boiko barthes e batchen fotografia morte

14
8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 1/14 Barthes e Batchen: fotografia, morte, magia Leonardo Boiko Trabalho de Perspectivas da Crítica Francesa Prof.ª: Claudia Pino Universidade de São Paulo—2012

Upload: tainah-morais

Post on 07-Jul-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 1/14

Barthes e Batchen: fotografia, morte,magia

Leonardo Boiko

Trabalho de Perspectivas da Crítica FrancesaProf.ª: Claudia Pino

Universidade de São Paulo—2012

Page 2: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 2/14

Sumário

1 Barthes   1

2 Fantasma   4

3 Feitiçaria   7

Referências   12

Page 3: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 3/14

1 Barthes

O livro de Roland Barthes sobre fotografia, A Câmara Clara (1), é bastanteidiosincrático (como afinal tudo o mais do autor); Barthes transita de

um tema a outro espontaneamente, “seguindo o pincel” (ou a caneta),

como se dizia da ensaística japonesa. O formato parece menos uma

semiologia da fotografia do que a autobiografia de uma semiologia; o li-

vro é narrativo, uma história das próprias idéias, contada em primeira

pessoa. Para encontrar alguma ordem na avalanche de imagens, Bar-

thes parte de um ponto de vista assumidamente pessoal (“o que sabe

meu corpo da Fotografia?”). Aos poucos, uma Teoria vai se deline-ando. Barthes nota que a grande maioria das fotos não lhe diz nada,

“me eram tão indiferentes que, ao vê-las multiplicar-se como ervas da-

ninhas, sentia por elas uma espécie de aversão, de irritação mesmo”

(sentimento que, acredito, é familiar para todos que já tentaram explo-

rar livros ou exposições fotográficas). Contudo, uma pequena quan-

tidade de fotos conseguem tocá-lo, “acontecem”-lhe, despertam in-

teresse aventuroso. Analisando esta minoria de fotos na tentativa de

encontrar alguma estrutura em comum, Barthes chega na famosa pro-

posta do studium e do punctum. As fotos especiais seriam aquelas que

contrastam dois elementos: um pano-de-fundo cultural, contextual,

que parte do observador ( studium, “interesse não-específico”); e algo

concentrado, inesperado, que escapa ao tema e penetra a atenção à

força( punctum, “ponto, pontuação, punção”). Assim, as “fotografias uná-

rias”, compostas apenas por studium (como muitas fotos de reportagem)

não lhe interessam; apenas aquelas poucas cujo studium é perfurado

por este elemento elusivo, o punctum.

Entretanto, assim que consegue um sistema, Barthes parece sertomado pelo impulso de esticá-lo até que se arrebente, como uma cri-

ança brincando com um elástico (“ele resiste incessantemente a suas

próprias idéias”, 2). Assim, a natureza exata do punctum é deixada de-

liberadamente indefinida, e só sabemos que se trata de uma “co-e-

xistência”; exemplos elencados incluem freiras em uma rua de guerra,

lençóis na mão de uma mãe que chora o filho morto, um detalhe de sa-

patilhas de presilha, unhas sujas, um gesto incongruente… É-nos dito

1

Page 4: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 4/14

que o punctum é instantâneo e involuntário, ferindo a visão (seção #21),

e, literalmente logo a seguir (#22), que ele trabalha à distância, pela

memória, demora, desenvolve-se; eis que a sapatilha nãoera o punctum,afinal—ele havia se enganado quanto ao punctum!—mas sim o colar da

negra, que lhe lembrava o de alguém da família… Um fotógrafo talvez

encontrasse elementos técnicos nos primeiros exemplos de  punctum:

alto contraste, massas chamativas em imagens de grande amplitude

dinâmica, texturas autônomas, quebras temáticas; mas, assim que isso

começa a ficar perceptível, Barthes vai estendendo o punctum para algo

cada vez mais individual e conceitual, algo que está na própria me-

tonímica da fotografia, que começa a confundir-se com o studium; atéque, por fim, o punctum é identificado com a dobra temporal imanente

à fotografia—o passado que está no presente e ao mesmo tempo não

está, o “espectro”—e, portanto, algo que já não é característico apenas

de uma minoria de fotografias especiais. Quando nos damos conta,

o livro não é mais sobre fotografia, é sobre o tempo, sobre Barthes

(sempre), sobre a mãe morta de Barthes.

A despeito dessas contradições e aparente ausência de foco,  A

Câmara Clara se tornou instantaneamente um dos clássicos da crítica, fa-

zendo de Barthes presença obrigatória em coletâneas de “grandes tex-

tos” da área (com seleções presentes, por exemplo, em Classic Essays on

Photography  (3, 1980), The Photography Reader  (4, 2002), ou Basic Critical Theory for 

Photographers (5, 2012)). Geoff Dyer, em seu Instante Contínuo (6, 2008), co-

menta que “um dos maiores desafios ao escrever este livro foi evitar ci-

tar [John] Berger, [Susan] Sontag, Barthes, ou Walter Benjamin a cada

cinco páginas”. Assim, Barthes, o “semioclasta”, o anti-sistema, acabou

no mesmo panteão canônico de textos como OnPhotography  (Sontag) ou

 A obra de arte na era da reprodutibilidade mecânica (Benjamin).Acredito que isso tenha sido possível graças à natureza do objeto.

“A fotografia é uma mensagem sem um código”, diz Barthes em A men-

 sagem fotográfica (7).1 Penso que este mesmo fato está na origem de sua

atração pelo tema; em toda a obra de Barthes reaparece, sob diver-

sas formas, o desejo de um mundo isento de sentido, “como do ser-

1Porém, na Câmara ele já abandonou o modelo “mensagem”: “pro inferno com amensagem!”.

2

Page 5: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 5/14

viço militar” (2). Por isso, a imagem (assim como a música ou o “zen”)

vai levá-lo à “semiologia segunda”, à semântica que significa sem sig-

nos: qualquer estrutura, qualquer explicação lingüística  de uma foto-grafia é necessariamente uma criação do teórico sobreposta artificial-

mente, algo como um véu lançado sobre a “cena em si” (7) da imagem:

“não posso aprofundar, apreender a Fotografia, apenas varrê-la com o

olhar, como a uma superfície tranqüila” (1, #44). Por exemplo, em sua

análise da fotografia, Susan Sontag enfatiza a natureza concreta, mini-

aturizada, colecionável, consumista do objeto foto, enquanto Berger

se deslumbra precisamente com o contrário, com sua natureza platô-

nica, reproduzível, transmitível eletronicamente. Não há critério obje-tivo para decidir qual das duas teorias seria a correta, porque a fotogra-

fia resiste ao simbólico, à “mensagem”. De fato, como Barthes comenta

nas  Mitologias (8), uma fotografia que seja simbólica demais (como a

de um jovem soldado segurando um esqueleto) perde o impacto; a

graça da fotografia está justamente em sua relação “analógica” com o

mundo; preservada essa relação, ela é sentida como um pequeno pe-

daço de mundo que, como os demais, resiste teimosamente à análise.

O crítico contemporâneo Geoffrey Batchen editou uma coletânea de

artigos sobre o livro de Barthes, Photography Degree Zero: Reflections on Roland 

Barthe’s Camera Lucida (9). Em sua resenha desta antologia, Richard Paul

comenta (10):

Barthes, com A Câmara Clara, tentou se libertar da tendência

à análise reducionista que, na época, havia se tornado ca-

racterística da crítica cultural semiótica e psicanalítica. Este

ponto parece não ter sido notado por muitos críticos […] A

Câmara está repleta de alusões teóricas sofisticadas, mas estáclaro para mim que nenhuma delas pode ser tomada como

chave hermenêutica.

Neste ensaio, gostaria de ilustrar a relevância continuada de Bar-

thes para o discurso que cerca a fotografia. Para isso, tomarei como

exemplo a influência da escritura de Barthes no trabalho do Batchen;

não por ter fornecido um arsenal de ferramentas teóricas, mas por pro-

vocar certos efeitos perceptíveis.

3

Page 6: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 6/14

2 Fantasma

Se procurarmos em uma livraria ou biblioteca pela palavra-chave  sé-miologie, encontraremos Sausurre, Greimas, Martinet, e talvez, meio de

viés, Barthes. Mas se procurarmos por semiotics, encontraremos Peirce,

Eco e Chandler. Mais do que “escolas”, a “semiótica francesa” e a “ame-

ricana” parecem viver em mundos diferentes.2 Um dos princípios fun-

damentais do signos em Sausurre é que seu significado é definido ape-

nas em oposição aos demais signos; um signo significa aquilo que os

todos os outros não; a semiótica francesa permaneceu cética quanto

ao “referente”. Já em Peirce, o referente

3

é a base de todo signo; umsigno é aquilo que, “para alguém, está no lugar de algo”.

Peirce classifica os signos em três tipos:

1. O ícone sustenta uma relação semiótica porque é semelhante ao

seu referente; alguns de seus atributos configuram uma analogia

de certos atributos do referente.

2. O índice significa porque está conectado ao referente; foi parte

dele, ou tocou-o fisicamente, ou foi causado por ele &c.

3. E o símbolo significa de forma puramente arbitrária.

Essas três categorias correspondem, na poética e na retórica, à

metáfora, metonímia, e convenção; e, na antropologia, ao pensamento

mágico pela “lei da semelhança”, “lei do contágio”, e simbolismo ritual.

Longe de se restringir a poetas e xamãs, essas operações do pensa-

mento sãocaracterísticas de toda cognição humana(ver e.g. Lakoff (11)

ou Hofstadter (12)).

A fotografia é interessante por ser, ao mesmo tempo, ícone pre-ciso e índice eficaz.4 Uma forma de perceber isso é considerar os diver-

sos usos da fotografia. Um livro de botânica está interessado apenas2Em uma oposição que lembra a “divisão analítico-continental” da filosofia: nos

dois casos, tanto os pressupostos quanto os métodos são incompatíveis.3Na semiótica peirciana, os conceitos que chamamos aqui, francesamente, de sig-

nificante, significado e referente, são denominados repræsentamen, interpretant  e objeto,respectivamente. Naturalmente, os signos de um e outro sistema não correspondemexatamente.

4Ela pode também ser simbólica, mas isso já é uma operação de segundo grau—para que aconteça, o objeto é quem tem que trabalhar para configurar símbolo, o que

4

Page 7: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 7/14

no valor icônico; as fotos lhe são um recurso valioso porque se asseme-

lham às plantas; mas desenhos seriam igualmente aceitáveis, desde

que fossem tão precisos quanto as fotos. Um tribunal, ao contrário,aceita fotos como evidência apenas porque são indexais. Um dese-

nho fotorrealista não é uma prova válida, mas uma foto distorcida sim,

desde que a relação de causa-e-efeito da fotografia seja plausível na-

quele caso. Uma foto é uma marca  impressa pelo objeto, como uma

pegada ou máscara mortuária.

Na sociedade européia, costumava-se usar jóias contendo índi-

ces e ícones das pessoas queridas mas distantes (ou mortas): pulsei-

ras trançadas com fios de cabelos, medalhões com mini-retratos, cin-zas, assinaturas. A fotografia é como um medalhão dois-em-um, si-

multaneamente retrato e mecha de cabelo; não é de se admirar que

tenha gerado um boom no negócio das lembranças fúnebres, tomando

até mesmo o lugar de efígies e outros artefatos funerais tradicionais,

em culturas tão distantes quanto a nigeriana, a japonesa e a mexicana

(13, 14).

A natureza indexal da fotografia têm sido objeto de fascínio desde

o seu surgimento (Talbot chamou sua coletânea de 1844 de “O Lápis

da Natureza”, ressaltando que “as chapas deste trabalho foram impres-

sas pela agência da Luz, apenas, sem nenhum auxílio do lápis do ar-

tista”). Barthes chamou esse efeito de “isto-foi” (ça a été); a fotografia

prova que seu objeto existiu, e

atestando que o objeto foi real, ela leva sub-repticiamente a

pensar que ele está vivo, devido a essa armadilha que nos faz

atribuir ao Real um valor absolutamente superior, como que

eterno. Mas, deslocando esse real para o passado (“isto-foi”), ela sugere que ele está morto.

Barthes despreza o estudo sociológico da fotografia, i.e. de seu

papel em famílias, governos, cultos&c.; no entanto, acaba percebendo

que precisa se voltar para as fotos biográficas (“são somente as ima-

gens de minha juventude que me fascinam” (2)), que enfim a foto mais

estraga a força da ilusão de realismo, como vimos acima com o exemplo de Barthesdo jovem soldado.

5

Page 8: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 8/14

importante de todas é a de sua mãe morta—em uma palavra, Barthes

teve de se voltar para o tipo de fotografiaqueconvencionou-se chamar

vernacular . Uma das principais propostas de Batchen é a de resgatar ahistória da vernacular, que foi, por muito tempo, sumariamente igno-

rada pelos estudos fotográficos. Batchen percebe, porém, que uma

história distante, incorpórea, formalista, não poderá dar conta do va-

lor íntimo dessas fotografias, que é afinal sua própria razão de ser (esta

foto não está tentando ser bonita ou profunda; o que interessa é que

é uma foto da minha mãe). O que vale a pena explorar, diz Batchen,

é a relação-chave entre [as fotografias pessoais] e o corpo—

tantoocorpofotografadoquantoaquelequeobservaafoto.

Este últimoinclui, claro, o corpo do escritor [o historiador/crítico],

o que adiciona um elemento autobiográfico à história que

escreve. Estamos falando então de uma abordagem ane-

dotal, novelística, uma versão historiográfica da  Câmara Clara

de Barthes…(13, p. 77–78)

Assim, Batchen vê valor em Barthes precisamente porque ele abdica

do rigor teórico, porque privilegia o estudo dos efeitos que o objetocausa no próprio autor.5

Isto-foi; isto é real, mas não agora; a prova que isto-foi é simulta-

neamente uma prova que isto já não é (pois, mesmo que a pessoa da

foto ainda esteja viva, ela já não é a mesma do instante fotografado,

não é a pessoa na foto). De repente, sou forçado a reconhecer que eu,

também, estou sujeito à lei do isto-foi; todo momento deixa de ser; em

toda foto, independente de qual seja seu objeto, há “um signo impe-

rioso da minha morte futura” (Barthes). Mas não é só isso; o efeito dafoto não é simplesmente o de uma pintura com a caveira do  memento

mori  acrescentada a um canto. A foto garante que o objeto foi, e ao

mesmo tempo garante que já não é,  e ao mesmo tempo eu ainda o vejo;

vejo o que não existe, mas não é uma fantasia, é real; vejo os mortos

no mundo dos vivos. A fotografia é um fantasma.

Barthes chamou esse efeito de loucura, “um novo tipo de aluci-

5Batchen discute melhor este ponto em seu artigo para o PhotographyDegreeZero (15).

6

Page 9: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 9/14

nação: falsa ao nível da percepção, verdadeira ao nível do tempo”.6

A elevação da fotografia à categoria de “arte” seria então uma forma

de apagar, negar esta loucura (na fotografia artística o “isto-foi” não éimportante, sai de cena, é coberto pelo lençol da Estética). Esse argu-

mento de Barthes explica por que Batchen escolheu trabalhar precisa-

mente com aquilo na fotografia que não é arte.

3 Feitiçaria

Barthes termina a Câmara em uma encruzilhada: a fotografia pode ser

domesticada (mas aí perde seu poder) ou louca (mas então é perigosa,assustadora). Ora, existeumaforma de loucura controlada, contida em

círculos seguros mas ainda cheia de êxtase selvagem; isso se chama

“magia”. Pela necromancia, a magia dos mortos, trago de volta os fan-

tasmas de quem amo.7 Barthes lamenta a impotência necromântica

da foto da mãe; tenta perscrutá-la, demorar-se nela, mas não há nada no

que se demorar; “apenas obtenho esse único saber, possuído já ao

primeiro relance: que isso realmente foi”. A fotografia é uma realidade

que posso ver, mas não posso tocar. Batchen se detém sobre esseponto, citando as Mitologias de Barthes: “o tato é o mais desmistificador

dos sentidos, ao contrário da visão, o mais mágico”. Paradoxalmente,

a veracidade indexal da fotografia deriva de um “toque luminoso”: o

objeto deixou a marca de seus “dedos” no filme (ou sensor), mas os

dedos já se foram, posso ver as marcas mas não tocar os dedos (14,

p. 31).

Na Câmara, há um trecho que será crucial para Batchen:

As sociedades antigas encontraram um meio de fazer comque a memória, substituto da vida, fosse eterna e que, pelo

menos, a coisa quefalavada Morte fosse elaprópria imortal:

6Este tipo de dobra do tempo sobre si mesmo, de ausência-presença, é outrointeresse recorrente de Barthes; ele a encontra, por exemplo, no jogo de memóriaem Proust, ou na ausência-presença do amado (que não está aqui como corpo, masestá aqui como interlocutor a quem dirijo minhas súplicas).

7A necromancia apoderou-se da fotografia quase que imediatamente, e há umalonga história (desde pelo menos 1861) de “fotos de fantasmas” entre médiuns echarlatães de todo o tipo (16, p. 129–130).

7

Page 10: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 10/14

era o Monumento. Mas, fazendo da Fotografia, mortal, o

testemunho geral e como que natural “daquilo que foi”, a

sociedade moderna renunciou ao Monumento.

As limitações da fotografia como feitiçaria, então, são: ela é efê-

mera, não-monumental; é superficial, não posso me demorar sobre

ela; e ela não é material, sensual,  pegável . Haveria alguma maneira de

cobrir esses pontos fracos?

Da última vez que fui revelar um filme (tecnologia morta, aliás,

cuja sobrevida só pode ser descrita como propriamente fetichista), en-

quanto aguardava na sala de espera, peguei um folheto de propa-

ganda do próprio laboratório. Esperava encontrar ofertas de técnicas

sofisticadas de exposição diferenciada,  cross-processing, folhas de con-

tato, revelação E6. Ao invés disso, o que encontrei foi uma miríade de

formas de materializar  a fotografia em objetos tridimensionais: canecas,

calendários de mesa, camisetas, canetas, porta-canetas, travesseiros,

todo o tipo de talismã para cercar seu ambiente de índices afetivos.

Embora esta instância específica seja uma moda recente, a tendência

como um todo é antiga; Batchen descobre cianotipos em travesseiros

datados já de 1910 (14, p. 30). De fato, toda a história da fotografiavernacular é caracterizada por tentativas intuitivas de monumentalizá-

la, de torná-la tátil e escultural. Pense nos scrapbooks, nas capas grossas e

texturizadas dos álbuns, nos ornamentos e molduras rococó, nos enor-

mes quadros de madeira escura e aromática que reúnem as fotos dos

graduandos da Escola Politécnica . Exemplos mais específicos levan-

tados por Batchen incluem (13, 14):

• Os daguerreótipos, muito pesados, espelhados, interativos, ma-nipulados em estojos de couro com padrões em relevo—estojo

por vezesretratado dentro da própria foto quecontém, redobrando

sua presença;

• Os retratos indianos do século 19, fotos sobrepostas (parcial ou

completamente) por pintura, padrões geométricos, caligrafia, fo-

lhas de ouro;

8

Page 11: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 11/14

• A fotoescultura mexicana, que, como o nome sugere, desfaz a

distinção entre fotografia e escultura;

• Fotografias familiares inseridas em quadros vistosos que incluem

bordados, textos, asas de borboleta, artesanato, índices e ícones

de todo tipo.

Esse tipo de trabalho material não só torna a fotografia tátil e im-

ponente, mas também convida o observador  a participar do sentido—elas

“aventuram” não só a visão, mas o corpo. Cada detalhe enfeitiça quem

olha e faz sentir, explorar, ponderar, imaginar. Barthes observa que a

fotografia não só não é uma memória, mas ainda  bloqueia a memória;ao contrário da fotografia, a memória é afetiva, circunstancial, seletiva,

sensual; a fotografia registra friamente tudo o que não me interessa,

dá-me os detalhes das ranhuras dos lábios de minha primeira namo-

rada, mas não me traz o aperto no peito de nosso primeiro encontro;

pior, substitui ele por uma nova coisa, uma imagem que não lembro.

Porém, a fotografia vernacular induz precisamente à rememoração; ela

acumula gatilhos sensíveis que, como as madeleines de Proust, servem

para animar minhas memórias involuntárias. Batchen resgataa catego-ria textual que Barthes traçou em S/Z : A fotografia vernacular quer ser

 scriptible, escritível; ela renuncia à transparência, destaca sua presença

como objeto, quer que o observador trabalhe com ela (13, 77).

MasseráqueBarthesseriasimpáticoaessetipodefeitiçariakitsch,

dado a sua sensibilidade estética? É certamente discutível, mas penso

que sim, quando lembro do carinho cerimonioso que ele tinha pe-

los objetos da família mantidos na gaveta. Barthes pode, aliás, ter

ido além. Margaret Olin argumenta que a grande presença-do-real,

o ponto focal da Câmara Clara, a Fotografia do Jardim de Inverno, famo-

samente inédita, na verdade nunca existiu; ela teria sido uma ficção

construída com cuidado, baseada na descrição que Benjamin fez de

uma foto de Franz Kafka (17). Se Olin estiver certa (e acho bastante

plausível, não só por sua argumentação, mas porque me parece uma

coisa muito barthesiana de se fazer), significa que Barthes conseguiu

realizar, com a publicação da Câmara, uma conjuração necromântica de

segundo grau.

9

Page 12: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 12/14

O caso de Batchen mostra como as “limitações” de Barthes, seu

anti-academicismo, seu umbigocentrismo obstinado, são exatamente

aquilo que o torna um autor valioso para se pensar um tema elusivocomo a fotografia. Elusivo porque vital; se a fotografia é a morte, ela

também é a vida, já que apenas o que vive pode morrer; e o que en-

contramos em Barthes é um olhar que, se por um lado esteve disposto

ao trabalho intelectual de traçar esquemas, por outro sempre fez ques-

tão de retornar à vida, de se assombrar com o incompreensível de seu

deleite.

Figura 1: Mary von Rosen, fotógrafos desconhecidos. Álbum de fotos. Ci-tado em (14, p. 57–60).

10

Page 13: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 13/14

Referências

1 BARTHES, R. A câmara clara. Lisboa: Edições 70, 2006. ISBN9724413497.

2 BARTHES, R. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Cultrix.

3 TRACHTENBERG, A. (Ed.). Classic essays on photography . [S.l.]: Leete's

Island Books, 1980. ISBN 9780918172075.

4 WELLS, L. (Ed.). The Photography Reader . [S.l.]: Taylor & Francis, 2002.

ISBN 9780415246613.

5 GRANGE, A. (Ed.). Basic Critical Theory for Photographers. [S.l.]: Taylor &

Francis, 2012. ISBN 9781136090134.

6 DYER, G. O Instante Contínuo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ISBN 9788535912739.

7 BARTHES, R. The photographic message. In: . Image-Music-Text .

New York: Farrar, Straus and Giroux, 1978. ISBN 9780374521363.

8 BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: Difel, 2003. ISBN 857432048x.

9 BATCHEN, G. (Ed.). Photography Degree Zero: Reflections on Roland Barthes's

Camera Lucida. Cambridge: MIT Press, 2011. ISBN 9780262516662.

10 PAUL, R. Re rereading camera lucida. Philosophy of Photography ,

intellect, v. 1, n. 1, p. 109–111, March 2010. ISSN 20403682.

Disponível em:  <http://www.ingentaconnect.com/content/intellect-

/pop/2010/00000001/00000001>.

11 LAKOFF, G. Women, Fire, and Dangerous Things: What Categories Reveal About 

the Mind . Chicago: Chicago Press, 1987. ISBN 9780226468044.

12 HOFSTADTER, D. R. Analogy as the Core of Cognition. Disponível em:

<http://prelectur.stanford.edu/lecturers/hofstadter/analogy.html >.

13 BATCHEN, G. Vernacular photographies. In: . Each Wild Idea.

Cambridge: MIT Press, 2001. cap. 3. ISBN 0262024861.

11

Page 14: BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

8/19/2019 BOIKO Barthes e Batchen Fotografia Morte

http://slidepdf.com/reader/full/boiko-barthes-e-batchen-fotografia-morte 14/14