boal e o teatro do oprimido: o espect-ator em cena na...

73
MARA LÚCIA WELTER KUHN BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA EDUCAÇÃO POPULAR. Ijuí. Janeiro, 2011.

Upload: others

Post on 24-Jul-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

MARA LÚCIA WELTER KUHN

BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA EDUCAÇÃO POPULAR.

Ijuí.

Janeiro, 2011.

Page 2: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

1

UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

DEPE – DEPARTAMENTO DE PEDAGOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO – MESTRADO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA EDUCAÇÃO POPULAR.

Dissertação apresentada como requisito parcial à

obtenção do grau de mestre em Educação nas

Ciências no Programa de Pós-Graduação em

Educação nas Ciências Universidade Regional do

Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –

UNIJUÍ.

Orientador: Prof. Dr. Cláudio Boeira Garcia.

Mestranda: Mara Lúcia Welter Kuhn.

Ijuí.

Janeiro, 2011.

Page 3: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

2

MARA LÚCIA WELTER KUHN

BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA EDUCAÇÃO POPULAR.

Dissertação apresentada como requisito parcial à

obtenção do grau de mestre em Educação nas

Ciências no Programa de Pós-Graduação em

Educação nas Ciências Universidade Regional do

Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –

UNIJUÍ.

PROFESSORES DA BANCA EXAMINADORA DE DEFESA FINAL

______________________________________________________________________________

Prof. Dr. Cláudio Boeira Garcia – Orientador – UNIJUÍ/RS

____________________________________________________________________________

Prof.ª Ph.D Cecília Pires UNISINOS/RS

__________________________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Elza Maria Fonseca Falkembach – UNIJUÍ/RS

__________________________________________________________________________________

Prof. Dr. Walter Frantz – UNIJUÍ/RS

Ijuí

2010.

Page 4: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

3

FICHA CATALOGRÁFICA

Page 5: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

4

AGRADECIMENTOS

Agradeço com todo carinho, muita admiração e

respeito ao meu orientador, Prof. Dr. Cláudio Boeira

Garcia, sempre solícito, paciente, compreensivo,

exemplar, referência como pessoa e profissional, por estar

ao meu lado e ter acreditado que seria possível. Meus

agradecimentos também aos demais professores do

programa, principalmente a Prof.ª Dr.ª Elza Falkembach,

ao Prof. Dr. Walter Frantz e à Prof.ª Dr.ª Cecília Pires por

fazerem parte de minha banca.

Um agradecimento com todo carinho aos meus amigos

de verdade, aos colegas do mestrado, presentes em

grandes momentos e sentimentos vividos durante esse

tempo.

À minha família, em especial ao meu irmão Evandro e

meu afilhado Matheus, meus grandes incentivadores.

Jamais esquecerei uma moça especial, atenciosa, amiga,

presente: Angélica, secretária do Mestrado, que faz jus ao

nome. Obrigada Angélica!

Por fim, todo meu amor, carinho e admiração àquele

que sempre esteve do meu lado, sem hesitar, meu marido

Martin, companheiro de muitos anos.

Page 6: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

5

RESUMO

Esta dissertação investiga o principal legado do autor, dramaturgo, diretor e ator Augusto Boal, o Teatro do Oprimido (TO). As primeiras experiências do TO ocorreram no início da década de 70, no Teatro de Arena, sob a direção de Augusto Boal. Com o exílio do teatrólogo na Argentina, o TO aos poucos conquistou a América Latina e mais tarde, o mundo todo, sendo hoje conhecido em mais de 70 países. O TO são experiências teatrais realizadas em diferentes modalidades e têm como objetivo apresentar as maneiras de fazer teatro em prol da transformação social, possibilitando a seus participantes expressar, debater, atuar, contestar através da cena, situações de opressão em que vivem e compartilhar com a platéia a busca de alternativas para confrontá-las. A participação da platéia se dá através da experiência do Teatro Fórum, uma das modalidades do TO, onde ocorre à intervenção do espect-ator, personagem principal da obra do TO. O espect-ator entra em cena, intervindo e atuando conforme sua visão e perspectiva de mudança e transformação da situação de opressão apresentada. Essa crítica de fazer teatro colocou o TO no centro de muitas polêmicas. O fato é que Boal era adepto da luta por uma sociedade que oferecesse oportunidades para todos, ele sonhava e buscava a paz, mas a sua luta era por uma paz sem passividade. Devido a sua atuação na política, na formação crítica, na cidadania participativa, o TO e suas práticas inspiraram movimentos sociais e a educação popular, onde tanto o autor quanto sua obra são respeitados por seus ideais de busca de uma sociedade mais inclusiva, permitindo a participação de todo aquele que “vive em sociedade e ajuda a transformá-la, buscando a paz, sem ser passivo”. Palavras-chave: Augusto Boal, Teatro do Oprimido, espet-ator, educação popular.

Page 7: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

6

ABSTRACT

The present paper investigates the main legacy of the author, playwright, actor and director Augusto Boal, Theatre of the Oppressed (TO). The first TO experiments occurred in the early 70's, at the Arena Theater, under the direction of Augusto Boal. With the playwright's exile in Argentina, the theater slowly conquered Latin America and later the whole world, being known in over 70 countries nowadays. The TO theatrical experiences are held in different forms and are intended to provide ways of making theater aiming at social changes as well as enabling the participants to express, discuss, act, challenge through the scene situations of oppression in which they live and share with the audience so as to search for alternatives to confront it. The audience participation happens through the experience of Forum Theatre, one kind of TO, where the spect-actor comes into action, the main character of the work of TO. The spect-actor enters the scene, speaking and acting according to his vision and perspective of change and transformation of oppressive situation presented. This criticism of doing theater puts TO in the center of many controversies. The fact is that Boal was adept at fighting for a society that offered opportunities for all, he dreamed of and sought for peace, but his struggle was for peace without passivity. Because of his role in politics, critical training, and participatory citizenship, the TO and its practices inspired social movements and popular education, where both the author and his work is respected for his ideals of seeking a more inclusive society, allowing the participation of anyone who "lives in society and helps transform it, seeking peace, without being passive." Keywords: Augusto Boal, Theatre of the Oppressed, spit-actor, popular education. (Tradução Ricardo Welter Brand; English Instructor – Kingsway School)

Page 8: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

7

SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ---------------------------------------------------------- 08

INTRODUÇÃO ----------------------------------------------------------------------------- 11

1 AUGUSTO BOAL. ---------------------------------------------------------------------- 17

1.1 VIDA, OBRA E ASPECTOS DO MUNDO EM QUE VIVEU BOAL ------- 17

1.2 O ESPECT-ATOR: PESSOA E PERSONAGEM. --------------------------------27

2 O TEATRO DO OPRIMIDO. --------------------------------------------------------- 34

.2.1 POR QUE O TEATRO DO OPRIMIDO?------------------------------------------ 36

2.2 UMA EXPERIÊNCIA TEATRAL POLÊMICA. --------------------------------- 42

3 EDUCAÇÃO POPULAR: PAZ SEM PASSIVIDADE. -------------------------- 48

3.1 O ESPECT-ATOR EM CENA. ------------------------------------------------------ 49

3.2 POLITIZAÇÃO E EDUCAÇÃO POPULAR. ------------------------------------- 53

CONSIDERAÇÕES FINAIS--------------------------------------------------------------57

REFERÊNCIAS -----------------------------------------------------------------------------60

ÍNDICE DE ANEXOS --------------------------------------------------------------------- 63

Page 9: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

8

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Tenho sincero respeito por aqueles que dedicam suas

vidas exclusivamente à sua arte – é seu direito e

condição! –, mas prefiro aqueles que dedicam sua arte à

vida. [...] Que cada um diga o que fez, a que veio e por

que ficou. E que cada um tenha a coragem de, não

sabendo por que permanece, retirar-se.

Augusto Boal

Em minha infância, meus sonhos e desejos não devem ter sido muito diferentes das

crianças com as quais convivi: fadas madrinhas, castelos, reis, rainhas, príncipes montados em

cavalos brancos, princesas com seus vestidos rodados e longos cabelos cacheados, cheios de

laços e fitas. Foi, também, uma época de prazeres e de desejos não imaginários, desejos reais,

palpáveis: brinquedos, guloseimas, alguma roupa nova, algum sapato, uma cama quentinha e,

em especial, um lugar para chamar de “minha casa”, “meu lar”.

Na adolescência entre tantas outras coisas, festas, namoros, discussões com os pais,

insatisfação com a vida e com o mundo, a busca de consolo naqueles que supostamente eram

os que me compreendiam e falavam de coisas que eu sentia, considerava-os tão próximos,

mesmo eles estando tão distantes do meu mundo real. No meu caso, “meus heróis” eram

artistas, músicos, pessoas públicas que eu admirava pelos comportamentos e olhares

diferentes que apresentavam sobre a existência humana, sobre a sociedade, sobre as questões

do mundo.

Page 10: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

9

Diverti-me na “arte da interpretação” ainda criança, mesmo sem saber, quando

pensava estar brincando de “ser mãe” do irmão mais novo. Na escola ou então na catequese,

interpretava poesias, escrevia histórias, inventava personagens e juntava um grupo que se

dispusesse a ensaiar e encená-las. Das cantigas de roda a que mais gostava era a da Terezinha

de Jesus: “O primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão e o terceiro foi aquele que a Tereza

deu a mão!” E lá estava eu, literalmente sentada no meio da roda estendendo a mão. Desde

então já vinha exercendo o que viria a ser uma atividade futura e também meu um assunto de

pesquisas e estudos.

Na adolescência se confirmou o interesse pela arte de interpretar. Na primeira

juventude, a continuidade com o teatro, agora de forma um tanto mais séria. O envolvimento

com movimentos sociais, estudantis e o voluntariado possibilitaram o acesso e uma

identificação muito próxima com a vida e obra de Augusto Boal. A partir de então, o teatro

desse autor, diretor, ator e educador, passou a ocupar um lugar importante em minha vida

pessoal e, posteriormente, acadêmica.

Por unir a paixão pela interpretação e as preocupações com as questões sociais, Boal

foi, para mim, mestre e exemplo por não ter apenas se dedicado à sua arte, mas também à

sociedade diante da qual ela adquiriu seu mais genuíno significado. Boal, na verdade, parecia

gostar mais do resultado de suas experiências teatrais do que do teatro em si. Minha

graduação em História, minha formação em Teatro, Cinema e TV, os trabalhos voluntários

realizados, minhas carreiras de professora de teatro, de atriz, de diretora e também os anos de

dança sempre estiveram vinculados com a consciência corporal, espacial, temporal; enfim,

com a interpretação.

O conhecimento adquirido pela informação, pela leitura de obras teatrais,

interpretações, encenações e a admiração por dramaturgos, atores, atrizes e pesquisadores

fortaleceu minha paixão pelos assuntos relacionados ao teatro.1 O teatro fascina, emociona,

faz sonhar, leva para outros mundos, para outros tempos, outros seres. Seres que muitas vezes

1 Uma das peças apresentadas por Boal na década de 1960, O Inspetor Geral, do dramaturgo Nikolai Gogol, garantiu sucesso lotando o teatro durante três meses, apesar do cunho provocativo e denunciador da peça para a época. Coincidentemente, O Inspetor Geral foi a última peça em que atuei, pelo GTU, Grupo de Teatro da Unijuí, na minha breve passagem pelo grupo, sendo indicada como melhor atriz no FETISM/2009, em Santa Maria.

Page 11: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

10

gostaríamos de ter oportunidade de substituir nos palcos ou que se tornassem reais em nossas

vidas. Eis a mágica proporcionada pelo teatro, tão palpável no palco, mas mesmo assim tão

distante da realidade do espectador, que assiste passivo. Essa distância que parece estabelecer

um abismo entre a vida e o que se espera dela, entre os personagens fictícios e a realidade, foi

um tema amplamente abordado pelos que discutiram o teatro em todas as épocas. Augusto

Boal, também, apresentou sua interpretação sobre o assunto.

Boal costumava dizer que o teatro fazia parte do ser humano, pois ele é espectador da

sua vida e que é possível entrar na cena, no enredo, fazendo sua própria história. No teatro de

Boal, o espectador é chamado de espect-ator, justamente pelo fato de ser protagonista de sua

existência e responsável pelas consequências de seus atos. O espect-ator é o dramaturgo, o

roteirista de sua trajetória de vida. E é exatamente isso que Boal procura despertar nas pessoas

as quais não podem ser indiferentes na vida.

Sempre engajado em questões sociais, através das diversas experiências do teatro

social, desenvolveu um teatro no qual o espect-ator, por sua ação e consciência, não está

apenas representando em uma cena, mas está agindo junto com outros, diante das questões

que o mundo lhe apresenta. Não há mais porque opor o teatro e a vida! Não há porque isolar

cada qual nos espaços considerados respectivos a cada um. Boal enfatizava que se pode fazer

teatro em qualquer lugar, inclusive dentro dos teatros! Para ele o espect-ator concilia arte

teatral com a vida concreta, real, vivida de cada ser humano.

Apaixonado pela arte e pela vida, ele se manteve ativo até o fim. No dia 02 de maio de

2009, Augusto Boal morreu, mas não o seu legado, seus anos de trabalho, seu empenho em

transformar a sociedade através da arte. Boal não era adepto a guerras, mas acreditava que a

inimiga da paz não era a guerra e sim, a passividade. Ele costumava dizer que cabia ao ser

humano procurar a transformação desejada, colocando-se em cena no palco e na vida. Eu,

assim como Boal, busco a igualdade e a paz, porém sem passividade.

Page 12: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

11

INTRODUÇÃO

O cenário era de repressão, perseguições civis, golpe militar, execuções, exílios, em

que as vozes protestantes eram caladas a qualquer preço. Como se fazer ouvir, expressar-se,

fazer-se entender sem empunhar armas, sem enveredar pelo caminho de conflitos corporais,

pelo caminho da guerra, onde a morte é praticamente inevitável?

A questão era lutar pela igualdade e pela paz sem ser passivo. Existiria alguma forma

de alcançar esse objetivo sem pegar em armas? Sem sujar as mãos com o sangue de outrem?

Para o protagonista e objeto de estudo desta pesquisa, existia sim. Augusto Boal2 aparece

nesse contexto com uma proposta diferente, inusitada e, de certa forma, desacreditada, pois

apresentava uma nova maneira de lutar, de se impor e de se fazer respeitar sem usar de força

bruta. Tratava-se da transformação através do teatro.

Uma longa caminhada trouxe Boal até este momento, quando ele acredita e aposta

ainda mais em sua paixão e em sua crença de que, para transformar a sociedade, deve-se

começar transformando os cidadãos. Para Boal, o teatro, um meio de transformação subjetiva,

ajuda o ser humano a descobrir quem ele é ao criar as imagens do seu próprio desejo e, uma

vez criadas essas imagens, “o ser humano é esse seu desejo ou então nada é” (BOAL, 2009)

Com nove anos de idade Boal, estreava no teatro, como dramaturgo e ator,

representando peças com e para seus familiares. Filho de padeiro, ele ajudava o pai no ofício,

desde os onze anos de idade. Morador do bairro da Penha, no Rio de Janeiro costumava jogar

futebol com filhos dos operários de um curtume das redondezas, a maioria negra e pobre.

Desse seu cotidiano que Boal, ainda criança, buscava material para escrever suas peças.

2 As obras utilizadas como base para a escrita do texto, sobre aspectos biográficos de Augusto Boal, estão indicadas na parte final desta introdução.

Page 13: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

12

Na juventude, ingressou na faculdade de Engenharia Química, realizando um desejo

de seu pai, impulsionado pela vontade de acompanhar sua namoradinha nessa nova etapa da

vida. Boal sempre quis teatro, ainda que na época não tivesse reconhecimento algum. E, uma

vez formado engenheiro químico, pôde escolher uma segunda opção de estudo. Não teve

dúvidas, foi para Nova Iorque estudar com John Gassner, que conhecia através de livros e

entrevistas.

Na Universidade de Columbia Boal, estudou durante dois anos a estrutura teatral, o

fazer teatral, a prática em si; enfim, estava estudando teatro. Mas faltava-lhe alguma coisa.

Percebeu que o teatro que buscava não era aquele, baseado somente na estrutura, o fazer

teatral única e exclusivamente pelo prazer de representar. Para Boal, faltava um “algo mais”

que preenchesse e desse sentido aos seus estudos e sua dedicação. Lembrou-se, então, dos

amigos do futebol, os filhos dos trabalhadores do curtume e começou a olhar o teatro por

outra perspectiva. Ele mesmo costumava lembrar que o fato dele ficar sentado em frente à sua

casa, olhando as pessoas passar provavelmente tenha influenciado seu modo de ver o que há

“de teatro na vida e de vida no teatro”. (BOAL, 2009)

Boal ingressa no Teatro de Arena3 na década de 1960, é exilado em 1971, em

decorrência do período de exceção que o país vivia. No seu retorno, volta a repensar o teatro e

dar continuidade ao seu projeto de uma proposta teatral diferenciada, surgindo dessa forma o

Teatro do Oprimido4. Começa, então, sua peregrinação pelo mundo difundindo o TO, o qual

mudava de nome conforme o país por onde passava. Assim, Augusto Boal se tornou

conhecido e reconhecido em todo mundo.

3 Sobre o Arena do final de 1954 e ocupado pela companhia de mesmo nome no início de 1955; o edifício do Arena abrigou grande parte da história teatral e cultural do país nos anos de 1955 a 1971. Em 1977, foi adquirido pelo Sistema Nacional de Teatro (SNT) e, mais tarde, tornou-se o atual Teatro de Arena Eugênio Kusnet, hoje sob a administração da Fundação Nacional de Artes (FUNARTE). O Arena foi o palco de estreia de atores e diretores como José Renato, Raul Cortez, Eva Wilma, Milton Gonçalves, Paulo José e Dina Sfat, entre tantos outros. Foi nele que Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal lançaram clássicos do teatro brasileiro como Eles

Não Usam Black-Tie e Revolução na América do Sul. Para não falar dos polêmicos Arena Conta Zumbi e Arena

Conta Tiradentes, marcos na história dos musicais brasileiros. Site http://www.opalco.com.br/foco.cfm?persona=materias&controle=76. Consultado em 09/11/2010. 4 Conforme vocabulário do próprio autor, toda vez que for citado o Teatro do Oprimido no texto, será abreviado por TO.

Page 14: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

13

Ensaios e experiências do que viria a ser o TO ocorreram ainda nos tempos do Teatro

de Arena, no início da década de 1970, intitulado então como Teatro Jornal, pois as peças

eram baseadas em notícias do jornal do dia. No entanto, o método se consolidou durante o

exílio de Boal, ainda durante a década de 1970. Exilado em 1971, Boal estabeleceu-se na

Argentina, onde permaneceu por cerca de cinco anos e desenvolveu o projeto iniciado ainda

no Brasil, dando vida ao Teatro do Oprimido.

A técnica trabalhada no teatro de Boal não é direcionada única e exclusivamente aos

artistas profissionais, pelo contrário, sua verdadeira intenção é apresentar e integrar o cidadão

do cotidiano, das mais diversas áreas de trabalho, ao desafio de se tornar protagonista de sua

própria história. Deixa-se de ser espectador para assumir o papel de espect-ator, pessoa e

personagem da mesma cena. Para Boal, ser cidadão não significava apenas viver em uma

sociedade, mas sim, ajudar a transformá-la.

Quando desenvolveu o TO, o interesse do teatrólogo estava voltado para aquela pessoa

considerada leiga nos assuntos especificamente relacionados ao fazer teatral, às técnicas, aos

métodos, enfim aos bastidores do mundo do teatro. Boal queria, justamente, integrar esse ser

humano que desde sempre ocupava o lugar da plateia, aquele que vê, se diverte, se emociona,

se identifica ou, até mesmo, ignora, mas não fica indiferente. Aquele ser humano que dispõe

de um pouco do seu tempo para assistir a uma representação teatral, o espectador.

O TO em suas diversas variações intenciona integrar o espectador e transformá-lo em

espect-ator, aquele que assiste e atua ao mesmo tempo. Essa ideia de trazer o espectador para

cena surgiu ainda no tempo do Teatro Jornal, quando a censura impedia a apresentação de

peças prontas. Nesse contexto de censura, apareceu a ideia de não oferecer um espetáculo

pronto, que pudesse ser considerado subversivo, e sim deixar que a plateia produzisse a

própria peça, o espectador produz seu teatro, com suas ideias, reivindicações, passando a ser

plateia/pessoa e personagem, o espect-ator.

O espect-ator é quem permite a concretização do TO, uma vez que ele sai de seu lugar

de passividade e começa a interagir com o fazer teatral. Trata-se aqui de um fazer teatral

desvinculado das técnicas profissionais, em que não se exige formação específica para atuar.

São utilizadas técnicas, conjuntos de exercícios que ajudam o ser humano a desenvolver

Page 15: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

14

justamente o que já existe de teatro dentro de cada um. O teatrólogo afirmava que cada pessoa

trazia o teatro dentro de si, bastava que se descobrisse uma maneira de trazê-lo à tona.

O nome TO remonta à época do governo militar no Brasil, quando surgiu o Teatro

Jornal, forma encontrada pelas vítimas, os oprimidos da ditadura manifestar suas ideias, seus

protestos, sua indignação com o sistema vigente na época. Antes de oficializar o nome de TO,

usou-se o teatro invisível, o teatro imagem, o teatro fórum, que acabaram por se tornar

segmentos do Teatro do Oprimido.

O modo como o teatrólogo dispunha do teatro, suas experiências e vivências teatrais,

sua postura perante a sociedade, tomando o partido dos segmentos mais sofridos, levando o

teatro até eles como uma nova forma de se expressar e de reivindicar direitos, o expuseram no

centro de polêmicas. As polêmicas advinham do fato de que as experiências teatrais, na

grande maioria das vezes, foram realizadas com pessoas socialmente marginalizadas,

oprimidas, como por exemplo, negros, homossexuais, mulheres, operários, agricultores,

idosos, etc. O TO vinha dar vez e voz para essas pessoas, fazendo com que o teatro saísse da

elitização em que se encontrava e se apresentasse para o povo e como o povo.

Nesse cenário, ressurge com mais força e confiança o espect-ator. A pessoa que se

torna personagem de uma história que ela mesma constrói, baseada em fatos, acontecimentos

do seu cotidiano. O espect-ator sai da sombra, da margem da sociedade para se mostrar como

ser humano que é, ativo socialmente, consciente de seus direitos e deveres, preocupado com

mudanças políticas e sociais, um cidadão crítico, politizado.

Essa nova maneira de se fazer e ver teatro passou a ser adotada pelos mais diversos

segmentos sociais, principalmente na educação popular, espaço em que o TO é usado como

forma de politizar o aluno, restabelecendo a auto-confiança, re-significando valores,

rompendo alguns paradigmas e, aos poucos, reestruturando a sociedade, alargando os

horizontes dos segmentos oprimidos, inserindo gradualmente cada um desses seres humanos

na esfera social. Essa era a arte de Augusto Boal, lutar pela igualdade e pela paz, sim, mas

nunca com passividade.

No ano de 2008, Boal foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz, entre tantos outros,

conforme anexo I, juntamente com 197 candidatos. Esse fato encheu de orgulho e esperança o

Page 16: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

15

teatrólogo, que considerou a indicação extraordinária, afinal, era o reconhecimento da

importância de suas experiências teatrais, reunidas enfim, no mundo todo com um único

nome, o TO. No ano seguinte, no mês de março, Boal foi nomeado o embaixador Mundial do

Teatro pela Unesco. Além desses atos de reconhecimento, o dia dezesseis de março foi

declarado o Dia Mundial do TO.

O contexto brevemente abordado até este momento indica os percursos pelos quais

meu estudo de Boal se efetiva. As fontes principais da investigação foram: obras escritas pelo

autor, entrevistas por ele concedidas, entrevistas de pessoas que falam sobre teatro do

oprimido, teses e demais estudos já publicados sobre sua obra.

A dissertação se apresenta em três capítulos. No primeiro: Augusto Boal, narra fatos

marcantes de sua vida, do mundo em que ele viveu e de como passou a se interessar pelo

teatro. O primeiro item detalha aspectos do mundo em que Boal viveu: sua infância e família,

as primeiras experiências teatrais, sua juventude, a formação em Química, a vida acadêmica, o

envolvimento e estudos sobre teatro, bem como a integração com os artistas da época,

trabalhos eventuais, formatura em Química e sua ida para Nova Yorque. O segundo item

destaca estudos e experiências do teatrólogo, estudos direcionados ao espect-ator, ao

espectador e à persona. A pessoa e a personagem que não apenas assiste ao espetáculo teatral,

mas passa a fazer parte atuante dele, que vai justificar a experiência do teatro do oprimido, o

espect-ator, a pessoa em cena.

O segundo capítulo discute o principal legado de Augusto Boal: o motivo do nome

TO, suas variações nas experiências teatrais, o destaque dessa nova forma do fazer teatral em

todo mundo, tendo livros publicados em várias línguas, conforme anexo II, o respeito pelo

teatrólogo e sua influência no âmbito das artes da interpretação. Enfatiza a maneira original

pela qual Boal vivenciou o teatro com a experiência do espect-ator, cuja ideia central é

transformar o espectador no autor e ator da cena criada. Localiza Boal no contexto do governo

militar, da repressão, da perseguição e do exílio. Relata suas experiências com teatro no

exterior, a consolidação do TO. Narra seu retorno ao Brasil, suas experiências teatrais e a

observação dos resultados da experiência com a nova forma teatral. Esclarece que essa nova

forma de fazer teatro exige dos envolvidos um agir politizado, um envolvimento social, uma

consciência de o que é ser cidadão, o que passou a se tornar incômodo para o contexto da

época, surgindo, dessa forma, a fama de ser um teatro polêmico.

Page 17: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

16

O terceiro capítulo aborda o lugar que Boal concebe para seu teatro na educação

popular. Volta, então, a figura do espect-ator, que se torna elemento mais importante nas

experiências realizadas na educação popular, nos movimentos sociais, na formação de

lideranças, para os quais Boal dedicou sua vida sempre em busca da igualdade e não por acaso

que seu maior legado é o TO5.

1 AUGUSTO BOAL

Nos percalços de sua existência, Augusto Boal o protagonista deste estudo, mobilizou

sua imaginação e energias não apenas para compreender a realidade que lhe foi apresentada,

mas, também para mudá-la, naqueles aspectos que lhe pareciam inaceitáveis. O teatro foi o

meio que despertou maior interesse e o qual ele escolheu para buscar a realização e promoção

dessa mudança. Nesse capítulo, de teor histórico bibliográfico, o propósito é o de narrar

acontecimentos do mundo em que Augusto Boal viveu, circunstâncias de sua formação

juvenil e, sobretudo, aqueles elementos conceituais e técnicos que foram decisivos na criação

5 BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro, memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000. Site http://www.opalco.com.br/foco.cfm?persona=materias&controle=123. Consultado em 19/07/2010.

Page 18: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

17

de sua obra teatral, cuja elaboração e concretização ocorrem a partir de meados da década de

1950.

O fato é que, já em sua infância e juventude, Boal vivencia e identifica elementos

importantes que marcarão os rumos teóricos e técnicos de sua obra. A afirmação de sua obra

começa a acontecer nos tempos após essa fase juvenil, quando já formado na faculdade.

Posteriormente, seus estudos sobre teatro, apresentarão novas experiências na maneira de

conceber a arte da interpretação.

1.1 VIDA, OBRA E ASPECTOS DO MUNDO EM QUE VIVEU BOAL

Autobiografia tem que ser póstuma: não escrevo!

Biografias dão idéia de missão cumprida. Eu, ao

contrário, a cada novo fim, recomeço, faço veredas,

atalhos. Quero mais, Sou excessivo, demasiado. Seria

incômodo falar de mim: o que faço, importa o feito, não

o fazedor. Mas, se escrevesse, como seria? Como se

escreve biografia? [...] Para que melhor se entendesse

o meu teatro, seria útil que eu desvelasse minha vida do

meu jeito, não tintim por mais tim, pingos nos is, mas

histórias, fatos e feitos.

Augusto Boal, 2000.

No ano de 2000, Augusto Boal, foi convidado e, de certa forma, desafiado por uma

amiga chamada Talia Rodgers, que era editora de Routlege, em Londres a escrever uma

autobiografia. No começo, Boal foi relutante, mas, aos poucos, foi amadurecendo a ideia,

pensando como sua autobiografia seria importante para a difusão e o conhecimento de sua

obra, desde o princípio. “Quem sou? Sirvo pra quê? O TO de onde veio, pronde vai? Está nos

quatro ângulos do mundo, mas onde nasceu criança?” (BOAL, 2000)

Decidido a escrever a autobiografia, que designou pelo título, Hamlet e o filho do

padeiro, Boal não economizou na irreverência e bom humor, quando conta a história de sua

família, de sua infância e juventude, relatada como uma verdadeira saga, desde quando seus

antepassados saíram de Portugal até passarem a fixar moradia no Brasil.

Tio Miguel, irmão mais velho do meu pai, era um homem estranho: em vida nunca sorriu. Explico: pela primeira vez sorriu na hora de sua morte. Nem antes, ainda menos depois. [...] Veio para o Brasil no começo do século, mulher e três

Page 19: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

18

filhos. [...] Com dinheiro adiantado sobre futura herança. Miguel comprou padaria. A Chinezinha, em Benfica. [...] ofereceu sociedade ao meu tio, Antônio, já no Brasil, e ao meu pai que veio exilado, aos vinte anos, em 1914, por ter se recusado a entrar na guerra em Portugal, sem consultá-lo, havia se metido, sem saber por quê.6

Continuando, de modo irreverente, a narração da “saga familiar”, o protagonista conta

como ocorreu o casamento de seu pai e sua mãe, quando ele mesmo brinca que, por pouco,

ele não teria a oportunidade de nascer. Enquanto seu futuro pai, José Augusto, estava no

Brasil, fazendo seu “pé de meia” para casar; sua futura mãe, Albertina, que estava em

Portugal, num pequeno povoado chamado Justes, trabalhando no armazém da família,

aguardando a volta do suposto futuro marido.

Mesmo os mais incrédulos para com o que é denominado de “destino”, provavelmente

se impressionariam com a história do casamento do pai e da mãe de Boal. Abaixo um resumo

do diálogo de reencontro dos dois e seus desdobramentos, tal como foram narrados pelo autor:

[...] “- Estou noiva.” “- Então... tu não esperaste por mim?” “- Doze anos... esperei o que pude...” “- Eu voltei... pra te buscar... prometi e cumpri... Sou homem de palavra!” “- O casamento está marcado pro dia 10 de setembro.” “- Temos nove dias...(renasceu a esperança). Meu pai aduziu e seduziu: “- Quando estava no Brasil sonhei que voltava a Portugal para me casar contigo e te levar comigo... Já aluguei a casa, mas, se estás noiva, é difícil...” “- Mas não impossível... (foi realista Albertina, que nesse instante decidiu minha vida e meu futuro) Tens que me dar um tempo...” Quando tinha que tomar decisões, minha mãe não perdia tempo nem economizava energias: parabéns mamãe! [...] “- Está tudo arranjado. Nosso casamento vai ser no dia 10, mas de outubro. As passagens para o Brasil, quando é que vais comprar?”. Casaram-se em família, presentes amigos e mais chegados. Dia 10 de outubro, 1925. Nenhum dos dois jamais tinha ouvido falar em Stanislaviski, mas a emoção foi enorme. Quando o navio zarpou em Lisboa, no Tejo, findo o casamento, vendo nos olhos da esposa o brilho, prometeu: “Daqui alguns anos voltamos, pra visitar os parentes e a terra.” Meu pai morreu no exato dia em que fez 71 anos, 07 de junho de 1963, sem nunca ter voltado a Portugal. Shakespeare, como meu pai, nasceu e morreu no mesmo dia, 23 de abril. Eu não tenho nada com isso: nasci no dia 16 de março em 1931 e espero não morrer nunca: Deus dirá!7

Família grande, separada por um Oceano, alguns aqui no Rio de Janeiro, Brasil, outros

lá em Trás-as-Montes, Portugal. Estabelecidos no Brasil, segue a vida, com a esperança de

seu José Augusto Boal de voltar para visitar a terrinha. Nascido e criado no subúrbio do

bairro da Penha, no estado do Rio de Janeiro, Augusto Boal gostava de ficar sentado numa

ponte que havia no portão de sua casa, onde observava e via tudo passar.

6 BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record. 2000. P. 17,18. 7 Idem. P. 33 – 36.

Page 20: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

19

São curiosas, para não dizer divertidas, as longas passagens nas quais Boal, descreve

sua primeira infância, o pátio, “o curral” de sua casa, suas longas “conversas” com os animais,

amigos “personagens” do “jardim gastronômico” da família. Curiosidade à parte, Boal relata

que nessas relações com os animais despertou suas primeiras intuições sobre relações entre

opressor e oprimido. Entre os animais, escolheu o cabrito Chibuco, como seu melhor “amigo”

e seu primeiro “ator”. Nas páginas 39 – 44, o autor narra os episódios de adestramento de

Chibuco e da “tragédia” que resultou de sua “desobediência” ao diretor8.

Enquanto chorava e sofria sua dor de menino, pensa consigo mesmo: “Por que Deus,

que tudo pode, não nos fez vegetarianos? Por que carne, por que o peixe maior comendo o

menorzinho? Ah, Deus, você errou, viu?” Eu tinha perdido um amigo e excelente ator

(BOAL, 2000). Nisso, Boal percebeu ao longe, a presença de seu amigo, humano, César.

Eu chorava quando vi César na porta de sua casa. Enxuguei meus olhos depressa, vergonha do rosto molhado, vermelho e quente. Surpresa: ele também chorava. Homem não chora diziam. De repente, nós, dois homens de nove anos, chorando. [...] Zeca, filho do carvoeiro, seu Antenor, vinha vindo. Seu Antenor era cruel. Todos os dias, Zeca, trabalhando com carvão, ficava com roupas imundas e cara preta. Bastava que o menino se sujasse jogando bola, lá vinha seu Antenor, com corda, fina corrente ou pau, e cascava nas costas e pernas do garoto que gritava: “Papaizinho, por Deus, não me bate, pelo amor da minha mãe!” Todos os dias, o ritual. Ninguém se metia: respeitavam direitos repressores do chefe da família. Sangrando, Zeca voltava a carregar carvão. A mãe de Zeca havia morrido no parto e o menino nasceu de cesariana, na época raríssima. Seu Antenor recriminava o filho pela morte da mulher. Éramos da mesma idade. César tinha pena e comentava: tenho mais sorte que o Zeca, meu pai só me bate às sextas-feiras. “Sexta é dia de tomar porre! Bêbedo, bate...” estava o pai justificado. Eu me sentia superior: meu pai não me batia nunca. César e eu sentados, olhos enxugados, veio Zeca, chorando. “- Meu pai vai se casar com a Galega... – e lhe rolavam lágrimas.” “- Que bom, agora todo mundo vai ter mãe!” “- Mãe não: madrasta!” Madrasta era palavrão na minha infância. Nome tétrico, fantasmagórico. Nós três nos sentíamos culpados. Zeca, pela morte da mãe no parto – César e eu achávamos fatalidade. César pelo casamento – na sua imaginação, ultrajante – da irmã com a luta romana, porque o pai tinha pressa em repassar para o genro os encargos com o sustento da filha, aliviando seu

8 Quintal grande, espaço aos corpulentos. [...] Esse modesto jardim zoológico gastronômico tinha, aos meus olhos de criança, sentido de trágica diversão. Eu me afeiçoava aos bichos, gostava de brincar com eles. Parecíamos amigos: não éramos. Eu conhecia a verdade que me atormentava: vivia na casa grande. [...] Nosso quintal era campo de concentração. Chibuco passou a ser meu animal predileto, foi meu primeiro ator, fez de mim verdadeiro diretor teatral. Eu era autoritário como são os diretores imaturos. Com ele comecei minha carreira teatral: eu dirigia espetáculos caprinos sem jamais consultar meu elenco. Só mais tarde aprendi as alegrias do trabalho em equipe. [...] Deu-se a tragédia. Chibuco saiu da marcação combinada, faltou-me ao respeito e deu-me uma chifrada no peito. Saiu sangue. “Vou contar tudo a mamãe!” Erro trágico, o primeiro dos trágicos erros que cometi na vida. [...] Domingo ouvi minha mãe: “Hoje temos cabrito!”. Procurei meu amigo por toda parte... Chibuco havia desaparecido. Voltei correndo e perguntei chorando: “- Onde está Chibuco?” “- Na mesa”, respondeu meu irmão insolente. Tinha nove anos, idade de pessoas sensíveis, emotivas. Aquele almoço ajantarado marcou minha vida, indelével. Naquele domingo, minha tristeza era motivada por delicada questão ética, dolorosa. O tema: a responsabilidade individual. Questões éticas, para uma criança de nove anos, são impressionantemente importantíssimas.

Page 21: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

20

orçamento. Zeca e eu achávamos que não: livre-arbítrio. E eu, era culpado de quê? Enquanto meus amigos secavam seus olhos, eu transbordava os meus. Chorando cataratas, contei detalhes da morte do meu amigo e ator, Chibuco, primeiro e único! “- Você não teve culpa, não matou. Você nem sabe quem foi...” “- A culpa foi minha sim, toda minha... todinha...” “- Por quê? Foram eles que mataram...” “- É... eu não matei... não matei não... mas... na hora do almoço... eu estava com fome... e ele tão cheiroso... eu não aguentei... e comi um pedaço do Chibuco...” Os três, em coro, desatamos num choro convulso.9

Boal viveu parte de sua adolescência durante a Segunda Guerra Mundial. Como outras

crianças, estava ciente que não se tratava de coisa boa:

Hitler dava medo. Apavoradores discursos em alemão: ouvíamos na rádio. Eu não sabia o que era Heil Hitler! Mas tinha medo. Por isso – quem sabe? – até hoje não consegui aprender alemão; falo algumas línguas, quatro ou cinco, mas alemão, nem pensar. Trago o inconsciente à flor da pele, embora alguns dos meus melhores amigos sejam alemães – não impede. A política também me dava medo porque não sabia de que lado ficar, quais os lados, ou se podia mudar de lado. Quando Getúlio abandonou o noivado alemão e se casou com os Aliados, a noiva não era mais virgem! Boa parte da população, catequizada pra gostar do fascismo, continuou vestida de verde berrando Heil Hitler! Anauê! O que antes era virtude, virou vício! Se antes batiam, agora apanhavam! Vinha o Socorro Urgente: camburão tamanho família, policiais armados com robustos cassetetes de borracha dura, desciam do carro e, sem perguntas, baixavam o pau! Violentos e democráticos: pancadaria distribuída à farta, sem distinções de sexo, raça ou cor. Quem estivesse em sua área de ação, porrada! Desmaios. Vinha a ambulância, horas depois, cuidar dos feridos10.

Apesar de viver nesse momento conturbado e violento, o protagonista continuava sua

vida, sabendo que havia algo de errado acontecendo, mas bastante distante de entender do que

se tratava e quais eram os reais perigos que ele, sua família e amigos estavam expostos.

Com onze anos ajudava o pai na padaria levando encomendas, servindo café. Na

padaria, assim como na casa em que moravam, Boal gostava de observar as pessoas. Na casa,

ficava sentado na ponte em frente ao portão11, vendo a vida passar; na padaria, achou um

banco atrás do balcão, de onde ficava observando o movimento. “Sempre precisei de uma

Torre de Comando, como diretor na escuridão dirigindo atores iluminados” (BOAL, 2000)

Além das atividades na padaria, ainda sob o clima da guerra, Boal iniciou suas

experiências teatrais com seus irmãos, irmãs, primas e primos.

9 BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record. 2000. P. 44-49. 10 Idem, p. 80. 11 Muitas pessoas tiveram infâncias parecidas com a minha e nem todas se entusiasmaram pelo teatro. Talvez o fato de ficar sentado na ponte na frente da minha casa, olhando as pessoas passarem, tenha me influenciado a ver o que há de teatro na vida e de vida no teatro. Boal em entrevista para Ana Paula Cassettari http://www.opalco.com.br/foco.cfm?persona=materias&controle=123 Consultado em 19/07/2010.

Page 22: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

21

Meus irmãos e eu tivemos a ideia de fazer um teatrinho. Líamos o fascículo

da semana e o dramatizávamos. Curioso: eu nunca entrava em cena, queria ser diretor. Dizem minhas irmãs que eu era autoritário, mas concordam ser necessário, porque meu elenco era indisciplinado. Ensaiávamos aos domingos e no fim da tarde, a família se sentava na sala de jantar, desempenhando com brilho o papel de plateia. Irmãos e primos eram atores. Como havia muitos personagens, tinham que representar vários papéis. Talvez tenha sido aí que comecei a imaginar o Sistema

coringa: acontecia que o mesmo personagem fosse representado por vários e cada irmão representava vários personagens. Não existia propriedade privada dos personagens pelos atores: cada cena era contada por quem estava disponível, cada personagem por quem dele mais gostasse. Já aí eu usava a forma “Arena conta...: irmãos Boal e seus primos contam...12”

Nessa época, Boal já usava a técnica que passou a desenvolver mais tarde no Teatro de

Arena e na realização do TO. Quando criança, a falta de elenco fazia com que a necessidade

de improvisar lhe mostrasse uma forma de substituição que se tornou modelo nas maneiras

teatrais pesquisadas por Boal. O teatrólogo, desde criança, gostava de ter sua “torre de

comando”, como ele mesmo relata nas páginas 82 e 83 de sua autobiografia, e sempre

ocupava o lugar de direção13.

Começava ali a trajetória de um dos maiores nomes do teatro brasileiro, reconhecido,

admirado e adotado em mais de 70 países. A inocente brincadeira entre irmãos e primos

acabou por despertar de vez em Boal o desejo de ser artista, de fazer teatro. Naquela época, no

entanto, fazer teatro não dava status. O Boal pai queria que seu filho fosse doutor formado,

que era coisa de homem e que garantia o sustento de uma família que provavelmente viria

mais tarde. Mesmo com suas ideias e preferências diferentes das do pai, as opções oferecidas

ao rapaz eram poucas e ele não tinha muita escolha.

Quando entrei para o Colégio Brasileiro de São Cristóvão, aos quinze anos, minha vida mudou: metamorfose. Borboleta sai do casulo, explorando espaço e tempo. Até meus quinze anos, Penha e olaria eram meu “mundo”. [...] Eu gostava de Química pelo professor Gildásio e porque Renata adorava Química. No primeiro olhar Renata entrou na minha vida. Eu tinha dezesseis anos e precisava, urgente, de

12 BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record. 2000, p. 81-82. 13Nosso teatrinho durou vários espetáculos, comigo acumulando funções de diretor e ponto, porque fazia questão que meus irmãos respeitassem o texto do autor. Continuei assim a vida inteira, respeitador! Eles, ao contrário, queriam improvisar. [...] Sendo o espetáculo curto, acrescentávamos um show de variedades no final da peça. Era a vez de Marlene, prima de seis anos, que vinha encantar a família. Voz linda, linda, mas... eu era implicante, quando menino. Atores representavam uma história – estavam a serviço de alguma coisa. Nos solos, o cantor mostrava-se a si mesmo. Inventei um prêmio que, ao mesmo tempo, premiasse e culpasse – sádico, na infância. Minha prima Marlene, ainda hoje (1999) lembra que o premio se chamava Abacaxi – anos antes de Chacrinha, diz minha prima. Minha admiração pelos atores data daqueles espetáculos. Tenho certeza de que a partir da primeira experiência com meus irmãos, adotei a ideia fixa de fazer teatro. Assim que minha primeira temporada teatral infantil acabou, começou meu desejo de ser artista. Sou! Prefiro trabalhar com atores imperfeitos, que tenham medo de entrar em cena, mas que tenham ideias na cabeça, desejos no coração – dialoguem. Nosso teatrinho infantil durou a infância. Deixou a vontade enorme de começar à vera o que era à brinca.

Page 23: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

22

uma namorada. Renata me tratava com carinho só pra mim. Eu retribuía, pletórico, sem exageros. Acho que era namoro – cada idade tem sua feição. [...] Ficamos assim dois anos. No terceiro, tínhamos que escolher carreira. Meu pai dizia que eu tinha que levar a vida a sério. Rapazes seriam engenheiros, médicos: profissões bem pagas, prestígio. Moças se arrependiam de ter entrado para o Científico e não Clássico e optavam por Belas Artes ou desistiam, buscando casamento. Meu pai perguntou ao vendedor do fermento Fleischmann quanto ganhava de salário. Nada. Quanto ganhava o químico responsável pelo fermento? Enormidade. A partir daí, a profissão de químico passou a ser valorizada. [...] Nenhum namoro se concretizava: paixão pairando. Eu gostava de gostar, apaixonado pela paixão! Amores podiam esperar: profissão era urgente! “Que profissão, meu Deus!?” Angústia! Medo! Queria teatro. Depois de dirigir cabrito, quatro irmãos certos e primos aleatórios, depois de poesias e contos, diálogos esparsos e novas versões de velhos romances, eu não queria parar: queria teatro. Teatro. Onde a coragem de contar ao pai? Jamais entenderia, quanto mais permitir... Teatro, para ele, eram brincadeiras que fazíamos em família, três chapinhas de cerveja, ou eram as revistas musicais do Teatro Recreio, na Praça Tiradentes. Meu pai e minha mãe – ela mais aberta às ideias insólitas – não poderiam entender meu desejo, nem imaginar que teatro pudesse ser estudado em Universidades. Como bom imigrante, meu pai dizia que teríamos total liberdade pra de escolher a profissão... desde que formássemos em doutores. Meus irmão e irmãs escolheram medicina, arquitetura, letras neolatinas... Carreiras doutorais. E eu? Doutor, em quê? Teatro? Nem pensar! “- E você Renata, vai seguir o quê?” “- Química...” Por que não? Químico é doutor. Química é divertida, alegre... Química Orgânica explicava a Vida! Explicava Renata bronzeada. Viva a Química! Cheguei em casa e anunciei: “- Química...” “_ É bom... – disse meu pai. – o químico do fermento Fleischmann ganha uma fortuna. Química é séria...” Comecei a sonhar com o futuro; Renata e eu, vestidos com belos aventais brancos, experiências mágicas, provetas... Nós, Renata e eu, estávamos decididos. Seríamos químicos! Eu estava certo de que, na faculdade, com dezoito anos, Renata e eu certamente teríamos a coragem de dizer o “Eu te amo!...” que faltava. Veio o dia do exame. Houve um pequeno inconveniente: eu passei, Renata não. Quando me dei conta, estava na Universidade estudando Química com todos os tubos de ensaio, provetas, com que sonhara... mas sem minha Renata querida, sem o sonho... Sonhei sonho vazio, tela branca...14

Enfim, Boal escolhera sua carreira de doutor, mesmo com pouca convicção optara por

cursar uma faculdade15. Ele havia planejado tudo, uma linda história de amor e de profissão.

Renata vinha ao encontro dos seus desejos amorosos e a faculdade de Química dava conta das

cobranças da família, principalmente do pai.

Os sonhos de Boal se desmancharam antes mesmo das aulas começarem. Pelo menos

os sonhos amorosos. Renata havia ficado pra trás. Vontade de ficar não lhe faltava. Abriu mão

14 BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record. 2000. P. 97-105. 15Sou engenheiro químico. Fiz esse curso porque meu pai, imigrante português, queria que todos os filhos fossem doutores. E o teatro não dava doutorado naquela época. Como eu gostava muito da garota que namorava e ela ia fazer química, não tive dúvidas: faria a mesma coisa. Fiz o vestibular, só que eu passei e ela não. De repente, me vi num laboratório, a namorada foi para letras ou outra coisa e o namoro acabou. Boal em entrevista para Rose Spina e Walnice Nogueira Galvão em http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/cultura-entrevista-augusto-boal Consultado em 19/07/2010.

Page 24: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

23

do seu amor ainda nem declarado e ingressou na faculdade, para obter seu diploma de doutor,

orgulho da família.

Quando me dei conta estava com avental branco, sentado numa cadeira branca, mesa branca, provetas e tubos serpentinos, líquidos coloridos... No mais, tudo branco, inclusive o chão. Fiquei pálido de espanto. Fiquei branco. “Meu Deus, o que é que eu estou fazendo aqui?!” agora, em lugar do perfume de Renata, a sala cheirava a enxofre amarelo, queimado. Meu nariz cheirava enxofre e a enxofre. Meu pulmão, enxofre só! Químico que não gosta de enxofre é médico com medo de sangue. Goleador que detesta pênalti. Não pode: tem que amar – pênalti, sangue e enxofre! Eu tinha medo do ácidos. Queimam, furam! Levei sustos líquidos estudando química. “Meu Deus... ainda faltam quatro anos!” Acabava de entrar e pensava em formatura! Em nenhum momento pensei em desistir. Meu pai merecia sacrifícios: queria filhos doutores! Jurei que não seria a ovelha negra. Logo no primeiro mês, eleições para o Diretório Acadêmico. Diretor do Departamento Cultural: candidato único. Diretor Cultural tinha responsabilidade de organizar conferências, exposições, debates, o que fosse, desde que se pudesse nomear cultural! Gafieira: cultura, é claro. Pela primeira vez era diretor de alguma coisa, o que era muita coisa. Vi duas oportunidades: encontrar pessoas importantes que eu admirava e ver de graça espetáculos; as companhias convidavam universitários. Pude ver Procópio e sua filha Bibi Ferreira, Dulcina e seu marido Odilon, Dercy Gonçalves e seus palavrões, e até companhias estrangeiras. Vi o famoso Willy loman de Jaime Costa, na Morte do caixeiro viajante, de Arthur Miller. Jaime, artista mais para as variedades do que para as seriedades teatrais. Dentro do possível, Jaime estava admirável. Aprendi que, se um ator é bom para um gênero, já merece confiança para todos; não se pode prejulgá-lo. Catalogar o artista é mal irremediável: dama caricata, galã romântico, centro ou capô cômico, só serve para limitar o ator para àquilo que já se sabe, a continuar sendo o que é, repetidor de si mesmo. Eu queria ver peças e artistas, falar teatro: ficava triste quando descia o pano e eu ia pra casa pensar sozinho, queria fazer perguntas, aprender. Resolvi organizar um Ciclo de Conferências. Pra começar, convidei o dramaturgo que mais admirava, Nelson Rodrigues16.

A Química, enfim, não era de todo ruim. Havia conseguido um cargo de Diretor

Cultural. Pronto, estava fazendo uma faculdade para ser doutor, projeto da família, e

conseguira um cargo que lhe mantivesse em contato com o que realmente queria e ainda lhe

proporcionava algumas regalias, permitindo contato com a classe artística e, assim, crescer,

conhecer e se tornar conhecido.

Timidamente, Boal foi enveredando pelo mundo das artes, mais especificamente no

mundo do teatro, seu grande sonho. Conseguia ingressos gratuitos aqui e ali, para diversos

espetáculos. Não tinha interlocutor para seus questionamentos e colocações. O vazio lhe

incomodava. Então decidiu fazer uso do “poder” de seu título de Diretor Cultural,

organizando um Ciclo de Conferências. Seria um marco pra sua gestão! Grande evento, com

16 Idem, p. 106-110.

Page 25: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

24

muitas pessoas, calculava umas duzentas ou trezentas, afinal, além de gratuito, o primeiro

convidado e palestrante seria seu grande ídolo, o dramaturgo Nelson Rodrigues17.

Fui à redação do seu jornal depois que, pelo telefone, ele concordou em fazer uma palestra. Nelson perguntou, modesto, se eu acreditava que alguém fosse assistir: não queria falar pra cadeiras vazias. Claro! Só a Escola de Química poderia assegurar cem pessoas. Mais gente viria de toda parte... essas coisas se espalham boca a boca... Trezentas... Talvez mais. Fui a ABI, onde era presidente Herbert Moses, pedi a sala maior. De graça. Fiquei decepcionado porque cabiam apenas duzentas pessoas. O funcionário me tranquilizou “- Os retardatários ficam de pé ou sentam no chão.” Nelson foi o segundo a chegar – o primeiro, eu. Depois de nós, passaram-se minutos e angústias, passou meia hora e o primeiro a chegar foi o meu desespero. Um tímido saiu do elevador, em silêncio; duas pessoas magras... três... sete. “- Vamos começar – sugeriu Nelson.” Poucas vezes senti tanta angústia como naquele fim de tarde, quando vieram sete pessoas ouvir Nelson Rodrigues. Brincalhão, Nelson começou a palestra perguntando se não seria melhor fazê-la no, botequim frequentado por artistas, que ficava em frente. Ganhava-se tempo misturando conferência e cafezinho, teoria e prática... Esse bom humor e modéstia contrastavam com as histórias que se contava do dramaturgo. Sou testemunha de que era excelente amigo. Meu testemunho vale mais porque em nenhum momento comunguei com suas ideias políticas. Eu tinha admiração pelo escritor e pelo amigo. Talvez nem tanto por suas peças – confesso escondido, me perdoem... – mas, pela energia com que as defendia. A partir do fiasco como empreendedor cultural, comecei a cultivar sua amizade. Dos seus conselhos, o que repetia com maior com maior convicção era o de deformar a realidade. Teatro não é realidade: é uma visão da realidade. Logo, não tinha porque ser igual. Falávamos sobre teatro e futebol. Nelson era apaixonado pelo mesmo clube de futebol que eu, o Fluminense, o que nos provocava secreta vergonha: no início, nosso clube proibia jogadores negros, o que deu origem a outro clube, o Flamengo, formado pelos anti-racistas revoltados18.

Augusto Boal, estudante de Química, apaixonado por teatro, era agora amigo de

Nelson Rodrigues, um dos maiores dramaturgos da época. Orgulhoso, Boal lia as peças que

eventualmente Nelson solicitava que ele lesse e desse sua opinião. Era a glória. Lendo e

opinando sobre as peças de Nelson Rodrigues.

Foi com Nelson que Boal passou a se tornar mais íntimo do meio teatral. Passou a

conhecer dramaturgos, atores, atrizes, escritores, músicos, artistas de modo geral. Seu sonho

ia se concretizando. No entanto, era inevitável esquecer a faculdade de Química, não poderia

e nem queria desistir, embora sua vontade fosse se deixar ficar ali no meio dos artistas, em

suas longas conversas sobre a vida e a arte.

17 Em depoimento na FLIP[2], Augusto Boal testemunhou sobre Nelson Rodrigues: "O principal conselho que

me dava e eu me lembro bem, era: ─ 'Deforma!'" E prosseguindo: "Apesar de escrever, mais tarde, uma coluna intitulada 'A Vida Como Ela É', Nelson me aconselhava a deformar a realidade como ela não era, ou pelo menos, mostrar a minha visão da realidade ─ fugir da fotografia". Para arrematar: "Tinha razão: teatro não é a reprodução do real, é a sua transubstanciação. Arte é Metáfora, não cópia servil" (BOAL, 2007, 10). Retirado de http://blogdojosafa.blogspot.com/2010/09/nelson-rodrigues.html, consultado em 07/10/2010. 18 BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record. 2000. P.110-113.

Page 26: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

25

Foi Nelson que me apresentou ao Sábato Magaldi. Assistimos a uma peça e fomos conversar. Sábato provocava minha admiração: tinha lido todos os livros, assistido a todas as peças. Inteligente, tinha opiniões. Outros falavam por citações – Sábato, com texto próprio. No Vermelhinho conheci uma porção de artistas. Lá conheci Abdias. Antes, minha relação com os negros era de piedade: sentia pena dos negros da Penha. Depois, passou a ser de admiração: como era possível, cercados por tanto preconceito, que os negros sobressaíssem, fosse no que fosse? No teatro, por exemplo, personagem negro era escravo ou criado. Para o papel de Otelo, nem pensar! Pele: estigma! Meus personagens passaram a ser menos piegas e mais revoltados. Passei a gostar de subversivos combatentes19!

Depois de suas vivências com a classe artística, Boal mudou. O mundo e a vida, agora,

se apresentavam sob novas e diferentes perspectivas, com outros sentimentos, outros valores,

outras realidades.

Tentar seguir duas carreiras ao mesmo tempo não é fácil, ou bem se dedica mais para

uma ou bem pra outra. O agora rapaz, Boal, conseguia, com bastante jogo de cintura, dar

continuidade aos seus sonhos e projetos teatrais e à faculdade de Química. Sempre conseguia

algum amigo disposto a embarcar nos seus projetos teatrais. Dessa vez, insatisfeito com os

grupos de teatro da cidade resolveu fundar o Teatro Artístico do Rio de Janeiro.

Decidimos fundar o Teatro Artístico do Rio de Janeiro. Procuramos teatro, elenco, peça, e enquanto isso, sonhávamos. Fui em 53 para os EUA, voltei em 55, e continuávamos procurando. Nessa busca pela primeira vez, colocou-se na minha consciência a função social do teatro e seu significado político. Teatro serve para divertir ou educar? Testemunho ou catequese? Educar vem do latim e quer dizer conduzir. Teríamos nós o direito – ou poder! – de conduzirmos nosso público? Onde? [...] Na Química ia passando de ano. Era reconfirmado Diretor Cultural [...]. Seria necessário educar o público. Primeiro atraí-lo, depois educá-lo. Sendo o Rio cidade balneária, teríamos que começar com um repertório que não metesse medo. Comédias digestivas. Fazíamos ressalva: sem cair na idiotice! Nada de superficialidades. Besteirol, jamais20!

Começava ali, sem grandes pretensões, a história de um trabalho premiado, de um

grande teatrólogo, reconhecido no mundo inteiro pelas suas experiências com as novas

maneiras do fazer teatral, que seria chamado de TO. Boal nem imaginava que suas

inquietudes fossem alcançar o mundo.

Boal estava terminando o curso de Química e, em breve, teria o diploma de doutor.

Com o título de doutor e com a criação do Teatro Artístico do Rio de Janeiro, tanto o pai

19 Idem, p. 113-114. 20 Idem, p. 114-115.

Page 27: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

26

quanto o filho estariam de certa forma recompensados. O rapaz procuraria trabalhar como

doutor, mas seguiria a vida artística, de reuniões, de encontros no Vermelhinho, de pesquisas

com seus amigos do teatro.

Mil novecentos e cinquenta e dois foi meu último ano na universidade. Recebi meu diploma no Teatro Municipal. Chorei escondido. Era doutor, como queria meu pai. Fui diplomado – foi a primeira vez que me aplaudiram em um teatro! Minha mão tremia e a consciência também: “Será que mereço? Sou químico? Será que não quero ser o que eles estão discursando que sou?” Crise de identidade. Tive muitas em minha vida. Será que sou, neste instante, quem estou escrevendo que fui?Eu, serei eu? E, se não, quem? Arre! Aos vinte e um já era Químico Industrial. Meu pai, homem bom e justo, me deu direito a um ano de especialização no Exterior. Poderia estudar um ano inteiro. Engenharia Química, bem entendido. Pensei na França ou nos Estados Unidos, onde tinha visto algumas escolas de teatro. Mas teria que estudar plásticos e petróleo misturados com teatro. Na livraria Civilização Brasileira, encontrei European Theories of the Drama, de Barrett Clark, com ensaios de teóricos do teatro ocidental. O último capítulo colecionava escritores norte-americanos. Lá estava John Gassner – quis estudar com ele. Eu escrevi uma carta, certo de que jamais teria resposta: professor tão importante ia lá encontrar tempo pra responder a um rapaz suburbano?! Claro que não. Semanas mais tarde, Gassner respondeu dizendo que, a partir do ano seguinte, estaria lecionando Playwriting na Columbia University, deu o nome e o endereço do diretor, Milton Smith21.

A partir dali, dá-se início a jornada de Augusto Boal em busca do teatro que ele

sonhava já havia muito tempo. Foi para o exterior, estudar Engenharia Química pela vontade

de seu pai e Teatro por vontade própria. Ficou nos Estados Unidos por praticamente dois

anos. Aprendeu muito mais do que Química, inglês e cultura norte-americana; aprendeu,

estudou, pesquisou teatro, agora acompanhado por um professor, John Gassner.

1.2 O ESPECT-ATOR: PESSOA E PERSONAGEM

Quando ainda criança, nas direções de suas peças com os irmãos, irmãs, primos e

primas, Boal já usava, o sistema coringa, ou seja, quando alguém de seu elenco fazia várias

personagens, ou porque gostava, ou porque faltava alguém para completar as personagens da

peça. À época, Boal não fazia ideia de quanto o coringa inspiraria sua criação do espect-ator.

O espect-ador que, na verdade, para Boal são espect-atores, têm a responsabilidade de

retirarem dos espectadores a condição de meros observadores passivos e passarem a serem

21 Idem, p. 115-117.

Page 28: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

27

protagonistas tanto nas cenas teatrais quanto em suas vidas. Ou seja: aqueles que são

observadores e atuantes nas cenas teatrais devem, também, assumir, junto com seus parceiros

o controle de suas vidas, sabendo como e quando devem agir.

No princípio, o teatro era o canto ditirâmbico: o povo livre cantando ao ar livre. O carnaval. A festa. Depois as classes dominantes se apropriaram do teatro e construíram muros divisórios. Primeiro, dividiram o povo, entre atores e espectadores: gente que faz e gente que observa. Terminou-se a festa! Segundo, entre os atores, separou os protagonistas das massas: começou o doutrinamento coercitivo! O povo oprimido se liberta. E outra vez conquista o teatro. É necessário derrubar muros! Primeiro o espectador volta a representar, a atuar: teatro invisível, teatro foro, teatro imagem, etc. Segundo, é necessário eliminar a propriedade privada dos personagens pelos atores individuais: Sistema Coringa. Com estes ensaios procuro mostrar alguns dos caminhos pelos quais o povo reassume sua função protagônica no teatro e na sociedade22.

Para entender a concepção de espect-ator de Boal, faz-se necessário compreender

primeiramente o que se conhece como um espectador, para depois poder fazer a transição de

espectador para espect-ator, que é a proposta do teatrólogo.

Sobre o que é o espectador, Patrice Pavis escreve:

O teatro é, à primeira vista, o lugar da exterioridade onde se contempla impunemente uma cena, mantendo-se a si mesmo à distância. É, segundo Hegel, o lugar da objetividade e também aquele do confronto entre palco e plateia; logo, aparentemente, é um espaço exterior, visível e objetivo. Mas teatro é também local no qual o espectador deve projetar-se (catarse, identificação). A partir de então, como por osmose o teatro se torna espaço interior. Para que haja teatro é preciso que haja um início de identificação e catarse. Encontramos na personagem uma parte do nosso ego recalcado e talvez mesmo o fato de que o criador nos coloca em condições de fruir doravante, sem censura e desavergonhadamente nossas próprias fantasias contribua grandemente para esse sucesso. Assim, o espaço cênico adota a forma e a coloração do ego espectador: ele é, alias, com muita frequência, muito pouco caracterizado (dentro do estilo atual) e só toma corpo realmente graças à projeção de um ego exterior23.

A ideia de espectador de Boal ultrapassa essa definição. Mais do que a catarse e

somente a identificação, ele acreditava que poderia e deveria ocorrer um envolvimento maior

do espectador com as personagens e a cena. Esse envolvimento ultrapassaria a identificação

com a personagem, chegando ao ponto de ocorrer uma substituição, em que a pessoa que

22 BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poética políticas. 8ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. P. 177. 23 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro: tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Ginsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2005.

Page 29: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

28

assiste o espetáculo, o espectador, passa a se tornar personagem e atuar no espetáculo. Nos

termos de Boal:

Espectador, que palavra feia! O espectador, ser passivo, é menos que um homem e é necessário re-humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua plenitude. Ele deve ser também o sujeito, um ator, em igualdade de condições com os atores, que devam por sua vez ser também espectadores. Todas essas experiências de teatro popular perseguem o mesmo objetivo: a libertação do espectador, sobre quem o teatro se habituou a impor visões acabadas do mundo. E considerando que quem faz teatro, em geral, são pessoas direta ou indiretamente ligadas às classes dominantes, é lógico que essas imagens acabadas sejam as imagens da classe dominante. O espectador do teatro popular (o povo) não pode continuar sendo vítima passiva dessas imagens. O mundo é dado como conhecido, perfeito ou a caminho da perfeição, e todos os seus valores são impostos aos espectadores. Estes passivamente delegam poderes aos personagens para que atuem e pensem em seu lugar. Ao fazê-lo, os espectadores se purificam de sua falha trágica – isto é, de algo capaz de transformar a sociedade. Produz-se a catarse do ímpeto

revolucionário! A ação dramática substitui a ação real. O mundo se revela transformável e a transformação começa no teatro mesmo, pois o espectador já não delega poderes ao personagem para que pense em seu lugar, embora continue delegando-lhe poderes para que atue em seu lugar. A experiência é reveladora ao nível da consciência, mas não globalmente ao nível da ação. Ação dramática

esclarece ação real. O espetáculo é uma preparação para a ação. A poética do oprimido é essencialmente uma Poética da Liberação: o espectador já não delega poderes aos personagens nem para que pensem nem para que atuem em seu lugar. O espectador se liberta: pensa e age por si mesmo! Teatro é ação! Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mesmo, mas não tenham dúvidas: é um ensaio

da revolução! (BOAL, 1973)24.

A fábula chinesa de Xuá-Xuá, a fêmea pré-humana que teria descoberto o teatro, é

usada por Boal para representar o espect-ator que o teatrólogo busca apresentar.

Xuá-Xuá viveu há dezenas de milhares de anos, quando as pré-mulheres e os pré-homens ainda vagavam pelas montanhas e pelos vales, à margem dos rios e dos mares, pelos bosques e florestas, matando outros animais para se alimentar, comendo plantas e frutos, protegendo-se do frio, morando em cavernas. Não havia se inventado ainda nenhuma linguagem falada ou escrita. Xuá-Xuá era a mais bela fêmea e Li-Peng o mais forte dos machos. Naturalmente, eles se sentiam atraídos um pelo outro, gostavam de ficar juntos, se lamber, tocar, abraçar, fazer sexo juntos, sem saber ao certo o que estavam fazendo. Um belo dia, Xuá-Xuá sentiu que seu corpo se transformava: seu ventre crescia mais e mais, além da elegância. Então ela preferiu ficar só, vendo seu ventre inchar. Uma noite, Xuá-Xuá sentiu seu ventre de mexer. Dentro do ventre da mãe, Lig-Lig-Lé – assim se chamava o menino, ou qualquer outro nome que fosse, porque nenhuma linguagem fora inventada. Lig-Lig-Lé crescia e se desenvolvia. Alguns meses depois Xuá-Xuá deitou-se à margem de um rio e deu à luz a um menino. Era pura magia! Xuá-Xuá olhava o seu bebê. Aquele corpinho minúsculo, que parecia com o seu, era sem dúvida uma parte sua que antes estava dentro dela e agora estava fora. Mãe e filho eram a mesma pessoa. De longe, Li-Peng observava. Bom espectador. Uma noite Li-Peng queria criar sua própria relação com o menino. Xuá-Xuá ainda dormia quando os dois (pai e filho) partiram, como bons companheiros. Li-Peng soube perfeitamente que ele e Lig-Lig-

24 BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poética políticas. 8ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. P. 236, 237.

Page 30: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

29

Lé eram duas pessoas diferentes. Ele era ele, e a criança era o outro. Ensinou seu filho a caçar, pescar etc. Lig-Lig-Lé estava feliz. Xuá-Xuá chorava cada vez mais porque perdera uma parte bem-amada de si mesma. Xuá-Xuá reencontrou pai e filho alguns dias mais tarde. Tentou recuperar seu filho, mas o pequeno corpo disse não. Xuá-Xuá foi obrigada a aceitar que aquele pequeno corpo, mesmo tendo saído do seu ventre, obra sua – ele era ela! – era também uma outra pessoa com seus próprios desejos e vontades. Esse reconhecimento obrigou Xuá-Xuá a olhar para si mesma e a ver-se como apenas uma mulher, uma mãe, uma dos dois: obrigou-a a se identificar e a identificar os outros. Foi nesse momento que se deu a descoberta! Quando Xuá-Xuá renunciou a ter seu filho totalmente para si. Quando aceitou que ele fosse um outro, outra pessoa. Ela se viu separando-se de uma parte de si mesma. Então, ela foi ao mesmo tempo atriz e espectadora. Agia e se observava: eram duas pessoas em uma só – ela mesma! Era espect-atriz. Como somos todos espect-atores. Descobrindo o teatro, o ser se descobre humano25.

A fábula representa de forma poética o “agir e observar” que é o que Boal espera de

um espect-ator. Saber quando e como agir, observando o agir de outrem. O espectador sai de

seu lugar de catarse e interage com o espetáculo, intervindo na cena com a qual se identifica,

atuando conforme seria sua reação caso se tratasse de uma situação real.

A revolução de que Boal fala, quando a pessoa sai do seu lugar de espectador e passa a

ser um espect-ator vem ao encontro do que foi citado no parágrafo anterior. Qual seria a

reação de quem assiste a um espetáculo de teatro, quando se identifica com alguma

personagem ou alguma situação, se esse espectador entrasse na cena e pudesse transformar

aquele momento de sua vida, da mesma forma que o espect-ator possibilita a transformação, a

reação, a “revolução” realizada durante o espetáculo? Como seria se na vida o ser humano

saísse de seu papel de espectador, passivo e passasse a ser um agente de transformação, um

ator de seu próprio espetáculo?

[...] possibilidade de métodos de trabalho que proporcionassem uma melhor preparação do indivíduo para ações reais na sua existência cotidiana e social com vistas a uma liberação. Basicamente, o “espect-ator” é incentivado a interromper a ficção observada, sempre que julgar “falsas, ou irreais, ou mistificadoras ou ineficientes ou idealistas” as soluções vistas em cena, situando-se este teatro, portanto, nos limites entre ficção e realidade, e o “espect-ator” entre pessoa e personagem26.

Uma vez tendo ciência de seu poder e das possibilidades de transformação, o

espectador da vida real, tendo participado de uma experiência num espetáculo como espect-

25 BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. 7º edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. XV-XX. 26 Catarina Sant’Anna em http://josekuller.wordpress.com/39-artigo-sobre-a-obra-de-augusto-boal/ Consultado em 30/07/2010.

Page 31: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

30

ator, terá mais facilidade de identificar o momento em que ele não passa de um mero

observador e saberá o momento e a maneira de se tornar mais atuante, promovendo a

revolução através das suas experiências teatrais.

Sobre a revolução através do teatro proposta por Boal, com o Sistema Coringa,

entrando em cena o espect-ator, Sábato Magaldi argumenta sobre sua interpretação da

experiência proposta:

Essa revolução guarda toda a vitalidade alegre e contagiante da farsa primitiva. Sente-se nela o sopro criador do teatro. Pelo trabalho consciente do dramaturgo, ela significa mais ainda: assimila, pelos seus vários aproveitamentos, as lições tradicionais do teatro, e mistura-as com os estímulos imediatos da experiência nacional – a revista e o circo. Torna-se um amálgama feliz de nossa aventura artística. Exprime, por esse lado, o que há de mais autêntico em nossa cultura: a aliança do aprendizado europeu e norte-americano com as forças espontâneas da nacionalidade27.

O trabalho, as pesquisas e experiências do teatrólogo se baseiam no sistema coringa,

na utilização do espect-ator. O TO tem como um dos seus pilares principais esse sistema,

usado nas diferentes maneiras, nomes, em que o teatro do oprimido se apresenta e é conhecido

pelo mundo todo.

Como grande observador que foi desde criança, quando seus melhores amigos eram os

animais do quintal de sua casa, já naquela época Boal sabia da diferença existente entre ele e

seus amigos animais. Já ali ele observou que os animais eram apenas meros espectadores de

sua curta estadia no quintal da casa. Obviamente, os animais não tinham consciência de sua

condição, mas o pequeno Boal tinha consciência por e para eles. Naquela época, ele já sabia

que algo estava errado entre quem apenas vê o “espetáculo da vida” passar, sem reagir, sem se

manifestar e quem sabia que poderia observar e não apenas ver e, a partir daí, agir e reagir.

Essa experiência o teatrólogo nunca esqueceu, usando-a inclusive com um dos

fundamentos de sua obra legada ao mundo, como se constata no excerto a seguir:

Afinal o que permanece nos vários teatros de hoje? Um espaço, um homem no espaço, outro que observa? Algumas tendências do teatro contemporâneo excluem a necessidade de um espaço próprio e definido para a realização da

27 Sábato Magaldi em http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/homenagem-augusto-boal/ Consultado em 30/07/2010.

Page 32: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

31

manifestação teatral. Um homem observa o comportamento de outro homem – ou seja: um espectador e um ator ainda serão a condição mínima? Ao que tudo indica, aqui está o intrigante centro do questionamento. Boal chega a afirmar que “espectador’ é uma palavra obscena. Certas técnicas de suas propostas acentuam a necessidade de eliminar aquele que apenas “assiste”, liberando-o de uma condição que seria, necessariamente opressiva. Para Boal, a poética do oprimido se transforma na poética da libertação. [...] Para Boal, o teatro é ação. Seu objetivo é fazer com que o “espectador”, em seus estudos teatrais, interrompa a ação dramática, incorporando-se àqueles que a conduzem, formulando, através de representação, sua compreensão e capacidade de agir28.

Persona e personagem, o que assiste e o que atua, o espectador e o ator, observador e

agente, o espect-ator, figura central dos estudos de Boal para o desenvolvimento e criação do

TO consiste, como contextualizado acima, no ser humano ciente de sua condição na vida.

Tendo essa consciência, surge o espect-ator, que não é usado somente no fazer teatral, mas no

cotidiano de cada pessoa, que saiba observar, intervir, agir, reagir e “revolucionar” na hora

certa, sabendo dessa maneira conduzir sua vida como ser atuante, não permitindo nenhuma

forma de opressão.

Zumbi foi a cristalização das experiências que havíamos feito. Sabíamos que não íamos dialogar com o povo. Mostraríamos a nossa cara. O espetáculo era como se um grupo de amigos invadisse a sala de visitas, onde outros amigos, a plateia, nos esperassem. Para que não houvesse a mais a mínima esvaída sombra da mais remota e longínqua dúvida, o elenco cantava em coro: “O Arena conta a história/pra você ouvir gostoso: /quem gostar nos dê a mão, /e quem não tenha outro gozo!” Tinha que ficar claro: quem contava a história era o Arena! Sistematizei o Sistema Curinga: nenhum personagem seria propriedade privada de nenhum ator. Todos tinham o direito de interpretar qualquer personagem, homens papéis de mulheres e vice-versa. Atores se destacavam dos personagens, que passavam de mão em mão. Cada personagem tinha um jeito de ser, imagem preferencial que seria reconhecida, fosse qual fosse o intérprete do momento. Isso permitia que apresentássemos personagens da maneira que eu vinha buscando, onde cidadãos perseguidos interpretariam personagens como eles, vivendo em sociedade autoritária. Os personagens que queríamos apresentar tinham que ser separados dos atores. Para isso servia a interpretação coletiva, o rodízio. O espetáculo era interrompido pelo Curinga e podia interpretar qualquer personagem, quando necessário. Explicava significados escondidos. Começo do diálogo com a plateia que eu viria mais tarde a desenvolver plenamente como Teatro do oprimido. [...] O Sistema Curinga definiu-se. Estávamos contentes com a separação de personagens e atores. No distanciamento brechtiano, o personagem encarnava no mesmo ator. Simples acorde de violão – zás! – atores e personagens trocavam de par. A perda da empatia e seu tremendo poder de convencimento, no entanto, que pena! Queríamos reconquistá-la. Decidimos que o protagonista seria sempre o mesmo ator. Em Arena conta

Tiradentes, Davi José era o único Alferes. Os demais se revezavam. Razão e emoção, queríamos tudo, na maior intensidade, alta voltagem. O protagonista não entendia; o Curinga dava explicações, para que não restasse dúvida quanto às intenções, à situação social e política da sua época e da nossa. O Curinga entrevistava personagens, quando necessário, misturando níveis de consciência e de tempo. O Curinga cidadão aqui e agora, tinha o saber da nossa época e, no passado, a consciência do futuro: hoje o personagem, Inconfidente, distante no tempo, sabia o

28 PEIXOTO, Fernando. O que é teatro. 14ª edição. São Paulo: Brasiliense, 2006. P. 15-17.

Page 33: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

32

que era possível saber no seu lugar e momento. Aquela experiência tinha ficado em nossas memórias pra sempre: o Curinga dava-se ao direito de indicar caminhos e... cruzar os braços. Que direito tínhamos nós de exigir que os outros fizessem tudo? Não seríamos nós parte desses outros? Fôssemos à luta! [...]... escrevíamos, mas ninguém pegava em armas. Onde armas? A curiosidade se acendeu em nós. A partir de Tiradentes, alguns de nós começaram a pensar e ação efetiva: amaldiçoar ditaduras mentecaptas e carrascas era pouco! Alguns queriam cumprir o que julgavam dever29.

A revolução buscada por Boal com o espect-ator está diretamente ligada à passividade

do ser humano diante das situações de opressão que se apresentam sob as mais variadas

formas no mundo todo. Opressão manifestada através de exclusões, social, digital etc.,

preconceitos dos mais diversos, étnico e racial, sexual, de gênero etc., assédio sexual e moral,

estupros, atentados violentos ao pudor, atentados contra a vida, bullying etc.; e outras tantas

formas de opressão que se conhece e se sabe da existência. Augusto Boal queria uma

“revolução”, porém, no sentido de deixar de ser passivo. Ele buscava a paz, mas sem

passividade.

O pior inimigo da paz não é a guerra, é a passividade. É claro que eu não quero a guerra, pois ela é horrível, mas eu também não quero ser passivo. Busco a paz sem passividade. Vendo o mundo além das aparências, vemos opressores e oprimidos em todas as sociedades, etnias, gêneros, classes e castas, vemos o mundo injusto e cruel. Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida. Não sou um forte nem um fraco, mas me exalto por combate30 (BOAL, 2009).

Conforme a declaração de Boal, sobre a busca da paz, mas sem passividade, torna-se

fácil entender sua dedicação às práticas teatrais, pois, segundo o próprio teatrólogo, o teatro

transforma, não apenas quem o pratica em palcos tradicionais, mas também àqueles que se

mantêm abertos ao novo e com coragem suficiente para assumir o novo em suas vidas.

29 BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. P. 230 – 241. 30 Alysson C. Neto em http://www.jornaldeteatro.com.br/materias/reportagem/80-boal-eterno.html, Consultado em 10/09/2010.

Page 34: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

33

2 O TEATRO DO OPRIMIDO

O Teatro do Oprimido é o teatro na acepção mais

arcaica da palavra: todos os seres humanos são atores,

porque agem, e espectadores, porque observam. Teatro

é algo que existe dentro de cada ser humano, e pode ser

praticado na solidão de um elevador ou em praça

pública. Pode ser praticado em qualquer lugar... Até

mesmo dentro dos teatros. Somos todos espect-atores. A

linguagem teatral é a linguagem humana por

excelência, a mais essencial e o Teatro do Oprimido é

uma forma de teatro, entre todas as outras.

Augusto Boal, 1998.

A experiência de Augusto Boal nos Estados Unidos como “pupilo” de John Gassner

foi o primeiro e principal impulso pra carreira do teatrólogo e para o estudo, desenvolvimento

e concretização do grande legado de Boal, o TO.

Page 35: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

34

No começo de sua estadia no exterior, Boal teve várias dificuldades, das quais a maior

era a língua inglesa. Sua dificuldade era tanta que pensava, todos os dias, em retornar ao

Brasil.

Tinha certeza de querer voltar pro Brasil, para meus amigos e mais certo estava de querer estudar com Gassner. Se eu acreditava que talento não se ensina, acreditava que, em se o tendo, Gassner faria bem. Afinal, tinha sido o professor de Arthur Miller, Tennessee Williams e outras famas – devia saber. Podia me ensinar chaves que abrissem portas. Na primeira entrevista no Brander Matthews Theatre, da Columbia, decidimos que cursos eu deveria fazer. Os professores, além de Gassner e Smith, seriam Maurice Valency, Norris Houghton, Theodore Apsteisn e não lembro mais quem: lembro que eram bons. Informei que precisava de tempo e espaço pras aulas de Química: Plásticos e Petróleo. Mr. Smith pediu que eu repetisse três vezes o que dizia, pensando que me faltavam palavras em inglês. Expliquei: Química era obrigatória não só por causa do meu pai que merecia sacrifícios, mas porque o governo brasileiro, já então, discriminava as artes – só autorizava a compra de 200 dólares mensais ao câmbio oficial se o estudante estudasse ciências: artes não valiam para efeitos cambiais. Esses dólares eram a minha mesada. Tinha que me matricular como cientista. A Universidade me deu uma lista de quartos pra alugar. Fui morar com um casal de meia idade, ele rabino, ela, dona de casa. Na primeira aula de Química não entendi rigorosamente nada. Nas aulas de teatro também não entendia, mas inventava – era criativo! Notei que os professores de teatro, mesmo austeros, usavam o corpo pra falar. Como não entendia nada, reparava nos detalhes: a linguagem das palavras é apenas uma das linguagens que utilizamos em nossos diálogos – existem as linguagens da voz, do corpo, do movimento, a do corpo no espaço e as linguagens inconscientes. Depois de semanas, a rotina me invadiu. Comecei a ficar mais solitário. A solidão de homem cercado por multidões é tão ruim como a das celas de segurança máxima, cercado de paredes grossas: conheci as duas. Aos poucos fui perdendo o medo de gente famosa – gente como a gente. Decidi que seria repórter do Correio Paulistano. Me aceitaram como correspondente amador: de graça. Iniciei minha carreira como jornalista internacional. Comecei a entrevistar quem eu queria conhecer. O Correio gostava dos meus artigos: além de serem de graça, falam de gente famosa. Através de um, eu conhecia outro e mais outro. Tagarelando em inglês. Gassner conseguiu que eu fosse admitido em sessões do Actors’Studio, como ouvinte. O temporário local de trabalho chamava-se Malin Theatre e eu ficava a poucos metros dos atores. Ver ator criando, metamorfoseando-se, dando vida às suas potencialidades adormecidas, é uma das maravilhas da natureza humana. É a melhor maneira de se entender o ser humano: ver ator criar31.

O protagonista da biografia em questão já não era mais um estranho para a cidade e

nem a cidade para ele. Enfim, estava perto de tudo que sempre quis. Tinha agora a

oportunidade de aprender tudo que conseguisse absorver nesses dois anos que lhe foram

dados de presente para se dedicar ao estudo, embora também tenha trabalhado durante esse

tempo, mas mais a título de experiência.

Os estudos e experiências sobre teatro que Boal realizou no exterior não tinham

nenhuma relação com teatro político. Esse era o interesse dele, queria aprender sobre teatro

31 BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 122-127.

Page 36: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

35

pra poder concretizar o projeto do Teatro Artístico do Rio de Janeiro, juntamente com seus

amigos.

Escolhi Nova York porque gostava de um crítico, John Gassner, que tinha sido professor de Arthur Miller, Tennessee Williams, entre outros. Havia lido um livro dele e resolvi lhe escrever. Ele estava fora naquela época, e disse que a partir do ano seguinte estaria na Universidade Columbia, para onde eu poderia ir. Estudei com ele dois anos, mas não via nada de político. Aprendia estrutura teatral, a chamada “carpintaria teatral”, como se diz no Brasil. Para fazer uma peça funcionar é preciso montar uma estrutura que é de carpintaria mesmo32.

Boal gostava de escrever desde criança, mas nunca havia feito um trabalho sério, no

sentido de tornar pública sua intenção de integrar o mundo da escrita, como dramaturgo,

contista e até mesmo poeta. Em Nova York, ele teve a oportunidade de desenvolver também

sua escrita.

Me convidaram para integrar um grupo de dramaturgos, Writer’s Group,

Brooklyn. Dez futuros escritores, moças e rapazes. Moças... que bom. Além de dramaturgas, eram moças. Sempre gostei dessas duas categorias especiais. Fiz grandes amigos e inesquecíveis amigas. Quando me dei conta do tempo, o ano letivo havia acabado. Em química tive as notas que merecia: aprovado sem entusiasmos. Em teatro, ótimo! Perto do fim do segundo ano, a Colúmbia promoveu concurso informal de peças em um ato. O prêmio: montagem do texto. Fui o primeiro colocado com Martim Pescador. A direção da escola considerou que o texto, embora bem escrito e teatral, não era adequado nem pelo tema – pescadores brasileiros – nem pela forma – cru naturalismo. Entrou em cena o Writers’Group. Meus colegas produziriam eles mesmos o espetáculo. Acabamos trocando o Martim por outra minha, The Horse And The Saint. O elenco seria formado pelos dramaturgos do grupo, sendo diretores os autores. Sem querer, comecei a dirigir. Como não sabíamos nada, aprendíamos juntos. Me encantava a metamorfose: uma coisa, o texto escrito; outra, no espaço, no cenário, na luz, no movimento, no corpo e na voz. Tudo ganhava sentido. Minha primeira produção em teatro foi produzida por Bidú Sayão, e fizemos três espetáculos lotados de amigos. Logo depois da estreia, desmonte. Pela primeira vez, senti a tristeza de ver cenários se desfazendo, o palco se desnudando, pronto para se entregar a outro espetáculo ansioso. Palco prostituto! Lágrimas rolaram. Pela peça e pela despedida: na semana seguinte terminaria minha temporada nova-iorquina, já estava de malas prontas. Não era só o cenário que se desmontava. Desmontavam-se minhas lembranças. Em julho de 1955 voltei ao Brasil... No avião cheio, vim vazio33.

Voltando ao Brasil, muitas novidades aguardavam Augusto. Sua experiência no

exterior havia criado expectativas sobre o seu aprendizado nos dois anos em que estudou nos

Estados Unidos. Quando retornou ao Brasil, foi convidado a integrar o Teatro de Arena, e foi

ali que se desenvolveram as primeiras experiências do teatro do oprimido.

32 Rose Spina e Walnice Nogueira Galvão em http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-

debate/edicoes-anteriores/cultura-entrevista-augusto-boal Consultado em 19/07/2010. 33 BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 127-133.

Page 37: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

36

2.1 POR QUE O TEATRO DO OPRIMIDO?

Novamente de volta ao seu país e disposto a não trabalhar na área da Química

Industrial, Boal buscou seu lugar no teatro. Então foi convidado a ingressar no Teatro de

Arena em São Paulo, juntamente com o idealizador do grupo, José Renato. A princípio sua

função seria a de ministrar aulas sobre Stanislaviski para o elenco da próxima peça do grupo.

A contratação de Augusto Boal para ministrar aulas sobre as ideias de Stanislavski ao elenco e encenar Ratos e Homens, de John Steinbeck. Entre os recém-chegados estão Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Milton Gonçalves, Vera Gertel, Flávio Migliaccio, Floramy Pinheiro, Riva Nimitz. A presença de Augusto Boal, que havia cursado dramaturgia em Nova York e conhecia os escritos de Stanislavski pela via do Actor's Studio, conduz o grupo a um posicionamento político de esquerda. À beira da dissolução devido a uma crise financeira e ideológica, o grupo é salvo pelo sucesso de Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, com direção de José Renato, em 1958. Vislumbrando uma fértil possibilidade aberta pelos textos nacionais, que colocam em cena os problemas que a plateia quer ver retratados no palco, o Arena resolve criar um Seminário de Dramaturgia e laboratórios de interpretação. Novos textos demandam um novo estilo de interpretação, mais próximo dos padrões brasileiros e populares34.

O teatrólogo foi conquistando seu espaço dentro do grupo. Era respeitado devido à sua

postura e aos seus conhecimentos sobre teatro, afinal, era o único ali presente que havia

estudado teatro durante dois anos, com um professor renomado e no exterior.

Durante a época do golpe militar, em 1964, tornou-se complicado e, de certa forma,

perigoso encenar espetáculos teatrais. Dependendo do conteúdo, o grupo era rotulado de

subversivo, perturbador da ordem, etc. Muitas pessoas nem iam assistir aos espetáculos, com

medo de represálias. Mas, ainda assim, havia os espectadores corajosos e resistentes que

prestigiavam o trabalho do grupo. Mesmo num momento apreensivo, o grupo ainda brincava

com a situação, como foi o caso da encenação de O Tartufo.

Foi engraçado quando fizemos O Tartufo, justamente em 64. Na plateia, muita gente que não conhecia Molière pensava que era o pseudônimo meu e do Guarnieri. “Agora que a polícia não deixa que vocês façam, vocês inventaram esse cara aí...” O Inspetor Geral, de Nicolai Gogol, foi lindo. A peça lotou três meses, voltava gente da porta. Aí o governador Adhemar de Barros, aquele do “rouba, mas

34http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=cias_biografia&cd_verbete=657. Consultado em 15/09/2010.

Page 38: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

37

faz”, sofreu impeachment. Quando ele caiu, a peça caiu também. Era tão ligada ao momento que deixou de ter o mesmo sucesso do período do Adhemar. E depois vieram os musicais. Em 1965, encenamos Arena Conta Zumbi

35.

Conforme os próprios relatos do dramaturgo já vistos anteriormente, Boal sempre

gostou de dirigir os espetáculos. Relembrando seu cabrito Chibuco, passando pelos irmãos e

irmãs, seu posto de observador na ponte diante do portão da casa velha e depois o banco atrás

do balcão da padaria e, finalmente, quando em Nova Yorque, ele dirigiu um espetáculo “de

verdade” com seus colegas, estudiosos do teatro, um texto escrito por ele mesmo. Em pouco

tempo, Boal já ocupava o posto de diretor do Teatro de Arena.

Passa a exercer natural ascendência sobre os colegas, em função de sua vasta formação intelectual, responsabilizando-se, junto com José Renato, pela guinada no direcionamento do grupo. Investe na formação dramatúrgica da equipe, instituindo um Curso Prático de Dramaturgia. Aprofunda ainda mais o trabalho de interpretação do método Stanislavski, às condições brasileiras e ao formato de teatro de arena, resultando numa interpretação naturalista, até então não experimentada no Brasil. E, fundamentalmente, sua atuação é decisiva no engajamento do grupo na opção ideológica da esquerda brasileira, determinando a investigação de uma dramaturgia e interpretação voltadas para as discussões e reivindicações nacionalistas, em voga na segunda metade dos anos 1950. Sua primeira direção na casa é Ratos e Homens, de John Steinbeck, que lhe rende seu primeiro Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes – APCA, como revelação de diretor de 195636.

Dirigindo, ministrando aulas e escrevendo espetáculos para o Grupo Arena, Boal

apresentou ao grupo sua ideia de fazer teatro, despertando o interesse sobre o teatro engajado,

com ideologias de esquerda e com as atenções voltadas para as questões sociais, miséria,

fome, abandono, exclusões, opressão, discriminação tão frequentes e vistas como normais no

Brasil. Aos poucos, a ideia do teatro do oprimido começava a ganhar forma e vida.

O teatrólogo participou, escreveu, atou e dirigiu vários espetáculos de sucesso no

Teatro de Arena, de 1956 até 1971, conforme anexo III. Ele costumava dizer que sua vida se

resumia em períodos de quinze anos. “Quinze anos de Arena, quinze anos de exílio, quinze

anos de volta ao Brasil.” (BOAL, 2000)

35 Rose Spina e Walnice N. Galvão http://www.teatrocoletivo.com.br/index.php?option=com_search&searchword=Augusto%20Boal&searchphrase=exact Consultado em 19/07/2010. 36http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=personalidades_biografia&cd_verbete=703. Consultado em 15/09/2010.

Page 39: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

38

Um marco no Grupo Arena, no teatro brasileiro, nessa nova proposta de teatro político

e social, foi o espetáculo Eles não usam black-tie, da autoria de Gianfrancesco Guarnieri,

integrante forte e atuante no Grupo Arena. “Black-tie, direção do Renato, com Flávio

Migliaccio, Milton Gonçalves, entre outros e Guarnieri, no jovem que, por amor ou medo,

furava a greve, fazendo chorar e compreender a vida de pobre.” (BOAL, 2000)

Uma grande ruptura na dramaturgia veio com o advento do teatro político e social. O Teatro de Arena, que, improvisando em um prédio vazio a arena, solucionou a falta de acesso do seu jovem grupo às casas de espetáculos mais tradicionais. Em pouco tempo, o Arena se tornou um grande contestador do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), passando a dedicar-se exclusivamente a textos nacionais engajados com temas políticos e sociais. Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho (o Vianinha), Chico de Assis, Augusto Boal e outros se entregaram apaixonadamente à nova posição, e, o que é mais importante, foi organizado pelo Arena um Seminário de Dramaturgia, do qual saiu o primeiro grande triunfo do grupo, Eles não usam Black-tie, de Guarnieri, um dos mais respeitados clássicos do teatro brasileiro. Mas o Arena ainda representaria espetáculos políticos, no sistema Arena conta..., que foram marcantes37.

No período em que participou do Grupo Arena, Boal sempre trabalhou o teatro de

maneira que seus atores soubessem quais eram seus papéis sociais no palco e fora dele. Não

eram somente atrizes ou atores, eram transformadores.

Creio que o teatro deve trazer felicidade, deve ajudar-nos a conhecermos melhor a nós mesmos e ao nosso tempo. O nosso desejo é o de conhecer melhor o mundo que habitamos, para que possamos transformá-lo da melhor maneira. O teatro é uma forma de conhecimento e deve ser também um meio de transformar a sociedade. Pode nos ajudar a construir o futuro, em vez de mansamente esperarmos por ele38.

O TO começou a criar características próprias e mais definidas a partir da década de

1970, quando Boal trabalhava num jornal e usava o jornal do dia anterior para trabalhar com

um grupo de atores novos. As notícias eram selecionadas e apresentadas em praça pública,

sem explicar aos transeuntes de que se tratava de uma encenação.

O primeiro nome que o TO recebeu foi Teatro Jornal, justamente por se utilizar de

notícias, informações retiradas da edição do jornal que Boal levava para seus alunos

selecionar, estudar e ensaiar a apresentação a ser realizada em espaços alternativos,

37 HELIODORA, Barbara. O teatro explicado aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008. P. 174. 38BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. P. XI.

Page 40: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

39

cotidianos, onde as pessoas circulassem normalmente, seguindo suas vidas. O teatro praticado

fora dos palcos tradicionais.

Ele surgiu em São Paulo, no início dos anos 70. Em sua primeira forma chamava-se Teatro Jornal. Foi quando pela primeira vez eu trabalhei com um grupo no Núcleo 2 do Teatro de Arena. Era um espetáculo que ao mesmo tempo ensinava a fazer teatro a partir de jornal e que procurava dar ao espectador não um produto acabado, mas os meios de produção. Depois tive uma experiência na Argentina, com o Teatro Invisível, que é uma forma de utilizar o teatro dentro da realidade sem revelar que é teatro. Ou seja, os espectadores intervêm na cena como se ela fosse um fato real39.

Enquanto o Teatro Jornal se desenvolvia, com a característica típica do teatro de Boal,

engajado, politizado, começando a amadurecer a ideia do que viria a ser o TO, as

perseguições do sistema se intensificaram. Boal não pretendia se render ao sistema. Não

queria ser apenas mais um, engrossando as estatísticas de pessoas que se submetiam aos

desmandos do sistema, não queria ser um oprimido.

Boal propôs aos amigos do grupo e colegas de profissão, protestarem com a única

arma que tinham: o teatro. Montariam espetáculos denunciando o sistema, com a intenção de

alertar o povo, numa tentativa de politização, para que ocorresse uma conscientização geral e

com isso uma revolta pacífica, através do teatro.

Não éramos a República da Bananas, bordel! O teatro tinha que ajudar as transformações. Como? Conscientizando plateias populares! Quem faria a revolução? O povo! Quem o conscientizaria? Nós! Muito simples. Meu caro Watson... [...] A primeira medida da ditadura foi cultural: Proibidos os Centros populares de Cultura em todo território nacional. Decidimos abandonar o Arena por semanas, meses. Depois devagar, de casa em casa amiga, dormindo cada noite em outra cama – alguns com crianças no colo – descobrimos que as polícias estaduais não conheciam a vida pregressa dos perseguidos em outros estados. Passei semanas em Poços de Caldas, casa de amigos intelectuais. Lendo desde que o sol nascia até depois que se punha. [...] O primeiro golpe não foi mortal. Prendiam, mas não havia sido instaurada a tortura como método usual de interrogatório: as forças armadas ainda apresentavam tênues vestígios de civilização. Os presos eram encarcerados dentro da lei que previa 50 dias de prisão sem motivo; tempo indefinido, motivo havendo. Trabalhador, eu não parava quieto. Queria teatro. Responder à violência do golpe com a insolência de novas peças. Voltei ao Rio pensando em novo espetáculo. Quem o produziria? No meu delírio, eu queria Oscar Niemeyer, Paulo Freire, Hélio Pellegrino, Houaiss, Callado, Vinícius, Jobim, Carlos Drummond, Ferreira Gullar, Otto Maria Carpeaux, queria todos meus amigos e meus desconhecidos admirados, queria todos os perseguidos da terra!!! Se é pra sonhar, por que preto e branco? Eu sempre quis beber o mar – tempestade é aperitivo! O elenco achava a ideia ótima, porém inexequível! [...] A resistência contra a ditadura se organizava depois do susto. Nos meios intelectuais era ferrenho o repúdio aos militares e civis golpistas:

39 César Fraga http://www.sinpro-rs.org.br/extra/ago99/entrevista.htm Consultado em 19/07/2010.

Page 41: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

40

subversivos que haviam liquidado a Legalidade. Inaugurou-se um restaurante intelecto-popular, o Zicartola (Cartola e sua mulher, dona Zica) – que servia comida brasileira, música popular e inconformismos variados. Guarnieri e eu em longas conversas e curtos uísques. Nossa imagem sempre assustava empresários profissionais: Boal e Guarnieri, juntos, perigo à vista – o que será que estão tramando!? [...] Ensaiei Tartufo. Estreamos dia dois de setembro de 1964, evitando provocações do dia sete! Tremendo sucesso. Pessoas que nunca tinham ouvido falar em Molière aproximavam-se de nós, Guarnieri e eu, e nos diziam coniventes, voz secreta: “A peça que vocês escreveram é ótima! Essa ideia de assinar com pseudônimo pra enganar a censura, esse Molière que vocês inventaram, fantástico, maravilha! Sabe que tem gente pensando que Molière existe? Podem ficar tranquilos que não vamos contar a ninguém que ele é só um pseudônimo de vocês!40”

O processo de conscientização através do teatro, proposto por Boal, apresentava bons

resultados. As pessoas assistiam ao espetáculo, gostavam do que viam e, o que era mais

importante, entendiam a mensagem referenciando o sistema ditatorial.

Nesse meio tempo, mais precisamente no dia 07 de junho de 1963, faleceu José

Augusto Boal, pai de Augusto Boal. Causa mortis: diabetes, uma doença silenciosa,

traiçoeira. José Augusto Boal faleceu com 71 anos, no dia de seu aniversário. “No caixão,

telegramas de felicidades: ‘Que esta data se repita por muitos anos...’ Em sua cadeira de

rodas, meu pai se dizia cansado de viver, já que não podia trabalhar. Para ele, viver era

trabalhar.” (BOAL, 2000). Nunca mais o pai de Boal voltou a Portugal, como era seu plano

quando se casou e veio para o Brasil pela segunda vez.

Ainda no ano de 1963, tendo dirigido e estreado a peça o Inspetor Geral, de Nicolai

Gogol, o teatrólogo foi convidado a dirigir o Teatro IFT, em Buenos Aires, Argentina.

Escolheu, traduziu, dirigiu e estreou a peça Mandrágora, de Maquiavel. “Não aprendi nada de

novo e pouco ensinei; de novo e importante, vim de Buenos Aires com Cecília Thumim,

como esposa, e Fábian Silbert, meu filho.” (BOAL, 2000).

De volta ao Brasil, Boal retornou também ao Arena. A repressão se intensificava e

perseguia estudantes, escritores, sindicalistas, a classe artística em geral. A censura obrigou

Boal a excluir partes de seus espetáculos, tirando o significado e, consequentemente, a

intenção do espetáculo. Ele desabafa:

Desde cortar uma peça até matar pessoas. A repressão era assim, eles matavam pessoas, prendiam, espancavam, cortavam peças... Uma peça que fiz

40 BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 176 – 225.

Page 42: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

41

chamada Arena Canta Bahia, com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Bethânia, todos os baianos, recebia todo dia a visita do censor, que todo dia cortava alguma coisa. Como Caetano tinha uma memória imensa, ele lembrava de outras músicas, que rapidamente aprendíamos para substituir as cortadas. Mas não deu para aguentar. A certa altura tiramos a peça de cartaz porque tinha perdido o sentido. Imagine: a peça tem uma coerência e tira-se um pedaço, arruma-se outra coisa que não tem nada a ver, e tira-se outro pedaço... Virou um show musical e perdeu o interesse41.

O Teatro Jornal continuava com seus estudos e experiências, mesmo durante a estadia

de Boal, em Buenos Aires. As pesquisas do grupo seguiam a linha de denúncia do diretor. A

maneira criativa de fazer teatro, usando notícias do jornal do dia, tanto para o estudo do teatro,

quanto para a denúncia, acabaram na prisão de Augusto Boal, no ano de 1971.

Em 1971. Antes fui preso, torturado, aquela coisa “normal” da época. Fui banido, expulso do país. Na Argentina, comecei a desenvolver formas de teatro, como, por exemplo, o Teatro Invisível, em que a gente vai para a rua e faz uma cena, e não revela que é teatro, para que todo mundo participe. Depois, no Peru, é que eu comecei com o Teatro Fórum, em que a gente apresenta o problema, o espectador entra em cena e mostra alternativas. Então fui para Portugal, de lá passei a trabalhar em quase todos os países da Europa42.

Romario José Borelli, também dramaturgo e integrante do Grupo Arena, no qual

trabalhou como músico, fazendo trilha sonora, sonoplastia e afins nas peças Arena Conta

Zumbi, Arena Conta Tiradentes, Arena Conta Bahia, fala de seus medos e anseios durante a

prisão de Boal:

Augusto Boal estava no auge de sua efervescência criativa quando foi preso pela ditadura no Brasil, em 1971. Havíamos chegado havia pouco da Argentina, onde tínhamos feito uma longa temporada de sucesso com Arena Conta Zumbi. Para a viagem a Buenos Aires, Boal já fizera questão de levar, com o elenco do Zumbi, seu grupo experimental Teatro Jornal. Era o momento no qual ele começara a romper com as formas clássicas de teatro e com seus próprios ajustes ao teatro brechtiano. Surgiam assim formas de trabalho teatral menos comprometidas com o espetáculo tradicional, menos formais, ajustadas a qualquer espaço e realizadas por qualquer pessoa que quisesse ou precisasse se expressar. Ou seja, os recursos teatrais usados por “não atores”, de onde surgiram os seus Teatro Jornal e Teatro Invisível, que finalmente desaguaram no Teatro do Oprimido. Escrevi-lhe algumas vezes quando ele estava na cadeia. Era uma situação estranha, pois não sabia o que escrever e o pouco que tinha para lhe dizer tinha de passar por minha própria censura, antecipando a leitura dos carcereiros que lhe entregariam a carta. Então, já mandava a carta aberta para não lhes dar trabalho. Eu não tinha que esconder que era do Teatro de Arena, o que provavelmente eles sabiam. Como sabiam também que eu não representava nada, que não era ninguém senão um jovem perplexo (22 anos), que demonstrava respeito e solidariedade por alguém que sofria. Dizia-lhe apenas que confiasse que estávamos levando o Zumbi e o Teatro de Arena da melhor forma

41 Rose Spina e Walnice Nogueira Galvão http://www.teatrocoletivo.com.br/index.php?option=com_search&searchword=Augusto%20Boal&searchphrase=exact Consultado em 19/07/2010. 42 Nestor Cozetti http://josekuller.wordpress.com/38-entrevista-com-augusto-boal/ Consultado em 19/07/2010.

Page 43: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

42

e contávamos com sua volta quanto antes. Não foi tão fácil. Boal continuou preso e o Arena saiu do Brasil com passaportes alterados para não chamar atenção para nossa condição de artistas de teatro, com o agravante de sermos do Teatro de Arena. No espaço para profissão dos antigos passaportes, tínhamos profissões diversas. Eu era “comerciário” num passaporte triste que ainda tenho. Boal foi solto e foi nos encontrar em Paris. Não é necessário dizer o que isso significou. Um dos momentos mais especiais de minha vida foi quando me sentei com ele num café de Montmartre. Ele pediu “deux balons rouges, s'il vous plaît”. Não tínhamos nada a dizer. Restava degustar a taça de vinho tinto. 43.

O exílio foi o “inferno e o céu” na vida de Boal. Exilado, passou a praticar

efetivamente o que no Brasil, em época de ditadura, era apenas um ensaio. Paradoxalmente,

foi sua “desgraça” que impulsionou a efetivação de sua busca há tantos anos, o TO.

2.2 UMA EXPERIÊNCIA TEATRAL POLÊMICA

O TO levou anos para ser aceito como uma experiência, estudo e pesquisa teatral com

o respeito que é devido a toda e qualquer pesquisa. Um dos motivos foi o contexto histórico

em que a experiência se desenvolveu, durante a ditadura militar no Brasil e o exílio de Boal;

outro foi o tema abordado, pelo estudo, o opressor e o oprimido!

Opressão é um tema forte e delicado ainda hoje, nos anos setenta então era

praticamente inaceitável que alguém se dedicasse ao estudo da “opressão”, ainda mais usando

os meios que Boal propôs, o teatro! Têm-se aqui dois temas socialmente marginalizados.

Sobre a concretização TO, o autor revela que:

Os dois primeiros anos fora do Brasil foram maravilhosos, porque viajei pela América Latina toda e comecei com o Teatro Invisível, em Buenos Aires. Em 73, participei no Peru de uma campanha de alfabetização em várias linguagens, entre as quais o teatro. Chamava-se Alfabetização Integral. Eu queria chamar esse trabalho de Poética do Oprimido para guardar semelhança com a Pedagogia do Oprimido, do Paulo Freire. Mas um editor falou que não dava para pôr esse título porque não se sabia em que estante ia ser colocado, se em poesia, teatro, sociologia ou política... Então ele sugeriu Teatro do Oprimido. Achei meio estranho, mas aceitei. Na Argentina, a situação também começava a se fechar. Saí da Argentina em 76, quando Videla assumiu. Fui para Portugal, onde fiquei dois anos. Fui para a França em 78, convidado para dar aula na Sorbonne. Com um bom salário, trabalhava duas vezes por semana. Nos outros dias, viajava e fazia Teatro do Oprimido em outros países. Fiquei um ano, e ao mesmo tempo meus livros foram lançados na França. O

43 Romario José Borelli em http://josekuller.wordpress.com/category/teatro/. Consultado em 29/09/2010.

Page 44: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

43

primeiro foi Teatro do Oprimido. Vendeu muito, e então começou a ter trabalho. Em 79, fundei o Centro do Teatro do Oprimido44.

Apesar das dificuldades em trabalhar com o tema opressor/oprimido, Boal conseguiu

que seu teatro fosse levado a mais de setenta países, onde os estudos e experiências sobre o

TO ganharam força, tornando-o uma referência nas novas práticas teatrais.

Augusto Boal entendia a atividade teatral como um instrumento de libertação das classes dominadas, Boal faz uma crítica ao teatro tradicional, que mantém a estrutura dividida entre atores (os que agem) e espectadores (os que assistem), assim, faz-se necessário um teatro que venha romper com essa estrutura, de forma a possibilitar que o espectador participe ativamente da realização cênica e possa, nela, defender sua visão de mundo45.

O teatrólogo encontrou uma forma interessante de mostrar a essência do TO conforme

anexo IV. Através da figura de uma árvore, ele demonstra o teatro do oprimido, desde suas

raízes até seus resultados. O solo da árvore teatral é a solidariedade, a economia, a filosofia, a

ética, a história, a política e a multiplicação, que se comprova com a difusão do teatro do

oprimido. As raízes da árvore são as imagens, os sons e as palavras; o tronco são os jogos que

vão desenvolver os galhos do Teatro Imagem e do Teatro Fórum. Nesses galhos se sustentam

o Teatro Jornal, o Arco-Íris do Desejo (primeiras experiências da nova prática teatral), O

Teatro Legislativo, o Teatro Invisível e as ações diretas.

O Teatro do Oprimido, em todas as suas formas, busca sempre a transformação da sociedade no sentido da libertação dos oprimidos. É a ação em si mesma, e a representação para ações futuras. [...] O teatro deve ser um ensaio para a ação na vida real, e não um fim em si mesmo. Fazer o Teatro do Oprimido já é o resultado de uma escolha ética, já significa tomar o partido dos oprimidos. Tentar transformá-lo em mero entretenimento sem consequências, seria desconhecê-lo; transformá-lo em arma de opressão, seria traí-lo. [...] Trabalhar com os oprimidos é uma clara opção filosófica, política e social [...]. Este não é um tema de teatro, mas um dever de cidadania [...]. O Teatro do Oprimido nasceu e se desenvolveu inicialmente em países pobres e pouco industrializados da América Latina, e muitas vezes é “adaptado” às “sociedades mais sofisticadas” com o único objetivo de ganhar dinheiro. [...] Temos que tomar uma posição filosófica, política e social – ação! Não podemos flutuar acima da Terra na qual vivemos, procurando cosmicamente compreender as razões de todos e a todos justificar, aos que exploram e aos que são explorados. [...] O Teatro do Oprimido jamais foi um teatro equidistante que se recusasse a tomar partido – é teatro de luta! É o teatro DOS oprimidos, PARA os oprimidos, SOBRE os oprimidos, sejam eles operários, camponeses, desempregados, mulheres, negros, jovens ou velhos, portadores de

44 Rose Spina e Walnice Nogueira Galvão http://www.teatrocoletivo.com.br/index.php?option=com_search&searchword=Augusto%20Boal&searchphrase=exact Consultado em 19/07/2010 45 Telles, Narciso. Teatro comunitário: ensino de teatro e cidadania. Publicado em Teatro: ensino, teoria e prática, organizado por Irley Machado e outros. Uberlândia: EDUFU. 2004, p. 23.

Page 45: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

44

deficiências físicas ou mentais, enfim, todos aqueles a quem se impõe o silêncio e de quem se retira o direito à existência plena. [...] O objetivo de toda árvore é dar frutos, sementes e flores: é o que desejamos para o Teatro do Oprimido que busca não apenas conhecer a realidade, mas transformá-la, para promover inclusão46.

O teatro, marginalizado, perseguido, oprimido, denunciando o sistema opressor! Ali

estava o teatro estudado, vivido, praticado pelo Grupo Arena e por Boal. Mesmo com todos os

obstáculos ele resistiu, sendo que suas experiências são aplicadas e respeitadas até hoje, no

mundo todo. O crítico polonês Yan Michalski destaca:

Até o golpe de 1964, a atuação de Augusto Boal à frente do Teatro de Arena foi decisiva para forjar o perfil dos mais importantes passos que o teatro brasileiro deu na virada entre as décadas de 1950 e 1960. Uma privilegiada combinação entre profundos conhecimentos especializados e uma visão progressista da função social do teatro conferiu-lhe, nessa fase, uma destacada posição de liderança. Entre o golpe e a sua saída para o exílio, essa liderança transferiu-se para o campo da resistência contra o arbítrio, e foi exercida com coragem e determinação. No exílio, reciclando a sua ação para um terreno intermediário entre teatro e pedagogia, ele lançou teses e métodos que encontraram significativa receptividade pelo mundo afora, e fizeram dele o homem de teatro brasileiro mais conhecido e respeitado fora do seu país47.

Numa declaração um tanto apaixonada e saudosa, o ex-colega e amigo de Augusto

Boal, Romário José Borelli, descreveu a dedicação, parte da trajetória de vida, o

reconhecimento, a admiração e o orgulho de ter participado da vida do dramaturgo e

teatrólogo.

Mas Augusto Boal foi muito mais que o criador dessas formas teatrais. Ele foi um agitador cultural como ninguém, que via em tudo uma possibilidade de expressão e a implementava com celeridade e precisão. Sua fala sempre ligeira quase não dava conta de seu raciocínio ainda mais rápido. Ele era sempre guiado pelo visionarismo, no bom sentido da palavra, e sempre dirigia seu foco para onde outros ainda não tinham percebido que havia alguma coisa. Foi assim com o “sistema coringa”. Lançou toda uma teoria a respeito, que estruturava a dramaturgia de Arena Conta Tiradentes, escrito com Gianfrancesco Guarnieri, seu grande parceiro. Também escreveram juntos Arena Conta Zumbi, que fez enorme sucesso no Brasil e no exterior. Os espetáculos se tornaram marcos na luta contra a ditadura. Esse era o Augusto Boal, cidadão brasileiro conhecido e respeitado em todos os países, dramaturgo, teórico de teatro, diretor. Visionário, não poderia deixar de ser socialista, sempre comprometido com a libertação do homem. Sabendo que o sistema opressor, este sim, é invisível, quando não é uma ditadura escancarada, criou formas e técnicas para denunciá-lo. Criou um método para que o homem usasse os elementos básicos dessa arte milenar que é o teatro para libertar-se do sistema econômico, dos tabus, do sexo, da opressão da convivência com os demais, da religião, da burocracia e de qualquer humilhação. Ao contrário do que muitos pensam, sua vida não foi dedicada apenas ao teatro. Usou o teatro para dedicar-se

46 BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975. P. 19-31. 47 MICHALSKI, Yan. Pequena enciclopédia do teatro brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro, 1989. Material inédito, elaborado em projeto para o CNPq.

Page 46: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

45

aos direitos humanos. Isso vale a pena mais que tudo no mundo. Foi o que Boal nos ensinou. Essa foi sua missão48.

No entanto, mesmo hoje, com a democracia, abertura política, inclusões sociais,

percebe-se ainda muita discriminação em relação a determinadas profissões, trabalhos, opções

de vida etc. O TO, mesmo aceito e difundido, com uma sede no Rio de Janeiro O CTO

(Centro do Teatro do Oprimido) fundado em 1986, sofre recriminação por parte de alguns

grupos privilegiados cujos interesses são de que o sistema não mude e, por conseqüência,

sentem-se incomodados com a maneira que TO aborda as relações “opressor/oprimido”.

A história da Instituição Teatro do Oprimido é tão polêmica quanto a sua prática com os oprimidos dos países desenvolvidos. Além das críticas, referentes às parcerias com o poder político e institucional, surgem acusações referentes ao distanciamento dos objetivos marxistas da origem desta poética; desconfianças dos críticos quanto ao desenvolvimento de um projeto, que se pretende popular, em sociedades conhecidas geralmente como "individualistas", posto que tal empreendimento, aos olhos de muitos, seria, de certa maneira, servir aos interesses imperialistas. Mas é, sem dúvida, no quadro da Instituição CTO que o Teatro-Fórum, técnica emblemática do Teatro Oprimido, é difundido e praticado massivamente49.

O TO obviamente não é dirigido para qualquer plateia, ele tem um público específico.

Quando não se sente a opressão, ou não se tem ciência dela, não existe a necessidade de

combatê-la. A prática do TO exige um engajamento social e político, uma consciência de

sociedade e cidadania.

Quando fala da finalidade do TO, Boal desabafa:

Quero escrever peças, encenar, dar testemunho, falar do que sei, sinto e sonho. O TO, que pretende libertar o artista que existe em cada um de nós, me libertou a mim, para que eu possa sentir o que sinto, sem remorsos; falar de mim, sem vaidade, (se possível...); dar meu testemunho, veraz. [...] Por isso o TO só pode ser praticado por plateias revoltadas, desejosas de mudar o mundo – seu mundo. Costumo dizer que só Jesus ressuscitava Lázaros. Nós apenas ajudamos aqueles que já são combatentes – damos pedras a Davi! Hoje, novo século, tento novos caminhos no teatro profissional. Gosto de fazer diferente, não por infantil rebeldia, mas porque gosto de fazer do meu jeito – e eu sou diferente, como, aliás, todo o mundo50!

Numa sociedade capitalista, excludente, em que impera o ditado “cada um por si”,

torna-se muito difícil a prática proposta por Boal. Existe um discurso de inclusão, de

48 Romario José Borelli em http://josekuller.wordpress.com/category/teatro/. Consultado em 29/09/2010. 49Antonia Pereira Bezerra em V ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura 27 a 29 de maio de 2009 Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil. 50 BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 330.

Page 47: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

46

igualdade, de respeito. No entanto, ainda é um discurso muito mascarado, que promove

oportunidades na maioria das vezes apenas àqueles que, de alguma forma, podem trazer

benefícios como moeda de troca.

Boal se sente excluído, tanto ele, quanto seu trabalho:

Eu acho que todos aqueles artistas que fazem alguma coisa que é

extremamente útil para a população e tudo, mas que não têm um gancho, como, por exemplo, um ator de televisão conhecido, ou algum outro evento que individualize as pessoas, esses são excluídos. Não é o Teatro do Oprimido, nem eu. É qualquer artista que não fizer assim. É excluído mesmo. Em geral, a mídia se interessa pela individualidade, só. E o que nós estamos tentando é fazer com que o Teatro do Oprimido seja usado em todo o tecido social. Não é ver, por exemplo, onde estão os talentos da favela da Maré. Nós não queremos transformá-los em atores de televisão, não é isso. Agora estamos lançando um projeto novo, que é a Estética do Oprimido. Nosso objetivo não é descobrir qual é o melhor poeta de Jacarepaguá, ou qual é o melhor pintor de tal lugar51.

Apesar de ser reconhecida e respeitada em todo mundo, a obra de Augusto Boal é

polêmica, como o próprio nome diz “Teatro do Oprimido”. Usar as práticas teatrais de Boal

significa despertar, sair da inércia, tornar-se observador crítico e atuante, cidadão consciente

de seus direitos e deveres, “lutar” por respeito e por igualdade. Está colocada a polêmica! Nos

interesses do sistema vigente e de seus mantenedores ainda não existe lugar muito menos

preparação para a aceitação de uma obra como a de Augusto Boal.

51 Entrevista publicada em novembro de 2005 na edição 141 do Brasil de Fato por Nestor Cozetti, no site

http://josekuller.wordpress.com/38-entrevista-com-augusto-boal/ Consultado em 07/10/2010.

Page 48: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

47

3. EDUCAÇÃO POPULAR: PAZ SEM PASSIVIDADE

O TO foi adotado pela educação popular como uma das maneiras de desenvolver a

consciência crítica do cidadão oprimido, sua capacidade de observação e a necessidade de sua

atuação e reação, intervindo nas cenas e na vida, conforme a opressão se faz mais presente.

Além da educação popular, o TO, com suas técnicas, práticas e experiências foi adotado

também pelos movimentos sociais na busca de uma formação de lideranças cientes do seu

papel na comunidade em que vivem e na sociedade em geral.

Por apresentar uma proposta de formação diferenciada Boal, com o TO, mostra e

reforça a idéia de buscar, lutar, promover a “guerra” pela igualdade e inclusão. No entanto, a

luta, a “guerra” que Boal propõe, fogem das guerras ou lutas tradicionais, com as armas

típicas dessas lutas e já conhecidas por todos; ele propunha uma luta em que se usasse como

arma o corpo, as ações, a voz, as manifestações na busca pelos direitos, por um mundo mais

justo, com mais igualdade de oportunidades e inclusões, uma luta pacífica, reforçando a idéia

da paz sem a passividade.

Page 49: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

48

A vida de Boal foi pautada pela coerência simbolizada na frase que adota, e que melhor o define: “O Pior Inimigo da Paz é a Passividade!” Em busca da Paz, Augusto Boal jamais foi passivo na sua vida artística e cidadã. Como artista e professor de teatro, desde 1956 ensinou jovens autores e atores a criarem um teatro que, nos palcos, buscasse revelar a Identidade nacional através da Diversidade de nossas origens: afirmação da Identidade, respeito à Alteridade. Com a sua maior criação, o Teatro do Oprimido, Augusto Boal sempre buscou, através do Diálogo, restituir aos oprimidos o seu direito à palavra e o seu direito de ser. Com a ajuda dos seus mais de vinte livros publicados em dezenas de línguas, Boal sempre buscou, através do Teatro, Humanizar a Humanidade. Sempre trabalhou com Multiplicadores e não simples consumidores: “Só aprende quem ensina” - é o lema que norteia sua vida profissional. A Multiplicação e a Solidariedade são elementos fundamentais na sua pedagogia, na sua arte, e na sua Ética. Assim foram criados centenas de Grupos e Centros de Teatro do Oprimido espalhados pelo Brasil e pelo mundo que tratam de temas prioritários da nossa civilização em busca de soluções adequadas52.

Uma das maneiras usadas por Boal para a busca dessa “paz sem passividade”, numa

conquista de solicitações transformadas em leis, foi o Teatro Legislativo, criado a partir do

Teatro Fórum, das manifestações da população que participava das oficinas. Eleito vereador,

no ano de 1993, na cidade do Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores, Boal manteve o

Teatro Legislativo, conseguido através do mesmo, várias sugestões de projetos de lei, das

quais 13 foram aprovadas.

Teatro Legislativo é a utilização de todas as formas do Teatro do Oprimido com o objetivo não apenas de refletir sobre a realidade, mas de transformá-la realmente por intermédio da lei, escrevendo na lei o desejo da população. O Teatro Legislativo foi a necessidade que nós sentíamos, antes de eu ser vereador, de transformar em lei aquilo que era um desejo manifestado pela população do Teatro Fórum. A gente sentiu que estava tendo idéias muito boas, mas na realidade a gente precisava de alguma lei. Então a gente começou a pensar na idéia de transformar em lei, entrando para a Câmara dos Vereadores. E eu fui candidato, fui eleito, por quatro anos, pelo Partido dos Trabalhadores, de 1993 a 1996. Chegamos a produzir quase 50 projetos de lei. Desses, 13 foram aprovados e hoje são leis. [...] Foi um dos melhores momentos da minha vida e também um dos piores. Dos melhores, por exemplo, ao aprovar a primeira lei brasileira de proteção às testemunhas. Levamos a proposta para o ministro José Gregori e hoje a lei federal é baseada nela. Outras leis são bastante pontuais. Por exemplo, ter creche em todas as escolas da prefeitura, atendimento geriátrico em todos os hospitais municipais. Mas a lei não é obedecida...Como eu era bastante combativo, houve uma campanha contra mim, pediram minha cassação, fizeram uma campanha violenta contra mim, por um jornal, O Dia. Fizeram da minha vida um inferno que me rendeu dez processos. [...] Virou livro depois. Um dia descobri que estava rolando dinheiro para votar determinada coisa. E alguns vereadores diziam claramente que estavam ganhando. Fiquei tão furioso – e normalmente sou uma pessoa educada, não sou de agredir as pessoas – que subi na tribuna e disse: “Vossas excelências que votaram a favor do prefeito, vossas excelências são todos ladrões ou burros”. Quando saí, alguns colegas disseram que eu tinha exagerado. Duas horas depois, outro vereador foi falar contra mim: “O nobre vereador exagerou quando disse que nós somos ladrões ou

52 http://artes.com/sys/artista.php?op=view&artid=5 Consultado em 27/10/2010.

Page 50: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

49

somos burros. Ele sabe muito bem que aqui ninguém é burro”. O título do livro é Aqui Ninguém é Burro

53.

3.1 O ESPECT-ATOR EM CENA

Retomando o espect-ator, já discutido no capítulo anterior, que pode ser considerado o

principal legado de Boal no que se refere ao TO. A abordagem do espect-ator nesse capítulo

está voltada à maneira como aparece na formação de lideranças dos movimentos populares;

dando vida ao cidadão da ótica de Boal, “aquele que se transforma e transforma a sociedade.”

Dentro de todas as “modalidades” apresentadas pelo arsenal do TO (Anexo V), a mais

recorrente nos movimentos sociais e a que favorece a entrada do espect-ator, é o Teatro

Fórum. No Teatro Fórum, o papel do espec-ator nas experiências de educação popular é de

“protagonista”, uma vez que todas as atividades são perpassadas por ele. A partir da

interferência do espect-ator aparecem as diferenças do seu ponto de vista, dando início as

discussões, as sugestões, as ações propostas na cena.

Nas cenas de Teatro-Fórum, técnica do arsenal do Teatro do Oprimido mais utilizada no mundo, as encenações são criadas a partir de uma história de opressão vivida por um membro do grupo trabalhado. Nela, o personagem oprimido fracassa na luta contra a opressão, então o espectador (espect-ator) é convidado a subir ao palco em seu lugar para mostrar como a opressão poderia ser vencida. Durante o processo de representação e reflexão sobre a cena o grupo oprimido percebe que sua opressão particular e individual na verdade faz parte de uma realidade sistêmica e coletiva, que afeta vários outros indivíduos e necessita ser transformada. Assim, serve de instrumento para que os grupos coloquem em pauta suas questões, iniciando um rico processo de diálogo com o público a fim de repensar e transformar a realidade54.

Seguindo a perspectiva de ação transformadora do espect-ator, as experiências

realizadas com essa técnica, na maioria das vezes alcançam os objetivos desejados. Podem ser

citadas inúmeras experiências do espect-ator em cena pelo mundo todo. Boal relata algumas

que ele mesmo aplicou.

53 Rose Spina e Walnice Nogueira Galvão em http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/cultura-entrevista-augusto-boal Consultado em 19/07/2010. 54 http://www.primeiraedicao.com.br/?pag=maceio&cod=7072 Consultado em 20/07/2010.

Page 51: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

50

Líder no trabalho, escrava em casa – Em Paris, durante a greve dos trabalhadores do departamento de contabilidade eletrônica de um banco, fizemos um espetáculo de Teatro Fórum a respeito de uma mulher que, ao mesmo tempo que era líder sindical no trabalho, era escrava em casa. [...] Muitas mulheres participaram do fórum, como espect-atrizes, no papel da protagonista, tentando romper a opressão. Quando isso acontecia, os próprios companheiros do banco se transformavam em opressores e a faziam ceder ao marido. Mesmo quando ela queria continuar suas atividades, contrariando a vontade do marido, dos colegas, seu chefe se contrapunha e praticamente a expulsava. Assim foi, até que uma espect-atriz apresentou a melhor forma de resistência: não permitir a entrada do marido. Nesse momento, o ator-marido renunciou, saiu de cena e permitiu que outros espect-atores assumissem o seu personagem e tentassem experimentar novas formas de opressão marital: telefonemas, chantagem emocional, mentiras etc. Durante a cena que se passava em casa, aconteceu algo curioso: a líder estava tão absorvida pelo trabalho, que não dava a menor importância nem à sua filha nem ao seu marido. A menina no banho, que a princípio gritava “mamã”, agora gritava “papá” para o marido, que passou a cuidar das tarefas domésticas55.

Outra experiência realizada por Boal.

Em 1977, trabalhando com camponeses na Sicília, ao sul da Itália, preparamos uma peça em que se mostrava o prefeito da cidade de Godrano como o grande opressor dos pobres. Durante o espetáculo de Teatro Fórum, o próprio prefeito apareceu na praça e pediu para substituir, não o protagonista, mas o personagem do Prefeito – ele próprio – para melhor justiçar suas ações. O prefeito era perfeitamente consciente do que fazia; seus atos hostis e argumentos direitistas, em cena, apenas reforçaram as convicções que os camponeses, na vida real, tinham sobre ele. Como sabia o que fazia e como fazia, esse opressor não poderia ser transformado, nem podia transformar a si mesmo, naquilo que não era e nem queria ser: tinha consciência do mal que causava e dos benefícios que, disso, tirava. Trabalhar com esse homem seria tempo perdido, inútil temeridade. Lutar contra ele, sim, valia a pena... e ele foi derrotado nas eleições seguintes56.

Boal relata também um Teatro Fórum realizado sobre a reforma agrária, e na mesma

experiência conseguiu apontar duas maneiras de opressão.

Em Portugal, depois do 25 de abril de 1974, o povo empreendeu, ele mesmo, a reforma agrária. Não esperaram a lei ser aprovada; simplesmente ocuparam as terras improdutivas e as tornaram produtivas. Atualmente (1977-78), o governo pretende criar uma lei agrária que mudará as conquistas populares nesse sentido, devolvendo as terras aos seus antigos proprietários (que não fazem uso dela). [...] Esse fórum foi representado no Porto e em Vila Nova de Gaia, em dois bancos de jardim, onde um latifundiário descansava ocupando os dois bancos. Surgem sete homens e mulheres, contando canções populares de protesto e expulsam o homem de um dos bancos, mas um banco só é pequeno para eles. Eles protestam contra o latifúndio e as opiniões se dividem, sendo que uns querem expulsar o latifundiário do segundo banco e outros preferem trabalhar naquilo que já conquistaram. Chega um policial com uma ordem judicial obrigando o grupo a ceder vinte centímetros de seu banco (a lei do retorno). Novamente uns optam por ceder, outros não.

55 BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. P. 37-39. 56 BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975. P. 23,24.

Page 52: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

51

Finalmente cedem: vinte centímetros é pouca coisa. O latifundiário, protegido pelo policial, senta-se no espaço que ficou vazio no banco. O latifundiário abre um guarda-chuva, tapando a luz dos outros. Mais uma vez protestos e divisão, mas acabam cedendo em nome da paz. O policial insiste na necessidade de se erguer um muro dividindo o banco, diz que será construído ‘em terras de ninguém’, mas a intenção é construir o muro no lado que pertence ao grupo. Novas discussões, novas divisões, novas concessões. Aos poucos o grupo se desintegra, restando apenas três integrantes. O policial anuncia que a ocupação não tem mais sentido, uma vez que a maioria abandonou as terras e os que restaram são considerados ladrões, e não um grupo social, com seus direitos. O latifúndio volta a ocupar os dois bancos. [...] Vários espect-atores deram suas versões de resistência ao contra-ataque do latifundiário. Mas o melhor foi o protesto de uma mulher da platéia. Com base na modesta cena, alguns espct-atores discutiam entre eles, como personagens, sobre as melhores táticas a utilizar. Em dado momento, concluíram que todos estavam de acordo e que o fórum lhes tinha sido útil. Neste ponto, a mulher na platéia disse: - Aí estão vocês no palco, falando de opressão; no entanto, só há homens em cena. Em contrapartida, aqui embaixo há mulheres que continuam sendo oprimidas, porque continuamos tão inativas quanto antes, e apenas presenciamos os homens atuando! Então um dos espect-atores convida algumas mulheres para mostrarem suas opiniões e sentimentos, em diferentes papéis, e o fórum é reiniciado57.

Esses exemplos e considerações acerca do Teatro Fórum, modalidade do arsenal TO,

com o espect-ator em cena, permitem entender o motivo pelo qual Boal é tão presente nos

movimentos sociais, na educação popular e porque suas experiências teatrais são tão

significativas à conscientização do cidadão transformado e transformador.

A figura de um sujeito atuante, crítico, transformador, como a do espect-ator de Boal,

aproxima-se da proposta de educação popular de Paulo Freire. O espect-ator de Boal

assemelha-se do sujeito freiriano, pois ambos trabalham com a perspectiva de alguém que

atua e intervém no mundo. Essa aproximação pode ser justificada pelas palavras de Freire:

Quando falo em educação como intervenção me refiro tanto à que aspira a mudanças radicais na sociedade, no campo da economia, das relações humanas, da propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educação, à saúde, quanto à que, pelo contrário, reacionariamente pretende imobilizar a História e manter a ordem injusta58.

A passagem de Paiva acerca do sujeito freiriano permite evidenciar afinidades entre as

descrições que Freire faz do sujeito e que Boal faz do espect-ator.

Para Paulo Freire a sociedade tradicional brasileira, “fechada” se havia rachado e entrara em Trânsito, ou seja, chegara o momento de sua passagem para uma sociedade “aberta”, democrática. O povo emergia nesse processo, inserindo-se nele criticamente, querendo participar e decidir, abandonando a condição de “objeto” e passando a ser “sujeito” da história. A acomodação e a massificação eram

57 BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. P. 34-36. 58 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. 1996. P. 122-123.

Page 53: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

52

substituídas pela liberdade e pela crítica na luta do homem pela sua humanização. Nesta passagem, a educação “haveria de ser corajosa, propondo, propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural da época de transição. Uma educação que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento deste poder, na explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção59.”

Enfim, nos trabalhos de Boal e Freire, a “chave” para as mudanças propostas por

ambos está no uso da palavra. Oportunidade na qual o cidadão se permite experienciar o

diálogo podendo dessa forma constituir-se como espect-ator e como sujeito freiriano. Tal

observação pode ser feita em várias partes da obra de Boal e aparece claramente na árvore do

TO, onde uma das raízes é a palavra que vai ao encontro dos jogos, em que o diálogo se faz

necessário. Na obra de Freire, a importância do diálogo aparece quando ele cita que “[...] só o

diálogo comunica. E quando dois pólos do diálogo se ligam assim, se fazem críticos na busca

de algo” (FREIRE, 2008).

3.2 POLITIZAÇÃO E EDUCAÇÃO POPULAR

Conheci Augusto Boal nos anos setenta, ainda muito

jovem. Já naquela época tinha grande admiração pela

genialidade que anunciava no teatro, pela seriedade

que já vivia, pela coerência com que diminuía a

distância entre o que dizia e o que fazia.

Paulo Freire (2000).

Paulo Freire inventou um método, o seu, o nosso, o

método que ensina ao analfabeto que ele é

perfeitamente alfabetizado nas linguagens da vida, do

trabalho, do sofrimento, da luta, e só lhe falta aprender

a traduzir em traços, no papel. Maiêutico, socrático,

Paulo Freire ajuda o cidadão a descobrir, por si o que

faz dentro de si.

Augusto Boal (2000).

59 PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Edições Loyola. 1987. P. 251-252.

Page 54: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

53

Augusto Boal é considerado um dos grandes “mestres” da educação popular. Com o

teatrólogo surgiram idéias, técnicas e, sobretudo sua paixão e sua luta em prol dos oprimidos.

Augusto Boal e Paulo Freire ativos, participantes, presentes, com seus trabalhos engajados,

envolvem-se diretamente com os movimentos sociais. Os elementos que compõem o TO e

suas modalidades, “arsenal do Teatro do Oprimido” (Anexo V), são possibilidades de

efetivação da Pedagogia do Oprimido objetivando formar e transformar os cidadãos e

construir uma nova sociedade, mais justa.

Augusto Boal e Paulo Freire são partícipes do mesmo contexto social, de protestos, de

lutas, de repressões, de perseguições, de torturas. Inconformados com os aspectos inaceitáveis

da sociedade em que viveram, dedicaram suas vidas e obras na busca de uma sociedade

consciente, crítica, inclusiva.

O que há de mais coincidente entre Paulo Freire e Augusto Boal não é a data de morte nem a história política de ambos que, devido ao regime militar ditatorial, foram obrigados a exilarem-se por anos. O que mais aproxima esses dois notáveis brasileiros também não foram os inúmeros prêmios que receberam por suas atividades intelectuais nem as indicações de ambos ao nobel da paz. A semelhança maior entre Freire e Boal está na profunda convicção que os fizeram lutar incansavelmente por toda a vida: a causa dos oprimidos. Exatamente no dia em que se completaram 12 anos de falecimento de Paulo Freire (2 de maio), Augusto Boal nos deixou. Mas, a exemplo de nosso educador, o fundador do Teatro do Oprimido deixou-nos também um legado de esperança. Sua arte nunca foi mera alegoria da vida ou um sentido em si mesmo. Para Boal, a estética do oprimido é, antes de tudo, uma maneira de promover a transformação social

60.

O objetivo do TO e seu espect-ator nas sessões realizadas nos movimentos sociais,

principalmente no Movimento Sem Terra (MST), onde Boal atuou nos últimos anos de sua

vida, era justamente reforçar a formação de lideranças e de multiplicadores do TO, atingindo

dessa forma, abrangência e engajamento ainda maiores com líderes críticos e conscientes

transformadores da sociedade.

Hoje trabalho com o MST, e a cada ano vem um grupo do movimento passar uma, duas semanas conosco. Gente do Pará, do Rio Grande do Sul, de São Paulo, de Minas. Nós usamos técnicas do Teatro do Oprimido, jogos. Faço peças com eles. Depois eles voltam para seus estados e reproduzem o que aprenderam para outros grupos e continuam aprendendo, multiplicam o trabalho. Este ano eles não vieram. Outro dia me disseram que estão muito ocupados com a multiplicação.[...] Isso me deu a maior alegria, porque é a multiplicação que interessa. Se hoje existe Teatro do Oprimido em setenta países é por causa da multiplicação. Não que eu vá a todos

60 http://www.paulofreire.org/Noticias/NoticiaHomenagemAAugustoBoal Consultado em 30/10/2010.

Page 55: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

54

eles. Fui a uns trinta. Na África, por exemplo, há na maior parte dos países, e estive pouco lá61.

Em seus trabalhos com a educação popular, Boal participava dos fóruns nas sessões de

TO, muitas vezes inclusive como curinga (Anexo V). Quando questionado sobre até onde vai

uma sessão de TO, qual o limite entre a encenação e a vida real; quando é que termina uma

sessão de TO? Boal é enfático na resposta.

Não deve terminar nunca. Como o objetivo do TO não é de terminar um ciclo, provocar uma catarse, encerrar um processo, ao contrário, promover a auto-atividade, iniciar um processo, estimular a criatividade transformadora dos espect-atores, convertidos em protagonistas, cumpre-lhe, justamente por isso, iniciar transformações que não se devem determinar no âmbito do fenômeno estético, mas sim transferir-se para a vida real. [...] É preciso observar e insistir sobre um ponto fundamental: o oprimido se exerce como sujeito nos dois mundos. No combate contra opressões que existem no mundo imaginário, ele se exercita e fortalece para o combate posterior que travará contra as opressões reais, e não apenas contra as imagens reais dessas opressões. Por isso é necessário que o espect-ator se transforme em protagonista no combate estético que prepara o combate real. Por isso é necessária a atitude maiêutica do curinga, que deve estimular os espect-atores a desenvolver suas próprias idéias, a produzir suas próprias estratégias e a contar com as suas próprias forças na tarefa de se libertar de suas próprias opressões. Na verdade, uma sessão de TO não deve terminar nunca, porque tudo que nela acontece deve ser extrapolado na própria vida. O TO está no limite entre a ficção e a realidade: é preciso ultrapassar esse limite. E se o espetáculo começa na ficção, o objetivo é se integrar na realidade, na vida62.

A Pedagogia do Oprimido de Freire também aponta a importância da consciência do

sujeito em relação ao seu papel no contexto de mundo em que está inserido.

A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o jogo destas relações do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiando e respondendo ao desafio, alterando, criando, que não permite a imobilidade, a não ser em termos de relativa preponderância, nem das sociedades, nem das culturas. E na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas63.

Dentro do mesmo contexto histórico em que Boal desenvolveu o TO, Freire

desenvolveu a Pedagogia do Oprimido, os objetivos se afinam, uma vez que ambos lutam por

61 Rose Spina e Walnice Nogueira Galvão em http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/cultura-entrevista-augusto-boal Consultado em 19/07/2010. 62 BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. P. 345-347. 63 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 31ª edição. 2008. P 51.

Page 56: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

55

uma sociedade igualitária, partindo do cidadão transformado e transformador. Assim como

Boal, com a proposta do espect-ator crítico e atuante, Freire também procura com o sujeito

freiriano, a educação crítica, direcionando seu trabalho aos jovens e adultos, na busca da

formação de cidadãos participativos e cientes de seu papel na sociedade, lutando por

igualdade e inclusão. Nas palavras do próprio Freire, se reafirma essa compreensão sobre a

Pedagogia do Oprimido:

A pedagogia do oprimido que, no fundo é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação tem que ter nos próprios oprimidos, que se saibam ou comecem criticamente a saber-se oprimidos, um dos seus sujeitos. Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objetos de um “tratamento” humanitarista, para tentar, através de exemplos retirados de entre os opressores, modelos para a sua “promoção”. A pedagogia do oprimido, que busca a restauração da inter-subjetividade, se apresenta como pedagogia do Homem. Somente ela, que se anima de generosidade autêntica, humanista e não “humanitarista”, pode alcançar este objetivo. Pelo contrário, a pedagogia que, partindo dos interesses egoístas dos opressores, egoísmo camuflado de falsa generosidade, faz dos oprimidos objetos de seu humanitarismo, mantém e encarna a própria opressão. É instrumento de desumanização. [...] A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, tem dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação64.

Nesse sentido, o que os aproxima é a sua intencionalidade política. Ambos estão

envolvidos com movimentos sociais e naquilo que lhes é peculiar, a transformação da

sociedade. Na formação de cidadãos, tanto o TO quanto a Pedagogia do Oprimido, assumem a

possibilidade de se constituírem como movimentos de libertação, de transformação da

realidade social estabelecida. Assim entendida, a dimensão pedagógica do TO relaciona-se

com a Pedagogia do Oprimido através do ato de “ler” o mundo, entendendo-o, para nele

intervir em vista da buscada transformação.

Pensávamos numa alfabetização direta e realmente ligada à democratização da cultura, que fosse uma introdução a essa democratização. [...] Pensávamos numa alfabetização que fosse em si um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores. Numa alfabetização em que o homem não fosse seu paciente, seu objeto, desenvolvesse a impaciência, a vivacidade, característica dos estados de procura, de invenção e reivindicação. Partíamos de que a posição normal do homem era a de não apenas estar no mundo, mas com ele. A de travar relações permanentes com este mundo, de que decorre pelos atos de criação e recriação, o acrescentamento que ele faz ao mundo natural, que não fez, representado na realidade cultural. E de que, nestas relações com a realidade e na realidade, trava o homem uma relação

64 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 44ª edição. 2005. P. 45,46.

Page 57: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

56

específica – de sujeito para objeto – de que resulta o conhecimento, que expressa pela linguagem65.

A alfabetização a que Freire se refere está além de ler e escrever. Trata-se de uma

alfabetização política, na qual o sujeito passa a compreender o mundo, desvelando,

identificando suas contradições e opressões, com a possibilidade de agir nele. Desta forma o

TO e a Pedagogia do Oprimido são potenciais à educação popular naquilo que ela tem de

essencial, ou seja, a formação política dos homens e mulheres, sujeitos em busca da

libertação.

Neste sentido, Augusto Boal e Paulo Freire, além de terem sido contemporâneos,

considerados subversivos, perseguidos, exilados, partilhavam do mesmo desejo de uma

sociedade transformada, cada qual com seu trabalho diferenciado, porém voltado ao oprimido,

e que se aplica na sociedade atual. Assim, tanto o TO quanto a Pedagogia do Oprimido são

hoje considerados modelos nas mais diversas áreas, principalmente nos movimentos sociais e

na educação popular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o desenvolvimento dessa dissertação, as leituras de obras de Boal e de seus

comentadores, me ofereceram entendimento aprofundado das razões porque ele foi

amplamente reconhecido como um dos grandes mestres da dramaturgia no cenário teatral

brasileiro e mundial. Dados biográficos e do contexto da infância e da juventude de Boal

65 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 31ª edição. 2008. P. 112,113.

Page 58: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

57

destacados na primeira parte da dissertação, permitem reconhecer elementos importantes que

influenciarão, mais tarde, sua formação política e teatral.

Centrei os estudos no Teatro do Oprimido, enfocando o espect-ator com o propósito de

destacar sua importância nas experiências do TO realizadas pelo mundo. Em sua essência o

TO reúne um conjunto de elementos e de experiências cênicas, denominadas “arsenal do

Teatro do Oprimido”, que visam à formação crítica do cidadão, tornando-o um agente

transformador na sociedade em que vive e um multiplicador do TO. O espect-actor: aparece

como figura central do TO, orientado pelo curinga, que coordena as experiências com o TO.

O espect-ator perpassa praticamente todas as técnicas do arsenal do TO. Aparece como um

agente formador e transformador da situação de opressão em que ele se encontra. O espetc-

ator possibilita a participação da platéia aqueles que muitas vezes assistem inertes ou em

estado de catarse, a representação de uma realidade, que pode ser a deles mesmos.

A modalidade do arsenal do TO mais aplicada é o Teatro Fórum, que com o espect-

ator, convida a platéia a participar da cena, a intervir, interagir, atuar, sugerindo possíveis

soluções para a situação de opressão apresentada. Dessa maneira, o espectador sai de seu

lugar na platéia, do lugar de quem apenas assiste e passa a ocupar o seu lugar de espet-ator,

em cena, no palco, na vida. A intenção dessas intervenções é a de despertar a consciência

crítica do cidadão, tornando-o um agente de formação e transformação social.

Por ser considerado um teatro polêmico, o TO foi um dos motivos do o exílio de Boal,

que foi considerado subversivo para o contexto social em que Boal vivia e realizava suas

primeiras experiências com teatro político. Nas palavras de Boal: o TO é o “teatro DO

oprimido, COM o oprimido e PARA o oprimido”, possibilitando dessa maneira uma

formação cidadã crítica, transformadora, libertadora, o que era considerado incômodo na

época (anos 70) e pode-se dizer que continua até hoje, mesmo que de uma maneira maquiada.

O teatrólogo entendia que “cidadão não é aquele que vive em sociedade, mas aquele

que a transforma!” Um dos lemas de Boal “paz sem passividade” vincula-se, diretamente à

formação e transformação do cidadão. Ele acreditava que só transformava uma sociedade

aquele que estava aberto as próprias transformações pessoais, que se dão pelo desconforto,

Page 59: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

58

pelo incômodo, daí a luta por um cidadão transformado, capaz de transformar a sociedade,

não se tornando vítima da passividade que, segundo ele, induz à comodidade.

Boal atuou em diversas áreas onde as mais diferentes formas de opressão ocorriam e

ocorrem. Seu trabalho e sua obra são conhecidos e respeitados em países do mundo todo,

embora tenha começado a desenvolver o TO na América Latina. Nos meus estudos constatei

que o TO chegou a países onde Boal nunca foi, ou esteve apenas de passagem.

Por se tratar de um estudo envolvendo a educação popular, Paulo Freire e sua obra é

citado nessa pesquisa não apenas por ser contemporâneo de Boal, mas também pela

semelhança nas trajetórias de vida e principalmente pelos objetivos em comum do trabalho de

ambos. Reprimidos pelo regime militar, os dois autores dedicaram suas atividades teatrais e

educativas, no compromisso com a classe dos oprimidos. Boal, com o Teatro do Oprimido e

Freire com a Pedagogia do Oprimido, coincidiam em seus objetivos e, sob óticas diferentes,

buscavam a transformação da sociedade, começando pelo sujeito, o cidadão que deve ser

ciente e atuante nas transformações necessárias à conquista de uma sociedade mais justa,

inclusiva e igualitária.

A aproximação estabelecida neste estudo, entre as obras de Boal e Freire, é a dimensão

política. Ambos se envolveram com movimentos sociais, na educação popular, na formação

do cidadão e na transformação da sociedade. Tanto o TO quanto a Pedagogia do Oprimido se

constituem como movimentos de libertação, de transformação da realidade social

estabelecida. Assim entendida, a dimensão pedagógica do TO relaciona-se com a Pedagogia

do Oprimido através do ato de “ler” o mundo, entendendo-o, para nele intervir em vista da

busca pela transformação.

Tanto Boal quanto Freire se dedicaram, principalmente, aos movimentos sociais e à

educação popular, onde criaram núcleos multiplicadores de suas contribuições à causa

comum. Apesar de lutarem pela mesma causa, de se conhecerem pessoalmente, não há

registros de que Boal e Freire tenham realizado trabalhos conjuntos. No entanto, são claras as

semelhanças no trabalho de ambos, que apontam para a impossibilidade de se ficar neutro

diante da sociedade em que se vive. Boal no teatro e Freire na educação recusam a

manipulação do conhecimento e conseqüentemente a opressão. Os dois estudiosos primam

pelo diálogo, participação, cooperação, integração, com o propósito de que o cidadão

Page 60: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

59

problematize a sociedade em que vive, podendo dessa maneira ser transformador de sua

realidade social.

A obra, o legado, desses dois cidadãos brasileiros, constituídas e vivenciadas nas

décadas de sessenta e setenta, continuam atuais, e cada vez mais difundidos nas mais diversas

áreas. Ambos continuaram atuantes e dedicados até o fim de suas vidas e, coincidentemente,

faleceram no mesmo dia, dois de maio, com um intervalo de tempo de doze anos. Além das

diversas obras deixadas por Boal, ele também criou o Centro do Teatro do Oprimido (CTO),

com sede no Rio de Janeiro, que até hoje continua, com seus multiplicadores, contribuindo

para manter sua obra cada vez mais viva e ativa.

REFERÊNCIAS

BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro, 2009, numa parceria entre a

Funarte, o Ministério da Cultura e a Editora Garamond.

BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

Page 61: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

60

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1998.

BOAL, Augusto. O teatro como arte marcial. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro.

Civilização Brasileira, 1975.

CARLSON, Marvin. Teorias do teatro: estudo histórico, dos gregos à atualidade.

Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: fundação Editora da UNESP, 1997.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 31.ed. Rio de janeiro: Paz e Terra,

2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 19.ed.

São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 44.ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2005.

FURASTÉ, Pedro Augusto. Normas técnicas para o trabalho científico: explicitação das

normas da ABNT. 15.ed. Porto Alegre: Gráfica e Editora Brasul Ltda, 2009.

HELIODORA, Barbara. O teatro explicado aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

MAGALDI, Sábato. Teatro em foco. São Paulo: Perspectiva, 2008.

MICHALSKI, Yan. Pequena enciclopédia do teatro brasileiro contemporâneo. Rio de

Janeiro, 1989. Material inédito, elaborado em projeto para o CNPq.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro: tradução para a língua portuguesa sob a direção de

J. Ginsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2005.

PEIXOTO, Fernando. O que é teatro. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.

TELLES, Narciso. Teatro comunitário: ensino de teatro e cidadania. Publicado em

Teatro: ensino, teoria e prática. Organizado por Irley Machado e outros. Uberlândia:

EDUFU, 2004.

ENTREVISTAS

Alysson C. Neto em http://www.jornaldeteatro.com.br/materias/reportagem/80-boal-

eterno.html Consultado em 10/09/2010.

Ana Paula Cassettari http://www.opalco.com.br/foco.cfm?persona=materias&controle=123

Consultado em 19/07/2010.

Antonia Pereira Bezerra em V ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em

Cultura 27 29 de maio de 2009 Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil.

Page 62: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

61

Catarina Sant’Anna em http://josekuller.wordpress.com/39-artigo-sobre-a-obra-de-augusto-

boal/ Consultado em 30/07/2010.

César Fraga http://www.sinpro-rs.org.br/extra/ago99/entrevista.htm Consultado em

19/07/2010.

Douglas Leal

http://www.eca.usp.br/nucleos/cms/index.php?option=com_content&view=article&id=105:en

trevista-augusto-boal&catid=16:entrevistas&Itemid=13 Consultado em 10/08/2010.

Entrevista publicada em novembro de 2005 na edição 141 do Brasil de Fato por Nestor

Cozetti, no site http://josekuller.wordpress.com/38-entrevista-com-augusto-boal/ Consultado

em 07/10/2010.

Isabel Coutinho http://www.publico.pt/Cultura/dramaturgo-augusto-boal-morre-aos-78-

anos_1378354 Consultado em 19/07/10.

Nestor Cozetti http://josekuller.wordpress.com/38-entrevista-com-augusto-boal/ Consultado

em 19/07/2010.

Paulo José Cunha http://www.fnt.org.br/artigos.php?id=497 Consultado em 19/07/10.

Revista Fórum http://e-educador.com/index.php/educultura/4461-boal Consultado em

19/07/10.

Romario José Borelli em http://josekuller.wordpress.com/category/teatro/. Consultado em

29/09/2010.

Rose Spina e Walnice Nogueira Galvão

http://www.teatrocoletivo.com.br/index.php?option=com_search&searchword=Augusto%20B

oal&searchphrase=exact Consultado em 19/07/2010.

Sábato Magaldi em http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/homenagem-augusto-boal/

Consultado em 30/07/2010.

SITES

Site do CTO http://ctorio.org.br/novosite/. Consultado em 27/08/2010.

http://www.olobo.net/index.php?pg=colunistas&id=405 Consultado em 10/08/2010.

http://www.opalco.com.br/foco.cfm?persona=materias&controle=123 Consultado em

19/07/2010.

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=cias_b

iografia&cd_verbete=657 Consultado em 15/09/2010.

Page 63: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

62

http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/augusto-boal Consultado em

20/08/2010.

http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=perso

nalidades_biografia&cd_verbete=703. Consultado em 15/09/2010.

http://artes.com/sys/artista.php?op=view&artid=5 Consultado em 27/10/2010.

http://www.opalco.com.br/foco.cfm?persona=materias&controle=76. Consultado em

09/11/2010.

http://www.primeiraedicao.com.br/?pag=maceio&cod=7072.

http://www.paulofreire.org/Noticias/NoticiaHomenagemAAugustoBoal Consultado em

30/10/2010.

ÍNDICE DE ANEXOS66

Anexo I ------------------------------------------------------------------------------------------------- 64

Anexo II ------------------------------------------------------------------------------------------------ 65

Anexo III ----------------------------------------------------------------------------------------------- 68

66 As informações dos anexos dessa dissertação foram consultados no CTO – Centro do Teatro do Oprimido, Rio de Janeiro/RJ, através do site http://ctorio.org.br/novosite/. Consultado em 27/08/2010.

Page 64: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

63

Anexo IV ----------------------------------------------------------------------------------------------- 70

Anexo V ------------------------------------------------------------------------------------------------ 71

ANEXOS

Anexo I – Prêmios.

1962 – Prêmio PADRE VENTURA, melhor diretor - São Paulo

1963 – Premio SACY, melhor diretor, São Paulo

1965 – Premio SACY, São Paulo, Brésil

Page 65: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

64

1959-1965 – Vários prêmios de Associações de Críticos de Teatro do Rio de Janeiro, Recife,

Porto Alegre e São Paulo

1965 - Prêmio MOLIÈRE pelo espetáculo A Mandrágora de Machiavel - Brasil

1967 - Prêmio MOLIÈRE pela criação do "Sistema Curinga" - Brasil

1971 – OBIE AWARD para o melhor espetáculo off - Broadway. LATIN AMERICAN FAIR

OF OPINION, EUA

1981 - OFFICIER DES ARTS ET DES LETTRES – Ministère de la Culture, França

1981 – Prémio OLLANTAY, de Creación y Investigación Teatral, CELCIT, Venezuela

1994 - Prêmio CULTURAL AWARD da cidade de Gävle, Suécia

1994 - Medalha PABLO PICASSO da UNESCO

1995 - OUTSTANDING CULTURAL CONTRIBUTION - Academy of the Arts -

Queensland University of Technology, Austrália

1995 - PRIX CULTURAL - Institut Für Jugendarbeit - Gauting, Baviera

1995 - THE BEST SPECIAL PRESENTATION - Manchester News – UK

1996 – Doctor Honoris Causa in Humane Letters, University of Nebraska, EUA

TRADITA INNOVARE, INNOVATA TRADERE, University of Göteborg, Suécia

1997 - LIFETIME ACHIEVEMENT AWARD, American Theatre Association in Higher

Education, ATHE, EUA - PRIX DU MÉRITE, Ministère de la Culture do Egito

1998 – PREMI D´HONOR, Institutet de Teatre, Barcelona, Espanha – PREMIO DE

HONOR, Instituto de Teatro, Ciudad de Puebla, México

1999 - Honra ao mérito. União e Olho Vivo. Brasil.

2000 – Proclamation of the City of Bowling Green, Ohio. EUA

– Doctor Honoris Causa in Fine Arts, Worcester State College, EUA

– Montgomery Fellow, Dartmouth College, Hanover, EUA

2001 – Nominated (for July, 2001) DOCTOR HONORIS CAUSA in Literature, University of

London, Queen Mary, UK

International Award for Contribution of Development of Drama Education „Grozdanin

kikot“.

2002 – Baluarte do Samba, homenagem da Escola de Samba Acadêmicos da Barra da Tijuca

2005 – Comendador Governo Federal. Brasil.

2008 - Crossborder Award for Peace and Democracy.Irlanda

Anexo II - Livros publicados.

Page 66: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

65

Em português

Arena conta Tiradentes. São Paulo: Sagarana,1967.

Crônicas de Nuestra América. São Paulo: Codecri, 1973.

Técnicas Latino-Americanas de teatro popular: uma revolução copernicana ao contrário. São

Paulo: Hucitec, 1975.

Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1975.

Jane Spitfire. Rio de Janeiro: Codecri,1977.

Murro em Ponta de Faca. São Paulo: Hucitec, 1978.

Milagre no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

Stop: ces’t magique. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

Teatro de Augusto Boal. vol.1. São Paulo: Hucitec,1986.

Teatro de Augusto Boal. vol.2. São Paulo: Hucitec,1986.

O Corsário do Rei. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.

O arco-íris do desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1990.

O Suicida com Medo da Morte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992

Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

Aqui Ninguém é Burro! Rio de Janeiro: Revan, 1996

Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira – 2000

O teatro como arte marcial. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.

"A Estética do Oprimido". Rio de Janeiro, 2009, numa parceria entre a Funarte, o Ministério

da Cultura e a Editora Garamond.

Em alemão

Ehemann mager, Frau flachl Verlag der Autoren, 1957.

Revolution auf südamerikanisch. Verlag der Autoren. 1960.

José von der Wiege bis zur Bahre. Verlag der Autoren, 1961.

Arena erzählt Zumbí. Verlag der Autoren, 1965.

Kriegszeit. Verlag der Autoren, 1967.

Theaterzeitung, Erstausgabe. Verlag der Autoren, 1970.

Das große internationale Abkommen des Onkel Sam. Verlag der Autoren, 1971.

Page 67: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

66

Torquemada (entstanden während seiner Haft in Brasilien). Verlag der Autoren, 1971.

Mit der Faust ins offene Messer, ISBN 3-88661-035-7

Em dinamarquês

Lystens regnbue - Boals metode for teater of terapi, Drama, 2000.

Spil! - øvelser og lege for skuespillere og medspillere, Drama, 1995.

Teatret som krigskunst (O Teatro como arte marcial). Tradução de Niels Damkjær, 2004.

Em espanhol

Categorias de Teatro Popular. Buenos Aires: Ediciones Cepe, 1972.

Em finlandês

Draamaa ja teatteria yhteisöissä, Ventola&Renlund (toim.), 2005.

Em francês

Théâtre de l’opprimé. Éditions La Découverte, 1996.

Jeux pour acteurs et non-acteurs. Éditions François Maspero, 1978.

Pratique du théâtre de l’opprimé. Centre d’étude et de diffusion des techniques actives

d’expression, 1983.

Stop ! c’est magique. Éditions Hachette, 1980.

Méthode Boal de théâtre et de thérapie. Éditions Ramsay, 1990.

L’Arc-en-ciel du désir. Éditions La Découverte, 2002.

Em inglês

Theatre of the Oppressed. Londres: Pluto Press, 1979.

Games for Actors and Non-Actors. London: Routledge, 1992.

The Rainbow of Desire. London: Routledge, 1995.

Legislative Theatre: Using Performance to Make Politics. London: Routledge, 1998.

Hamlet and the Baker's Son: My Life in Theatre and Politics. London: Routledge, 2001.

Page 68: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

67

The Aesthetics of the Oppressed. London: Routledge, 2006.

Norueguês (bokmål)

De undertryktes teater, 1974.

Games for Actors and Non-Actors, 1992.

The Rainbow of Desire, the Boal Method of Theatre and Therapy, 1995.

(Nota: Há duas formas oficiais do norueguês escrito em uso na atualidade, o bokmål (que

literalmente significa língua dos livros) e o nynorsk (novo norueguês).

Suéco

De förtrycktas teater, tradução de Marianne Eyre & Loreta Valadares. Stockholm: Gidlund

[Sweden], 1979.

Anexo III – Peças escritas.

1957 - “Do Outro Lado da Rua”

1957 - “Marido Magro, Mulher Chata”

1958 – “Martim-Pescador”

1960 – “Revolução na América do Sul”

1961 – “José, do Parto à Sepultura”

1962 – “Julgamento em Novo Sol”

1965 – “Arena Conta Zumbi”

1965 – “Arena Canta Bahia”

1967 – “Arena Conta Tiradentes”

1967 – “A Criação do Mundo Segundo Ari Toledo”

1968 – “A Lua Muito Pequena”

1968 – “A Caminhada Perigosa”

1970 – “Arena Conta Bolívar”

1970 - Nova York (Estados Unidos) - Arena Conta Bolivar

1971 – “Torquemada”

Page 69: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

68

1974 – “Tio Patinhas e a Pílula”

1976 – “Lisa”

1976 – “A Tempestade”

1977 – “A Barraca Conta Tiradentes”

1978 – “Murro em Ponta de Faca”

1979 – “Milagre no Brasil”

1980 – “Stop: C´est Magique”

1985 – “O Corsário do Rei”

1988 – “A História do Homem que Lutou Sem Conhecer Seu Grande Inimigo”

1990 – “Somos 31 Milhões... e Agora?”

1996 – “O Arco-Iris do Desejo”

1996 – “A Heroína da Pindaíba”

1998 – “A Herança Maldita - Um Boulevard Macabro”

1998 – “O Amigo Oculto”

2005 – “O Canto do Teatro Brasileiro I”

Page 70: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

69

Anexo IV – Árvore do Teatro do Oprimido

Page 71: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

70

Page 72: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

71

Anexo V – Arsenal do Teatro do Oprimido67

Arsenal do TO = Conjunto de exercícios, jogos e técnicas que são aplicados nas oficinas e

cursos de Teatro do Oprimido para desmecanização física e intelectual dos participantes.

CTO = Centro de Teatro do Oprimido.

Curinga = Especialista e pesquisador do Teatro do Oprimido; facilitador do Método; um

artista com função pedagógica, que atua como mestre de cerimônia nas sessões de Teatro-

Fórum, coordenando o diálogo entre palco e platéia, estimulando a participação e orientando a

análise das intervenções feitas pelos espectadores.

Curingar = Estimular e mediar o diálogo entre palco e platéia, através da intervençaõ direta

dos espectadores na ação teatral, nas sessões de Teatro-Fórum.

Espect-ator = O espectador da sessão de Teatro-Fórum não é um consumidor do bem cultural

e, sim, um ativo interlocutor que é convidado a assumir o papel do oprimido e/ou de seus

aliados para interagir na ação dramática de maneira a apresentar alternativas para outros

possíveis encaminhamentos ao problema encenado; Aquele que está na platéia na expectativa

de atuar, entrando em cena trazendo sua alternativa para resolução do problema apresentado.

Estética do Oprimido = Atividades baseadas na Imagem, no Som e na Palavra, que integram o

arsenal do Teatro do Oprimido e visam estimular a descoberta das potencialidades criativas

dos oprimidos.

GTO = Grupo de Teatro do Oprimido.

Multiplicador = Ativista sócio-cultural, oriundo de Pontos de Cultura, grupos culturais,

movimentos sociais e organizações sócio-culturais, que utilizam o TO como instrumento de

trabalho e de comuicação – lúdico e eficaz – na atuação comunitária, para dinamizá-la e

diversificá-la para ampliar seu raio de ação.

67 Material ofericido pelo CTO, através do site http://ctorio.org.br/novosite/arvore-do-to/glossario/ Consultado em 30/10/2010.

Page 73: BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPECT-ATOR EM CENA NA …augustoboal.com.br/wp-content/uploads/2019/05/006-mara-welter.pdf · FICHA CATALOGRÁFICA . 4 AGRADECIMENTOS Agradeço com

72

Teatro-Fórum = Representação baseada em fatos reais que mostra uma situação opressiva,

apresentada como uma pergunta a ser respondida e que visa à participação dos espect-atores

na busca das alternativas.

Teatro Legislativo = Ao longo da sessão de Teatro-Fórum, os espectadores elaboram

propostas escritas de encaminhamento de ações concretas, as quais são sistematizadas por

especialistas e votadas pela platéia. as aprovadas são enviadas as autoridades.

TO = Teatro do Oprimido.

Teatro do Oprimido = Método sistematizado pelo teatrólogo Augusto Boal que visa à

transformação de realidades opressivas, através de meios estéticos e a partir do Diálogo entre

os oprimidos.