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Barthes e Batchen: fotografia, morte,magia
Leonardo Boiko
Trabalho de Perspectivas da Crítica FrancesaProf.ª: Claudia Pino
Universidade de São Paulo—2012
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Sumário
1 Barthes 1
2 Fantasma 4
3 Feitiçaria 7
Referências 12
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1 Barthes
O livro de Roland Barthes sobre fotografia, A Câmara Clara (1), é bastanteidiosincrático (como afinal tudo o mais do autor); Barthes transita de
um tema a outro espontaneamente, “seguindo o pincel” (ou a caneta),
como se dizia da ensaística japonesa. O formato parece menos uma
semiologia da fotografia do que a autobiografia de uma semiologia; o li-
vro é narrativo, uma história das próprias idéias, contada em primeira
pessoa. Para encontrar alguma ordem na avalanche de imagens, Bar-
thes parte de um ponto de vista assumidamente pessoal (“o que sabe
meu corpo da Fotografia?”). Aos poucos, uma Teoria vai se deline-ando. Barthes nota que a grande maioria das fotos não lhe diz nada,
“me eram tão indiferentes que, ao vê-las multiplicar-se como ervas da-
ninhas, sentia por elas uma espécie de aversão, de irritação mesmo”
(sentimento que, acredito, é familiar para todos que já tentaram explo-
rar livros ou exposições fotográficas). Contudo, uma pequena quan-
tidade de fotos conseguem tocá-lo, “acontecem”-lhe, despertam in-
teresse aventuroso. Analisando esta minoria de fotos na tentativa de
encontrar alguma estrutura em comum, Barthes chega na famosa pro-
posta do studium e do punctum. As fotos especiais seriam aquelas que
contrastam dois elementos: um pano-de-fundo cultural, contextual,
que parte do observador ( studium, “interesse não-específico”); e algo
concentrado, inesperado, que escapa ao tema e penetra a atenção à
força( punctum, “ponto, pontuação, punção”). Assim, as “fotografias uná-
rias”, compostas apenas por studium (como muitas fotos de reportagem)
não lhe interessam; apenas aquelas poucas cujo studium é perfurado
por este elemento elusivo, o punctum.
Entretanto, assim que consegue um sistema, Barthes parece sertomado pelo impulso de esticá-lo até que se arrebente, como uma cri-
ança brincando com um elástico (“ele resiste incessantemente a suas
próprias idéias”, 2). Assim, a natureza exata do punctum é deixada de-
liberadamente indefinida, e só sabemos que se trata de uma “co-e-
xistência”; exemplos elencados incluem freiras em uma rua de guerra,
lençóis na mão de uma mãe que chora o filho morto, um detalhe de sa-
patilhas de presilha, unhas sujas, um gesto incongruente… É-nos dito
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que o punctum é instantâneo e involuntário, ferindo a visão (seção #21),
e, literalmente logo a seguir (#22), que ele trabalha à distância, pela
memória, demora, desenvolve-se; eis que a sapatilha nãoera o punctum,afinal—ele havia se enganado quanto ao punctum!—mas sim o colar da
negra, que lhe lembrava o de alguém da família… Um fotógrafo talvez
encontrasse elementos técnicos nos primeiros exemplos de punctum:
alto contraste, massas chamativas em imagens de grande amplitude
dinâmica, texturas autônomas, quebras temáticas; mas, assim que isso
começa a ficar perceptível, Barthes vai estendendo o punctum para algo
cada vez mais individual e conceitual, algo que está na própria me-
tonímica da fotografia, que começa a confundir-se com o studium; atéque, por fim, o punctum é identificado com a dobra temporal imanente
à fotografia—o passado que está no presente e ao mesmo tempo não
está, o “espectro”—e, portanto, algo que já não é característico apenas
de uma minoria de fotografias especiais. Quando nos damos conta,
o livro não é mais sobre fotografia, é sobre o tempo, sobre Barthes
(sempre), sobre a mãe morta de Barthes.
A despeito dessas contradições e aparente ausência de foco, A
Câmara Clara se tornou instantaneamente um dos clássicos da crítica, fa-
zendo de Barthes presença obrigatória em coletâneas de “grandes tex-
tos” da área (com seleções presentes, por exemplo, em Classic Essays on
Photography (3, 1980), The Photography Reader (4, 2002), ou Basic Critical Theory for
Photographers (5, 2012)). Geoff Dyer, em seu Instante Contínuo (6, 2008), co-
menta que “um dos maiores desafios ao escrever este livro foi evitar ci-
tar [John] Berger, [Susan] Sontag, Barthes, ou Walter Benjamin a cada
cinco páginas”. Assim, Barthes, o “semioclasta”, o anti-sistema, acabou
no mesmo panteão canônico de textos como OnPhotography (Sontag) ou
A obra de arte na era da reprodutibilidade mecânica (Benjamin).Acredito que isso tenha sido possível graças à natureza do objeto.
“A fotografia é uma mensagem sem um código”, diz Barthes em A men-
sagem fotográfica (7).1 Penso que este mesmo fato está na origem de sua
atração pelo tema; em toda a obra de Barthes reaparece, sob diver-
sas formas, o desejo de um mundo isento de sentido, “como do ser-
1Porém, na Câmara ele já abandonou o modelo “mensagem”: “pro inferno com amensagem!”.
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viço militar” (2). Por isso, a imagem (assim como a música ou o “zen”)
vai levá-lo à “semiologia segunda”, à semântica que significa sem sig-
nos: qualquer estrutura, qualquer explicação lingüística de uma foto-grafia é necessariamente uma criação do teórico sobreposta artificial-
mente, algo como um véu lançado sobre a “cena em si” (7) da imagem:
“não posso aprofundar, apreender a Fotografia, apenas varrê-la com o
olhar, como a uma superfície tranqüila” (1, #44). Por exemplo, em sua
análise da fotografia, Susan Sontag enfatiza a natureza concreta, mini-
aturizada, colecionável, consumista do objeto foto, enquanto Berger
se deslumbra precisamente com o contrário, com sua natureza platô-
nica, reproduzível, transmitível eletronicamente. Não há critério obje-tivo para decidir qual das duas teorias seria a correta, porque a fotogra-
fia resiste ao simbólico, à “mensagem”. De fato, como Barthes comenta
nas Mitologias (8), uma fotografia que seja simbólica demais (como a
de um jovem soldado segurando um esqueleto) perde o impacto; a
graça da fotografia está justamente em sua relação “analógica” com o
mundo; preservada essa relação, ela é sentida como um pequeno pe-
daço de mundo que, como os demais, resiste teimosamente à análise.
O crítico contemporâneo Geoffrey Batchen editou uma coletânea de
artigos sobre o livro de Barthes, Photography Degree Zero: Reflections on Roland
Barthe’s Camera Lucida (9). Em sua resenha desta antologia, Richard Paul
comenta (10):
Barthes, com A Câmara Clara, tentou se libertar da tendência
à análise reducionista que, na época, havia se tornado ca-
racterística da crítica cultural semiótica e psicanalítica. Este
ponto parece não ter sido notado por muitos críticos […] A
Câmara está repleta de alusões teóricas sofisticadas, mas estáclaro para mim que nenhuma delas pode ser tomada como
chave hermenêutica.
Neste ensaio, gostaria de ilustrar a relevância continuada de Bar-
thes para o discurso que cerca a fotografia. Para isso, tomarei como
exemplo a influência da escritura de Barthes no trabalho do Batchen;
não por ter fornecido um arsenal de ferramentas teóricas, mas por pro-
vocar certos efeitos perceptíveis.
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2 Fantasma
Se procurarmos em uma livraria ou biblioteca pela palavra-chave sé-miologie, encontraremos Sausurre, Greimas, Martinet, e talvez, meio de
viés, Barthes. Mas se procurarmos por semiotics, encontraremos Peirce,
Eco e Chandler. Mais do que “escolas”, a “semiótica francesa” e a “ame-
ricana” parecem viver em mundos diferentes.2 Um dos princípios fun-
damentais do signos em Sausurre é que seu significado é definido ape-
nas em oposição aos demais signos; um signo significa aquilo que os
todos os outros não; a semiótica francesa permaneceu cética quanto
ao “referente”. Já em Peirce, o referente
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é a base de todo signo; umsigno é aquilo que, “para alguém, está no lugar de algo”.
Peirce classifica os signos em três tipos:
1. O ícone sustenta uma relação semiótica porque é semelhante ao
seu referente; alguns de seus atributos configuram uma analogia
de certos atributos do referente.
2. O índice significa porque está conectado ao referente; foi parte
dele, ou tocou-o fisicamente, ou foi causado por ele &c.
3. E o símbolo significa de forma puramente arbitrária.
Essas três categorias correspondem, na poética e na retórica, à
metáfora, metonímia, e convenção; e, na antropologia, ao pensamento
mágico pela “lei da semelhança”, “lei do contágio”, e simbolismo ritual.
Longe de se restringir a poetas e xamãs, essas operações do pensa-
mento sãocaracterísticas de toda cognição humana(ver e.g. Lakoff (11)
ou Hofstadter (12)).
A fotografia é interessante por ser, ao mesmo tempo, ícone pre-ciso e índice eficaz.4 Uma forma de perceber isso é considerar os diver-
sos usos da fotografia. Um livro de botânica está interessado apenas2Em uma oposição que lembra a “divisão analítico-continental” da filosofia: nos
dois casos, tanto os pressupostos quanto os métodos são incompatíveis.3Na semiótica peirciana, os conceitos que chamamos aqui, francesamente, de sig-
nificante, significado e referente, são denominados repræsentamen, interpretant e objeto,respectivamente. Naturalmente, os signos de um e outro sistema não correspondemexatamente.
4Ela pode também ser simbólica, mas isso já é uma operação de segundo grau—para que aconteça, o objeto é quem tem que trabalhar para configurar símbolo, o que
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no valor icônico; as fotos lhe são um recurso valioso porque se asseme-
lham às plantas; mas desenhos seriam igualmente aceitáveis, desde
que fossem tão precisos quanto as fotos. Um tribunal, ao contrário,aceita fotos como evidência apenas porque são indexais. Um dese-
nho fotorrealista não é uma prova válida, mas uma foto distorcida sim,
desde que a relação de causa-e-efeito da fotografia seja plausível na-
quele caso. Uma foto é uma marca impressa pelo objeto, como uma
pegada ou máscara mortuária.
Na sociedade européia, costumava-se usar jóias contendo índi-
ces e ícones das pessoas queridas mas distantes (ou mortas): pulsei-
ras trançadas com fios de cabelos, medalhões com mini-retratos, cin-zas, assinaturas. A fotografia é como um medalhão dois-em-um, si-
multaneamente retrato e mecha de cabelo; não é de se admirar que
tenha gerado um boom no negócio das lembranças fúnebres, tomando
até mesmo o lugar de efígies e outros artefatos funerais tradicionais,
em culturas tão distantes quanto a nigeriana, a japonesa e a mexicana
(13, 14).
A natureza indexal da fotografia têm sido objeto de fascínio desde
o seu surgimento (Talbot chamou sua coletânea de 1844 de “O Lápis
da Natureza”, ressaltando que “as chapas deste trabalho foram impres-
sas pela agência da Luz, apenas, sem nenhum auxílio do lápis do ar-
tista”). Barthes chamou esse efeito de “isto-foi” (ça a été); a fotografia
prova que seu objeto existiu, e
atestando que o objeto foi real, ela leva sub-repticiamente a
pensar que ele está vivo, devido a essa armadilha que nos faz
atribuir ao Real um valor absolutamente superior, como que
eterno. Mas, deslocando esse real para o passado (“isto-foi”), ela sugere que ele está morto.
Barthes despreza o estudo sociológico da fotografia, i.e. de seu
papel em famílias, governos, cultos&c.; no entanto, acaba percebendo
que precisa se voltar para as fotos biográficas (“são somente as ima-
gens de minha juventude que me fascinam” (2)), que enfim a foto mais
estraga a força da ilusão de realismo, como vimos acima com o exemplo de Barthesdo jovem soldado.
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importante de todas é a de sua mãe morta—em uma palavra, Barthes
teve de se voltar para o tipo de fotografiaqueconvencionou-se chamar
vernacular . Uma das principais propostas de Batchen é a de resgatar ahistória da vernacular, que foi, por muito tempo, sumariamente igno-
rada pelos estudos fotográficos. Batchen percebe, porém, que uma
história distante, incorpórea, formalista, não poderá dar conta do va-
lor íntimo dessas fotografias, que é afinal sua própria razão de ser (esta
foto não está tentando ser bonita ou profunda; o que interessa é que
é uma foto da minha mãe). O que vale a pena explorar, diz Batchen,
é a relação-chave entre [as fotografias pessoais] e o corpo—
tantoocorpofotografadoquantoaquelequeobservaafoto.
Este últimoinclui, claro, o corpo do escritor [o historiador/crítico],
o que adiciona um elemento autobiográfico à história que
escreve. Estamos falando então de uma abordagem ane-
dotal, novelística, uma versão historiográfica da Câmara Clara
de Barthes…(13, p. 77–78)
Assim, Batchen vê valor em Barthes precisamente porque ele abdica
do rigor teórico, porque privilegia o estudo dos efeitos que o objetocausa no próprio autor.5
Isto-foi; isto é real, mas não agora; a prova que isto-foi é simulta-
neamente uma prova que isto já não é (pois, mesmo que a pessoa da
foto ainda esteja viva, ela já não é a mesma do instante fotografado,
não é a pessoa na foto). De repente, sou forçado a reconhecer que eu,
também, estou sujeito à lei do isto-foi; todo momento deixa de ser; em
toda foto, independente de qual seja seu objeto, há “um signo impe-
rioso da minha morte futura” (Barthes). Mas não é só isso; o efeito dafoto não é simplesmente o de uma pintura com a caveira do memento
mori acrescentada a um canto. A foto garante que o objeto foi, e ao
mesmo tempo garante que já não é, e ao mesmo tempo eu ainda o vejo;
vejo o que não existe, mas não é uma fantasia, é real; vejo os mortos
no mundo dos vivos. A fotografia é um fantasma.
Barthes chamou esse efeito de loucura, “um novo tipo de aluci-
5Batchen discute melhor este ponto em seu artigo para o PhotographyDegreeZero (15).
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nação: falsa ao nível da percepção, verdadeira ao nível do tempo”.6
A elevação da fotografia à categoria de “arte” seria então uma forma
de apagar, negar esta loucura (na fotografia artística o “isto-foi” não éimportante, sai de cena, é coberto pelo lençol da Estética). Esse argu-
mento de Barthes explica por que Batchen escolheu trabalhar precisa-
mente com aquilo na fotografia que não é arte.
3 Feitiçaria
Barthes termina a Câmara em uma encruzilhada: a fotografia pode ser
domesticada (mas aí perde seu poder) ou louca (mas então é perigosa,assustadora). Ora, existeumaforma de loucura controlada, contida em
círculos seguros mas ainda cheia de êxtase selvagem; isso se chama
“magia”. Pela necromancia, a magia dos mortos, trago de volta os fan-
tasmas de quem amo.7 Barthes lamenta a impotência necromântica
da foto da mãe; tenta perscrutá-la, demorar-se nela, mas não há nada no
que se demorar; “apenas obtenho esse único saber, possuído já ao
primeiro relance: que isso realmente foi”. A fotografia é uma realidade
que posso ver, mas não posso tocar. Batchen se detém sobre esseponto, citando as Mitologias de Barthes: “o tato é o mais desmistificador
dos sentidos, ao contrário da visão, o mais mágico”. Paradoxalmente,
a veracidade indexal da fotografia deriva de um “toque luminoso”: o
objeto deixou a marca de seus “dedos” no filme (ou sensor), mas os
dedos já se foram, posso ver as marcas mas não tocar os dedos (14,
p. 31).
Na Câmara, há um trecho que será crucial para Batchen:
As sociedades antigas encontraram um meio de fazer comque a memória, substituto da vida, fosse eterna e que, pelo
menos, a coisa quefalavada Morte fosse elaprópria imortal:
6Este tipo de dobra do tempo sobre si mesmo, de ausência-presença, é outrointeresse recorrente de Barthes; ele a encontra, por exemplo, no jogo de memóriaem Proust, ou na ausência-presença do amado (que não está aqui como corpo, masestá aqui como interlocutor a quem dirijo minhas súplicas).
7A necromancia apoderou-se da fotografia quase que imediatamente, e há umalonga história (desde pelo menos 1861) de “fotos de fantasmas” entre médiuns echarlatães de todo o tipo (16, p. 129–130).
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era o Monumento. Mas, fazendo da Fotografia, mortal, o
testemunho geral e como que natural “daquilo que foi”, a
sociedade moderna renunciou ao Monumento.
As limitações da fotografia como feitiçaria, então, são: ela é efê-
mera, não-monumental; é superficial, não posso me demorar sobre
ela; e ela não é material, sensual, pegável . Haveria alguma maneira de
cobrir esses pontos fracos?
Da última vez que fui revelar um filme (tecnologia morta, aliás,
cuja sobrevida só pode ser descrita como propriamente fetichista), en-
quanto aguardava na sala de espera, peguei um folheto de propa-
ganda do próprio laboratório. Esperava encontrar ofertas de técnicas
sofisticadas de exposição diferenciada, cross-processing, folhas de con-
tato, revelação E6. Ao invés disso, o que encontrei foi uma miríade de
formas de materializar a fotografia em objetos tridimensionais: canecas,
calendários de mesa, camisetas, canetas, porta-canetas, travesseiros,
todo o tipo de talismã para cercar seu ambiente de índices afetivos.
Embora esta instância específica seja uma moda recente, a tendência
como um todo é antiga; Batchen descobre cianotipos em travesseiros
datados já de 1910 (14, p. 30). De fato, toda a história da fotografiavernacular é caracterizada por tentativas intuitivas de monumentalizá-
la, de torná-la tátil e escultural. Pense nos scrapbooks, nas capas grossas e
texturizadas dos álbuns, nos ornamentos e molduras rococó, nos enor-
mes quadros de madeira escura e aromática que reúnem as fotos dos
graduandos da Escola Politécnica . Exemplos mais específicos levan-
tados por Batchen incluem (13, 14):
• Os daguerreótipos, muito pesados, espelhados, interativos, ma-nipulados em estojos de couro com padrões em relevo—estojo
por vezesretratado dentro da própria foto quecontém, redobrando
sua presença;
• Os retratos indianos do século 19, fotos sobrepostas (parcial ou
completamente) por pintura, padrões geométricos, caligrafia, fo-
lhas de ouro;
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• A fotoescultura mexicana, que, como o nome sugere, desfaz a
distinção entre fotografia e escultura;
• Fotografias familiares inseridas em quadros vistosos que incluem
bordados, textos, asas de borboleta, artesanato, índices e ícones
de todo tipo.
Esse tipo de trabalho material não só torna a fotografia tátil e im-
ponente, mas também convida o observador a participar do sentido—elas
“aventuram” não só a visão, mas o corpo. Cada detalhe enfeitiça quem
olha e faz sentir, explorar, ponderar, imaginar. Barthes observa que a
fotografia não só não é uma memória, mas ainda bloqueia a memória;ao contrário da fotografia, a memória é afetiva, circunstancial, seletiva,
sensual; a fotografia registra friamente tudo o que não me interessa,
dá-me os detalhes das ranhuras dos lábios de minha primeira namo-
rada, mas não me traz o aperto no peito de nosso primeiro encontro;
pior, substitui ele por uma nova coisa, uma imagem que não lembro.
Porém, a fotografia vernacular induz precisamente à rememoração; ela
acumula gatilhos sensíveis que, como as madeleines de Proust, servem
para animar minhas memórias involuntárias. Batchen resgataa catego-ria textual que Barthes traçou em S/Z : A fotografia vernacular quer ser
scriptible, escritível; ela renuncia à transparência, destaca sua presença
como objeto, quer que o observador trabalhe com ela (13, 77).
MasseráqueBarthesseriasimpáticoaessetipodefeitiçariakitsch,
dado a sua sensibilidade estética? É certamente discutível, mas penso
que sim, quando lembro do carinho cerimonioso que ele tinha pe-
los objetos da família mantidos na gaveta. Barthes pode, aliás, ter
ido além. Margaret Olin argumenta que a grande presença-do-real,
o ponto focal da Câmara Clara, a Fotografia do Jardim de Inverno, famo-
samente inédita, na verdade nunca existiu; ela teria sido uma ficção
construída com cuidado, baseada na descrição que Benjamin fez de
uma foto de Franz Kafka (17). Se Olin estiver certa (e acho bastante
plausível, não só por sua argumentação, mas porque me parece uma
coisa muito barthesiana de se fazer), significa que Barthes conseguiu
realizar, com a publicação da Câmara, uma conjuração necromântica de
segundo grau.
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O caso de Batchen mostra como as “limitações” de Barthes, seu
anti-academicismo, seu umbigocentrismo obstinado, são exatamente
aquilo que o torna um autor valioso para se pensar um tema elusivocomo a fotografia. Elusivo porque vital; se a fotografia é a morte, ela
também é a vida, já que apenas o que vive pode morrer; e o que en-
contramos em Barthes é um olhar que, se por um lado esteve disposto
ao trabalho intelectual de traçar esquemas, por outro sempre fez ques-
tão de retornar à vida, de se assombrar com o incompreensível de seu
deleite.
Figura 1: Mary von Rosen, fotógrafos desconhecidos. Álbum de fotos. Ci-tado em (14, p. 57–60).
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Referências
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ISBN 9780415246613.
5 GRANGE, A. (Ed.). Basic Critical Theory for Photographers. [S.l.]: Taylor &
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6 DYER, G. O Instante Contínuo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ISBN 9788535912739.
7 BARTHES, R. The photographic message. In: . Image-Music-Text .
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8 BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: Difel, 2003. ISBN 857432048x.
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Camera Lucida. Cambridge: MIT Press, 2011. ISBN 9780262516662.
10 PAUL, R. Re rereading camera lucida. Philosophy of Photography ,
intellect, v. 1, n. 1, p. 109–111, March 2010. ISSN 20403682.
Disponível em: <http://www.ingentaconnect.com/content/intellect-
/pop/2010/00000001/00000001>.
11 LAKOFF, G. Women, Fire, and Dangerous Things: What Categories Reveal About
the Mind . Chicago: Chicago Press, 1987. ISBN 9780226468044.
12 HOFSTADTER, D. R. Analogy as the Core of Cognition. Disponível em:
<http://prelectur.stanford.edu/lecturers/hofstadter/analogy.html >.
13 BATCHEN, G. Vernacular photographies. In: . Each Wild Idea.
Cambridge: MIT Press, 2001. cap. 3. ISBN 0262024861.
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