediações para lidar com as contradições inerentes a ela. A militância que defendemos se constitui por nossa construção nos locais que temos inserção, desde centros acadêmicos, até o movimento de área, e é este movimento do dia a dia e combativo que defendemos frente a todos os estudantes ainda referenciados na UNE.

Daí posicionarmos por manter-se dentro da UNE compondo a Oposição de Esquerda (OE) e fazendo frente ao projeto hegemônico que a entidade tem sustentado há anos e que se apresenta ainda para muitos estudantes como única alternativa de educação e única referência de Movimento Estudantil.

Alguns companheiros da esquerda do M.E. optaram por sair da UNE e fundar uma nova entidade, com o intuito de tomar para si o papel que aquela não mais cumpre. Consideramos que tal construção foi uma tática equivocada, tanto pelo processo de criação da nova entidade, que não congregou àquele momento nem muitos (ou nem outros setores) em sua formulação, tanto pela ausência de conjuntura para tanto. A partir disso, criar uma nova entidade divide ainda mais a já fragmentada esquerda dentro do Movimento Estudantil.

Mas, ao mesmo tempo em que temos a posição de nos manter dentro da UNE, o que nos difere da majoritária da entidade? Por que criticar a UNE não é o mesmo que criticar a OE? Porque a OE, mesmo sendo parte da UNE, continua a criticá-la e a deslegitima-la como representante nacional dos estudantes?

Não temos uma visão idealista de que nos manter dentro da UNE fará com que mudemos os rumos que a entidade tem tomado na última década e, portanto, não temos a intenção de reformar a entidade. Estamos dentro da entidade para que com nossa atuação, mostremos para os estudantes que nela se referenciam os limites existentes e a necessidade de formulação de outro projeto de educação e de movimento, ao mesmo tempo em que construímos em unidade com outros setores as perspectivas de como se dará essa superação.

Page 139: Caderno de Textos

139

Para a OE, disputar os espaços da UNE é a melhor forma de desconstruir a entidade e o projeto educacional que ela encampa; é desconstruir a UNE para a base que ela reúne.

OE, por outro projeto de educação e por outro movimento!

Texto 3: Movimento de área

Por: Ananda, Camila P., Lester, Nabylla, Rebecca, Wesley (EMBAP); Bárbara, Clarissa, Spam, Diego, Etiene, Fábio Henrique, Gabriela, Gustavo, Luiza, Mariana Auler, Mariana

Figueiredo, Naiady, Peterson, Suzan, Vanessa e Wagner (UFPR).

Desde sua fundação o Coletivo Barricadas Abrem Caminhos aponta para o espaço do Movimento Área enquanto uma esfera importante de intervenção no contexto de refluxo e, consequente, necessária reorganização do movimento estudantil. Em termos gerais, poderíamos afirmar que tal apontamento tem se mostrado acertado, refletindo no grande crescimento que nosso coletivo logrou atingir através da militância nos cursos a nível nacional: a grande maioria dos novos núcleos que abrimos nos últimos dois anos tem seus contatos abertos através do movimento de área. O último ano, no entanto, tem feito as palavras “desorganização” e “ausência de política” estarem, com frequência, nas mesmas frases que “movimento de área”. Assistimos nossa intervenção se reduzir cada vez mais em organicidade nas executivas, a ausência de articulações prévias que permitissem a construção de FENEX produtivos para o movimento e consequentes com sua continuidade, bem como um crescimento generalizado da intervenção de setores como a Consulta Popular nesses espaços. Pensamos ser necessário analisar essas questões sem cair na justificativa fácil de ausência de voluntarismo militante – será que o problema do movimento de área hoje é somente que temos dificuldade de cumprir nossas tarefas? – e tentar contextualizar esse processo dentro de uma conjuntura mais ampla.

Esse é um esforço importante pois, muito embora situemos o movimento de área enquanto um dos pilares de nossa leitura de reorganização, poucas vezes conseguimos fazer debates que o integrassem a nossa leitura de conjuntura, procurassem debatê-lo em termos de concepção e potencialidades de forma sistematizada, reduzindo-se o debate do coletivo a caracterizações de nossa intervenção em cada executivas – necessárias – porém insuficientes para responder as perguntas que a atual conjuntura nos impõe sobre essa questão.

Funções e potencialidade do ME de área

Vamos tentar, em um primeiro momento, tratar um pouco das potencialidades e características próprias do movimento de área, o que conflui para um debate de concepção. Dividiremos essa discussão entre os pontos que

Page 140: Caderno de Textos

140

derivam de seu objeto e aqueles que derivam de seu método. Posteriormente tentaremos uni-los no debate de perspectivas da atual conjuntura.

(i) Por seu Objeto

Acho que um primeiro ponto que é gritante quando pensamos nas potencialidades do movimento de área a partir da perspectiva do objeto por ele enfocado, é a noção de que “dialoga mais com a realidade do estudante”. Os debates que giram em torno de sua área de escolha para atuação profissional tendem a aproximar mais estudantes e, muitas vezes, estudantes que a princípio não são sensibilizados de imediato por pautas ligadas ao movimento geral. Contudo, acredito que o trabalho com esse recorte de pautas não se relaciona somente a possibilidade de atingir uma maior aproximação do estudante, afinal de contas, poderíamos utilizar qualquer outra “desculpa” para fazê-lo. A opção pelo campo de militância determinado por opções profissionais carece, assim, de outras justificativas que o sustentem. Penso que podemos visualizar duas principais justificativas para essa intervenção, das quais decorre diretamente uma determinada concepção do movimento estudantil de área.

- Do Enfoque na formação

Quando falamos de mercantilização da educação podemos nos referir a uma problematização do ensino privado, ou seja, da transformação da educação ela mesma em uma mercadoria que é vendida. Outra expressão da mercantilização da educação se mostra quando o conhecimento/produção científica/arte passa a se tornar mercadoria ou serve somente para qualificar uma outra mercadoria, a força de trabalho. Obviamente esses dois significados são complementares, a medida que a mercantilização estrita da universidade, sua privatização, facilita a flexibilização das balizas da produção do conhecimento em direção aquilo que se torna mais lucrativo para o mercado. A essa complementariedade voltarei mais a frente.

Entendo os debates empreendidos no movimento de área são um espaço privilegiado para se aprofundar esse segundo significado da mercantilização da educação. Encarar que aquilo que consideramos em alguma medida importante para a sociedade – afinal, foi a profissão que escolhemos – se calca, na verdade, em interesses direcionado ao lucro é um fator de indignação bastante importante. A mercantilização daquilo que não concebemos como mercantilizável a princípio abre margem para um debate bastante amplo sobre a realidade social em que vivemos, com um recorte de classe bastante evidente. Para além disso, temos que ter que claro que essa indignação não é somente uma desculpa para tratar de assuntos maiores, sob o risco de voltarmos a justificativa única do movimento de área como maior diálogo com o estudante. A produção de ciência dentro de um determinado paradigma, bem como a qualificação do trabalhador sob uma determinada ótica, tem uma importância dentro da estrutura de reprodução do capital, notadamente a partir do processo de reestruturação produtiva, quando novas exigências são feitas tanto às capacidades do trabalhador (daí a

Page 141: Caderno de Textos

141

preocupação com a formação profissional) bem como o tipo de saber e tecnologia disponíveis para o aumento da produtividade. Nesse sentido, como defendemos quando fazemos o debate do desmonte da educação de forma mais ampla, a discussão da formação deixa de ser mero ornamento para ganhar um papel mais central em nossas formulações.

Para além disso, é importante ressaltar que as problematizações resultantes desses debates muitas vezes evidenciam não somente um foco equivocado da ciência correta: a história escrita hoje é boa mas não há preocupação da academia em democratizar seu acesso, por exemplo. Fica patente a noção de que não se trata somente de se apropriar de toda a formulação da ciência burguesa, mas que há alguns marcos epistemológicos, e seus respectivos desobramentos, com os quais teremos de romper. Nesse sentido, os debates do movimento de área também tem o mérito de construir bases para o tipo de ciência e conhecimento que consideramos trilhável para uma sociedade diferente.

É nosso papel dentro do movimento de área estimular esse sentimento de indignação e canalizá-lo através de lutas palpáveis. No campo da formação, essa canalização tende a desembocar em três vertentes, complementares, cujas características são importantes de serem pontuadas.

Primeiramente, apesar de mais rara, visualizamos a produção/estudo/sistematização de conhecimento sob um viés reivindicado pelo movimento em oposição à produção hegemônica da disciplina em questão. É nosso desafio fazer com que tais debates saiam de elocubrações abstratas e se convertam em construções reais através do espaço da pesquisa e da extensão. Deve se vincular necessariamente a esse primeiro ponto um segundo que reivindique mudanças curriculares calcadas nos acúmulos do movimento sobre a função social de uma determinada disciplina. Tal vinculação é essencial para evitar que a extensão se torne um mundo paralelo à “universidade burguesa indisputável”.

A disputa da formação concreta e obrigatória dos profissionais formados nas universidades deve ser um norte importante dos militantes do movimento de área. Um terceiro ponto deve se relacionar diretamente, e consiste de certa forma em consequência desse primeiro. Os governos e reitorias não se disporão espontaneamente a dar as condições estruturais e recursos humanos necessários para o pleno desenvolvimento daquilo que preconizamos como uma ciência socialmente referenciada. Isso significa a luta pelas condições da universidade, ou seja, um vínculo direto com o movimento estudantil geral.

- Do enfoque na intervenção profissional

O movimento de área tem a potencialidade de problematizar de forma mais palpável as condições do mundo de trabalho a partir do debate das realidade de sua profissão mais específica. A discussão sobre direitos trabalhistas, regulamentação da profissão, condições estruturais das esferas de atuação são muito importantes e abrem caminhos para a solidariedade do movimento

Page 142: Caderno de Textos

142

estudantil ao movimento combativo dos trabalhadores, fazendo um dialogo para além da universidade, bem como dá bases para que esses militantes estudantes vislumbrem uma área de atuação quando deixem a universidade.

Ainda que a discussão sobre a realidade do mundo do trabalho pós-universidade tenha um bom apelo junto ao corpo estudantil, devemos ter ciência de que é necessário situar esse debate na realidade concreta imediata do estudante. Nesse sentido, o debate do estágio ganha grande potencialidade na contextualização dessas problematizações na conjuntura de desmantelamento do mundo do trabalho de forma mais ampla. Mais do que problematizar, é necessário que se delineiem lutas concretas vinculadas a essa pauta, seja em solidariedade à categoria em questão, seja vinculadas as condições de trabalho dos estagiários.

(ii) por seu método em determinadas conjunturas

Os pontos anteriormente elencados dizem respeito a características inerentes à opção

pelo recorte a partir de disciplinas/profissões acarretada pelo movimento de área.

Desejamos agora aprofundar suas potencialidades e características vinculadas a seu método de organização. Esses apontamentos serão historicizados, pois acreditamos que os métodos aplicados ao movimento de área cumpriram papeis diferentes ao longo da história do movimento estudantil brasileiro. Entender os papeis que o movimento de área já cumpriu nos auxilia a pensar o papel que ele cumpre hoje bem como as limitações que ele muitas vezes enfrenta.

A intervenção segmentada a partir dos cursos se origina, em grande medida, a partir de secretarias da União Nacional dos Estudantes - apesar de haver executivas que surgem por fora da entidade. Apesar de se referirem a uma intervenção setorializada, elas tinham na UNE seu eixo de articulação entre as executivas a partir de pautas gerais. No final da década de noventa, já observavamos dificuldades de articulação das lutas gerais através da UNE. É emblemático, nesse sentido, a luta contrária ao Provão de FHC, a qual foi timidamente construída pela entidade. Por outro lado, as executivas de curso que se desmembravam da UNE apontavam outras ferramentas para cobrir o vácuo deixado pela UNE, dentre elas, o FENEX. O fórum surge principalmente para articular a pauta do Provão, e cumpre um importante papel na articulação nacional do ME. Esse processo de gestação de novas ferramentas se intensifica no período a seguir.

Não é novidade que a partir do início do governo Lula da Silva a UNE, em conjunto com uma série de setores combativos do movimento social brasileiro, passa a se situar cada vez mais ao largo das lutas. A entidade, a partir de sua composição majoritária, recebe financiamento do governo, e, mais do que isso, não só reforça as políticas privatizantes que o governo petista propõe com auxilia na sua formulação.

Page 143: Caderno de Textos

143

Nesse sentido, há a necessidade de uma ferramenta que cumpra o papel historicamente cumprido pela UNE enquanto catalizadora das lutas gerais do movimento estudantil a nível nacional. A oposição de esquerda ao governo passa a apontar para o espaço do movimento de área enquanto um possível cumpridor desse papel. As forças de oposição passavam a ocupar os espaços das executivas e seus fóruns baseadas em uma política de denúncia e debate dos ataques desferidos pelo governo Lula à educação brasileira.

Isso significava um enfoque bastante grande ao movimento geral nas intervenções protagonizadas pela oposição de esquerda nas executivas na primeira metade dos anos 2000. Esse enfoque se agudizava ainda mais por significar um contraponto a tendência da militância setorial petista que procurava, como um subterfúgio ao debate das políticas públicas precarizantes de seu governo, focar a discussão sobre as questões relacionadas à área específica de formação/atuação profissional, onde as contradições seriam menores – mais por sua abordagem do que por essência, como vimos no ponto anterior – a partir da elaboração pela qual tinham sido responsáveis desde a década de noventa. O espaço do movimento de área, então, representava a possibilidade de dialogar com um número maior de estudantes sobre os ataques desferidos pelo governo do PT. Um espaço de agitação para a base, portanto.

Mas mais do que isso, o movimento estudantil carecia de ferramentas que organizassem sua atuação conjunta. O espaço de articulação entre essas executivas, o FENEX, passa a cumprir esse papel. Seu enfoque era, assim, de um articulador do movimento estudantil geral, mais do que um articulador de lutas setorias – as quais estavam enfraquecidas não só no espaço do FENEX, mas dentro das próprias executivas.

Ao longo da segunda metade dos anos 2000, no entanto, observamos um esvaziamento do espaço do movimento de área por parte da maioria das forças de oposição de esquerda ao governo. Se relaciona a esse movimento a gradual desarticulação do FENEX e sua diminuição em capacidade de síntese, por aglutinar cada vez menos setores, e encaminhamento, por refletir a impossibilidade de encaminhar seriamente para o ME geral e observar um renascimento ainda inicial das pautas setoriais enquanto eixos articuladores tomados seriamente.

Aqui cabe aprofundar um pouco os motivos que acarretam nesse esvaziamento.

Inicialmente, os setores impulsionados pelo PSTU, que por algum tempo constituíram a CONLUTE, se utilizam do espaço do ME de área enquanto um importante palanque de agitação de suas políticas de oposição ao governo e, principalmente, de sua leitura do processo de reorganização do movimento estudantil. Isso é, no processo em que o movimento estudantil de área se esvai das discussões próprias de seu objeto para se centrar completamente naquilo que era trazido pelo movimento geral, muitas das discussões programáticas próprias ao movimento geral eram deixadas de lado em detrimento de um debate em torno das alternativas organizativas disponíveis frente a falência da UNE. Os espaços

Page 144: Caderno de Textos

144

do movimento de área se tornavam, assim, palco de disputa entre aqueles que defendiam o rompimento com essa entidade, e aqueles que pautavam a mediada proposta de “por dentro e por fora da UNE”. Com o fracasso da CONLUTE, sem entrar no mérito desse processo em particular, o PSTU inicia uma campanha pela construção do Congresso Nacional de Estudantes (CNE), no qual foi fundada, então, a ANEL. Nesse processo em particular o espaço das executivas de curso foi amplamente utilizado para polarizar os debates em torno da reorganização do ME. Foi notável o protagonismo de entidades que eram dirigidas pelo PSTU na construção do CNE, como a Exnel, bem como a insistência da afirmação dessa proposta nos fóruns das entidades em que eles se constituíam enquanto minoria. Apesar da presença desse setor no movimento de área ao longo desse período de forma mais incisiva, víamos que sua proposta de intervenção sempre se baseava em algo para fora do ME de área. Ia-se ao movimento de área para dizer que a resposta necessária ao processo de reorganização era outra: uma nova entidade canalizadora de lutas do ME geral. Isso se refletia na, quase, nenhuma organicidade dada por esse setor às executivas para além de seus fóruns de disputa.

Podemos dizer que, a partir da fundação da ANEL, a concepção de intervenção sustentada por esse setor não se altera substancialmente: aparece nos encontros para pautar a construção da ANEL, desaparece no restante do tempo. Contudo, é notável a diminuição do peso que os militantes da ANEL dispendem na disputa dos fóruns do movimento de área quando comparado com aquilo que faziam no período de gestação da nova entidade. Para além disso, apesar da repetição insistente da necessidade de rompimento com a UNE e construção da ANEL, vemos que é difícil hoje que a intervenção em um encontro tenha essa temática enquanto sua polarização central. Esse esvaziamento dos espaços orgânicos das executivas, de seus espaços de direção e de seus fóruns de disputa, acarretam em uma lógica ausência dessa força nos espaços do FENEX o qual, antes valorizado por sua potencialidade enquanto ferramenta de articulação do ME geral a nível nacional, já tem seu papel suprido por um belo solitário.

Com relação à oposição de esquerda da UNE, sem entrar em especifidades de campos específicos, vemos que seus coletivos se aproximavam mais da construção de uma política de ME geral dentro dos espaços do ME de área do que propriamente de uma construção focada num recorte temático/profissional. Na medida em que a construção de espaços unitários da esquerda do ME se tornam cada vez mais uma exceção, vemos que o movimento de área, por se enxergar nele somente essa funcionalidade, também é esvaziado. Ao mesmo tempo, vemos setores de coletivos da OE atuando no ME de área, porém de forma assistemática e quase sempre pontual.

(iii) breve síntese

É necessário indagarmo-nos sobre o papel do movimento de área e, mais especificamente, seu papel no processo de reorganização. Inicio por este último: o

Page 145: Caderno de Textos

145

ME de área é importante por que nos permite dialogar com mais estudantes por seu método, relação direta com CAs, e por que trabalha com uma base diferente do que aquela mobilizada por um primeiro contato direto com as pautas gerais. Por outro lado, entendendo o processo de reorganização do movimento estudantil enquanto um processo calcado na necessidade da unidade, não podemos ignorar o fato de que as principais lutas que movem o cenário nacional do movimento estudantil não tem se utilizado dos instrumentos do movimento de área enquanto catalizadores e canalizadores dessas explosões. Nesse sentido, embora o movimento de área contribua para o processo de reorganização na medida em que evidencia importantes balizas sobre as quais devemos pautar nossas lutas, auxilia na nossa análise de conjuntura e abre perspectiva de incidência sobre uma nova fatia de nossa base social, suas ferramentas hoje não cumprem o papel que cumpriram no início dos anos 2000 na articulação das lutas.

Concretamente, hoje o FENEX não tem condições de ser o fórum de mobilização estudantil, embora contribua para a realização deste. Dizer isso, contudo, não significa dizer que não se deve dar peso ao ME de área ou que suas potencialidades se esgotaram na década passada. É entender que, apesar de ter cumprido um papel conjuntural protagonista na organização das lutas, o movimento de área tem um papel perene que deriva da opção do recorte de seu objeto, explorado anteriormente.

Deriva disso um entendimento de que o barricadas deve cumprir um papel importante na pressão sobre outros grupos do movimento estudantil para que esses se reaproximem da intervenção do movimento de área. Essa pressão deve se dar tanto através de conversas de força formais, mas, principalmente, através de uma atuação coerente dentro do ME de área que faça com que essa esfera de atuação se demonstre factível tanto em termos da política tocada quanto em potencialidade de aglutinação de base. Isso é responsabilidade do barricadas, na medida em que o movimento de área ganha politicamente com essa intervenção mais ampla de setores, bem como isso significa um deslocamento da localização política que esses setores ocupam no cenário de reorganização também.

Cabe precisar, ainda, que a relação que logramos estabelecer entre a intervenção no ME de área e os debates do ME geral nacional são uma baliza muito importante na possibilidade desses deslocamentos e aproximações. Assim, constitui nossa tarefa prioritária pensar uma política geral coerente que seja passível de ser articulada de forma a não se tornar a ideia-fixa do ME de área, mas sim desdobramento lógico de seus debates específicos na pauta da educação. A mobilização de setores independentes em torno desses debates de ME geral, assim gestados, contribuem para a pressão sobre os grupos com quem temos atuação no ME de área, bem como demonstram a potencialidade das lutas que propomos enquanto unificadoras do ME geral. Isso ressalta mais uma vez a importância que a intervenção no ME de área ganha na possibilidade de constituição de alguma organicidade a uma alternativa de FME.

Conjuntura atual e outras contradições

Page 146: Caderno de Textos

146

É notório que, embora coloquemos enquanto um de nossos nortes na intervenção no movimento de área a aproximação de outras forças, hoje o movimento de área aglutina, com alguma clareza de projeto e atuação orgânica, duas forças: o barricadas e a consulta popular, recentemente via levante popular da juventude. No último período temos observado um crescimento bastante significativo da CP, tanto em números, quanto em abrangência de formulação política para as executivas. Esse movimento tem sido acompanhado de uma impossibilidade nossa de dar respostas a altura, terminando em uma hegemonização de executivas como a FEAB, ABEEF – tradicionais – e o avanço em direção a outras executivas em que historicamente temos trabalho, como a ENEBIO, FEMEH, FENED e DENEM.

Para tentar responder ao porquê de enfrentarmos tal conjuntura, cabe um breve histórico e caracterização da atuação da Consulta Popular dentro do ME. Historicamente observamos uma inserção desse grupo na área de agrárias, através das já citadas FEAB e ABEEF. Dentro dessas executivas, sua atuação se centrou em cima de um dos elementos que apontamos enquanto uma potencialidade do ME de área: a relação com a extensão e a produção de uma alternativa à produção acadêmica vigente. Isso se configurou em um enfoque sobre a formação de profissionais que respondam às expectativas e problemas 39 elencados pelos movimentos sociais que se aglutinam na via campesina, notadamente o MST. A caracterização geral é de um movimento estudantil que se desloca do enfoque do debate da educação e busca formar estudantes capazes de se tornarem quadros dos movimentos sociais em questão. Em síntese, era uma concepção de movimento estudantil enquanto uma antessala de outros movimentos sociais, que, por fim, esvaziava o ME de suas características próprias enquanto movimento social da educação.

Paulatinamente, vemos uma inflexão desse setor no sentido de, não somente apontar para fora do ME enquanto única perspectiva verdadeiramente revolucionária, mas de iniciar uma formulação em torno da educação, ainda que incipiente. Tal formulação tem, em grande medida, coincidido com aquela tradicionalmente defendida pelos setores mais à esquerda do PT, de críticas leves às políticas governamentais, mas de sua defesa enquanto projeto de desenvolvimento nacional e avanços concretos para a classe trabalhadora. Se a inserção inicial em outras executivas se baseia amplamente no debate da vinculação do ME aos MS, cada vez mais vemos a ampliação desse discurso para abranger a defesa das políticas, sejam elas para a educação ou não, dos governos do PT.

A pergunta que resta é: como esse discurso ganha corpo em detrimento da política que formulamos para esses mesmos espaços?

Considero que alguns fatores contribuem para isso. Primeiramente o método adotado por esses setores é basicamente agitativo, contando com a sensibilização enquanto fator determinante no convencimento político. Essa metodologia dialoga, no geral, com o senso comum médio – dentro de uma noção de defesa das políticas do PT, há um duplo fator de diálogo acrítico com o senso comum, baseado no método e no conteúdo da agitação. Tal elemento destaca

Page 147: Caderno de Textos

147

uma noção de intervenção no movimento estudantil que, se por um lado segue reproduzindo a noção de formação de quadros para os movimentos sociais, por outro tem pretensões de abranger sujeitos diferenciados e mais amplos. Não é raro nos depararmos com a verbalização por parte da CP da necessidade de se constituir um movimento de massas a partir do corpo estudantil. Tal noção nos coloca um desafio que, acredito, não concerne nossa intervenção somente no movimento de área, mas fica patente em nossas inserções neste: a necessidade de superarmos alguns perigos impostos pelo ME de área. Um primeiro perigo se relaciona a uma tendência à militância nacional se virtualizar e perder gradativamente o contato cotidiano com sua base social.

Por outro lado, um segundo perigo se refere à natureza dos debates que empreendemos, o qual remete necessariamente à abrangência da base social com quem temos contato.

Os encontros de movimento de área tem um potencial de aglutinar amplos setores estudantis em seu interior. Contudo, é comum que seus fóruns tenham um número proporcionalmente reduzido de estudantes envolvidos de forma mais séria – note, não digo orgânica – nos debates empreendidos naquele espaço. Nosso desafio é conseguir abranger um número maior de estudantes, notadamente das universidades pagas onde, por raras exceções, praticamente não temos militância orgânica no coletivo e temos dificuldade de atingir também no debate do movimento de área. Mais do que isso, temos que conseguir fazê-lo sem ceder em nosso programa político, mantendo a centralidade da pauta da educação apesar das aberturas diversas que o movimento de área nos proporciona. Penso que a construção de lutas concretas, pautas factíveis, também deve ser uma linha de nossa intervenção nesse espaço, na contramão de um outro perigo do movimento de área incorrer em um pólo de debates e concepções progressistas de fundo sobre uma área, mas sem ações práticas e pautas que o mobilize. Aponto, assim, um vácuo deixado por nós, tanto por desarticulação de nossa política de movimento de área mas, mais o que isso, por uma construção ainda estreita de nossos debates e métodos do movimento de área, que a CP vem ocupando. É imperativo que reflitamos sobre isso e tenhamos uma pretensão a uma construção ainda mais ampla a partir das executivas de curso. Somente assim podemos legitimar uma defesa séria da intervenção no movimento de área, levando em conta sua especificidade, seu vínculo com o movimento geral, sem ignorar seu papel na conjuntura de reorganização do movimento estudantil, e calcado em uma concepção que se disponha a disputar uma parcela significativa da sociedade, e não somente sua vanguarda.

Page 148: Caderno de Textos

148

4. Educação Libertadora e Combate às Opressões

Textos da Tese do Coletivo Nacional Levante para o V Encontro de Mulheres Estudantes da UNE

Texto 1: Vermelha flor, vermelha bandeira.

Assistimos um processo de profunda modificação e expansão do capitalismo. Além da dominação de territórios, o capital consolidou seu alcance em todas as esferas da vida humana. Tal processo se vincula com a luta deste sistema por sobrevivência: nasede por mercados e mercadorias, o capital se introjetou em todo o mundo.

As mulheres são hoje 70% dos pobres do mundo. São maioria entre os refugiados de guerras, trabalhadores informais, precarizados e desempregados. O capitalismo só se viabiliza alimentando os conflitos entre aqueles que explora. A divisão sexual do trabalho mantêm-se na mesma dinâmica pré-capitalis ta, acrescentando a seus papeis uma dimensão financeira.

Assim, a hoje tão falada dupla jornada sempre foi uma realidade das mulheres pobres, que lavavam as casas de seus senhores maridos e dos senhores patrões. A desvalorização da mão-de-obra feminina que se reflete mesmo nas esferas burguesas de nossa sociedade é um mecanismo para a precarização da mão-deobra como um todo das classes trabalhadoras.

Nas partes mais ocidentalizadas e metropolitanas do planeta, nosso papel como mercadoria transformou-se. Ao invés de sermos exibidas sedutoramente para consolidar alianças entre clãs, somos exibidas sedutoramente para consolidar o consumo de cerveja. Somos ainda vendidas de modo literal, arrancadas à força de nossos lares e prostituídas em bordeis. O tráfico de pessoas é o terceiro maior negócio ilegal do mundo. Somos mantidas neuróticas e infelizes quando são vendidas a nós imagens de mulheres irreais, dentro de um padrão de beleza tão estrito que nem sequer as modelos se encaixam nele, sendo retocadas por todas as ferramentas de imagem possíveis.

O império das grandes empresas e bancos tem avançado ainda no desrespeito ao meio ambiente, à biodiversidade, à vida. O uso de combustíveis fósseis e o a geração descontrolada de lixo tem agravado a degradação

Page 149: Caderno de Textos

149

ambiental. Também temos visto o direito da semente e da vida serem mercantilizados na produção dos alimentos transgênicos. A opção pelo lucro e pelo agronegócio tem tido consequências sobre a comida, que fica cada vez mais cara e de pior qualidade.

Em diversos movimentos anticapitalistas e/ou de contestação da ordem vigente nos últimos anos, as mulheres têm mostrado a cara dizendo o quanto as saídas que o capital nos oferece são limitadas. No último ano, em contestação à RIO+20 e sua economia verde, 20.000 mulheres marcharam dizendo não à nova máscara do capital, que precifica a natureza e nos expulsa dela. São mulheres dos rostos mais marcados que sabem que só mudando o mundo mudaremos nossas vidas.

Texto 2: Hoje você é quem manda, falou tá falado...

Há pouco tempo era muito difícil imaginar que teríamos uma presidente

mulher no Brasil. “Agora elas podem”, repete a presidente Dilma Roussef, que instituiu pela primeira vez um Ministério com cotas 30% de ministras. Se por um lado essa feminização do poder é fundamental para alimentar um imaginário onde as mulheres tem livre acesso a vida política, por outro ela não tem se refletido num avanço das pautas feministas no governo.

Ainda durante a campanha, a atual presidente associava sua imagem à grande mãe defensora do povo brasileiro e se comprometia com os setores mais conservadores da sociedade a não caminhar com o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), sobretudo nos itens referentes à invasão de propriedade rural, direitos dos homossexuais e direitos sexuais e reprodutivos das mulheres (revisão da legislação punitiva sobre aborto). E logo no início do governo, já apresentou cortes de verbas nas áreas sociais, o que pesa mais sobre os ombros das mulheres.

A Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres criada durante o governo Lula sinalizando um grande avanço não demorou muito para ser a primeira a ter suas verbas cortadas logo no início do governo Dilma.Essa ação inviabilizou a aplicação correta da Lei Maria da Penha limitando o combate à violência e tornando quase inexistente o apoio às vitimas. Da mesma forma as verbas destinadas a educação foram cortadas, o que prejudicou a aplicação da assistência estudantil e a permanência das mulheres, mães na universidade.De que adianta encaminhar a política e não garantir que ela aconteça?

É importante lembrar também que a postura do governo brasileiro no cenário internacional tem sido por um lado a briga por uma inserção dependente no mercado globalizado a partir de nossos minérios, cana, petróleo, florestas, perpetuando a histórica pilhagem dos recursos do país e por outro lado a sua ação, sobretudo a partir das multinacionais brasileiras na expansão imperialista sobre países da América Latina, desrespeitando sua soberania e depredando seus recursos. As mulheres tem em todo o mundo se colocado contra o

Page 150: Caderno de Textos

150

capitalismo imperialista e tem sido fundamental na construção da resistência. Não podemos deixar, que o governo brasileiro prossiga desta forma.

A Lei Maria da Penha proporcionou maior visibilidade à violência contra a mulher e facilitou o acesso ao direito. Houve avanço através da criação - ainda insuficiente - dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, e das alterações de diversos códigos legais. Mas, apesar do reconhecimento da lei, o acesso aos serviços depende ainda de medidas complementares como as casas abrigo, as delegacias da mulher, e de jurisprudência compatível com a norma. As garantias às mulheres ainda são limitadas e a proteção do estado inexistente ou insuficiente.

O governo também sinalizou a legalização do aborto como uma política de saúde necessária. Mas a condução da política pelo governo e as contradições do PT e da sua base de sustentação, além da pressão de agrupamentos religiosos, tem provocado reveses à luta do movimento feminista - que enfrenta igualmente uma forte resistência dos setores conservadores.

Outras políticas muito parciais como a extensão da licença maternidade – que não impõe obrigações para área pública entre outras limitações - e a ampliação dos direitos das domésticas - igualmente muito limitada pela exclusão de direitos comuns as trabalhadoras - foram criadas num ambiente de barganha institucionalizada. Ambas as leis tiveram pouca ou limitada eficácia. Porém, o conjunto dessas políticas foi constituído sem o aporte financeiro e operacional necessário a efetividade das ações. Especialmente os irrisórios recursos destinados aos programas e projetos e a submissão a uma estratégia de focalização das ações sociais - abandonando a necessária universalização dos direitos - são responsáveis pelo impacto restrito das políticas. Igualmente a não responsabilização dos entes federados e poderes da república na gestão dos planos de estado para atendimento das políticas sociais e a não garantia da universalidade dos serviços tornam ineficazes ou muito insuficientes essas políticas.

A opção pela assistência social exclusiva através do programa bolsa família é um obstáculo adicional. E a submissão à política macro econômica neoliberal é que impõe a escassez de recursos e o que estimula a barganha institucionalizada dos movimentos sociais que ascendem à esfera pública sem autonomia e de forma concorrente para obtenção de recursos públicos. Com a crise essa situação pode piorar ainda mais. É que o governo continua preocupado com a credibilidade junto à comunidade financeira e pra isso sustenta metas de superávit monstruosas, responsáveis por contingenciar bilhões de reais que, ano a ano não são destinados às políticas públicas. As políticas de enfrentamento às desigualdades de gênero e raça, por não possuírem vinculações e mínimos constitucionais assegurados, são as mais penalizadas por este artifício.

É por isso que precisamos ficar alerta à defesa dos direitos das mulheres a partir da luta anti-capitalista e feminista. Denunciar as ameaças do capital e a submissão dos governos aliados ao mesmo à vida das mulheres é uma tarefa nossa!

Page 151: Caderno de Textos

151

Texto 3: Aqui eu poderia cantar uma canção veemente

A universidade não está descolada da sociedade, estando, portanto,

permeada por valores machistas e, em determinados cursos, alguns elementos são mais aprofundados. É necessário, portanto, trabalhar para incluir temáticas que discutam a opressão de gênero na formação dos futuros profissionais e dedicar investimentos nas áreas de pesquisa para a produção de um conhecimento não sexista.

É preciso influir nos currículos escolares, nas estratégias pedagógicas e no material didático de forma a romper o ciclo de reprodução da dominação simbólica que repercute nas escolhas profissionais. Devem ser previstas formas de apoio aos núcleos, redes, publicações e eventos especializados nas temáticas que envolvam gênero, bem como o estímulo a criação e manutenção de grupos de trabalho e comissões nas sociedades científicas. As estratégias não podem se limitar ao estímulo do ingresso de mulheres nas carreiras científicas.

Mulher Também Produz Conhecimento!

Pensar o que é a produção de conhecimento em nossas universidades passa por perceber quem são os atores e atrizes sociais que o constroem, assim como toda a sociedade que o envolve. Por isso, outra temática que carece de aprofundamento por nós feministas é a área da produção científica.

A ciência moderna envolveu progressivamente um alto grau de formalização, com a fundação de instituições e o estabelecimento de normas que afastaram progressivamente as mulheres. A ciência se estruturou, então, em bases quase exclusivamente masculinas.

Se formos fazer um resgate histórico do reconhecimento das mulheres na produção da ciência, vamos perceber que foi necessária a recusa de Pierre Curie em receber o prêmio Nobel sozinho para que a comissão reconhecesse a contribuição de Marie, sua esposa, na área da radioatividade. Mais tarde, a contribuição essencial de Rosalind Franklin para a elucidação da estrutura do DNA foi completamente ignorada pela comissão do prêmio Nobel. Outros exemplos podem ser facilmente encontrados em qualquer livro bibliográfico sobre mulheres cientistas.

Apesar de a situação ter se modificado um tanto, o momento de hoje não é lá essas maravilhas. Apenas 3-4% do corpo docente universitário em qualquer área de ciência e tecnologia no Reino Unido é constituído por mulheres. O mesmo vale para os Conselhos de Pesquisa e demais órgãos governamentais. Quanto à participação feminina na produção do conhecimento, o primeiro ponto que deve ser considerado é a completa falta de preocupação dos órgãos oficiais que coordenam o sistema de Ciência, Tecnologia e Informação no Brasil em desvelar a presença feminina neste sistema. Como os/as estudiosos/as da problemática de

Page 152: Caderno de Textos

152

gênero não cansam de alertar, somente o olhar interessado de pesquisadores/as envolvidos/as com a questão podem encontrar a mulher onde as estatísticas insistem em tratar os diferentes como iguais.

Outro indicativo, que se soma à reduzida participação de mulheres em cargos administrativos das principais instituições de C&T do país, é a eleição delas para a Academia Brasileira de Ciências. Nas Engenharias e nas Ciências da Saúde não há nenhuma mulher entre os acadêmicos. No caso dessas áreas, bem como nas de Física e Matemática, a ausência de mulheres entre os acadêmicos reforça ainda mais o estereótipo masculino associado a elas. Mas, quando se observam os acadêmicos associados, uma posição certamente de menor prestígio, elas são mais representativas, contando cerca de 40% do total.

Outro elemento a se considerar é que no Brasil, durante o percurso acadêmico, a licença maternidade é um direito reconhecido legalmente, mas quando concedida durante o mestrado ou o doutorado não se desconta este período do tempo de titulação da aluna, o que tem impacto nos indicadores dos programas e resulta em mecanismos de pressão variados sobre as mulheres. Mas uma questão que é fundamental a ser enfrentada é a representação paritária das mulheres em comitês das agências de fomento e nas instâncias de decisão das instituições.

À primeira vista é bem possível achar que a universidade é um espaço onde o machismo é limitado. No entanto, basta olhar para os cartazes das chopadas, ou para as piadinhas em calouradas para percebermos que ainda temos muito a mudar.

Outro problema encontrado é preconceito e falta de reconhecimento encarado pelos cursos/profissões tidas como femininas. O preconceito dentro dos cursos por sua vez não é menor. São muitos os casos de constrangimentos em plena sala de aula por parte dos professores e colegas de sala enfrentados pelas meninas.

Além disso, os campi pouco iluminados podem ser palco para filmes que tem sim a mulher como protagonista, mas que estão mais para tragédias do que para qualquer outra coisa. Nesse segundo olhar, podemos perceber que a universidade continua a ter um papel central na difusão do preconceito. As mulheres, mesmo no espaço da universidade, continuam a ser vítimas de um modelo de sociedade sexista. No entanto, essa mesma universidade que hoje é voltada para as empresas, pode ser um pólo de resistência, de construção de consciência coletiva de luta e de avanço para o povo.

Texto 4: Por um movimento estudantil feminista

Localizamo-nos no movimento estudantil como uma ferramenta

fundamental para a construção de uma sociedade com igualdade real entre seus pares. Um espaço estratégico desta luta se dá no combate às opressões dentro do movimento estudantil, da Universidade e da nossa sociedade como um todo.

Page 153: Caderno de Textos

153

Mas para que o movimento estudantil consiga contribuir para a construção de uma sociedade e uma universidade e de um mundo onde a pobreza e a violência sexista não existam mais, é necessário transformá-lo.

Por um Movimento Estudantil Não Machista!

O espaço político, se configurando como um espaço público e de poder, historicamente é ocupado pelos homens e mantém às mulheres à margem de seus processos. Enquanto que o espaço das mulheres continua a ser a esfera privada e reprodutiva, no conjunto da sociedade, as relações entre homens e mulheres ainda se dão não só de forma diferenciada, mas hierarquizada.

No M. E., identificamos alguns fatores dessa perpetuação patriarcal:

O Espaço Masculino:

Pela lógica da reprodução dos processos explicitados acima, a participação feminina no movimento estudantil não se dá de fora espontânea. Trabalhar, portanto pra alterar a composição desse espaço através de cotas e incentivos às mulheres é de extrema importância no atual cenário.

A Figura d“O Dirigente”:

A figura d”O Dirigente” introduz um modelo de tocar política que separa “base” e “direção”, dificultando a prática política dos menos experientes. Além do fato de este ser quase sempre homem e baseado em aspectos mais difíceis às mulheres (falar em público, “comprar briga”, “bater na mesa”, valores dificilmente cultivados na educação das mesmas). Trabalhar pra construir múltiplos agentes que possam dar a possibilidade a nós de trabalhar de forma horizontal e menos personalista é fundamental para incentivar a participação das mulheres.

A Falta de Democracia como Valor Universal:

Defendemos um movimento estudantil baseado em espaços democráticos que dêem a todxs a possibilidade de participar, contribuir e formular a política. De um modo geral os espaços do ME ainda se constituem de modo diametralmente oposto a isso. Acabam se configurando blocos, que na melhor das hipóteses, combinam política entre si para disputar com outros blocos. A falta de democracia nos espaços do movimento e o “disputismo” sem fim desses espaços tem impacto grosseiro sobre o estímulo à participação do conjunto dos estudantes e em especial das mulheres.

Page 154: Caderno de Textos

154

Machismo e Privilégios:

Adotar um ponto de vista materialista é entender que os homens, enquanto membros de um grupo opressor usufruem de privilégios materiais e nãomateriais sobre as mulheres e que, mesmo participando do movimento estudantil, reproduzem a opressão. É fundamental manter um olhar vigilante sobre as posturas machistas dos homens no ME. Por isso, também devemos apostar na formação de espaços auto-organizados com o intuito de incentivar a prática e a formulação política das mulheres e a identificação e combate a posturas e políticas machistas.

É importante ressaltar que a construção da autonomia para as mulheres envolve a mudança dats relações de poder nos diversos espaços sociais, sendo necessário fazer um esforço não só para inserir as mulheres no espaço político, mas repensar a forma como toda a prática política é estruturada. Reafirmar a “nova cultura de movimento estudantil” é, portanto, não maquiar o debate, ou fazê-lo pela metade, no sentido de que não basta debater gênero como se estivesse descolado de todo o restante, mas incorporar no dia-a-dia do movimento, CAs, DCEs e entidades gerais (UNE, executivas, etc) a políticas das mulheres.

10 11

Texto 5: Mudar a sociedade, não a nossa cor

Para mudar a sociedade temos que ter como pauta de discussão e ação a

luta das mulheres, que por muitos anos não foi colocada como prioridade. Hoje temos o entendimento que o debate de mulheres negras vai além do debate de feminismo e da luta pela igualdade racial. Nós, negras, temos debates mais específicos por sofrermos dupla opressão: de genero e cor. Se gays, isso se torna ainda mais intenso.

Quando surgiram as primeiras movimentações de mulheres exigindo o direito ao trabalho a história das negras não foi relevada, mesmo sendo nós as mulheres que trabalhávamos desde a colonização do Brasil nas plantações e cozinhas – serviços extremamente exploratórios. Não esqueçamos que éramos as escravas sexuais dos senhores de engenho. Hoje ainda ocupamos os cargos para os quais se considera necessário o menor desenvolvimento intelectual, nos quais ocorre grande exploração em relação aos direitos das trabalhadoras e que resultam em várias doenças físicas pelo esforço repetitivo.

Estudos mostram que a população pobre brasileira é de maioria negra e muitxs acreditam que o racismo acabará com a melhoria da qualidade de vida. Isso não é real. Se não houver políticas afirmativas para a miscigenação da sociedade, o racismo, assim como o machismo, continuará ocorrendo de forma “natural”, como hoje. O debate de cotas sociais e raciais vai além dos muros da universidade. A luta pela igualdade da população deve ser feita em todos os espaços que ocupamos diariamente. Devemos exigir do governo medidas efetivas para a Saúde Publica, que se encontra em situação precária e é majoritariamente

Page 155: Caderno de Textos

155

utilizada por mulheres negras de baixa renda. É inaceitável que essas mulheres não tenham o atendimento necessário após abortar e morram, como também que as mulheres sofram agressões e que sejam em sua maioria negras.

A educação é ponto de partida para a superação de muitos dos problemas raciais e sexistas. Uma das ações deveria ser a inserção efetiva da cultura afro-descente na grade curricular das escolas junto com o entendimento da igualdade de gênero. Porém, isso não parece ser prioridade do governo. Mesmo os níveis de alfabetização e escolaridade das negras estão atrás dos índices das brancas sendo, respectivamente,78% e 76% das negras e 90% e 83% para brancas.

Onde vemos as mulheres negras dentro da Universidade? Não estamos nas reitoras, nem lecionando, nem fazendo pesquisas e poucas vezes estamos nas cadeiras das salas. Em maioria, somos as faxineiras e cozinheiras dos R.U.’s. Temos que levar para dentro dos centros acadêmicos, DCE’s, salas de aula e bares nosso debate, tentando aprofundar a discussão para que a sociedade capitalista e opressora veja que existimos e temos consciência de quem somos e da força que temos.

Texto 6: Por que nos auto-organizamos?

Apesar da constante reprodução do mito de igualdade entre os sexos - afinal, segundo esse discurso, hoje as mulheres votam, trabalham fora, têm independência financeira -, a realidade da opressão machista é duramente sentida por nós cotidianamente. Mas essa realidade muitas vezes precisa ser desvelada, pois a reiterada naturalização de práticas machistas faz com que muitas de nós acreditem no tal mito de igualdade e reproduzam a lógica pós-moderna de que “não há mais nada pelo que devemos lutar”.

O fato é que ainda há muito pelo que lutar e pra isso é preciso nos organizarmos. Ou melhor, é preciso nos auto-organizarmos. E isso porque enquanto sujeitos que são objeto da opressão machista, só nós, mulheres, podemos conduzir a luta por nossa emancipação - não devemos ansiar que os homens reconheçam a igualdade entre os gêneros como prática social, devemos ser protagonistas da nossa própria luta. É através da auto-organização que criaremos uma identidade política, ao nos percebermos enquanto mulheres e compreendermos o que significa esse ser mulher.

Por isso defendemos e incentivamos a criação de coletivos feministas e a realização de encontros de mulheres nas universidades. Esses espaços são extremamente importantes para a organização da luta feminista. Neles, a partir da troca de experiências, é possível reconhecer o que há de comum entre elas. Neles também realizamos nossa formação enquanto militantes feministas: inicialmente, nos identificando enquanto ser oprimido e explorado; em segundo lugar, compreendendo que essa opressão e essa exploração situam-se no interior das

Page 156: Caderno de Textos

156

relações sociais, de modo que a dominação também varia de acordo com questões étnico-raciais e questões de classe; e, por fim, compreendendo os mecanismos que sustentam essa dominação e que fazem com que ela se reproduza e se perpetue.

No espaço da universidade somos responsáveis por levantar e exigir respostas às demandas de mulheres, desde a criação de creches nas universidades até o fim dos trotes machistas. Cada uma de nós tem seu papel no combate ao machismo, cada uma de nós carrega a responsabilidade de lutar contra essa opressão que configura das mais diversas formas em diferentes lugares. Mas essa luta deve ser travada coletivamente, repartida ao lado de cada companheira e espraiada por todos os cantos. Então, mulheres, levantem-se, organizem-se!

Texto 7: Pelo direito de decidir

Estima-se que cerca de 1 milhão de abortos são feitos por ano no Brasil. A questão que se levanta é como proceder diante desse realidade? Ignora-la? Manter a legislação que pune a mulher que faz o aborto? Condenar as mulheres que recorrem ao aborto clandestino como uma solução viável diante de circunstancias adversas?

Deixar de assistir centenas de mulheres que tem complicações por realizarem abortos clandestinos? Desconsiderar a capacidade das mulheres decidirem de modo ético, sobre a interrupção da gravidez?

Trazer ao mundo um novo ser deve ser fruto de um processo de escolha e cultivo de amor, desejo e carinho. Assim sendo é pouco razoável exigir que as mulheres se tornem mães apenas porque são dotadas da capacidade física de gestar; é pouco razoável que as mulheres não sejam reconhecidas como agentes morais com capacidade de decidir eticamente sobre seu corpo e sua capacidade reprodutiva.

Ser mãe não é apenas algo que ocorre por 9 meses, mas algo que a acompanha por toda a vida. Por isso a decisão de ter ou não um filh@ deve ser da mulher.

A luta pela defesa do Estado Laico é uma luta pela cidadania das mulheres. São as cidadãs que devem decidir se devem ou não práticar o aborto, se essa é uma prática correta ou não, se está ou não de acordo com seus valores religiosos. O Estado deve garantir que suas cidadãs possam decidir tanto por serem mães quanto por não serem e pensar a concepção, a anticoncepção e o aborto como direito de cidadania e direitos humanos, reconhecendo a democracia para as mesmas.

Manter o aborto criminalizado somente colabora para a morte de milhares de mulheres, na sua maioria negras, pobres e jovens, todos os anos. São essas mulheres que não podem pagar os altos preços cobrados pelas Clinicas

Page 157: Caderno de Textos

157

Clandestinas e recorrem a outros métodos como agulhas de tricô, chás e espancamentos. Enquanto as clinicas lucram, o Estado gasta mais para reparar os danos à saúde das mulheres provocados por métodos de abortamento inseguros.

Mulheres sempre abortaram e continuarão abortando. Métodos contraceptivos não são infalíveis, pessoas não são máquinas, a violência contra a mulher é enorme e a situação de submissão e desigualdade nas relações sexuais também. Legalizar o aborto significa ter uma política de saúde responsável para com as mulheres e garantir educação sexual para prevenir, contraceptivos para não abortar e aborto seguro para não morrer. Significa eliminar o lucro abusivo das clinicas clandestinas e o medo e a solidão das mulheres que abortam.