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Caboclas de Aruanda: A Construção Narrativa do Transe “Caboclas de Aruanda”: The Narrative Construction of Trance Caboclas de Aruanda José Francisco Miguel Henriques Bairrão Departamento de Psicologia e Educação Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo USP campus Ribeirão Preto Av. Bandeirantes 3900 14040-901 Ribeirão Preto SP Tel: (0xx16)6023808 c. e.: [email protected]

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Laboratório de Etnopsicologia

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Caboclas de Aruanda: A Construção Narrativa do Transe

“Caboclas de Aruanda”: The Narrative Construction of Trance

Caboclas de Aruanda

José Francisco Miguel Henriques Bairrão

Departamento de Psicologia e Educação

Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto

Universidade de São Paulo

USP campus Ribeirão Preto

Av. Bandeirantes 3900

14040-901 Ribeirão Preto SP

Tel: (0xx16)6023808

c. e.: [email protected]

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Caboclas de Aruanda: A Construção Narrativa do Transe

“Caboclas de Aruanda”: The Narrative Construction of Trance

Caboclas de Aruanda

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Resumo: Esta pesquisa insere-se num projeto de averiguar se e em que medida o

sincretismo afro-brasileiro pode preservar memórias sociais e permitir o reconhecimento de

uma dimensão de enunciação coletiva. Relata-se o cruzamento das biografias de quatro

médiuns umbandistas entre si e com as auto-explicitações das suas “caboclas”, narradas em

transe. Registram-se processos de acolhimento e elaboração de experiências individuais e

sociais nos termos do imaginário (abordado como linguagem capaz de refletir vivências

coletivas e singulares profundas e de expressar nuances argumentativas sutis, para além da

consciência de cada colaborador). Os resultados apontam um elevado grau de coerência na

caracterização do panteão, evidenciam a sua porosidade às especificidades de quem o

corporifica e confirmam uma dimensão de reflexão e de cognição, concomitante às suas

construções narrativas. Sugerem a potencialidade deste procedimento como forma de

acesso psicológico a níveis profundos da vivência pessoal e social.

Palavras-chave: alteridade, imaginário, transe, narrativa, religião, umbanda, psicanálise,

psicologia social, etnopsicologia.

Abstract: This research is inserted in a project of ascertaining if and in what measure Afro-

Brazilian syncretism can preserve social memory and allow the recognition of a collective

enunciation dimension. It relates results of biographies of four spiritual mediums of

“umbanda” crossed one to the other and with self-explanation narrated in trance by their

“caboclas”. It registers processes of welcome and elaboration of individual and social

experiences in the terms of the imaginary (approached as a language able to reflect deep

experiences collective and singular and to express subtle arguments, besides the conscience

of each collaborator). The results point out a high degree of coherence in the pantheon

characterization, they evidence its porosity to specificities from whom that embodied it and

confirm a reflective and cognitive dimension, concomitant to its narrative constructions.

They suggest the potentiality of this procedure as a form of psychological access to deep

levels of personal and social experiences.

Key words: otherness, imaginary, trance, narrative, religion, umbanda, psychoanalysis,

social psychology, ethnopsychology.

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Caboclas de Aruanda: A Construção Narrativa do Transe

Alteridade e Transe

Imaginário e Enunciação

O patrimônio cultural popular consubstanciado no imaginário não se resume a

relíquia histórica nem a fatos sem sentido. Concretiza-se em tradições vivas, psiquicamente

intervenientes em dinâmicas pessoais e sociais, e comporta implicitamente concepções lato

senso psicológicas. No intuito de estabelecer relações não autoritárias entre o poder de

conhecer e os sujeitos conhecidos e como forma de reconhecimento do coletivo como

alteridade cognoscente (para além de mero objeto de estudo), cumpre averiguar se, e em

que medida, as suas “teorias” e “hipóteses” podem ser resgatadas e investigadas. Este artigo

apresenta resultados de uma pesquisa desenvolvida para responder a esta ordem de questões

e ilustra procedimentos úteis para tanto.

Procedeu-se a duas tarefas concomitantes: a descrição do imaginário como

linguagem (sem presumir que a isso se resuma) em que se cifram e refletem memórias

inconscientes e tradições coletivas de elevado interesse psicológico (cujo sentido se buscou

no contexto do seu acontecimento e não em chaves simbólicas extrínsecas ao campo) e

outra preocupada em ver como tais significações se encarnam em existências concretas e se

avivam na experiência de comunidades.

A primeira cumpriu-se pelo exame do uso do repertório musical ritual e pela análise

do vocabulário utilizado por sujeitos em transe. Prestou-se atenção ao modo de emprego

dos termos, às suas relações com o âmbito de significância pertinente à “personalidade”

sagrada entrevistada, e aos significados explicitados no contexto do cancioneiro e dos

depoimentos. Assumiu-se que o fato de provavelmente ninguém jamais ter tido acesso à

totalidade do sistema e às suas significações não implica que ele seja destituído de

coerência e apostou-se na presença de sentido no aparentemente sem significado.

A segunda etapa consistiu no cruzamento das auto-descrições narrativas das

personalidades do panteão pela boca de médiuns que não se conhecem entre si, comparando

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as suas versões e cotejando-as com aspectos biográficos e características psicológicas

(auto-referidas) das pessoas colaboradoras da pesquisa.

Neste artigo examinam-se os resultados obtidos com duas classes de caboclas

(Jupiras da Mata e Janaínas) e quatro médiuns (mulheres), selecionadas no intuito de

favorecer um enriquecimento das possibilidades de análise. A opção permite deixar em

suspenso a influência da variável gênero e manter uma suficiente distância (floresta e mar)

e relativa proximidade (epifanias “femininas”), que permita não mobilizar a totalidade

(vastíssima) do imaginário umbandista e lidar com diferenciações sutis, de tal modo que

melhor se aprecie o refinamento das possibilidades expressivas desta linguagem e se

averigúe o seu valor para a pesquisa psicológica e a prospecção em profundidade da

dimensão meditativa e reflexiva inerente ao sujeito social.

Procurou-se discernir os traços mais estruturais do imaginário umbandista

(acompanhando a literalidade, apontando inflexões, registrando coincidências e repetições),

bem como verificar como acontece e se ajusta à singularidade de cada médium. Como está

em pauta não apenas o modo como produz sentidos, mas também o que este espelha do

humano, foi imprescindível levar em conta aspectos biográficos das médiuns.

Comparando as auto-revelações das Jupiras e das Janaínas entre si e umas com as

outras, cada cabocla com a médium, e levando em conta a diversidade biográfica das

ultimas, foi possível constatar a consistência deste imaginário, examinar o papel das

variações individuais no delineamento da pessoa em transe e verificar aquelas alteridades

como formas inconscientes de reflexão, não apenas individual, mas também comunitária e

social.

As Jupiras da Mata apresentaram uma notável semelhança entre as suas narrativas, o

que sugere uma consistência do imaginário umbandista para alem da consciência e da

convivência imediata dos seus adeptos.

Como as suas médiuns partilham experiências de vida bastante similares e os

próprios colaboradores admitem que as suas vivencias têm reflexos na especificação

singular de cada tipo geral do panteão, para melhor poder verificar se e em que medida a

coerência do sistema imaginal umbandista pode ser relativamente independente das

características humanas em que se assenta, recorreu-se a duas Janaínas, cujas médiuns

dificilmente poderiam ser mais distintas quanto a este quesito.

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Não obstante, também neste caso foi possível estabelecer correlações que remetem à

definição de um tipo “aquático” de cabocla, referido mesmo quando a sua manifestação

superficialmente se distancia do perfil acordado em comum.

Estes resultados subsidiam a construção de hipóteses sobre a funcionalidade do

transe e contribuem para o desenvolvimento de uma descrição empírica e precisa dos

processos de semiose inerentes ao imaginário brasileiro, cujas linhas gerais são

fundamentais para o acompanhamento do argumento deste artigo e por isso se resumem em

seguida.

O corpo aberto à enunciação

Além de mera representação linear de fatos míticos repetidos no tempo presente, o

transe mobiliza uma diversidade de meios expressivos que justifica o termo poligrafia

(Price-Mars, 1991). Aviva formas significantes e fantasias verdadeiras e vívidas, cujas

divagações são reflexões. Refletem o sujeito. Pensam-no e infletem-no (refletem) sobre si.

Nesse movimento, acodem dimensões pré-discursivas, que eclodem na carne e espelham-se

antropomorficamente.

O imaginário anima-se, a imagem ganha vida, e como medeia especularmente a

relação entre sujeito e Outro, é ponto de encontro entre uma reflexão de si e a recepção de

sentidos que provêm deste. Há uma ida e vinda não apenas entre eu e Outro, outros “eus” e

“eu” como outro, mas também entre uma imagem do Outro como espelho de si (um “guia”)

e o Outro “total”, que a perpassa (cada personalidade do imaginário religioso só faz

plenamente sentido no contexto geral do panteão).

Os sentidos provenientes do Outro repercutem em múltiplas dimensões. No caso da

experiência do transe, se propõem imediatamente como religiosos, pertinentes ao sagrado.

Mas concomitantemente são reveladores de memórias históricas pessoais e coletivas, bem

como de hipóteses e fatos genealógicos e das suas interpretações. Desta forma, depõem

informações de elevado valor psicológico, sem prejuízo da sua dignidade hierológica.

O Outro narra-se e inclui, filia, constrói-se e constrói. Cada personagem do panteão,

dramatizada no transe, condensa um tipo de vivências “metafísicas” e fisiológicas.

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Antecipa-se em sinais prenhes de significado e se desdobra em epifanias antropomórficas,

que se relatam como biografias humanas, doando sentido a existências contemporâneas.

Estas figurações antropomórficas de ancestrais e da natureza estão comprometidas

com a verdade da experiência subjetiva e não necessariamente com uma suposta realidade

objetiva. Aliás, a suspensão do juízo quanto à realidade metafísica da possessão por

espíritos é uma questão de rigor metodológico. O humano revela-se na experiência

religiosa, mas a sua escuta psicanalítica, enquanto tal, não presume esgotá-la, nem tem

como assegurar ou refutar as teses de nenhuma religião.

De fato, nos processos de enunciação do transe não se vislumbram nenhuns sinais

da pretensão de transformar traços compositores de sentidos em supostas garantias de

fundamento exteriores à narrativa (embora haja uma inclusão pelo repertório semiótico da

linguagem do transe de dados da realidade entendidos como “sinais”). O Outro enuncia-se

pondo em ação significantes que são como que uma aquarela, sem nenhum compromisso

realista.

O significante presentifica o sujeito, não representa objetos, e por isso entidades do

panteão umbandista podem assimilar-se e assemelhar-se a personagens literárias.

Mas essa narrativa não pode ser entendida como redutível a palavras. Inclui o

inefável. Por exemplo, os elementos da narrativa mítica também são instrumentos de

trabalho ritual, e por sua vez a recomendação de procedimentos rituais tem um valor

enunciativo (expressa uma interpretação do Outro sobre a condição do consulente).

Linguagem total, o transe e o rito umbandistas interpelam todos os sentidos. A

sensorialidade é significativa e o culto tem o aspecto de uma dramatização poética - mais

ainda se se aceitar que a poesia é a ressonância do corpo (Lacan, 1978, 15). O seu efeito

não depende da captura intelectual de um seu significado qualquer.

Os significantes do transe, literalmente, corporificam-se nas existências dos sujeitos

em transe. Vinculam-se a um nível “sensorial significativo” que permite superar a

descontinuidade do simbólico. Em cada corpo nenhuma metáfora equivale a um significado

e os nomes são metonímias de processos insubstantivos. Os conceitos encarnam-se em

sensações e o mundo natural humaniza-se em sinais interpretados sinestesicamente.

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Ao serviço da expressão do inefável, nenhum sentido é descurado. Desdobram-se

em alusões ao inaudito, formulando-o acessível à elaboração pessoal e elaborando a

pessoalidade.

Dar ouvidos ao sujeito do transe, portanto, não significa descobrir o que o Outro é,

para além do que diz. O Outro não tem a natureza de objeto cognoscível, essencialmente se

mostrando ato enunciativo.

Cada uma das suas facetas concretiza-se em personagem dramática que, no transe,

toma conta da totalidade do ser, espelhando-o pluridimensionalmente numa intensidade e

num grau de envolvimento que transformam o adepto em “performer”. Incorporam-no ao

imaginário encenado ritualmente que, enquanto alteridade enunciativa, revela aquele a

quem interpela em múltiplas dimensões (além da religiosa, psicológicas, históricas, sociais,

estéticas, etc...).

O Outro mostra-se “apenas” sujeito. Enuncia-se numa linguagem não

representacional nem estritamente verbal. A forma radical e única alternativa para tentar

apreendê-lo, portanto, é fazer-se outro: incorporá-lo, corporificá-lo, ser por ele

compreendido (interpretado e incluído).

Este processo nada mais é que o transe, enunciação com o corpo inteiro, narrativa

dramatizada, performance verbal e não verbal em que, no lugar do eu, outro (se) enuncia na

forma de uma personagem recebida do contexto do imaginário e construída a partir de

fragmentos desse universo semiótico, modelados antropomorficamente, para poderem

alcançar e compreender a totalidade do sujeito que os incorpora.

Mas o transe bem sucedido é sempre a reiteração do fracasso da apreensão do

Outro, visto que, ao acontecer a “outrificação” do eu, especularmente é outrem que na sua

carne se faz sujeito. A tentativa de captura reflete-se em possessão.

Esta limitação estrutural, não obstante, não se resume a fiasco. Pelo transe supõe-se

a iniciativa humana como capaz de demover uma alteridade abstrata da sua indiferença

insensível, chamando-a a prestar atenção a apelos rituais e a sensibilizar-se em atuações

que, ao tornarem sensorialmente plausível a doação de sentido, ofertam uma implícita

garantia de ser ao sujeito interpelado (expressa numa multiplicidade de sentidos capaz de

atender a múltiplas necessidades e a muitas capacidades). Além ou independentemente da

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miserabilidade e finitude da existência humana, que mais se poderia esperar de uma

religião?

Embora não se alcance nenhuma garantia absoluta de ser (pois o Outro continua

incompreensível, transcende qualquer tentativa de captura), a polifonia e a riqueza plástica

das construções narrativas do transe e a sua tangibilidade sensível conferem-lhe, se não

maior plausibilidade, pelo menos uma persuasividade mais lúdica.

Uma vez que se pretenda dar-lhe ouvidos para perceber como reflete o humano,

para alcançar o que diz é imprescindível, previamente, decifrar como o diz. Importa

proceder a um esclarecimento, sumário e sintético, das principais características desta

linguagem, tal como foi possível resgatá-las.

Sumária caracterização de processos de semiose inerentes ao imaginário umbandista

Enunciado e enunciante em transe, o imaginário brasileiro e umbandista constitui-se

numa “realidade” semioticamente objetiva, dado o seu reconhecimento intersubjetivo,

inclusive por parte dos brasileiros que não lhe são afins. O outro do transe narra-se num

variado e maleável repertorio musical (“pontos cantados”) e em alucinoses socializadas,

integradoras de psiques individuais e de grupos sociais e mentalidades nacionais.

Também se expressa em gestos e atitudes. Narra-se com o corpo inteiro. Os seus

significantes não se prendem à transmissão objetiva de informações. Atingem diretamente a

esfera da corporeidade, desencadeando comoções estéticas e performances,

concomitantemente singulares e coletivas.

Também nunca se objetivam (por inteiro). São irredutíveis a quaisquer significados,

não obstante se suportem em referências literárias, étnicas, históricas, psíquicas, químicas,

botânicas, geográficas...

Em vez disso, cada vez que se ditam, contam historias a respeito do contexto social

que os persegue ou celebra.

Especificam-se em sinestesias, metonímias, alusões ao inefável e fusões entre o

sentido significado e o sentido sensorial, que tornam imperativa a sua expressão em

performances. Posturas corporais, gestos rituais, receitas mágicas e processos de iniciação

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integram atos de inscrição na carne do ser de sentidos que seriam traídos por meros

significados verbais.

Os nomes, em vez de designarem coisas ou substâncias, são parte de um contínuo

imaginal. Definem feixes de performances e de funções rituais, que podem operacionalizar-

se “lingüisticamente” como outro sujeito.

Portanto, outra característica a ser apontada, é a propensão desta linguagem para se

afigurar antropomorficamente (correlata da sua vocação para atingir a totalidade das esferas

de sentido e fundir significados em sensações). Por exemplo, Chapéu de Couro, Sete

Espadas, Cobra Coral, tanto são recortes (metonímias) do contexto imaginal transformados

em nomes próprios, como metáforas antropomorfizadas, literal e corporalmente inscritas no

cenário ritual (“chapéu de couro” como proteção e expertise de sertanejo na cabeça, a

“coral” na cinta com o significado do justo e da justiça como santo remédio, “sete espadas”

evocando o ferro como arma e defesa).

Logo, em vez de coisas, os “guias” podem ser entendidas como processos

semióticos. Funcionam como categorias lógicas de uma linguagem não exclusivamente

verbal, expressas estética e antropomorficamente.

Como este imaginário inclui e se entranha na “substância” da pessoa que dele

participa, cada uma destas categorias gerais pode “encarnar-se” em faceta do panteão

pessoal dos médiuns. Neste processo, o expressivo não se resume ao consciente, até porque

cada manifestação de sentido implica a totalidade do sistema, revelado a partir de um

ângulo correlato à especificidade do contexto humano em que se mostra.

Para poder acompanhá-lo empiricamente, abrindo uma via para uma escuta da

enunciação desse imaginário que não se restrinja à reconstrução consciente dos informantes

nem negue ou se atenha apenas a dimensões estritamente religiosas (recuperando

ressonâncias históricas, sociais e psicológicas), neste artigo dá-se ouvidos a algumas dessas

performances narrativas.

Fundamentalmente pelo arbitrário do encontro no campo, optou-se por uma seleção

que levou em conta a variável gênero, mulheres e o feminino mítico, consubstanciado em

antropomorfoses de águas e matas. Cada uma pode ser concebida como uma perspectiva de

olhar situada no próprio cenário da performance psíquica e social brasileira, empiricamente

precisado no imaginário umbandista. São ao mesmo tempo imagens que convidam a olhar e

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outros olhares que iluminam circunscrições próximas do mesmo contexto imaginal e

podem narrá-lo (e narrar-se) ao incorporarem-se em interpretações dos seus pontos de vista.

Para acolher e poder receber as suas narrativas como revelações de elevado interesse

psicológico foi necessária alguma reflexão epistemológica e uma subseqüente tomada de

decisões metodológicas.

Escuta Participante

Realidade do Imaginário e Inconsciente Transindividual

A desistência de conceber o transe e o imaginário umbandistas em termos de (falsa)

representação da realidade, mero repertório de desvarios e ilusão, permite levá-los a sério,

no intuito de desvendar como formas sociais e inconscientes de cognição neles se mostram

em ato e comportam verdade.

A extensão da noção de inconsciente para fora do âmbito psíquico, possibilitada

pela abordagem lacaniana da psicanálise, previne a presunção de traduzir os ditos do transe

numa rede de sentidos baseada numa teoria psicológica. O procedimento não poderia ser

este, em se tratando de não simplificar artificialmente um fenômeno religioso que se

apresenta com uma identidade própria, reduzindo-o a algo conveniente ao exercício de pré-

concepções. Tal conduta não faria jus ao estudo contemporâneo da relatividade da noção de

pessoa em diferentes culturas e, especialmente no caso do Brasil, à diversidade de

compreensão de pessoa dentro da nossa própria. Inviabilizaria uma interlocução real com o

universo umbandista.

A presente pesquisa é portanto uma aposta na possibilidade de ampliar o alcance da

psicanálise a esferas sociais, desde que se admita que o universo sígnico que lhe interessa e

se encarna nas psiques e existências humanas não é distinto do presente na sociedade e na

cultura. A psicanálise, no caso, tem menos a utilidade de uma doutrina do que oferece o

exemplo de uma prática útil, não apenas pela inflexão do inconsciente numa perspectiva

semiótica (embasada em hipótese lato senso lacaniana a respeito da sua natureza

transindividual e lingüística), mas também pela recusa em decidir quanto à natureza do

significado e não subordinação a uma pré-concepção de realidade.

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A psicanálise possibilita uma escuta participante despreocupada de garantias

metafísicas e por isso mesma mais próxima da seriedade do lúdico, por não se afetar nem

assustar com a animação de personagens fantásticos (às vezes sugestivamente pueris,

quando não evidentemente decalcados do universo ficcional e do maravilhoso infantil).

Para devidamente se avaliar o que está em jogo, é importante marcar a sua diferença

relativamente a procedimentos, psicológicos ou não, orientados para a descrição e

explicação de símbolos. A psicanálise suspende o juízo sobre a realidade para dar ouvidos

ao dito e deduzir o dicente a partir do enunciado. Permite recuar dos significados

substantivos dos símbolos até aos atos de produção de sentidos (enfocando as palavras mais

como ações do que como objetos sígnicos), que pressupõem um sujeito desconhecido de si

mesmo, interpretante e perpassado por uma alteridade enunciante.

A umbanda, a par da sua pertença ao universo imaginário brasileiro, mostra-se

especialmente interessante para este exercício pelo fato de nos seus ritos o Outro

literalmente se propor enunciante, tomando a palavra no evento do transe para se expressar

nos seus próprios termos. Também é uma forma de religiosidade excepcionalmente dócil a

este imaginário, talvez por a sua prática raramente se subordinar a controles rígidos e

jamais qualquer tentativa de codificação ter sido bem sucedida.

Interpelar sem Interpretar

O procedimento seguido não objetivou resultados quantitativos nem estatísticos.

Visou tão somente prospectar linhas de força do estabelecimento do imaginário como

linguagem e incentivar demonstrativamente a possibilidade de proceder ao levantamento

sistemático deste patrimônio cultural, tão consubstancial às complexas formas de

pessoalidade brasileira, de uma maneira que nunca poderá pretender-se exaustiva, em

função do seu cunho de língua viva (nas entrevistas foi possível apreciar como a ocasião da

pergunta desencadeava novas revelações).

Tratou-se de focar um caso exemplar de aplicação do método pretendido,

desvendando caminhos, sublinhando os desafios epistemológicos e marcando as vantagens

éticas de uma fusão entre uma pesquisa atenta ao sujeito coletivo e a possibilidade de

catalisar processos psicossociais (em vez de os colonizar com valores e cognições alheios).

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Importou menos apresentar resultados e conclusões “objetivas” do que demonstrar

nos relatos literais dos sujeitos entrevistados a presença empírica de uma função enunciante

e socialmente reflexiva. Isto é, provar que, em vez de agregado confuso de reminiscências

irracionais, o imaginário congrega de maneira rigorosa e precisa, num estilo e segundo uma

“gramática” que lhe são inerentes, memórias e reflexões sociais de inegável valor

adaptativo e utilidade pessoal para os seus herdeiros e fiéis depositários. O interesse foi

reconhecer o Outro enunciante, coletiva e historicamente proposto, não confundido com

sujeitos individuais empíricos.

Partiu-se da hipótese de o imaginário admitir ser enfocado como enunciação,

contrariando a tendência a não dar-lhe ouvidos, quando se o limita a tela projetiva de

explicações que o ignoram e silenciam. Pôde ser abordado como enunciante, porque este

não se pré-conceitua como um “eu” concebido como suporte de representações psíquicas

mais ou menos (mal) fundamentadas sobre coisas que lhe sejam exteriores (que no caso

destas “superstições”, obviamente, seriam falsas!), qual película subjetiva sobreposta aos

“fatos” da realidade.

Aqui não se anui com a sua redução a pretexto para a elaboração de teorias, mera

tela projetiva para o exercício do monopólio de poder saber, sem nem por isso desistir de

conhecê-lo. Dedica-se-lhe uma escuta que o reflete enquanto dimensão enunciante

(explicitada no transe), para além de fantasias sem validade objetiva. Renuncia-se a

concebê-lo como repertório de (falsas) representações seja lá do que for, tratando-o como

modo de ser próprio de uma objetividade social e semiótica ampla e coletivamente

reconhecida e admitida pela generalidade dos integrantes da cultura brasileira e

incompatível com a discriminação entre realidade e fantasia (sempre derivada de relações

de poder, habitualmente disfarçadas em sensatez neutra).

Uma vez que se suspendeu todo e qualquer juízo de realidade sobre o conteúdo das

narrativas do transe e as histórias do contexto social e imaginário que propiciam a sua

eclosão, os resultados apresentam-se, por isso, de certa forma, em estado “bruto”. O que

está em pauta é mostrar a organização e consistência desse imaginário, bem como a sua

adaptabilidade à singularidade das pessoas que o partilham, em vez de traduzi-lo em

significados. Relata-se a sua espontânea exposição, nos termos do próprio Outro

(interpretações, quando se arriscam, ancoram-se no contexto da enunciação imaginal).

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É o suficiente para que se encontrem ressonâncias de vivências pessoais e do que

academicamente se apresentaria como temática psicológica, muitas vezes apontadas e

comentadas pelos próprios entrevistados. Mas estas, sob pena de reducionismo, hão de ser

tratadas hipoteticamente, sem pressa e com muito cuidado, sempre em anuência com os

colaboradores da pesquisa. Nunca servirão de pretexto para desautorizar a validade de uma

narrativa pessoal sobre a própria experiência, evidente abuso de poder de certa retórica

“cientifica”, cujo principal feito consiste em subjugar o outro.

Colaboradoras

Contou-se com a colaboração de comunidades umbandistas e de praticantes do culto

na Grande São Paulo. Quando foi o caso de “receberem” em transe “entidades” que em

algum momento se tenham apresentado com o mesmo nome, estes não se conheciam entre

si.

As entrevistas, semi-abertas, envolveram quatro médiuns e entidades de três

terreiros (Tenda de Umbanda Soldados da Mata, Tenda de Umbanda Cacique Pele

Vermelha, e um terceiro que não autorizou a divulgação do nome). Foram registradas em

fitacassete ou minidisc e feitas no contexto de uma observação participante (mais

precisamente, escuta participante) das comunidades colaboradoras, no âmbito da qual se

procedeu ao registro de musicas rituais (uma parte importante do projeto mais amplo em

que este estudo se insere) e houve tempo para selecionar nos diversos terreiros as

intersecções que permitissem ângulos de investigação mais interessantes.

Aos humanos solicitaram-se relatos autobiográficos e descrições do encontro com o

culto e o desenvolvimento do panteão pessoal (especialmente sobre a sua cabocla). Prestou-

se atenção à existência de laços entre a sua genealogia e tipos de personalidades do

imaginário umbandista, bem como a quaisquer outros aspectos que pudessem ser

significativos do estabelecimento de consórcio entre o humano religioso e o sagrado

antropomórfico.

Aos “outros” solicitaram-se auto-explicitações, na forma de narrativas da sua

história e da descrição dos seus apetrechos e funções rituais. Foram igualmente convidados

a falar, da sua perspectiva, a respeito dos humanos em que se “assentam”.

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Em geral as suas histórias assemelham-se a poemas narrativos, construídos com

elementos do repertório imaginal umbandista que se lhes associam. A variabilidade

praticamente infinita de combinações possíveis permite muitas nuances e a definição de

contornos únicos.

Resistiu-se à tentação de supor-lhes uma ordem subjacente para além das falas

concretas e das deambulações dicentes dos depoentes, que pudesse ser independentemente

reconstituída pela manipulação do pesquisador. Renunciou-se a atribuir significados e

confiou-se ao tempo narrativo as suas revelações. A tarefa de revelar outros sentidos do

dito foi confiada às repetições e às enunciações, nos próprios termos do Outro.

Além da recusa em especular significados que não pudessem demonstrar-se no

contexto temporal da superfície narrativa, por o fenômeno claramente se mostrar como um

complexo semiótico compositor de muitas formas de expressão (que se remetem

continuamente umas às outras), igualmente se evitou separar drasticamente elementos

verbais de não verbais. A totalidade das formas de expressão (manifestas com o corpo

inteiro) foi admitida como um único processo de semiose, includente e compositor de

múltiplos recursos. Gestos, ações e prescrições mágicas (por exemplo) foram interpretados

como enunciações não verbais, cujo sentido deveria ser buscado e composto com a

narrativa verbal.

O tempo de convivência anterior foi fundamental para a consolidação de laços de

confiança e para a construção, por cada comunidade, de um sentido próprio para a presença

e as atividades do pesquisador.

Esta inclusão interpretativa, que de certo modo se poderia aproximar do conceito

psicanalítico de transferência, foi fundamental para o sucesso das entrevistas, muitas vezes

realizadas em sessões particulares especialmente marcadas para isso, ou durante rituais

regulares, mas com a criação de uma condição apropriada para o registro. Sempre foram

feitas de maneira aberta à assistência e colaboração de integrantes da comunidade.

A inclusão e re-interpretação da pesquisa (por parte das comunidades) em

parâmetros e no contexto semiótico da umbanda não pode ser entendida como

incompreensão. A par de fornecer preciosas pistas para a definição do lugar atribuído ao

observador no sistema (condição imprescindível para que a escuta atinja rigor), comprova o

universo umbandista como uma forma social de reflexão, com talentos cognitivos por vezes

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sem equivalentes na cultura acadêmica, os quais muitas vezes se demonstraram em

detalhes.

Por exemplo, certa vez um impedimento imprevisto para a realização de uma

entrevista num dos terreiros levou a telefonar para outro Centro (no intuito de não

desperdiçar o deslocamento para pesquisa de campo). Ficou-se sabendo que lá aconteceria

uma sessão equivalente. A mãe de santo, sem que nada tivesse sido combinado, contava

com a presença do pesquisador! A entrevista com a categoria do panteão prevista para

aquele dia foi feita com outro médium, neste segundo terreiro (Estrela do Mar), nessa

mesma noite. Outro acontecimento “estranho” ocorreu logo numa das primeiras giras

assistidas na Tenda Soldados da Mata. Um “cigano” desta casa contou aos seus membros

que alguém que dali participaria no estudo, que então ainda era novidade, seria uma cabocla

Jupira das Matas (sem que o pesquisador tivesse sido avisado e muito antes que o

transcorrer do trabalho de campo o confirmasse). Noutro episódio, na visita inicial ao

Terreiro Cacique Pele Vermelha, antes de o pesquisador ter tido a oportunidade de dizer ao

que vinha, a mãe de santo (incorporada por uma baiana) indagou-o a respeito do “livro” que

escreveria sobre umbanda (uma surpresa imediatamente aproveitada para introduzir o

pedido de consentimento).

Sejam meras coincidências, acasos, ou exercício de capacidades estranhas, estes

eventos permitem aos terreiros aproveitar a pesquisa para ratificar uma competência

específica e validar suas formas de saber, reforçando laços sociais e a confiança da

comunidade no que a une.

Por outro lado, “sinais” como estes revelaram-se muito úteis como fatores

preditores de consentimento e envolvimento profundo das comunidades com o transcurso

da pesquisa. Significaram o estabelecimento de uma relação de confiança e de

cumplicidade e permitiram um incipiente exercício do objetivo de estabelecer diálogo entre

o saber psicológico popular e a cultura acadêmica.

O estudo e a presença do pesquisador foram sempre interpretados como uma forma

de contribuir para corrigir distorções preconceituosas da imagem da umbanda, por meio do

puro e simples restabelecimento da verdade, ao dar ouvidos às formas da sua sacralidade e

indiretamente divulgando a sua profunda humanidade. Mesmo os terreiros mais renitentes

em confiar o seu culto iniciático a qualquer coisa que remota ou proximamente pudesse

Page 17: Caboclas de Aruanda- PDF

assimilar-se à tão mal vista curiosidade, embora com um visível esforço para contrariar

hábitos de precaução bastante enraizados, abriram as suas portas à pesquisa, pela suposição

do seu interesse para a religião, apenas solicitando a não divulgação do seu nome.

Para esta receptividade, tão importante para a pesquisa, deve ter contribuído o

compromisso de mantê-los a par dos resultados alcançados. Em todos os casos, quer com

maior entusiasmo quer com algum esforço para superar hábitos de reserva justificadamente

desenvolvidos em função de preconceitos e de perseguições históricas, o termo colaboração

define com precisão a participação dos umbandistas paulistas na pesquisa.

O seu consentimento para as atividades desenvolvidas não se deu nem se pediu

burocraticamente de uma vez por todas. Tratou-se sempre de um processo continuo e

transparente, aberto a rescisões e recombinações a qualquer momento.

Este estatuto franca e naturalmente aceite de participante observado, a par de ser

uma decorrência do reconhecimento do Outro como interpretante e da admissão de uma

característica inerente à cultura dos terreiros (a sua atenção dedicada e vigilância solícita

sobre aqueles que os procuram), certamente contribuiu para a consolidação de uma relação

de confiança, muito acima das mais otimistas expectativas iniciais.

Caboclas de Aruanda

Jupiras da Mata

Relatam-se e refletem-se, primeiramente, os resultados de entrevistas com caboclas

Jupiras da Mata e com as suas médiuns. Mostraram um surpreendente grau de

homogeneidade.

Há espantosas coincidências. No aspecto físico, no caráter, na narrativa mítica e nos

vínculos com o panteão.

As duas médiuns “vêm” e “conversam” com as suas Caboclas e, se houver dúvidas

quando ao cunho não patológico nem ilusório destas “percepções”, vale a pena reiterar que

o panteão umbandista tem uma realidade atestada social e semioticamente na cultura e no

imaginário brasileiros, os quais reconhecem a sua significância, embora freqüentemente

divirjam sobre o seu significado.

Page 18: Caboclas de Aruanda- PDF

As duas Jupiras se descrevem imaginalmente: índias jovens, na casa dos trinta anos.

Altas e magras. Cabelo comprido. Uma delas é parecida com a médium. A outra relata que

a sua médium é mais gorda e que corta os cabelos curtos, diferenciando-se de si. Logo, as

duas são muito parecidas, correspondendo aproximadamente à iconografia relativa à índia

na umbanda.

As suas imagens corresponderiam factualmente ao aspecto das índias que numa vida

terrena teriam sido (não obstante as duas fazerem questão de dizer que espíritos que não

foram índias poderiam incorporar com o nome de Jupira da Mata, desde que na sua vida

terrena tivessem tido os mesmos traços de caráter que as notabilizam).

Vestem-se, porém, de modos diferentes. Uma “deixa-se ver” pela médium com uma

espécie de túnica, a outra “usa” saiote e braceletes de penas. Os cabelos compridos da

primeira são amarrados por uma tiara de palmeira. A segunda usa uma pena verde. Fazem-

se acompanhar de arco e flecha. As indumentárias com que se mostram, admitem as

médiuns, têm significado. Além de uma forma de serem reconhecidas, transmitem-lhes

mensagens (humildade, por exemplo).

A par da semelhança física (as duas médiuns são morenas), maior num caso do que

no outro, nem as caboclas nem as suas médiuns encontram maiores semelhanças entre si,

em termos de gostos ou hábitos. As duas médiuns não gostam ou não têm tempo para

trabalhar com plantas, ao contrário das entidades. O que as liga é, principalmente, o caráter.

As Jupiras têm um compromisso com o bem e a retidão. Têm um gênio forte. São

determinadas, firmes e exigentes (não obstante transmitirem uma impressão de serenidade).

Personalidades fortes e rigorosas, gostam do que é certo e nunca deixam de fazer algo que

considerem necessário, nem guardam para si algo que avaliem que deva ser dito, não

temendo as conseqüências. Esta característica da sua personalidade é corroborada por

informações de umbandistas experientes, obtidas fora do contexto das entrevistas, que as

descrevem como caboclas que, em geral, se apresentam numa postura ereta (retas!).

Entre tantas outras coincidências, as duas caboclas também solicitaram,

espontaneamente, que divulgasse que a sua natureza é promover o bem, pedindo para que

contrariasse a idéia deturpada do senso comum sobre a religião umbandista, mal vista como

prática de malefícios.

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Valorizam muito a vida familiar e gostam de cuidar de crianças. Mas ao contrário de

outras mulheres da sua época, eram guerreiras, acompanhado os homens nas lides da

guerra. As médiuns são igualmente mulheres jovens, casadas, mães, e com um cotidiano

que conjuga a vida familiar e o trabalho.

Um aspecto importante do caráter das médiuns, valorizado pela entidade, prende-se

à certeza de que estas não mostrariam tibieza na sua decisão de seguir a umbanda.

Ambas viveram em aldeias cercadas por florestas, à beira de rios (uma numa ilha

fluvial). As águas dos rios das suas aldeias têm águas calmas, serenas. Um dos rios tinha

muitas pedras. A mata à sua volta é semicerrada. Podem ver o Sol, a Lua e estrelas. Nos

seus pontos riscados aparecem os mesmos elementos e flechas, as quais ambas associam ao

fato de terem sido guerreiras (ao contrário da maior parte das mulheres da tribo). Morreram

jovens, em combate (pelo menos uma delas foi flechada). Tinham filhos e uma profunda

ligação com a família.

Os maridos míticos das entidades são caboclos de Oxossi (epifanias florestais

antropomórficas masculinas). Num caso, o Caboclo Pena Verde, que encontrou Jupira da

Mata na selva, na qual em criança havia sido abandonada (provável forma de expressar

uma origem misteriosa) e a levou para a sua tribo; no outro, o Caboclo Cipó. As duas

médiuns referem ter conhecido em algum momento pessoas que incorporavam estas

entidades em terreiros em que “trabalharam”. Aliás, além dos maridos, é comum

encontrarem nos terreiros em que atuam outros espíritos com os quais conviveram.

Para uma delas, o nome Jupira reitera o significado de pertença à mata, no sentido

de ser da tribo da Mata, por não ter tribo, ter sido “abandonada” na selva, ter como lar

originário o mistério da floresta (antípoda, no vocabulário umbandista, do humanamente

familiar e das suas “aldeias”). Segundo a outra, Jupira significa “erva forte”. Não há

coincidência, como dificilmente poderia haver (até por estar em pauta o praticamente

inefável). Mas perdura um eco cerrado do cenário vegetal, num caso colorido pelo mistério

e no outro pela intensidade (duas qualidades que, habitualmente, o imaginário umbandista

lhe associa).

Descrevem-se como entidades da mata, filhas de Oxossi, mas as duas também

apontam a forte influência de Oxum (água doce, rios). Por serem mulheres, igualmente se

reportam à suprema epifania feminina da floresta (na umbanda), a Cabocla Jurema. O ponto

Page 20: Caboclas de Aruanda- PDF

cantado de uma delas (recolhido na Tenda de Umbanda Soldados da Mata e lá entoado para

uma das nossas ilustres entrevistadas) revela a Jupira da Mata como Jurema menina: “Ela é

cabocla, ela mora na mata. Mas ela vem, trazendo sua flecha, trazendo sua cobra. Ela é

cabocla, ela mora na mata. É Jurema menina, é Jupira da Mata. É Jurema menina, é

Jupira da Mata”.

As suas médiuns também têm em comum uma outra entidade, o Exu Tranca-Ruas,

personagem do panteão que poderia ter algum vínculo com o seu lado guerreiro, pela sua

ligação habitual com Ogum.

Quando uma das médiuns vai incorporar, imagina-se numa belíssima cachoeira. A

outra imagina uma mata cerrada, mas é algo muito rápido, pois a cabocla chega correndo

por trás, “atropelando-a” (o que explica pelo fato de receber um Caboclo Paraguaçu, com o

qual a Jupira disputa espaço).

Nos dois casos, em todos os eventos, mostra-se sempre a presença da floresta e da

água, bem como de uma vivência comunitária expressa pela referência à família e à aldeia.

As duas revelam que, não obstante terem tido existências nas quais foram pessoas

boas, o fato de na vida terem sido guerreiras, mesmo que motivado por causas nobres como

a defesa da família e da sua comunidade, teve o efeito colateral de causar dor. Voltam como

caboclas para reparar o sofrimento que provocaram. Aqui o relato mostra, revela, uma

concepção de bem e um notável senso de rigor ético.

As suas narrativas, os processos de semiose do transe, parecem apresentar uma

dupla face. Por um lado, espelham a humanidade dos interlocutores e expõem-nas

poeticamente, como personagens “figuradoras” da alteridade; por outro, condensam

conhecimentos e regras práticas para a ação ritual e a conduta de vida dos fiéis. Partindo do

princípio de que o panteão umbandista espelha e dá sentido a vivências profundas da

humanidade contemporânea, nada mais natural que ao mesmo tempo revele o ser outro e

oriente pragmaticamente o que deve ser feito para agir corretamente (tanto do ponto de

vista dos usos rituais e mágicos, como fornecendo orientação religiosa e ética, e

proporcionando pistas para a decifração da polissemia dos relatos).

De fato, não obstante sagradas e antigas, são muito modernas estas Jupiras.

Mulheres jovens, mães e lutadoras. Ao contarem as suas histórias também revelam os seus

“cavalos”, as suas comunidades e valores, bem como ideais propostos aos praticantes da

Page 21: Caboclas de Aruanda- PDF

religião. Aspectos psicológicos e sociais das médiuns, do grupo, e atitudes para com o

mundo, são expressos.

Mais do que uma representação do feminino, a imagem da Jupira revelada pelas

próprias presentifica e literalmente se incorpora num sentido do feminino, ideal e atual,

vivenciado por mulheres contemporâneas. Benévola e benéfica, doa significados de

“mulher” e múltiplos bens, simbólicos e reais, associados aos cuidados maternos. Tem um

efeito vitalizante sobre as suas filhas e sobre as comunidades junto às quais interage.

A cabocla estabelece uma salutar ponte entre o ambiente, corpos vivos, identidades

de gênero e memórias de opressão (considerações ecológicas sobre a proteção à natureza e

cuidados com a saúde são atribuições habituais de caboclos na religião umbandista).

Decifrá-la é afrontar-se com a verdade e, se o contacto com esta pode ser doloroso, é

exatamente por ser necessário e “curador”.

A repetição, importância e persistência de alguns temas permitem a sua decifração,

não a partir do estudo comparativo e sistemático dos significados de símbolos, mas pela

revelação do seu sentido que se depreende pela sua ocorrência no contexto enunciativo do

rito e do transe.

As referências à mata e à água são nucleares. Decifrá-las implica em cotejar

depoimentos como estes com o resultado de outras análises, específicas sobre o feminino

no imaginário umbandista, e outras dedicadas ao significado da mata (Oxossi), para cuja

elaboração é conveniente incluir depoimentos de epifanias masculinas. Mas a título de

ilustração do método, vamos analisar o que com estas falas, preliminarmente, se pode

apreender do emprego dos termos “aldeia” e “terra”.

No caso dos caboclos, a palavra “aldeia” reporta-se tanto a vivências comunitárias e

a um ordenamento das dificuldades de convivência familiar e conflitos sociais, como

também é um modo de dar lugar a uma filiação e ao retorno dignificado de ancestrais

indígenas, historicamente maltratados, que se tentaram eliminar psicológica e

simbolicamente das biografias de nacionais e da história do país. O desrecalcamento de

uma filiação mal vista, uma vez benquisto, também permite organizar, re-atar e expressar

elos atuais.

Page 22: Caboclas de Aruanda- PDF

Talvez por isso, estas e todas as entidades do panteão tratam os seus médiuns e

consulentes como “filhos”. A família é a família biológica e social, mas também simbólica

e “espiritual” (família de santo). O terreiro é uma aldeia e a aldeia é uma grande família.

Um colaborador de um terceiro terreiro confirma esta noção de aldeia, explicada por

outra cabocla (incorporada numa mãe de santo): os caboclos que viveram juntos trazem os

médiuns para a sua aldeia. A aldeia tanto é o lugar espiritual de proveniência dos caboclos,

como é o terreiro. Quando o médium não fica, é porque o caboclo foi um visitante, passou

na aldeia, mas não era de lá. Era de outra terra, o que também significa que era de outro

terreiro.

Vir em terra também é incorporar. Estar em terra é estar num corpo. O terreiro é a

parte material de uma existência mais ampla, que implica a vivência comunitária da aldeia

(entre encarnados e desencarnados), mas não se resume a ela.

Este caso confirma que os signos umbandistas têm um valor performativo. Mais do

que um conteúdo proposicional fixo (para desespero dos umbandistas que tentam

“codificar” a religião), as sentenças umbandistas são polissêmicas e dispositores de ações.

Ordenam ações do sujeito, mais do que objetivam informações. São formas poéticas de

relatar e criar vínculos.

Compreendê-las tal qual elas se propõem abre perspectivas para uma escuta

psicológica não reducionista, que possa auxiliar as comunidades e o panteão a cumprirem a

sua vocação de sanear mazelas psíquicas e sociais. Uma condição epistemológica essencial

para isso é contribuir para que a psicanálise se desvencilhe do recalque e depreciação do

imaginal na cultura ocidental, com a sua propensão para associar alucinoses, mesmo que

coletivas, a patologias mentais. “Alucinações” lúcidas, estas Jupiras e as suas médiuns

alertam para a inconveniência de resumir a disparate o imaginário.

Resultados tão impressionantes quanto os das Jupiras obter-se-ão em todos os

casos? Mesmo admitindo o imaginário como monumento eminente dos processos de

imaginação e de reflexão popular, condensador de memórias e sistematizador de vivências

e de orientações de vida ancestralmente cifradas, reproduzir-se-ão tamanhas semelhanças,

da mesma forma, sempre? Em que medida dependerão da diversidade de experiências e de

momentos de vida dos médiuns?

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Guerreira e Sereia Janaínas

É sabido que nem todos os tipos do panteão umbandista estão igualmente bem

elaborados e que novos surgem, outros proliferam, alguns podem cair em desuso e muitos

se transformam (reinterpretam-se). Tem-se aventado a hipótese de esta dinâmica responder

a necessidades de elaboração da experiência social e ao estabelecimento de sentidos e laços

coletivos.

Esta pesquisa debruça-se sobre uma questão simétrica, igualmente importante:

averiguar em que medida, mesmo tipos tradicionais e bem estabelecidos, se adaptam a

vivências humanas mais diferenciadas. Busca-se encontrar pistas sobre quais aspectos das

suas delimitações (e de que maneiras) mantêm-se constantes, independentemente da

consciência e da elaboração pessoal dos sujeitos empíricos que se lhes devotam. Como a

maior heterogeneidade humana afetará a expressão do Outro?

Para responder a esta ordem de questões entrevistaram-se Janaínas (igualmente

duas), classe de personagens do panteão bastante tradicional, com traços social e

imaginalmente bem definidos, facilmente reconhecíveis, “recebidas” por médiuns que

apresentam experiências de vida razoavelmente diversas.

Tal como os “cavalos” das Jupiras, igualmente são mulheres que freqüentam

terreiros da Grande São Paulo e não se conhecem. As duas provêm de famílias

umbandistas. Uma é neta de avó praticante da religião, que uma vez falecida “retornou”

como Preta Velha (Vóvó Elza do Cruzeiro), e a outra é filha e irmã carnal de mães de santo.

Nos dois casos esta origem se mescla com traços de pertença a rituais de “mesa branca” e,

além destes parentes mais próximos, outros integrantes das famílias (remotamente

católicas) são ou foram espíritas (em sentido lato).

Para ambas um lado da família tem uma origem européia próxima (portugueses num

caso, espanhóis no outro) e o outro é uma “mistura”, que inclui etnias e categorias

profissionais sacramentadas.

As suas experiências com a umbanda vêm do berço. Tal como no caso das Jupiras,

inquestionavelmente “recebem” entidades muito tradicionais e são amplamente

reconhecidas como médiuns portentosas pelas suas comunidades.

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Embora muito afetivas e evidenciando um trato social delicado e cuidadoso,

relativamente a si mesmas, descrevem-se e são descritas pelas suas caboclas como pessoas

emocionalmente pouco fluidas, até difíceis. Uma é teimosa, geniosa, e a outra fechada e

desconfiada.

Em comum também se distinguem das religiosas associadas às Jupiras pela falta de

experiência matrimonial. Uma é mulher madura e independente, que reside com o pai

viúvo, e a outra uma jovem adulta que cultiva e preserva traços de menina e mora com os

pais.

Significativamente, contrastivamente com as Jupiras, as histórias das suas caboclas

não conferem posição de destaque a hierogamias. Ao contrário daquelas, que reportam

relações familiares míticas de afinidade com outros caboclos e que reconhecem

companheiros nos seus terreiros, as duas Janaínas mantêm-se estritamente neutras quanto a

este ponto. Trabalham indiferentemente com todos os “guias”. Uma aprendeu “no espaço”

a não estabelecer diferenciações e a outra sequer teve oportunidade de estabelecê-las em

terra.

A primeira teria tido um marido comum, cuja maior qualidade era ser trabalhador e

fiel, a outra sequer refere a questão, até por não fazer parte da sua história ter encarnado.

Uma foi índia guerreira, habitou uma aldeia, teve existência corporal e vida familiar

e material. A outra, menina impúbere, nunca teve corpo. Não é da terra. É uma sereia.

Esta drástica distinção, que aproxima a concretude da existência à imagem da terra e

à vida sexual, assemelha a que foi índia às Jupiras. Foi casada, teve dois filhos, viveu numa

aldeia envolta em mata à beira de um rio. Era guerreira. Morreu em luta, flechada na

garganta, ao meio dia. Morou em Mato Grosso, longe do mar.

Existiu na terra. Foi mãe e esposa, mas não aparece nenhuma história romântica,

como as que vinculam as Jupiras aos seus companheiros. Sequer menciona o nome do seu

parceiro, que aparentemente não ocupa nenhuma posição no panteão. O marido teria sido

um homem comum. Aparece em posição de maior destaque o sogro, com quem diz ter

aprendido a trabalhar com ervas. A sua médium é uma pessoa madura e mulher adulta, tal

como as das Jupiras.

Decididamente, a outra Janaína não é da terra. É descrita pela médium como um

encantado, algo que afirma não compreender muito bem, mas “deve ser muito puro, muito

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sagrado, muito misterioso”. “Uma coisa mágica, sobrenatural, não definida, sem uma

forma”. Acresce que o encantado “tem uma relação com o sonho”. “Não tem relação com

as formas humanas”. A sua forma depende do momento. Relaciona-se à natureza. É tão

diáfana, que é “menos que nada. Uma fantasia” (sic)...

A cabocla confirma. É encantada. Nunca foi ser humano. “Não vivi como vocês

vivem”. Este estatuto reflete-se nas demandas dos seus filhos. Não a consultam sobre

sobrevivência material. A sua especialidade são os sentimentos (aponta o coração) e a

cabeça (idéias límpidas, pensamentos claros).

A médium nunca a viu imaginalmente, mas tem uma idéia do seu aspecto por uma

vidente ligada à comunidade lho ter relatado. “Vê-se” como uma menina com uns 11 ou 12

anos (“brinca, mas faz uns trabalhinhos”, conta-nos a própria cabocla).

Sublinhe-se o aparente paradoxo: não obstante informe e insubsistente, de tão

sagrada e pura, e jamais tendo tomado existência (vivido na terra, tido corpo), a sua função

e presença são claramente reconhecidas numa feição humana. A vidente a viu menina, com

longos cabelos até ao chão, vestida com uma espécie de rede de pescador, cheia de

conchinhas e algas. A médium usa os mesmos cabelos longos (traço comum às quatro

caboclas) e quando a desincorpora precisa vasculhá-los para retirar tudo o que ela lá coloca.

“Trabalha” com os cabelos.

Ratifica-se o cunho de elaboração comunitária dos tipos do panteão (foi “vista” por

alguém do grupo) e confirma-se a antropomorfose como forma de interface entre Outro e

“eu”. A imagem humana dá forma à apreensão do Outro e permite o reconhecimento de si

na alteridade.

Mesmo a Janaína que se descreve humana refere que, “no espaço”, apenas se

proporciona como uma luz (ocorre como acontecimento oferecido à visão). Só quando se

aproxima da superfície da terra assume a forma que teria tido um dia.

Antropomorfoses são formas dos “espíritos” se comunicarem em muitos sentidos.

As suas vestes e formas, adereços e cenários, são significantes do colorido específico da sua

ação. A sua revelação, por um lado, é construção coletiva (a menina “foi vista” carregada

de signos da sua pertença às águas, salgadas: conchas, rede de pescador, algas e pérolas...).

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O cunho essencialmente lingüístico e não realista destas imagens confirma-se por as

“entidades” poderem mostrar-se por outros sinais que as exprimem e se enredam nas suas

significações psicológicas e religiosas.

A sereia pode assinalar a sua presença na forma de uma borboleta branca com as

extremidades das asas levemente cinzas; identificar-se a um cenário de mar tranqüilo em

que brincam golfinhos em dia solar; pode até espelhar-se epifanicamente em corpo e ser

humano de verdade, como aconteceu uma vez que havia anunciado à médium que se

“mostraria” a ela (que morre de medo de “visões”) e o fez atendendo largo tempo uma

menininha com a mesma idade, morena e de cabelos longos (como ela), que a médium em

seguida veio a saber chamar-se Janaína. “Era” ela, revelando-se em forma humana, com o

cuidado de mostrar-se sem a assustar.

Já a guerreira assinala-se basicamente por uma luz amarela, que a médium “vê”

meio por trás e de lado, e que reconhece como o colorido da sua “roupa”. Como sabe que

muitas vezes a médium “não a ouve”, revela na entrevista que muitas vezes lhe passa

“recados” ditando-os com outras feições de mulher, imprevistas pelo “cavalo”. Desta

forma, como estranha, prende a sua atenção e obtém mais sucesso. Logo, pode “mostrar-se”

a seu bel-prazer e o faz levando em conta um cálculo de interlocução com a sua “filha”.

Humanas ou não, as formas deste imaginário assumem uma plasticidade poética

altamente significativa, não realista, não se presumindo cópias de referentes ilusórios ou

metafísicos. Formam uma linguagem sensível, que atinge níveis não representacionais e

pode surpreender pelo talento para se adaptar a cada humano, sem perder de vista a

estrutura profunda do que significam.

A índia guerreira faz questão de dizer que não é como as Janaínas do mar, “cujas

águas levam tudo o que é pesado”. Descreve exatamente nos mesmos termos da sereia o

tipo ao qual não corresponde (o socialmente mais consensual). Não é do mar, mas da mata

e dos rios.

Vem como Janaína para desenvolver, tanto em si como na médium, as qualidades de

leveza e fluidez, amorosidade e pureza, que se lhes associam. Fá-lo a pedido do Caboclo

Pele Vermelha, chefe da aldeia.

Faz questão de esclarecer que “veio” como Janaína porque fez um acordo com ele,

que queria esta qualidade de “energia” no “quadrado”. Vem aprendendo a ser Janaína.

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Pele Vermelha, chefe da coroa da sua mãe carnal e de santo (e portanto “cacique”

do terreiro, que leva o seu nome), era da sua tribo. Foi o pai espiritual da sua mãe carnal

que anunciou à médium a vinda de uma Janaína, entidade tradicionalmente associada às

águas do mar e a sublime feminilidade. Quando esta veio, produziu-se um enigma, pois

quem chega é uma cabocla de terra firme, de uma aldeia muito parecida com as das Jupiras,

mulher guerreira e terrestre, como elas. Mas a aldeia (mística, familiar, ou ambas?)

precisava da “energia” de Janaína.

A médium, na entrevista, relata um pouco da história da sua pomba gira. Viveu no

Egito e, rejeitada pelo progenitor, foi criada num templo. Mais tarde, este soube que

sobrevivera. Encontraram-se e o seu ódio era tanto que o matou. Sublinha que hoje isso já

está resolvido.

A pomba gira da mais jovem mostra-se como uma mulher adulta, enorme e

“escura”.

Possíveis correlações não devem precipitar-se em explicações. O procedimento aqui

seguido é incompatível com diagnósticos psíquicos ou conotações morais. A relativa

indiferença matrimonial das Janaínas, por exemplo, não poderia alçar-se nem a castidade

virtuosa, nem a sublimação espiritualizante ou desapego de vínculos humanos. Nem pelo

contrário assinalar-se como sinal de frieza, tibieza incapacitante para a intensidade da vida,

inacessibilidade, ou fracasso em estabelecer laços e preservá-los. Em circunstâncias e

momentos diversos, talvez possa significar-se destes diversos modos e de outros, mas fixá-

los (do ponto de vista do presente procedimento), resumir-se-ia a um depoimento pessoal

de quem “vê” essas significações. A profunda natureza especular da alteridade permite-as e

a tantas outras. A função de estabelecê-las e de revogá-las não é de quem escuta, mas de

quem diz. Produzir diagnósticos morais ou ratificar moralidades psicodiagnósticas vai na

direção contrária ao procedimento de escuta e de reconhecimento do Outro como

enunciante.

Cada personagem do panteão convida, é esboço, ou pretexta uma construção

particular em transe. Dirige-a e banha de sentido universal e comunitário vivências

particulares. Mas decidir o que vem e o que vai do eu ao Outro implicaria em parar de

ouvir, para tomar partido pela objetivação e amordaçamento. São as próprias pessoas e

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comunidades colaboradoras que podem descobrir e contar-se sentidos guardados das suas

experiências e aguardarem os momentos propícios às suas revelações.

Na realidade, o estabelecimento de correlações entre si e os “guias” é uma iniciativa

comum às médiuns e acontece também da parte das caboclas. Nada surpreendente, se

conviermos que é inerente à experiência religiosa apresentar-se (também) como revelação

de quem a vivencia (Corbin, 1977ab; Bairrão, 2001). É isso que permite tomá-la como

plataforma propícia à tentativa de discernir como a diversidade humana refrata os sentidos

coletivos que nela se espelham.

As suas variações permitem alcançar tanto um entendimento da sutileza psíquica em

escala social, como verificar os efeitos de filigrana do social e místico no psiquismo

individual.

Talvez o panteão pessoal possa ser um fator revelador de dinâmicas psicológicas,

mas não se resume a isso. Não obstante entranhadas nas suas médiuns, as “entidades” não

se confundem com elas. Assemelham-se, mas não se confundem. Num imaginário tão rico,

independendentemente da sua idade concreta, mesmo um velho encontrará uma criança à

sua medida e os ainda meninos conseguirão espelhar-se em personagens adultas que, cedo

ou tarde, poderão “manifestar-se” e “desenvolver-se” nas suas vidas.

A cabocla mais velha, por exemplo, está “aprendendo”. Tem dificuldade para

atender os que a consultam com questões de amor, pois ainda não corresponde

completamente ao tipo das águas. Mas não se furta a esse esforço quando é solicitada,

porque “quem tem mãe, tem mãe” e essas missões contribuem para que atinja a sua

finalidade de aprimorar-se Janaína.

Sente-se mais à vontade tratando de mágoas e resolvendo contendas. É muito

enérgica e determinada, o que não corresponde exatamente ao tipo teimoso da médium,

mas certamente põe as duas numa classe que não é a da suavidade e brandura típicas da

feminilidade aquática (segundo a umbanda).

Em certo aspecto, é imaginal e psiquicamente muito parecida com a sua médium.

Cabelos lisos e longos, corpo forte (“não muito magra”). Veste uma saia e blusa simples,

amarelas, e é o surgimento desta luz que permite à médium reconhecer a sua presença

(mostra-se nesta cor, que ressalta distingui-la das Janaínas azuis, marítimas).

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Explica o amarelo como uma referência ao Sol. Enquanto viveu não se banhava a

não ser com água que tivesse recebido a incidência de luz solar e as ervas que ritualmente

usa devem ter estado sob a sua ação.

Faz questão de dizer que não é como as do mar, que “trabalham” com o amor,

leveza e beleza, embora com elas tenha em comum uma função de limpeza. É muito

procurada, porque, nas suas consultas “já vai limpando e tirando todas as porcarias e

jogando no rio que as leva pro mar”. No seu ponto riscado, esta função assinala-se por um

cavalo, marinho.

Ao ouvir-se o seu depoimento, a sua médium “descobre” porque ela é Janaína (o

que sempre a intrigou): no fundo ela é do mar, porque a sua missão em terra é lá jogar

coisas que a ele se destinam. É um posto avançado de dissolução e sutilização em terra

firme. É guerreira, flecheira.

Simetricamente, a sereia faz questão de dizer que “não é como índia, cabocla de

macaia. Não é de guerrear, de briga. Não é brava, não usa flecha daquela que fura, que

machuca”. Quando precisa “amansar touro bravo”, vai com as “minhas ágüinhas”.

A médium declara-a “meu amor eterno”. As duas são meninas. “Sou muito menina,

muito brincalhona, muito adolescente. O importante é que a gente vai vivendo. Atinjo fácil

a vibração dela”. Faz “das maiores tragédias a maior comédia”. É brincalhona. Nessas

horas as pessoas dizem-lhe: “a cabocla está do seu lado”. “E está mesmo”.

A sereia menina “trabalha” pelo equilíbrio entre pessoas que se gostam (famílias,

amigos), mas pelo atrito da convivência muitas vezes se ferem e ficam pesadas ou amargas.

Boa parte da sua tarefa é dar ouvidos ao coração dos seus filhos (recorrendo ao “ouvido do

mar”, uma grande concha).

Reporta que a missão da sua filha (a médium) é cuidar de criancinhas, ajudá-las a

crescer. Mas para poder ser mãe, por sua vez, precisa “ter uma mãezinha” para si. Dar-lhe

colo, faz parte da sua missão.

A médium descreve-se como alguém muita dedicada às pessoas e emotiva, mas

meio seca e desconfiada quando se trata de abrir-se para experiências emocionais de

encontro adulto com o outro. “Tem uma mulher querendo amadurecer”.

De fato a sua cabocla, não obstante se situe em águas marinhas, não é do oceano

distante nem profundo. Firma-se quase em terra. “Trabalha na beirinha” (o lugar em que,

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diz a história, as pequenas sereias dos clássicos infantis, uma vez “desencantadas” pela

paixão por humanos príncipes, morrem enquanto mulheres virtuais e podem passar a viver

na terra). Encontra-se à beira da praia da existência humana, “onde dá pé e qualquer

criancinha pode ir sem perigo”, na diáfana espuma de ondinhas que se entrechocam na

areia molhada, resplandecendo sob a incidência da luz solar.

Quando “uma ondinha faz espuma”, a cabocla “gosta daquela festa que pula”. Basta

passar essa espuminha na “coroa” (cabeça) e no coração (mostra com gestos) e “está

rezado”.

A médium da índia, quando precisa de água, também vai para o mar. Mas não é este

que fornece o cenário consubstancial à sua cabocla. Sempre a visualiza numa mata com

árvores frondosas, cujas copas filtram raios solares.

Ambas sublinham que as suas “forças” nesses sítios naturais e imaginais se ligam às

horas do dia. Raios solares tingidos por folhas de árvores elevadas e transparência cristalina

de espuma irradiada pela luz do Sol à beira mar, eis onde residem estas antropomorfoses, os

significantes lugares de maravilha que concentram as suas “energias”.

A impregnação do ordenamento do imaginário para além da consciência individual

dos colaboradores e do conhecimento socialmente consensual reserva novidades e

revelações para além de características coletiva e conscientemente admitidas.

Surpreendentemente, o que as Janaínas “são”, como elas “acontecem” e poeticamente se

revelam, apresenta intersecções alheias às expectativas criadas pela sua referência habitual

às águas e especificamente ao mar. Desloca-se para a incidência solar. Encontram-se, para

além da proximidade ou distancia da água, unidas pela luminosidade diurna.

O presente procedimento, portanto, mostrou-se apto para sugerir propriedades de

modelos imaginais, até então encobertas, ou pelo menos mal conhecidas e pouco

salientadas.

Entremeada a características significantes familiares ao esbranquiçado colorido de

Iemanjá, sobressai a claridade solar destas Janaínas. A índia afirma que Janaína significa

“Guerreira do Sol”. Usa nos seus trabalhos as mesmas pétalas de rosas brancas oferecidas

ao mar, mas não como oferenda de beleza, e sim para finalidades de limpeza (que, afinal, é

uma função consubstancial ao “estado” de Janaína). Além de pétalas de rosa, a sereia

trabalha com uma profusão de flores (principalmente brancas), plantas e sementes, como

Page 31: Caboclas de Aruanda- PDF

anis estrelado (no caso da índia madura, o estelar aparece no ponto), sementes de girassol e

alfazema. Mas a flor e as sementes de girassol ocupam uma posição muito importante nos

seus trabalhos. Não nos revela nem à médium exatamente o sentido do seu nome (“ela nem

vai acreditar que eu disse”), mas o refere aos raios solares, vegetalmente presentificados

nas sementes da flor “olho de Oxalá”. Seus filhos devem ter, plantados, cinco girassóis,

substituindo-os quando morrem.

Ser Janaína é uma função. Também é uma categoria de interpretação do humano e

feminino. O que Janaína significa deverá desenvolver-se na médium e na cabocla e o

momento da entrevista permite testemunhar a construção em andamento.

As Jupiras, aldeias à beira de matas semicerradas, com rios de águas calmas, soam

mais homogêneas. Mas o ponto não é a homogeneidade e sim a especularidade, a incrível

capacidade do imaginário para refletir e realçar nuances e sutilezas, bem como para reunir

perspectivas plurais sobre um mesmo cenário de fundo.

Homogeneidade e diversidade, por este prisma, são variações da mesma qualidade

especular, inerente a processos de semiose bastante sofisticados, capazes de iluminar tanto

o humano que neles se contempla, como de elucidarem formas e filigranas da reflexividade

imaginal imanente à cultura brasileira.

A inesperada solaridade das Janaínas oferece uma boa oportunidade para se

observar a combinação destes talentos. Sugere a potencialidade do método para recuar de

modelos conhecidos e previamente acordados (cuja onipresença às vezes cria a impressão

das Janaínas estarem debatendo uma com a outra ou “terem combinado” o que dizer), até

ao alcance de imprevisíveis propriedades comuns.

Ao mesmo tempo, o procedimento seguido igualmente faculta o reencontro sutil, e

provavelmente inconsciente, com a tradição, mesmo em casos de distanciamento

aparentemente drástico.

É notório que, ao diferenciar-se das outras Janaínas, a índia descreve exatamente o

tipo que corresponde à outra entrevistada: ser feminino sem ser mulher, não aguerrido;

encantada de extrema sutileza e suavidade; habitante das águas marítimas, sem pé em chão

firme. Há um reconhecimento do perfil Janaína e um ajuizamento a respeito do grau de

aproximação com o tipo. A cabocla explica-se.

A menina também se reporta ao mesmo modelo e se justifica relativamente a ele.

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Não obstante nitidamente distintas, nos dois casos se referenciam à personalidade

simbólica de um tipo de Janaína marítimo, não terreno, pouco concreto, alusivo a sutileza e

leveza emocional. Uma corresponde-lhe, a outra busca transformar-se nele. Mas, mesmo no

tipo aparentemente mais distante do modelo culturalmente admitido, encontra-se uma

inconsciente fidelidade profunda ao modelo mítico em pauta, para além das nuances

circunstanciais das médiuns que o corporificam e das suas subdivisões em categorias como

caboclos e encantados. Embora se insinuem de permeio a uma dinâmica imaginal bastante

complexa, que envolve interfaces com o contexto humanamente familiar, os seus traços

ressaltam-se e tornam-se audíveis para uma escuta apurada:

A médium da sereiazinha nos relata que as crianças com quem profissionalmente

lida (é educadora infantil), “mesmo as evangélicas”, costumam chamá-la (no que reconhece

um profundo sentido) “minha pérola do mar”.

Já a guerreira mostra-se em forma humana como “uma Perla mais forte, mais escura

e mais alta”. A médium compara-a com uma cantora popular de origem paraguaia, cujo

nome em espanhol também tem o significado de pérola. De maneira aparentemente

aleatória e despropositada, a significância profunda do mar respinga na Janaína terrestre.

A médium da sereia conta-nos que trazer entidades prestigiadas como estas não é

razão para especial orgulho, pois as qualidades do “guia”, muitas vezes, correspondem a

carências do seu suporte humano.

Mesmo as qualidades que as assemelham, mal refletidas, podem reverter-se em

defeitos. Generosa e dócil, a médium corre o risco de tornar-se subserviente. A cabocla

protege-a (“ela tem que viver a vida dela”) quando terceiros, contrariados, “se preocupam”

com ela, tentando aproveitar-se da sua bondade (mal interpretada como passividade e

disponibilidade irrestrita), para constrangê-la a não priorizar interesses pessoais legítimos.

As caboclas antecipam o que as médiuns deverão tornar-se pelo seu crescimento.

Mas não obstante acolham lacunas de qualidades que suas “filhas” almejariam desenvolver

em si, ao serem escutadas atenta, literal e precisamente, dificilmente poderiam reduzir-se a

meras projeções psicológicas de identidades idealizadas ou a qualidades do “self” não

desabrochadas.

A médium da guerreira fica impressionada e contente quando lhe contam proezas da

sua “índia”, solicitadas sem seu conhecimento.

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A cabocla conta a respeito da fidelidade de antigos freqüentadores, impossibilitados

de serem assíduos: “Há filhos que até hoje chamam a Cabocla”. Não cai no esquecimento.

Esses apelos traduzem-se em oportunidades de serviço e conseqüente “evolução”.

Comprovam-na “real” e eficaz. Transformam-se num “grande sol na coroa da Cabocla”.

Aumentam a sua “luz” e consolidam a “fé” da comunidade inteira.

Interpelar a cabocla imaginariamente, “chamá-la” para “trabalhar”

independentemente do contacto “físico” no momento da incorporação, traz “luz” para a

entidade (ilumina a sua “coroa”). Haveria pois uma interação social com a sua

“personalidade” sutil e imaterial, coletivamente suposta como independente da mediação

psicológica da médium.

Relatos como este, comuns, a par de proporcionarem subsídios para uma reflexão a

respeito do estatuto ontológico da realidade imaginal, social e semioticamente objetiva,

também permitem resgatar sentidos éticos profundos da prática umbandista, materializados

em gestos e atos “estéticos” que, aquém de qualquer substancialismo, permitem estabelecer

e reconhecer cada “guia” pelo estilo das ações que lhe são consubstanciais.

Firma-se uma relação de solidariedade pela participação em muitas histórias

humanas. Um suposto ancestral (ou encantado) não encontra a morte como seu fim.

Transcende-a poeticamente, pela inclusão em outras biografias. A sua “volta” à terra, a

“incorporação”, propõe-se como um complemento suplementar de existência finda.

Especularmente, significa o sentido da vida humana como doação entre pares e

cuidado consigo e com o porvir. Chama a atenção para a responsabilidade de cada um

relativamente ao que vai legar aos vindouros, sublinha a importância de ter tato nas

relações interpessoais e desperta sensibilidade para com o encadeamento das gerações (em

quase todos os terreiros este zelo recebe o nome de caridade e orienta práticas sociais da

comunidade, cujo foco mais habitual são moradores de rua, crianças e idosos).

A índia, por exemplo, “desencarnou” abatida e revoltada com as constantes guerras

entre tribos. Esse estado de revolta e amargura não poderia permanecer o ponto final da sua

história. Presentemente não é aí que se a encontra. A médium, quando vai “buscá-la”,

imagina-se numa mata bonita. “É muito simples”. “Na realidade, já está do seu lado”.

Mas que realidade? Afinal, o que “são” as caboclas?

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Seja lá o que forem, as Janaínas mostram-se como brilho solar, claridade aérea que

perpassa água (espuma) ou do alto se filtra entre copas de árvores. “São” azul claro,

amarelo suave, delicadeza e ondulações, limpidez e leveza, luminosidade cristalina e fluida.

Marcam-se como apelo a um refinamento estético e sentimental.

Já as Jupiras são aldeias familiares e rios de águas mansas circundados por matas

iluminadas por estrelas, pelo Sol e pela Lua.

Uma das médiuns relata não se esquecer do impacto de uma cena de raios solares se

infiltrando por entre as copas de árvores, numa mata colorida e vibrante de cantos de

pássaros e outros sons naturais. A cabocla incorpora-a.

Em conjunto, as caboclas presentificam memória e grande impacto estético, que se

articulam sinestésica e sensorial significativamente. Personificam um “estado” de

encantamento. Um tipo de experiência que, no quadro da reflexão social inerente ao

imaginário brasileiro, tem estatuto de “conceito”.

A Construção Narrativa do Transe

Encantamento

Fantasias ou memórias ancestrais, reflexões coletivas e pessoais, sejam o que forem,

as caboclas narram-se. As entrelinhas das suas narrativas confirmam a existência de uma

matriz comum, semioticamente objetiva, e o processamento de memórias sociais em

ficções, literais e existenciais, que veiculam reflexões coletivas e pessoais, nem

estritamente intelectuais, nem redutivamente psicológicas.

As caboclas de Aruanda expressam comoção intensa, existencialmente abrangente e

reveladora de percepções do Outro. Revelam-se poéticas construções significantes, em que

cuidado e orientação, brandura e rigor, cristalinidade e mistério, são “vibrações” estética,

ética e sensorialmente presentativas de um feminino, interpretado aquém do que linear,

descritiva e convencionalmente, pareceria óbvio. Meras representações verbais não as

capturam (não as compreendem).

Reportam em carne viva sentidos quase inefáveis. Os mesmos que transmitem às

existências humanas que as celebram, e especialmente às mulheres médiuns que se lhes

Page 35: Caboclas de Aruanda- PDF

devotam de corpo e alma. Sentidos que se evocam em gestos dramáticos, encarnados em

poemas dramatizados, para impedir que os seus significados vivenciais se afoguem em

meras palavras, insuficientes para narrá-los.

Manifestam-se como uma ação de cuidado, cuja “natureza” escapa a juízos de

realidade. Amplificam impactos da verdade subjetiva, sem se confundir com “eu” nem se

consumar em Outro substantivo. Mostram-se tão somente como uma comoção verdadeira,

cujo “ser” se mantém em reticência.

Vêm quando são necessárias e chamadas. Valorizam mais a “vibração” dos

tambores e o sentimento que percorre a corrente (a participação humana na “gira”) do que

as letras de músicas rituais que marquem a sua presença, chegada ou partida.

A dimensão verbal do delineamento do Outro parece dizer apenas respeito à

necessidade humana de construir para si “representações” da sua presença, quando em

verdade, funcionalmente, Aquele se define em ações.

Falam com gestos. A extensão é significante. Uma dança pode ser um juízo, uma

postura ereta significar uma retidão de caráter e um banho de ervas servir para “perfumar”

pensamentos.

Furtivas a representações e esquivas a localizações na matéria celular nervosa, têm a

sutileza da memória, a economia de um gesto, a leveza de uma pena, o impacto de um

poema. Ecoam vivências comunitárias, familiares e pessoais. Explicitam-se

interpretativamente. Expressam a si e a eus humanos. Refletem.

A hipertrofia do brilho desta reflexão ora transborda em experiências pessoais

inefáveis, ora se inscreve histórica e culturalmente na memória de coletividades, como uma

espécie de experiência primeira ou conceito primitivo, que talvez possam chamar-se de

encantamento.

Na linguagem comum, a mais rente à experiência aqui em pauta, este termo evoca

associações não estritamente especulativas (quase corporais), de comoção e interesse

profundo por alguma coisa suposta exterior ao eu, de maneira intensa e prazerosa. Quem se

encanta mostra-se radiante. Não se contém, de tanta felicidade. Está “fora de si”.

No vocabulário “técnico” da religiosidade brasileira, talvez não casualmente, o

mesmo termo designa uma classe de seres e experiências limites, que fascinam e

atemorizam.

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As várias interpretações do sentido de encantamento que se encontram no

imaginário brasileiro distribuem-se por um contínuo. Nesse contexto, encantar-se, antes de

mais nada, significa morrer. Deixar de ser, ou radicalmente passar a ser outro. Implica uma

ultrapassagem imaginal do limite entre ser e não ser.

Encantados são igualmente seres de uma natureza radicalmente não humana,

misteriosos, ou humanos que “sumiram” sem deixarem rastros nem evidências do destino

do seu corpo. Muitas vezes, encantam-se nos lugares onde foram vistos pela última vez

antes de desaparecerem. Às vezes são mortos que não o sabem, mortos por morrer.

Em todos os casos ratifica-se um vínculo com um estatuto de vida não viva, que

tanto fascina, como pode provocar impacto pelo sinistro.

Várias acepções do termo podem reunir-se numa mesma narrativa, como se verifica

no relato do “encantamento” de outra cabocla: caiu do alto de uma cachoeira, circundada

por mata cerrada. O lago da queda de água (implicitamente o lugar da sua morte, numa

mítica vida humana) é o lugar do seu encantamento, berço em que “nasce” como encantada

e reside a sua “força”. Este instante, tão plasticamente expresso, “é” ela, outra que humana,

fundindo-se o impacto de uma imagem de extinção de uma existência com a passagem a

um estado de não ser impensável, interpretado como fusão atemporal com um ambiente

idílico. Desaparecida, encantada, perpetua-se como (a) água que corre por matas elevadas e,

como ela, precipita-se do cimo.

Em comum as compreensões de encantado parecem ser uma hipérbole da suavidade

do não ser. Os seus vários significados, dispostos em lugares e tempos diversos da cultura

religiosa brasileira, não deveriam iludir. Distinguem-se, mas não se separam. Mantém um

sutil entrelaçamento e cumplicidade. Referem experiências inefáveis, cujo denominador

comum é refletirem a (falta de) experiência de “não estar mais aí”, estar outro, ou ser

reflexo de humano sido. Estar sem ser.

Como a “morte” não obrigatoriamente se interpreta como extinção física, o

encantamento pode ser o sobressalto causado por um forte impacto estético, em que

referências pessoais se extinguem. Por extensão, supõem-se encantados os seres nunca

existentes (não nascidos) que, de certo modo, se encontram num estado equivalente aos

mortos. Qualquer cenário belo e cativante pode supor-se morada de seres espirituais,

Page 37: Caboclas de Aruanda- PDF

“mortos”, cujo contacto, por apontar para condições limites da existência, igualmente é

assustador ou perigoso.

O risco do encantamento é perder-se as referências humanas, mergulhar num

cenário que cativa. Teme-se nunca voltar ao mesmo. É preciso saber “abrir” e “fechar” o

contacto com o mundo dos encantados, sob pena de graves riscos.

Encantar-se parece ser uma forma “estética” de pensar a experiência mística.

Embora uma categoria geral do imaginário religioso brasileiro, o seu acontecimento,

enquanto impacto sensorial e subjetivo, é pessoal e intransmissível. Define uma

cumplicidade com outro estado de (não) ser, que assinala uma posição no culto e inclui o

sujeito na rede sutil das significações culturais do sagrado.

Não obstante haver um sentido geral de encantado, como tal pertinente à

generalidade da experiência “popular” do sagrado e adjetivo cabível à totalidade do

panteão, habitualmente a palavra tem um uso mais restrito e especifico, no quadro do

emprego de outros termos que permitem nomear classes de “entidades”. As que

especificamente, na umbanda, se chamam de encantados (como a sereiazinha entrevistada),

costumam ser muito especiais e misteriosas.

O fato de não haver um significado único para o termo mostra que a sua elaboração

coletiva é um processo ainda em andamento, não devendo confundir-se o esforço para

compreender nuances dos seus empregos com usos específicos do mesmo.

Estes, muitas vezes, tendem a interpretá-lo objetivamente, referindo-o a supostos

referentes metafísicos, quando aparentemente se vincula a uma expressividade verbal e não

verbal, mais evocadora de êxtases do que representativa de substâncias.

Uma linguagem diáfana e pueril, mais propriamente ampla do que imprecisa, que

torna inteligível a comum alusão dos seus personagens, sem nenhuma preocupação realista

nem compromissos metafísicos, a referências literárias (como, por exemplo, os personagens

indígenas da literatura romântica, as letras de guarânias, ou clássicos infantis).

Sem preocupações realistas, o Outro mobiliza todos os recursos literais para cativar

o humano e tocar o seu íntimo. Promove um encontro libertário com a sutileza de heranças

culturais, postas ao serviço da construção pessoal e da reflexão social em profundidade.

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O imaginário, em vez de cenário de alienação do ego (como às vezes o supõe uma

psicologia retoricamente psicanalítica), vira uma brincadeira (num sentido muito sério), um

recurso para um sutil adensamento na vida.

Antropomorfoses

A pesquisa desencadeou processos de construção e de revelação pessoal e mística.

As colaboradoras relataram, felizes, terem aprendido coisas a respeito das suas caboclas

que não sabiam previamente.

Ao cotejarem-se Jupiras e Janaínas, o cunho guerreiro (metáfora da luta pela vida) e

a referência à terra confirmam-se como significantes narrativos do existir.

Aparecem feridas, mas também experiências. Mostram-se laços humanos, vínculos,

memórias e dívidas. A água da vida precipita-se em lama. Há mágoas a depurar e

reparações a serem feitas.

Os desafios do viver se associam a uma selva, cheia de remédios e de perigos, de

plantas que matam e que curam. Uma “mata” que circunda a “aldeia” da existência

familiarmente humana, situada em terra firme, onde se cuida e se criam “filhos”.

Em contraposição, “mãe”, “mar” (água) e “morte” parecem associar-se a um “outro

mundo”, fervilhante de outra vida, diferente da existência. Talvez por isso estas

intermediárias, todas, trabalham com ervas e líquidos.

As suas ações equivalem a dizeres. Cada uma consubstancia uma perspectiva de um

fazer exemplar, cujo ângulo se revela pela significação cultural dos tipos humanos que elas

ilustram.

Em conjunto, sedimentam vivências e cognições coletivas, que auxiliam a pensar

encruzilhadas existenciais. São reflexões sociais, mais propriamente do que memórias

ancestrais, estruturadas em modelos humanos facilmente reconhecíveis. Doam-se em

narrativas em que se significam (religando cada sujeito à historia e à coletividade da sua

comunidade) e re-significam o interlocutor. Veiculam informações não psicológicas, mas

psicologicamente úteis.

Cada personagem concreto se reporta a um tipo geral, mas com maleabilidade para

modular vivências sociais e psíquicas muito particulares. Os grandes tipos do panteão

expressam funções sagradas e operações intersubjetivas e ações sociais.

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É possível proceder a um mapeamento a um tempo coletivo e singular do que cada

entidade diz de si e do humano que a carrega e, ao mesmo tempo, escutar o social:

Quanto ao que diz de si, é possível estabelecê-lo levando em conta que cada

antropomorfose é paciente e meticulosamente constituída por narrações do Outro (num

duplo sentido): a narrativa do Outro consubstancia-se em personalidades do panteão -

nenhuma “entidade” pode ser contada (nem contar-se com ela) se não puder ser deduzida

do contexto imaginal -, mas, uma vez dramaticamente “incorporada” em existências

humanas, é a partir de si que Outro se enuncia. Ou seja, a “chegada” de cada “espírito” é

uma concessão do Outro. Porém, simetricamente, cada antropomorfose é uma interpretação

do Outro. Concede-lhe uma feição humana.

Quanto ao que diz do humano, recorde-se que o sujeito do transe fala a língua

imanente ao imaginário. Os corpos em que se articula e as vidas humanas que lhe dão

ouvidos não poderiam permanecer estranhos à determinação dos seus ditos. Em última

instância, tomam partido de seus significados.

Quer dizer, o incomensurável interpreta-se no transe à medida humana. Suas

interpelações interpretam-se existencialmente, em outros plurais (construídos da matéria da

sua significância), à medida das possibilidades de envolvimento de cada pessoa e de cada

comunidade humana participantes.

Não se questiona um fundo de mistério e sagrado. Apenas se reencontra a tese de

Corbin de que o sagrado espelha o próprio ser pessoal e não se chega a ele escamoteando-se

a si mesmo.

A sua ressonância psicológica é uma condição de verdade da experiência religiosa.

É possível recolher as suas informações psicológicas, sem negar a face transcendente do

fenômeno.

Dar ouvidos às construções narrativas do transe permite o exercício de uma escuta

que reúna em profundidade o sagrado com psiques e destinos coletivos, afiliando,

resgatando memórias, catalisando reflexões, difundindo heranças simbólicas e valorizando

o saber e a voz do povo.

Agradecimentos

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Auxílio à Pesquisa FAPESP (Processo 00/02550-8).

Este trabalho é profundamente devedor do acolhimento e do apoio de umbandistas

cujo nome, atendendo à solicitação de alguns, mantenho em sigilo. Apresento os meus

agradecimentos a todos os entrevistados, bem como às comunidades religiosas e a seus

dirigentes que o permitiram.

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