bernardo guimarães - rosaura a enjeitada
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Rosaura, a Enjeitada
BERNARDO GUIMARÃES
ASSOCIAÇÃO ACERVOS LITERÁRIOS
BIBLIOTECA VIRTUAL
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2005
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A Mãe
Capítulo I
Uma Cena Entre Estudantes de S. Paulo.
– Que fazes aí, Aurélio, que estás a bocejar como quem está a morrer de sono? ... Quando todos aqui estão a
tagarelar como um bando de maritacas, ficas amuado a um canto, tu que de ordinários a garrulice em pessoa?
– Na verdade, Aurélio!... Estás tão calado, que até já me esquecia de que estás aí. Anda lá chupa mais um
cálice de conhaque, e diverte-nos com algumas de tuas costumadas asneiras.
– Asneiras!... Cala-te daí, Belmiro... Só peço que não embaracem comigo; conversem e deixem-me em paz.
– Já estás bêbedo, decerto; nesse caso, vai deitar.
– Bêbedo eu! ... oh! quem dera! ... estou meditando, e neste momento procuro resolver um dos mais graves e
árduos problemas que se tem suscitado ante o espírito humano...
– Oh! oh! um problema de geometria, ou álgebra?...
– Nada disso; um espírito sério não se ocupa com essas frivolidades.
– A quadratura do círculo?...
– Não; coisa melhor, ou pior ainda.
– Aposto que não é direito civil.
– Por certo; o direito civil é um problema eterno e insolúvel.
– Será o moto contínuo?
– Ora!... esse está resolvido e posto em prática, desde que o mundo é mundo.
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– Onde?
– Em todo o universo.
– Ah! Já sei; é a pedra filosofal, o modo de fabricar ouro, o tormento de Cagliostro.
– Qual ouro! Quem fala em ouro nestes tempos em que o dinheiro se fabrica de papel!
– Ah! agora atinei – exclamou o Belmiro – não é um problema do espírito, nada tem com a cabeça...
– Será então de barriga?
– Então, além da cabeça e da barriga nada mais há?
– São os dois órgãos principais do corpo humano; Menênio Agripa que o diga.
– Pois o teu problema não é nem da cabeça, nem da barriga.
– Sim? Deveras? Então, faça-nos o favor de dizer o que é, meu grande Édipo, decifrador de enigmas.
– É do coração.
– Ah! ah! ah! – retorquiu Aurélio, desatando uma grande gargalhada - A força de poetizar, dizes cada
asneirão!... Ah! ah! ah!...
A gargalhada de Aurélio foi acompanhada em coro pelos outros interlocutores, e o pobre Belmiro,
completamente desafinado, enfiou e emudeceu.
– Mas então – continuou Aurélio no seu tom entre sério e galhofeiro – não nos explicará o que é esse problema
do coração?
– Nada mais fácil – respondeu Belmiro – O problema do coração nada mais é que uma paixão...
– Amorosa, não é assim?
– Está visto.
– E como se resolve este problema?
– Procurando modos de satisfazer ou extinguir essa paixão.
– Onde leste isto, meu palerma? Estás enganado; tais problemas quem os resolve é o objeto da paixão, dizendo
simplesmente: sim ou não.
– Deixemo-nos dessas parvoíces – interrompeu o outro. – Vamos ao teu problema, Aurélio.
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– O problema! O problema! – exclamaram todos.
– Já que vocês, com a mais impertinente curiosidade, o querem saber por força, escutem-me com atenção. O
problema, de cuja a solução me ocupo, é dos mais momentosos e graves, o mais cheio de corolários
importantes, que se pode suscitar na presente fase de nossa vida escolástica. Dele depende o nosso porvir de
amanhã, e talvez mesmo o depois de amanhã...
– Ah! então não vai muito longe...
– Ó Aurélio, desculpe-me se interrompo o teu belo discurso, você é quem nos dá de comer amanhã?
– Não, felizmente; quem está de bolsa ali é o Silva, creio eu.
– Ainda bem. Já estava com medo que o problema da nossa alimentação, amanhã, estivesse sem solução. Mas
visto que o teu problema não compromete o futuro de nossos estômagos, podes continuar.
– E esta! – prosseguiu Aurélio. – Que interrupção impertinente! Todos aqui sabem que o estômago é coisa que
nunca me passou pela cabeça...
– Por certo! Assim como a cabeça nunca te passou pelo estômago.
Neste ponto, uma trovoada de apartes, risadas, aplausos, e mil disparates a propósito de cabeça, estômago,
intestinos e mais órgãos do corpo humano perturbou por largo tempo o diálogo, até ali entabulado entre Aurélio
e os mais interlocutores.
– Com mil diabos! Vociferou com impaciência um dos comparsas, dando um forte murro sobre a mesa.
– Que algazarra infernal é esta? Deixem o Aurélio dizer qual é esse maldito problema, que lhe serve não sei se
na cabeça, se no coração ou nas tripas...
– É preciso que ele o desembuche, senão vou deitar-me, que por isto já está me cheirando a maçada.
– Pois bem! vamos ao problema. Aurélio! Nada de preâmbulos! Vamos com isso, Aurélio.
– O problema, meus senhores – começou Aurélio com toda a gravidade – é do mais palpitante interesse e cheio
de atualidade para nós todos que aqui no achamos. Mas, como não querem permitir-me a menor explanação
prévia a respeito do assunto de tanta magnitude, vou já tocar com o dedo no âmago da questão. É incontestável
que... amanhã é quinta-feira...
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– Que dúvida, logo que hoje é quarta!
– É dia feriado, por conseqüência, não é assim, meus senhores?
– Está claro, uma vez que não há outro feriado na semana.
– Pois bem. Que havemos de fazer no dia de amanhã? Eis aí o problema que me preocupa, meus senhores, e
para cuja solução requeiro o concurso de vosso espírito esclarecido e de vossas reconhecida ilustração.
Ditas estas palavras, Aurélio sentou-se e, cravando os cotovelos sobre a mesa, pousou gravemente o rosto entre
as mãos.
Sinais estrondosos de aplausos e reprovação, gargalhadas, pragas, murros sobre a mesa, discursos a duo e a trio,
e enfim uma algazarra indefinível atroaram por alguns minutos a pequena sala de jantar, onde envolta de uma
mesa cheia de garrafas e copos, bules e xícaras, pedaços de pão e carne, entre os quais figuravam também
alguns livros e papéis, falavam e bebiam, liam e comiam uns nove ou dez estudantes do curso jurídico de S.
Paulo.
Era isto em tempos já idos, na Paulicéia antiga e patriarcal de 1845, nessa Paulicéia, que conservava ainda
quentes as cinzas de Diogo Antônio Feijó, que ainda escutava os ecos das vozes patrióticas e eloqüentes de
Antônio Carlos e Martim Francisco, e que ainda não pranteava sobre o túmulo de dois ilustres cidadãos,
modelos venerandos de patriotismo e virtudes cívicas: Vergueiro e Paula Souza.
Ainda então a cidade de S. Paulo conservava certos laivos de sua primitiva simplicidade, e posto que fosse já,
relativamente à época, uma cidade assaz populosa, e o núcleo de um grande movimento intelectual, parecia
respirar-se ali ainda a aura tradicional dos tempos de Amador Bueno.
A classe acadêmica harmonizando-se com o meio em que vivia, passava vida simples, folgazã e descuidosa,
ainda mais do que é ordinário entre essa extravagante variedade do gênero humano. Divididos em grupos, os
estudantes derramavam por todos os bairros da cidade, e chamavam-se repúblicas, como até hoje, as casas
ocupadas por esses grupos, e onde viviam na mais admirável igualdade e fraternidade. Nessa época havia entre
os estudantes um certo espírito de classe tão fortemente pronunciado, que formava deles uma corporação, não
só respeitada, como temida dos futricas, nome que se dava a todo cidadão estranho ao corpo acadêmico.
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A reunião, a que assistimos, tinha lugar em uma rua que, se bem nos lembramos, tinha o nome de Rua da
Constituição, a qual, partindo do largo, onde ficam o mosteiro e a igreja de S. Bento, dirige-se para o risonho e
pitoresco arrabalde da Luz. A casa ocupada pelos estudantes fronteava justamente com o lado da igreja, que faz
face à rua.
Eram cerca de nove horas da noite. Em uma cidade pouco mais populosa e de pouco movimento comercial,
como era então S. Paulo, já o remanso e o silêncio reinavam por toda a parte; a rua era um deserto. As janelas
da sala de jantar, onde se dava o colóquio, abriam-se para as extensas vargens alagadiças cortadas pelo
Tamanduateí que separam a cidade propriamente dita do arrabalde de S. Brás. Essas vargens, banhadas então
por um brando luar, formavam outro deserto, mas vasto e aprazível e pelas janelas abertas os estudantes
podiam expandir as vistas e aspirar as auras frescas e balsâmicas que se elevavam dos vargedos. Portanto,
tagarelavam, riam e gritavam à vontade, sem se importarem com as maldições e pragas dos vizinhos.
Apenas acalmou-se um pouco a algazarra provocada pelo incidente da cabeça e do estômago, Aurélio, que até
ali se conservara impassível e silencioso no meio daquele infernal alarido, levantou-se e prosseguiu dando à sua
voz uma entonação enfática e solene:
– Que havemos de fazer do dia de amanhã, meus senhores? Eis a interrogação que continuo a fazer-vos, e a que
não sabeis dar resposta. Eis o problema incandescente que me tortura o cérebro, e a que não sabeis dar uma
solução!
– Ora, o que havemos de fazer do dia de amanhã! – respondeu uma voz. – Deixá-lo passar.
– Deixá-lo passar! – exclamou Aurélio. – Quem proferiu semelhante blasfêmia? Deixá-lo passar! Isso nunca!
Eu não quero que o dia de amanhã passe sobre nós; quero, sim, que nós passemos sobre o dia de amanhã.
Porventura estamos mortos? As ondas do tempo correm sobre o túmulo dos morto, mas nós os vivos devemos
vogar sobre as ondas do tempo.
– Bravo! Bravo! Muito bem! – exclamaram diversas vozes.
– Portanto – prosseguiu Aurélio -, continuo a perguntar-vos: que havemos de fazer do dia de amanhã?...
– Voto por um passeio à Ponte-Grande – bradou um dos comparsas.
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– Um passeio à Ponte-Grande! – prosseguiu Aurélio com um irônico sorriso. – Excelente recurso, admirável
antídoto contra o tédio! Iremos talvez pela centésima vez, depois de uma caminhada de estafar, pôr-nos em
êxtase a ver correrem as sombrias águas do Tietê, lúgubres e sonolentas como as do Letes, que lá vão, como
jibóia preguiçosa, lambendo as margens tão monótonas como ele, e apenas sombreadas aqui e acolá por umas
restingas de mato enfezado! Esse modo de passar-se sobre uma quinta-feira, além de já muito gasto, é de todos
o mais enfadonho.
– Seja assim como queres. Embirras com esse Letes, mas bem sabes que junto a ele estão os campos Elíseos.
Se achas longe a jornada, passaremos sòmente pelo bairro da Luz. Há nada mais aprazível e pitoresco que esse
bairro?
– Depois de termos atravessado essas taipas denegridas, duras como granito, que se diz terem sido socadas por
mãos de condenados de ilustre hierarquia e alta posição.
– Que mais parecem ruínas – interrompeu Aurélio – ruínas sinistras de uma construção que nunca se acabou ...
Oh! nem falar em semelhantes taipas, abomináveis relíquias da estúpida e grosseira tirania de nossos
antepassados! Ah! pudesse eu arrasá-las de um golpe!
– Bem, Aurélio. Passaremos aí sem olhar para elas, e entraremos no Jardim Botânico. Não é lindo aquele
sitiozinho? Aquele lago? Aquelas palmeiras? A encantadora perspectiva que se estende pela margem do Tietê?
Basta! Não falemos mais nisso! Até onde irás com tuas encantadoras perspectivas? Elas só existem na tua
imaginação. Com que cores queres tu pintar aquele acanhado recinto? E para iludir a quem? A nós todos, e a ti
mesmo, que lá temos ido tantas vezes? Belmiro, pelo amor de Deus! Não entremos no jardim; deixemos esse
recanto, que não inspira prazer, nem melancolia, saudade, nem esperança; deixemos esse lodoso e pútrido, essa
mísera aléia de oliveiras, que não dão flor nem fruto, essas palmeiras raquíticas...
– Com mil diabos! Nada há que te satisfaça! Pois bem, deixemos o jardim! Vamos para o lado fronteiro, e
entremos nesse silencioso e plácido recinto, cercado de altas muralhas, que quase o escondem aos olhos do
mundo. É ali o pitoresco conventinho de N. S. da Luz. Paz angélica e olímpica serenidade parecem descer da
abóbada da pequena capela, onde infelizmente ressoam mais os cânticos piedosos das virgens votadas ao
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Senhor... E aquele silêncio é tão melodioso! Faz a alma embeber-se em contemplações místicas! Quantas flores
de formosura e mocidade ali se fanaram lentamente, à sombra do altar, para irem abrir-se de novo em
primavera eterna nos jardins da bem-aventurança!
– Ai! Meu Deus! Que carola está hoje este Frei Belmiro! – exclamou um dos comparsas, bocejando e estirando
os braços. – Se continuas com a tua maçante homilia, vou deitar-me...
– Na verdade , meu caro Belmiro – atalhou o Aurélio – ias entrando por um sermão bastante enjoativo a
respeito desse conventinho em miniatura, resto de um passado odioso, fantasma hediondo do claustro, em que
o fanatismo sepultava em vida, sem dó nem piedade, as mais mimosas flores da juventude e da beleza, flores
que meu Deus criou para os prazeres e carinhos do amor, e não estúpidas macerações do monarquismo, para se
espanejarem ao sol da primavera, ao sopro livre das virações do céu, e não para murcharem tristemente na
sombra lúgubre de perpétua e mefítica reclusão...
– Basta, Aurélio! Não esperdices mais tua eloqüência - interrompeu Belmiro já um tanto enfadado. Se assim o
queres, deixemos ainda esse convento, e passemos adiante. Há nada mais risonho e pitoresco do que esses
vargedos no Tietê, que no tempo das águas se convertem em labirinto de lagos e canais, do seio dos quais
emergem ilhas cobertas de verdejantes balsas com suas casinhas meio sumidas entre moitas...
– Basta por tua vez também! – exclamou Aurélio. – Toma fôlego, meu amigo, que esse período, em que vais, é
capaz de te estafar. É melhor que digas simplesmente: - Aquilo é uma Veneza! Ali está a Ponte dos Suspiros;
acolá o palácio dos Doges; além o Adriático... As gôndolas são cascas de palmito, as princesas, que vão dentro
caipiras papudas... Os gondoleiros alguns sapos, dos quais vai um à popa, tocando guitarra...
– Arre lá! Retrucou Belmiro, - És capaz de despoetizar até o próprio empíreo! Pois bem, tu serás o Lord Byron
dessa nova Veneza, atravessando a nado o canal com uma lanterna entre os dentes, para evitar bordoadas dos
gondoleiros.
– Por certo, e para chamar, por um modo mais original, a atenção da bela Condessa Guicciolini...
– A qual será uma sapa papuda...
– As...pa...pa...puda!... Irra!
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– Mas... se és incontentável...
– Talvez não. Vamos adiante.
– Pois bem, mudemos de rumo, e vamos ao arrabalde do Brás. Queres mais bonito passeio? Que vasta e
formosa perspectiva nos oferece esse bairro, visto do terraço do convento do Carmo! É a mais deliciosa e
encantadora que se pode imaginar. A capela de S. Brás, com seu campanário branco, e aquelas casas dispersas
pela planície exalam como um perfume idílico, que enleva a imaginação...
– Basta! Basta! Por S. Brás te peço! E aquele comprido e monótono caminho do aterrado ente os charcos de
Tamanduateí, exalando infectos miasmas de maresia, transposto o qual, essas planícies, que de longe parecem
vastas e aprazíveis, vistas de perto não são mais que áridas e acanhadas charnecas entre rincões estéreis onde
não murmura um regato, não sussurra um arvoredo, não canta um passarinho... Terra de águas mortas e de
formiga saúva, campos sem selvas e sem flores...
– Irra! Gritou, de um canto, um dos comparsas. – Vocês dois, a borbotarem poesia pró e contra S. Paulo, já nos
estão moendo a paciência. Nunca mais acabarão com isso?
– Que queres? – acudiu Belmiro. – Não vês como este Aurélio é difícil de contentar? Eu, da minha parte, acho
esta Paulicéia um céu aberto, um jardim de delícias.
– E eu cá entendo – retrucou Aurélio – que ela não passa de um purgatório, se é que não é um inferno. Desejara
que os lentes agora me acenassem ao menos com dois RR, só para ter um pretexto de deixar esta monotonia,
passar-me para Pernambuco e ir visitar essa Veneza do norte, a ver se é menos enfadonha do que esta.
– Tens um bom par de asas, andorinha peregrina, e podes voar para onde quiserdes em demanda de outros
climas. Mas eu, ai de mim, pobre frango nuelo! Se os lentes embirrarem comigo, aqui mesmo serei depenado e
sacrificado sem piedade...
Nisto estavam, quando entra, brusca e inopinadamente pela casa, um novo colega. Era um belo mocinho
moreno, de pequena estatura, de fisionomia radiante e prazenteira, e fronte larga, onde fulgurava o gênio como
na do Aurélio.
– Boa noite, rapaziada! Então, que se faz por aqui? – disse ele entrando.
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– Oh, boa noite, Azevedo! – acudiram todos, voltando-se para o recém-chegado com um alegre sobressalto. -
Aqui fuma-se, bebe-se e conversa-se. Vem sentar-te e fazer o mesmo...
– Não; vim com pressa sòmente para fazer um convite.
– Um convite, e a quem?
– A todos desta república, e a mais alguém, se quiserem, contanto que não passem de oito a dez.
– Decerto. Nós somos seis, e com você sete; é quanto basta. É número simbólico, e até apocalíptico – observou
Aurélio. – Mas da parte de quem o convite, e para quê?
– Creio que conhecem o Major Damásio?
– Oh! se conhecemos! Esse tipo singular é conhecido em toda a cidade. Não é pai daquela linda menina
chamada Adelaide?
– Justamente. É muito meu amigo, e fêz-me a honra de convidar a um passeio à sua chácara de Ó, para comer
jabuticabas. Ora as jabuticabas do Major Damásio gozam de justa celebridade, assim como a beleza de sua
filha. O major autorizou-me a convidar alguns amigos. Partimos ao meio-dia, jantamos lá, e voltaremos à hora
que quisermos. Querem ir?
– Eureka! Eureka! Está resolvido o problema! – foi a resposta que em altos brados deram todos à pergunta de
Azevedo.
– Que diabo de problema é esse! – exclamou, espantado, o Azevedo. – Vocês, pelo que vejo, ou estão malucos,
ou beberam demais.
– Nem uma, nem outra coisa – replicou o Aurélio. – Estávamos aqui a discutir o seguinte problema, que eu
mesmo havia proposto: Que fazer do dia de amanhã? E ainda não tínhamos achado uma solução que
prestasse. O teu convite veio a resolvê-lo. Por conseguinte, um brinde ao Major Damásio. Viva o Major
Damásio!
– Viva! ... Viva!... – bradaram todas as bocas.
E assim se terminou e dispersou aquele clube escolástico
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Capítulo II
O Major e sua Chácara
Agora, meu bravo leitor, não há remédio senão irmos com os estudantes até a chácara do Major Damásio. A
comitiva é alegre e numerosa; consta de uma troça de sete acadêmicos de anos superiores, todos inteligentes,
espirituosos e galhofeiros, e cada qual mais desmiolado. A companhia é excelente, e nos servirá para disfarçar
o enfado do caminho através de um dos mais solitários e menos poéticos bairros da antiga Paulicéia.
Transponhamos depressa a ponte sobre o Anhangabaú, triste nome, que bem corresponde ao miserável regato
que aí corre, separando a freguesia central da cidade de Sta. Efigênia. Se o nome é dissonante e lúgubre como o
piar do mocho, não o é menos o ribeiro turvo e lodoso, que parece esconder-se, envergonhado, no fundo de seu
imundo leito. Temos ainda de atravessar uma espécie de largo, no meio do qual há um charco, que se intitula
Tanque dos Zunegas, fecundo viveiro de rãs e sapos de toda qualidade. Mais uma esporada ou uma chicotada
em nossas cavalgaduras, e teremos deixado atrás esse arrabalde, formado de quintais sem dono, cercados de
taipas velhas e arruinadas e abandonadas às formigas e aos tatus.
Depois de termos saído da cidade e andado cerca de dois quilômetros pela estrada que conduz à freguesia de N.
S. do Ó, caminho insípido entre áridos rincões entremeados de moitas de mato rasteiro, entremos por uma
vereda à direita, procurando as margens do Tietê. É o caminho que leva à chácara do Major Damásio.
Apenas se tem avançado uns quinhentos metros por entre os matagais, abre-se sùbitamente um largo horizonte,
onde a vista, até ali encarcerada entre estéreis e tristonhas charnecas, expande-se livremente pelas extensas e
risonhas lesírias alagadas pelos transbordamentos do Tietê campeando ao longe, no fundo do vasto painel, o
imenso cordão da serra da Cantareira.
Na falda de uma colina, que se eleva sobre esses grandes vargedos alagadiços, está situada a chácara do major,
com sua casa térra, mas bonita, alegre e asseada. Por detrás dela, estende-se o vasto pomar de jabuticabeiras,
laranjeiras, bananais, enfim uma floresta profunda de árvores frutíferas indígenas e exóticas, que vai terminar
na orla dos vargedos, sendo deles separada por uma sebe de espessos espinheiros.
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Apenas avistaram a casa, os estudantes, dando gritos de alegria e agitando lenços brancos, puseram a meio
galope suas magras cavalgaduras pelo suave lançante que descia para lá. Um negrinho de libré agaloado veio
depressa abrir a cancela de madeira oleada dando entrada para um pátio, que fechava a frente da casa, e pelo
qual os estudantes entraram de tropel. O major, que já de longe os avistara, esperava-os em pé, em um alpendre
construído bem no meio da risonha vivenda, servindo-lhe de peristilo, e sustentado por duas colunas de
madeira, em volta das quais se enrolavam trepadeiras cobertas de folhagem e flores de diversas formas e
matizes. A figura do velho major sobressaía de modo pitoresco e quase poético no seio daquele nicho de
verdura e flores. Os estudantes o compararam, um a São José no presépio de Belém, outros ao deus Pã no seio
de sua gruta.
– Entrem, entrem, meus amigos! – exclamou ele, esfregando alegremente as mãos. – Já me tardavam... passa de
uma hora... Moleque, recolhe os animais destes senhores... Dr. Azevedo, então? Como vai essa flor? Já estava
receando que me roessem a corda... Em estudantes não há muito o que fiar.
Estas últimas palavras eram dirigidas ao Azevedo, com quem já tinha antiga familiaridade, e cuja destra
apertava afetuosamente entre ambas as mãos.
– Pelo contrário, major... replicou Azevedo, com sua habitual e risonha afabilidade – Estamos afeitos à
disciplina acadêmica e somos mais pontuais que os ingleses.
Entretanto, os estudantes subiram rapidamente os quatro ou cinco degraus do pequeno alpendre, que mal os
podia conter, e portanto o major deu-se pressa em conduzi-los para uma sala de espera imediata, bem clara,
fresca e arejada.
– Descansem aqui, alguns momentos – disse-lhes – enquanto vou mandar vir algum refresco.
Dito isto, retirou-se e os deixou discretamente em liberdade.
Enquanto os estudantes descansam um pouco, tratemos nós de esboçar em traços leves e rápidos o todo moral e
material do Major Damásio, assim como também de falar em alguns pontos de sua vida passada, bem
entendido; porque da futura ficaremos cientes pelo decurso desta história.
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Era ele um homem maior de cinqüenta anos, de estatura regular, magro, porém de compleição robusta, refeito e
espadaúdo. Apesar da idade, tinha dentes alvos e sãos, e os cabelos ainda negros, luzentes e corredios, como os
dos indígenas. Tinha feições regulares e fisionomia agradável, onde todavia ressumbrava, por vezes, certo ar de
feroz desconfiança.
Por este pequeno esboço, bem se vê que devia circular-lhe nas veias não pequena dose de sangue tibiriçá.
Era político exaltado, e como compadre e amigo do notável cidadão Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar,
militara com ardor sob as bandeiras do partido liberal exaltado daquela época. Tomou parte na memoranda
revolução de 1842, que conflagrou por alguns meses as províncias de S. Paulo e Minas. Por essa ocasião,
assistiu ao famoso combate de Ponche-Verde, no qual consta que se distinguira como tenente de uma
companhia, embora reze a história que aí não se disparou um só tiro, não se desembainhou uma espada. Não
obstante, foi posteriormente promovido ao posto de major de guardas-nacionais e condecorado com o hábito da
Rosa. Muladeiro desde os verdes anos, com essa profissão, graças ao amparo e proteção que lhe barateava o
compadre Tobias, conseguiu adquirir não pequena fortuna e posição respeitável na sociedade.
Era viúvo de uma mulher pobre e de baixa extração, que dizem fora mui linda, e com quem se casara por amor.
Dizia-se também, pela boca pequena, que a sogra do major fora cativa, e que a esposa tinha sido libertada na
pia batismal.
Não o podemos asseverar, e nem tampouco provar com documentos, mas como este boato muito influi no
desenvolvimento da presente história, força é consigná-lo aqui. A mulher do major morrera ainda jovem,
deixando ao inconsolável esposo um par de filhos, dos quais o varão morreu em tenra idade.
Na época em que nos achamos, o bravo paulista já havia renunciado à vida ativa, e repousava à sombra de seus
louros marciais, desfrutando em paz a fortuna que à custa de suores e fadigas, havia honrosamente adquirido.
Ufano de seus haveres, e inculcando-se parente das mais ilustres e antigas famílias de S. Paulo, folgava de
relacionar-se com as pessoas altamente colocadas, e não poucas vezes jactava-se da nobre influência de que
gozava, em razão dos relevantes serviços prestados ao seu partido. Não era, contudo, um fanfarrão vulgar; sabia
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guardar as conveniências e aparentar modéstia, quando lhe teciam elogios à queima-roupa; baixava os olhos e
corava um pouco por baixo da tez bronzeada, embora sorrisse a furto com íntimo contentamento.
Sua filha e sua chácara, porém, absorviam quase toda a sua atenção, constituíam seus principais cuidados, e
cumpre notar que ambos mereciam bem esses desvelos. O jardim era notável, não só pela profusão e imensa
variedade de flores raras e formosas que o cobriam, como principalmente pela aprazível posição em que se
achava colocado, como um belvedere, dominando o pomar, por cima do qual a vista se estendia ao longe por
vastos horizontes.
Consistia ele em uma área quadrada de cerca de dez metros de face, dividida em canteiros dispostos com arte e
agradável simetria. Dois bonitos caramanchões cobertos de trepadeiras ornavam-lhe os ângulos, como dois
torreões de verdura e flores.
Era esse jardim como um gigantesco ramalhete, ou como um tabuleiro de flores, onde mal se divisavam as
estreitas ruelas, que os separavam; tão escondidas se achavam debaixo das ondas de moitas perfumadas e
floridas, que as abafavam.
Era ali que o major, nas lindas e frescas manhãs, ou nas tardes calmosas e serenas, vinha espairecer as vistas,
tomar o fresco e respirar o perfume das auras embalsamadas, alardeando nos trajos e no modo de viver em
certa indolência voluptuosa à moda oriental.
Na ocasião em que o encontramos, traja, como de costume, uma ampla robe de chambre de chita adamascada,
e cobre a cabeça com um gorro de seda cor de viola, bordado de garridas cores. No Pescoço, à guisa de gravata,
traz um grande lenço vermelho de pura seda da Índia, preso por um alfinete de brilhantes.
Quando ali se achava em seu jardim, ao lado de sua filha, contemplando suas flores e seu vasto pomar,
julgava-se tão feliz e poderoso, como um sultão nos palácios de Estambul ou Bagdá.
É quanto basta por agora saber a respeito do major e de sua chácara. Quanto à filha, em breve trataremos de
esboçar o seu retrato, pois o major não tarda a chegar, e já sabemos quanto o velho paulista é desconfiado.
Portanto, sobre este particular, por ora chiton!...
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Alguns minutos depois que o major se retirara, entrou um escravo trazendo uma ampla bandeja carregada de
copos, facas, colheres, açúcar, limões azedos e uma garrafa de aguardente, preparos indispensáveis para um
ponche frio, e tudo depositou sobre a mesa. Depois retirou-se sem dizer palavra, como quem diz: arranjem-se.
Isso mesmo é que os estudantes queriam.
– Vamos, rapaziada, vamos ao ponche! – exclamou o Aurélio, levantando-se de um salto do banco em que se
achava reclinado.
– Vamos a ele – acudiu prontamente Belmiro. – Com o calor que faz, nada podia vir mais a propósito.
Imediatamente puseram mãos à obra, prepararam seu copo de ponche e começaram a saboreá-lo lentamente
(exceto o Azevedo, que apenas tomou um cálice de aguardente pura e acendeu um charuto).
Assim passaram cerca de meia hora, a beber, fumar e conversar, enquanto esperavam pelo major para
conduzi-los ao pomar.
– Com mil diabos! – exclamou o Aurélio já impacientado com a demora do dono da casa. – Azevedo, tu que
tens mais liberdade na casa, manda dizer ao nosso anfitrião que nós aqui viemos para passear, percorrer a
chácara, admirar a beleza de sua filha, e não para ficarmos encerrados nesta sala e tomar ponche eternamente.
– Tem paciência – replicou o Azevedo – O major não pode tardar. Sem dúvida está a dar algumas providências
para nosso tratamento, e foi avisar a filha, a fim de que nos seja apresentada de um modo condigno e próprio de
sua alta hierarquia.
– Ora essa! – interveio Belmiro – Que tenho eu com a chácara, com as jabuticabas e mesmo com a filha do
major? Da minha parte, preferia ficar aqui mesmo nesta liberdade a tomar ponche, e, se houvesse violão, a
tocar e cantar...
– Cala-te daí, pateta! – interrompeu o Azevedo. – É porque não sabes quanto é encantadora a filha do major.
Também a mim pouco me importam as jabuticabas; mas dera de bom grado metade da minha vida para passar
a outra metade nos braços de Adelaide à sombra do jabuticabal...
– Oh! Bravo! Pelo que vejo, há muito que andas apaixonado?...
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A palestra foi interrompida neste momento pela voz estridente do major, que já de longe vinha bradando no
interior da casa.
– Vamos, meus senhores, vamos às frutas, que já vai ficando tarde.
– Prontos, major! Prontos! – acudiram todos com entusiasmo.
– E D. Adelaide? Ainda não nos apareceu! Não vai conosco? – ousou perguntar o Azevedo.
– Oh! vai sem dúvida – respondeu o major. – Lá está no jardim à nossa espera.
– É justo – replicou galantemente Azevedo – o jardim é o lugar das flores.
Guiados pelo major, os estudantes atravessaram diversos corredores e compartimentos, e passando pela sala de
jantar e por perto da cozinha, pressentiram com íntima satisfação, pela vista e pelo olfato, que à volta do pomar
os esperava uma suculenta e opípara refeição. Sem mostrarem, todavia, prestar atenção a esta circunstância,
passaram além, desceram a um espaçoso pátio cheio de galinhas, perus, patos e toda a casta de aves
domésticas, e por um largo portão, que o major lhes abriu, fizeram sua entrada no jardim.
Capítulo III
Adelaide no Jardim
Do lado oposto ao portão, na extremidade do jardim, para o qual se desce também por alguns degraus de pedra,
Adelaide, sentada em um banco à sombra de uma pequena latada do jasmineiro, se apavona negligentemente
em toda a plenitude de sua formosura. Parece uma dríade entre as moitas florescidas... Mas não; não é a exata
comparação. O traje de Adelaide nada tem de comum com a ligeira e indecente roupagem das ninfas da
mitologia grega. Traz um vestido de seda furta-cores, cuja ampla roda, um pouco arregaçada sobre a alva e
rendada saia, se desdobra a um lado e outro, dando-lhe antes a semelhança de gigantesca borboleta, com as
asas de brilhante matiz abertas sobre a florente ramagem do jasmineiro.
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Quando o portão se abriu, parecia distraída, passeando pelo horizonte vagos e melancólicos olhares; mas a
garrulice alegre e ruidosa em que vinham os estudantes não lhe permitiu conservar por mais tempo aquela
atitude cismadora, que aliás não deixava de ter seu tanto ou quanto de estudada. Levantou-se, fingindo-se um
pouco surpreendida, e deu alguns passos para estender a mão ao Azevedo, que por uma das ruazinhas do
jardim, por entre as ondas de verdura e flores, avançava direita e intrèpitadamente a cumprimentá-la. Colhendo
elegantemente com uma das mãos os amplos tufos da saia, Adelaide dirigiu-se, lesta e risonha, para o estudante
e, em breve as duas destras se encontraram em afetuoso aperto.
– D. Adelaide – disse Azevedo – por muito favor lhe peço, deixe-me ficar onde estava. A senhora, neste jardim,
é a rainha das flores; aquele assento é um trono, que lhe convém divinamente, e dele não deve levantar-se para
ninguém.
– Aí vem o senhor com suas costumadas lisonjas – replicou Adelaide com um requebro e um sorriso.
– O que diz o Azevedo é pura verdade – acudiu Aurélio, animado pelo exemplo do colega. – Ao vê-la, minha
senhora, julgo ter diante de meus olhos a Primavera fazendo com seu sorriso desabrocharem todas estas flores.
E assim vieram chegando uns após outros a apresentar seus cumprimentos à formosa fada daquele jardim,
obsequiando-a cada qual com um galanteio mais ou menos espirituoso. Belmiro foi o último. A beleza de
Adelaide tinha produzido em seu espírito, mais no de que seus colegas, viva e profunda impressão. Achava-se
perturbado e como que deslumbrado pelos fulgores daquele astro radiante da mocidade, graça e formosura. Por
isso nada lhe soube dizer, mas, ao apertar-lhe a mão, cravou-lhe um olhar tão penetrante e significativo que não
deixou de fazer impressão no ânimo da moça. Se essa impressão foi agradável ou desagradável, é o que não sei
dizer por hora.
– Agora – disse Azevedo alçando bem a voz – A Sra. D. Adelaide há de permitir-nos que cada um de nós vá
colher em seu jardim uma flor, que for mais do seu agrado, para termos a honra de ofertar-lha.
– Oh! Sr. Azevedo, que quer dizer isto? O senhor me confunde; não mereço tantas honras – murmurou
Adelaide , baixando os olhos, constrangida.
– Merece muito mais – bradaram os outros – há de aceitar as nossas flores.
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Adelaide, com um sorriso e um gracioso aceno, anuiu à proposta dos estudantes.
– Bravo! Andem lá com isso! Quero ver qual tem melhor gosto – exclamou o major que, algum tanto afastado,
assistia todo risonho a este tiroteio de galanteria.
Imediatamente os rapazes se espalharam pelo jardim, e daí a instantes cada um veio depor nas mãos de
Adelaide uma flor de sua escolha. Azevedo ofertou-lhe um jasmim do Cabo, rico de viço e fragrância e alvo
como neve, que ela colocou sobre o seio. Belmiro trouxe-lhe um lindo cravo caboclo, que ela recebeu quase
sem olhar para a pobre flor, e entrançou negligentemente nos cabelos.
O major, mui ancho e satisfeito, assistia de parte a estas inocentes homenagens tributadas à formosura de sua
filha, e predizia-lhe lá de si para si o mais esplêndido destino.
Depois o grupo se dispersou pelo jardim, e houve então tal colheita e oferta recíproca de flores, que era um
nunca acabar. Adelaide de sua parte não se cansava na faina, e verdadeira borboleta esvoaçando de canteiro em
canteiro, ela só fazia face aos sete, oferecendo a este um botão de rosa, àquele uma não-me-deixes, a outro um
suspiro ou uma saudade, e assim por diante, de uma maneira que, no fim de alguns minutos os pobres rapazes
já não sabendo onde acomodar tantas flores as iam tirando fora às escondidas.
Como Adelaide em compensação recebia outras tantas dos sete comparsas, já tinha na mão, não um ramalhete,
mas um feixe de flores de tal sorte avultado, que forçoso lhe foi alijar a carga sobre o banco em que estivera
sentada. Conservava, todavia, com cuidado as primícias daquelas oferendas: o alvo jasmim de Azevedo a
balouçar-lhe sobre os seios ofegantes; o cravo caboclo de Belmiro ostentando-se vaidoso entre as negras e
luzidas tranças; e as outras cinco flores juntas cuidadosamente em sua mão esquerda.
Enquanto eles se enlevam em tão frívola ocupação, vamos nós, caro leitor, tratar de conhecer mais de perto e
de modo mais íntimo aquela que é alvo de tantas homenagens e adorações.
Não era Adelaide uma beleza completa e sem senão, mas tinha um rosto tão gentil e fisionomia tão sedutora,
que a custo o mais hábil e delicado pincel poderia apanhar-lhe os traços e a expressão. Era um desses tipo
singulares, que atraem e fascinam por sua encantadora originalidade. Era de porte alto, bem feita e garbosa; de
feições era engraçada e bonita, como bem raras se encontram. Grandes olhos, de uma negridão e brilho
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incomparáveis, abriam-se suavemente entre longos cílios da mesma cor, como dois lagos, onde se espelhavam
o amor e a voluptuosidade. A tez tinha a cor, que o leitor pode imaginar seria a da filha de uma gentil mulata e
de um belo e robusto descendente dos Tibiriçás; era morena, mas de uma matiz suave e transparente, através do
qual se via animar e colorir-lhe as faces o sangue ardente das duas raças de que procedia.
A farta madeixa, que ela deixava em parte cair como uma cascada espadanando pelas nédias e bem torneadas
espáduas, nem era por demais encaracolada, nem lisa e corredia, mas debruçava-se em largas e graciosas
ondulações, que lhe desciam até abaixo da cintura. A boca, não mui pequena mas admiravelmente delineada,
era formada por dois lábios rubros e carnudos do mais voluptuoso relevo. Um tênue e quase imperceptível
buço, que lhe sombreava o lábio superior, dava-lhe ainda um realce indefinível.
Um sorriso dessa boca era um presente do céu; um beijo... oh! isso seria uma ventura, com que nem mesmo
ousaria sonhar o mais audaz de seus adoradores.
Na bem proporcionada e delicada conformação das mãos e dos pés, bem como na finura do talhe e na elegância
do porte, era ela também representante dos mais belos e genuínos tipos europeus. Dessa tríplice aliança de
raças tão diferentes resultou esse misto singular e encantador, que teve o nome de Adelaide.
Sua natureza moral era também um composto inexplicável de qualidades opostas, que deveriam excluir-se
umas às outras, ou andar em perpétua colisão. Fosse por índole ou por defeito de educação, era ela um misto
incompreensível de desenvoltura e recato, de meiguice e esquivança, de ingenuidade e malícia. Nas maneiras,
nos ademanes, nas palavras era às vezes de tal desembaraço, que generava em estouvamento; e outras vezes de
tal timidez e acanhamento, que roçava pela imbecilidade. Rica, tendo consciência de sua formosura, e
persuadida de que lhe corria nas veias o sangue da mais pura e antiga fidalguia paulistana em virtude dos
preconceitos, que desde a infância o pai lhe imbuíra no espírito, não podia faltar-lhe altivez e vaidade em alta
pose. O amor ideal, alimentado pela leitura de romances e poesias, que sem escolha e sem critério lhe eram
fornecidos, com todas as suas exaltações febris, e romanescas aberrações escaldava-lhe a imaginação já de si
mesma viva e apaixonada, ao passo que os instintos sensuais se desenvolviam com não menos energia naquela
organização exuberante de viço e cheia de ardente e vigorosa seiva.
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A má direção dada à educação intelectual de Adelaide, que o major, ignorante e filaucioso como era, deixava
correr à mercê das fantasias da filha, estragava os excelentes dotes daquele espírito vivaz e expansivo, e a falta
absoluta de educação moral deixava adormecidos alguns instintos, que a natureza havia plantado no coração.
Assim o bom major, parte por ignorância e inexperiência, parte por um descuido e condescendência
indesculpáveis, deixava desenvolver-se no seio daquela tenra e melindrosa planta, fecundo gérmen para muitos
transvios, decepções e amarguras pelo decurso da vida.
Adelaide tinha mestres de francês, de música, de desenho e de italiano, e de tudo isso já sabia alguma coisa
pela rama.
Nunca porém tivera uma aia, ou uma parenta velha, a quem consagrasse afeição e respeito, e que lhe dirigisse
os passos nesse quadra crítica e delicada em que a mulher passa da infância para a puberdade, e entra, por
assim dizer, em um mundo novo e desconhecido, cheio de atrativos e miragens enlevadoras, onde os abismos
ocultam por entre flores.
Entretanto, já lia sofrivelmente o francês, dedilhava com agilidade e desembaraço o seu teclado, e cantava sem
gaguejar sua àriazinha italiana; era porém mais forte em modinhas e lundus, de que possuía um interminável
repertório.
Quanto ao desenho, já sabia fazer dois corações traspassados por uma flecha, duas pombas beijando-se, e
debuxava e coloria uma rosa com suas folhas e botões de modo a não confundir-se com outra qualquer flor.
Tinha então Adelaide dezesseis anos. Estava nessa época da vida em que a imaginação de uma moça rica e
desocupada paira por mundos ideais, só enxergando ouro e rosas no horizonte encantado do porvir, e em que o
físico, tanto atingido à plenitude de seu desenvolvimento, entrega-se indolente às vagas impressões de mórbido
e voluptuoso sensualismo.
Enfim, Adelaide é como essa mimosa flor, que inconscientemente traz entrançada em seus cabelos, ofertada
por Belmiro. É um lindo e viçoso cravo caboclo a espreguiçar-se voluptuosamente sobre a haste flexível,
apresentando as macias e cheirosas pétalas ao sol da primavera. Essa flor faceira e peregrina se requebra sobre
sua fronte, dobrando-se indolente ao sopro de todas as virações, é a sua viva e fiel imagem.
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Adelaide estava nessa interessante e encantadora quadra da existência, quando seu pai entendeu que devia abrir
as salas de sua linda chácara, seu jardim e seu pomares, à freqüência dos estudantes. O diamante, em sua
opinião, estava suficientemente lapidado, e podia exibi-lo sem receio na boa sociedade, certo de que produziria
o mais completo e deslumbrante efeito.
Seria bom o seu cálculo? Andaria ele bem avisado com tal procedimento?
Não sei; a continuação desta história se encarregará de dar uma resposta a essa pergunta.
Capítulo IV
Entre as Jabuticabeiras
O major, grande e apaixonado cultor de Flora, também contribuía com seu contingente para entreter os
estudantes, porém de um modo que não deixava de ser bastante desagradável e enfadonho para eles. A cada
passo colhia um botão, uma flor, uma semente, que apresentava a qualquer deles, contando por miúdo donde
lhe viera a semente, os cuidados que exige, em que tempo se deve plantar, etc., etc., não se esquecendo do
nome científico que leva no catálogo, não lhes deixando tempo para se entreterem com a moça. Vendo essa
importuna mania do velho, os estudantes, que até ali tinham suportado com impaciência a defensiva,
resolveram tomar a ofensiva, e, colhendo de sua parte também aqui e acolá botões, folhas e flores a granel, as
iam apresentar ao major, a quem não deixaram mais respirar, aturdindo-o com as mais cerebrinas e esdrúxulas
explicações botânicas. O estratagema surtiu o desejado efeito.
– Enfim, meus amigos – exclamou afinal o major, já atordoado com tanta ciência – basta de flores! Vamos aos
frutos, que já é tempo.
– Apoiado, major! – bradou o Silva. – A elas, às jabuticabas!
– É justo – acudiu Aurélio. – As flores voam nas asas do vento, e são sòmente cor e perfume; mas os frutos
têm também a polpa e o sabor. As flores duram um momento, e são como a beleza, de que fala o poeta:
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Et rose, elle a vécu ce que vivent les roses,
L’espace d’un matin.
E Rosa ela viveu da rosa a vida,
O espaço de uma aurora.
– Outro tanto se pode dizer dos frutos – replicou Belmiro – e a estrofe de Malherbe pode também se traduzir
pela seguinte maneira:
Jabuticaba, ela viveu sòmente
Como a jabuticaba;
Foi comida e deixou só a semente;
Assim tudo se acaba.
Esta paródia, que foi aplaudida com estrondosas gargalhadas, não agradou muito a Adelaide e nem ao Azevedo.
– Ora Belmiro! – disse enfadado. Para que estragardes com tua tradução sacrílega e picaresca a linda estrofe
do poeta! Lembra-te que há também flores perpétuas e sempre vivas; e aqui mesmo neste jardim posso
mostrar-te uma – acrescentou, olhando significativamente para Adelaide –
E não é como a rosa, que, de vida,
Só tem uma manhã;
De dia em dia surge mais crescida,
Mais bela e mais louçã
– Bravo, Azevedo! Bonito madrigal! – exclamou o Oliveira. – Mas, em fim das contas, depois das flores do
jardim de Arminda vêm as flores da poesia, e nunca chega a vez dos frutos! Soldados! – continuou ele em tom
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solene, parodiando Bonaparte no Egito. – Do alto daquelas jabuticabeiras quarenta mil jabuticabas nos
contemplam! A elas, meus bravos!...
– A elas! – bradou o major, abrindo uma cancela, de onde por alguns degraus se descia para o quintal de
legumes e hortaliças, no fim do qual se estendiam densas e copadas filas de jabuticabeiras, pelas quais os
estudantes se enfiaram de tropel.
– Venham cá, meus amigos – gritou o major, procurando arrebanhá-los. – Agora, sentemo-nos aqui à sombra,
enquanto o moleque nos vai apanhar as frutas que estão caindo de maduras.
– Oh! meu major! – exclamou o Oliveira. – Nisso não consentimos nós; seria privar-nos do melhor da festa.
– Não, senhor! – acrescentou o Aurélio. – Nada de cerimônias, meu major; nós mesmos queremos colher as
jabuticabas, que havemos de comer; queremos chupá-las, como fazem os passarinhos, em cima da árvore,
gorjeando e saltando de ramo em ramo; aí é que está todo o chiste e poesia do negócio.
– Mas isso não pode ser – interveio Adelaide, que, nesse momento, entrava no pomar, acompanhada pelo
Azevedo. – Os senhores vão se pisar, amarrotar e rasgar a roupa, e mesmo podem cair... Nada! É melhor que o
moleque vá apanhar as frutas; ele já está acostumado.
– E nós também, minha senhora – atalhou Belmiro. – Qual de nós aqui que não terá trepado em uma
jabuticabeira?
– Eu que aqui estou – acudiu Azevedo. – Nunca trepei e nem quero trepar; não sou macaco.
– Não és dos grimpantes, e antes queres pertencer à família dos répteis! Tanto pior para ti; não podes elevar-te
como nós, que vamos nos avizinhar das regiões celestes. Se o Senhor major nos dá licença, tiramos as
sobrecasacas, e vamos acima.
– Façam como entenderem, meus caros, todo este pomar hoje lhes pertence. Estejam em plena liberdade. Mas
olhem cá! Reservei para os senhores aquela jabuticabeira que ali está; ainda ninguém apanhou nela uma só
fruta; está carregadinha, e são doces como favo de mel.
– Obrigado pela fineza, meu caro major; mas há de permitir-nos que ofereçamos à senhora sua filha as
primícias desses frutos deliciosos.
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Dito isto, desembaraçaram-se lestamente de suas sobrecasacas, e dirigiram-se para a árvore indicada, exceto o
Azevedo, que deixou ficar sentado sobre a relva, à sombra de uma laranjeira, em companhia do major e sua
filha.
– Pior está o caso – murmurou o Azevedo, depois que os outros se afastaram.
– É Qual caso? – perguntou Adelaide, surpreendida.
– Que a senhora está aqui como que representando o papel de Eva no Paraíso, e está me parecendo que aquela
é a árvore do fruto proibido.
– Ora! Ora esta, homem! – exclamou o major, rindo-se muito. – Esta nem ao diabo lembrava. Mas, meu doutor,
acho que nenhum daqueles bons moços se parece com a serpente que enganou Eva.
– Pois eu acho-lhes toda a semelhança; conheço bem aqueles maganões, principalmente o tal Sr. Belmiro;
debaixo daquele ar apalermado esconde-se um verdadeiro Mefistófeles.
– Mefistó... Como se diz... Quem é esse sujeito? - perguntou Adelaide, sorrindo-se.
– É uma das personalidades do Diabo, minha senhora; foi nessa figura que ele tentou Fausto, para que este
tentasse Margarida, como tentou a Eva na figura da serpente. É uma galante história; se a senhora quiser lê-la...
– Oh! pois não; gosto muito de ler romances... Foi o senhor mesmo que compôs isso?
– Não, minha senhora. Quem me dera! Foi um famoso pândego alemão, chamado Goethe.
– Goethe!... Que nome extravagante!... Mas o senhor fala muito mal dos seus camaradas...
– Oh! D. Adelaide, é pura brincadeira. São excelentes rapazes; muito folgazões e nada mais...
– Sim, minha filha – disse o major – está claro que o Sr. Azevedo não podia trazer à nossa casa senão pessoas
de distinção.
De distinção bem podiam ser eles; mas à exceção talvez desse pobre Belmiro, contra o qual tanto se assanhava
o humor satírico de Azevedo, não podemos asseverar que tivessem a consciência muito escrupulosa, e devemos
antes crer que se não eram dos mais devassos e libertinos, qualquer deles era bem capaz de levar um namoro ou
uma intriga amorosa até as últimas conseqüências.
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Entretanto, o major se havia retirado de junto de sua filha e de Azevedo, e sem perdê-los de vista tinha ido
percorrer o quintal de hortaliças e dar algumas ordens aos escravos que nele trabalhavam. Enquanto Adelaide e
Azevedo se entretinham na frívola conversação que acabamos de ouvir, os outros estudantes grimpavam pelos
galhos da jabuticabeira como verdadeiros sagüis, e enchiam a copa dos chapéus dos mais doces e sazonados
frutos.
Dentro em cinco minutos estavam de volta, e rodeavam Adelaide, trazendo-lhe em oferenda as primícias dos
deliciosos frutos que acabavam de colher. A moça viu-se em sérios embaraços diante de seis chapéus, que eles,
cada qual mais sôfrego e pressuroso, lhe apresentavam ao nariz. Para tirar-se de dificuldades, foi metendo
indistintamente ambas as mãos em todos os chapéus e tirando punhados de frutos até encher um grande
alguidar com água, que uma escrava tinha colocado ao pé dela. Foi Belmiro o último que se apresentou, depois
que viu Adelaide inteiramente desembaraçada de obsessão de seus companheiros. Esta, ou fosse por não ter
mais onde acomodar as frutas, ou por um mero capricho de moça, escolheu uma dúzia no chapéu de Belmiro, e
depois de as ter limpado apenas com o seu lenço de fina cambraia, ali mesmo as estalou entre os alvos dentes,
saboreando-as com certo arzinho faceiro de satisfação, que fez sofrer todas as torturas de inveja a seus
companheiros, principalmente ao Azevedo, cujas as faces naturalmente pálidas se fizeram esverdinhadas de
desapontamento e despeito.
Belmiro com efeito parecia triunfar, e cheio de prazer, esperança e ufania, pondo de lado seu natural
acanhamento, pôs-se a chasquear com Azevedo.
– Então, Azevedo, que quer dizer isto? – dizia-lhe ele em pé, de braços cruzados diante do colega, que se
achava reclinado sobre a relva ao lado de Adelaide. Que viste cá fazer? Ou és um grande preguiçoso, ou um
moleirão sem préstimo algum. Se não fosses tu quem nos veio abrir as portas deste paraíso, não provarias uma
só fruta; quando muito te daríamos as cascas. Ora, não faltava mais nada! Nós a esfolarmos as mãos e a
torcermos o pé nos galhos da jabuticabeira, e tu estendido aí à sombra sobre a fresca relva ao lado da Senhora...
Tu, Tytire, lentus in umbra...,
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-Formosam resonare doceo Adelaida silvas.
Respondeu prontamente Azevedo.
– Adelaide da Silva não senhor – atalhou a filha do major – esse não é meu nome, Sr. Azevedo; chamo-me
Adelaide Celestina Bueno de Aguiar.
– Oh! esplêndido nome! – murmurou Azevedo, voltando a rosto para abafar ou exalar o riso, que lhe inchava as
bochechas e ameaçava fazer explosão. E começou a tossir, fingindo-se engasgado com a fumaça do charuto.
Os outros estudantes também de sua parte faziam supremos esforços para não se rirem abertamente da ingênua
e singular interpretação, que a moça havia dado ao verso de Virgílio, onde Azevedo com tanta habilidade
soubera encaixar de improviso o nome de Adelaide. Nada disseram, mas Adelaide, pelos olhares maliciosos
que trocaram entre si, logo compreendeu que havia dito alguma tolice; corou muito, mas não se enfadou, nem
se mostrou desapontada.
– Oh! meus senhores! – exclamou ela entre risonha e enfadada – se continuam a falar francês, eu não sou mais
da companhia, e peço licença para me retirar.
Foi Belmiro quem primeiro acudiu em seu auxílio.
– Desculpe-nos, minha senhora – disse. – Fomos eu e o Azevedo que tivemos a lembrança de citar uns versos
de Virgílio, que parecem ter sido feitos de propósito para a senhora na presente situação. A única diferença é
que aqui o meu amigo habilmente substituiu o nome de Amarílis pelo de Adelaide.
– É verdade, minha senhora – replicou Azevedo, olhando de revés para Belmiro – e por sinal que esses versos
diziam respeito a certo invejoso, que levava a mal que o amante de Amarílis repousasse à sombra, ensinando
aos ecos o nome de sua amada.
– Ah! já compreendo – replicou Adelaide. – Agora o que peço aos senhores é que, daqui em diante, se quiserem
fazer ou recitar versos, seja em língua que eu possa entender.
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– Muito bem! D. Adelaide tem toda a razão – acudiu Aurélio – e daqui em diante juramos que não havemos de
proferir em sua presença uma só palavra francesa nem latina. O diabo que consuma essas duas línguas; uma,
porque mora a alguns milhares de léguas distantes de nós; outra, porque já morreu há mais de mil anos.
– Pois seja assim, que lhes ficarei obrigada... Mas olhem! As frutas vão se acabando; é preciso novo sortimento.
E tinha razão a moça, pois não se pense que aquele grupo se ocupava só em falar; ao passo que engoliam a
polpa da jabuticaba, deitavam fora também cascas e caroços de mistura com toda essa torrente de toleimas e
disparates que acabamos de ouvir, além de outros muitos, que omito por brevidade. Em vista daquele pedido,
ou antes ordem da filha do major, parte do grupo, que a rodeava, se afastou, ficando junto dela somente o
Azevedo e mais dois colegas.
Belmiro não podia tolerar de sangue-frio que Azevedo continuasse a ficar a sós com a filha do major; achava
isso revoltante e escandaloso. O pequeno sinal de predileção que ela lhe havia dado, provando em primeiro
lugar das jabuticabas que tinha colhido,
Lhe enchera com grande abundâncias
O peito de desejos e esperanças
como acontecera com Adamastor de Camões, e em conseqüência tinha-lhe superexcitado o ciúme, que já nutria
contra o Azevedo. Logo que se distanciou algum tanto, com os três companheiros, que o seguiram, parou e,
formando com eles uma espécie de conselho deliberativo:
– Antes de tornarmos a subir à jabuticabeira, vamos conversar aqui um pouco – disse-lhes em meia voz. – Não
acham vocês que é um desaforo da parte de Azevedo, e da nossa uma toleima inqualificável, deixarmos ali
ficar tranqüilamente aquele maganão a sós com a moça, enquanto nos estamos a amofinar para regatá-los a um
e à outra?
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– Tens razão, Belmiro – replicou Oliveira. – E como lá fica ele tão ancho e cheio de si e dar boas gargalhadas,
talvez zombando de nós, e fazendo-a rir a nossa custa? Isto com efeito é custoso de aturar-se.
– Também a culpa é mais do velho – ponderou judiciosamente o Silva. – Por que deixa ele assim a filha
sozinha em companhia de um Mefistófeles daquela ordem? Ah! se ele soubesse de que têmpera é aquele!
– Ora, deixem-se disso, meus caros! - interrompeu o Dias com um fleugma, que fez raivar a Belmiro. – Para
que essas ciumadas? E que temos nós com o namoro do Azevedo? Deixá-los; já são conhecidos antigos, e se
ela lhe dá preferência é fortuna dele. Viemos nós aqui para nos divertir, passear e comer jabuticabas, ou para
namorar a filha do major e disputá-la com Azevedo?
– Ora bravo, meu Dias! Essa é impagável! – exclamou Belmiro, com azedume. – Pelo que vejo, viemos aqui
como cortesões de um rei para os servir e render homenagem a ele e à sua dama?... De certo cá não viemos
para requestar a filha do major, mas também hás-de compreender que não nos fica muito airoso dar azo e
proteção ao namoro do Azevedo.
– E o que queres que façamos, não me dirás? – redargüiu vivamente o Dias.
– Impedir esse namoro.
– Como?...
– Ora como!... Nada mais fácil. Somos seis contra ele, e nada custa dividirmo-nos em dois grupos, que se
revezem de maneira que ele nunca tenha ocasião de achar-se a sós com ela. Assim, uns ficarão fazendo-lhes
companhia, enquanto outros trepam às jabuticabeiras...
– Pois eu cá – disso o Oliveira – quero ser um dos que ficam; a falar com franqueza, prefiro mil vezes ficar
conversando com a menina, do que ir apanhar, e mesmo comer, as mais doces jabuticabas do mundo.
– E eu também – retrucou o Dias. – Não porque me importe o namoro do Azevedo, nem com os encantos e
faceirices da menina, mas porque já estou com as mãos esfoladas e as botinas encravadas.
– Mas isto não ode ser, meus amigos! – exclamou Belmiro, com impaciência. – D. Adelaide está à espera de
frutas, e nós aqui a turrar como crianças por uma ninharia!...
Ah! já achas uma ninharia! – murmurou o Dias. – Ainda há pouco sustentavas o contrário.
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– Vamos nós, Oliveira – continuou Belmiro. – Vamos trepar à jabuticabeira, e deixemos estes bobos, estes
Hércules ridículos aos pés da sua Ônfale...
– Também não vou, visto que todos ficam – respondeu secamente o Oliveira. – Não sei qual será mais bobo, se
quem lá sobre, ou quem cá fica embaixo. Já cumprimos para com a filha do major o dever de cavalheiros
delicados. Agora, os moleques do major que apanhem frutas para nós todos.
Assim o pobre Belmiro se achou isolado em seus planos de embaraçar o namoro de seu rival. Os dois outros
companheiros, que tinham ficado com Azevedo, também não se arredavam de junto de Adelaide, e deste modo
ou ele só iria apanhar jabuticabas para ela e para todos aqueles malandros, ou deixaria de obsequiá-la com os
saborosos frutos, de que ela tanto havia gostado. Horrível conjuntura!
Cumpre reconhecer que era mui natural e justificável o procedimento dos outros estudantes para com Belmiro.
Este, bem como Azevedo, já tinha merecido de Adelaide sinais de predileção, próprios para inspirar-lhes
sonhos fagueiros e esperanças cor de rosa. O mesmo não acontecia aos outros, os quais, à exceção talvez Silva,
que tanto na figura como no temperamento parecia um batavo pouco sensível aos encantos da beleza, e do
Dias, filósofo pachorrento, para quem o mais simples galanteio era coisa incompreensível, os outros todos
sentiam também a magnética influência dos sedutores atrativos da gentil paulista. Não era, pois, de esperar que
se prestassem de bom grado a favorecer aqueles a quem a sorte já se ia mostrando tão propícia e risonha.
Este estado de colisão e perplexidade não durou muito tempo, veio pôr-lhe termo o incidente inesperado que
vamos ler no capítulo seguinte.
Capítulo V
Nova companhia vinda muito a propósito
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– Adelaide! Adelaide! ó lá! – ouviu-se bradar de longe a voz estridente do major.
– O que é lá, papai? – acudiu levantando-se rapidamente a moça, que, achando-se empenhada em uma
interessante conversação com o Azevedo e os outros dois estudantes, que estavam ao pé dela, não deixou de
sobressaltar-se com tão brusco e altissonante chamamento.
– Olha cá não vês? – continuou o major no mesmo tom. – O nosso vizinho tenente André com suas filhas;
temor reforço de boa companhia.
– Oh! que belo, as filhas do Tenente André! – exclamou Adelaide, batendo palmas, e correndo ao encontro de
suas amigas e vizinhas, que vinham lentamente pelo quintal, escoltadas pelo major e o tenente, que marchavam
gravemente na retaguarda. Eram três nédias viçosas raparigas, alegres, desembaraçadas e folgazonas, orçando a
idade delas, da mais moça à mais velha, entre os dezoito e vinte dois anos. Posto que muito inferiores em
beleza e elegância à filha do major, eram bem feitas, bonitas, e tinham maneiras e ademanes inocentemente
provocadores.
O pai era um tenente do exército, reformado, baixo e algum tanto bojudo, e que só pelos formidáveis bigodes
grisalhos revelava a classe a que pertencia. Como representa um papel quase nulo nas cenas, que vamos
descrevendo, pouco no ocuparemos com sua pessoa; entretanto, sempre diremos que era viúvo, que sabia muito
bem comer, beber, dormir e ir pontualmente receber à boca do cofre o seu soldo de tenente que – diga-se em
abono a verdade – despendia honestamente com a manutenção de sua família, a qual constava unicamente dele
e suas três filhas. Na sociedade quase nada dizia, contentava-se com prestar atenção e aplaudir, com seu riso
alvar, a tudo que se dizia.
As duas famílias tinham entre si essa intimidade que provém da vizinhança em um lugar isolado, e portanto o
tenente, com sua pequena mas vistosa companhia, entrava pelo quartel-general do major à hora que lhe parecia,
sem formalidades nem continências, visto que ambos estavam em quartéis de inverno. Todavia, rezam as
crônicas do tempo que naquele dia o batalhão do tenente tinha visto desfilar em direção ao acampamento do
major um forte esquadrão de cavalaria, e por isso, dando o alarma, se tinham posto em marcha sob o comando
de seu chefe a fim de socorrer o major, o qual, como sabemos, dispunha apenas de uma praça, se bem que essa
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valesse por dez. Os quatro estudantes, que se achavam no conciliatório, a que assistimos no precedente
capítulo, ouviram também o brado do major, e, pondo-se alerta, encaminharam-se curiosos para junto da
laranjeira, ponto central daquela expedição ao pomar do Major Damásio.
Dando as mãos uma às outras, as quatro moças correndo, rindo, tagarelando, tropeçando, escorregando, e às
vezes quase caindo umas sobre as outras, desceram através dos canteiros do quintal e, redemoinhando como
uma guirlanda arrebatada pelo vento, vieram parar no sítio em que Azevedo e seus seis companheiros estavam
em pé e imóveis as esperavam para cumprimentá-las. Aí sentaram-se , ou antes, deixaram-se cair em círculo
sobre o tapete de relva, que circundava a laranjeira, sem mostrarem prestar grande atenção aos estudantes, que
as contemplavam e continuaram sua interminável tagarelice.
Isso irritava cruelmente os nervos ao Azevedo, que em vão procurava uma brecha para introduzir um dito
qualquer, um monossílabo que fosse naquele espesso chuveiro de perguntas e respostas, de ditérios, risos e
gargalhadas, e dava aos diabos o tenente com toda a sua gárrula descendência, que vinha roubar-lhe a posse
tranqüila e quase exclusiva, em que até ali estivera, da companhia de Adelaide. O que, porém, para ele era uma
contrariedade foi para seus companheiros uma verdadeira redenção. O Belmiro principalmente exultou no
íntimo d’alma, porque o aparecimento das três recém-chegadas veio produzir eclipse total entre Adelaide e o
Azevedo.
Enfim, esse novo reforço de gente veio muito a propósito para animar a companhia, cujo contentamento e
bom-humor se ia arrefecendo consideravelmente por falta de moças, como se extingue o lume no fogão por
falta de lenha, ou na candeia à míngua de óleo. Em verdade uma só moça e um velho, aliás um folgazão, afável
e obsequiador, mas excessivamente preocupado com os cuidados de sua quinta, não podiam distrair os sete
estudantes, a maior parte dos quais começavam a sentir-se bastante aborrecidos e contrariados. Adelaide, de
sua parte, fazia boa cara a todos eles, mas temos visto sua companhia e conversação quase monopolizados pelo
Azevedo, e ardentemente cobiçada pelo Belmiro, enquanto os outros nenhum interesse nem vontade tinham
para disputar aos dois contendores os sorrisos e boas graças da gentil dona da casa.
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Assim estiveram por alguns minutos os sete estudantes, em pé, em roda das quatro moças sentadas sobre a
relva; eles mudos quase imóveis, e elas rindo-se, mexendo-se e tagarelando com amável garridice e
desembaraço; eles tolhidos e acanhados sem ousarem interromper aquela orquestra de passarinhos; elas
trêfegas e descuidosas sem mostrarem perceber que quatorze olhos e quatorze ouvidos as escutavam e
contemplavam.
A chegada do major, que se tinha demorado em caminho, mostrando alguns enxertos ao amigo tenente André,
veio mudar repentinamente a cena.
– Então, não se come frutas?! – bradou ele, parando a dez passos de distância. – Antes querem conversar e
brincar do que comer jabuticabas! Ora! ora!... Isso é uma vergonha!... Meus amigos, aqui estão estas moças,
minhas vizinhas, que também gostam de frutas.
Quando o major terminou essa palavra, já as quatro moças estavam em pé, e os sete estudantes, alargando o
círculo, esperavam o resto da alocução.
– Meus amigos – continuou ele, chegando-se ao grupo – a árvore, que lhes destinei, ainda ali está carregadinha
como a deixei. A ela! Não quero que ali fique uma só fruta. São estas senhoras que lhes pedem.
O efeito da eloqüente proclamação do major foi imediato. As posições se mudaram com presteza e exatidão
quase militar, de um modo favorável em geral, mas que desconcertou a alguns em particular. Adelaide já não
era a única deusa daquela festa; Oliveira, Araújo e Aurélio já tinham cada um escolhido entre as três irmãs o
objeto de seus cultos e tinham entre si segredado a sua escolha, para que não houvesse entre eles motivo de
ciúmes e conflitos ridículos, como se iam dando entre Azevedo e Belmiro. O Dias e o Silva, jovens fleumáticos
e sisudos, como se achavam saciados de jabuticabas, de ouvir frioleiras e de assistir a cenas de frívolos
namoricos, tomaram de novo as sobrecasacas, abandonaram a companhia e de braço dado, como dois
verdadeiros peripatéticos, puseram-se a passear e a conversar serenamente por entre as sombrias aléias do
pomar. Sem dúvida, como jurisconsultos quase abalizados que já eram, tratavam da próxima sabatina, a última
do ano, assunto este tão importante e ponderoso para um estudante de direito, como é para um general a última
batalha, que se tem de ferir para decidir da sorte de uma longa campanha.
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Aurélio, Oliveira, Araújo e Belmiro correram para a jabuticabeira, os três primeiros para obsequiarem às
escolhidas de seu coração e o último por amor de Adelaide, contando que as três recém-chegadas continuariam
a fazer companhia à filha do major. Este, apenas viu o efeito elétrico que haviam produzido suas palavras, se
voltou para o tenente e, tomando-lhe o braço:
– Meu tenente – disse-lhe – estes moços são verdadeiros quatis para treparem às árvores; ainda há pouco os vi
fazendo proezas lá por cima. Eles nos hão de trazer fruta com fartura. Enquanto isso, vamos acabar de ver
nossos enxertos.
E ambos foram se retirando pachorrentamente.
Quando Belmiro, de envolta com seus três companheiros, chegou quase ao pé da jabuticabeira, voltou-se
rapidamente, curioso e ofegante, para o lado donde tinha partido. Mas... oh! desgraça! Qual não foi seu
desapontamento quando se encontrou face a face com as três ninfas, que, se não eram as três graças, eram ao
menos três alegres e encantadoras diabinhas. Parece que vinham tão de jabuticabas como de travar relações
com seus guapos e diligentes servidores, sobre os quais relanceavam chispas abrasadoras de seus olhos, tão
negros como as frutas que cobiçavam. Vendo diante de si aqueles três rostinhos faceiros e risonhos, Belmiro
cambaleou, e foi-lhe mister agarrar-se a um galho da jabuticabeira para manter-se convenientemente aprumado.
Quando, porém, antes de dizer nada às moças, que o encaravam entre atônitas e risonhas, olhando por sobre as
três cabecinhas, avistou o Azevedo de novo reclinado negligentemente sobre a relva, com o infalível charuto na
boca, a contemplá-lo de longe com certo arzinho insolentemente galhofeiro e provocador, Belmiro, que até
então estivera rubro como um cravo, empalideceu subitamente.
– Os senhor está sofrendo? – perguntou uma das moças, assustada com essa repentina mudança de cor.
– Não, senhora – balbuciou o pobre moço – mas... mas... as senhoras por que não... não se deixaram ficar lá
com... D. Adelaide? Nós lhes levaremos as frutas...
– Oh! não, não, não... interromperam quase a um tempo as três gárrulas mocinhas. – Era boa estarem a subir e
a descer com tanto incômodo por nossa causa!... Não consentimos em tal, não senhores! Subam, atirem as
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frutas ao chão, que nós a iremos apanhando e ajuntando, para depois as comermos juntos. D. Adelaide já
mandou vir as cestas.
– Como quiserem, minhas senhoras – murmurou surdamente Belmiro, e, voltando-se para a árvore, começou a
grimpar pelos galhos mui lentamente e de muito má vontade, mais para ir esconde entre a espessa ramagem
seu despeito e desapontamento, do que pelo desejo de colher jabuticabas para quem quer que fosse.
Imediatamente, começou a chover sobre as moças uma incessante metralhada de jabuticabas, que elas rindo,
galhofando, saltando daqui para acolá, iam apanhando e ajuntando em balaios, que Adelaide mandara trazer.
Com as jabuticabas choviam também chalaças, quolibets e galanteios, que se cruzavam de parte a parte com
infatigável ardor.
– Ai! estou ferida no peito por uma bala! – gritou uma das moças. – Quem foi que atirou?
– Fui eu, minha senhora – respondeu uma voz de cima.
– Pois perdeu o seu tempo; não penetrou.
– Pois eu vou fazer um tiro tão normal e certeiro, que por força há de penetrar – bradou o Aurélio. – Lá vai!...
Ai! quase veio-me na boca.
– Pois é somente por aí, minha senhora, que estas balas podem penetrar. Perdoe-me se errei o ponto.
– Belmiro!... – vociferou um dos estudantes. – Que estás aí a fazer, resmungando como um possesso? Olhem
que marralheiro! Deu-lhe a preguiça, e em vez de apanhar frutas está a derriçar sem piedades os galhos da
jabuticabeira!... Que mal te fez a pobre árvore, meu sonso?
De feito, Belmiro com a mão trêmula e frenética estava a escorchar desapiedadamente os galhos da
jabuticabeira, lançando em terra indistintamente frutos verdes e maduros, brotos e folhas, e enfiando olhares
ardentes através da miúda e embastida folhagem do arvoredo, não perdia de vista o grupo de Adelaide e
Azevedo; mas fazendo-se surdo a esta e outras interpelações de seus colegas, nada respondia e continuava em
sua faina.
Azevedo, por um desses caprichos românticos à Byron ou à Musset, comprazia-se em contemplaras formas
elegantes e voluptuosas da filha do major, e em seus delírios de poeta pálido forjava, talvez, na lívida fantasia
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algum desses poemas sinistros, em que a pobre Adelaide fosse a heroína, ou antes a vítima de algum Fausto ou
de algum Rolla.
Belmiro, pelo contrário, temperamento sangüíneo, ardente e impressionável, abandonando a alma às emoções
do momento, nada idealizava, porque se sentia com a imaginação aniquilada sob a realidade sedutora e
deslumbrante da beleza de Adelaide.
É verdade que era ele, entre todos os seus companheiros, talvez o menos favorecido pela sorte e pela natureza,
para atrair a atenção de uma donzela formosa e rica, elegante e pretensiosa. Posto que não disforme, não era
bonito; como estudante pobre que era, não podia trajar-se com a elegância e primor de seus companheiros; de
mais a mais era sumamente ingênuo e acanhado, e mui pouco afeito a esses jogos do espírito, a esses galanteios
delicados e lisonjeiras frivolidades, que tanto agradam às moças. Todavia, mereceu e atraiu a atenção de
Adelaide. Perspicaz como ela era, e só desejando adorações, tinha percebido nos olhos do mancebo a profunda
impressão que sua beleza lhe deixara no espírito. O Azevedo já era conhecido antigo, e posto que ela, já como
por hábito, prestasse ouvidos complacentes a suas homenagens e galanteios alambicados, parecia contudo
entrever no fundo deles um não se que de malicioso e sardônico, que não deixava de incomodá-la. Entretanto,
cuidava soletrar no olhar profundo e luminoso de Belmiro os indícios de uma paixão sincera, ardente e
impetuosa. E não se enganava totalmente; ao vê-la, o pobre rapaz sentira nalma uma dessas perturbações que
atordoam, e que constituem os pródromos de um verdadeiro amor. Cônscio porém de sua fraqueza para tão alta
conquista, jurou de si para si que faria tudo quanto estivesse a seu alcance por estorvar os colegas, que
ousassem render homenagens por demais significativas à formosa filha do major. Ora, Adelaide, que aceitava
indistintamente o culto de todos eles, e só desejava ver-se rodeada de adoradores, vendo que os outros
estudantes, à exceção de Azevedo, não se mostravam lá mui solícitos e assíduos em fazer-lhe a corte, não quis
cortar o vôo às nascentes esperanças de Belmiro. Já a vimos entrançar no cabelo o cravo caboclo, que ele lhe
ofertara. Esse pequeno sinal de predileção fez subir a um grau elevadíssimo a febre amorosa do pobre moço,
dando-lhe certa audácia e desembaraço, que lhe não era natural.
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Ouçamos agora a conversação, que tiveram entre si Adelaide e Azevedo, logo que se acharam a sós,
conversação que Belmiro via e desesperava por não poder ouvir.
– Sr. Azevedo! – disse Adelaide, zombeteando. – O senhor é um moleirão! Não tem inveja de seus
companheiros, que já andam a esfolar-se nos ramos, e a fazer proezas só para agradar às moças?
– Ah! – replicou Azevedo, fingindo-se enfadado – já vejo que minha companhia lhe desagrada. Pois bem,
minha senhora; não farei o que eles estão fazendo; não estou acostumado a isso, mas irei...
– Para onde?
– Para casa.
– Nessa não consinto eu... Não lhe estou mandando apanhar frutas; pelo contrário, quero que fique aqui. Se não
fosse o senhor, eu nem teria com quem conversar. Não vê como aquelas caipiras lá se foram também como
umas tontas?
– Em boa hora! – murmurou consigo o Azevedo. – Deus as conserve por lá. D. Adelaide – continuou em voz
alta, - esses meus colegas são uns lorpas; pensam que a felicidade consiste em come jabuticabas, e o único
meio de que sabem lançar mão para se tornarem agradáveis às damas é trazer-lhes uma jacá cheio delas.
– Oh! Sr. Azevedo, nem tanto! Acho que é uma delicadeza da parte deles...
– Se a delicadeza consiste em comer, vá! – interrompeu Azevedo com um momo. – Eu cá entendo que ela
consiste em aspirar o perfume das flores, e por isso prefiro ficar sempre ao pé da senhora.
– Oh! diz que sou uma flor! – replicou Adelaide, encarando o Azevedo com adorável sorriso, e mostrando na
graciosa boca um lírio entre rosas. – É muita lisonja, a que flor me compara então?
– A todas e a nenhuma.
– Como assim? Não entendo.
– É que a senhora a todas se assemelha e reúne em si os encantos de todas, e por isso a todas é superior.
– Mas sempre há de haver alguma com que eu tenha mais presença.
–Talvez, e é essa... Permite que lhe diga?
– Por que não?
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– É essa que está em seus cabelos; é ela que melhor simboliza, não na cor, mas na graça e no perfume.
– Ah! qual é? - inquiriu Adelaide, levando rapidamente a mão à cabeça, e dela arrancando o cravo caboclo. –
Ah, meu Deus! um cravo caboclo! Quem foi que me deu isto? Nem tinha reparado... Que mau gosto! Se bem
me lembro, foi aquele seus companheiro alto, corado, de cabelos pretos...
– E cara de lobisomem. Justamente, o Belmiro. Não foi, minha senhora?
– Esse mesmo; creio que tem esse nome.
– Mas, minha senhora, essa flor é bem linda, e demais é tão americana...
– Isso pouco me importa; não gosto dela – replicou Adelaide com um momo desdenhoso.
– Ah! minha senhora... perdão. Nunca pensei que uma flor quisesse mal a outra flor a não ser por ciúme.
Entretanto, se a senhora quisesse dar-me essa desgraçada flor, que incorreu em seu ódio, eu a guardaria
eternamente sobre o coração, só porque pousou em sua cabeça.
– Está às suas ordens: dê-lhe o destino que quiser – disse Adelaide, entregando a flor a Azevedo e voltando o
rosto com o mais expressivo desdém
Azevedo escondeu rapidamente a flor na algibeira da sobrecasaca.
Entretanto, Belmiro do alto da jabuticabeira espreitava com os olhos ardentes, por entre o fino crivo da
folhagem, toda essa cena, e dava-se ao diabo por não poder ouvir as palavras que a acompanhavam.
Belmiro ignorava que Adelaide, por um preconceito, que desde a infância lhe fora imbuído por seu pai,
menosprezando seu encantador morenismo, tinha fumos de branquidade e fidalguia, a ponto de tomar como
injúria a mais leve e involuntária alusão, que pusesse em dúvida a pureza imaculada de sua árvore genealógica.
Mas o Azevedo, que, como nós, já conhecia a balda da família, maligno como era, aproveitou-se habilmente do
incidente do cravo caboclo para irritar o amor-próprio da moça contra seu pobre colega.
Capítulo VI
Uma queda feliz
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Eram mais de duas horas da tarde.
O sol estava ardente, e o mormaço abafador.
– Adelaide! Olá!... – gritou o major de longe. – Chama tuas amigas, e convida esses moços para se recolherem,
que já vão chegando horas de jantar.
Adelaide levantou-se imediatamente e encaminhou-se apressada para junto da jabuticabeira. Azevedo
acompanhou-a.
– Abaixo, meu povo – gritou Azevedo, com voz esganiçada. – O major nos chama... São horas de jantar.
– Ora vejam lá quem quer nos acompanhar! – bradou Belmiro com mau-humor, de cima da jabuticabeira. –
Espera, Azevedo; espera que lá vamos já neste momento.
E de feito, mal acabava de pronunciar essas palavras, Belmiro despencou-se do alto da jabuticabeira, e caindo
de galho em galho, agarrando-se a uma, resvalando entre outros, derriçando folhas e frutos, veio tombar no
chão a fio comprido aos pés de Adelaide e Azevedo, que recuaram espavoridos. Foi um esplêndido tombo,
normalmente executado, e com tal tão estrepitoso fracasso, que arrancou a toda a companhia um grito de susto
e de terror. No mesmo instante, todos rodearam a vítima, que, fazendo caretas e contorções, procurava
levantar-se.
– Bem feito! – murmurou Azevedo a meia voz ao ouvido de Adelaide – para evitar uma destas é que cá me
deixei ficar embaixo.
– Que tombo, meu Deus! Coitado!... – exclamou a moça, toda consternada sem dar atenção às palavras de
Azevedo. – Deve se ter pisado bastante, não, Sr. Belmiro?
Adelaide estendeu-lhe a linda mão para ajudá-lo a levantar-se, e o estudante, apoderando-se dela com
sofreguidão, a tocou levemente com os lábios como que involuntariamente.
– Não muito, minha senhora – replicou ele, levantando-se com dificuldade. – Creio que apenas apanhei mau
jeito no tornozelo do pé esquerdo; isso passa com o tempo... Apre! Quase não posso andar.
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Dizendo isso, o pobre rapaz tentou em vão dar alguns passos, mas o pé magoado não lho permitia, e ele se viu
obrigado a encostar-se ao tronco da jabuticabeira.
– Ora, valha-me Deus!... Que foi isso? Santa Virgem! – bradou o major, chegando todo aflito e consternado ao
lugar do sinistro. – Eu bem lhes tinha dito que deixassem o moleque ir apanhar as fruta e se deixassem de
estripulias... Mas... o que querem? É isso... Imprudência de rapaziada...
– Major, por quem é, não se aflija tanto! – disse Belmiro. – Foi um tombinho insignificante. Apenas parece-me
que tenho o pé esquerdo algum tanto magoado.
– Não creia, papai – atalhou Adelaide. – Olhe como está pálido; ele que ainda agora estava corado!
– Não se incomode, minha senhora; é efeito do susto – disse Belmiro.
– Nada! Não creio. O senhor pisou-se muito; vamos já levá-lo para casa. Eu o ajudo a caminhar. Vamos.
Dizendo isso, a moça oferecia o braço ao estudante.Com que prazer não ia ele aceitar tão grata e carinhosa
oferta... Mas não o consentiu o casmurro do major.
– Anda daí, menina! - disse, afastando brandamente a filha e chegando-se a Belmiro. – Tu não tens força.
Dá-me um dos braços, moço, e o outro a qualquer dos seus colegas. Vamos! Encoste-se bem em mim; pode
largar o peso, que aqui vai pulso de homem. Deus nos livre de que um desastre venha aguar a festa em um dia
de reunião em minha casa! Vai adiante, menina, e manda preparar uma boa sangria de vinho com açúcar.
– Diabos me carreguem, se esse marralheiro não se deixou cair de propósito para se tornar objeto dos cuidados
e solicitudes da família, e pernoitar aqui em casa do major! Mas deixe-o estar, que em vez de achar lã há de
sair tosquiado. Mas – continuou ele em voz alta, dirigindo-se ao major no intuito de despoetizar completamente
a queda de Belmiro -, meu caro major, perdoe-me; o vinho não convém de modo algum neste caso; é muito
excitante e vai agravar a inflamação; ainda uma vinagrada, vá feito. O que é porém de rigor em todos os casos
de queda, é um laxante de óleo de rícino.
– Está enganado, meu caro. Já fui muladeiro, como sabe; já levei muito tombo, e tenho tratado um sem-número
deles em meus camaradas e peões, e sei o que faço. Deixe o moço por minha conta; mas há de me ficar em
casa hoje, e amanhã está pronto para ir à aula.
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– Tem carradas de razão, meu caro major – replicou Belmiro. – Deixe lá o Azevedo com seus laxantes, e
vamos à sangria de vinho.
– Pois lá se arrumem – tornou o Azevedo. – Com o estômago cheio de jabuticabas, teremos uma boa
carraspana seguida de uma tremenda indigestão; além de queda, coice. Esse Belmiro, com suas extravagâncias,
é sempre um terrível desmancha-prazeres.
– Não se assuste com as agoureiras predições do Azevedo, senhor major. Ele tem a imaginação sempre sinistra
e propensa ao lívido e ao fúnebre; é a mania. Apenas chupei o caldo de uma dúzia de frutas, e apesar da queda,
sinto-me com excelente disposição para jantar.
– E há de jantar – disse o major. – A dieta, nestes casos, não tem o menor cabimento.
Nessas conversas Belmiro, dependurado ao braço do major e do Silva, chegou, coxeando, à casa, onde
imediatamente foi instalado em uma boa cama.
Daí a instantes Adelaide entrou, trazendo, com suas próprias mãos, a Belmiro um copo de vinho com água e
açúcar.
– Mil graças, minha senhora – disse Belmiro depois de ter empinado o copo de sangria. – Júpiter nunca bebeu
mais delicioso néctar, e nem por mãos de mais encantadora Hebe.
– Deveras! Como está poético e mitológico o nosso Belmiro! – exclamou Azevedo, a quem esta cena não
estava agradando muito. – Querer comparar-te a Júpiter, quando não passas de um Vulcano coxo e estropiado?!
– E isso que te importa, Azevedo? Estás com inveja? Não tens razão; a cada um a sua vez, meu amigo. Ainda
há pouco, eu também tinha bastante inveja de ti, quando lá no pomar comias as frutas colhidas por nós, e
escolhidas, lavadas e oferecidas, pelas mãos delicadas de D. Adelaide. Bem sei que não passo de um pobre
diabo; mas tem paciência, meu caro! Não posso deixar de considerar-me um deus, quando tenho a fortuna de
ser servido pelas mãos de um anjo.
Esta réplica de Belmiro foi muito festejada e aplaudida pelos estudantes, menos por Azevedo, que mordeu os
beiços, e pelo major e as moças, menos por Adelaide, que corou e baixou os olhos.
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– Meus senhores – disse o major – nada de galhofas com doentes! Deixemos o Sr. Belmiro em sossego,
enquanto nós vamos jantar. Ele também deve jantar; mas vou mandar trazer para aqui mesmo sua comida.
– Oh! major, para que tanto incômodo? Encostado ao braço de qualquer posso ainda pôr-me em pé e ir até à
sala de jantar.
– Estás doido, meu amigo? Não deve hoje mexer-se daí, se quer sarar depressa; é o que lhe digo, vamo-nos,
meus senhores!
Retiraram-se todos alegremente, deixando Belmiro a sós no quarto a espera de sua refeição, e fazendo mil
reflexões sobre sua singular situação.
– Oh! - pensava o pobre rapaz, riscando castelos no ar. – Se fosse a própria Adelaide que me viesse trazer o
jantar!... Oh! que gosto, que glória para mim, e que motivo mais para fazer o Azevedo estalar de inveja!...
Mas... é impossível!... Não devo esperar tanta honra... Este meu tombo foi providencial; pode ainda produzir
melhor efeito do que eu espero. Ela... ela... depois de minha abençoada queda, tem para comigo tais atenções e
cuidados!... Não posso crer que seja só por mera compaixão e espírito de caridade. Encontrei às vezes os olhos
dela fitos em mim de um modo! Mas o diabo do cravo caboclo, que eu dei a ela, e ela deu ao Azevedo!... Aqui
há um mistério qualquer, que me faz arder o miolo, e que hei de decifrar seja como for. Aquele Azevedo é um
refinadíssimo velhaco, um embusteiro sem parelha... Mas hei de dar-lhe um vomitório em paga do laxante que
quis aplicar-me... Indiscreto e gabola como é, sempre há de revelar alguma coisa.
Neste ponto de suas graves meditações, foi Belmiro interrompido pela chegada de sua refeição, que com
grande pesar seu, em vez de lhe ser apresentada por sua encantadora Hebe, lhe foi trazida em uma grande
bandeja por uma preta velha, que se retirou sem dizer palavra.
O jantar esteve alegre e folgazão, como era de esperar entre convivas de tão excelente humor, sentados em
frente de quatro lindas raparigas, tendo ao lado o major, que as animava com as palavras e o exemplo, fazendo
desaparecer qualquer sombra de acanhamento. A conversação foi-se animando ao tinido dos copos e da baixela
de prata e porcelana; os motejos, as pilhérias, as gargalhadas expandiam-se folgadamente em derredor da mesa
recheada de saborosas iguarias e vinhos preciosos. Vieram depois os versos, as anedotas, e por fim fizeram-se
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numerosos brindes ao som de coretos, que os estudantes entoavam à goela solta em honra do major, do tenente
André e da formosura das náiades presentes.
Mastigando automaticamente em seu quarto solitário as iguarias que lhe trouxeram, Belmiro escutava a
algazarra do festim, e ouvia muitas vezes o seu nome pronunciado no meio de galhofas e pilhérias de
companhia, que à sua custa soltava longas e gostosas gargalhadas.
– Quando eu vi o Belmiro despencar-se do alto da jabuticabeira e tombar de rijo no chão, com as crinas
desgrenhadas e todo desengonçado, pensei ver um mono baleado pelo caçador.
– E eu pensei que era um galho arrancado pelo furacão.
– Aquilo é um original muito esquisito – acrescentou desdenhosamente o Azevedo. – Nunca vai à função
alguma, que não faça uma dessas falcatruas.
– Eu a princípio – disse uma das filhas do Tenente André – fiquei muito assustada quando o vi estendido no
chão. Mas depois que se foi erguendo todo sarapantado, com a roupa toda suja e amarrotada, me deu uma
vontade de rir, meu Deus!...
E abafou com o lenço uma risadinha chocha.
– E eu também, mana – disse outra - quase rebentei para não soltar uma risada. Ele fez uma cara mesmo de
cachorro que quebrou panela!!...
– Com efeito! – interrompeu Adelaide, em tom de risonha e fagueira repreensão. – Não sei por que se acha
graça de um tombo por menos perigoso que seja.
– Uma queda sempre é ridícula, minha senhora – disse Azevedo.
– Ah! Sr. Azevedo! – continuou Adelaide - o senhor é bem mal agradecido; e as senhoras também, minhas
amigas. Perdoem-me se lho digo; não se enfadem comigo. Foi em meu serviço, das senhoras, e do seu também ,
Sr. Azevedo, que o pobre moço levou tamanha queda. E ainda por cima estão a escarnecê-lo!?...
– Oh! oh! lá por isso não, minha senhora – exclamou a maioria dos estudantes – lá estávamos nós também para
servi-las com o mesmo zelo e diligência, e para isso não nos foi preciso destroncar o pé. Se era um moleirão,
não se metesse em cavalarias altas.
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– Ora!... senhores!... – interrompeu Adelaide. – Eu o vi subir e descer com tanta agilidade!... Foi um desastre,
que poderia acontecer a qualquer outro.
Lá de seu quarto, Belmiro, ainda que não pudesse ouvir tudo distintamente, compreendeu maravilhosamente o
sentido da altercação.
– Bravo! – exclamou ele consigo. – Adelaide é por mim!... Seja embora o mundo inteiro contra mim!... Que me
importa!... Sou feliz, ao menos hoje!...
Adelaide, não obstante mostrar-se sempre risonha e acessível a todos os outros estudantes, e em particular a
Azevedo, ao menos naquele dia pensava muito em Belmiro, pobre provinciano simples e negligentemente
trajado, que mais parecia um caipira, que um estudante. Adelaide, não sei porque, achava-lhe um não sei o que,
que revelava uma adoração íntima, sincera e profunda.
Viera-lhe à mente a caprichosa idéia de conversar a sós com Belmiro, e ela era moça de têmpera a não deixar
de satisfazer a um dos seus menores caprichos. Conversara a sós tanto tempo com Azevedo, que muito era que
conversasse também com Belmiro! Ente o primeiro serviço e a sobremesa achou o pretexto para retirar-se da
mesa, e disfarçadamente dirigir-se ao quarto do enfermo. Se dissimulou seus passos, não foi com receio do pai,
que cheio de complacência e confiança não lhe tolhia o menor movimento em casa, mas para furtar-se às vistas
maliciosas e escrutadoras dos estudantes, e principalmente de Azevedo, que a não perdia de vista.
Belmiro estava no melhor de suas cismas amorosas, quando ouviu rugir um vestido de seda pelos corredores, e
após instantes entrar-lhe pelo quarto a figura deslumbrante e arrebatadora de Adelaide. Foi como uma aparição
sobrenatural, que o teria feito cair fulminado, se não estivesse estendido na cama com o braço acotovelado
sobre o travesseiro. Abriu bem os olhos, passou a mão pela testa para convencer-se que não estava sonhando ou
delirando, e com olhar radiante de beatitude ficou embasbacado a olhar para a moça. É verdade que não
deixava de ter um ar algum tanto apalermado; mas a moça nem reparou nisso, e foi logo lhe dirigindo a
palavra.
– Então, como vai o pé, Sr. Belmiro? – disse ela.
– Do pé, minha senhora, vou melhor... mas... muito mal do coração.
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– Como assim?... Pois o tombo também lhe ofendeu o coração?
– Oh! minha senhora, não quer entender-me?
– Pois que quer o senhor que eu entenda?
– Ah!... não tenho ânimo de lhe dizer.
– Diga, diga; não faça cerimônia... se lhe falta alguma coisa...
– Não; nada me falta.
– Pois então o que é que o aflige?...
– Permite que lhe diga uma coisa?...
– Diga, e já, pois bem vê que não posso demorar-me...
– Pois bem, a senhora foi a causa, inocente, é verdade, do tombo que levei!
– Que me diz! Eu? Eu, a causa do seu tombo? Exclamou Adelaide, recuando um passo.
– Sim, a senhora! Mas não se enfade comigo, e não se aflija com tão pouco. Esse tombo foi para mim uma
fortuna.
– Oh! cada vez o entendo menos.
– Eu lhe explico tudo, minha senhora. Quando a senhora ficou a ouvir as prosas de Azevedo, enquanto eu e
meus companheiros subíamos às jabuticabeiras, eu não os perdia de vista, e ficava a morder-me de inveja do
meu companheiro. Mas quando a senhora, tirando dos seus cabelos a flor, que eu lhe tinha dado, a entregou ao
Azevedo, não fui mais senhor de mim, perdi a cabeça, não sabia onde punha o pé, e querendo desde, pises em
falso e dei comigo em terra!...
– Ah! meu Deus! mas eu não podia adivinhar, e nem eu me lembrava que foi o senhor que me deu semelhante
flor.
– Deveras? Isso por um lado me entristece, mas por outro me consola.
– Eram os senhores todos a oferecer-me flores. Eu as ia pondo sem reparar, uma no peito, outra na boca, à
guisa de palito, outra no seio, outra no cabelo... Fiquei com medo de morrer abafada debaixo de tantas flores.
– Oh! minha senhora!...
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– Escute ainda. O Sr. Azevedo pediu-me a flor que eu trazia no cabelo. Quando eu a tirei da cabeça, e vi que
era... que era...
– Um cravo caboclo?
– Sim, senhor. Por que razão o senhor escolheu para mim uma flor tão feia?
– Feia, minha senhora? Não lhe acho razão. Na cor, na forma e no perfume me parece uma das mais mimosas.
– Pode ser; mas eu não gosto dela.
Ah! queira perdoar-me; mas eu também não adivinhava...
– Pois bem! – disse Adelaide, apresentando a Belmiro um vaso de flores, que estava sobre uma mesa. – Escolha
aqui uma flor qualquer, e me de para por na cabeça em lugar da outra, e me perdoe se sem querer fui a causa do
seu tombo.
– Perdoar eu, minha senhora? Perdoar o que, se só tenho motivo para render-lhe infinitos agradecimentos? Se
não fosse esse tombo, teria eu a ventura de estar aqui com a senhora recebendo tantas provas de interesse e de...
de... compaixão?
Dizendo isto, o estudante tirou do vaso uma rosa, que entreabria com todo o viço e frescor, e a entregou a
Adelaide, depois de ter deposto nas pétalas da flor uma beijo soberanamente bucólico. Adelaide prendeu-a
cuidadosamente nas tranças, e despediu-se com um sorriso, que até hoje não sabemos que expressão tinha.
– Bendito tombo! – exclamou Belmiro no mais lírico e entusiástico arroubo, levantando as mãos ao céu, logo
que se esvaíram o som das passadas e o rugir das sedas de Adelaide. – Tombo imortal! tombo Homérico!
tombo digno de uma epopéia! Graças a ti eu, o terceiranista mal amanhado, meto hoje em um chinelo meus
guapos e vaidosos companheiros. Não, tu não foste uma queda; foste uma verdadeira ascensão para as regiões
olímpicas! Tu me ergueste ao empíreo nas asas do amor e da esperança. Tomara já ver as caras de asno com
que hão de ficar meus colegas!... Como já me estou rindo interiormente à custa deles!... Com seus ditinhos,
lisonjas, galanteios e namoros delambidos, não conseguirão o que eu consegui com um simples tombo! Mas
não quero por modo algum que saibam do meu triunfo. Nem por sombras comprometer o nome puro da minha
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suave e encantadora Adelaide! Nosso amor deve ser misterioso e puro como a lâmpada de um santuário.
Revelá-lo a estes devassos seria até uma profanação.
Nestes beatíficos devaneios, veio interrompe-lo o Azevedo, que lhe entrou pelo quarto com ar zombeteiro e
triunfante.
Capítulo VII
Sem Título
– Olé! meu sonso!... Então, como vais desse pé? – disse Azevedo, sentando-se à beira da cama. Anda lá! bem
feito!... Quiseste ficar assim uma espécie de acrobata para agradar às meninas, e eis o que te aconteceu! Objeto
de riso e compaixão... Deves reconhecer que estás fazendo uma triste figura!...
– É verdade, Azevedo, bem triste... ai! meu pé...
– Manhoso!...
– Oh! não! Está doendo deveras...
– Não dói nada, maganão... Pensa que não te compreendo? Tu te deixaste cair para te tornares objeto de
atenção, visto que a tua figura não é – aqui entre nós, não te agastes comigo – não é das mais atrativas.
– Ah! meu Deus, eu deixar-me cair! E esta!... Que lembrança!... Só tu poderias ter idéia tão mefistofélica. Mas
juro-te que, se essa idéia me viesse ao espírito, e eu adivinhasse que produziria tão bons resultados, eu era
capaz de pô-la em prática.
– Resultados... Que resultados pateta? Inspiraste compaixão, e nada mais. Se visses como na mesa nos
divertimos todos à tua custa!... E na verdade, sem o episódio de tua queda, a função não teria corrido tão
divertida. Ela veio dar-lhe uma sainete admirável...
– Deveras? Muito estimo... Ao menos a minha queda serviu para alguma coisa.
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– Quando te levantaste todo sarapantado, vermelho como um camarão e cheio de folhiço, não fazer idéia da
figura que fizeste... Parecias um jacaré. Uma das moças disse que ficaste com cara de laranja azeda...
– Ora! que me importam as sandices daquelas saloias! Uma vez que D. Adelaide...
– Oh! D. Adelaide... Essa foi quem mais se riu...
– Que me importa! Essa pode rir-se de mim, ou para mim. Em que tudo me dá gosto. Adoro-a, porque é uma
divindade. Só a presença dela é para mim um gozo inefável. Mereço-lhe compaixão? É quanto me basta.
– Ah!... e por isso caíste! Mas não penses que cá hás de pernoitar sozinho, para te entreteres a teu gosto com a
tua divindade. Já tomei minhas medidas. Cá fico para te fazer companhia. Já falei ao major, que aprovou a
minha idéia. E assim ficas tu, e eu também fico; tu aleijado e desprezado, e eu querido, são e idolatrado...
– Ficar? Que bom!... Rendo-te também da minha parte infinitos agradecimentos. Que noite terrível eu teria de
passar sozinho neste quarto... Mas, dize-me cá uma coisa: se, como dizes, ela me despreza e nenhum caso faz
de mim, por que é que assim te mostras meu rival, e rival enraivado e ciumento?
– Ciumento? Eu ter ciúmes de ti? Que fatuidade! Não compreendes que tua enfermidade é apenas um pretexto,
de que me prevaleço, para ficar também junto dela? À noite, terás ainda o prazer de presenciar nosso namoro,
como já presenciaste de dia. O primeiro foi talvez a causa de perderes o equilíbrio e destroncares o pé. O
segundo te há de curar; é cura homeopática.
– E tens certeza de que ela corresponde sinceramente, Azevedo?
– Oh! se tenho... Pois não viste? E se queres uma prova, aqui está – disse Azevedo, tirando do bolso um cravo
caboclo, que apresentou bem perto dos olhos de Belmiro.
– Conheces esta flor?
– Oh! se conheço – respondeu Belmiro desorientado e querendo orientar-se. Ofereci à D. Adelaide um cravo
semelhante a este, quando estivemos no jardim. Será o mesmo?
– O mesmíssimo, meu palerma. Como tiveste a imbecilidade de oferecer à D. Adelaide semelhante flor?
– Pois que tem de mau essa flor? É tão bonita, e parece-se tanto com ela!...
– Pois é por isso mesmo, pateta! Fizeste-lhe um terrível epigrama.
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– Epigrama! Como assim? – replicou Belmiro, embasbacado.
– Fica sabendo, meu simplório, já que não tens penetração para coisa alguma, que D. Adelaide, a despeito de
sua cor sofrivelmente tisnada, tem fumos de branquidade e fidalguia; acredita piamente que seu sangue não tem
mescla alguma de africano nem caboclo... Se não és de todo idiota, bem podes compreender que só a palavra –
caboclo – lhe dói mais nos ouvidos do que te dói esse pé...
– Ah!... não sabia disso.
– Não sabias, mas bem o sei eu, e não há em S. Paulo quem o ignore. Vou agora pôr-te ao fato da linhagem do
nosso anfitrião. O major é caboclo quase puro-sangue, como bem está revelando o seu todo. A respeito de sua
procedência, só se sabe que é natural de Curitiba e filho de um cigano, e nada mais. Quanto ao lado materno, a
estirpe de D. Adelaide procede ainda de mais baixa estopa. A mãe dela, de que o major há muito tempo é
viúvo, segundo a voz geral, não passava de uma linda mulata, filha de uma negra mina, e foi alforriada na pia
batismal.
– O que estás a dizer, Azevedo, não é possível. Tudo isso pode ser mera invenção de alguns desafeiçoados.
– É a pura verdade. Todo o povo de S. Paulo sabe muito bem disso, só o major não quer que isso assim seja.
Quanto à filha, é bem possível que realmente ignore sua ilustre genealogia, que o pai terá tido todo o cuidado
de ocultar-lhe. O major pretende ser descendente de Bartolomeu Bueno e parente chegado dos Andradas. Hás
de reparar que não fala neles sem dizer – o primo José Bonifácio, o primo Antônio Carlos, etc. Essa balda de
fidalguia é nele de tal melindre, que ai! daquele que com a mais ligeira alusão, mesmo sem querer, a tenha
ofendido!...
A estas palavras, Belmiro a principio ficou aterrado; mas imediatamente lembrou-se que Adelaide, com
delicada generosidade, já lhe tinha perdoado a involuntária ofensa, e recobrou toda sua seguridade.
– Esta balda – continuou Azevedo – ele a comunicou, ou antes a inoculou no espírito de sua filha, quer pelo
sangue, quer pela educação. Eis aí por que, com o teu desastrado cravo caboclo, sem querer vibraste contra ela
o mais acerado epigrama.
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– Ora esta!... E eu pensava em lisonjeá-la!... Se tivesse de fazer-lhe uma poesia, infalivelmente havia de
compará-la ao jambo, e à rola dos pomares, e colocá-la a par de Moema ou de Lindóia.
– Pois eu que lhe conheço a balda a comparo sempre ao lírio, à neve, ao marfim, e creio que, se lhe desse
mesmo beiços e olhos brancos, não se enfadaria tanto, como com essas tuas cores amorenadas.
Belmiro sacudiu os ombros como quem diz - que me importa.
– Mas escuta, Azevedo – disse ele, olhando de esgoela para seu interlocutor – ainda há pouco vi de relance D.
Adelaide passar por ali rapidamente, e pareceu-me que trazia na cabeça uma outra flor... uma rosa, se não me
enganei.
– Justamente! uma rosa mal aberta; é símbolo, que escolhi para ela, e dei-lhe em troco do teu mal-aventurado
cravo caboclo.
Aqui Belmiro, a muito custo, pode conter o riso, e contentou-se com rir-se mentalmente à custa da mentira do
Azevedo.
– Bem - disse ele - quem me avisa meu amigo é; daqui em diante, serei mais acautelado.
– Perdes teu tempo – replicou Azevedo. Uma paulista, e sobretudo uma paulista da têmpera de D. Adelaide,
nunca perdoa um desacato destes.
– Mau é isto! – murmurou Belmiro, fazendo ainda extremos esforços para não rir-se, e teria desatado uma
gargalhada às bochechas de Azevedo, se subitamente o quarto não fosse invadido pelo resto da companhia, que
ali se instalou alegre e folgadamente em uma tagarelice nunca interrompida até o pôr do sol, hora em que os
estudantes se despediram, ficando o Belmiro e o Azevedo. O major fez-lhes os mais obsequiosos
oferecimentos, e disse-lhes modestamente que quando quisessem passar mal uma tarde, viessem à sua casa, que
lhe dariam muito prazer. A família do Tenente André, como era da vizinhança, ficou ainda.
Capítulo VIII
Influência de um violão
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A rivalidade, nascida nessa tarde entre os dois estudantes, era efêmera e frívola, como de ordinário são todas as
idéias e sentimentos que se geram no cérebro escaldado e no coração bandoleiro dessa espécie de gente.
Fundava-se ela por um lado a caprichosa veleidade de Azevedo, que, mais por vaidade do que por amor, e em
razão de suas antigas relações na casa, se julgava com uma espécie de direito adquirido à predileção da moça; e
por outro, na imaginação impressionável e mórbida sensibilidade de Belmiro. Este – natureza ardente e
apaixonada, nutrida na solidão entre sonhos de volúpia infinda, ficara profundamente impressionado pela
provocadora beleza de Adelaide, e julgava ter encontrado nela a encarnação ideal de seus sonhos. Acoroçoado
pelas provas de afeição que ela lhe dera, já ousava alimentar na fantasia as mais rosadas esperanças. Adelaide
era formosa, rica e filha única, e parecia disposta a amá-lo; a idéia de casamento lhe esvoaçava já pela mente
com suas asas de ouro e azul, e o fazia entontecer de contentamento.
Oh! era um sonho brilhante!... Se tal sonho se realizasse, a poesia, de mãos dadas com o amor feliz, as artes, as
letras, as ciências, lhe iam abrir de par em par as portas de ouro de seus templos magníficos, e então, adeus
pobreza, adeus Academia, adeus enfadonhos e empoados livros de direito! Que importava que, na genealogia
de sua amada houvesse, como dizia o Azevedo, mescla de sangue caboclo e africano? Se realmente ela
participava das duas raças, era evidente que deixara com seus ascendentes o que nelas há de ruim, grosseiro e
imperfeito, e só herdara o que porventura nelas há de bom, de belo e de perfeito. Por fim, que significava aos
olhos de um jovem poeta e filósofo sectário de J. J. Rousseau, alguma gota de sangue servil que circulasse nas
veias de Adelaide? A divisa do filósofo de Genebra – liberdade, igualdade, fraternidade, não admite tal mácula.
Azevedo, que já há muito entretinha relações com o major e fazia a corte à filha, que sempre acolhera com
fagueira amabilidade suas homenagens, não tinha hesitado em levar seus amigos a casa deste sem o menor
receio de encontrar em nenhum deles um rival que lhe pudesse fazer sombra. Foi portanto com bastante
descontentamento e despeito, e mesmo com ciúme, que notou o interesse e atenção que começava a merecer da
moça aquele de seus colegas, de cuja concorrência menos tinha que recear.
Por isso, procurava por todos os meios expor ao ridículo a pessoa e a queda de Belmiro, a qual com grande
desgosto seu o ia tornando cada vez mais o objeto da atenção e solicitude de Adelaide. Foi pois com esse fim
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que o maligno estudante, pungido pelo despeito e pelo ciúme, teve a satânica idéia de não deixá-lo pernoitar só
em casa do major.
O feitiço porém ia saindo contra o feiticeiro. Retirados os mais estudantes, e depois de noite fechada,
reuniram-se de novo as famílias do major e do Tenente André no quarto em que se achavam Azevedo e
Belmiro. Depois de muita palestra banal, aconteceu cair a conversação sobre a música.
– Adelaide toca piano e canta sofrivelmente – disse o major. – Se não fosse a doença do pé aqui do amigo
poderíamos ir à sala, para ouvirmos um pouco...
– Qual piano, papai! – atalhou Adelaide com modéstia. – Há que tempo eu nem abro o meu piano!... Nem sei
mais como se toca. Cantar?... Nem falar nisso! Há quinze dias tão endefluxada, que me não é possível levar de
vencida dois compassos sem tossir...
Aqui ela provocou uma tossezinha manhosa para justificar-se.
– Mas – prosseguiu ela – o Sr. Azevedo, que é da corte, deve de certo saber bastante música, e talvez queira
tocar alguma coisa.
A estas palavras Azevedo, que, não obstante sua brilhante imaginação e inteligência superior, nada petiscava de
música prática nem teórica, mudou de cor, e apesar de seu grande desembaraço e presença de espírito, sentiu-se
algum tanto desapontado. Quanto não daria ele naquele instante para saber dois dedos de música e piano!...
Com que prazer não deixaria Belmiro sozinho no quarto com o seu pé destroncado, enquanto ele iria para a sala
divertir-se com a companhia. Mas não tinha ainda perdido as esperanças; contava ainda, a poder de instâncias e
rogos, seduzir Adelaide a ir para a sala sentar-se ao piano.
– Eu, minha senhora – respondeu ele com alguma hesitação - não deixo de apreciar música, mas nunca me
apliquei a esse estudo, nem tenho jeito algum para semelhante arte. Gosto muito da música dramática nos
teatros da Corte. Isso é bom aqui para o amigo Belmiro, que é o menestrel obrigado e indefectível em todos os
pagodes e serenatas de estudantes. Canta que nem um besouro, mas infelizmente não sabe tocar senão o
clássico violão.
– Bravo! que bom! – exclamou Adelaide, batendo palmas de contentamento. – Então, o senhor toca violão?
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– Algum tanto, minha senhora – respondeu Belmiro.
– Pois temos aí um muito bom e novo, que papai comprou para mim... Gosto muito do violão; acho mais bonito
do que o piano. Tenho também o método; só me falta um mestre. O senhor toca por música?...
– Sim senhora.
– Oh!... eu também desejo aprender por música... Lucinda, vai buscar meu violão. Que belo! É escusado irmos
à aula, para tocar violão; não é preciso o senhor mover-se daí... Não é assim, sr. Belmiro?
– Às mil maravilhas! – exclamou o major também contentíssimo. – A Adelaide já me tem quebrado os ouvidos
com tanto piano, que já ando aborrecido. Vamos lá! tragam já o violão! O senhor, decerto, canta também suas
modinhas... Estas moças também cantam, e o senhor pode acompanhá-las.
O Azevedo foi pelos ares com essa nova fase, por que ia passar – por culpa sua! – aquela reunião. Dava a mil
diabos o momento em que se lembrara de falar em violão. Ia ficar esquecido a um canto, ao passo que seu rival,
que já era alvo de tantas atenções, ia se tornar com mais esta exibição o verdadeiro herói de festa, pois bem
sabia que Belmiro tocava magistralmente o violão e possuía excelente voz, sonora e apaixonada.
Oh! mas ele não adivinhava que na casa havia um violão. Assim, querendo deprimir o seu rival, pôs-lhe nas
mãos uma arma com que iria acabar de suplantá-lo.
A escrava apareceu, trazendo um rico violão, encordoado de novo, que Adelaide tomou e foi pessoalmente
entregar a Belmiro, que o recebeu com ares de um verdadeiro trovador. Daí a momentos o quarto retumbou ao
som dos mais harmônicos e maviosos acordes. O major, Adelaide, o Tenente André e suas filhas vieram logo
em frente da cama, onde Belmiro, como um Apolo em seu carro triunfal, empunhava o melódico instrumento.
Os próprios escravos vieram apinhar-se à porta do quarto para escutarem. Azevedo sentia calafrios e procurava,
em vão provocando conversações banais, distrair a atenção das moças dos magníficos e melodiosos arpejos,
enquanto Belmiro deixava os dedos errarem como a descuido pelas cordas do instrumento.
– Não nos há de dar o gosto de cantar também alguma coisa? – perguntou Adelaide.
– Oh! minha senhora, tenho uma péssima voz: o Azevedo, quando lhe disse que canto como um besouro, disse
a pura verdade.
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– Não acredito, perdoe-me; apesar de o dizer o Sr. Azevedo, que bem sei como gosta de caçoar. Cante sempre;
do contrário nenhuma destas minhas amigas terá ânimo de cantar.
– Pois bem, não me farei de rogado. Obedeço, porque enfim de contas o zumbido de um besouro não é lá das
coisas mais desagradáveis de se ouvir. Espero que as senhoras com suas vozes suaves destruirão depois o mau
efeito do meu canto.
Belmiro limpou a goela, harpejou um pouco com os olhos fitos no teto, baixou-os depois, e com voz sonora,
expressiva e apaixonada, cantou uma dessas modinhas lagrimosas, repassadas de queixas, ais de suspiros, que
então, como até hoje, estavam em voga.
Ao terminar, bravos e palmas acolheram o cantor. Adelaide ficou enlevada, e depois, dirigindo-se a Azevedo:
– Então? que tal acha? Confesse que, se os besouros cantam assim, vale bem a pena tê-los na gaiola à nossa
janela.
– Decerto, minha senhora – respondeu Azevedo algum tanto desconcertado – principalmente esse, que é já um
besouro domesticado. Eu já sabia que o Belmiro não canta mal; mas se a senhora ouvisse um meu patrício e
colega, chamado Couto... Oh! que rapaz prodigioso!... Aí é que era ver o que é perícia, habilidade e perfeição.
Se eu soubesse que a senhora é tão apaixonada pela música, e especialmente pelo violão, já o tinha trazido
aqui. Mesmo no Rio passa por uma notabilidade. Se o major permite...
– Por que não? – atalhou o major. – Pode estar certo que todo aquele que aqui for apresentado pelo senhor, será
sempre bem recebido.
– Não duvido – disse Adelaide – que esse Sr. Couto seja o que o senhor diz; mas enquanto cá não vem vamos
ouvindo aqui o Sr. Belmiro. Que dizem, minhas amigas?
– É exato – respondeu uma delas. – O Sr. Belmiro tem uma voz bem bonita. Cante mais uma modinha agora
sou eu quem lhe peço.
O Belmiro não teve mais descanso, cantou até às dez horas da noite, e quase esgotou seu repertório de
modinhas e lundus. Azevedo, para quem aquele sarau musical se ia tornando o mais abominável dos suplícios,
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colocado entre Adelaide e as filhas do Tenente André, não cessava de importuná-las com chacotas e epigramas
contra o pobre Belmiro, procurando distrair-lhes a atenção.
– Se ao menos ele não fizesse aqueles trejeitos de mono velho – ia ele cochichando à direita e à esquerda. –
Minha senhora, por quem é, não lhe olhe para a cara, porque assim se destrói todo o efeito da audição. Eu
achava mais prudente que o tivessem feito cantar atrás de alguma porta... Que berro desentoado deu ele
agora!... Nem um touro a bramir... E agora.... ouçam que melúria! Eu me derreteria em pranto, se não fosse a
figura do cantor.
As filhas do tenente, que não tinham o mesmo espírito, nem nutriam os mesmos sentimentos da filha do major,
não deixavam de aplaudir o Azevedo com risotas abafadas e momos mofadores. Como não seria assim?
Desejavam captar as atenções do estudante, decerto para indenizá-lo da indiferença de Adelaide, que lhe
respondia umas vezes com o silêncio, e outras com um – “Ora!... deixe-me ouvir”.
– E então?... É chegada ou não a sua vez minhas ricas? – disse o major, dirigindo-se às filhas do Tenente
André. – Também queremos ouvi-las. O Sr. Belmiro, além de doente, já deve estar cansado.
As filhas do tenente, depois de muito instadas e rogadas, foram-se como que deixando arrastar para junto de
Belmiro entre momos e caídos, e cada uma esgoelou como pode a modinha, que graças à desafinação e falta de
compasso, puseram os ouvintes em debandada e o acompanhador em torturas. Todavia, obtiveram de Azevedo
entusiásticos aplausos, que por cortesia foram confirmados por todos.
Chegou a vez de Adelaide.
– Agora – disse Azevedo, dirigindo-se a ela – compete à senhora fechar esta filarmônica com chave de ouro.
– Nesse caso, deve ser com a mesma com que foi aberta. – retorquiu ela, olhando para Belmiro.
– Não, senhora – acudiu este. – já é tarde, e ser-nos-ia muito agradável adormecer aos acentos da voz de um
anjo.
Adelaide não podia recusar-se; foi sentar-se no leito ao pé de Belmiro. O pudor virginal radiava encantador em
toda sua figura; os olhos baixos nadavam em luz meiga; as faces ardiam em rubor; os seios empolavam-se a
ofegarem de enleio e timidez. Quando, sentada bem junto de Belmiro, lhe falava em voz baixa, quando seus
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hálitos se confundiam, e suas faces quase se tocavam, enquanto Belmiro apalpava de leve as cordas do
instrumento, ensaiando e cantarolando com ela à meia voz a canção, que ia executar, Azevedo quase
estourando de inveja e de ciúme não pode conter um de seus costumados remoques.
– Deixe-te de charlatanices musicais, meu Belmiro! – exclamou ele. – Faze a senhora cantar. Se não te atreves
a acompanhá-la, fica aí em paz, e nós iremos ouvi-la ao piano.
– Não, senhor – redargüiu Adelaide. – Há de ser aqui mesmo. Não estou acostumada a acompanhar-me ao
piano, e o Sr. Belmiro acompanha maravilhosamente no violão.
Azevedo amuou-se e não disse mais palavra. Adelaide cantou uma linda cançoneta, em que brilhou mais pela
beleza de sua figura que pelo timbre fresco e argentino de sua voz, do que pelo bom gosto e mestria da
execução.
– Naturalmente – disse ela a Azevedo, apenas terminou – o senhor, que comparou o Sr. Belmiro a um besouro,
agora lá em sua mente me está comparando a uma cigarra.
– Oh! pelo amor de Deus, minha senhora, não profira mais tal blasfêmia! Não há o menor paralelo. A senhora
dispõe de uma voz deliciosa; o que lhe falta é escola. Se a senhora quisesse tomar algumas lições de canto com
o meu amigo Couto, de quem há pouco lhe falei, em pouco tempo estaria cantando de modo a fazer inveja a
qualquer prima-dona...
– Oh! obrigada! – interrompeu Adelaide. – Não tenho essas pretensões. Se meu pai consentisse que o Sr.
Belmiro me desse algumas lições de violão...
– E por que não, minha filha?A dúvida é o senhor querer tomar esse incômodo.
– Com muito prazer – acudiu Belmiro. – Não tardamos a entrar em férias, e como não vou à província, pouco
me custa vir cá algumas vezes.
– Aceitamos – disse o major com mostras de satisfação. – Toda vez que quiser dar um passeio a esta casa, o
receberemos com muito prazer.
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Não é preciso dizer em que deplorável estado esse ajuste final deixou a nobre alma de Azevedo. Se Belmiro
adormeceu entre visões de ouro e rosas, Azevedo apenas dormiu sono agitado, com o peito comprimido pela
pesada manopla do despeito e do ciúme, meditando torvas e sinistras vinganças.
Capítulo IX
Conspiração
No dia seguinte, Belmiro apresentou-se na Academia coxeando e quase arrastando a perna, dependurado ao
braço do Silva, um de seus companheiros de casa. Estava-se no fim do ano letivo, e, crivado de pontos como
ele se achava, o pobre jogral não podia dar mais falta sem arriscar-se muito a uma reprovação. Eis a razão por
que, apesar da viva oposição do major e sua filha, viera ao romper do dia para a cidade em companhia de
Azevedo, e resignara-se a apresentar-se na Academia naquele lastimoso estado, atraindo a atenção de seus
colegas e de toda a classe acadêmica. Bem desejava ocultar os acontecimentos, pretextando algum reumatismo,
calo, pereba ou qualquer outro incômodo; mas ali estavam o Azevedo e os mais companheiros de pagode, que
não deixariam de divulgar todo o acontecido e com todas as minudências. Imediatamente Belmiro e o seu
Cirineu se viram rodeados de uma turba curiosa e investigadora.
Azevedo, ao voltar da chácara do major, depois de ter levado seus companheiro até a porta de sua casa na Rua
da Constituição, dirigiu-se para a sua, depois de lhe ter aconselhado e recomendado muito que não faltasse à
aula. Nesse dia Azevedo foi para a Academia mais cedo do que lhe era mister; ia de ânimo a por em prática a
vingança que de noite havia premeditado. Consistia ela em arrebanhar e prevenir uma súcia de garotos seus
conhecidos a fim de expor o Belmiro em plena Academia a mais solene e cruel das caçoadas. Pretendia assim
tomar cabal desforra da derrota, por que passara na véspera, e burlar para sempre o recente namoro de seu
colega.
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Logo que viu Belmiro entrar no largo da Academia, adiantou-se a ir oferecer-lhe também o seu braço,
aparentemente com mostras de cuidado e interesse, mas realmente tomá-lo a sua conta, e levar a efeito seus
satânicos desígnios.
Para logo uma nuvem de estudantes, que cada vez mais ia se condensando, formou-se em derredor deles, e
quase os abafavam debaixo de um chuveiro de exclamações, chufas e perguntas.
– Que diabo tem o Belmiro no pé? Levou alguma trepada?...
– Ah! coitado! Não vá ser algum reumatismo.
– Ora! qual reumatismo! Isso há de ser algum coice hein, Belmiro?
– Nada! dá cá o pé, deixa ver. Quem sabe se é algum bicho apostemado.
A tantas perguntas, que se atropelavam sem dar tempo à resposta, Belmiro conservava-se silencioso, e
Azevedo, com um riso sardônico e certo piscar de olhos, dava a entender que ali andava qualquer coisa de
misterioso. Conservou-se de propósito calado por muito tempo, até que se aumentasse consideravelmente a
roda dos curiosos. Então, como para se ver livre de tantas importunações, começou a desenrolar a história da
função da véspera e do tombo de Belmiro.
– Cá o managão – dizia ele – quis se fazer de menino para dar nas vistas e agradar às belas, e tentando trepar
aos últimos galhos de uma jabuticabeira, ai! coitado! pobre cavaleiro da triste figura! no melhor da festa,
faltaram-lhe as pernas, e desabou lá de cima como um pedaço de céu velho, ou antes como um mono mal
atirado, e veio cair redondamente a meus pés e de D. Adelaide, que quase morreu de susto com tal brincadeira.
Entre estrondosas gargalhadas, o Azevedo foi continuando nesse gosto a narrar e comentar os acontecimentos
da véspera.
Belmiro, que quando se achava entre seus íntimos sempre tinha algum espírito e desembaraço, achava-se
completamente tolhido no meio daquela saraivada de ditos e apupadas de tanta gente, que mal conhecia.
Debalde invocava a imagem da formosa Adelaide, lembrando-se da preferência com que, no dia antecedente, o
havia distinguido; debalde forcejava por mostrar-se calmo e sobranceiro às chufas e motejos dos acadêmicos.
Cada vez mais perturbado, suando e rubro como lacre, não sabia articular a mínima réplica. Para cúmulo de
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males, seu pé doente não lhe permitia efetuar uma pronta fuga, único meio de esquivar-se ao fogo cruzado de
tantos olhares petulantes, de tantos risos galhofeiros: forçoso lhe era suportar a pé firme toda essa mortificante
metralhada.
– Mas isto ainda não é tudo – continuou Azevedo, cujo despeito não se limitava só à pessoa de Belmiro, e
estava talvez ainda mais íntimo e profundo contra a inocente Adelaide. – Há ainda mais uma coisa; coisa
assombrosa, a que decerto vocês não quererão dar crédito...
– Mas que coisa? Fala, Azevedo!
– Coisa que a mim mesmo custa acreditar, posto que meus olhos vissem, meus ouvidos ouvissem...
– Mas que coisa? Fala com mil diabos, Azevedo!
– Eu já lhes digo; tenham paciência. O caso é que a pobre da moça, mordida não sei de que gosto depravado,
mostrou-se toda apaixonada por este mono, que aqui vedes!
– Deveras? Não é possível! Ou tu estás caçoando conosco, ou então ela o debicava.
– Não é caçoada, sou eu que vos afianço e juro...
– Qual! qual! não é possível, queres nos debicar também, Azevedo.
– É a pura verdade. Tratou-o com todo o mimo, e à noite, como lá havia um violão, o pôs a cantar, o que
acabou de embasbacá-la.
– Não, não, não é possível; não posso acreditar – insistiram quase todos.
– E por que não? – exclamou do meio da turba um segundanista quase imberbe, puxando as pontas de uns
bigodinhos ainda em embrião. – Nisso nada há que admirar. Conheço perfeitamente a tal D. Adelaide e a sua
procedência. É na verdade uma bonita mocetona; mas tem os instintos da raça. O sangue africano, que lhe gira
nas veias, faz com que não tenha lá muito bom gosto na escolha dos amantes. O ano passado, entrei em
relações com o Major Damásio, pai da sobredita, e um dos mais extravagantes originais, que tenho conhecido,
e comecei a apaixonar-me realmente pela filha. Mas logo percebi que com ela perdia meu tempo e minhas
finezas. Talvez vocês visse por lá um sujeitinho vivo, esbelto, um caboclo de olhos cintilantes, assim à maneira
do gaúcho...
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Azevedo e Belmiro olharam um para o outro de um modo significativo, e de feito se lembraram que viram por
vezes, de relance, girando pela casa do major, um caipira, ainda moço, esbelto e de bonita presença, a que não
deram muita atenção, e julgaram ser algum hóspede de pouca importância, ou algum arrieiro do major.
Entretanto, não deixaram de refletir que durante sua estada na chácara, o tal moço aparecia e desaparecia a
miúdo com certo ar desconfiado e sombrio.
– E é verdade – disse Belmiro. – Não te lembras, Azevedo, de ter visto lá esse sujeito?
– Perfeitamente e por sinal que nos não olhava com bons olhos. Mas que tem esse sujeito, capataz ou arrieiro,
como me parece, com D. Adelaide? – continuou Azevedo, dirigindo-se ao supramencionado segundanista.
– O que tem? – respondeu este. – Nada; é simplesmente o seu amante.
– Não creias tal – replicou visivelmente molestado por essa revelação o Azevedo, que ao menos, até à véspera
daquele dia, se julgara na posse exclusiva da afeição de Adelaide, e não podia acreditar na existência de um
rival de tão baixa extração. – Quem te disse isso?
– Ninguém, meus olhos viram. Não sou tão asno, que não perceba o amor onde ele existe. Afirmo-lhes; esse
capataz é o amante de Adelaide, e o que mais é amante amado.
– Mas quem é ele? Será algum primo?
– Qual primo! É um domador de burros, que o major trouxe de Curitiba. Mas isso que importa? Se o rapaz é
caboclo, o major também o é, e demais disso é cigano de pura raça, como todo mundo sabe: lé com lé, cré com
cré.
– Cuidado com tua pele, meu Belmiro! – exclamou um da turba. – Repara quem pretendes tirar do lance... Tens
um valentão pela proa; esses curitibanos não são para graças.
Assim continuaram por algum tempo os motejos daquela turba desalmada à custa do major, de sua filha e do
curitibano; motejos de que o próprio Azevedo já não estava gostando muito. Quanto a Belmiro, esse, com o
coração ainda a palpitar com a terna recordação dos mimos de Adelaide, sentia revoltarem-se as entranhas, e
estava a ponto de sair em campo para desafrontar a reputação de gentil paulista, tão pública e atrozmente
atassalhada por aquela horda de maldizentes. Conteve-se porém nos recantos de seu natural acanhamento,
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refletindo que aquilo bem podia ser o começo de uma aventura em que, sem o pensar e sem o querer, iria
representar uma das principais figuras, e envolver-se talvez em bem maus lençóis. Obedecendo, pois, não só à
inflexão como à sua própria índole, entendeu que melhor seria não tomar parte alguma na discussão, e nem sair
a campo qual novo D. Quixote a romper lanças por uma Dulcinéia, que apenas conhecia da véspera.
Uma palavra de Azevedo, palavra calculada e adrede insinuada nos ouvidos de Belmiro para os devidos efeitos,
o fez subitamente mudar de deliberação.
– Covarde – disse-lhe ele, ao ouvido. – Pois deixas assim ser profanado e atassalhado por esta corja de biltres o
nome daquela que ainda ontem, vendo-te pela primeira vez, te tratou com tanta distinção e carinho? Ah! se ela
o souber!...
Belmiro corou até os olhos; compreendeu que era mesmo desairoso e até ignóbil da sua parte não dizer uma só
palavra em desafronta daquela que lhe havia testemunhado tanto afeto e predileção, e chamando em seu auxílio
a pouca presença de espírito, que ainda lhe restava:
– Meus amigos – disse – não devemos fazer juízos temerários...
– Aí temos moralidade! Fora o pregador! fora o namorado sermonista... Por aí não vai bem!
Com estas e outras exclamações abafaram a voz de Belmiro.
– Deixem-no falar, com mil diabos! – gritou o Azevedo, zangado. – Atendam, que até agora ainda não proferiu
palavra.
– Pois bem, meus senhores – exclamou Belmiro um pouco animado com o auxílio que Azevedo parecia
prestar-lhe. – Posso afiançar-lhes que todos esses ditérios, que andam assoalhando contra o major e sua filha,
não passam de miseráveis e indignos aleives. Se o senhor duvida – acrescentou, dirigindo-se ao moço de
bigodinho – pode ir conosco lá no domingo. O major autorizou-nos a convidarmos quem quisermos; e terá
ocasião de reconhecer que tudo isso não passa de um desprezível embuste, filho talvez do despeito de alguém
que tomou tábua.
Oh! oh! como está arrogante o malandro! – retorquiu o mocinho do bigode, tomando para si a carapuça. –
Havemos de ir sem dúvida, e para isso não preciso de sua apresentação; eu também conheço o major, e não é
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de ontem. Juro que hei de disputar palmo a palmo o terreno não só aqui ao amigo Belmiro, como também ao
tal mequetrefe de capataz. Meu Belmiro, emprazo-te para domingo! – terminou, batendo-lhe no ombro.
Nesse momento, a sineta da Academia batia um quarto depois de dez horas; era tempo de Belmiro, Azevedo e
muitos outros que ali se achavam entrarem para as aulas, pelo que dissolveu-se naturalmente aquele
ajuntamento, que já ia tomando um caráter tumultuário.
Terminadas as aulas, enquanto Belmiro se retirava lentamente para casa, ao braço de seu companheiro, o
infatigável e maligno Azevedo, contentíssimo com o resultado da sua trama, que excedera mesmo à sua
expectativa, deixou-se ficar na Academia, combinando com alguns companheiros os meios de pregar outra
caçoada, ainda mais que cruel, ao Belmiro no domingo próximo, na própria casa do major.
Cumpre notar que o despeito de Azevedo não tinha só por alvo o seu colega, estendia-se também a Adelaide, ao
major, ao curitibano e a todos aqueles que tivessem concorrido para perturbar os horizontes, até ali tão serenos,
de seu tranqüilo namoro. Projetava promover, senão um escândalo, na casa do major, ao menos tal
desaguisado, que havia de perturbar todas as suas relações e desarranjar por muito tempo todos os namoros
presentes, passados e futuros de Adelaide. Para esse fim, não podia contar muito com a cooperação dos
companheiros de casa de Belmiro, quase todos amigos e comprovincianos deste, e demais pouco próprios para
empresas dessa ordem. Convidou, portanto, outros companheiros mais apropriados, entre os quais figuravam o
Couto – o violonista notabilidade – e o moço dos bigodinhos. Não se esqueceu também de recomendar muito
ao Belmiro que por maneira alguma faltasse à função de domingo.
Capítulo X
Nova Provocação
Posto que sejamos inimigos mortais de todo o gênero de maledicência, forçoso nos é gozar ainda um pouco na
pele do Major Damásio. Se bem que não deixasse ele de ter alguns bons instintos, e certo fundo de honradez e
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cavalheirismo, todavia sua nímia filáucia, unida a muita ignorância, o tornava um personagem algum tanto
ridículo, e às vezes até mesmo odioso, próprio para servir de joguete entre as mãos de estudantes não pouco
desenfreados e libertinos. Sua balda de fidalgo e branco sem mescla se revelava a cada instante nos modos, nas
palavras e nas ações, tratando com revoltante desdém a todas as pessoas de cor e de condição humilde. Parecia
ignorar que em S. Paulo todo o povo conhecia sua baixa linhagem, que o público maligno e desapiedado ainda
mais procurava rebaixar como para puni-lo de sua estólida presunção. Talvez mesmo que, à força de mentir à
sua própria consciência, se lhe encasquetara nos miolos a convicção íntima e profunda de que era realmente
fidalgo, em conseqüência de uma dessas monomanias quixotescas, de que se dão não raros exemplos. Se esse
fraco se limitasse somente à sua pessoa, o mal não seria tão sensível; ele porém se refletiu na educação de sua
filha e veio a influir de modo lastimoso em seus ulteriores destinos.
Imbuída em todos os preconceitos e parvoíces do pai, não tendo tido outro mestre senão ele e alguns
preceptores lisonjeiros e fáceis, que lhe deram algumas lições superficiais de música, dança e desenho e
algumas noções de francês, faltou inteiramente à Adelaide a educação moral e religiosa. Formosa e dotada de
bastante espírito e inteligência, teria sido uma das mais perfeitas criaturas, se não fosse a falsa e má educação
que lhe perverteu consideravelmente a excelente índole de que a dotara a natureza. Para cúmulo de males,
ainda no berço havia perdido sua mãe, e a única mulher, a que ficara confiada a guarda da pobre menina, era
uma velha tia celibatária, irmã do major, mulher ignorante e quase idiota, que passara a vida a rezar e criar
galinhas, e da qual Adelaide fazia tanto caso como de suas escravas.
O major – não sem bastante fundamento – fazia de sua filha o mais elevado conceito não só como formosura,
mas também como um modelo de elegância, graça e inteligência, e a colocava muito acima de todas as
celebridades do mundo elegante daquele tempo em S. Paulo. Como Adelaide já tinha completado os seus
dezesseis anos, o major não podia deixar de pensar em casa-la; tão ilustre raça não devia extinguir-se em sua
filha e era preciso escolher um noivo digno dela. Ora, o corpo acadêmico era justamente um viveiro de noivos
na altura de suas aspirações. Uma mocidade brilhante e esperançosa freqüentava a Academia; uns ricos, outros
fidalgos de sangue azul, outros com a aristocracia do talento tinham suspensa sobre a fronte a auréola de um
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esplendido futuro. O major não ignorava que era especialmente dessa classe que saíam os deputados,
senadores, ministros, barões, condes e marqueses. Estava também intimamente convencido de que era bastante
mostrar-lhes a filha, para ficarem todos morrendo por ela e a disputarem com encarniçamento a posse de tão
inapreciável tesouro. Portanto, e nesse intuito, tratava de relacionar-se com o que havia de mais ilustre e
prestigioso nessa classe, procurando especialmente os da Corte, e evitando com a maior cautela pessoas de cor
equívoca. Entretanto, de envolta com esses jovens de famílias distintas, não deixavam de ser admitidos em sua
casa alguns estudantes pobres e obscuros, mas notáveis pelo talento, principalmente se se distinguiam por
alguma aptidão artística ou se eram poetas, pois o major e sua filha eram apaixonados pela poesia: Adelaide,
sobretudo, era muito lida em romances.
O que todos não podiam suportar era a intimidade de mulatos ou caboclos.
Belmiro pouco mais ou menos já adivinhava qual o motivo por que Azevedo havia convidado novos
companheiros, e instava tanto com ele para que não faltasse ao passeio de domingo; desconfiava que outra não
podia ser a sua intenção, senão, de mãos dadas com seus diabólicos companheiros, promover todos os meios de
expô-lo à mais solene irrisão em presença de Adelaide. Na companhia de seus amigos e comensais, dispunha
ainda de alguma presença de espírito para fazer face às caçoadas; mas com gente estranha, perdia-se de todo, e
sua perturbação bastaria para que fizesse o mais triste papel. Quanto mais refletia, mais se convencia que lhe
não era possível resistir à conspiração que contra ele se armava. Por outro lado, atormentava-o irresistível
desejo de tornar a ver aquela que lhe havia roubado o coração. Toda a noite, passara a cismar com ela. Fora tão
meiga para com ele; testemunhara-lhe tanto interesse e simpatia! Não seria grande a indelicadeza de sua parte
deixar de comparecer ao primeiro convite? Mas como arrostar a petulância daquela legião de garotos, que o
Azevedo havia arrebanhado para o acabrunharem ao peso de motejos e caçoadas?
Nesse estado de indecisão, adormeceu e acordou o irresoluto Belmiro na noite de sábado para domingo.
Acordou e levantou-se muito cedo, e a primeira resolução, que as auras matinais lhe inspiravam, foi que não
devia comparecer. Antes uma retirada honrosa, do que uma derrota vergonhosa – pensou ele.
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E para se esquivar às importunações do Azevedo e mais companheiros, logo que se levantou, foi amoitar-se em
casa de um estudante, seu amigo, que morava nas vizinhanças. Era deserção algum tanto vergonhosa; mas antes
isso, do que ser vítima de caçoadas e pilhérias pesadas em presença de uma mulher amada.
Na hora aprazada – onze para meio-dia – em vão procuraram Belmiro; ninguém sabia onde se alapardara.
Azevedo deu a mil diabos a fuga de sua vítima; a vingança escapava-lhe das mãos de um modo lastimoso.
– Ah! raposa matreira – exclamava ele. – Mas deixa-te estar que mesmo sem a tua presença, hei de preparar-te
uma cama, com que não te hás de dar mal. Olhem o sonso!... Tem convite de um homem de importância e de
uma menina bonita, e esconde-se como um urso bravio! Mas pela falta de um companheiro não devemos
perder o pagode, de ele no que der. Vamos, meus amigos!
Azevedo levava o seu menestrel, o Couto, grande violonista e cantor de primeira ordem, e com ele e os mais
companheiros contava passar um dia cheio de regalado, e portanto, rogando mil pragas a Belmiro, puseram-se
alegremente a caminho para a casa do major.
Belmiro, entretanto, não ficou tranqüilo, e logo que soube que a comitiva de Azevedo tinha partido, começou a
achar feio e ridículo o seu procedimento. Demais a mais, gravemente namorado, como realmente se achava,
começava a sentir fisgar-se-lhe ao coração a farpa do ciúme.
– Não! – dizia consigo. – Não devo deixar de comparecer. Adelaide, com minha ausência, ficará fazendo fraca
idéia de mim; pensará que fiz pouco caso de suas atenções, ela que as merece tanto, e me entregará ao
desprezo, que realmente merecerei, se lá não for... Sou deveras um amante bem frio, tosco e pusilânime!... Ter
medo de meia dúzia de peralvilhos, só porque se trajam com algum primor e sabem dizer a moças meia dúzia
de banalidades e parvoíces adocicadas?!... Ora!... Também o Azevedo é um dandy de primeira ordem, e
anteontem, sem no menor esforço e quase sem querer, o pus fora de combate!... Vamos! vamos!... Ao menos
ficarei sabendo se a deferência, que teve comigo, foi um capricho de momento ou dó por causa da minha
queda, ou se é mesmo coisa mais séria.
Nessa resolução, dirigiu-se a casa, vestiu-se à pressa e o melhor que pode, e encontrando ainda encilhado o
animal que lhe tinham preparado, enforquilhou-se nele, e dirigiu-se para a chácara do major.
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Ao avistar a casa de Adelaide, o coração lhe palpitou com violência, como o do soldado que vai entrar em
renhido combate, do qual não sabe se sairá vivo ou morto, vencido ou vencedor. Ia se expor a um terrível
tiroteio, do qual para sair vitorioso só esperava o auxílio de uma pessoa, e essa pessoa era Adelaide.
Achou a companhia instalada no salão em animada e alegre conversação. O Azevedo levara, além de dois ou
três companheiros de Belmiro, mais seis ou sete novos amigos, jovens elegantes, primorosamente trajados,
afeitos às maneiras cerimoniosas dos salões. Um deles, se bem que igual aos outros na elegância e no trajo, era
de cor bastantemente fusca e tisnada, e no rosto e no cabelo apresentava o tipo o mais pronunciado de um
verdadeiro tupi. Era este o grande cantor, excelente músico, que o Azevedo tinha inculcado no intuito de
eclipsar a Belmiro.
Azevedo e seus companheiros receberam Belmiro com uma explosão de cumprimentos irônicos, que
atordoaram.
– Ainda bem vieste, meu caro Belmiro. Que falta nos ia fazer!...
– Por que razão eclipsaste na hora da partida? Mas vais melhor do pé?...
– Oh! felizmente cá o temos!... Oh! insigne trovador!...
– Bem-vindo sejas, meu Belmiro!... disse por sua vez o Azevedo, tocando-lhe no ombro – Se faltasses,
faltava-nos o ar, a luz, a vida... Mas olha que daqui em diante não é mais permitido destroncar o pé.
Belmiro nada respondia; notou, porém, que o major naquele dia tratava seus hóspedes com mais reserva e
cortesia, e mesmo com certa frieza, que não condizia com as maneiras francas e familiares com que os recebera
da primeira vez; mas não podia atinar com o motivo de semelhante procedimento.
Adelaide foi a última que se dirigiu ao recém-chegado.
– Pensava que não vinhas mais – disse ela depois de cumprimentá-lo – e já estava ficando com raiva do senhor.
– Eu não podia deixar de vir, minha senhora; um transtorno insignificante me fez demorar um pouco; espero
que me desculpe.
– Uma vez que apareceu, está desculpado. Meu pai havia de ficar bem aborrecido, se o senhor não viesse.
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– Oh! decerto – acudiu o major – muito apreciamos a sua companhia, e havemos de apreciá-lo também hoje no
violão.
– Lá por isso não, meu caro major; nenhuma falta eu faria; aí está o nosso amigo Couto, que o vai fazer
esquecer-se.
– Oh! o senhor! – replicou o major, inclinando-se com cerimoniosa gravidade para o Couto. – Havemos de ter o
gosto de ouvi-lo também.
– Toco alguma coisa, senhor major – retorquiu o Couto – senão admiravelmente como o nosso incomparável
Belmiro, sempre sirvo e não me faço de rogado. Mas creio que seria para todos nós muito mais agradável ouvir
a Sra. Adelaide que, segundo dizem meus amigos, possui uma voz maravilhosa.
– Não é tanto assim – replicou Adelaide. – Canto alguma coisa; mas não sou mestra. Tenho muito pouco
estudo.
– Isso nada importa – disse o Couto, levando a sua cadeira para bem junto da moça e assentando-se com grande
familiaridade ao pé dela. – O que mais se aprecia são os dons naturais que a senhora pode aperfeiçoar com o
exercício e a direção de um bom mestre.
Adelaide corou toda perturbada, e procurou disfarçadamente afastar algum tanto sua cadeira da de seu
interlocutor. O major, por seu lado, enfiou e mordeu os beiços com impaciência ao ver aquele fusco trovador
chegar-se com tal desembaraço e bafejar tão de perto a sua idolatrada Adelaide.
– Não duvido – disse esta, respondendo ao Couto – mas não tenho pretensões a ser grande cantora; canto para
distrair-me.
– Ah! mas isso é ser muito egoísta; quem dispõe de uma bela voz tem o dever de cantar também para distrair e
encantar aos outros.
– Perdão, meus senhores – interveio o major impacientando. – Deixemos a música para depois; são horas de
irmos às frutas. Vamos, senhores, vamos para o pomar.
– Prontos! – responderam os estudantes levantando-se. E todos, precedidos pelo major e sua filha, se dirigiram
ao pomar pelo caminho que já conhecemos.
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Aí nada ocorreu de interessante; somente o major, escarmentado com o que acontecera a Belmiro, não
consentiu mais que os estudantes subissem às jabuticabeiras, e mandou servir as frutas já colhidas por seus
escravos. Este fato, além de mostrar-se o major nessa ocasião muito mais frio e cerimonioso em seu trato,
concorreu grandemente para tornar a função pouco animada, e bastantemente desenxabida. Azevedo e seus
apaniguados em vão procuraram divertir a companhia, chasqueando à custa de Belmiro. Adelaide pouco apreço
dava a suas pilhérias, não as aplaudia, mostrava não entende-las, e às vezes até parecia desaprova-las. Muito ao
contrário do que pretendiam, ela como que de propósito mostrava-se solícita e bondosa para com Belmiro,
dirigindo-lhe muitas vezes a palavra e oferecendo jabuticabas, que ela mesma colhia.
Isso desconcertava completamente o Azevedo, que via ir-se malogrado de modo deplorável todo o plano de sua
conspiração. Seus companheiros, igualmente, foram-se sentindo cada vez mais desanimados e até mesmo
despeitados, principalmente o Couto, a quem Adelaide tratava com uma indiferença, que às vezes cheirava a
desdém.
Ao jantar, por efeito das libações, os espíritos se animaram, e a conversação tomou algum calor. Os ditérios e
epigramas choveram ainda contra Belmiro, que os recebia impassível à sombra do olhar benigno e protetor de
Adelaide. Ufano com a vitória, que sem o mínimo esforço o ia alcançando contra seus companheiros, ia
cobrando sangue-frio e audácia, que lhe não eram naturais.
– Estás amuado hoje, Belmiro! – disse-lhe um deles – Falas tão pouco!... Será ainda efeito do tombo que
levaste?
– Nem disso me lembro mais – retorquiu Belmiro. – Mas é que quando vocês falam não fica tempo a ninguém
para dizer uma palavra.
– Oh!... oh!... Podes falar, podes soltar alguma das tuas sandices; prometemos presta-te toda atenção.
– Obrigado!... Podem continuar a desfiar suas pérolas; no meio delas minhas sandices vão produzir muito mau
efeito.
– Não sei que o Sr. Belmiro diga sandices – acudiu Adelaide com adorável ingenuidade – mas se as diz, é com
tal graça, que não parecem tais.
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Com um olhar expressivo, Belmiro manifestou a Adelaide a sua gratidão.
– Meus senhores! – bradou o dono da casa, de copo em punho. – Já temos feito muitos brindes; agora peço-lhes
que façamos um especial ao meu amigo, insigne violonista, o Sr. Belmiro!
Esse brinde foi correspondido com sinceridade por Adelaide e alguns poucos amigos do estudante, mas pelo
resto dos convivas com atordoadores hurras, misturados com gargalhadas, que não podiam exprimir nem
prazer, nem entusiasmo.
Está bem claro que ele foi levantado pelo major mui de propósito para humilhar o Couto, cuja cor lhe fazia
arrepiar os cabelos.
Azevedo desesperava ao ver irem-se malogrando uma por uma todas as suas tentativas para ridicularizar e por
fora de combate o seu rival. Adelaide o amparava com sua égide não era possível atingi-lo. Só lhe restava uma
esperança na ocasião de se tocar e cantar. Sabia quanto Belmiro era acanhado, e se bem que soubesse tocar
violão e cantar com algum gosto e perfeição, só o fazia raras vezes e entre pessoas com quem já tivesse
contraído alguma familiaridade. Portanto, expô-lo a cantar em pleno dia, de violão em punho, no meio de uma
sala cheia de pessoas, que ele bem sabia estarem mais dispostas e debicá-lo do que a apreciá-lo, era o maior
dos suplícios que podiam infligir-lhe. De feito, mesmo para os mais desembaraçados, haverá provocação mais
cruel do que ser condenado a cantar de dia bem claro, em uma pequena sala cheia, de face para todos, que, com
os olhos fitos na cara do cantor, lhe observam todos os movimentos e de ouvidos atentos estão à espera que ele
abra a boca? E principalmente quando no auditório há uma pessoa, diante da qual nos seria dolorosíssimo fazer
um mau papel? Isso é para fazer suar sangue e por em torturas o mais delambido cômico de profissão. Era
nessa terrível arena que Azevedo e seus comparsas esperavam ver o pobre Belmiro completamente aniquilado
sob o peso do ridículo.
Depois de uma breve passeio pelo jardim, onde se serviu o café, os convivas se reuniram na sala de visitas. Era
chegada a hora dos entretenimentos musicais. Por instigação de Azevedo, o Couto lançou logo mão do violão, e
com notável perícia e agilidade executou lindas peças, que encheram o auditório de prazer e admiração. O
major, porém, e sua filha apenas o aplaudiram com muita frieza; reproduzisse ele as harmonias dos coros
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angélicos, a sua cor tisnada lhes fazia parecerem ásperas e desentoadas as mais suaves notas, que extraía das
cordas do instrumento.
Senhores – disse o Couto – eu estou tocando somente para preludiar; é o bom que se cante alguma coisa. Quem
principiará?
– O Belmiro! o Belmiro! – exclamaram todos os estudantes, que para isso já se tinham combinado.
– É verdade; nada mais justo, mesmo para corresponder ao brinde com que ainda há pouco o honrou o senhor
major. É preciso que cante. Ande, vamos a isso! dizia o Couto, entregando o violão a Belmiro.
Esse enfiou e enrubesceu até a raiz dos cabelos; mas tinha formado firme e inabalável propósito de não cantar,
e por esse fim já tinha estudado em escusa, que aliás parecia ser muito atendível.
Tinha tido febre e insônia em conseqüência da lesão no pé. Sentia vertigens a toda vez que falava mais alto e
com alguma vivacidade, e por conseguinte muito menos lhe era possível cantar.
– É manha! é manha! – exclamaram os estudantes. – Não admitimos desculpa. Não acredite, minha senhora;
podemos afiançar-lhe que está de perfeita saúde. A senhora não reparou como ele comeu e bebeu com
invejável sede e apetite?
– Pode-se estar de saúde para comer e beber, e para muitas outras coisas mais, e não se estar de saúde para
cantar – replicou tranqüilamente Belmiro.
– Ora! Não se faça rogado! Vamos, tome o violão e cante! – retrucaram os estudantes, acercando-se de Belmiro
e apresentando-lhe o violão com um ar quase ameaçador.
– Não, decididamente não; não posso. Peço desculpa ao senhor major e à Sra. D. Adelaide – disse Belmiro,
lançando a esta um olhar de súplica.
– De nossa parte, Sr. Belmiro – respondeu ela – está dispensado; não queremos agravar seus incômodos só para
nos dar prazer.
– Oh! sem dúvida! – confirmou o major. – Guarde-se para quando estiver de todo restabelecido. Então, sim,
não havemos de poupá-lo.
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O Azevedo naquele instante teve ímpetos de arrojar-se ao gasnete do major e de Belmiro e esganá-los ali
mesmo, e de passar pelo menos uma furiosa descompostura em Adelaide a despeito de toda a sua formosura.
O Couto esperava que, visto o Belmiro ter sido dispensado, o major ou sua filha lhe rogassem para cantar. Mas
nem um nem outra se lembraram ao menos de dirigir-lhe a palavra. Com este desencanto, que era quase um
desacato, o Azevedo foi às nuvens. Nunca pensou que o menestrel, a quem tanto havia preconizado, fosse tão
cruelmente menosprezado. Entretanto, ele e seus companheiros, mesmo para dar uma diversão ao
desapontamento e despeito que os molestavam, tomaram a seu cargo o instar com o Couto para que cantasse
alguma coisa. Este, que mais que ninguém se achava enfadado e de mau humor, acedeu de má vontade à
súplica dos companheiros, e entoou uma cançoneta e alguns lundus chulos e bem pouco próprios da boa
companhia. Isso acabou de indispô-lo com o major, que dava a perros a lembrança, que teve seu amigo
Azevedo, de trazer-lhe à casa semelhante tapuia, como lá de si para si o qualificava.
Por fim os estudantes, menos o tapuia, que não podia nem queria disfarçar o seu despeito, rodearam Adelaide e
rogaram-lhe com muita instância para que cantasse qualquer coisa. Não lhe foi possível recusar-se.
–A senhora decerto vai acompanhar-se ao piano, não é assim, D. Adelaide? – perguntou-lhe Azevedo.
–Não, senhor; prefiro o violão. O Sr. Belmiro me fará o favor de acompanhar.
Esta última bomba atordoou e fez perder toda a esperança ao Azevedo e a todos os seus companheiros.
Adelaide cantou, e Belmiro acompanhou uma modinha, que só eles dois ouviram, mas que afinal todos
aplaudiram ex-officio.
Já o sol se inclinava rúbido sobre a serra das Cantareiras, e desmaiava seu vivo fulgor, engolfando-se nos
diáfanos vapores da tarde. O sol estava a despedir-se do nosso hemisfério, os convivas do Major Damásio
ansiosos por despedir-se de seu hóspede, e este também não menos aflito por vê-los de costas.
O major, entretanto, não quis despedir os seus convivas sem dar-lhes uma satisfação, e como não podia dá-la à
face de todos, chamou de parte para esse fim o Azevedo, com quem tinha mais antigas relações e maior
familiaridade.
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– Desculpem-me – disse-lhe ele – se hoje não os tratei no mesmo tom de familiaridade. Veio gente nova, e
além disso o senhor trouxe consigo um sujeito que, perdoe-me lhe dizer, não condizia muito com o resto da
companhia. Que necessidade tinha o senhor de fazer cá aquele tapuia?
–É do Couto que V. S. quer falar? – perguntou Azevedo, formalizando-se.
–Sim, senhor, o tal tocador de violão.
–Oh! senhor major, que susceptibilidade a sua! É um quartanista, um moço muito distinto, bem educado e
inteligente... Quanto à cor é talvez tão branco...
Azevedo ia talvez dizer – como V. S. – mas conteve-se a tempo.
– Como muita gente que anda por aí campando de branca e de fidalga... – continuou, concluindo a frase.
Demais, senhor major, a cor é um acidente.
– Será um acidente – interrompeu o major – não duvido, mas há certas misturas que repugnam.
– Ah!... – murmurou Azevedo, completamente atônito e desafinado.
– É preciso haver mais cuidado na escolha dos companheiros, meu amigo.
– Eu o trouxe apenas como um insigne músico, que poderia dar algumas lições à senhora sua filha.
– Nesse caso o meu capataz também toca e canta menos mal; e eu havia de pô-lo a ensinar minha filha?...
–Oh! não há o menor paralelo... Mas desculpe-me, senhor major; não sabia que os seus melindres aristocráticos
chegavam a tal ponto.
– Se há melindre, não é para com o senhor, meu caro amigo; esta casa está sempre às suas ordens, e de seus
amigos, contando que...
– Muito obrigado! – atalhou Azevedo. E despediu-se do major, ficando um pouco abaladas as suas relações de
amizade.
Capítulo XI
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Uma revolução dentro de um pedacinho de papel
Os estudantes se retiraram descontentíssimos com o resultado do passeio. O Azevedo principalmente levava na
alma o mais entranhado rancor, tanto contra Belmiro, como contra o major e sua filha. Em conseqüência,
Belmiro teve de agüentar pelo caminho todos os efeitos do mau humor de seus companheiros. Foi bode
expiatório, sobre o qual iam descarregando sem cessar os desapiedados golpes da cólera, que lhes atearam na
alma os desdéns de Adelaide e as impertinências do major. Teve de ouvir as mais terríveis imprecações contra
o pai, e as mais cruas e desbragadas apreciações a respeito da filha. Analisando-a detalhadamente,
emprestavam-lhe todos os defeitos imagináveis e não reconheciam nela nem graça, nem beleza, nem espírito.
Azevedo, logo ao sair, tinha contato aos companheiros, menos a Belmiro, toda a conversação, algum tanto
misteriosa, que tivera com o major ao despedir-se; mas fê-lo com cuidado e segredo, para que não chegasse aos
ouvidos da vítima. Isso reunido à frieza e cerimoniosa com que foram tratados, levou ao cúmulo o despeito e
indignação dos rapazes. Estimavam muito ao colega, e a desfeita, que lhe foi irrogada, doeu-lhes como se fosse
feita a todos, e juraram castigar a filáucia e petulância do major do modo o mais cruel que pudessem.
Vamos a escutar um pouco a edificante conversação, com que a trote largo se iam entretendo pelo caminho.
– Que saloia desenxabida, meu Deus!... Eu pensei que a tal Adelaide tão decantada fosse outra coisa. No corpo
é uma almanjarra desengonçada, cheia de requebros desengraçados.
– E no espírito... Oh! no espírito ainda é pior: é uma lesma!
– É uma foca.
–E que bigodes de granadeiro tem ela! Não repararam?
–Lá quanto aos bigodes, passe; mas que ventas! Parecem duas trombetas! Bem se lhe esta vendo a raça.
–E que gosto aprimorado!... Namorar-se aqui do nosso Belmiro!
–De certo assim devia ser, por achar nele um outro palerma, que não despregava dela os olhos, como um cão a
namorar um pedaço de carne.
– Que dois!... Deus os fez e o diabo os ajuntará talvez.
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– Mas nós os separaremos; é uma obra de misericórdia, não devemos consentir em semelhante namoro.
– Qual namoro! – acudiu o moço de bigodinhos, que já conhecemos – Vocês deveras tem a simplicidade de
acreditar que ela esteja realmente namorada do Belmiro?
– No menos as aparências...
– Pois são aparências e nada mais. Não viram por lá rondando o tal biltre do arrieiro ou o capataz? Não
repararam, quando ele passava por perto de nós, como fitava nela uns olhos de fogo, e como abaixava ela os
seus, cheia de confusão?
– Oh! isso é verdade. Uma vez que o tal maganão se achou em nossa presença, ela se mostrou por tal sorte
inquieta e perturbada, que parecia estar sentada em uma cadeira de espinhos.
– E o mais é que o rapazola não deixa de ter uma bonita figura; vale cem vezes mais do que o Belmiro. Que
olhos negros cintilantes! Que fisionomia expressiva! Que talhe esbelto e vigoroso! É um Cacambo, um Adônis
americano.
– E é mesmo. No seu gênero, é um dos mais lindos e vistosos rapazes que tenho visto. Cuidado, Belmiro! Tem
pela frente um guapo competidor.
– Querem saber uma coisa, meus amigos? Creio que já percebi a tática da moça. Ah! que raposa matreira não é
a tal Sra. Adelaide!
– Então o que é?
– Vocês ainda não atinaram com a razão por que, no meio de toda a rapaziada luzida que lhe faz a corte,
escolheu o sorna do Belmiro para objeto de suas predileções?...
– Ainda não.Qual é?
– É porque é ele o menos próprio para inspirar ciúmes ao namorado de casa.
– Oh! deve ser isso mesmo. Pobre Belmiro! Não és mais que um pau de cabeleira!
–É isto, podem ter toda a certeza. Quando o sujeitinho se mostrar agoniado com a menina, esta lhe dirá
ingenuamente: tenho dó e simpatia por aquele pobre moço. Ele facilmente acreditará, e eis aí tudo explicado...
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Foi por esta maneira que os estudantes vieram por todo o caminho, retalhando o coração de seu infeliz colega
com alfinetadas de ciúme, que lhe doíam mais que todas as outras caçoadas. De feito, ele também havia notado
certos sintomas, que faziam crer que as observações de seus companheiros não eram totalmente destituídas de
fundamento, e por isso, pensativo e silencioso, marchava como uma sombra entre seus gárrulos companheiros,
levando para a casa as mais desencontradas impressões. Por um lado afagavam-lhe a imaginação, como um
bando de borboletas matizadas de azul e ouro, as lembranças das demonstrações inequívocas de afeição que lhe
dera Adelaide; por outro, lhe fazia horrendas esgares a petulante e desalmada caterva dos colegas, que lhe
moviam mil dificuldades. Não eram porém ainda estes que mais o aterravam; já por duas vezes os tinha
suplantado sem grande dificuldade; e o que mais dolorosa impressão lhe causava era a existência do rival
doméstico, sem dúvida o mais formidável de todos, e que bem via não ser pura invenção de seus colegas. É
verdade que também compreendia otimamente o major, todo enfatuado de fidalguia como era, não podia
consentir em tal amor. Mas que importava isso se tal amor existia, e existiria deveras?
Assim oscilava perplexo o espírito de Belmiro, mas inclinando-se sempre a crer que semelhante amor era uma
quimera, a que a inveja maliciosa de seus colegas e a nímia susceptibilidade de seus próprio ciúme davam
algum vulto. Esse jovem curitibano era um pobre rapaz estimado na casa e nada mais. Nesta convicção, ainda
que mal baseada, entendeu que devia continuar a freqüentar a casa do major, esperando que os acontecimentos
viessem a desenlear tão intrincada situação.
Encerradas as aulas e durante o tempo dos atos acadêmicos, Azevedo e seus comparsas tiveram tempo de sobra
para combinar e realizar seu plano de vingança. O Couto, a quem não foi possível conservar-se por muito
tempo oculta e singular prevenção do major contra ele, em razão da cor, posto que afetasse ignorar ou
desprezar esse incidente, foi mais encarniçado em promover a mais terrível cruzada contra o pretendido
fidalgo. É verdade que nunca mais pôs os pés na casa deste, mas por fora preparava os elementos e açulava os
companheiros com atividade incansável e satânica habilidade. Com repreensível espírito de libertinagem,
continuaram eles a freqüentar, em grupos de quatro, cinco e mais, a casa do major, de cujo fraco achavam-se
bastantemente inteirados, acatando-lhe sempre a alta linhagem e rodeando a filha de todo gênero de lisonjas e
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seduções, próprias, senão para perverter-lhe o coração, ao menos para lhe estontear a cabeça. Não digo que
quisessem arrasta-la à perdição; mas desejavam leva-la a ponto de cair em alguma indiscrição ou fraqueza –
por exemplo uma carta, uma entrevista – para dar mote a maledicência, coisa que também nada tem de
louvável.
Com a repetição dessas reuniões escolásticas em sua casa, Adelaide foi-se habituando e mesmo tomando certo
prazer em receber homenagem a tantos e tão guapos adoradores. Como porém a todos prestasse igual atenção e
tratasse com a mesma amabilidade, nenhum deles ganhava terreno de modo que fizesse desanimar aos outros.
Nenhum deles podia jactar-se de receber dela a mais leve demonstração de preferência, à exceção de um só, e
esse era Belmiro. Este, entretanto, pobre e obscuro provinciano, era o que menos convinha às ambiciosas e
aristocráticas vistas do major. Por sua parte também Adelaide, conhecedora das baldas do pai, e nelas
profundamente imbuída, bem compreendia que ele jamais acharia de bom gosto a escolha de semelhante noivo.
E qual será a razão perguntará o leitor – porque, a despeito disso, o distinguia ela entre os seus companheiros,
mostrando-lhe, sem reserva, especial simpatia e predileção?...
É tempo já de destruir o engano, que porventura ainda exista, a respeito da natureza da afeição que Adelaide
consagrava a Belmiro. Mesmo em abono da honra e reputação da moça, cumpre-nos aqui declarar que a
afeição tão francamente revelada não era nem um capricho de loureira, nem tampouco resultado de uma paixão
amorosa; era simples sentimento de benevolência, que lhe inspirava o provinciano e suas maneiras lhanas e
despretensiosas, e por sua índole um pouco menos maligna que a de seus colegas. A infeliz moça fora fadada a
amar uma só vez, e já amava; mas tinha a triste convicção de que esse amor nunca poderia ser feliz. Ela mesma
iludida, como vivia, a respeito da procedência de sua linhagem, esforçava-se em vão por arranca-lo do coração.
Em razão da pouca idade e da educação negligente que ia tendo, não podia deixar de ser faceira e leviana; mas
não o era a ponto de desconhecer que a sociedade tem exigências, a que ninguém pode eximir-se, e que seu pai
jamais consentiria que ela desposasse pessoa abaixo de sua categoria. Vendo-o franquear sua casa aos
estudantes, logo atinou que ele pensava em deparar-lhes um noivo digno dela. Com o coração ocupado desde a
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infância com a imagem de um só, não sabia nem queria escolher entre tantos e tão elegantes mancebos, que
todos os dias lhe eram apresentados.
Estava convencida que, tarde ou cedo, teria de aceitar um noivo de alta hierarquia, fosse qual fosse, e seria
arrastada ao altar de himeneu como vitima de obediência filial e das conveniências sociais. Era um sacrifício
doloroso, mas, à força de considera-lo como inevitável, já se tinha resignado a ele.
Portanto, não podendo apaixonar-se por nenhum dos pretendentes, que com boas ou más intenções a cercavam
de homenagens, Adelaide, talvez mesmo para procurar uma diversão à posição difícil em que se achava,
entregava-se, ingênua e francamente, ao sentimento de simpatia que Belmiro lhe havia inspirado, sentimento
que, mal interpretado, fazia arder a cabeça a este e raivar aos outros de inveja e de ciúme.
Assim, nesse negócio quase todos andavam mais ou menos enganados. Belmiro julgava ser amado, e apenas
merecia alguma simpatia e consideração, e seus companheiros, quando em ar de chacota lhe diziam isso em
caminho, bem longe estavam de pensar que diziam a pura verdade. O major e sua filha estavam intimamente
convencidos de que os estudantes disputavam com ardor a posse do coração da rica e formosa herdeira daquele
nobre solar, quando estes, pela maior parte, desde o dia em que o major se desouve até certo ponto com
Azevedo e seu séqüito, só tinham em vista desmoronar aquele castelo imaginário, e com bárbara malignidade
expor ao ridículo não só o pai, como também o nome de sua infeliz filha, que por certo não merecia
semelhantes desacatos. Alguns deles tiveram a audácia de fazer chegar às mãos de Adelaide cartas amorosas,
que ela teve a prudência e a discrição de queimar sem dar resposta alguma. Havia contudo um ou outro que,
sinceramente apaixonado pela beleza e atrativos da moça, empregava de boa-fé seus esforços para ganhar-lhe o
coração, e que, fechando os olhos à sua genealogia, estava disposto a pedir-lhe a mão de esposa; mas esse
mesmo não era mais bem sucedido.
A Adelaide, a Adelaide – eis o nome que mil vezes se ouvia repetir nos círculos nos dandys acadêmicos de S.
Paulo. Era um namoro espantoso; Adelaide era um astro rodeado de miríades de satélites. Quanto verso da
mais vaporosa e requintada, quanta carta da mais acrisolada, ardente, profunda e frenética paixão tinha de ler, e
que lhe eram entregues como por encanto!... A moça via-se atarantada;acreditou-se uma deusa, que tinha por
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dever aceitar o culto e adoração universal. Assim o fez, e foi isso talvez sua salvação. Divindade sobranceira e
sem caprichos, não quis em seus altares sacerdotes privilegiados, aceitando com igual benignidade as oblações
e o incenso de todos.
Desgostosos por fim e desanimados, os falsos adoradores de Adelaide, por não terem conseguido, depois de
dois meses de inúteis tentativas, que ela – servindo-nos de uma expressiva alocução popular – pusesse o pé em
ramo verde, deliberavam tomar vingança por outro meio mais cruel e mais positivo. Suprimiram
completamente as visitas a casa do major, mas faziam lá chegar alguns números de jornais contendo epigramas
ferinos, cuja alusão era bem manifesta. O major os lia com prazer, porque lhes não compreendia o alcance; mas
Adelaide bem lhes compreendia a ponta acerada. Entre eles foi uma poesia intitulada – A rosa e o cravo
caboclo – em que se aludia de modo bem claro, mas com delicadeza, ao incidente, que conhecemos, dado entre
Azevedo e Belmiro. O major achou-a lindíssima, e riu-se; mas Adelaide arrepiou-se e estremeceu. Como porém
era concebida em termos delicados e ornada de imagens graciosas, Adelaide calou-se e abafou dentro dalma
certas apreensões, que não deixavam de inquieta-la.
Um belo dia, porém, Adelaide recebeu das mãos de uma velha escrava um mimoso e perfumado papelzinho, e
julgando ser uma dessas missivas apaixonadas, com que seus inúmeros amantes costumavam importuna-la,
abriu-o sem escrúpulo, e começou a lê-lo, para depois consumi-lo, como era seu costume, na pira ardente, não
direi do seu desprezo, mas de sua indiferença. Essa missiva, que era anônima, não pode ter o mesmo destino.
Dentro desse papelzinho perfumoso e acetinado estava contida uma terrível bomba, que devia estourar com
grande estrondo, e, fazendo horrível conflagração, produzir completa mudança nos destinos de Adelaide. Era
uma poesia em forma de lundu, na qual se punha em público e raso a genealogia de Adelaide, tendo por guizo o
seguinte estribilho:
Mas por essa desventura
Não chores, linda menina;
Nasce a pérola da lama,
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Nasce do esterco a bonina.
Bem se vê que esse modo de consolar não podia agradar muito à Adelaide. A princípio, enrubesceu até à raiz
dos cabelos, e pouco depois sua linda tez morena ficou pálida como a cera de uma tocha funérea; suas pupilas
negras se incendiaram, lançando chispas como as da cainana ofendida; seus seios ofegaram violentos como mar
tempestuoso. Ela, acostumada a ser o alvo de todos os mimos e adorações, nunca pensara nem mesmo na
possibilidade de tão feroz ultraje.
– Lucinda! – gritou ela, chamando pela escrava, que lhe entregara o papel, a qual imediatamente apareceu. –
Toma esta carta... tu te enganaste... Quem foi que a trouxe? Isso seguramente não é para mim.
– É mesmo para sinhazinha – respondeu a escrava. O moleque, que trouxe esse papel, falou assim: - É para
sinhá Adelaide, filha do Sr. Major Damásio.
– Ah! meus Deus, será possível! – exclamou a moça, levando as mãos aos cabelos. – Meu pai!... Chama
depressa meu pai... ele há de vingar-me!
– Que é isso, sinhazinha?! O que é que mecê tem, que está zangada?
– Não é nada, Lucinda – respondeu secamente a moça. – Anda!... Vai chamar meu pai.
Daí a instantes apareceu o major.
– Que temos de novo, minha querida?
– Olhe, meu pai; olhe o que se atrevem a escrever para sua filha – disse ela, apresentando, com mão convulsa,
o papel, que o pai tomou e começou a ler com avidez. À medida que ia lendo, os olhos do major se injetavam,
convertendo-se em duas poças de sangue, e as cordoveias do pescoço batiam-lhe como bordões de rabecão
feridos em valente pizicato.
– Há de morrer como um perro vil!... – bradou, dando um furioso murro sobre a mesa, junto à qual Adelaide se
achava sentada. – Há de morrer o insolente, que teve o atrevimento de... Olá! – quem foi que te trouxe este
papel, minha filha?
– Foi Lucinda.
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– Ó lá, Lucinda!...
Lucinda imediatamente apareceu, espavorida.
– Crioula, quem foi que entregou este papel à sinhazinha?
– Fui eu, sim senhor.
– Quem trouxe?
– Foi um moleque.
– Que moleque?
– Não sei, não, senhor.
– Como se chama?
– Não sei, não senhor.
– De quem é?
–Não sei, não senhor.
–Não, não, não, não sei, não sei, não sei! E esta! Pois é preciso saber, maldita! Vai, corre já atrás do moleque
que aqui trouxe este maldito papel. Anda... Não percas tempo; traze-o já aqui agarrado. Senão... anda, cachorra
tinhosa! Anda, demônio dos meus pecados!...
O major berrava estas palavras espumando em fúria, e espescoceando desapiedadamente a pobre rapariga.
Enquanto ele continuava a vociferar feito um possesso, Adelaide escondeu a cabeça sobre a mesa entre os
braços e desatou a chorar, e Lucinda, toda atarantada pelos berros e pescoções do major, foi-se escorregando
dali para fora sem compreender nada do que se passava, e tratou logo de esconder-se no mais recôndito canto
da cozinha. Houve silêncio de alguns instantes, enquanto a filha soluçava e o pai bufava como um boi no laço.
– Meu pai! – disse por fim Adelaide, levantando o rosto banhado em copioso pranto. Estava encantadora então.
A raiva tinha-se desafogado em lágrimas, e achava-se restabelecida a harmonia de suas graciosas feições, que a
cólera por momentos havia transtornado. Se a vissem naquele instante os estudantes, que a tinham levada a tal
extremo, ter-se-iam prostrado aos pés dela, atassalhados de remorsos e implorando perdão. – Meu pai, bem me
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estava agourando o coração que essa corja de estudantes malcriados havia de nos pregar alguma; eu não
gostava nada de semelhantes reuniões.
– Nem todos, minha filha; isso não vem senão de gente ruim e de baixa ralé; e não pode ser doutro senão
daquele cão tinhoso, daquele esconjurado tapuia que o Azevedo aqui nos trouxe um dia.
– Não duvido; mas seja de quem for, meu pai, isso não deve ficar sem castigo. Ah! meu Deus! meu Deus ! que
desaforo... Pelo amor de Deus, meu pai, não abra mais sua porta a semelhante canalha.
– Eu, minha filha! ... Deus me ofenda!... Não quero vê-los mais nem pintados.
– Mas não basta só isso, meu pai; uma afronta destas não pode ficar sem vingança...
– Sim, não pode; dizes bem, minha filha. O maroto há de pagar ao menos com uma boa sova de pau... Já se viu
maior desaforo! Esses estudantinhos cuidam que podem zombar do mundo inteiro!... Hão de conhecer se o
Major Damásio Augusto de Aguiar e Andrada é da laia deles... Há de se descobrir quem foi o brejeiro infame...
Hei de falar ao compadre Tobias... A polícia há de indagar... Hei de falar também aos lentes... Há de haver
congregação... reprovação... expulsão mesmo!... Arre! Não se insulta assim uma família distinta!...
– Não, não meu pai - interrompeu a moça. – Com esse espalhafato vamos de mal a pior. Então é que vamos
virar peteca na mão desses biltres. Não diga nada ao padrinho, nem aos lentes, nem a ninguém. Eu mesma hei
de descobrir quem foi o desaforado que me mandou esses versos, e hei de vingar-me.
– Tu, menina?
– Eu mesma.
– Cala-te aí, criança!... Mas como?...
– Deixe por minha conta.
– Pois sim... Vê lá se descobres, e conta certo que a mão, que escreveu essas sandices, nunca mais pegará na
pena para escrever coisa nenhuma desta vida.
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Capítulo XII
Conrado
Agora nos é indispensável dar ao leitor mais intimo e completo conhecimento de um personagem, de quem até
aqui só nos temos ocupado acidentalmente, mas que tem de representar um dos mais importantes papéis no
desenvolvimento dos sucessos que temos de historiar. Queremos falar do jovem capataz ou camarada do Major
Damásio, a quem os estudantes, aliás sem fundamento algum sólido, mas só por pura malícia, atribuíam
relações amorosas com a filha do patrão. Conrado – tal era o seu nome – era natural de Curitiba. Uma feita, em
que Damásio ali fora comprar mulatas, encontrou o pobre menino na idade de onze a doze anos, órfão e
desvalido, mas já traquejado na escabrosa lida de camarada muladeiro. Ágil e vigoroso, já sabia atirar um laço
com toda a destreza, pegar um burro xucro, passar-lhe os arreios e doma-lo como o mais destemido peão. Era o
tipo de um lindo e genuíno gaúcho.
Damásio teve ocasião de apreciar o préstimo e atividade do adolescente, e encantado de sua extraordinária
habilidade e desembaraço, como tinha precisão de um camarada, o chamou a seu serviço. Além de sua
habilidade profissional, Conrado se tornava recomendável por sua índole dócil e bondosa, e ainda mais por sua
dedicação e zelo no serviço do patrão, cuja afeição com o andar dos tempos foi captando de mais a mais.
Chegado em S. Paulo e instalado em casa do major, Conrado era considerado em conta algum tanto menos que
um filho, porém bastante acima de simples camarada. Colocado debaixo do mesmo teto com a filha do major, a
formosa e interessante Adelaide, viva e mútua inclinação para logo os ligou, concorrendo todas as
circunstancias para cimentar entre eles uma dessas afeições intimas e profundas que jamais se extinguem, laços
que não se podem romper sem o mais doloroso sacrifício; é assim que, de tênues e quase imperceptíveis
filamentos, aglomerados durante séculos, se forma o amianto, que nem o fogo pode consumir. Conrado era
companheiro, o guarda, ou antes o aio, que sempre acompanhava a menina, quando esta ia à escola ou a
qualquer passeio. Por esse tempo ainda o Major Damásio não tinha feito da chácara sua residência favorita, e
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morava no centro da cidade, onde tinha o negócio de fazenda seca. Quando, ao voltar da escola, Adelaide se
sentia fatigada, Conrado dava-lhe o braço, e às vezes o mesmo, quando fazia mau tempo, a carregava aos
ombros já bastantemente vigorosos. Em todos os passeios, espetáculos e divertimentos de qualquer espécie, o
pequeno gaúcho fazia parte da limitada família, que se compunha do major e sua filha, uma mucama e um
moleque fardado de pajem, figurante que ele, a bem do decoro de sua alta linhagem, nunca dispensava. Essa
vida em comum e a imprevidente tolerância do major, que quase os equiparava deixando-lhes ampla liberdade
de brincarem e passarem juntos, fomentaram em breve tempo a mais afetuosa intimidade entre os dois
meninos, que passavam os dias rindo e folgando no suave abandono dessa quase fraternal união.
Conrado não sabia ler nem escrever. O major, que no pequeno curitibano só queria ter um bom capataz,
ignorante e egoísta como era, não curou de cultivar-lhe a inteligência, e só ambicionando aproveitar seus bons
serviços, nem mesmo se lembrou de faze-lo freqüentar a escola. Entretanto, o rapazote sentia-se mordido de
inveja, quando via sua gentil patroazinha abrir um livro qualquer e lê-lo com desembaraço, ou tomando uma
pena entre os dedinhos rosados passear a mão delicada por sobre o papel, deixando nele gravado o pensamento.
Sendo mais velho do que ela, ficava sumamente envergonhado, e ardia em desejos de tornar-se nesse particular
igual àquela a quem tanto bem queria. Um dia, manifestou a Adelaide o pesar que o acompanhava por não
poder aprender a ler e a escrever.
–Ora! é tão fácil! – disse-lhe a menina. – Se você quer, eu te ensino, e você fica sabendo tudo o que eu já sei e
o que eu for aprendendo daqui por diante.
Conrado aceitou o oferecimento como um presente do céu. Aprender alguma coisa, e aprender com aquela
linda criaturinha, a quem tanto idolatrava, era o mesmo que ser introduzido no paraíso pelas mãos de um anjo.
Inteligente e ávido de saber, o curitibano em pouco tempo fez progressos que admiraram sua pequena mestra,
que além do ensino lhe ministrava também o papel, tinta, penas, exemplares, etc. Conrado aproveitava-se com
avidez de todos estes favores, e não perdia tempo. Pelo caminho da escola, em casa nas horas vagas, a sós ou
junto com Adelaide aplicou-se por tal modo, quem em poucos meses igualou-se e veio a tornar-se superior à
mestra. Para isso contribuiu o ser ele homem, mais velho dois anos, de inteligência mais robusta, e entregar-se
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ao estudo com muito mais ardor do que a jovem mestra, a qual, como quase todas meninas, apenas considerava
como um passatempo entre as bonecas e os doces. Em aritmética principalmente, Conrado ganhou logo grande
superioridade sobre Adelaide, de modo que trocaram-se daí em diante os papéis, vindo o discípulo a ser mestre,
e isso com grande contentamento de ambos, sem a menor sombra de inveja nem rivalidade.
Passaram-se assim dois anos, durante os quais Conrado deslizou vida serena e inocência e felicidade em
companhia de sua gentil patroazinha, sem inquietações no presente e com os olhos fechados ao futuro.
Passou-se mais um ano. Conrado havia completado os dezesseis anos, e Adelaide achava-se entre os treze e os
quatorze. O véu da inocência começava a adelgaçar-se ante os olhos dos dois adolescentes; através das flores
do presente já começavam a entrever vagamente os espinhos do futuro. Conrado principalmente já não
desconhecia a natureza do afeto que o ligava à sua gentil mestra e patroa, e compreendia vagamente que
aquelas doces relações até ali entretidas não poderiam continuar por muito tempo; que uma grande distância na
ordem social separava o órfão desvalido, camarada ou capataz da rica e ilustre herdeira de uma família distinta.
Já previa uma dolorosa e inevitável separação, e uma nuvem melancólica lhe pairava sobre a fronte,
evolvendo-a em cismas de desalento e amargura. Adelaide, mais nova ainda, não sentia bem o peso de sua
situação; mas o sentimento instintivo do recato ia por si mesmo impondo um freio às infantis e ingênuas
expansões que costumava ter com seu companheiro de infância. Já ela não freqüentava mais a escola, e o major
havia definitivamente fixado a sua residência na chácara. Conrado, já tendo entrado no período da puberdade,
era com mais freqüência empregado por seu patrão, que nele tinha toda a confiança, apesar de sua pouca idade,
em serviço de muladeiro, negócio em que ainda continuava, mais por inclinação do que por interesse. Desejava
também que o seu jovem capataz empreendesse algum negócio por sua própria conta a fim de ir começando
algum pecúlio que lhe garantisse o futuro, e para esse fim já o tinha abonado com certo número de bestas.
Esses afazeres motivaram freqüentes ausências, e os dois meninos já não se viam tanto a miúdo, e bem raras
ocasiões tinham de se falarem. A sala do major abria-se às vezes a famílias distintas, e a nobres cavalheiros,
que o iam visitar e fazer a corte à formosa e interessante Adelaide. O infeliz Contado, simples e humilde
camarada, não podia tomar lugar no meio de tão ilustre companhia, e tinha de morder aos beiços de raiva e de
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despeito, quando o major às vezes o chamava para trazer um copo de água a algum jovem elegante, que se
repoltreava ufano junto de sua jovem patroa. Além disso, Adelaide tinha mestres de música, dança, desenho e
francês, cujas lições lhe consumiam largas horas, e Conrado, que não podia tomar parte delas, amaldiçoava do
fundo dalma todos esses professores, e bem quisera manda-los a todos os diabos.
Este afastamento inevitável em que novas circunstancias vieram coloca-los, enchia de angustias e amarguras o
coração do pobre rapaz. Adelaide, de índole mais leviana e volúvel, se bem que não perdesse o afeto que
consagrava ao seu camarada de infância, achava todavia distração bastante no piano, no estudo e nas
homenagens e gabos, que recebia na sala de visitas. A vaidade afagada lhe enchia a imaginação de sonhos
dourados e fazia com que adormecesse algum tanto o sentimento íntimo e profundo, que desde a infância lhe
germinara no coração. O mancebo, a quem não escapava essa modificação no procedimento de Adelaide,
sentia apertar-se-lhe o coração entre as garras da mais cruel angústia.
Um dia, estavam ambos no jardim. Adelaide, sentada em um banco de pedra, aspirava negligentemente o
aroma de algumas flores, que Conrado colhera para ela, passeando olhares vagos pela imensa perspectiva, que
se desdobrava a seus olhos, envolta nos diáfanos vapores de uma tépida e serena tarde de agosto. As vastas
lesírias, que se estendem pelas margens do Tietê, verdejavam além, ampla e viçosa tapeçaria, marchetada aqui
e acolá por moita de coqueiros e bananeiras, no meio das quais alvejava sorrindo uma casinha, como branca
pomba atufada em ninho de musgo. Adelaide, com o pensamento absorto em vagas cismas, parecia
comprazer-se em acompanhar com as vistas as voltas da corrente preguiçosa do rio através das balsas
verdejantes. Conrado, em pé, colocado em respeitosa distância alguns passos atrás dela, a contemplava com um
olhar repassado de melancolia, que exprimia a um tempo o mais terno enlevo e o mais amargurado desalento.
Ela estava resplendente de beleza; surgia-lhe o busto por entre as moitas de flores, que a circundavam, como o
de uma hamadríade nos bosques da Arcádia, ou como fada que sai do seio das flores para alar-se às regiões
etéreas. Os raios do sol poente, amortecidos pelos vapores da atmosfera resvalando-lhe pelo rosto, matizavam
sua tez morena e acetinada com uns reflexos dourados.
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Conrado, contemplando-a, cuidava estar vendo um anjo que, abrindo as asas, ia içar o vôo para o céu e
desaparecer para sempre a seus olhos, e, todo embebido naquela visão que o fascinava, não via, não ouvia mais
nada. Adelaide, também profundamente distraída, não olhava para ele. Um suspiro mal abafado a despertou;
volveu de súbito as vistas para o mancebo, que não teve tempo de enxugar suas grossas lágrimas que lhe
rolavam silenciosas pelas faces.
– Que tens, Conrado? – exclamou Adelaide, consternada e comovida. – Que tens, que estás assim a chorar?!...
– Eu?... É verdade!... – balbuciou, perturbado, o pobre moço. – Sim, eu estava mesmo a chorar.
–Mas por que, meu Deus?...
– Ah! nem eu sei... Uma coisa, que eu mesmo não sei explicar, uma idéia triste veio me apertar o coração. Eu
estava olhando para a patroa, bonita como está, mas tão calada e pensativa, e estava me parecendo que era o
meu anjo da guarda, que estendia as asas para o céu, e me ia abandonar para sempre; fiquei triste, e as lágrima
me acudiram aos olhos.
– Eu também nada tinha de alegre em meu coração, Conrado. Meus olhos se estendiam por essas várzeas e
nada viam; não sei que pensamento sinistro me passava pela mente.
Dizendo isso, à moça tirou de seu ramalhete uma perpétua, levou-a aos lábios, e, entregando-a a Conrado,
retirou-se precipitadamente.
Ela também tinha necessidade de chorar.
Capítulo XIII
Começa a desilusão
Conrado e Adelaide continuaram a amar-se, mas com essa paixão triste, reservada e resignada que não
amortece, mas antes pelo contrário se fortifica e afervora com as contrariedades; que estremece, mas não
desalenta, com as apreensões do futuro. Não podiam e nem se animavam a dar franca expansão a um amor,
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cujas funestas conseqüências entreviam vagamente. Posto que jovens, eram inteligentes e tinham tino bastante
para calcular as contrariedades e desgraças, que os aguardavam no futuro. Eis por que os encontramos
acabrunhados de tristeza na cena do jardim. Vagos pressentimentos começavam a enturvar com uma ligeira
nuvem de melancolia essas frontes juvenis, até ali tão serenas e radiantes de felicidade.
Depois que o major teve a desastrada mania de atrair à sua casa uma chusma de estudantes, bem se pode
compreender em quantas novas torturas as inquietações e ciúmes fariam estorcer-se o agitado coração do
mancebo.
Não podia escapar à sua penetração o motivo que levava seu patrão a promover essas freqüentes reuniões de
estudantes de classes elevadas; para ele era evidente que o major tinha em vistas ajeitar entre eles um bom
marido para a menina. Para cúmulo de angústia ele bem percebia que sua vaidosa patroa se deixava inebriar
nos turbilhões de incenso que a envolviam, e ao menos na aparência abandonava-se de bom grado ao enlevo
das sedutoras homenagens, que todos os dias lhe eram depostas aos pés. Contar os dias de tribulação que
passou, e as noites de angustiosa insônia, que levou nessa quadra fatal, seria uma jeremíada sem fim.
No dia em que Adelaide recebera a carta fatal, que conhecemos, Conrado estava em seu quarto, solitário, dando
livre curso às suas mágoa e cuidados, quando ela entrou rápida e inesperadamente com a fisionomia alterada e
mais rubra que de ordinário, trazendo na mão um papel, que amarrotava entre os dedos convulsos. O simples
fato de apresentar-se ela sozinha em seu quarto já era um motivo de surpresa para Conrado, onde Adelaide
depois que se tornara moça, entrava raras vezes, e sempre acompanhada por alguém. A singular expressão do
gesto arrebatado e a fisionomia transtornada da moça fizeram subir de ponto sua estranheza.
– Que é isso, patroa?... O que há de novo?! – exclamou, levantando-se bruscamente da cama, onde se achava
meio reclinado com a face encostada sobre a mão.
– O que há, o senhor vai ver já, se quiser ler esse papel – respondeu com um acento áspero e convulso,
entregando o papel a Conrado – Leia, mas só para si; poupe a meus ouvidos semelhantes infâmias. Que
insolência, meu amigo!... Que ultraje!...
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Estas palavras – meu amigo – que na expansão de sua cólera escaparam aos lábios de Adelaide, soaram como
um hino mavioso aos ouvidos de Conrado. Travou do papel e começou a ler com ávida curiosidade os versos
injuriosos, de que fizemos menção. É difícil explicar as impressões múltiplas e encontradas, que semelhante
leitura suscitou de chofre no espírito do mancebo. Por um lado, não podia deixar de indignar-se contra a
audaciosa petulância do perverso, que não hesitara em insultar a uma linda, inofensiva e cândida donzela,
arrancando lágrimas de despeito e vergonha àqueles olhos formosos, pelos quais era capaz de dar a vida.
Conhecesse ele o autor de tão miserável procedimento, que iria sem hesitar, naquele primeiro ímpeto de cólera
, cravar-lhe uma bala na cabeça.
Por outro lado, porém lhe parecia que aquele injurioso papel era o prenúncio de inevitável ruptura entre o
major e os estudantes, que dali em diante achariam sempre trancadas as portas da casa e não poderiam mais
requestar sua querida patroa. Era um peso que lhe tiravam de cima do coração, e quase bendizia o maligno
estudante, que teve a satânica lembrança de endereçar a Adelaide tão insultuoso pasquim. O pobre moço,
portanto, depois da leitura, que fez lentamente para dar tempo à reflexão, viu-se em supremo embaraço, e ficou
longo tempo silencioso sem saber o que devia dizer a sua jovem patroa.
– Então, que me diz a isto?... – perguntou, impaciente, a moça, que esperava da parte de Conrado uma explosão
de invectivas e ameaças ferozes – Não acha um desaforo inqualificável, um atentado, que não pode passar sem
castigo?...
––É verdade, minha bela patroa; isto é revoltante, e no meu entender não pode partir senão dessa corja de
estudantes, que o patrão velho tinha a imprudência de chamar para a casa.
– Disso estou eu certa; não me diz nada de novo – atalhou Adelaide, com enfado. – O que eu desejava saber era
qual deles foi que teve a petulância...
– Isso há de ser custoso – replicou o mancebo. – Eram tantos, e cada qual mais insolente...
– Não creia nisso. A nenhum deles maltratei, para dar-lhes o direito de me desfeitearem assim. Suponho que
isso não pode proceder senão daquele maldito bugre, muito feio e muito fusco, que queria a todo transe ser meu
mestre de música. Como o tratei com o desprezo, que merece, assentou de vingar-se por esse modo infame.
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– Pode ser que sim e pode ser que não. A patroa não podia fazer igual agrado a todos eles; bastava mostrar mais
agrado a um, para que os outros ficassem despeitados. A patroa não sabe com que gente perversa lidava!...
– Mas eu nunca mostrei preferência a nenhum – retorquiu a moça, erguendo a fronte com altivez.
– Não diga isso; perdão, minha bela patroa, mas às vezes, mesmo sem se querer, conversa-se mais com um do
que com outro. Eu penso que o autor destes versos tanto podia ser o bugre, de que a patroa falou, como o tal Sr.
Azevedo, esse antigo amigo do patrão, que ultimamente também andava emburrado em razão do... da amizade,
que a patroa mostrava ao sonso do sr. Belmiro.
Até Conrado iludia-se e tinha ciúmes do pobre Belmiro!
– Não sei, mas é preciso saber – respondeu Adelaide, com precipitação. – Fosse lá qual fosse, é-me
absolutamente necessário saber quem foi.
– Isso há de ser bem difícil, minha bela patroa, porque entendo cá para mim que foi toda essa corja, que de
comum acordo dirigiu-lhe essa desfeita.
– Não; isso não é possível... Diga-me uma coisa: o senhor não tem relações com algum desses estudantes? Não
costuma ir a casa deles?...
– Por desgraça minha tenho ido, quando o patrão tem a maldita lembrança de mandar-me com algum recado ou
carta de convite.
– Pois bem, é quanto basta. Nada lhe custa ir a casa de um ou outro, escutar o que se diz, puxar um ou outra
conversa... Por este meio por força havemos de saber quem foi, e ... ah!...
Adelaide interrompeu-se, exalando um suspiro de indignação.
– E depois, patroa? – perguntou respeitosamente Conrado.
– E depois... eu julgo que o senhor me tem bastante afeição, não é assim?
– Oh! muita! muita! – exclamou o mancebo, quase caindo aos pés de Adelaide.
– Portanto, não consentirá que fique sem vingança semelhante ultraje feito à sua patroa, não é assim?
–Sim, sem dúvida; mas o que quer a patroa que eu faça?...
– Que me vingue.
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– Bem! estou pronto... Mas como e de quem hei de vinga-la?... Se ao menos eu conhecesse o autor desse
miserável papel, eu iria procurar até o fim do mundo; tenho um bom cavalo, um clavinote e um par de
garruchas, que nunca negaram fogo, nem erraram o alvo...
– Não, não; não é preciso que mate, basta uma sova de chicote, ou umas bofetadas, em lugar bem público, na
cara do insolente.
– Oh! senhora, eu preferiria dar um tiro, ou uma estocada!... Mas se eu nem sei qual é o insolente...
– Ah!... hesita, não tem ânimo!... – replicou Adelaide, com melancólico desdém. – Eu julgava que o senhor me
tinha algum afeto, que se doía de minhas afrontas; mas agora vejo o contrário. Adeus!
E Adelaide, voltando as costas com um gesto desdenhoso, ia retirar-se.
–Perdão, minha querida patroa; escute-me ainda um instante. Eu quero, eu devo mesmo dizer-lhe certas coisas,
que talvez lhe esfriem esses desejos de vingança; mas tenho tanto medo de enfadá-la! – disse Conrado,
embargando-lhe a saída.
– Certas coisas!... Que certas coisas são essas? Ficarei enfadada se, se não me disser.
Antes de ouvir a resposta de Conrado, cumpre-nos interromper aqui o diálogo entre os dois jovens, para dar
certas explicações necessárias para compreender o seguimento do mesmo.
Conrado há muito tempo, e sem o querer, já sabia que a pretendida fidalguia do Major Damásio não passava de
fumo, que só existia em sua cabeça, fatuidade que se lhe encasquetara nos miolos e aderira a eles por modo tal,
que com o andar dos tempos se transformara em conscienciosa e profunda convicção. Talvez alguém, para
lisonjeá-lo ou zombar com ele, aproveitando-se da fraqueza de seu espírito, tomara o trabalho de persuadi-lo,
que ele era descendente genuíno do tronco dos Buenos e dos Andradas. Um dia, nas ruas de S. Paulo, um
homem vendo passar o jovem curitibano, e atraído por sua bonita figura, querendo talvez toma-lo a seu serviço,
travou com ele conversação e perguntou-lhe com bom modo quem e donde era, e em que se ocupava. O
adolescente respondeu franca e lisamente a todas as perguntas, e declarou que estava empregado como
camarada em casa do Major Damásio.
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– Oh! muito bem! está otimamente arranjado – disso o tal homem. – O major é excelente pessoa; só tem o
defeito de ser um fanfarrão muito tolo, que tem fumaças de branquidade e fidalguia, que nunca teve; mas lá
isso é uma sandice, que a ninguém prejudica...
– Como! – exclamou o rapaz muito surpreendido. – Pois ele não é mesmo branco e fidalgo, como diz?
– Não creia tal – respondeu o homem. – Que é aqui em S. Paulo que não sabe que ele é filho de um cigano e de
uma índia guarani, que foi peão ou domador de burros, e que se casou com uma mulata da casa de um figurão,
que foi quem o fez gente, e que teve dela uma filha, que... essa, sim, é fazenda fina.
Conrado não contestou, mais a princípio não quis dar inteiro crédito ao dito desse homem, e daí em diante, em
vez de ser interrogado, era ele quem interrogava com jeitosa precaução a uns e a outros, procurando
esclarecer-se sobre a verdadeira genealogia do patrão. De todos em geral ouviu a confirmação do que lhe
dissera seus primeiro interlocutor, e ficou plenamente convencido que a aristocrática estirpe de sua idolatrada
Adelaide tinha um dos seus troncos imediatos na senzala do cativo e outro na barraca ambulante do cigano e na
taba do selvagem. Essas revelações a princípio não deixaram de molesta-lo, não porque antevia com mágoa
extrema e cruel humilhação por que teria de passar o coração da pobre moça, quando chegasse ao
conhecimento de sua verdadeira origem, como tarde ou cedo teria de acontecer.
Entretanto, também não podia deixar de comprazer-se no íntimo da alma por ver sua querida patroa apeada
desse aristocrático pedestal, em que a fanfarronice do pai pretendia coloca-la, vendo assim destruída em seu
espírito a barreira que parecia separá-los.
– Somos iguais – refletia ele – se é que não sou superior, pois não me consta que meu berço resvalasse pela
senzala. A superioridade, que existe, é portanto só da riqueza; mas eu sei trabalhar, e um dia posso também
tornar-me rico.
Essas reflexões vinham dar mais azo e mais livre expansão à paixão do mancebo, até ali tão tímida e
concentrada; sentia porém que Adelaide estivesse ainda em tão completo engano a respeito de sua genealogia,
e como não tivesse ânimo para desiludi-la, esperava que algum feliz acaso viesse fazer cair-lhe a venda dos
olhos. Quando a viu rodeada dessa turba de moços elegantes que o major costumava reunir em casa, mil vezes
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teve ímpetos de ir declarar-lhe tudo; mas continha-se imediatamente; receava com todo o fundamento não ser
acreditado; semelhante revelação podia ser tomada até como um insulto, e o menos, que lhe poderia acontecer,
seria ser enxotado ignominiosamente da casa. O caso, portanto, nesta ocasião, fazendo chegar às mãos de
Adelaide o horrível pasquim dos estudantes, vinha servi-lo de um modo que ultrapassava todos os seus desejos
e esperanças.
Agora que o leitor já se acha inteirado de quais eram essas certas coisas, que Conrado tinha tanto medo de
revelar à patroa, prossigamos no diálogo, que deixamos interrompido.
–Certas coisas! – exclamou Adelaide. – Por que não as diz? Pode falar sem rebuço.
– Não sei se devo dizer... A patroa promete que não se enfadará?
– Pior é tanto rodeio; isto mata-me a paciência. Agora quero absolutamente que me diga que coisas são essas.
– Mas a patroa promete...
– Prometo tudo; tudo que quiser – atalhou Adelaide, impaciente. – Vamos ao caso.
– O caso, minha bela e querida patroa, perdoe-me se lhe falo com franqueza, o caso é este... é que...
Conrado hesitou ainda; a cruel revelação ficava-lhe entalada na garganta sem ousar querer aos lábios.
– É o que, meu Deus? – gritou a moça, batendo o pé, e mordendo os beiços de impaciência. – Acabe com isso,
senão vou-me embora, e nunca mais falo com o senhor.
Essa terrível ameaça acabou com toda a hesitação de Conrado!
– O caso é – disse ele resolutamente, que isto que dizem os versos não deixa de ser verdade.
– Verdade!... Isso verdade!... Até o senhor... O senhor também atreve-se a... a insultar-me!... Ah! – exclamou
Adelaide, empalidecendo com os olhos fuzilantes de cólera.
– Bem sabia eu que ia magoá-la – replicou o mancebo, consternado – mas perdoe-me, minha boa e linda
patroa; não sou eu que o digo; é o povo todo desta cidade.
– O povo todo... E como o senhor sabe?
– Sem o querer, minha senhora; não me leve isso a mal; todos por aí dizem a quem quer ou não quer ouvir que
a fidalguia do patrão não passa de ridícula fanfarronada, e atestam tudo quanto está escrito nesse maldito papel.
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– Basta, basta Sr. Conrado! Faltava-me ainda esta triste vergonha para tornar-me a mais infeliz das criaturas!
Dizendo isso, Adelaide deixou-se cair sobre um tamborete, que ali estava junto a uma mesa, e escondendo o
rosto entre os braços, desatou a chorar.
– Não chore, minha patroa. Que é isso!... Ah! meu Deus, quanto me arrependo de lhe ter contado semelhantes
mexericos!... Quem dá importância a tais falatórios?! Tudo isso sem duvida não passa de pura invenção de
alguns maldizentes e invejosos, que não gostam do patrão, por ser possuidor de uma boa fortuna e pai da moça
mais bonita que pisa nas ruas de S. Paulo. E que importa que o seu sangue não seja de Fidalga? Nem por isso a
patroa deixa de ser quem é, a mais bela, a mais nobre, a mais encantadora das moças... Ah! por quem é! não
continue a chorar assim! Desastrado que eu fui!... Perdoai-me, minha linda patroa; essas lágrimas, que está
chorando, me parece que são espremidas do meu coração.
Estas palavras que Conrado proferia, todo consternado e confundido, procurando consolar Adelaide, não
produziam sobre ela a menor impressão, e parecia mesmo que ela nem as ouvia. Levantou-se, pálida e trêmula,
e sem dizer mais nada ia retirar-se.
– Está mal comigo? – perguntou timidamente o mancebo.
– Não, - respondeu Adelaide com tristeza – mas bem vê que a notícia que me traz nada tem de agradável.
Quero saber, se sou isso mesmo que o senhor diz.
– Perdão, patroa; não sou eu que digo; é o povo.
– Pois bem, seja assim. Quero e hei de saber se é verdade o que diz o povo. É bom que cada um conheça o seu
lugar.
– Ah! minha senhora, não há motivo para se afligir tanto – continuou Conrado, tentando ainda um esforço para
atenuar o efeito do golpe doloroso, com que acabava de fulminar a vaidade da moça – O nascimento nobre ou
obscuro é coisa que nada significa em nosso país. Se formos apurar a geração de muita gente graúda que por aí
anda blasonando fidalguia, há de se ver que os troncos, de que descendem, não são em nada melhores do que o
da patroa. Em nossa terra é uma sandice querer a gente gloriar-se de ser descendente de ilustres avós; é como
dizia um velho tio meu: - no Brasil ninguém pode gabar-se de que entre seus avós não haja algum que não
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tenha puxado flecha ou tocado marimba. O talento, a bondade, e principalmente a riqueza, é que dão
importância às pessoas. A patroa, além de rica, é boa, pura e bela como um anjo, e por isso há de sempre
ocupar na sociedade uma posição brilhante...
–Brilhante!... Ah! sim! servindo de chacota ao povo e de joguete aos estudantes!... Ditas essas palavras,
Adelaide retirou-se bruscamente, deixando Conrado entregue à mais ansiosa inquietação.
– Que irá ela fazer? – ficou ele pensando – cheio de arrependimento e tremendo pelas conseqüências da
revelação que acabava de fazer. – Se vai levar tudo aos ouvidos do patrão, estou perdido! Desarrozoado como é
ele, principalmente neste particular, vai fazer uma estralada de mil demônios, e por certo não serei eu o
poupado, eu que lhe machuquei o melindre, que pisei em cheio no rabo da cainana!... Ah! permita Deus que tal
idéia não passe pela cabeça de Adelaide!
Capítulo XIV
Cai de todo a venda
Eram de todo infundados por este lado os receios de Conrado. Adelaide, saindo do quarto de seu jovem
camarada, correu imediatamente para seu aposento a fim de coordenar seus idéias agitadas, cobrar alguma
calma e refletir sobre o meio que empregaria para ter pleno conhecimento da verdade a respeito da sua
genealogia, que agora via ameaçada de ser de súbito arrojada do solar da mais alta fidalguia à pocilga das
senzalas. Tinha toda confiança em Conrado, e dava inteiro crédito às suas palavras; mas, no caso melindroso de
que se tratava, teve certos motivos para desconfiar e tornar-se incrédula. Cismou que o moço, não podendo
elevar-se até ela pelo lado da geração, levado talvez também por ciúme e despeito, queria rebaixa-la até a si.
Adelaide não levou muito tempo a refletir; veio-lhe logo à lembrança a preta Lucinda, a escrava mais antiga do
major, cozinheira, copeira e quase mordoma da casa desde tempos imemoriais, e que impreterivelmente devia
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saber a genealogia dos progenitores de sua sinhá moça. Foi logo procura-la e, depois de uma breve conversação
e rodeios preliminares, começou o interrogatório.
–Você conheceu bem mamãe, não é assim, Lucinda?
– Como não, sinhá? Por sinal que era uma mocetona bonita mesmo, sinhazinha é o retrato dela.
– E minha avó, a mãe de mamãe, você também conheceu?...
– Ah! essa conheci também... era...
A preta hesitou e calou-se.
– Quem era? Fala! Não sabes de que família era? – insistiu Adelaide.
– Não sei, não, sinhazinha; branco é que sabe dessas coisas.
– Nem sabes me dizer se era de boa gente?
– Ah! sinhazinha, pois o sinhô velho havia de casar com gente ruim?...
– Pois escuta, Lucinda; eu já ouvi dizer que papai é filho de um cigano, e que a defunta mamãe foi forra na pia.
– Cruz! Ave Maria! – exclamou a preta, arrepiando-se toda, mas com certo risozinho expressivo, que a seu
despeito significava muito. – Quem é que anda contando essas candongas a sinhazinha?... Não sei disso não;
cruz!
– Você bem sabe, Lucinda; é porque não quer me contar.
– Qual, sinhazinha; isto é mexerico de gente que não tem que fazer. E sinhazinha que importa com isso
agora?... Deixa a boca do mundo falar. Sinhô é rico, não é assim? Sinhazinha é bonita, prendada, e eu não vejo
aí na cidade moça nenhuma que lhe chegue aos pés. Tira isso da imaginação, sinhazinha.
Adelaide era de espírito fino e atilado; compreendeu perfeitamente as respostas evasivas e o riso ligeiramente
sardônico da velha escrava; para ela não existia mais dúvida alguma; o que o povo assoalhava a respeito de sua
ascendência era a pura verdade. Foi violento e profundo o desgosto que sentiu ao ter a certeza da humildade de
sua procedência, mas não foi de muita duração. O major também ficou sumamente acabrunhado com a chacota
dos estudantes e jurou pelas cinzas de seus antepassados nunca mais abrir sua porta a nenhum deles, nem
mesmo que viesse recomendado pelo compadre Tobias. O pobre Conrado estava como esmagado sob o peso da
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nova e tormentosa crise, por que passara a casa do patrão, crise ocasionada a princípio pelo pasquim dos
estudantes, e agravada depois pelas indiscretas revelações que fizera à patroa. Ouvia os passos do major, a
passear de um para outro lado pelas salas e corredores da casa e a resmungar com voz carregada frases de
indignação, que não podia bem ouvir, e esperava, aterrado, as conseqüências do despeito e da cólera do pai e da
filha. Adelaide também deixava de aparecer, e se havia recolhido, triste e amuada, a seu aposento a fim de
chorar a sós a injúria e humilhação por que passara. Tudo isso vinha avivar a inquietação do mancebo, que,
apesar de lhe ter Adelaide asseverado que não estava mal com ele, nem por isso deixava de nutrir as mais
aflitivas apreensões.
Os leitores notaram por certo o desplante e seguridade com que Adelaide pedira a seu pai que deixasse por sua
conta o negócio dos estudantes; viram também como esse espírito de vingança achou-se desapontado e
encolheu as asas com as revelações de Conrado e as respostas evasivas de Lucinda.
– Então, minha filha, que fizeste? – perguntou o major, no dia seguinte, à sua filha, vendo que ela nem tocava
em semelhante assunto. – Não me pediste que deixasse por tua conta o castigo dos biltres que te insultaram?
– É verdade, papai! – respondeu a moça, com ar constrangido – mas depois refleti que mexer nessa porcaria era
dar-lhe vulto e importância, que ela não merece. Tranquemos a porta a essa canalha, fiquemos em nosso canto
e deixemos o mundo falar. Tudo o mais é desafiar escândalos, que nos virão encher de maior vergonha ainda.
– Como?! – replicou o major, empertigando-se. – Eu amuar-me a um canto e consentir que vivas também
sepultada na obscuridade, a ti que, por teu nascimento, tua formosura e tuas prendas, nasceste para brilhar no
mundo! Não faltam homens de todas as classes e de todas as condições, que até se darão por muito honrados
em freqüentar nossa casa; homens sisudos, doutores, médicos, militares, e não essa corja de farroupilhas e
pelintras, libertinos sem moral nem religião. Não! nunca! nunca!... E tudo isso só por causa de um biltre
insolente, que nos mimoseou com um papel sujo!... Oh! não, não, mil vezes não!... Que não conhece o major
Damásio Augusto Bueno de Aguiar e Andrada?
– Sim, meu pai; não duvido do que diz; mas todos esses figurões serão também capazes de nos atirar lama à
cara no dia em que eu não quiser corresponder à... Oh! meu pai, deixemos de nos intrometer nem com
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estudantes, nem com fidalgos; fiquemos sossegados em nossa casa, e deixemo-nos de bazófias. Cada um deve
conhecer o seu lugar; não há coisa pior do que andar alardeando fidalguia, mesmo para quem a tem.
Estas palavras penetraram como lâminas de gelo no coração do major, que encarou a filha de alto a baixo,
cheio de espanto e confusão. Era a primeira vez que a ouvia falar com tanto desembaraço, tendo em pouca
conta e como que pondo em dúvida a nobreza de sua linhagem. Quem teria transtornado assim as idéias da
menina? Não podia capacitar-se de que a simples leitura de um miserável pasquim a levasse a descrer da alta
procedência de sua genealogia. Entretanto, percebeu que a ilusão, em que pretendia mantê-la, tendia
evidentemente a desvanecer-se, e isso era a mais horrível das provações por que podia passar a fatuidade do
major.
– Então, desconheces a nobreza do teu nascimento? – perguntou ele, querendo sondar o espírito da filha.
– Não desconheço, e nem conheço, meu pai; e o melhor seria mesmo nada saber.
A esta réplica, curta e incisiva, o major nada ousou objetar, e embuchou todo amuado e de mau humor.
Desde esses dia, a casa do major mudou completamente de aspecto; a alegria, o movimento e a vida que até
então ali reinavam foram substituídos por um silêncio monástico, por uma solidão quase absoluta. A porta da
entrada estava sempre trancada, e não se via mais, às tardes, o bom do major emoldurado em seu alpendre de
trepadeiras, fumando tranqüilamente o seu havana, esperando a chegada de algumas dessas visitas, que com
sua conversação costumavam suavizar-lhe as horas do quilo.
Assim passou-se cerca de um mês, durante o qual a chácara do major parecia jazer em muda e apática inação, e
quem por ali passasse pensaria que os habitantes dela estavam de nojo pela morte de algum dos membros da
família.
O autor e os cúmplices do insolente e horrível atentado, que pôs por terra a aristocrática prosápia do major,
nunca mais lhe puseram os pés em casa; outros estudantes, porém, alheios a essa trama satânica, ma adoradores
apaixonados de Adelaide e pretendentes às suas graças, lá lhe foram bater nos ferrolhos. Mas Adelaide não lhes
apareceu, e o major os tratou com tão cerimoniosa frieza, que saíram com a firme resolução de nunca mais lá
voltarem.
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Belmiro também, que seduzido por falazes aparências ainda nutria algumas lisonjeiras ilusões, lembrando-se do
convite, que tivera para dar lições de violão à menina, animou-se a ir um dia à casa do major. Não foi bem mais
sucedido que os outros, Adelaide foi também invisível para ele, e o pai só apareceu para declarar-lhe
positivamente que a filha não queria mais estudar violão, e que de mais a mais estava resolvido a cortar todas
as suas relações com estudantes. Belmiro, que estava ao fato das ocorrências, mas que realmente não tomara
parte nelas, antes reprovara alta e categoricamente o procedimento de seus colegas, começou a balbuciar
algumas frases, tentando em vão justificar-se; seu discurso foi atalhado in limine, e teve de retirar-se como os
outros, inteiramente desapontado e desencantado. No dia seguinte, compôs e atirou às auras da publicidade
algumas estrofes descabeladas, repassadas de fel e desespero, em que prometia suicidar-se. Mas não consta que
cumprisse a promessa, nem tampouco que seus versos fossem lidos por Adelaide.
Antes de terminar este capitulo, não é indispensável declarar que, assim como Belmiro, nenhum dos outros
seus companheiros, que no começo desta história achamos reunidos na casa da Rua da Constituição, teve parte
na cruel vindita, com que alguns desalmados procuraram desforçar-se dos desdéns da filha do major.
O Azevedo também não foi entrado nessa trama, pois quando ela se deu, já se achava ausente em férias.
– Então, como vai a tua Adelaide? – perguntou ele, em março do ano seguinte, a Belmiro, com quem se
encontrou na Academia.
– A minha Adelaide!... Tão minha quanto tua.
– Sim?! Então não prosseguiste com o teu namoro?... Pois é pena; ia tão bem encaminhado...
– Ora, deixe-te disso, Azevedo? Se foste tu mesmo que atrapalhaste tudo!...
– Como! Eu?...
– Ora, como!... Apresentando lá o Couto.
– Pois que tinha o Couto?
– Que tinha?!... Não te faças assim desentendido.
– Ah!... é verdade!... Agora me lembro; o major, que é todo afidalgado, não gostou...
99
– Pois bem, hás de também estar lembrado que, no primeiro dia que lá fui, dei a D. Adelaide um cravo caboclo,
caso de que muito te aproveitaste para manter-me à bulha.
– Isso é verdade.
– Pois sim; tu fizeste pior. Eu dei-lhe flor cabocla, mas mui linda e mui cheirosa, e tu lhe ofereceste um
verdadeiro caboclo de carne e osso, que a dizer-te a verdade, não é dos mais lindos, e para que? Para seu mestre
de música!... Confessa que fizeste aquilo por despeito e de propósito para achincalhar a moça.
– Não, meu Belmiro, acredita-me; como vi que ela gostava muito de música, foi só para tirar-te essa vantagem
que apresentei o Couto, compreendes?... Eu queria reconquistar a posição de que ias me desalojando.
– E com isto produziste a mais temível das crises. O meu cravo caboclo foi o prólogo desse drama; o teu
violonista caboclo produziu o entrecho; o pasquim dos estudantes trouxe o terrível desenlace.
– Qual pasquim?... Conta-me isso.
Belmiro contou então a historia do abominável epigrama e da ruptura completa de relações, que produziu entre
a família do major e os estudantes.
– Agora é escusado lá ires mais – terminou. – nem o major nem Adelaide querem ver mais estudantes nem
pintados.
– Melhor! – disse friamente Azevedo. – Também aquelas viagens já me iam enfadando, e roubavam-se muito
tempo.
Assim pois, tanto o major e sua filha como eu e o leitor, daqui em diante, ao menos por muito tempo, vamos
nos ver livres de estudantes.
Capítulo XV
Mudança completa de situação
100
Grave e profunda modificação começou a operar-se desde essa época no espírito e no coração de Adelaide.
Com o cruel desencanto que sofreu, tendo a certeza que seu berço, longe de ter sido embalado entre as galas da
aristocracia, se escondia na mais humilde obscuridade, ela, acostumada a ser sempre idolatrada, recebendo
quotidianamente as lisonjeiras homenagens de gentis e ilustres cavalheiros, não fez pequeno sacrifício para
acomodar-se com o novo gênero de vida de recolhimento e solidão, que a si própria tinha imposto, contrariando
as vistas paternas. Mas não durou muito tempo esse estado de angústia e prostração; seu espírito vivaz e feliz e
vigorosa organização não eram feitos para sucumbir ao peso de qualquer desgosto.
Tinha ela inteligência bastante clara, e sabia filosofar maravilhosamente, e bem depressa compreendeu que lhe
não era mais possível contraria a sorte, boa ou má, a que nascera destinada.
A consciência humana é como um tanque cujo fundo não se pode ver, quando a água está turvada e revolta,
mas sim quando, em estado de perfeita inquietação, se mostra em toda a sua serenidade e limpidez. É assim
que Adelaide, depois que se recolheu à vida do silêncio e do repouso, livre das distrações, que lhe arrebatavam
o tempo, e das inquietações, que lhe alvoroçavam o espírito, pôde ler distintamente, no fundo do seu coração, o
que realmente ai se achava gravado em caracteres indeléveis. Reconheceu que amava muito a seu companheiro
de infância, que fora esse amor que a tinha preservado de ligar-se por laços mais íntimos a algum dos amantes
que até ali a tinham galanteado, e que somente a consideração da pretendida desigualdade de posição social
fizera com que até ali ela, procurando iludir-se a si mesma, tentasse em vão esquivar-se à influência desse
sentimento, que desde a infância havia germinado e pelo decurso do tempo lançado raízes profundas em seu
coração. Agora que as revelações de Conrado acabavam de nivelar as condições de ambos, não tinha mais de
que corar, consagrando os afetos de sua alma a um homem que era seu igual. A esperança de um amor feliz a
bafejava, e parecia-lhe possível conseguir que se pai, desistindo de suas loucas pretensões aristocráticas,
firmasse enfim a felicidade de ambos consentindo em seu casamento. Em conseqüência, suas relações com o
jovem camarada foram se tornando menos tímidas, e mais assíduas e afetuosas. Adelaide tinha o coração
propenso ao amor e à ternura, e um temperamento vigoroso e ardente, sobre o qual a sensualidade exercia
naturalmente grande domínio. No isolamento, a que se viu condenada, parte por forças das circunstâncias, parte
101
por sua própria deliberação, essas qualidade ou defeitos, em vez de se refrearem, desenvolveram-se em toda a
sua plenitude, porque acharam para isso já predispostos condições e elementos os mais favoráveis.
As freqüentes reuniões, que se davam em casa do major, de uma sociedade espirituosa e alegre, faziam
profícua diversão às tendências do organismo de Adelaide; mas logo que elas faltaram, sua natureza ardente,
sanguínea e exuberante de seiva juvenil, entregue a si mesma, teve de ir cedendo à imperiosa influência das
seduções do sensualismo e dos sonhos inebriantes do coração.
Tinha um coração sequioso de amor; o objeto desse amor já há muito estava escolhido, vivia junto dela, e fora
embalado em sua imaginação desde os sonhos inocentes da puerícia.
–Há males que vem para o bem – disse ela um dia ingenuamente a Conrado.
– É verdade; mas a que vem isso agora? – perguntou este.
– Pois não compreende?...
– Não.
– No tempo em que eu me julgava fidalga, lhe queria bem, é verdade; mas tinha não sei que receio ou vergonha
de lhe falar nisso. Isso, pode acreditar que era muito contra a minha vontade; eu vivia constrangida, e era bem
infeliz, porque julgava que estava condenada a casar-me com quem meu pai quisesse; estudante, doutor ou
fidalgo. Isso para mim era um suplício, se bem que não deixasse de divertir-me à custa dessa gente que se
reunia aqui em casa. Hoje não; sou outra; já sei quem sou. O senhor me entende, creio eu.
– Oh! sim, sim, creio que sim! – exclamou o mancebo em uma efusão de júbilo que mal podia comprimir. Se
não estou enganado no modo de entender suas palavras, minha querida patroa, sou a criatura mais feliz deste
mundo.
– Não se engana; é isso mesmo que o senhor pensa – respondeu corando Adelaide, e ia retirar-se; mas Conrado
a deteve, e, travando-lhe da mão, beijou-a com ardor.
– Oh! mil graças! – dizia o mancebo, apertando com indizível emoção entre as suas a mão que Adelaide lhe
abandonava. – Mil graças!... Não faz idéia do quanto me torna feliz.
102
Depois desta singela e ingênua declaração de amor, feita por meias palavras, os dois jovens se entregaram sem
constrangimento à expansão de um sentimento que, de dia em dia, se tornava mais intimo e extremoso,
conquanto procurassem cuidadosamente ocultá-lo aos olhos do major, que, entretanto, não era muito perspicaz
para surpreender os segredos do coração.
Adelaide era como o leitor já sabe, de uma beleza plástica e mais provocadora. O seio túrgido, sempre arfando
em mórbida ondulação, parecia o ninho da ternura e dos prazeres; o olhar, a um tempo cheio de meiguice e de
fogo, como que derramava fulgores divinos sobre toda a sua figura; as faces róseas os lábios purpurinos eram
como esses pomos vedados, que no paraíso seduziram os progenitores da humanidade e ocasionaram sua
primeira culpa; e o porte dotado de elegância natural, com suas voluptuosas ondulações e meneios graciosos
pareciam estar cantando eternamente o hino de amor e de volúpia; as feições, não muito corretas, eram
animadas por uma fisionomia de tão encantadora expressão, que impunha a adoração, sem dar tempo à
observação.
Conrado, também dotado pela natureza de um porte esbelto e vigoroso, de uma fisionomia simpática e
expressiva, de maneiras lhanas e atrativas, com sua tez de um moreno delicado, seus olhos negros e cheios de
fulgor, havia-se tornado um dos mais belos e amáveis mancebos, um tipo acabado desses ágeis e garbosos
gaúchos, que vagueiam pelos descampados pampas das regiões argentinas. Era enfim, como bem o havia dito
um estudante, um verdadeiro Adônis americano.
O major, ora trancado em seu gabinete, ora na quinta dirigindo o trabalho dos escravos, parecia esquecido que
tinha em casa uma filha de dezesseis anos em companhia de um bem apessoado rapaz de dezenove a vinte, e ou
porque tivesse nela absoluta e cega confiança, ou porque não compreendesse quão melindroso e frágil vaso é a
honestidade de uma donzela, não nutria a menor apreensão. A tia Eulália, irmã do major, essa era de todo
incapaz de compreender o que se passava em torno dela, e só cuidava em dar milho às galinhas e em rezar. A
velha escrava Lucinda, a única que talvez já maliciava alguma coisa a respeito das relações entre os dois
jovens, nenhum interesse nem obrigação tinha de embaraça-las... Debaixo de tão felizes auspícios e com tantas
facilidades, os amores de Adelaide e Conrado deram em resultado o que deixo o leitor adivinhar.
103
Conrado, moço dotado pela natureza dos mais nobres sentimentos, cheios de honra e pundonor, tinha até então
adiado o pedido, que pretendia fazer ao major, da mão de sua filha, e isso de acordo com ela. Pretendiam, antes
de dar esse passo, preparar o terreno, procurando desvanecer as bazófias e prejuízos aristocráticos do velho, e
por meios brandos e suasivos reduzi-lo a sentimentos mais cordatos e razoáveis. Coitados! quanto se
enganavam!... Mal pensavam que era isso uma empresa absurda e quase impossível. Mas nutriam essa
esperança, e isso os desculpa.
Depois de sua falta, porém, Conrado compreendeu e fez sentir à sua amante que não convinha haver mais
dilatação, e que era forçoso resolver quanto antes, de um modo franco e expedito, as dificuldades de sua
situação. O que mais afligia ao mancebo era seu estado de pobreza; pouco possuía para abalançar-se e pedir a
mão da filha de tão opulento negociante. Era isso só o que o humilhava, porque só nisso consistia sua
inferioridade; quando ao mais, estava pronto a apresentar-se ao major como igual a igual, embora com isso
tivesse de ofender as estólidas veleidades aristocráticas do patrão. Refletindo nisso, tomou uma resolução
inspirada por seus nobres sentimentos.
Muitos negociantes e muladeiros, simpatizando com o seu modo de proceder, sua honradez e atividade,
tinham-lhe por diversas vezes oferecido a bolsa, para que negociasse por sua própria conta. O rapaz porém tudo
havia rejeitado até ali, pretextando diversos motivos, mas realmente pelo simples motivo que ele não declarava,
de não querer abandonar a casa do pai de sua querida patroa. As circunstancias agora eram outras; tinha
chegado a ocasião de aproveitar-se dos generosos oferecimentos de seus amigos.
Depois de ter comunicado todos os seus planos a Adelaide, que os aprovou, apresentou-se ao Major Damásio.
Patrão – disse ele – eu já estou homem feito; preciso tratar do meu futuro; o patrão quase que não trata
mais de negócios; a minha estada aqui não lhe é mais de utilidade alguma; e bem vejo que só por pura afeição e
generosidade que me conserva em sua companhia. O patrão tem sido para mim um verdadeiro pai, e portanto é
meu dever pedir sua licença para me deixar sair em negócio por minha própria conta.
– Sim!?... Não acho mau isso – replicou o major, com ar verdadeiramente paternal – mas o que vai fazer? Onde
pretendes ir?
104
– A Sorocaba ou Curitiba comprar uma boa mulada.
– Deveras!... Mas com que dinheiro?
– O patrão não se embarace com isso; tenho quem me abone.
– E por que não me vieste pedir? Ou em dinheiro ou em abono, bem sabes que eu não era capaz de negar-te.
– Sei disso, patrão, e beijo-lhe as mãos, mas já lhe tenho sido bastante pesado, e não tive ânimo de
importuna-lo.
– Vá feito; porém se precisardes de mim em qualquer ocasião, conta comigo, Conrado. Bastante falta me vais
fazer; mas não quero atrapalhar a tua carreira. És rapaz esperto, e tenho esperança de que bem depressa hás de
fazer fortuna.
– Deus o ouça, patrão; mas não pense que me despeço por uma vez de sua casa; apenas der conta de meus
negócios, bem ou mal sucedido, é aqui mesmo que hei de vir apear-me.
– Serás sempre bem recebido. Quando te vais?...
– Hoje; agora mesmo.
– Que pressa!... Pois bem!... Deus te ajude. Adeus!...
– Até à volta, patrão.
Um momento depois, Conrado e Adelaide se abraçavam, despedindo-se às escondidas, e vertiam no seio um do
outro lágrimas amargas entre vagas esperanças e pungentes receios no futuro. Amavam-se como sempre, mas já
não eram felizes como dantes. A verdadeira felicidade consiste na serenidade da alma, que resulta da inocência
; só quem não vê nas sendas do passado nem um só ponto escuro pode encarar com tranqüilidade e confiança
os horizontes do futuro. Todavia, a esperança ainda os não havia abandonado e bafejava-lhes a mente com
lisonjeiros sonhos de felicidade.
Capítulo XVI
O Hóspede
105
Passaram-se uns meses de cruel angustia para Adelaide, e de fragueira e incansável atividade para Conrado. A
desditosa moça sentia agitar em seu seio o fruto da fraqueza que caíra, fatal circunstância que vinha agravar
muito sua precária e melindrosa situação.
Desde que a casa do major se fechou à sociedade, Adelaide se foi habituando a certo gênero de vida de
reclusão e isolamento, que a triste circunstância, que acabamos de declarar, veio tornar não só cômoda e
agradável, como mesmo necessária. Seu trajo já não lhe merecia os mesmo cuidados e preocupações de
outrora. Seus enfeites, rendas, flores e fitas há muito jaziam esquecidos no fundo do guarda-roupa. O piano,
esse alegre e gárrulo intérprete das alegrias e emoções de outros tempos, tinha emudecido para sempre.
Somente o jardim lhe merecia ainda alguns cuidados e atenções. Ali descia ela às vezes pela manhã ou pela
tarde, envolvida em uma longa mantilha, o rosto e toda a parte anterior do corpo cobertos com um véu, trajo
pitoresco, de que mesmo algumas paulistas de distinção usavam ainda naquele tempo, e ali passava algumas
horas de saudade e melancolia entre suas flores queridas, únicas companheiras de sua solidão.
O major, homem que só tinha a susceptibilidade da fidalguia, e que desconhecia completamente a delicadeza
dos outros sentimentos e paixões do coração humano, nem de leve suspeitava o verdadeiro motivo desse
melancólico recolhimento, a que a filha se condenava, e julgando ser ainda o despeito e ressentimento em
razão dos apodos e pasquins dos estudantes, esperava que o tempo viesse por termo a esse triste estado de
misantropia e displicência.
Vendo porém que, com o decurso do tempo, longe de minorar agravava-se de mais em mais esse estado de
tristeza e retraimento, começou a inquietar-se com justa razão, e com o fim dar-lhe alguma diversão, propôs
passeios e distrações, a que Adelaide obstinadamente se recusou.
Desanimado e desgostoso com tanta relutância o major, cedendo às sugestões de seu gênio bronco e
atrabiliário, que nada compreendia das fraquezas e suscetibilidades do coração feminino, intimou um dia a sua
filha, em tom brusco e terminante, que escolhesse de duas uma, ou casar-se com um bom marido, que ele não
106
teria muito trabalho em encontrar, ou recolher-se a um convento. A este novo golpe, Adelaide ainda resistiu, e
a muito custo pôde obter de seu pai que lhe desse tempo para refletir e dar-lhe uma resposta definitiva.
Passado um mês, pouco mais ou menos, depois desta solene intimativa, em que uma bela tarde de setembro,
apeava-se à porta do major Damásio um garboso mancebo que, pelos trajos e pela comitiva que o
acompanhava, parecia um rico viajante, que vinha visitá-lo ou pedir-lhe hospedagem. Vinha montado em um
lindo cavalo pampa, ricamente arreado à moda curitibana, com um socadinho e todos os mais jaezes cobertos
de prataria. O jovem viandante trazia também à moda dos guascas um pala listrado atirado ao ombro, botas de
mateiro e chilenas de prata, chapéu preto de feltro, e pendente ao punho um desses bonitos chicotes com o cabo
coberto de um lindo e delicado tecido de prata, admirável industria dos habitantes de Sorocaba, Curitiba e Rio
Grande do Sul; um cinturão de marroquim apertava-lhe o talhe esbelto. O mancebo era gentil figura, e
envergava com natural elegância e desembaraço todo esse trajo pitoresco e original. Acompanhavam-no um
pajem preto, trajando vistosa libré, e dois camaradas rebarbativos, com suas garruchas pendentes ao arção, laço
à garupa e comprida faca presa ao cinturão. Logo se via que era um rico muladeiro.
Apenas anunciou-se a chegada do rico hóspede, o major, segundo seu costume afável e hospitaleiro, fê-lo entrar
para o seu gabinete, onde não se achava. Foi grande a sua surpresa, quando, no belo e elegante mancebo, que
com tanto aparato se apeava à sua porta, reconhecendo o seu jovem capataz, o bom e fiel Conrado. Deu-lhe mil
parabéns, fê-lo sentar com toda a delicadeza e cortesia, felicitando-o do fundo da alma pelo rápido e prospero
sucesso de suas especulações.
– Ao que parece, disse-lhe o major, em tom de benévola zombaria, medindo-o com os olhos de alto a baixo –
fizeste dentro de seis meses, o que muitos não conseguem fazer em seis anos.
– É verdade, meu caro patrão; comprei uma bonita mulada de mil cabeças, que andei vendendo pelas
províncias de Minas e do Rio de Janeiro. A monção era excelente; havia muita falta de animais; vendi quase
tudo à vista e a bom dinheiro, de modo que realizei de lucro líquido uns vinte e tantos contos de réis.
– Bravo! Em tão pouco tempo! Bonito negócio! – exclamou o major, entusiasmado. – Daqui por diante, quero
ser teu sócio... Se continuas nesse andar, em pouco tempo estás milionário.
107
– Foi Deus e o meu bom anjo que me favoreceram.
– E não pretendes continuar com o negócio?
– Por certo; mas antes de tudo tenho de fazer um pedido muito sério e muito importante ao patrão. Se nesse
pedido eu não for atendido, não sei o que hei de fazer, porque nesse caso também pouco me importa ser rico ou
pobre.
– Pois fala, rapaz, não te acanhes; bem sabes que no meu possível estou sempre pronto a te servir- disse o
major, repoltreando-se em seu assento, com ar protetor, sem nem de leve desconfiar em que delicada tecla o
mancebo ia tocar.
Conrado, no auge do embaraço, não ousava fazer de chofre uma declaração, da qual dependia todo o sossego e
felicidade de sua vida, e procurava em vão proferir algumas frases preliminares, que prevenissem e
preparassem o ânimo do major, o qual nenhum motivo tinha para julgar favorável à sua pretensão. Mas a
emoção e o receio naquela melindrosa conjuntura, por tal forma lhe perturbavam o espírito, que, nada podendo
fazer, se resolveu a prescindir de preâmbulos e rodeios, articulando seu pedido nua e simplesmente.
– O pedido que desejo fazer-lhe, senhor major, é a mão de sua filha – disse com voz trêmula de emoção. – Bem
sei que, por minha humilde posição, a não mereço; mas desde pequenos eu e ela nos queremos, e eu da minha
parte farei por alcançar posição honrosa na sociedade e tornar-me digno...
– Basta! – interrompeu o major, com um brado horrível, pondo-se de pé num salto, hirto, ofegante, e de viseira
carregada, mudando subitamente de tom e de maneiras. – Basta! É acusado dizer-me mais nada. Não quero
passar pelo desgosto de dar a resposta que merece esse seu pedido. Faça-me de conta que o senhor nada me
disse a esse respeito, e mudemos de conversa.
– Não é possível, senhor major – replicou o mancebo, levantando-se também e tomando um tom e atitude
resoluta. Não é possível; eu preciso absolutamente de uma resposta qualquer. Não lhe fiz há mais tempo esse
pedido por muitas razoes, e principalmente porque ainda muito moço não podia ter posição nem fortuna, que
compensasse a humildade do meu nascimento; mas hoje, que pouco mais ou menos dou provas do que valho,
julgo-me com algum direito a pedir a mão de sua filha, e desejo saber se ma concede ou não.
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– Não! não! mil vezes não! – bradou o major, em um violento acesso de cólera. – Que outra resposta poderia
esperar de mim o Sr. Conrado?
O mancebo estremeceu como se ouvisse o estalar de um raio. Ninguém melhor do que ele conhecia a balda de
fidalguia do patrão, essa singular monomania que lhe obcecava o espírito e neutralizava completamente alguns
bons instintos de seu coração; mas ignorava ainda a que extremos ela podia chegar. Bem sabia ele que o Major
Damásio, por efeito de uma cegueira quase voluntária, se julgava descendente das mais ilustres e antigas
famílias paulistanas; mas notando também o extremoso amor que consagrava à sua filha única, tinha
esperanças de que não quereria, contrariando suas afeições, sacrificar a um vão caprichoso a sua felicidade.
Depôs de alguns instantes de silencio, Conrado procurando dominar seu despeito e agitação, perguntou ainda
com tom civil e respeitoso:
– O patrão não me poderá dizer qual o motivo por que de maneira alguma quer consentir em meu casamento
com a senhora sua filha?...
– Ainda pergunta? – disse o major fitando no mancebo um olhar arrogante e furibundo.
– Pergunto, sim senhor, porque desejo saber – respondeu Conrado, com toda a calma.
– Pois deveras não sabe?
– Não, senhor.
– Pois fique sabendo de hoje em diante que um pobre peão, a quem por misericórdia estendi a mão em
Curitiba, só porque hoje possui algumas patacas, não pode, nunca poderá ser pretendente à mão da filha do
Major Damásio Augusto Bueno de Aguiar e Andrada!...
– Mas senhor major, atenda que não sou eu só que quero e desejo esse casamento; ela também o quer, e disso
depende a sua felicidade.
– Ela o quer!... quem lhe disse isso? Duvido que a filha do Major Damásio queira se casar com o ex-capataz de
seu pai.
– Se duvida, pode perguntar a ela mesma.
– Bem; é o que vou fazer, e se ela disse que sim, não é mais minha filha.
109
O major com movimento frenético, tocou uma campainha; apareceu uma escrava, que por sua ordem foi
chamar Adelaide, a qual daí a instantes compareceu. Vinha ela embuçada em sua longa mantilha com o
competente véu pela frente, traje que ela constantemente trazia não só para encobrir o seu estado de gravidez,
como também para não devassar a olhos estranhos a tristeza e abatimento de sua fisionomia. Já sabia da
chegada de Conrado; seu coração batia com violência; em tão críticas conjunturas, era extrema a sua emoção;
ia-se jogar uma cartada, em que se tinha de decidir de todo o seu destino e fruto de seus furtivos amores se lhe
agitava extraordinariamente no seio, como se pressentisse também toda a angústia da terrível catástrofe que se
preparava. Cumprimentou a Conrado com um triste mas gracioso sorriso; quando porém fitou seu pai, e notou a
torva e ameaçadora expressão de sua fisionomia, todo o seu sangue refluiu ao coração, seus olhos se turvaram,
empalideceu de um modo assustador, e para não cair viu-se obrigada a sentar-se na primeira cadeira que
encontrou. Estes sintomas de aflição e angústia não puderam ser notados em toda a sua intensidade por
Conrado e muito menos pelo major, não só porque era escassa a luz que reinava no gabinete como também
porque o véu de Adelaide não deixava bem parecer as alterações de sua fisionomia. Em razão também dessas
circunstâncias e da ansiosa agitação em que se achava o espírito de Conrado, este nem suspeitou o estado
melindroso em que se achava sua adorada patroa.
– Adelaide – disse o major sem dar atenção ao estado de perturbação em que se achava a filha – o Sr. Conrado,
que neste momento diz que pretende a sua mão, vem pedi-la. Consentes nisso?
– Se não é do desagrado de meu pai – respondeu a moça com voz trêmula e alquebrada -, com muito gosto...
O major não permitiu que a filha continuasse, e interrompeu-a com o seu terrível e fulminante – basta!
– Não é e nunca será do meu agrado – continuou ele com voz sacudida. – Nunca esperei que minha filha
desprezasse as homenagens de tantas pessoas de alta hierarquia para abaixar sua vista sobre um criado da casa!
Oh! isto é uma vergonha! Pensa bem no que dizer e no que pretendes fazer, minha filha!... Queres encher de
desgosto e de vergonha os últimos dias de teu velho pai!?
Adelaide nada ousou responder; escondeu o rosto na matilha, soluçando e chorando amargamente. Conrado a
custo podia conter sua indignação, mas querendo tentar ainda meios prudentes e conciliadores:
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– Senhor major – disse ele, em tom ainda um tanto submisso e respeitoso - não vejo motivo algum poderoso
para que V. S. se oponha por esse modo ao nosso casamento. Sou de humilde nascimento, é verdade;
infelizmente não conheci nem pai nem mãe; só sei que eram pobres, mas não me consta que tivessem nódoa
alguma em sua vida. Mas o homem faz-se a si mesmo, e eu, pelo que o senhor major tem visto, posso ainda e
tenho boas esperanças de alcançar na sociedade uma posição tão vantajosa quanto a sua, senhor major.
– Deixemo-nos de vãos palavrórios, Sr. Conrado – replicou o major, num tom áspero e seco. – Acho até
indigno de mim e de minha filha estar discutindo semelhante assunto. Minha filha nunca se há de casar com
um capataz. O que eu disse, disse.
A indignação de Conrado tocava ao seu auge, sua paciência estava quase exausta; todavia, ainda uma vez
conseguiu sopear a sua cólera, e procurou tocar as fibras daquele coração selvagem e endurecido pela mania de
fidalguismo, e acordar nele sentimentos de amor paterno, falando na mútua afeição que desde a infância os
ligara, e fazendo ver que com sua recusa ia condenar ao mais cruel infortúnio dois corações, que a natureza e as
circunstâncias tinham unido estreitamente com laços que jamais se poderiam quebrar. O major porém,
impacientado e colérico, mal prestava ouvidos às palavras do mancebo, interrompendo-o a cada passo com
expressões ásperas e grosseiras.
–Que vergonha, meu Deus! – exclamava ele a espaços, passeando frenético e agitado de um para outro lado do
gabinete. – Lamúrias de namorados!... Que infâmia!... Só esta me faltava!... Guardei a víbora no seio!... Procure
noiva de sua ralé.
– A este último doesto, Conrado não pode mais conter-se
– É o que estou fazendo, senhor major, pedindo a mão de sua filha – bradou ele, com resolução e altivez. – Não
vejo entre nós desigualdade alguma, senão talvez em meu favor.
– O que está a dizer?... Repita, se é capaz! – gritou por seu turno o major, chegando-se a Conrado com gesto
ameaçador.
111
– Estou dizendo a verdade – replicou o mancebo, sem mexer-se nem pestanejar – e estou pronto a repeti-la uma
e mil vezes, se o senhor quiser. Meus pais eram pobres, porém livres e honrados, e não consta que nenhum
deles fosse escravo, nem cigano.
Em má hora teve Conrado a idéia de proferir tão imprudentes palavras. O major, que até ali conservara sempre
rubra de indignação a sua tez morena, tornou-se subitamente fulo de cólera concentrada. Quando a cainana
assanhada recebe um golpe, que a mortifica, não se arroja logo sobre o agressor, mas enrosca-se de súbito, alça
o colo e brandindo a língua bipartida o encara com os olhos em brasa, como querendo devora-lo. Assim o
major ferido dolorosamente na mais melindrosa corda de seu coração, sem nada responder, deixou-se cair
sobre uma cadeira, e aí ficou por alguns instantes, encarando seu interlocutor com olhos sombrios e como
petrificado pelo efeito dessa alusão feroz, com a qual estava longe de contar. Bem conhecia ele a baixa
linhagem, de que procedia sua filha, mas sua estólida vaidade havia produzido em seu espírito um certo estado
de alucinação, que o cegava completamente a esse respeito, e acreditava o pobre homem que para o povo
também a sua verdadeira genealogia andava escondida nas trevas do passado. As palavras esmagadoras de
Conrado, cujo alcance logo compreendeu, o fulminaram; o suor lhe corria em bagas pela testa, o peito lhe
arquejava convulso, e os olhos pareciam querer saltar-lhe das órbitas. Durou apenas alguns instantes aquele
acesso de cólera abafada; reagiu logo contra ele o orgulho ofendido.
Capítulo XVII
A explosão
– Então, de mais a mais o senhor – disse o major por fim, com voz rouca e estridente – veio à minha casa
também com o propósito de insultar-me? Bem pouco me importa, Sr. Conrado, que seus pais tenham sido
pobres ou ricos, honrados ou não; o que sei é que nunca hei de fazer de um simples camarada o marido de
minha filha. Com que cara se apresentaria ela diante dos nobres personagens, que me honram com sua
112
amizade!... Houvesse o que houvesse entre os dois –tomem bem sentido no que vou dizer – houvesse o que
houvesse entre os dois, enquanto eu vivo for, juro por Nossa Senhora da Lapa, e dou minha palavra de paulista,
Adelaide nunca será mulher de Conrado! Pode, pois, meu rico senhor, montar em seu cavalo, e dizer adeus para
sempre a esta casa. O que eu disse uma vez, está dito, e não gosto de repetir.
Estas palavras – houvesse o que houvesse – sobre as quais o major carregou fortemente o acento, como
querendo sublinha-la, aterraram os dois amantes, que trocaram entre si um olhar angustiado. Com efeito nelas o
major parecia insinuar que já sabia a que extremos haviam chegado às relações amorosas dos dois jovens, pelo
menos assim ambos entenderam, e esvaíram-se toda as suas esperanças. Conrado contava em último recurso,
para reduzir o velho a conceder-lhe a mão da filha, revelar-lhe com franqueza a falta em que haviam incorrido,
e esperava que, atentas às circunstancias, o major, ainda que muito se exasperasse, acabaria por conceder-lhes
o perdão, e consentiria em sanar essa falta pelo casamento, único meio de salvar a honra da filha. Quando
porém ouviu aquelas terríveis palavras pronunciadas de modo sinistro e inexorável, seu coração esfriou, não
teve ânimo de tocar no melindroso assunto com medo de agravar ainda mais a sorte de ambos.
– Meu pai! meu pai! – exclamou Adelaide, com voz pungente, estendendo mãos suplicantes.
– Senhor – disse Conrado – que crueldade é esta!... tenha piedade, senão de mim, ao menos de sua filha!
– Nada de súplicas, nem de lágrimas, que é tempo perdido – replicou rispidamente o major, estendendo a mão
espalmada e voltando o rosto. – Percam as esperanças e não me falem mais nesses namoricos, que depressa se
esquecem. E se não se podem esquecer, ainda há conventos para ocultar a vergonha de uma, e ainda há justiça
para castigar a audácia de outro. Portanto, recolha-se Sr. Adelaide; deixe-me, Sr. Conrado; não quero ouvir
nem mais uma palavra a tal respeito.
– Perdão, senhor major; há de escutar-me ainda por alguns instantes – disse firmemente Conrado,
colocando=-se em frente do major, que se levantara como querendo retirar-se. – Visto que sabe que há lei e
justiça no país, não deve ignorar também que sua filha já completou dezessete anos e o que o código dispõe a
esse respeito.
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– Ah! – disse o major, recuando um passo e cruzando os braços. – Não sabia que estava tão adiantado a respeito
de idade e do que diz a lei! E é isso que lhe dá tamanha audácia! Está enganado!... Em primeiro lugar, não
quero que minha filha tenha ainda dezessete anos; e depois, vamos que tenha; quer tirá-la por justiça?
– Sem dúvida, já que não há outro recurso, e estou em meu direito.
– Pois bem! – disse o major dando dois largos passos para um lado e empunhando duas pistolas, que estavam
sobre uma mesa. Sobressaltando com esse movimento, Conrado levou a mão ao seio e apertou o cabo de uma
faca, que trazia presa à cava do colete.
– Pois bem! – continuou o major, com voz trêmula e sinistra. – Vá; traga os seus agentes da justiça para
tirar-me a filha. Em vez dela, hão de levar-me a mim, salvo se quiserem levar o seu cadáver.
Dizendo isto, o major apontava as duas pistolas para o peito de Adelaide.
Estas palavras e esta mímica horrível gelaram de pavor o coração dos dois mancebos. Nada mais havia a
esperar. Adelaide, aterrada, levantou-se a custo, lançou um olhar consternado sobre seu amante, e quase a
desmaiar precipitou-se, cambaleando, para o interior da casa. Conrado tomou o chapéu e o chicote, e,
inclinando-se, à porta do gabinete:
– Senhor major – disse com voz solene – eu parto, com o coração despedaçado; mas o senhor espere, cedo ou
tarde, o castigo do seu indigno e brutal procedimento.
E saiu arrebatadamente.
Tudo parecia estar perdido sem remissão para Adelaide e Conrado. Tanto um como outro, posto que sabedores
da balda do major, estavam longe de prever que ela pudesse chegar a tal auge de cegueira e de alucinação e
degenerar assim na mais feroz insensatez. Casar Adelaide com um marido de ilustre família e de alta posição
na sociedade fora sempre o sonho dourado da vida do Major Damásio, o remate de sua felicidade na terra; e
esse sonho, que ele sempre afagara na louca fantasia, e para cuja realização eram todos os cuidados, todas as
atenções de espírito, via-o agora esvaecer-se como fumo, desmanchado pela veleidade, para ele inconcebível,
de um mero capataz e pelo louco capricho e leviandade da filha! Isso vinha esmagar-lhe o coração com todo o
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peso de uma tremenda catástrofe, e ainda mais entenebrecer-lhe a inteligência, já de si acanhada e de pouca
elevação, e mais endurecer-lhe o coração, já por natureza pouco propenso à ternura.
O pasquim dos estudantes apenas fizera passageira mossa em seu ânimo, e não conseguira senão agitar de leve,
mas não dissipar, as fumaças de fidalguia que lhe toldavam o cérebro. Essa maldita monomania do major já por
si só era bastante para constituir uma barreira de separação, talvez insuperável, entre Adelaide e o jovem
camarada. Depois porém que este, em má hora, levado pela indignação do pundonor ofendido, teve a
desastrada idéia de rememorar-lhe a obscuridade de sua íntima procedência, e de rasgar-lhe na face o
pergaminho de sua imaginária fidalguia, toda a possibilidade de acordo e conciliação entre eles desapareceu.
Ao despeito da fatuidade ofendida veio juntar-se o mais violento rancor.
As palavras do mancebo foram como farpões envenenados, que se cravaram no coração do major e nele
destilaram o fel peçonhento do mais implacável e profundo ódio
Em sua violenta exasperação parecia-lhe que semelhante afronta só podia ser lavada com o sangue do ofensor,
e concebeu em seu cérebro escaldado planos atrozes de perseguição e vingança contra o infeliz mancebo.
Sua infeliz filha também, se não incorreu em seu ódio, teve de sofrer as terríveis conseqüências de seu vivo e
profundo ressentimento. Tendo perdido a esperança de leva-la a bom caminho segundo as suas vistas, tomou a
peito castigar-lhe a rebeldia embargando-lhe o caminho de tranqüilidade e ventura, que o destino para ela tinha
preparado.
Capítulo XVIII
Conrado, como se pode imaginar, saiu da casa do major com a cabeça em brasa e com o coração em torturas. Á
vista da ferrenha e feroz obstinação do velho, nenhum outro recurso lhe restava para apossar-se do objeto de
seu amor, não um rapto. Conrado concebeu esse plano, e combinou todas as medidas necessárias para arrancar
furtivamente Adelaide ao poder de seu pai. Para logo, porém, opuseram-se à realização de seu projeto
dificuldades insuperáveis.
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Em primeiro lugar, tinha-se tornado impossível toda e qualquer comunicação com sua amante. O major, com
um espírito de previsão e desconfiança, qual não teria o mais ciumento dos maridos, receando alguma tentativa
de Conrado, havia tomado as mais severas precauções. Adelaide era vigiada de perto, dia e noite, por duas
escravas, a quem o senhor tinha feito restritas recomendações debaixo das terríveis ameaças, e não podia dar
nem receber a menor carta, nem o mais insignificante recado. Quatro capangas de aspecto feroz e repulsivo,
armados até os dentes, haviam sido instalados em casa, e, noite e dia, faziam boa guarda à chácara, como a um
castelo ameaçado pelo inimigo. Além disso, dois atrevidos e truculentos cães de fila estavam sempre alerta e
prontos a dar rebate ao menor rumor que se desse em torno da casa. Um ou outro dos capangas rondava
continuamente em toda a extensão do caminho, que medeava entre a chácara e a cidade.
Antes que pudesse empreender qualquer tentativa, chegaram ao conhecimento de Conrado todas essas
formidáveis precauções. Viu que sua segurança e mesmo a sua vida andavam expostas a grandes perigos.
Todavia, durante quinze dias, por si e por meio de agentes fiéis e dedicados, baldou esforços e diligências a ver
se podia entrar em comunicações com Adelaide, e informa-la do seu intento, sem o que nada poderia
empreender com esperança de sucesso.
Adelaide, vítima da tirania e loucura paterna, vivia em uma reclusão mais triste e apertada do que uma freira
em sua cela, ou uma odalisca no harém. Lucinda, sua escrava favorita, que mais receio e desconfiança podia
inspirar não só pelo afeto e dedicação que votava a sua senhora como também por sua sagacidade e atilamento,
tinha sido arredada para bem longe.
A tia Eulália, mulher quase idiota, sem alma e sem coração, essa nem mesmo parecia dar fé do que se passava,
e mal notava o estado de tristeza e batimento em que vivia a sobrinha. Por essa sorte, a mísera moça nem
mesmo tinha com quem abrir seu coração e desabafar suas mágoas.
Conrado desanimou: em desespero de causa, só lhe restava um último, mas perigosíssimo expediente; era
assaltar a chácara a mão armada e tomar Adelaide a viva força. Não lhe faltavam coragem, disposição nem
recursos para tão arriscada empresa, e moço, no cúmulo da raiva e da impaciência, chegou a afagar o espírito
esse temerário projeto. Refletindo, porém, com mais calma, lembrou-se das terríveis ameaças do major;
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ponderou que talvez não fosse possível por em prática, sem efusão de sangue, a tentativa que poderia custar a
vida a ele, ao major e a muitos outros, e recuou horrorizado, principalmente diante da consideração de que
Adelaide poderia ser vítima da cólera insensata e brutal do pai.
Ainda quinze dias, da mais pungente angústia e ansiedade, se passaram para o desditoso mancebo, durante os
quais seu espírito atribulado não sabia, nem podia tomar deliberação alguma. Entretanto, chegou aviso a seus
ouvidos de que o major, ciente de suas tentativas para roubar-lhe a filha, estava disposto a mandar quebrar-lhe
os ossos, e mesmo tirar-lhe a vida a fim de faze-lo desistir, de uma vez para sempre, de suas prevenções. A
crônica do major, que corria pela boca pequena, não era muito para tranqüilizar, sobre este particular; ainda
não estavam esquecidas certas façanhas de sua mocidade, e contava-se com ar de mistério, que para obter a
mão da defunta mulher, não tinha hesitado em mandar para o outro mundo certo rival que lhe fazia sombra.
Conrado não era homem que se arreceasse de perigos e recusasse diante da sanha de facínoras; mas nada valem
a coragem e a valentia contra as insidias de sicários traiçoeiros, e demais, afrontar o perigo nas circunstâncias
em que se achava, era vã temeridade, da qual nada de bom podia lhe resultar. Assentou, portanto, que o melhor
alvitre, que podia tomar, era ausentar-se de S. Paulo, esperando que o tempo e as circunstâncias, a reflexão e os
impulsos do amor paterno, acalmando as fúrias do major, pusessem termo às contrariedades, que o
assoberbavam.
Uma coisa porém lhe torturava o coração, e quase lhe tirava o ânimo para pôr em prática essa resolução
extrema; era ter de partir sem poder ver a sua idolatrada amante, sem poder dizer-lhe um adeus de despedida,
confirmar-lhe seu eterno amor, pedir-lhe que o não esquecesse, conforta-lo a sofrer com resignação as
adversidades do presente, esperando que no futuro o céu lhes deparasse quadra mais favorável. Mas refletindo
que, enquanto permanecessem em S. Paulo, jamais cessariam a triste reclusão e a incomunicabilidade em que
vivia Adelaide, e que assim se prolongariam indefinidamente os sofrimentos dela, sem que ele em nada
pudesse valer-lhe, e por esse modo tanto valia ficar ali como a cem léguas de distância, confirmou-se no
propósito inabalável de ausentar-se.
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Antes de partir, escreveu uma longa carta dirigida a Adelaide, em que lhe dava conta do que pretendera e não
pudera fazer depois da cena terrível, em que pela última vez se viram; confirmava-lhe seu ardente e
inextinguível amor, exortava-a a não desesperar do futuro, e participando-lhe que ia ausentar-se para bem
longe, esperando que o céu se amerceasse deles, acalmando as iras do major e inspirando-lhe sentimentos mais
humanos e razoáveis.
Como era de esperar que, com sua ausência, se relaxasse o rigor da reclusão incomunicável em que vivia
Adelaide, confiou essa carta a um amigo, para que, quando se oferecesse oportunidade, a fizesse chegas às
mãos de Adelaide sua amante.
Conrado desapareceu de S. Paulo sem ter comunicado à pessoa alguma sua viagem, nem o destino que levava,
à exceção do discreto amigo com quem deixara a carta para Adelaide. Mesmo fora da capital, receava ainda as
ciladas do major, cuja sanha contra ele mais recrudescera, depois que soube de que suas tentativas para roubar
Adelaide. O major, que tinha na cidade e seus arredores uma polícia ativa de apaniguados e capangas, teve logo
informações de seu desaparecimento, mas nunca pode saber em que direção se havia retirado. Se bem que um
pouco tranqüilizado, todavia, por espírito de desconfiança e precaução, não deixou de manter ainda por algum
tempo certa vigilância e cuidado em torno de sua habitação. Foi só no fim de quinze a vinte dias, depois de bem
verificada a ausência do mancebo, que ele resolveu afrouxar a rigorosa vigilância exercida sobre a pessoa de
Adelaide, e dispensar os serviços dos capangas, que faziam guarnição à sua casa.
– Minha filha – disse ele, dirigindo-se então a Adelaide pela primeira vez, desde o dia em que Conrado, pela
última vez, lhe aparecera – espero que já estejas curada da loucura que te passou pela cabeça, de te casares com
o ex-capataz de teu pai. Entretanto, é tempo de tomares estado; se aceitas o marido que eu te escolher, – e a
dificuldade está na escolha –, irei imediatamente tratar disso. Se não, apronta-te e dispõe-te para entrares no
recolhimento de Nossa Senhora da Luz ou de Santa Teresa. Não quero mais que me faças passar pelo desgosto
de te ver dar cabeçadas como essa que querias dar, casando-te com um camarada, um pé-de-poeira.
– Meu pai – disse tristemente a moça – não tenha o menor receio de que meu coração se entregue a novos
afetos. Sou bem infeliz com o meu primeiro para poder pensar em outros. O meu desejo é mesmo recolher-me
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à solidão de um convento, embora não possa professar, como desejo. Já estou acostumada ao retiro e ao
isolamento. Só peço a meu pai que aguarde isso para daqui a mais alguns meses.
O pai anuiu não de muito bom grado aos desejos da filha, e sem indagar os motivos que levavam a adiar o
cumprimento de sua resolução, desta vez, comovido pelo estado de melancolia e abatimento em que a via, não
ousou contrariá-la.
Entretanto, avizinhava-se o tempo em que Adelaide devia ser mãe; sua situação tornava-se cada vez mais
apertada e melindrosa, e já nem sabia como ocultar à gente de casa as aparências de sua falta, já muito
manifesta a olhos mais perspicazes e escrutadores do que os do major.
A pobrezinha não tinha com quem se entender, nem a quem confiar seu coração e os cruéis apuros em que se
achava. A reclusão e isolamento, a que seu pai a condenara durante quase dois meses, foi um mal, que ela
aceitou como um favor do céu, porque assim sem dar motivo a desconfianças, podia esconder-se e subtrair-se
às vistas curiosas; desejaria que se prolongasse por mais algum tempo; mas as circunstâncias mudaram, e ela se
via nos mais aflitivos embaraços. Lembrou-se, então, de pedir a seu pai que fizesse voltar para a casa a preta
Lucinda, única pessoa que conhecia suas fraquezas, e que lhe podia valer em tão críticas e delicadas
conjunturas.
Felizmente foi atendida. Adelaide, com as lágrimas nos olhos, contou tudo à boa e fiel escrava.
– Não tem nada, sinhazinha; sossega seu coração, que tudo se há de arrumar – disse ela, procurando
tranqüilizar e consolar sua senhora. – Deus é grande, e sua negra está aí.
Como todos os males deste mundo têm alguma compensação, e nos maiores infortúnios sempre se dá alguma
circunstância favorável para os minorar, aconteceu que o major, desgostoso com o malogro dos casamentos
aristocráticos, que pretendia angariar para sua filha, e enjoado da vida insípida que levava no retiro de sua
chácara, tomou a resolução, para se distrair, de sair de casa e andar de novo em giro de negócio como
muladeiro. Posto que algumas leves suspeitas lhe assaltassem o espírito a respeito das relações de sua filha com
o capataz, elas foram pouco a pouco se desvanecendo, e à pouca perspicácia de seu pai, este nem de leve
suspeitou o grave e melindroso estado da filha. Demais, Adelaide já lhe tinha declarado que estava no firme
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propósito de entrar para um recolhimento, e o pai, capacitado da sinceridade e da persistência dessa resolução,
perfeitamente tranqüilo a respeito do procedimento da filha durante a sua ausência, ajustou camaradas, fez
todos os preparativos, e partiu para o seu giro, deixando Adelaide e o governo da casa aos cuidados de sua irmã
Eulália.
Capítulo XIX
Mês e meio pouco mais ou menos depois desses acontecimentos, uma jovem e linda senhora, recolhida em seu
aposento, fazia esforços supremos para abafar gemidos e gritos de dor. Era o fruto de um amor furtivo, não
consagrado pelos laços do matrimônio, que estava prestes a vir respirar o ar da vida; era um pobre anjo, que se
via obrigado a nascer na sombra do mistério para ocultar aos olhos do mundo a falta de seus progenitores.
Eram onze horas para meia-noite de um dia de novembro de 1847. Além da moça, achava-se no aposento
somente uma escrava idosa, para desempenhar todos os delicados misteres que exige essa crítica situação. Ela,
porém, solícita, diligente e corajosa, a tudo provia, tudo desempenhava com celeridade e inteligência, já
animando com palavras a jovem parturiente, já multiplicando-se para acudir a tudo com a maior rapidez e
desembaraço.
Um luar esplêndido se derramava pelos vargedos do Tietê, e lá fora enchia de serenidade e de encantos essa
noite, que dentro daquelas paredes, tão angustiosa e cheia de ansiedade corria para a pobre moça.
Entretanto, a doce claridade, que através dos vidros entrava pela janela, que dava para o jardim e o pomar,
mesclando-se à frouxa luz de uma lâmpada única, que alumiava o quarto, expandia nele certa calma suave,
própria para inspirar conforto e esperança àquelas duas aflitas mulheres.
Enfim o silêncio, que ali reinava apenas interrompido pelos gemidos surdos e abafados da paciente, foi
quebrado pelos vagidos de uma criança. Era uma linda menina, que no mistério de uma noite plácida e
silenciosa vinha respirar a aura de uma vida debaixo de tão tristes auspícios. Lucinda pensou a criança com
toda a perícia e delicadeza, como se fora uma parteira profissional, enfaixou-a com todo cuidado, e a depôs no
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regaço de Adelaide, que a beijou, não com esse sorriso de inefável beatitude que banha os lábios da jovem mãe,
que vê entre seus braços o fruto de seu amor, mas por entre um véu de lágrimas. Ah! por certo não podia beijar
com alegria aquela, que o destino arrancava do seio materno para passar a braços estranhos e desconhecidos.
O calor abafava dentro do estreito quarto; Adelaide pediu a Lucinda que entreabrisse um pouco a vidraça, para
renovar a atmosfera e respirar um ar mais livre. O ar estava tépido e parado; nem brisa nem vapor algum girava
no ambiente, de modo que pudesse comprometer a saúde da mãe ou da criança. Lucinda abriu com precaução a
vidraça. Um hálito embalsamado, não de aromas acres e ativos, mas de suaves e pouco sensíveis emanações de
flores e folhas agrestes, entrou pela janela, refrescando a atmosfera do aposento. Ao mesmo tempo, ouviram-se
os ecos melodiosos de um descante ao longe, pelas ribas do Tietê.
Era, provavelmente, alguma serenata de pescadores ou estudantes, que, aproveitando a serenidade da noite e a
beleza do luar, sulcava as águas preguiçosas do rio paulistano, ao som de barcarolas e instrumentos.
– Que bonito! – exclamou a preta, deitando olhos curiosos para fora da janela. – Se sinhazinha pudesse ver
como está bonita a noite!... Está tudo tão sossegado!... O céu tão limpo!... Meu Deus! que noite tão clara, tão
serena e tão cheirosa!... E esta cantiga?... Não está ouvindo, sinhazinha?... É um céu aberto!... Tudo isso quer
dizer fortuna para a menina que nasceu.
– Quem sabe, Lucinda?... Pode ser feliz quem nasce nestas circunstâncias, e nunca talvez terá de conhecer pai
nem mãe? Pobrezinha! – suspirou a moça, apertando ao seio a criancinha e banhando-a de lágrimas.
– Ah! sinhazinha, para que há de estar a chorar assim? Deus é de misericórdia; sua filhinha há de ser feliz,
muito feliz; é sua preta que lhe afiança.
– Deus te ouça – murmurou a moça, alquebrada pelos sofrimentos e trabalhos do parto, daí a instantes
adormeceu profundamente.
Já o dia não estava muito longe de alvorecer. Chegava a hora propícia de Lucinda pôr em prática o plano, que
já tinha concebido e comunicado à sua senhora; era chegado o momento em que a boa e delicada escrava, com
as lágrimas nos olhos, tinha de cumprir um triste e dolorosíssimo dever. Lucinda, com muito instinto e
delicadeza, que nem sempre se encontra mesmo entre pessoas de fina educação, não quis despertar Adelaide;
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pelo contrário, aproveitou-se daquela hora de sono profundo e reparador, que de ordinário costuma durar longo
tempo, para levar a criança ao triste destino a que nascera condenada, sem que a mãe passasse pela dor de tão
acerba separação. Não tinha tempo a perder; envolveu cuidadosamente a recém-nascida embaixo de sua
mantilha de baeta, tomou em uma das mãos um embrulho, que continha algum enxoval para a criança, e saiu
misteriosamente com seu melindroso fardo. Ao chegar à estrada que conduzia à cidade, em vez de
encaminhar-se para ali, tomou a direita para o lado do caminho que se dirige a Jundiaí.
Depois de ter andado cerca de um quilômetro naquela direção, via-se naquele tempo, à beira da estrada, uma
pequena casa térrea de modesta aparência, mas cômoda e asseada, situada a pouco mais de meia légua do
centro da cidade. Junto dela havia um pequeno curral, e no fundo um belo jardim de flores e hortaliças; em
torno, viam-se algumas nédias vacas ruminando tranqüilamente, porcos, galinhas e outras criações domésticas.
Tudo isso indicava que o dono ou dona da casa era pessoa industriosa e diligente, e gozava de uma tal ou qual
abastança, o que não era muito comum naquela época nos arredores da formosa Paulicéia.
A proprietária – pois era uma mulher – vulgarmente conhecida pelo apelido de Nhá Tuca, diminutivo familiar
de Gertrudes na província de São Paulo, era uma mulher de seus cinqüenta anos, seca e alta, que fora sempre
celibatária, de maneiras um pouco ásperas e desabridas; gozava, porém, de respeito e consideração entre a
vizinhança, e era tida em conta de uma boa e honesta senhora, reputação que devia talvez mais aos seus haveres
do que a qualidades reais. Devia a pequena fortuna, que possuía, à herança de um irmão, que, tendo morrido
intestado, sem outros herdeiros ascendentes, descendentes nem colaterais, a deixou senhora de uma boa dúzia
de escravos de um e outro sexo, moços e robustos todos.
Os escravos homens vendeu-os todos ela logo, alegando que, na qualidade de mulher, não podia governar
homens. Ficando com sete raparigas, crioulas e mulatas, todas no viço da idade, bem feitas e vistosas, comprou
a quinta em que a encontramos, onde também vendia aguardente, fumo, quitanda, e dava pousada aos
passageiros.
O amor ao dinheiro, o desejo de engrossar cada vez mais o seu já sofrível mealheiro, era o móvel principal de
todas as suas ações. Por isso andava em contínuo e incansável movimento, desde o primeiro albor do dia até
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horas avançadas da noite. As escravas também, posto que bem tratadas e garridamente vestidas, trabalhavam
incessantemente sempre debaixo de suas vistas, e não lhes ficava tempo de sobra para se entregarem à gandaia.
Um lucro porém mais avultado lhe provinha das setes escravas; há doze ou quatorze anos, que lhe pertenciam
essas escravas, tinham-lhe dado já umas vinte e tantas crias lindas e vistosas, as quais, logo que chegavam à
idade de dez anos, a boa mulher tratava de vender pelo melhor preço que podia. Seu estabelecimento bem se
podia chamar um viveiro de escravos. Na época em que nos achamos, já ela havia melhorado
consideravelmente o estado da burra, e tinha a casa cheia de uma chusma de crianças da mesma procedência e
condenadas ao mesmo destino. Parece que ela conhecia um anexim egoístico e desumano de nossos
antepassados, que diz: – crioulos, cria-los e vende-los, e sabia executa-lo, à risca.
Foi para essa casa que Lucinda, ao ganhar a estrada, se dirigiu com seu débil e precioso fardo. A preta conhecia
Há muito a velha Nhá Tuca, e posto que não conhecesse íntima e particularmente seus costumes e viver
doméstico, sabia, pela voz pública, que era uma senhora de bem, e mesmo de sentimentos caridosos. Demais,
estando ali na vizinhança e em lugar retirado, sua sinhazinha podia lá ir de quando em quando, em ar de
passeio, e gozar o prazer de ver e afagar sua filhinha, sem que ninguém pudesse desconfiar coisa alguma.
Nenhuma casa, portanto, lhe pareceu, e com razão, mais apropriada do que a de Nhá Tuca para lhe ser confiado
tão sagrado depósito.
À porta dessa casa, Lucinda parou e escutou; a primeira alva do dia começava a despontar; tendo percebido
rumor dentro, e vendo que a gente da casa começava a despertar, depositou a criança e o embrulho no limiar
da porta; e afastou-se; mas apenas achou-se a uns cem passos de distância, parou e, escondendo-se entre uns
arbustos à beira do caminho, ficou à espreita do que sucederia. Passados poucos minutos, a porta abriu-se, e ela
viu ser recolhida a criança com grandes mostras de surpresa e causando como era natural, grande alvoroço em
toda a casa, mas segundo lhe pareceu, com ares de carinho e compaixão; e voltou para casa, tranqüila e
satisfeita.
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Já o sol ia bem alto, quando Adelaide despertou de seu longo e profundo sono. Posto que prevenida e cúmplice
na sorte que se ia dar à sua malfadada filhinha, seu coração constrangeu-se amarga e dolorosamente, quando,
ao acordar, não a viu a seu lado e se viu mãe sem filha.
À tarde Lucinda saiu, e foi em ar de passeio, até a casa de Nhá Tuca com o fim de saber novas da pequena
exposta; para lá se dirigiu para entrar na bodega como quem quer fazer alguma compra, mas com o fim
principal de puxar conversa e ouvir novas da criança, que nessa madrugada lá havia depositado. Mas antes que
o fizesse, olhando pela porta aberta de uma saleta da frente, diante da qual tinha de passar para chegar à venda,
deu com os olhos em um pequeno féretro posto sobre uma mesa no meio da sala, no qual se achava
amortalhada uma criancinha com simplicidade e pobreza, mas com os enfeites e flores do costume. A esse
espetáculo Lucinda sofreu tão violento abalo no coração, que esteve a ponto de desfalecer; todavia, esforçou-se
por dominar sua comoção e chegou-se à porta para examinar o cadáver. Era evidentemente uma criança
recém-nascida, de cor mimosa e branca, como a sua enjeitadinha; não podia ser senão a filha da sua sinhá. Para
melhor verificar o caso, entrou na venda, e aí ouviu a triste confirmação do que já tinha como quase certo.
– Enjeitaram aqui hoje, pela manhã – dizia Nhá Tuca à Lucinda e a outros curiosos que se achavam na venda –,
uma pobre criancinha muito bonitinha. Coitada! tive uma pena dela!... Não sei como há gente neste mundo que
tem ânimo de enjeitar seus filhos!... E eu também tomara poder cuidar na minha vida; não tenho tempo para
andar criando os filhos dos outros, não. Mas assim mesmo pobre, como sou, não quis desamparar a pobre
criança, e estava pronta para criá-la, porque, até esta mesma noite, me pariu aqui em casa uma mulata, que bem
podia dar de mamar a duas crianças... Mas, mecês que querem?... O maldito ou a maldita, que trouxe a criança,
parece que a carregou aos trambolhões, como quem carrega um porco; de maneiras que a coitadinha da criança
chegou toda machucada, e com o umbigo esvaindo em sangue!... Está! E não houve mais remédio! Ali está
motinha, coitada!...
Nesse ponto da narração, Lucinda arrepiou-se, e esteve a ponto de protestar contra as palavras de Nhá Tuca.
Tinha a consciência de que havia carregado a menina com todo o cuidado e mimo possível, e que a largara sem
a mínima lesão à porta da casa de Nhá Tuca. Mas Lucinda era discreta, e bem via que a menor palavra que
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dissesse podia dar lugar a suposições, não só da parte da velha dona da casa, como também de toda aquela
gente abelhuda e maliciosa que ali se achava. Entretanto, não podia deixar de dar crédito ao que dizia a velha,
pois ali estava bem patente a prova irrefragável, o cadáver da criança. Refletindo um pouco, passou-lhe
rapidamente pela idéia que, sem dúvida seriam as escravas da casa que, entrando com a criança aos boléus e
passando-a de mão, estouvadamente, e em cuidado algum, a tinham feito morrer. E vendo-as do lado de dentro
do balcão, a escutarem de parte a conversação, Lucinda relanceava sobre elas olhares arrevezados e furibundos.
– A menina – continuou Nhá Tuca – ali pelas dez horas, mais ou menos, entrou em convulsões, e não houve
chá, fomentação, nem benzedura que eu não fizesse; nada pôde lhe valer. Ali pela volta do meio-dia entregou a
alma a Deus. Não sabia se era batizada, e portanto, aqui nesse ermo, onde a gente não encontra, quando quer,
nem padre, nem surjão, mandei chamar um vizinho para batizá-la. Graças a Deus, não morreu pagã, e vai ser
enterrada em sagrado na Igreja de Santa Ifigênia. É uma despesa que Deus sabe quanto me custa – terminou
soltando um estrepitoso suspiro. – Mas seja tudo pelo amor de Deus!
Lucinda voltou para casa, a passos lentos e com o coração repassado de amargura, estudando um modo de dar a
triste nova à senhora, de maneira que não a chocasse muito. Deu-a por meias palavras, mas Adelaide a
compreendeu logo, e exclamou, cheia de angústia:
– Meu Deus! Meu Deus! Levaste minha filhinha!... Bem! é um anjo, que chamaste para perto de ti, para
interceder por mim, pobre pecadora. Agora, chama-me também, e leva-me para junto dela.
– É verdade, sinhazinha; aquela música, que estava tocando, quando ela nasceu, não era cá da terra. – Eram os
anjos do céu que estavam esperando sua irmãzinha – disse Lucinda. E ambas puseram-se a chorar
amargamente.
FIM DO 1º VOLUME
125
126
CAPÍTULO I
DOZE ANOS DEPOIS
Eram passados doze anos, depois dos acontecimentos que acabamos de narrar. Em uma sala mobiliada com
bastante luxo, se bem que não com muito gosto, em um sobrado da Rua de S. Bento, na cidade de S. Paulo,
uma linda menina de dez anos estava sentada ao piano, dedilhando, com volubilidade e bem pouca atenção, as
lições de Hünten. À direita, ao pé dela, achava-se também sentada em uma cadeira, com a mão na face e
acotovelada sobre a mesa do piano, uma senhora que poderia ter, quando muito, trinta anos, e que parecia
observar, com certo orgulho e complacência, o estudo da gentil menina. Era uma senhora morena, de
fisionomia regular e simpática, de grandes olhos negros e lânguidos e que tinha bem conservada ainda uma
beleza que, no viço dos anos, devia ter sido das mais encantadoras. Pelo primoroso cuidado com que se trajava,
pelas maneiras e ademanes um tanto afetados, via-se que ainda predominava nela esse fundo de vaidade
inseparável das moças formosas, mesmo quando essa formosura já vai declinando para o ocaso. A desta,
porém, ainda não declinava; nem cãs, nem rugas, nem macilência denunciavam nela a época da decadência.
Não era já a tenra e mal aberta flor, brilhante de viço e frescura e ainda rociada das pérolas da aurora; mas sim
a flor que alardeia, desabrochadas em toda sua plenitude, as pétalas formosas ao fulgor de um belo sol de estio.
Brincavam também em torno dela, pela sala, entrando e saindo, mais três crianças de mais tenra idade,
interrompendo a cada passo com suas travessuras o estudo da pianista, que em vão se zangava e ralhava com
elas.
– Estela - disse a moça com voz suave, estendendo a mão e fazendo parar de chofre os róseos dedinhos da
menina, que esvoaçavam ligeiros como borboletas sobre o teclado – estás hoje muito rudezinha; disseste muito
mal esse último compasso; repete ainda uma vez; não quero que a mestra venha ralhar contigo.
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– Ora, mamãe! – replicou a menina, dando um muxoxo. – estes meninos estão a toda hora me atrapalhando...
Também não sei por que é que papai hoje está tardando tanto.
– Ah! logo vi; teus dedos estão correndo pelas teclas, enquanto teu sentido mesmo anda bem longe, tontinha!
– Não, mamãe; estou esperando papai para jantar; estou com saudade dele, e também com fome. Olha, mamãe
– acrescentou, apontando para um lindo pêndulo que estava sobre um aparador, – já são quase quatro horas.
– Qual saudade, nem fome!... Estás com sentido é na mulatinha, que teu pai foi comprar para ti, e que prometeu
trazer hoje. Sossega esse coraçãozinho, que ela há de vir; se não for hoje, há de ser amanhã, porque já está
comprada e paga.
– Ah! já faz hoje mais de oito dias que papai está comprando essa mulatinha, e nunca mais ela vem.
– É porque ainda não tinha encontrado uma que servisse; mas agora já achou, já comprou, e há de vir.
– Bravo! bravo! mamãe! - exclamou Estela, saltando do tamboretinho e indo envolver com os braços o colo da
mãe, encarando-a tão de perto, que quase a beijava. – Ela é bonitinha? Já é grande? .. Como se chama? Eu
queria que ela fosse do meu tamanho. Mamãe há de dar a ela um vestido bem bonito para ela andar comigo na
rua, não há de, mamãe?
– Hei de, hei de, sim, minha filha. Arre lá! sufocas-me com tantas perguntas.
Nesse ponto da conversação, ouviu-se rumor de gente que vinha subindo a escada.
– Escuta, – continuou a senhora, – há de ser teu pai, que chega.
Estela e seus irmãozinhos correram logo para o topo da escada; a mãe deixou-se ficar sentada em seu lugar. Daí
a instantes, entrou na sala um homem de bela presença e elegantemente trajado.
– Entra, Rosaura; é aqui que está tua senhora dizia ele, voltando-se para trás.
Entrou logo após ele, acompanhada pelas crianças, uma linda criatura, em cuja descrição é mister determo-nos
um pouco. Era uma menina que parecia ter quatorze anos, de belo porte, cabelos de azeviche, não mui finos e
sedosos, mas espessos e de um brilho refulgente como o do aço polido. Os olhos grandes e da mesma cor dos
cabelos tinham tal expressão de ingenuidade e doçura, que captavam logo a simpatia e afeição de todos. A boca
pequena, com lábios carnudos do mais voluptuoso e encantador relevo, formava com o queixo, algum tanto
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pronunciado, e o nariz reto e afilado, um perfil das mais delicadas e harmoniosas curvas. A tez do rosto e das
mãos era de um moreno algum tanto carregado; mas quem embebesse o olhar curioso pelo pouco que se podia
entrever do colo, por baixo do corpilho do vestido, bem podia adivinhar que era o sol, que a tinha assim
crestado, e que sua cor natural era fina e mimosa como a do jambo. Não trazia mantilha, esses dois côvados de
pano ou baeta, em que não andou tesoura nem agulha, e com que as escravas e as mulheres de baixa classe, em
S. Paulo, usavam embrulhar a cabeça e os ombros; em vez dela trazia, sobraçado, um bonito chale de lã, e
trajava vestido cor-de-rosa; a linda e opulenta madeixa era o único ornato de sua cabeça, e os pés calçavam
chinelos de marroquim vermelho. Trajada com tal singeleza e dotada de tanta graça e formosura, oferecia um
interessante e gentil modelo de camponesa, digno de ocupar atenção e o pincel do mais hábil artista.
Os meninos rodeavam a rapariga com ar de estupefação e a contemplavam com a mais viva curiosidade. Ela
parou defronte da senhora, fitou-lhe os olhos meigos, e tomou-lhe a bênção, com um ar ao mesmo tempo terno
e submisso. Ao pôr os olhos na menina, a senhora sentiu-se assaltada de estranha emoção, ou porque a
simpática fisionomia da escrava e a encantadora ingenuidade, que respirava em toda sua angélica figura, lhe
tocassem o coração, ou porque o seu lindo rosto lhe despertasse nalma vaga reminiscência de alguma, pessoa
que conhecera. Enfim, não podia capacitar-se de que aquela formosa e interessante rapariga fosse a escrava
destinada à sua filha.
– Que menina é esta que o senhor nos traz, Sr. Morais? – perguntou ela ao marido. – Que é da escravinha, que
está sempre a prometer à Estela? Ela está sempre a amofinar-me com suas impaciências.
– Pois não está ai diante de teus olhos?! – respondeu o marido, apreciando com desvanecimento a surpresa da
mulher. – Eu tinha prometido à Estela uma jóia, e não aí qualquer crioula beiçuda, ou mulata encarapinhada.
custou-me, porém sempre achei. Que tal te parece? . . .
– Muito lindazinha. Como se chama?
– Rosaura.
– Rosaura!.. Até o nome é bonito. Vem cá, Rosaura; não sou eu a tua senhora; tua senhora é esta menina –
acrescentou, pegando Estela pelo braço e colocando-a defronte de Rosaura.
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Então, a gentil escravinha, com singeleza e desembaraço infantil, acocorou-se sobre o largo tapete junto ao
piano, sentou Estela sobre o seu regaço e, envolvendo-a com os braços, beijou-a em ambas as faces,
exclamando:
– Esta é que é a minha sinhazinha! ... Como é tão bonitinha!. . .
A linda escrava também nesse momento sentia banhar-se-lhe o coração em eflúvios de estranha ternura, que lhe
umedecia os olhos, e ora acariciando a filha, ora olhando para a mãe, julgava-se como que arrebatada a um
mundo estranho. Estela retribuía com mudos afagos as carícias da escrava. A senhora, com a face na mão,
contemplava com a mais benévola e terna complacência aquela cena encantadora, e não se fartava de olhar
para Rosaura, que com modos tão meigos e naturais lhe afagava os filhinhos, como se já os conhecesse de
longa data.
– Está bom – disse a senhora, levantando-se.
São horas de jantar. Estela, vai chamar Lucinda.
A menina correu para o interior da casa, e daí a momentos reapareceu com a preta velha, que já conhecemos.
– Lucinda – disse a dona da casa – leva esta menina para dentro, mostra-lhe toda a casa, e trata bem dela; de
hoje em diante, ela faz parte da família; é a mucama de sinhá Estelinha.
A preta estatelou os grandes olhos esbugalhados sobre a rapariga.
– Hé! há! – exclamou ela, admirada. – Como é isso, sinhá! Pois essa menina é cativa mesmo?.. É a mucama
que sinhô comprou?!... Cruz!... Parece mais outra sinhazinha. Vamos, minha filha, vamos para dentro –
continuou Lucinda, tomando a mão de Rosaura e conduzindo-a para o interior da casa. Os meninos as
acompanharam, pulando de contentes.
– Não achas, Adelaide – disse Morais à sua mulher, logo que se acharam sós – não achas que não era possível
encontrar peça mais linda para a nossa Estelinha?
Como ela ficou satisfeita com a sua faceira mucama!...
– Na verdade, é muito linda criatura, – respondeu Adelaide. – Até faz pena ver no cativeiro uma menina tão
mimosa. Se ela for boa mesmo, como parece, hei de tratá-la com todo o carinho, mais como uma companheira,
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uma irmã de meus filhos, do que como escrava; e até, se for possível, o meu desejo é dar-lhe a liberdade. Uma
criatura tão bela e interessante não nasceu para o cativeiro.
– Oh! quanto a isso, mais devagar, minha querida. Poderemos forrá-la pelo tempo adiante, se ela o merecer.
custou-nos uma soma considerável, e não é para já largarmos mão dela. Não pude arrancá-la das garras do
casmurro do senhor, senão por dois contos e quinhentos mil-réis. Como teu pai deu-me carta branca e disse-me
que não olhasse a dinheiro, mais que me pedissem, eu daria.
– Muito mais que isso vale ela – retorquiu Adelaide. – Por mim, não a largarei mais nunca, nem por quanto
dinheiro há neste mundo.
CAPÍTULO I I
O SR. MORAIS
Agora, que temos apresentado ao leitor Adelaide casada e com quatro filhinhos, vivendo com certo luxo e
ostentação no centro da cidade, tranqüila e feliz, ao menos aparentemente, no seio de sua família, forçoso nos é
voltar atrás uns doze a treze anos, a fim de explicar que fatos se deram para operar essa transformação no
destino de uma mulher, que tanto nos interessa.
O Major Damásio voltara de sua excursão comercial depois de um ausência de seis a sete meses. Encontrou
Adelaide já completamente restabelecida dos incômodos da maternidade, se bem que acabrunhada ainda por
certo langor e abatimento, provenientes mais dos sofrimentos do espírito, do que de incômodos físicos, e não
lhe entrou pela mente nem a mais leve suspeita do misterioso acontecimento que lhe tinha maculado o
santuário da família. Felizmente, também nada tinha transpirado em público a respeito da fraqueza da infeliz
moça. A discrição de Lucinda, a vida solitária e retraída de Adelaide, a imbecilidade da tia Eulália e a morte
imediata da pobre criança, que caiu do seio materno à sepultura, fizeram com que o público, sempre ávido de
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escândalos, ficasse em perfeita ignorância desse fato, e a filha do major conservasse intacta e imaculada sua
reputação aos olhos do mundo.
Adelaide não falou mais no seu propósito de entrar para um recolhimento, ou porque de fato semelhante
resolução, não sendo firme nem sincera, se tinha desvanecido em seu espírito, ou porque, não tendo conseguido
riscar do coração a lembrança de seu amante, queria ganhar tempo, nutrindo a esperança de poder talvez, um
dia, unir ao dele o seu destino. O major também, por sua parte, nem de leve tocava em tal assunto. Tendo para
si que a filha se achava inteiramente curada da louca paixão, que concebera pelo jovem capataz, não perdia a
esperança de vê-la, um dia, casada com algum alto personagem, que viesse dar mais honra e lustre à sua árvore
genealógica.
Conrado, saindo de S. Paulo, em uma peregrinação sem rumo e sem destino certo, de diversas localidades, em
que se achava, tinha por vezes dirigido cartas à sua amante, para serem entregues cautelosamente por
intermédio de terceiro; mas infelizmente nenhuma delas, à exceção da que escrevera antes de partir,
comunicando-lhe a sua retirada de S. Paulo, ou porque fossem interceptadas em virtude de precauções tomadas
pelo major, ou por qualquer outra fatalidade, pôde chegar às mãos de Adelaide. Esta também se via na
impossibilidade de escrever-lhe por não saber o que era feito dele, nem a que ponto dirigir suas cartas.
Assim se passaram perto de dois anos, sem que se desse alteração alguma na triste sorte de Adelaide, sem que
ela pudesse obter a mais vaga, a mais ligeira informação a respeito do destino de Conrado. No fim desse tempo,
porém, espalhou-se em S. Paulo a notícia de que Conrado, girando em negócio de muladeiro pela província da
Bahia, havia falecido no Sincorá, de uma febre perniciosa. Essa triste nova, que bem depressa chegou aos
ouvidos de Adelaide, foi um golpe doloroso, que por muito tempo a acabrunhou, e apagou-lhe da alma toda a
esperança de felicidade na terra. Mas Adelaide, se era de temperamento vivo e ardente, fácil de inflamar-se em
paixões fogosas, não tinha essa sensibilidade profunda, que nem o tempo nem as circunstâncias podem
obliterar, e que mesmo debaixo das ruínas de todas as esperanças conserva sempre vivaz e ardente o sentimento
do primeiro amor, como o fogo debaixo das cinzas. Sua alma era, como seu corpo, robusta e resistente; os
choques podiam prostrá-la, mas não a esmagavam. Amava com ardor e com todas as forças de sua alma ao
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amigo da infância, ao amante da juventude; suas lágrimas e sua saudade foram sinceras e pungentes, mas com
o volver dos tempos foram-se mitigando, a resignação veio por fim, e Adelaide animou-se de coragem para
viver.
A casa do Major Damásio, que durante muito tempo se tinha tornado uma espécie de eremitério, foi
gradualmente se fazendo mais acessível à sociedade e mais animada. A lembrança dos remoques e epigramas
dos estudantes e das pretensões do capataz ia pouco a pouco se apagando. O major, que nunca perdia a
esperança de achar para sua filha um noivo de alta hierarquia, começava a atrair de novo e convidar a jantar
alguns amigos, não excluindo mesmo, mas com algum escrúpulo na escolha, alguns jovens da classe
acadêmica. Adelaide nada havia perdido de sua formosura e atrativos, apesar dos transes dolorosos por que
havia passado; sua robusta organização havia zombado dos trabalhos e contratempos, e a flor de sua beleza
alardeava-se ainda tão esplêndida e viçosa como dantes. Somente os sofrimentos lhe haviam estampado na
fisionomia e nas maneiras um ar mais grave e melancólico, que ainda mais realçava seus encantos.
Entre os moços, que freqüentavam a casa do major, havia um que, sinceramente apaixonado da beleza de
Adelaide, se fez notar por seus obséquios e homenagem e por sua assiduidade. Era um terceiranista de bela e
agradável presença, de maneiras simpáticas, e posto que não fosse rico, tinha a fortuna de assinar-se com o
apelido de Bueno de Morais, um dos nomes heráldicos de mais distinção na província de S. Paulo. Além disso,
sendo aspirante ao pergaminho de bacharel em direito, tinha aberta diante de si a carreira das honras e
grandezas, e o bom major podia bem nutrir a esperança de ter, um dia, um genro deputado, presidente,
ministro, senador e por fim até mesmo visconde e marquês.
Damásio, que também se assinava Bueno, descobriu logo entre ele e o futuro genro certo grau de parentesco, e
doce nome de primo e prima substituíram daí em diante os nomes próprios entre os dois namorados. Adelaide
não se desagradou do moço, o qual, na verdade, além de sua bonita figura e maneiras agradáveis e insinuantes,
parecia ser dotado de boas e sólidas qualidades. É verdade que não concebeu por ele uma dessas paixões
profundas e veementes, como a que Conrado lhe havia inspirado, mas votava-lhe essa estima calma, porém
terna e afetuosa, que é a melhor garantia da paz e felicidade da vida conjugal.
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Havendo, pois, comum acordo entre todas as partes interessadas, contratou-se e celebrou-se dentro de poucos
dias o casamento da Sra. D. Adelaide Florbela Bueno de Aguiar com o Sr. Francisco Ribeiro Bueno de Morais.
É quase escusado dizer que houve banquete profuso e baile esplêndido, aos quais foram convidados o
compadre Tobias, o presidente da província, os lentes da Academia, as famílias mais gradas da cidade e a nata
da classe acadêmica.
Bueno de Morais era de inteligência um pouco menos que medíocre; tanto assim que, apesar de contar já os
seus vinte e sete anos, apenas, à custa de muito patronato e de muito alisar os bancos da Academia tinha podido
içar-se até o terceiro ano. Se já era por natureza algum tanto avesso às letras, a vida matrimonial e a tal ou qual
opulência, que entrou a fruir, acabaram de lhe tirar completamente o gosto pelo estudo. Perdeu o ano, e não
pôde fazer ato. Declarou a seu sogro que não podia mais continuar no curso acadêmico; que já possuía
instrução bastante para seguir a carreira que melhor lhe conviesse, e, conhecendo o fraco de seu Sogro,
apontou-lhe diversos exemplos de homens que, sem possuírem pergaminho algum, tinham atingido as mais
altas posições sociais. O sogro, posto que bastante contrariado, não teve remédio senão condescender com a
veleidade do genro, do qual ainda não desesperava, e perguntou-lhe em que desejava empregar-se. Morais
respondeu-lhe que precisava adquirir por seus próprios esforços alguma fortuna, que é a primeira base de uma
boa posição social, e que ele se sentia com decidida vocação para a carreira comercial, para a qual desde o
berço propendiam todas as suas inclinações. O major, acedendo a seus desejos, aconselhou-lhe que começasse
pelo negócio de muladeiro, que no seu entender era o que mais depressa podia enriquecer, e para prova dava o
seu próprio exemplo. Morais aceitou o conselho, e aproveitou-se da bolsa e largos abonos que o sogro lhe
facilitava; mas como homem, que tinha ainda menos prática de negócios do que dos livros, em menos de dois
anos deu literalmente com todos os burros nágua, e o sogro teve de sangrar sua burra em quantia considerável a
fim de desempenhar o genro para com seus fregueses de Sorocaba e Curitiba.
Entretanto, o luxo e a opulência continuavam a reinar na mesma escala no seio daquela família, com
aprazimento do major e muito especial agrado de Morais, cuja ocupação daí em diante cifrava-se em freqüentar
bailes e teatros, em alguns passeios com a família ou em bródios de estudantes, a cuja classe ainda se julgava
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filiado e cujos hábitos não tinha de todo perdido. Assim se passava o tempo, e entretanto a fortuna do major,
que ele havia acumulado à custa de penáveis trabalhos, durante uma longa vida de atividade e economia, lá se
ia escoando de um modo rápido e assustador. Já alquebrado pelos anos, o major não podia mais entregar-se à
vida laboriosa e fragueira de outrora: sentia, no entanto, a necessidade, senão de aumentar, ao menos de
conservar e manter no mesmo estado, por meio de alguma especulação vantajosa, um patrimônio, de que
dependia o futuro de sua descendência, e que seu genro, longe de fazer prosperar, só sabia dilapidar. Portanto,
para pôr um paradeiro ao desmantelamento de sua fortuna, lembrou-se de abrir no pavimento térreo da casa
nobre, em que agora o encontramos com toda a família, um vasto armazém de secos e molhados, em que por
cautela figurava como sócio de seu genro, em cuja gerência não confiava muito.
Ali, à testa de seu estabelecimento, o velho major, que para o comércio tinha bastante tino e aptidão, podia
tudo superintender e vedar que o genro comprometesse por suas imprudências os interesses da casa. Graças a
esse expediente, o major pôde.se abrigar de uma ruína inevitável, e Morais achou uma ocupação digna e
honesta, com a qual podia manter decentemente, e mesmo assegurar, o futuro da família sem meter a mão no
patrimônio do velho.
Passaram-se assim alguns anos de vida folgada e tranqüila, durante os quais a prole de Morais foi-se
aumentando até a época a que somos chegados.
CAPÍTULO III
CIÚMES
A aquisição da linda escrava Rosaura foi um motivo de festa por muitos dias na família do major. Era um
mimo, que há muito o avô desejava fazer à Estela, linda e interessante netinha, que era o seu ídolo; e para esse
fim tinha dado amplas autorizações ao genro. O mimo excedeu a sua expectativa, e valia realmente um tesouro.
Rosaura, nos primeiros dias, foi antes o enlevo e admiração da família, do que a escrava da casa. Adelaide a
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tratava com carinho maternal; Lucinda a rodeava de cuidados e procurava adivinhar-lhe os desejos; as crianças
não comiam um doce, uma gulodice qualquer, que não repartissem com ela; o major a chamava de minha
tetéia, e o Sr. Morais ficava às vezes a contemplá-la com ar tão terno e embevecido, que não deixava de causar
displicência e inquietação à Adelaide.
E Rosaura merecia bem essas contemplações e deferências. Ativa, inteligente e habilidosa, não se recusava a
serviço algum. Na cozinha ajudava a tia Lucinda com tal jeito e desembaraço, que fazia pasmar a velha preta.
Na sala engomava, cozia e bordava, de modo que encantava à sua senhora. Aos trabalhos os mais delicados,
como aos mais rudes e fragueiros, se oferecia e prestava não só com prontidão, como também com certo ar
afetuoso, que fazia crer que tomava gosto em seu cativeiro. Tratava das crianças com tal amabilidade, jeito e
carinho, que parecia não uma rapariga de quatorze anos, mas uma provecta mãe de família. Reunindo-se a estas
qualidades adoráveis o porte e o rosto de uma donzela, que poderia figurar em um salão aristocrático, pode-se
fazer idéia do tesouro inapreciável que, graças ao dinheiro do major e às diligências do seu genro, era hoje
propriedade da casa.
Quando estava em companhia, Rosaura era sempre alegre, meiga e afável; mas Lucinda e mesmo Adelaide a
tinham surpreendido a sós cismando tristemente, e às vezes com as lágrimas nos olhos.
– Que tem, Rosaura, que estás aí tão triste e amuada e quase a chorar? – perguntou-lhe uma vez Adelaide com
ternura.
– Nada, minha sinhá; é por que estava me lembrando de minha mãe, que já morreu.
– Ora! não chores, por favor! – replicou Adelaide, pousando a mão sobre a linda cabecinha de Rosaura. – Eu
também quase não conheci mãe, e não estou chorando. Não chores mais, não; eu também sou tua mãe.
E com estas doces palavras a menina se consolou e recobrou seu ar sereno e jovial.
Esse estado de paz e bem-aventurança doméstica infelizmente não pôde durar por muito tempo. A força de
contemplar todos os dias as belezas plásticas da formosa Rosaura, Morais se foi deixando arrastar por uma
paixão insensata e frenética por ela.
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Ou fosse um amor verdadeiro, íntimo e profundo, que lhe revolucionasse a alma, o que era bem possível à vista
da sedutora beleza da cativa, ou fosse o demônio da libidinagem, que lhe turvava o espírito e lhe inflamava o
sangue, o que é ainda mais provável, o certo é que Morais, sem atender nem ao menos às conveniências e ao
decoro da família, deixou entrever a cega paixão que o dominava. Um dia, não podendo mais conter-se,
declarou suas impudicas intenções à ingênua e virtuosa escrava, que mal as podia compreender. Senhor quase
absoluto da casa, fazia quotidianamente à inexperta rapariga pomposas promessas de liberdade, dinheiro e mil
felicidades, às quais a singela menina opunha sempre a mais rude e obstinada negativa. Com as repulsas e
esquivanças, ainda mais recrudescia a febre de ardente sensualismo que abrasava o sangue de Morais; depois
de ter empregado em vão todos os meios de sedução a seu alcance, lançou mão também das mais terríveis
ameaças.
– Se não ceder a meus desejos, Rosaura, – dizia-lhe ele nos transportes de sua insensata e lasciva paixão –
vendo-te aí a qualquer senhor libertino e sem coração, que fará contigo o que eu não posso, nem tenho ânimo
de fazer; que te amarrará de pés e mãos, e fará de ti o que muito bem quiser.
– Senhor – respondia a escrava, com uma resolução e firmeza para admirar em sua idade a condição é escusado
ameaçar-me, perde seu tempo; nunca cederei, nunca! Faça de mim o que quiser, tenho fé que Deus me há de
valer.
Morais rugia de raiva e desespero, mas nem assim deixava de prosseguir, cada vez com mais ardor, em seus
assaltos brutais contra a pudicícia da gentil escrava. Nesses torpes manejos, por mais que Morais se esforçasse
por ocultá-los não puderam escapar por muito tempo à sagacidade de Adelaide, que depressa colheu provas
manifestas do indigno procedimento de seu marido. Ela amava-o sinceramente, e essa triste descaída do esposo
magoou-lhe cruelmente o coração. Há doze anos era casada, e nunca até ali a mais ligeira nuvem de discórdia
viera perturbar a harmonia conjugal e toldar a serenidade do lar doméstico. Foi, portanto, um rude golpe para
sua alma, golpe que a feria e humilhava ao mesmo tempo, ver a paz, que até então tinha reinado no seio da
família, perturbada por tão ignóbil e vergonhoso motivo. Era Adelaide, como sabemos, de temperamento
ardente e irascível; não sabia abafar seus ressentimentos; eles faziam explosão com violência. Todavia, dessa
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vez corando por seu marido, o pejo e o pundonor tolheram-lhe, a princípio, as expansões de despeito e
indignação, de que trazia saturado o coração. A tal ponto, porém, chegaram os desmandos do Sr. Morais, que
ela não pôde conter-se por mais tempo. Rubra de pejo e de ressentimento, exprobrou ao marido seus
vergonhosos desvarios.
– O senhor – disse ela, depois de amargas queixas e pungentes invectivas – quer me pôr na dura necessidade de
comunicar tudo a meu pai, a fim de que ele mande para longe, forre ou venda essa pobre menina, causa por
certo inocente de semelhantes escândalos, e isso seria uma crueldade. Não, meu amigo – acrescentou ela,
ameigando a voz e abraçando o marido. – Espero que não continuará mais nesse mau caminho. É tua mulher
quem te pede em nome de nosso amor de doze anos, em nome de nossos inocentes filhinhos.
Morais sentiu-se algum tanto abalado com essas ternas e sentidas palavras da esposa, e quase sentiu remorsos
por afligi-Ia tanto com seu mau procedimento.
– Minha querida Adelaide – disse, com a mais bem fingida e refinada hipocrisia que se pode imaginar – como
pudeste dar entrada em teu coração a tão injustas suspeitas contra teu marido? Como pudeste imaginar, nessa
louca cabecinha, que eu seja capaz de ter tão depravadas intenções contra -ma pobre e interessante menina, que
só me inspira compaixão, interesse e simpatia? Gosto muito de Rosaura, acho-a muito engraçada e bonitinha,
amo-a mesmo se assim o queres, mas com esse amor de que falava um dos meus colegas, metido a poeta.
Amo-a como se ama as flores do campo, as estrelas do céu, o canto dos passarinhos. Amo-a como se ama tudo
quanto é belo na criação. É verdade que, às vezes, procuro beijá-la na fronte e mesmo na face, mas ela foge
toda espantadiça a coitadinha, não sabendo talvez que a procuro beijar, como beijo a meus filhinhos.
– Ah! senhor – disse a moça, fitando os lindos olhos do marido, como procurando ler-lhe no fundo da alma será
sincero o que me está dizendo?
– Juro pelo nosso amor, minha Adelaide!
Adelaide pareceu convenci da e tranqüilizada com as palavras do marido, e os dois esposos reconciliados se
abraçaram em mútua efusão de ternura. Mas o ciúme é como um cancro; quando uma vez se agarra ao coração,
nunca mais se pode extirpar completamente; por mais hábil que seja a mão do operador, lá ficam raízes e
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filamentos imperceptíveis, dos quais renasce e se alimenta a chaga devoradora. Morais, na persuasão de ter
iludido sua mulher e dissipado completamente suas desconfianças, abandonou-se daí em diante com mais
desembaraço ainda às expansões de sua louca paixão pela formosa escrava, e redobrou de ardis, seduções,
promessas e ameaças para rendê-la a seus impudicos desejos.
A proporção, porém, de seus esforços, com grande desesperação sua, mais recrescia a relutância da honesta e
inocente menina. Mas o ciúme não dorme, tem vista aguda e ouvido delicadíssimo. Adelaide, a despeito dos
protestos do marido que a tranqüilizaram momentaneamente, não deixava de espiar seus passos com disfarce e
fina sagacidade, e à vista do que ia observando, não podia convencer-se de que a afeição que ele consagrava a
Rosaura fosse amor puro e inocente, que procurava aparentar. Receando, porém, que o ciúme lhe estivesse
alucinando algum tanto o espírito, fazendo-lhe dar grandes proporções a coisas insignificantes, decidiu-se a
interrogar a própria Rosaura sobre esse particular, para acabar de uma vez com tão cruciantes incertezas.
Como se pode imaginar, foi um passo bem difícil e penível para ela entabular conversação a esse respeito com
uma escrava e com uma quase criança; mais era forçoso, para descobrimento da verdade e sossego de seu
coração.
– Rosaura... – disse ela, um dia, à escrava. Os meninos estavam ausentes e Rosaura, sentada a seus pés, sobre
um tapete, se ocupava em trabalhos de agulha.
Parece que o Sr. Morais te persegue e atormenta com carícias excessivas. Vejo-te às vezes correr dele
assustada, como lebre que foge ao cão. Que te quer ele?.. Não me dirás, Rosaura?
Fazendo estas perguntas, Adelaide procurava em vão disfarçar o amargor de suas palavras com certo tom de
gracejo.
– Não sei, minha senhora – respondeu a escrava, corando muito e com visível perturbação. – Ele gosta muito
de brincar comigo; mas eu tenho muito medo e respeito dele, e por isso fujo para perto de minha senhora.
– Fazes bem, Rosaura; mas tudo isso não passará de mero brinquedo?.. Estás bem certa disso?
– Eu acho que não passa de brinquedo: quer brincar comigo, como brinca com sinhá Estelinha.
– E ele não te diz nada?.. Não te declara coisa alguma?...
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– Eu mesma não sei o que ele diz; não escuto nada, e vou correndo para longe, porque tenho muito respeito, e...
A pobre escravinha queria ainda dizer muita coisa, mas de embaraçada, não sabendo explicar-se, nada mais
pôde dizer e parou na reticência, esperando mais alguma pergunta. Adelaide, porém, não quis insistir mais;
uma sinistra desconfiança lhe havia atravessado o espírito; a boa e simples Rosaura não quis declarar à sua
senhora toda a verdade, porque, apesar de sua pouca idade, era assisuada e discreta, e não queria atear o facho
da discórdia no seio da família; com suas hesitações, porém, e suas respostas tímidas e evasivas, teve a
infelicidade de produzir um efeito mil vezes pior do que aquele que desejava evitar. Notando as frases
indecisas, a perturbação e enleio de Rosaura, entrou pelo espírito de Adelaide a suspeita de que Rosaura era
cúmplice na deslealdade de seu marido, ou que, pelo menos, aceitava sem repugnância seus afagos, e por isso
procurava encobrir-lhe a verdade. Julgou-se duplamente ultrajada em seu pundonor de esposa, e em sua
qualidade de senhora, e tomou daí em diante tal indisposição contra a pobre escrava, que começou a tratá-la
não só com indiferença, mas com tão pronunciada malevolência, que esmagava o inocente coração de Rosaura.
É verdade que no fundo de sua alma não se extinguira de todo esse sentimento de terna simpatia, que Rosaura
lhe havia inspirado desde a primeira vez que a vira; mas a cegueira do ciúme sufocava quase sempre esse
sentimento, e a fazia tratar a escrava com o mais cruel desabrimento e aspereza. O mau humor de Adelaide
subia de ponto, e já não havia naquela casa a bonança, união e contentamento de outros tempos. Adelaide
ralhava sempre; os meninos andavam espantados e em gritos, vendo a bela cativa sempre amuada e chorosa, e a
mãe a mimoseá-la com os edificantes epítetos de delambida, tarasca e outros quejandos, que eles felizmente
não podiam compreender. O major estranhava, mas nem de leve suspeitava o verdadeiro motivo da mudança de
humor de sua filha, e perguntando a si mesmo a causa desse fenômeno o atribuía à volta de lua, e talvez a
algum novo astro, - ainda em gestação, que vinha aumentar a brilhante plêiade de sua ilustre descendência.
Morais, sem deixar de ativar suas diligências para seduzir a infeliz menina, todavia andava cabisbaixo e
desconfiado. Assim Rosaura vivia em contínua tribulação entre as perseguições do senhor e a rispidez e
malevolência da senhora. O demônio da discórdia tinha roçado sua asa negra por aquele lar, há pouco tão feliz,
alegre e esperançoso.
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CAPÍTULO IV
DESCOBERTA
Perseguições e tentativas as mais audaciosas não cessavam por parte de Morais, que, cada vez mais fascinado
pelos provocadores encantos da cativa, já tinha perdido a cabeça e pervertido o coração. Um dia, aproveitando
ocasião, que lhe pareceu azada, seus esforços tocaram a excessivo grau de audácia e violência; a menina a
muito custo pôde escapar-lhe dos braços, toda desalinhada e com as roupas dilaceradas. Não teve ânimo de
correr para junto de sua senhora naquele estado de agitação e desalinho, receosa de provocar uma cena do mais
deplorável e vergonhoso escândalo, e talvez das mais terríveis conseqüências. . Eram quatro para cinco horas
da tarde. Rosaura arrojou-se anelante e trêmula, como corça escapada às garras do jaguar, para um quarto
interior, que era ocupado por Lucinda, que nessa hora estava a fiar em um fuso de mão. Rosaura entrou
bruscamente e atirou-se desatinada sobre a cama da velha preta, arquejante e abafando lágrimas e soluços, que
lhe empolavam os seios e lhe queimavam as pálpebras.
– Que é isso, menina? – exclamou a preta, levantando-se assustada e chegando-se para perto de Rosaura. – O
que é que te aconteceu?..
Rosaura, debruçada sobre a cama, escondendo o rosto e o seio, nada respondia e continuava a chorar e soluçar.
Lucinda pegou-lhe brandamente nos braços, que estavam cruzados sobre o peito, e com carinho a fez sentar-se.
O corpilho do vestido da menina, todo lacerado e descosido, deixava ver completamente nus os brancos e
mimosos seios, que arfavam violentamente, trêmulos e medrosos como duas alvas pombas, que se recolhem ao
ninho, fugindo às garras do gavião.
De súbito Lucinda soltou um grito de espanto, como se um raio luminoso lhe tivesse atravessado o espírito.
– Ah!... meu Deus! – exclamou ela – espera, menina; deixa ver o que é isto que você tem aqui debaixo do peito
esquerdo.
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A preta abaixou o rosto sobre o peito de Rosaura, e observou com atenção.
– Jesus!... Santo nome de Jesus! – murmurou ela, com voz sumida, quase falando consigo mesma. – Que é isso,
Deus grande!? Será possível que essa Rosaura seja a filha de sinhá Adelaide!... Rosaura, o que foi isto?
Conta-me! – continuou ela, com voz mais clara. – O que é que você tem?.. Sinhá te ralhou?
– Não – respondeu soluçando a pobre menina sinhá não me ralha; meu senhor é que me persegue.
– Ah! coitadinha!... Logo vi. Você pensa que eu já não percebi a má tenção de sinhô moço?.. Cruz! que homem
ruim é aquele! mas sossega, minha filha, não há de ser nada. Eu vou buscar roupa para você mudar, e depois
você há de me contar uma coisa.
– Pois sim, tia Lucinda; vai mesmo, vai me buscar outro vestido, que eu assim não posso aparecer; o que é que
sinhá Adelaide há de pensar de mim, vendo-me neste estado? Lucinda, como o leitor deve lembrar-se, foi
quem recebeu nos braços, quando veio à luz do mundo, a mimosa e infeliz criança fruto dos amores
clandestinos de Conrado e Adelaide; foi ela quem lavou, pensou, vestiu e depois expôs, com boas e louváveis
intenções, a mísera recém-nascida à porta de Nhá Tuca. Tinha-lhe feito impressão e trazia gravado na
lembrança um sinalzinho nluito distinto, que a criança tinha do lado esquerdo, pouco mais ou menos na altura
do coração, em forma de cruz, semelhando um hábito do cruzeiro. Rosaura apresentava agora um sinal em tudo
igual e semelhante, se bem que um pouco deslocado. Demais, Lucinda já havia notado uma tal ou qual
semelhança das feições de Rosaura com as de Adelaide, e mais ainda com as de Conrado. Entretanto, estava
certíssima que vira estendida em seu pequeno féretro ornado de flores e capelas o cadáver da filhinha de sua
sinhá. A preta entrou a cismar sobre essa estranha coincidência, e uma forte suposição, quase com o caráter da
certeza, penetrou-lhe no espírito. Rosaura era a enjeitada; Rosaura era a filha de Adelaide e Conrado; a criança,
que vira morta, era outra.
– Anda, minha filha, toma, muda essa roupa – disse Lucinda, entrando e entregando à Rosaura um vestido.
– Agora - continuou ela, depois de ter ajudado a menina a vestir-se – agora, você há de me dizer uma coisa, que
ainda não me disse, porque eu ainda não perguntei. Donde é que você é?... Quem foi teu sinhô ou tua sinhá, que
te vendeu para sinhô Morais?... Você é daqui mesmo de S. Paulo?... Fala verdade, minha filha.
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– Tia Lucinda, que precisão tenho eu de mentir? Sou mesmo aqui de S. Paulo; sou cria da casa de uma mulher
velha, que mora na beira da estrada, que vai para as bandas de Jundiaí, chamada Nhá Tuca. Minha mãe morreu,
já vai para cinco anos...
– E de que cor era tua mãe? – atalhou Lucinda.
– Minha mãe?.. Minha mãe era... era um pouco mais trigueira do que eu.
– Ah! logo vi; era mulata – murmurou consigo a preta. – O que eu desconfio vai tomando rumo. E depois,
minha, filha?
– E depois, eu havía de ter uns dez anos, minha sinhá me vendeu a um homem velho, que costumava comprar
para vender por fora comboio de escravos. Ele e a mulher dele ficaram gostando de mim, me estimavam muito,
e não me queriam vender por nada. Se não fosse o Sr. Morais, que tanto teimou e ofereceu tanto dinheiro, eles
não me vendiam.
– Mas escuta, menina; você nunca ouviu dizer que lá na casa de Nhá Tuca, quando você nasceu, aconteceu
alguma coisa?...
– Não, tia Lucinda; não me lembro de nada.
– Puxa pela memória, menina; lembra bem... talvez.. .
– Ah! Ah!... agora me lembro, tia Lucinda, – replicou Rosaura, batendo na alva testa com os rosados dedinhos;
– agora me lembro que lá em casa de sinhá velha ouvi contar que, no dia em que eu nasci, apareceu na porta de
casa uma menina enjeitada, que morreu no mesmo dia.
– Santo nome de Jesus! – murmurou Lucinda, benzendo-se. – Eis aí como são as coisas deste mundo!... Ah!
Rosaura! Rosaura!... está me parecendo que essa menina enjeitada não morreu nada.
– Como assim, tia Lucinda?...
– Não sei, minha filha, mas tenho cá minhas cismas... Deixa estar, menina; ou eu não sou filha de minha mãe,
ou hei de desmanchar essa candonga, seja lá como for.
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Nesse momento apareceu Estela, que vinha chamar Rosaura, e Lucinda achando-se a sós ficou a banzar sobre o
estranho caso que acabava de presenciar, e quanto mais cismava, mais se convencia de que Rosaura era a filha
de Adelaide, que ela havia exposto na porta da casa da velha Gertrudes.
– Deus de misericórdia! – pensava ela. – Como é que pode acontecer uma coisa destas!... A mãe, sem saber,
comprar sua própria filha e tê-la em casa como escrava!... E há de continuar a tê-la nessa conta sem nunca
poder saber a verdade!? Não; isto não pode continuar assim. Deus não quer isso. Agora, que pouco mais ou
menos já dei na malhada, hei de botar tudo isso em pratos limpos, custe o que custar!
Assim reflexionando, a preta começou a excogitar os meios que empregaria para rasgar completamente o véu
daquele mistério, que um acaso, ou antes, um assinalado favor da Providência, lhe ia revelando.
Para Lucinda já era fora de dúvida que Rosaura era a filha de Adelaide; mas nem a sua convicção pessoal, nem
sua mera asseveração, nem mesmo a alegação dos veementes indícios, que corroboravam sua suspeita, seriam
suficientes para restituir Rosaura à posição que, pelo nascimento, lhe era devida. Depois de muito pensar,
convenceu-se de que ela, pobre e ignorante escrava, por si só nada podia fazer de acertado e eficaz naquela
conjuntura; pensou que o melhor expediente, de que podia lançar mão, era comunicar imediatamente sua
descoberta à Adelaide. Esta, em vista de tão valentes indícios, sem dúvida não hesitaria em reconhecer quanto
era natural e plausível a suposição da escrava. Demais, a boa e sensível preta, que apesar de sua condição
conhecia os mais delicados sentimentos do coração humano, sabia que, a ser exato o que supunha, a voz da
natureza, esse poderoso instinto que jamais engana, juntando-se a tantas outras provas auxiliares, viria cortar
toda a dúvida e dizer a última palavra.
Firme em seu propósito, Lucinda esperou pelas horas mais adiantadas da noite, em que o Sr. Morais saía a
passeio, como era de costume, e em que as crianças estavam dormindo, para fazer à sua sinhá a revelação do
mistério, que lhe preocupava o espírito.
CAPÍTULO V
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CONFIDÊNCIA
Era perto de dez horas da noite. Em casa do Major Damásio tudo repousava em profundo silêncio. As crianças
dormiam o sono suave e tranqüilo da inocência. Rosaura que tinha o seu aposento em um pequeno quarto
imediato à alcova de sua senhora, apesar dos transes e inquietações por que passara, há muito que adormecera.
Havia chorado um pouco antes de conciliar o sono, pensando nas perseguições de Morais, e mais ainda nos
desabrimentos da senhora; mas graças aos seus quatorze anos, à pureza de seu coração e à tranqüilidade de seu
espírito, a insônia lhe era desconhecida.
Só Adelaide velava, refletindo nas ingratidões e desvarios do marido e na pretendida deslealdade de Rosaura da
qual a cegueira do ciúme lhe fazia formar tão mau conceito. .
Todavia, quando com o espírito mais calmo se lembrava da fisionomia da menina, tão cheia de pudor e
candura, de suas maneiras tão honestas e recatadas, de sua índole tão dócil e fagueira, repugnava-lhe a idéia do
mau procedimento que lhe atribuía em seus acessos de despeito, e um misterioso sentimento de benevolência e
ternura como que a obrigava a inocentar no íntimo da alma a desventurada escravinha. À força de entregar-se
ao embate de tantas tribulações e dissabores, Adelaide havia chorado, e, encostada a um bufete, tinha os olhos
rubros e úmidos quando Lucinda lhe entrou pelo quarto.
– Santa Virgem! – exclamou a preta, observando a fisionomia alterada e os olhos macerados da senhora. – O
que é que lhe aconteceu, sinhazinha?
– Nada, Lucinda; absolutamente nada.
– Nada! Não me engana... Como é que sinhazinha então está assim com os olhos vermelhos e cheios dágua?
– É: verdade, Lucinda; estava pensando em coisas bem desagradáveis, e creio que chorei um pouco... mas...
– Mas o quê, sinhazinha?... Não me esconda nada, não; pode sem susto abrir seu coração com sua preta. Não
quero ver sinhazinha chorando assim; o que é que mecê tem?
Lucinda, como o leitor sabe, fora outrora, em circunstâncias bem críticas, a amiga dedicada, a leal confidente e
a única depositária do maior, ou antes, do único segredo de Adelaide. Esta, portanto, não tinha razão para
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recusar-se a explicar-lhe o motivo de seus desgostos, e naquela ocasião até estimou o aparecimento e a
interpelação da escrava, porque tinha realmente necessidade de desabafar com alguém as mágoas, que lhe
oprimiam o coração. E com quem melhor poderia ela abrir sua alma, do que com a velha e leal escrava, que de
tanto lhe tinha valido nos mais apertados e melindrosos transes de sua vida íntima?
Assim a preta, que viera para fazer uma revelação, teve de ouvir, em primeiro lugar, as confidências e
queixumes da senhora; tanto melhor para Lucinda, que assim se acabava em mais favoráveis disposições para
entrar com sua senhora em conversação confidencial. Adelaide, com algum vexame e embaraço, mas em
poucas e rápidas palavras, expôs à escrava o motivo de seus desgostos; contou não só as impudentes tentativas,
que seu marido fazia quase à sua vista, para seduzir Rosaura, como também as desconfianças que nutria a
respeito desta.
– Eu sei já disso tudo, sinhazinha; – disse Lucinda – mecê tem razão contra sinhô moço; com efeito, ele tem
andado muito mal. Mas a respeito da pobre menina, sinhazinha anda muito enganada. Se sinhazinha soubesse
quem é esta Rosaura!...
– Sei bem, Lucinda; ela me parece muito boa rapariga, cuidadosa, diligente e muito carinhosa com as crianças,
mas... desconfio... .
– Deixa dessas desconfianças, sinhazinha. Rosaura não é capaz disso. Se sinhazinha soubesse tudo, como eu
sei, em vez de zangar-se com ela, havia de trazê-la mesmo dentro do seio, como se fosse sua filha.
A estas palavras, Adelaide sentiu um estremecimento involuntário.
– Como se fosse minha filha! Por que dizes isto, Lucinda?
– Sim, senhora, – insistiu a escrava – como se fosse sua filha, e sinhazinha havia de arrepender-se mil vezes de
tê-la em tão ruim conta. Há aí uma coisa, que eu devo, por força, contar à sinhazinha, se não quiser botar minha
alma no inferno .
– O que é? Conta, Lucinda. Será ainda alguma desgraça?
– Não, sinhazinha, não é nenhuma desgraça; antes pelo contrário, é coisa de lhe dar muito gosto e alegria.
– Deveras, Lucinda?.. Pois conta depressa o que é isso.
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Lucinda, então, acocorando-se aos pés da senhora, e abafando a voz para não acordar as crianças e Rosaura,
que dormia ali bem perto, contou por miúdo tudo quanto nessa tarde se tinha passado entre ela e Rosaura e a
plena convicção em que estava, à vista de tão veementes indícios, de que a escrava que o Sr. Morais havia
comprado não era outra senão a filha de Adelaide, que ela Lucinda havia exposto em casa de Nhá Tuca e que,
não se sabe com que interesse ou para que fim, fizeram passar por morta.
– Meu Deus! meu Deus! – exclamou a moça, levantando as mãos ao céu. – Será possível!... Ter, sem o saber,
comprado como escrava minha própria filha!...
Ah! se assim é, Lucinda, foi Deus, foi a Divina Providência, que se serviu das más intenções de meu marido e
fez Rosaura correr para junto de ti naquele estado, a fim de tudo se descobrir. Sem isso, era bem possível que
ela ficasse por muito tempo, talvez por toda a vida, condenada ao cativeiro e isso em casa de sua mãe, no meio
de suas irmãs!... Ah! só de pensar nisso arrepiam-se-me as carnes e se me espedaça o coração!...
– Mas agora, sinhazinha, só tem motivo para dar graças a Deus, que não permitiu que assim acontecesse.
– É verdade, Lucinda. Ah! Rosaura! Rosaura! minha infeliz filhinha! - continuou Adelaide, estendendo os
braços para o lado, em que dormia Rosaura. – Perdoa-me; enganaram-me; eu não podia saber do teu destino;
mas hoje, graças a Deus, vejo-te viva e perto de mim! Mas ah! isso parece-me impossível – continuou ela a
bracos ainda com a incredulidade. – Viste bem esse sinal, Lucinda? Quem sabe se não há algum engano da tua
parte? Quase todo o mundo nasce com algum sinalzinho no corpo.
– Isso é verdade; mas no mesmo lugar, do mesmo tamanho e do mesmo feitio, sinhazinha?! E de mais a mais
acontecer que, no mesmo dia em que Rosaura nasceu, morreu uma criança enjeitada em casa de Nhá Tuca?!
Imagina bem, sinhazinha, e verá se aí anda alguma tramada, ou não. Demais disso, repara bem na carinha de
Rosaura, sinhazinha, e me diga com quem ela dá ares. Ela se parece com sinhazinha, um pouco, porém, ainda
mais com certa pessoa, que mecê bem sabe.
– Sim! sim! cala-te, Lucinda! Tudo isso é verdade – disse Adelaide, arquejando de emoção. – Além disso,
desde a primeira vez que pus os olhos em Rosaura, comecei a sentir por ela uma afeição e ternura de mãe... Oh!
Lucinda!... não há dúvida mais para mim... Rosaura é minha filha.
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A surpresa e emoção de Adelaide eram extremas. Muito havia ela sofrido por amor daquele primeiro fruto de
um amor infeliz; os longos anos, que haviam decorrido, a felicidade conjugal, que havia encontrado, os
carinhos do pai e do espôso, as carícias dos filhinhos não tinham podido apagar a lembrança da inocente e
infeliz menina, que do seio materno passara a braços estranhos e deles ao túmulo, nem estancar de todo o
pranto, que tão dolorosa recordação às vezes lhe arrancava ao coração. Nesses Últimos dias, principalmente, e
depois que Morais, desmentindo o seu passado, se entregava a desregramentos indesculpáveis, sofria mais
cruelmente que nunca, e sentindo o remorso atassalhar-me a alma, atribuía sua desgraça a castigo de Deus
pelas fraquezas de sua mocidade.
– Rosaura, minha filha, perdoa-me! – exclamava ela, com lágrimas nos olhos, querendo precipitar-se no quarto
vizinho a ir abraçar a menina, que dormia o sono dos anjos. Lucinda a custo pôde conter e acalmar sua senhora.
'
– Não, minha sinhá; não acorda a menina ainda não; deixa ela dormir. Por enquanto é bom que ela não saiba
nada do que se passa. Antes de tudo é preciso procurar modos de tirá-Ia do cativeiro e justificar que ela nasceu
livre. Mas já vai ficando tarde, e sinhô Morais não pode tardar por aí. Amanhã nós precisamos conversar para
ver como se há de arrumar isso, ouviu, sinhazinha?
A preta tomou a bênção e retirou-se. Daí a pouco, chegou o Sr. Morais, que fatigado dos passeios, tratou
imediatamente de deitar-se, e em breve adormeceu profundamente. Adelaide, porém, com o espírito
superexcita do pelo singular e estranho acontecimento que acabava de lhe ser revelado, não podia conciliar o
sono. Por três vezes levantou-se, e tomando a lâmpada, que ardia sobre um bufete, enquanto todos dormiam,
dirigia-se pé ante pé para o quarto de Rosaura, e ali, sentando-se de mansinho à beira da cama da menina
adormecida, ficava por longo tempo a contemplar-lhe o rosto angélico que lhe despertava nalma recordações a
um tempo tão tristes e tão suaves. Da terceira vez que lá foi, o semblante da gentil escrava apresentava um
aspecto ainda mais risonho e encantador; um sonho celestial parecia iluminar-lhe a fisionomia.
Adelaide a contemplava absorta e enlevada, e a muito custo continha-se para não estreitá-Ia nos braços e
cobri-Ia de beijos. Dir-se-ia que a filha, apesar de ter os olhos cerrados, estava vendo com os olhos dalma o
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rosto da mãe, que a contemplava, procurava sorrir-lhe e se esforçava por lançar-lhe ao colo os braços
entorpecidos pelo sono. De'feito, passados alguns instantes, os braços de Rosaura fizeram um pequeno
movimento para se erguerem, e a rosada boquinha entreabriu-se, mostrando os alvos dentes, num sorriso cheio
de carícia e meiguice. Adelaide não pode conter-se; abaixou o rosto sobre o de Rosaura, e a mãe, em um
assomo de inefável ternura, encostou sua boca à da filha, e colheu nos lábios dela aquele angélico sorriso,
como o colibri colhe a gôta de mel no cálix de uma rosa.
Rosaura acordou e abriu os olhos; mas já Adelaide, medrosa como o amante, que tivesse furtado um beijo à
amada adormecida, tinha apagado a lâmpada ràpidamente e se esgueirado para sua alcova.
CAPÍTULO VI
UM SONHO REALIDADE
A descoberta que Lucinda acabava de fazer, havia colocado Adelaide na mais singular e complicada situação.
O vivo prazer, que experimentava vendo sua filha como que ressuscitada, e além disso crescida, vigorosa e bela
como um anjo, era contrabalançado por considerações, que o leitor bem pode avaliar.' Tinha sua filha em casa,
é verdade, mas como escrava, como propriedade, como um móvel. Era-lhe possível talvez libertá-la à força de
instâncias e súplicas para com seu pai e seu marido, e depois conservá-la por tempo indefinido em casa junto a
si, mas como liberta, e não como filha, não como irmã de seus outros filhinhos. Bem se vê que isso só poderia
suavizar um pouco a sorte da infeliz enjeitada, mas seria dolorosíssimo para um coração materno. Era mister ao
menos que se verificasse que Rosaura, embora não se declarasse ser filha de Adelaide, não nascera cativa, e
que só um cruel e inexplicável destino a fizera passar por isso, e como tal ser vendida de mão em mão. Demais,
esse fato, de que somente Adelaide e Lucinda se achavam intimamente convencidas, não estava comprovado
senão pelos indícios, aliás robustíssimos, em que se firmava a velha escrava.
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Essas provas, porém, não eram ainda peremptórias, e não constituíam senão presunções muito fortes em favor
da suposição de Lucinda. Sem algum documento escrito, sem alguma justificação irrefragável, essa suposição
podia cair por terra, como mero embuste de negra velha, e a condição de escrava da pobre Rosaura, não tendo
nenhum fundamento sólido para ser contestada, nem ao menos poderia ser posta em litígio.
Não eram, porém, só esses os maiores embaraços com que lutava o espírito atribulado da pobre senhora.
Mesmo que Rosaura fosse reconhecida livre e nascida de pais livres, jamais poderia ser reconhecida como sua
filha, sem que se revelasse a nódoa do seu passado e sem incorrer no desprezo e talvez no ódio de um e outro.
Poderia ela confessar a um e a outro a sua falta, com esperança de obter indulgência e perdão? Era
principalmente para com o esposo que a posição de Adelaide se tinha tornado uma das mais difíceis e
angustiosas que se pode imaginar. Confessar ao marido uma falta, que há mais de doze anos lhe havia ocultado,
era um passo arriscadíssimo, a que jamais se abalançaria. Tinha vergonha e também muito medo da cólera do
marido. Quando se ama uma mulher, que se julga pura, o ciúme não perdoa nem mesmo as fraquezas do
passado.
Lutando com essas angústias do coração e perplexidades do espírito, Adelaide, que nem um momento
adormecera, esperou ansiosa o alvorecer do dia. Rosaura, com um semblante risonho e tranqüilo, foi a primeira
que veio perdir-lhe a bênção. Adelaide olhou para ela com enternecimento, e deu-lhe a mão a beijar, o que
muito alegrou o coração da pobre menina.
Adelaide esperava com impaciência uma ocasião oportuna, em que, achando-se a sós com Lucinda, se
aconselhasse com ela a fim de combinar os meios de salvar Rosaura das garras do cativeiro e fazê-la
reconhecer como livre de nascimento sem comprometer a honra de Adealide; sem revelar o triste
acontecimento, que até ali, felizmente, havia dormido na sombra do mais profundo mistério.
Temos falado de Lucinda, e temo-la visto fazer um papel importante nesta história, sem lhe darmos o devido
apreço. Era uma crioula velha, que havia amamentado sinhá Adelaide, e que a queria como filha. Tinha muito
juízo, muito boa alma e muito boas intenções. Além disso, a velha crioula era dotada de tal ronha, penetração e
finura para negócios difíceis, como os de que vamos tratando, que faria inveja ao mais hábil diplomata.
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Lucinda, porém, diferia dos diplomatas em só empregar o seu talento a bem da paz e da prosperidade da
família de que fazia parte, e não em multiplicar dificuldades, alimentando o espírito de discórdia.
Rosaura, que tinha acordado alegre e risonha como um passarinho, que saúda uma bela aurora, apenas tomou a
bênção à Adelaide, correu logo a tagarelar com Lucinda.
– Tia Lucinda, não sabe?... Tive, esta noite, um sonho, o mais bonito deste mundo, um sonho que me fez chorar
de alegria.
– Deveras, menina?... Bem bom é isso. Então que foi?...
– Adivinha, tia Lucinda.
– Não sou adivinhadeira... mas decerto você sonhou com os anjinhos do céu, minha menina. Que mais podia
você sonhar?
– É quase isso mesmo, tia Lucinda. Eu sonhei que estava debruçada na janela, olhando para o céu. Era de noite.
Eu estava namorando as estrelas...
– Bonito namoro – interrompeu a crioula – de certo elas também te estavam namorando.
– Comecei a lembrar-me de minha mãe, que já morreu – continuou a menina, sem dar muita atenção à
lisonjeira réplica da crioula – quando uma nuvem cheia de luz se apresentou no céu, mesmo defronte de meus
olhos. Essa nuvem veio descendo pouco a pouco, até chegar bem perto de mim. Dentro dela vinha uma mulher.
A princípio, fiquei com medo; mas essa mulher tinha um ar muito meigo, e disse-me com brandura:
– Minha filha, não chores mais tua mãe; eu não morri, não; fui ao céu, e agora volto para ficar contigo.
Se ela não tivesse dito que era minha mãe, eu não a conhecia. Era uma mulher muito mais moça e muito mais
bonita que a defunta mamãe. Tinha os cabelos bem compridos e soltos, e a cor mais clara. Queria abraçá-la,
mas não podia; ela chegou bem pertinho e deu-me um beijo na boca. Acordei, mas até agora ainda me parece
que estou sonhando aquele sonho.
– Deveras? – disse Lucinda. – E quem sabe se esse sonho não era verdade?
– Como!... Isso não é possível!...
– Deixa estar, minha menina; esse teu bonito sonho é ao menos de muito bom agouro.
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– Deus o permita, tia Lucinda.
Nesse momento apareceu Adelaide, e depois de ter encarregado a Rosaura de cuidar do almoço, chamou
Lucinda a seu quarto. O marido e o pai tinham descido para a loja; os meninos, alegres e descuidosos,
brincavam pela casa.
Lucinda antes de tudo contou à sua sinhá o sonho de Rosaura.
– Que singular coincidência! – exclamou Adelaide, comovida até o íntimo da alma. – Havia de ser por certo no
momento em que eu estava perto dela alumiando-lhe o rosto, e que ela riu-se para mim, sonhando e eu
beijei-lhe a boca.
– Ah! minha sinhazinha, que me está dizendo? Isso é deveras?...
– É a pura verdade, Lucinda; fui por três vezes com a luz na mão espiar o sono de... de minha filha, sim, de
minha filha; hoje estou certíssima de que Rosaura é minha filha.
– E sinhazinha não está vendo que aí anda o dedo de Deus? Bem estava eu dizendo ainda agora a Rosaura que
aquele sonho tão bonito bem podia ser uma verdade; e era mesmo, mais do que eu pensava. Essa mãe, que não
morreu, e que ela estava vendo, quem era mais senão sua mãe verdadeira, senão sinhazinha mesmo.
– É isso, Lucinda; parece que Deus por fim se compadece de mim, e nos quer favorecer, e tenho esperança de
que Rosaura ainda há de ser muito feliz. Mas vamos ao que agora mais importa; o que havemos de fazer a bem
de Rosaura? Pensaste nisso, Lucinda?
– Ah! sinhazinha, eu banzei a noite inteira parafusando na imaginação um modo de arranjar isso, sem que
sinhazinha fique mal, e só achei um furo.
– Qual é ele? Fala, Lucinda.
– Talvez sinhazinha não ache bom, mas eu não vejo outro remédio.
– Não tenhas receio, fala, Lucinda; para conseguir a liberdade e fazer a felicidade de minha filha, estou
disposta a tudo.
– Está direito, e mesmo eu penso que é de nossa obrigação fazer o que me veio cá na idéia.
– O que é então, Lucinda? Estou impaciente por saber.
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– Sinhazinha sabe que sinhá Rosaura não é sua só...
– Pois de quem mais é?
- Ui sinhazinha!... pois não é também de nhô Conrado?
– Ah! por certo – respondeu Adelaide, corando e baixando os olhos.
– Nesse caso, nós devemos participar tudo a ele. Se ele não puder nos guiar e ajudar neste negócio, ninguém
mais. Ele é rico, e tem muito boas amizades na terra; e demais sinhazinha bem pode imaginar quanto ele é
capaz de fazer, sabendo que tem uma filha linda e mimosa, e que essa filha está no cativeiro.
– Tens muita razão, Lucinda; e eu que nem nisso havia pensado! Mas a falar-te com franqueza, repugna-me
bastante dar esse passo. Não vá ele agastar-se comigo, ficar nos tendo ódio e desprezo por termos enjeitado a
menina, e no excesso de sua indignação revelar tudo a meu pai e a meu marido, e expor-me à vergonha e
desprezo de todos aqui. Ah! Lucinda, tenho muito medo.
– Nem pensar nisso, sinhazinha; eu conheço. muito nhô Conrado; ele é incapaz disso. Tem muito bom coração
aquele moço, e bastante juízo para ver que sinhazinha não podia criar sua filha. O que depois aconteceu não foi
por culpa nossa.
– Mas ele decerto me há de ter ódio por ter-me casado com outro.
– Qual ódio, sinhazinha! Então ele não há de saber que aqui correu como certo que ele tinha morrido !
Por fim de contas, não vejo senão ele, que pode e deve amparar a pobre Rosaura. Deixa tudo por minha conta,
sinhazinha; hoje mesmo eu vou conversar com nhô Conrado; primeiramente hei de sondar ele com jeito, e
depois se eu perceber nele boa disposição, como espero, conto-lhe tudo sem esconder nem disfarçar coisa
nenhuma. Sinhazinha me manda hoje de tarde à rua para qualquer serviço, e eu vou direitinho à casa de nhô
Conrado, e logo de noite lhe venho dar conta do que se passar.
– Pois sim, Lucinda; agora compreendo que é indispensável fazer tudo quanto dizes; eu, fraca mulher, nada
posso fazer em benefício de minha infeliz filha. Ele é pai, deve e pode fazer tudo. Deus nos há de favorecer,
Lucinda; confiemos nele.
153
CAPÍTULO VII
CONRADO CAPITALISTA
Já que Conrado, que por tanto tempo passava por morto, agora nos aparece de novo vivo, rico e feliz ao menos
na aparência, é-nos indispensável dar conta, por alto, ao leitor, de como essa notícia se propagou com caráter
de tanta veracidade, e do que sucedeu ao amante de Adelaide, depois que tão ignominiosa e brutalmente foi
expedido da casa do major.
Conrado saiu de S. Paulo com o desespero na alma e a mais pungente dor cravada no coração. Tinha bastante
dinheiro para um rapaz solteiro, e achando-se inteiramente isento de dívidas e compromissos, saiu a divagar
pelo mundo sem destino certo, a ver se pelas distrações da viagem conseguia mitigar a mágoa, que lhe
atormentava a existência. Assim andou por espaço de dois anos, peregrinando pelas províncias do Rio de
Janeiro, Minas e Bahia, dispendendo a pequena fortuna, que em seis meses o amor lhe fizera adquirir para ir
depor aos pés de sua querida Adelaide; mas a despeito de todas as suas tentativas não conseguiu esquecer-se da
formosa companheira e amiga de sua infância, da apaixonada e extremosa amante, que na mocidade lhe vertera
pelos caminhos da vida o perfume do amor e da felicidade. Escreveu-lhe por diversas vezes, esperando sempre
uma resposta, que nunca lhe chegou, porque como sabemos Adelaide não recebera nenhuma de suas cartas. No
fim de dois anos, chegou-lhe às mãos uma carta, não dirigida a ele, que em S. Paulo passava por morto, mas a
um paulista então residente no Sincorá, onde Conrado também se achava, na qual entre outras coisas se
noticiava o casamento de Adelaide.
Esse rude e doloroso golpe o prostrou por muito tempo, sua razão esteve a extinguir-se, e sua existência vacilou
às bordas da sepultura; seus amigos e mesmo os médicos, que o assistiam, chegaram a desesperar de sua vida.
Mas sua juvenil e robusta organização não permitiu que sucumbisse aos sofrimentos físicos e morais, que o
atormentavam. Restabeleceu-se, se bem que com custo e lentidão, e logo que se sentiu com o juízo mais firme
e a saúde mais vigorosa, começou a pensar no que deveriar fazer. O amor de Adelaide não era para ele dali em
154
diante mais do que um túmulo, sobre o qual não deveria derramar nem as lágrimas da compaixão, nem as flores
da saudade, mas sim calcá-Io aos pés com ódio e com desprezo. Suas mágoas desde então converteram-se em
rancor e desejos de vingança. Protestou no fundo dalma que tomaria do Major Damásio, autor principal dos
seus infortúnios, a mais solene e cabal vingança, não vingança sanguinosa, Conrado não tinha instintos de
ferocidade, mas vingança moral, abatendo-lhe o orgulho e esmagando-o debaixo do peso da mais pungente
humilhação. Nada lhe era mais fácil; o major em sua vida passada oferecia largas brechas, pelas quais podia ser
atacado e abatido até o rés do chão. Para esse fim só lhe era mister agora tornar-se rico o mais que lhe fosse
possível. Não possuía dinheiro suficiente para entrar em altas especulações; mas já era muito conhecido e
considerado entre os estancieiros de Curitiba, e não lhe faltava crédito, graças ao feliz êxito de seus primeiros
negócios. Entrou de novo na vida de muladeiro, e em poucos anos adquiriu uma fortuna, que naquela época,
em S. Paulo, bem se podia dizer colossal. O que o amor outrora lhe fizera alcançar, hoje o obtinha em mais alta
escala o desejo de vingança.
Achando-se já suficientemente rico para passar vida independente entre os esplendores de luxo e de opulência,
deixou a vida fragueira de muladeiro, e veio estabelecer-se na capital da província, onde comprou, no centro da
cidade, um vasto prédio, que ornou e mobiliou com todo o luxo e magnificência. Possuía uma cocheira sempre
guarnecida dos mais belos e vigorosos animais, e uma formosa e elegante caleche, na qual se apavonava com
aristocrático desplante com personagens altamente colocados, percorrendo as ruas mais públicas da cidade.
Com essa ostentação, que nem estava em seu caráter lhano e despretensioso, nem se harmonizava com suas
idéias eminentemente democráticas, tinha somente em vista esmagar a estólida vaidade do major, ao qual
pretendia não só humilhar, como também expor ao último ridículo perante a sociedade paulistana. Três ou
quatro vezes mais rico do que ele, conhecendo a baixa linhagem de que procedia o seu velho ex-patrão, e
sabedor de todas as suas manias e de seus precedentes, Conrado jogava com inquestionável superioridade, e o
capataz, outrora achincalhado e expelido, podia agora, calcar aos pés a filáucia ridícula e imbecil de seu antigo
patrão. Todavia, as vingativas intenções, com que chegara a São Paulo, esmoreceram e esfriaram
completamente com as informações que teve logo depois da sua chegada. Só então soube que há muito tempo
155
passava por morto. Esse boato, que correra em S. Paulo e fora geralmente acreditado, tivera por origem o fato
de ter realmente morrido no Sincorá um outro negociante do mesmo nome e da mesma província que Conrado,
e tendo chegado essa notícia a S. Paulo, onde o outro era desconhecido, todos facilmente acreditaram que o
falecido era o amante de Adelaide. O Major Damásio foi o mais empenhado em propalar essa notícia, que
muito estimou, fingindo até ter recebido cartas, que a confirmavam, pois ele até seria capaz de inventá-la, só
para destruir as esperanças que sua filha porventura ainda nutrisse a respeito do capataz. O tempo, os trabalhos
e os sofrimentos não tinham podido extinguir de todo, no coração de Conrado, aquele amor profundo e ardente,
que concebera por aquela que fora o enlêvo de seus primeiros anos, e o sonho inebriante de sua mocidade,
amor de que conservava ainda amarga e saudosa recordação. Ao saber em S. Paulo que Adelaide fora iludida
como todos, acreditando em sua morte, que não de muito bom grado consentira em se casar, e que como esposa
e mãe tinha tido sempre uma vida honesta e exemplar, teve dobrado motivo para lastimar sua sorte por ter
perdido aquele anjo, que o céu lhe havia destinado, e que a estólida vaidade de um pai insensato lhe havia
roubado para sempre. Desvaneceu-se de todo o despeito, que conservava contra Adelaide, perdoou-a de todo o
seu coração, mas sua animosidade contra o major por isso mesmo mais recrudesceu, e se o poupou, e não levou
sua vingança ao extremo que desejava, foi em atenção à estima e consideração que lhe merecia a filha.
A única e ligeira vingança, de que usava, era quando, repoltreado em sua linda caleche em companhia de
pessoas de alta consideração, se por acaso encontrava pelas ruas o major, o saudava com a ponta dos dedos,
dizendo-lhe com zombeteira familiaridade: – Adeus, major; como vai essa bizarria? – O major horrorizava-se,
como se tivesse visto o diabo, enterrava ainda mais o chapéu na cabeça, e seguia seu caminho a tossir, escarrar
e resmungar, com o que muito Conrado se divertia.
Conrado era capitalista; não tinha armazém, nem loja; sua fortuna girava produtivamente, sem que suas mãos
morenas e musculosas, mas delicadas, precisassem descalçar a luva para pegar no côvado. Era correspondente
de grande número de estudantes, com os quais entretinha relações de amizade. Os estudantes o estimavam e
freqüentavam não só por suas belas qualidades, como também porque Conrado, através das vicissitudes de sua
vida agitada, soubera cultivar seu espírito, amava a leitura e apreciava a sociedade dos literatos. Muitos e
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vantajosos casamentos se lhe tinham oferecido; mas a todos ele se havia esquivado; a triste recordação de seu
primeiro amor tão mal-aventurado o fazia recuar ante a idéia do casamento. .
Achava-se ele, pois, nessa brilhante e invejável situação, quando se deram os fatos, que temos referido, e que
vieram de novo pô-lo em contato, ainda que em condições bem diferentes, com a família do major, com a qual
suas relações, há mais de doze anos, achavam-se quebradas.
Na tarde, pois, desse mesmo dia em que Lucinda teve com sua senhora a conversação, de que demos conta no
capítulo antecedente, a velha escrava foi bater à porta do aristocrático prédio em que Conrado residia. Era já
sol posto, e felizmente para Lucinda, achava-se Conrado sozinho em seu salão de visitas, donde ainda há pouco
se tinham retirado alguns ilustres personagens. Estava ele nessa ocasião meio reclinado em um sofá, justamente
embebido em ternas e dolorosas recordações dos amores de sua mocidade, da sua querida Adelaide, aos pés da
qual com quanto prazer não teria de posto toda aquela riqueza e opulência, de que gozava, se uma estrela
funesta não tivesse vindo perturbar o seu destino e entenebrecer para sempre os horizontes de sua vida!...
Quando um criado veio anunciar-lhe que uma preta velha o vinha procurar e desejava, como um grande favor,
falar-lhe em particular, Conrado, que era benfazejo e esmoler, julgou que seria alguma desgraçada como tantas
outras, a quem costumava fazer generosas esmolas. Quando, porém, depois de a ter feito entrar no salão,
reconheceu a velha escrava do major, sentiu um choque inexplicável.
– Oh! és tu, Lucinda! – exclamou, com surpresa e emoção. – Tu em minha casa! É uma grande novidade. Há
mais de doze anos que não falo com pessoa alguma de tua casa, à exceção do teu belo senhor, a quem às vezes
cumprimento, quando o encontro na rua.
– É mesmo, nhô Conrado, é mesmo uma grande novidade que hoje me traz à sua casa.
– Deveras? Deve ser mesmo assim, pois já vai para seis anos que moro aqui em S. Paulo, e é a primeira vez que
vens à minha casa.
– Podia e devia ter vindo há mais tempo se há mais tempo tivesse sabido da grande novidade, que hoje me traz
aqui; mas só ontem é que vim a saber.
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– Enches-me de curiosidade, Lucinda. Senta-te aí numa cadeira e vamos à tua novidade. És uma excelente
rapariga, e estou certo que, por tua vontade só, eu não teria. sofrido o que sofri em casa de teu senhor. Mas
antes de tudo, dize-me, como vai tua senhora? Goza saúde, e vive satisfeita?
– Ela vai indo bem, louvado seja Deus. Mecê ainda se lembra dela?
– Como não, Lucinda? – replicou Conrado, algum tanto desconfiado da pergunta. – Lembro-me sempre dela e
com muita saudade, mas com amor não; bem vês que isso hoje é impossível.
– Mecê não me entende; eu queria saber se não ficou querendo mal a ela pelo que aconteceu.
– Por ela ter-se casado?
– Senhor, sim.
– A dizer-te a verdade, Lucinda, a princípio fiquei com bastante ódio dela, porque não sabia das tramóias, que
por cá se armaram dando-me por morto. Mas, depois que soube de tudo, perdoei-lhe do fundo dalma, e só
fiquei com um grande pesar, que há de durar sempre em meu coração, e um grande ódio e rancor, que também
nunca se há de extinguir, contra teu senhor, que foi o único causador de toda a nossa desgraça.
– Mecê tem toda a razão, nhô Conrado; meu sinhô velho é homem que não tem coração. Como mecês dois se
queriam bem desde criança, ah! meu Deus! nunca vi um amor assim! Se ao menos sinhá Adelaide lhe tivesse
dado uma filhinha, como mecê havia de querer bem a ela!...
– Que lembrança é essa, Lucinda! – atalhou Conrado, atônito e estremecendo ao ouvir tais palavras. Que queres
dizer com isso?... Mas bem vês que isso era impossível.
– Mas faça de conta, – insistiu a preta com certo sorriso, que fez cismar a Conrado – se assim acontecesse... se
um filho ou uma filha...
– Oh! se assim fosse, seria para mim uma grande consolação, a única talvez que poderia mitigar a dor profunda,
que sempre me acompanhará por ter perdido Adelaide. Tu tens razão, eu sou como o viúvo, que perdeu a
esposa idolatrada ainda na flor dos anos, sem que de sua união ficasse um fruto, em que empregasse os
extremos de seu coração. Olha, Lucinda, – continuou ele, abrindo um cofrezinho e tirando dele um papel, que
embrulhava um pequeno ramalhete de flores murchas, tão murchas, que estavam quase pulverizadas. –Vês
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estas flores murchas? Já nem se sabe o que são. Foi ela que mas deu no jardim da chácara, um dia, em que
declarou-me francamente o seu amor. No dia em que eu soube do casamento de Adelaide, quis deitar fora estas
flores; mas não tive ânimo; parecia que meu coração adivinhava que ela era inocente. É tudo que resta de nosso
antigo amor; são estas flores murchas e poídas, fiel emblema de minhas ilusões perdidas, de minhas esperanças
esmagadas pelas mãos do destino. Se eu conservo com tanto amor e tão religioso cuidado estas relíquias mortas
de nossa afeição, de que extremos, de que adorações não rodearia o fruto vivo e animado de nosso amor!... Mas
Deus assim não permitiu, nem isso era possível...
Conrado interrompeu-se; a emoção, que se apoderava de sua alma com aquelas recordações, provocava-lhe as
lágrimas. Pousou a fronte sobre a almofada do sofá, e escondeu o rosto entre as mãos, procurando dominar sua
perturbação. Lucinda o contemplava com ar satisfeito e enternecido, e não quis perturbá-lo em sua passageira
cisma; as coisas corriam do modo o mais propício para o intento que ali a trouxera.
– Mas dize-me, Lucinda – disse bruscamente Conrado, levantando a cabeça da almofada – a que propósito te
veio essa lembrança de um filho meu e de Adelaide, de uma coisa impossível?
– Impossível!... ah! meu branco, perdão, eu sei de tudo.
– De quê, Lucinda? – exclamou o moço, impacientando-se.
– Não se zangue com sua preta, nhô Conrado, disse Lucinda, abafando a voz e com ar suplicante. Eu sei de
tudo o que mecê sabe, e de mais alguma coisa que mecê ainda não sabe.
– Matas-me a paciência! Fala de uma vez, Lucinda.
– Pois bem, eu vou falar bem claro. Sinhá Adelaide teve uma filha, que nasceu poucos meses depois que mecê
desapareceu de S. Paulo. .
– Que estás dizendo, Lucinda! – gritou Conrado, levantando-se de um salto, e colocando-se defronte da preta,
arquejante e pálido de surpresa e emoção. – Adelaide teve uma filha... de mim?
– Pois de quem mais, nhô Conrado?..
– E é viva ainda?
– É sim, senhor.
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– E onde está ela?
– Lá em casa.
– Em casa de quem?
– De meu senhor; com sinhá Adelaide.
– Santo Deus, como pode ser isso!... Minha filha, se a tenho, deve estar já entrada em quatorze anos; entretanto,
há mais de cinco anos que moro aqui em São Paulo, nunca me constou que em casa do major existisse essa
menina. Oh! por que não me contaram isso há mais tempo?...
– Ah! meu senhor moço! quer mecê creia, quer não creia, é porque nós também não ficamos sabendo de tal
coisa, senão de ontem para hoje, e há apenas um mês que a menina está lá em casa. E saiba mais uma coisa,
que lhe vai doer bastante no coração, mas tenha paciência, é preciso que saiba de tudo para poder valer à sua
filha. Saiba que sua filha foi para lá como escrava, e como escrava lá está até agora.
– Como escrava!... Minha filha como escrava, e em casa de sua própria mãe!... Tu estás zombando comigo,
Lucinda! Explica-me isso já, se não queres me pôr doido.
– Tenha paciência, nhô Conrado; sente-se outra vez no seu canapé, sossegue seu coração, que eu lhe vou contar
tudo o que aconteceu depois que mecê se foi embora de S. Paulo.
– Sim! sim!... Conta-me tudo, e depressa, que estou morrendo de impaciência!
Conrado chamou um criado, e ordenou-lhe que dissesse a quem quer que o procurasse que não se achava em
casa. Interessava-lhe ao último ponto a narração que ia escutar, e não lhe convinha por modo algum ser
interrompido. Não quis que se acendessem luzes no salão – pois já vinha descendo a noite, recomendou que
todos os fâmulos e escravos se recolhessem ao fundo do edifício, trancou algumas portas e voltou para junto de
Lucinda.
Todas essas precauções, inspiradas pelos nobres e delicados sentimentos de Conrado, eram necessárias, porque
só ele devia ouvir o que a preta ia revelar; trata-se da honra de uma senhora, a quem muito amara, a quem
muito estimava ainda, e cuja reputação até aquela data se tinha conservado ilibada.
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– Que diabo de negócio terá ele com aquela bruxa velha? – murmuravam entre si os criados, curiosos e
pasmados de tão estranha e misteriosa conferência.
CAPÍTULO VIII
REVELAÇAO
Lucinda contou minuciosamente a Conrado tudo o que havia sucedido em casa do major desde a época, em que
aquele, repelido com brutal tenacidade em suas pretensões à mão de Adelaide, se vira forçado a retirar-se de S.
Paulo. Informou-o das rigorosas medidas e precauções que o major tomara a fim de interceptar toda e qualquer
comunicação entre os dois amantes, de modo que não lhes foi possível nem mesmo fazê-lo sabedor do grave e
melindroso estado em que se achava Adelaide. Se não fosse a dilatada e oportuna viagem que fizera o major, e
os cuidados e precauções tomadas por ela, Lucinda, não sabe o que teria sido da honra e mesmo da vida da
pobre sinhá, que teria talvez sucumbido, vítima da cólera do pai.
Narrou-lhe como em uma noite Adelaide, assistida unicamente por ela, tinha dado à luz com feliz sucesso uma
linda e vigorosa menina, que nessa mesma madrugada, pela deplorável necessidade das circunstâncias, expôs
ocultamente em casa de uma vizinha, conhecida pelo nome de Nhá Tuca, que passava por uma senhora honesta
e caridosa. Em casa dessa mulher ficava-lhes fácil velar sobre a sorte da criança, ter freqüentes notícias dela,
socorrê-la por meios ocultos e indiretos, e vê-la mesmo de quando em quando, sem suscitar desconfianças: que
nesse mesmo dia, porém, indo à casa de Nhá Tuca colher disfarçadamente alguma notícia da enjeitada, soube
que tinha morrido, e vendo em uma sala o cadáver já amortalhado de uma criança recém-nascida, acreditou
piamente que era o da filha de Adelaide. Voltou a casa com essa triste nova. Passaram-se dois anos, sem que
recebesse notícia alguma de Conrado, até que correu em S. Paulo, como certa e confirmada por todos, a notícia
de seu falecimento. Adelaide passou mais dois anos de tristeza e abatimento, deplorando a perda do amante e
da infeliz filhinha, recusando alguns casamentos vantajosos, até que enfim se resolveu, não sem alguma
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relutância, a casar-se com o Sr. Morais, do qual tem tido até o presente quatro filhinhos. A primeira, linda
menina por nome Estela, que é o mimo da casa, e o ídolo dos pais e do avô, mostrou ultimamente com
insistência o desejo de possuir uma mulatinha, que lhe servisse de mucama, que a acompanhasse à escola, à
missa e aos passeios. O avô, que só desejava adivinhar os pensamentos da netinha, deu ordem franca ao genro
para procurar e comprar, fosse por que preço fosse, a mais linda mulatinha que pudesse encontrar. O Sr.
Morais, depois de muito procurar, acertou de encontrar com efeito a mais linda jóia que se pode imaginar,
comprou para escrava de sua filha a filha de sua mulher, a irmã de seus filhos!... Quem tal creria?
– É uma menina branca, mimosa, rosada e linda como um anjo! – dizia Lucinda – Tem cabelos soltos, pele
fina... Encheu as vistas e fez a admiração de toda a gente de casa... Os meninos, coitadinhos! sem saberem que
ela é irmã deles, já lhe querem muito bem, porque ela não só é bonita como muito boazinha.
Conrado mal respirava ouvindo essa tôsca mas fiel descrição de sua filha. – Basta, Lucinda, basta! –
interrompeu ele, impacientado. – Agora só quero que me digas por que meio descobriste que essa menina é a
filha de Adelaide.
Lucinda, continuando, revelou a Conrado as desconfianças que lhe haviam atravessado o espírito ao observar a
notável semelhança que as feições de Rosaura tinham com as de Adelaide e mais ainda com as de Conrado.
Por fim, contou-lhe como havia adquirido a certeza, de que Rosaura era a filha de Adelaide, em razão do sinal
que na véspera havia descoberto no peito da menina, e por certas perguntas, que tinha feito e cujas respostas
combinavam perfeitamente com suas suposições.
– Deus me perdoe! – concluiu ela – se juro falso...
Mas posso... devo jurar... juro que Rosaura é a filha de sinhá Adelaide, que fizeram batizar como escrava.
Conrado escutou com a mais profunda atenção a longa narrativa, que a preta lhe fez em linguagem sinples e
expressiva, e de que demos um rápido resumo por já ser conhecida do leitor.
Ele conhecia bem Lucinda, essa boa e fiel escrava, que criara Adelaide com o leite de seus peitos, e que sempre
lhe fora tão dedicada. Não lhe era possível duvidar de suas deposições. Apenas a interrompera, uma ou outra
vez, com interjeições de pasmo ou de dó, de despeito ou de cólera.
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– Oh! meu Deus! meu Deus! – exclamou ele, quando Lucinda terminou. – Minha filha escrava! escrava de
outros!... E por fim ser vendida à sua própria mãe!... Ah! maldito major! tu só és responsável, perante Deus e a
humanidade, de tão estranha desventura! Foste tu, e mais ninguém, que reduziste tua neta à condição de
escrava. Mas eu juro por Deus e por tudo quanto há sagrado: minha filha, a filha de Adelaide, em poucos dias
será reconhecida livre, como nasceu, e não como liberta, custe o que custar, dinheiro, lágrimas, sangue mesmo,
se for preciso! Lucinda, tu bem vês, Deus nos favorece, e tu tens sido em tudo isto o instrumento da sua
Providência.
– Sim, nhô Conrado; ao menos assim parece; mas tenha dó de sinhá Adelaide; não a ponha a perder; ela,
coitada, não tem culpa de nada.
– Sim, Lucinda, bem sei, e não quero comprometer a honra e reputação de que goza Adelaide; mas não sei... se
isso será possível... Dize-me uma coisa; ainda existe essa mulher chamada Nhá Tuca?
– Não lhe sei dizer, nhô Conrado. Pensando que a enjeitada tinha morrido deveras, não me importei mais com
tal mulher; nunca mais fui por aquelas bandas, e nem tenho perguntado por ela a ninguém.
– Mau! – disse Conrado, estremecendo; – se ela não é viva, a coisa não está muito bem parada. Só ela poderia
desembrulhar esse mistério e converter em certeza o que por ora não passa de uma conjetura.
– Não se aflija, nhô Conrado; bem pode ser que ela ainda viva na mesma casa. Amanhã, vou saber.
– Pois sim, Lucinda; vê modos de lá ir o mais breve que te for possível, e verificar se é viva ou não essa mulher.
Ajuda-me nesta empresa; eu não posso ter nem mais um instante de sossego, enquanto não vir minha filha
restituída à condição em que nasceu, à sombra deste telhado, partilhando comigo destes bens, que deu-me a
fortuna. Vai; eu saberei recompensar os teus serviços.
– Ah! nhô Conrado! pois é preciso paga?.. Pois ela também não é o mesmo que minha filha? Não basta a
alegria, que eu hei de ter? Deixe-se disso, nhô Conrado; sua escrava está pronta para tudo que mecê determinar.
Amanhã é domingo; costumo sempre ir ouvir missa em Santa Ifigênia, e tenho de ir à chácara. Da chácara à
casa de Nhá Tuca é um pulo. Amanhã, pela tardinha, às mesmas horas que hoje vim, aqui estou para dar parte a
mecê do que souber.
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– Aqui te espero. Se por felicidade ainda ela for viva, exista ela onde existir, irei imediatamente procurá-la, e
com um punhal em uma das mãos e uma bôlsa bem recheada na outra, forçá-la-ei a vomitar a confissão da
execrável atrocidade que cometeu. Mas antes disso, irei amanhã mesmo, vencendo minha repugnância, cruzar a
soleira daquela casa, sepulcro de minha felicidade, e proporei ao tal Sr. Morais a compra de sua escrava; não
quero que ela continue nem mais um só dia no cativeiro. Vou comprar minha filha a peso de ouro!... Depois
tratarei de provar aos olhos da sociedade que ela nasceu livre.
– Ah! nhô Conrado, eu acho que sinhô Morais não vende a menina nem por quanto ouro há neste mundo.
– Julgas isso?.. Pior para ele. Declararei que Rosaura é minha filha, e como pai tenho o direito de reclamá-la.
Se nem assim quiser cedê-la, lhe direi que tenho certeza de que nasceu de mãe livre, o que tratarei de provar
perante os tribunais, ainda que para isso seja preciso despender tudo quanto possuo.
– Mas sinhá Adelaide... Coitada!...
– Não tocarei no nome de Adelaide; minha boca jamais revelará quem é a mãe de minha filha, salvo no caso
que isso seja absolutamente necessário.
– Permita Deus que não seja.
– Nesse caso é bem triste a colisão em que me verei: – entre a honra de uma mulher, que amei, que amo ainda,
e a liberdade de minha filha!... Que partido posso eu tomar? A própria Adelaide, creio eu, não hesitará em
confessar sua falta, se assim for preciso para arrancar sua filha ao cativeiro.
– É assim mesmo, nhô Conrado; é uma lástima; mas tenho fé que Deus não há de permitir que isso seja preciso.
Lucinda voltou para a casa contentíssima pelo feliz resultado da comissão, de que se havia encarregado. Ao ver
que Conrado nenhum rancor guardava contra Adelaide, e que pelo contrário só tinha para com ela palavras de
afetuosa ternura e de triste e saudosa recordação, seu coração nadava em júbilo. Apressou-se em comunicar
tudo à sua senhora, que sentiu acudirem-lhe aos olhos lágrimas de enternecimento, e estremeceu em sua
consciência de honesta e leal esposa receando que se ateassem de novo, debaixo das cinzas, as mal extintas
chamas de seu primeiro amor.
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Se bem que contente e esperançada pelo modo por que as coisas se iam encaminhando, bem mal dormida
passou Lucinda essa noite, atormentada pela incerteza de achar ou não viva Nhá Tuca, esperando com a mais
viva impaciência o alvorecer do dia.
CAPÍTULO IX
NA MISSA
O mesmo acontecia a Conrado, que passou uma noite agitadíssima. A revelação que Lucinda acabava de
fazer-lhe, parecia-lhe um sonho, e punha-lhe o espírito quase em delírio. As tristes recordações do passado
vinham juntar-se agora as apreensões do futuro, e toda a noite passou ele a cogitar nos meios mais convenientes
e eficazes, que deveria empregar para fazer reconhecer sua filha como livre de nascimento sem comprometer a
reputação de Adelaide. Volvendo também, às vezes, suas vistas para o passado, enxergava nesse estranho
acontecimento um castigo da Providência, que assim punia o orgulho, fatuidade e dureza desse homem, que
tanto blazonava de branco e fidalgo do mais puro sangue, fazendo que sua neta, até a idade de quatorze anos,
vivesse na humilhante condição de escrava, até por fim ser vendida como tal à sua própria mãe, para servir de
mucama a uma irmã sua.
Conrado em vão se deitava, procurando conciliar o sono pela leitura de algum livro; não conseguia achar
distração alguma às vivas preocupações, que lhe agitavam o espírito. Levou quase toda a noite a passear por
todas as salas e corredores de sua vasta habitação, consultando amiúde o relógio e a contar essas horas, que
para ele se escoavam com desesperadora lentidão. Assim esperou ele o fim dessa noite angustiosa, que, apesar
de correr o mês de novembro, lhe pareceu mais longa do que uma noite de junho.
Enfim, alvoreceu bela e risonha a aurora desse dia que tão ansiosamente aguardava, e que tão decisiva
influência tinha de exercer sobre seu destino e sua futura felicidade. Era um domingo. A uma noite brusca,
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chuvosa, havia sucedido um dia limpo e sereno. Os sinos das diversas igrejas dobravam e repicavam
alegremente, e o povo, que acudia às missas matinais, começava a cruzar por todas as ruas da cidade. O
coração de Conrado expandiu-se em palpites de prazer e de esperança.
– Perdi a amante, que devia ser minha esposa murmurou consigo; mas o céu teve piedade de mim e
preservou-me a filha, que hoje ou amanhã terei a ventura de acolher em minha casa, e apertar em meus braços.
Como era por demais cedo para ir à casa do major, Conrado tratou de vestir-se para ir à missa da Sé, que os
sinos anunciavam, e isso não só para matar o tempo, que tão lento lhe corria, como também a fim de implorar a
proteção do Altíssimo para o bom êxito do melindroso negócio, em que se achava tão vivamente empenhado.
Tendo entrado na Igreja, depois de feita uma curta oração, começou a passear olhares indiferentes pelos
diversos grupos de mulheres, que se achavam sentadas pela nave à espera da missa. Súbito, deu com os olhos
em um grupo que lhe fixou a atenção. Compunha-se ele de uma senhora ainda moça, alta, esbelta e formosa, de
quatro galantes crianças e de uma rapariga, que lhes servia de mucama, tão branca e tão linda, que, se não fora
o trajo mais simples e modesto e a posição que ocupava atrás do grupo, a tomaríeis seguramente por uma irmã
mais velha dos outros meninos.
Com aquela vista, Conrado estremeceu e sentiu calafrios; na mãe de família reconhecera imediatamente
Adelaide; mas toda a sua atenção, a princípio, concentrou-se na mucama. Era Rosaura; não podia haver a
menor dúvida, era sua filha; era ela que ali estava, servindo de escrava à sua mãe e a seus irmãos!... Durante
toda a missa, o mancebo não arredou os olhos daquele interessante grupo, que representava para sua alma um
passado cheio de saudosas e amargas recordações, e um futuro cheio de ansiedade e inquietação.
Rosaura trajava um singelo vestido de chita fina, azul-claro, apertado à cintura por uma fita cor-de-rosa; os
cabelos negros e lisos no alto da cabeça, presos por uma fita da mesma cor, desciam-lhe soltos pelos ombros,
caracolando em abundantes e luzidios cachos. A mantilha de lã escura, que trazia em volta do pescoço, em
razão da frescura da manhã, ainda mais fazia sobressaírem as linhas harmoniosas de seu busto encantador. De
joelhos, com a cabeça inclinada, os braços cruzados por baixo dos seios, só lhe faltavam as asas para que a
julgásseis um serafim em atitude de adoração.
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Conrado a contemplava cheio de enlevo e orgulho, ao mesmo tempo que se lhe confrangia o coração ao
considerar que, por um singular capricho da sorte, essa tão linda criatura, tendo nascido livre, estava reduzida à
escravidão, e era cativa de sua mãe. Não há expressões que possam interpretar em toda a sua intensidade as
vivas emoções, que assaltaram o espírito do mancebo, ao ver diante de si, ajoelhadas ante o altar de Deus a
amante, que o céu lhe destinara para esposa, e que lhe arrancaram dos braços para entregá-la a outrem, e a
filha, que logo ao nascer escapara aos braços maternos para ser, por meio da mais abominável maquinação,
reduzida ao cativeiro.
Os olhos de Conrado iam de Rosaura a Adelaide e de Adelaide a Rosaura, e, confrontando as feições de uma e
de outra, não pôde deixar de reconhecer a notável semelhança que entre elas existia. Já nenhuma dúvida lhe
restava no espírito; a voz da natureza acabava de confirmar de um modo irrefragável as suposições de Lucinda,
e lhe bradava dentro dalma: é tua filha.
Ainda nada tinha sido revelado a Rosaura a respeito do seu nascimento e verdadeira condição, e nem convinha
que o fosse, enquanto esse fato não estivesse verificado por meio de provas evidentes e irrecusáveis. Por isso
Adelaide, posto que em sua consciência já tivesse plena e íntima convicção de que Rosaura era sua filha,
continuava ainda a tratá-la como escrava, se bem que com o mesmo mimo e carinho, que prodigalizava aos
outros filhos. As duas mulheres, com a atenção concentrada nos atos religiosos, não olhavam em derredor, e
por isso não notaram a presença do homem, que com tanta persistência as observava.
Terminada a missa, Conrado esperou que elas saíssem, e as foi acompanhando em certa distância, até
sumirem-se a seus olhos dobrando o ângulo da Rua Direita com a de S. Bento, na qual residia Adelaide.
Desejaria nunca mais perder de vista aquelas duas mulheres, às quais seu destino se prendia por laços de tanto
afeto e de tanto mistério. Mas não era chegada ainda a ocasião. E Conrado, que morava na Rua Direita, entrou
em casa unicamente para ganhar tempo, e para não fazer uma visita demasiado matinal esperou que soassem
dez horas.
Às dez horas e um quarto, entrava ele na loja do Sr. Morais. Estava este sentado no mostrador e quase sàzinho,
pois o único caixeiro, que ali existia, estava quase sumido a um canto, entre fardos e rolos de fazenda, a olhar
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para as prateleiras. Depois de se terem cumprimentado friamente, como pessoas que apenas se conheciam,
Conrado declarou a Morais que desejava ter com ele uma conversação particular. Morais o levou a um gabinete
no fundo da loja.
– Consta-me – disse Conrado – que V. S.a possui uma linda escravinha, que comprou a um senhor. . . não me
lembra agora o nome.
– Ao Sr. Basílio, morador na Rua do Tabatinguera – atalhou Morais. – Mas a que vem agora essa pergunta?
– Vem muito a propósito, e é até necessária, porque é justamente a respeito dessa...
Conrado não teve ânimo de pronunciar a palavra – escrava – que lhe queimava os lábios falando de sua filha.
– A respeito dessa menina – continuou ele concluindo a frase – que venho conversar com V. S.a.
– Ah! – murmurou Morais, que desde o começo dessa conversação, por uma vaga desconfiança e sem saber
bem por que, começava a sentir-se constrangido e contrariado.
– Tenha paciência, Sr. Morais; escute-me alguns momentos, que em poucas palavras vou lhe explicar tudo.
Essa menina, se é a mesma que eu penso, tem todo o direito à liberdade, e eu tenho o mais vivo desejo, tenho
mesmo obrigação de comprá-la a fim de restituí-la à liberdade. Não olho o preço; exija, Sr. Morais, que será
imediatamente satisfeito.
– Sinto não poder satisfazer os seus desejos, Sr. Conrado; não há dinheiro que compre essa rapariga; é um
mimo que meu sogro fez a uma filha minha, e nem ela, nem eu, nem minha mulher estamos dispostos a
vendê-la, nem mesmo quando V. S.a nos trouxesse todos os tesouros das Mil e Uma Noites.
– Deveras?.. Com efeito! – exclamou Conrado, com um sorriso algum tanto sarcástico. – Mas talvez essa
menina não seja a mesma, que eu penso; V. S.a não poderá fazer-me o favor de mandar chamá-la?... Desejo
muito vê-la, porque se não for a que eu suponho, é escusado incomodá-lo por mais tempo.
– Oh! por que não! – disse Morais que, chamando o caixeiro, lhe deu recado, e daí a momentos Rosaura
compareceu à presença de Conrado. Ao encarar aquele homem, que nunca tinha visto, e que fitava nela um
olhar penetrante, mas afetuoso e terno, a jovem escrava sentiu indizível comoção; tomou a bênção, à maneira
dos escravos, abaixou os olhos e corou. Vendo agora face a face e tão perto de si aquele rosto em que, ao lado
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da beleza, ressumbrava toda a candura e inocência de uma alma angélica, Conrado a muito custo pôde conter e
dissimular sua emoção.
– Encantadora menina! - murmurou ele, voltando-se para Morais, que fez um gesto de displicência.
O primeiro impulso de seu coração foi de apertá-la nos braços, e depor-lhe na fronte o primeiro beijo do amor
paterno; mas conteve-se, porque ainda não era a ocasião própria para a expansão de seus afetos.
– Como te chamas, menina? – perguntou ele a Rosaura, com vez afetuosa.
– Rosaura, uma sua escrava – respondeu a menina.
– Rosaura! Bonito nome!... Que idade tem?...
– Devo ter quatorze, pouco mais ou menos.
– Em que lugar nasceste?...
– Nasci aqui mesmo perto da cidade, em uma casa que fica para as bandas de N. Senhora do Ó.
– Quem era teu primeiro senhor?!...
– Era uma mulher chamada Nhá Tuca, que me vendeu, quando fiz dez anos, a um velho chamado Basílio,
morador na Rua do Tabatinguera, e este foi que me vendeu para o Sr. Morais.
– Conheceste tua mãe?
– Conheci, sim senhor, eu tinha sete para oito anos, quando ela morreu.
– Não te lembras da cor e da figura que tinha?
– Muito mal; só me lembro que era mulata clara... – Pobrezinha!... refletiu consigo, Conrado. – Era preciso ter
alma bem negra para reduzir à escravidão e à orfandade uma tão linda e interessante criatura, que. aliás nasceu
livre e ainda tem o pai e a mãe vivos!
Morais escutava com especial desagrado e estranheza esse interrogatório, do qual não podia compreender a
importância, nem o alcance.
– Sr. Morais – disse Conrado, voltando-se para ele, – estou satisfeito e fico-lhe obrigado. Pelas perguntas, que
fiz, e pelas respostas, que a menina me deu, fico suficientemente inteirado do que me convinha saber. Pode
mandá-la retirar-se.
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– Sr. Morais – continuou ele, depois que Rosaura se retirou, – tenho o maior empenho em libertar essa menina;
já lhe disse que não recuo diante do preço, por exagerado que seja. Creio também que V. S.a nenhum interesse
pode ter em conservá-la no cativeiro, e que tem alma bastante nobre e generosa para não desejar ver, por mais
tempo, em tão aviltante condição, uma menina tão linda e tão digna de melhor sorte. É a mesmíssima rapariga,
que eu supunha, e tenho motivos muito particulares e poderosos para tratar de sua liberdade.
– Se V. S.a – respondeu secamente Morais, – tem motivos poderosos para querer libertar essa rapariga, eu
também os tenho e muito poderosos para não cedê-la por preço nenhum. Demais, fique V. S.a sabendo que,
embora seja ela escrava, é tratada com toda a brandura e carinho, como se fosse uma filha. Também nós
pretendemos dar-lhe a liberdade; mas é cedo ainda; Rosaura é muito criança; precisa ainda ser vigiada e
educada, e está em nossa casa, como se fosse nossa tutelada.
– Pois bem, Sr. Morais; fico ciente de quais sejam os motivos por que não quer ceder-me a menina; concordo
que não deixam de ser poderosos, e mesmo não duvido que V. S.a se acha possuído das melhores intenções a
respeito dessa escrava; mas eu tenho uma razão muito mais atendível e muito mais poderosa que qualquer
outra, e diante da qual espero que V. S.a, se é homem de bem e de consciência, como creio, não hesitará um só
momento em satisfazer o meu desejo.
– Eu!... talvez... mas não compreendo que possa haver essa razão tão forte...
– É muito simples; e para que V. S.a não pense que sou levado a dar este passo por algum motivo menos nobre
e honesto, aqui lhe declaro imediatamente e sem rebuço: sou pai de Rosaura.
– V. S.a. pai de Rosaura! – exclamou Morais, atônito e desconcertado com essa brusca e inesperada declaração.
- É possível, mas... é bem difícil de acreditar-se.
– V. S.a. duvida?.. Pois saiba que não tenho o costume de mentir, nem mesmo em coisas triviais, quanto mais
quando se trata de negócio tão sério – replicou Conrado, assumindo um tom de voz e uma atitude grave e
imponente.
– Sim! bem pode ser – disse Morais, balbuciando, – Nada mais natural e mais comum do que... a gente.... ter
filhos naturais, mesmo com escravas; mas V. S.a. poderá provar...
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– Posso.
– Pois bem, mesmo que o prove, que direito lhe assiste para exigir de mim a entrega de sua filha, que e minha
escrava?
A estas palavras, os olhos de Conrado se incendiaram em súbitos lampejos de indignação e cólera. – Sua filha,
que é minha escrava!... Esta frase cruel doeu-lhe mais que o mais pungente e feroz insulto, e atravessou-lhe o
coração como lâmina de ferro em brasa. Entretanto, uma simples declaração lhe era bastante para fulminar ali
mesmo o orgulhoso senhor, que usava para com ele de semelhante linguagem. Forçoso, porém lhe era por
enquanto sopear os ímpetos de sua indignação; não devia e nem convinha fazer essa declaração senão em
último caso, e quando já tivesse provas irrefragáveis para confirmá-la.
– Julguei que V. S.a fosse razoável, Sr. Morais, retorquiu Conrado, refreando a custo sua cólera. – Mas já que a
declaração, que acabo de fazer-lhe, de que essa menina é minha filha, não é bastante para fazê-lo largar mão
dela, fique sabendo mais que essa rapariga, que tem como escrava, nasceu livre, de pai e mãe livres, e que não
foi senão em conseqüência de uma execranda e infernal maquinação que ela desde a infância se acha reduzida
a essa triste condição, o que tudo posso e hei de provar. V. S.a. não quer cedê-la por dinheiro; bem, pois
ver-se-á obrigado a entregá-la sem indenização alguma.
– Isso é que eu duvido, Sr. Conrado; a descendência dessa rapariga é conhecida e notória, como V. S.a. acaba
de ouvir da boca dela mesma. É filha de uma mulata já falecida, que era escrava de uma senhora por nome
Gertrudes, pessoa que eu mesmo conheci, e que é geralmente conhecida pelos habitantes de S. Paulo, e que
talvez ainda exista para confirmar o que digo.
– Deus assim o permita, – murmurou Conrado.
– Quanto ao pai – continuou Morais – pouco nos importa saber quem ele foi, porque como V. S.a de certo não
ignora – partus ventrem sequitur, – a cria segue a condição da mãe.
– Sei bem disso, Sr. Morais; mas V. S.a está bem certo de que Rosaura é realmente filha dessa mulata escrava,
pertencente a tal Nhá Tuca?...
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– Tanto quanto se pode estar certo de uma coisa evidente e incontestável. A maternidade é coisa que não se
pode pôr em dúvida.
– Pode-se muito, e hei de provar que a verdadeira mãe de Rosaura não é essa, que se lhe atribui, não é essa
escrava de Nhá Tuca, mas uma mulher livre...
– Mas quem lhe disse isso?.. Quem é essa mulher? . . .
– Ah! Sr. Morais, praza ao céu que V. S.a sempre ignore quem é ela!
– E por que razão? Que quer dizer isso, senhor? Não me explicará?
– Nada, Sr. Morais; são lembranças tristes, que me atribulam o espírito – respondeu Conrado, arrependido da
exclamação, que lhe escapara. Mas, enfim, como V. S.a de forma alguma quer aceder aos desejos, não quero
importuná-lo por mais tempo, e vou tratar da liberdade de minha filha pelos meios a meu alcance.
– Faça o que entender – replicou secamente Morais.
E esses dois homens, que há pouco se tinham cumprimentado com frieza e indiferença, despediram-se, agora,
em tal tom de mau humor e desabrimento, que fazia pressagiar entre eles a mais pertinaz e encarniçada luta.
Conrado voltou para a casa sumamente contrariado e aflito com as formais e terminantes negativas de Morais.
Não obstante o tom de seguridade com que falara a este não deixava de nutrir sérios receios a respeito da
possibilidade de provar a condição livre de Rosaura. A sua principal esperança repousava sobre a existência
dessa mulher, que a tinha reduzido à escravidão, e da qual esperava arrancar, com promessas ou ameaças, a
confissão de seu crime. As outras provas que podia aduzir não constituíam senão presunções, em verdade mui
veementes, mas que podiam ser contestadas e infirmadas vantajosamente. O sinal que Rosaura tinha no peito,
bem podia ser uma coincidência devida ao acaso, e demais alegado por uma simples escrava pouco valor podia
ter, até mesmo poderia ser considerado como mero embuste de sua invenção para favorecer sua companheira
de cativeiro. A semelhança, que se notava entre as feições de Adelaide e de Rosaura, era uma circunstância em
que nem de leve pretendia tocar, uma vez que pudesse obter o reconhecimento da liberdade de sua filha sem
declarar sua maternidade, e por conseqüência sem comprometer a reputação de Adelaide. O fato de ter nascido
uma criança escrava, no mesmo dia e na mesma casa em que morria uma enjeitada, também não autorizava a
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assacar contra uma pobre velha a imputação do hediondo crime de ter substituído pela enjeitada a criança
morta. Era preciso um depoimento formal de qualquer testemunha insuspeita, que confirmasse as fortes
presunções resultantes de todas essas circunstâncias. A única pessoa talvez que, à exceção de Nhá Tuca,
poderia depor sobre o fato, com plena ciência e consciência, era a suposta mãe de Rosaura; mas essa há muito
tempo já não existia.
Conrado avaliava em seu espírito todos esses prós e contras, e dando talvez a estes maior peso e valor do que
realmente mereciam, afligia-se em extremo, mas não sem fundamento, porque, se já não existisse a velha Nhá
Tuca, o negócio do reconhecimento de Rosaura como livre de nascimento dificilmente poderia ser
encaminhado com esperança de êxito feliz. Ora nada era mais natural e mesmo provável do que o fato de já ser
falecida aquela mulher, que, segundo lhe dissera Lucinda, há quatorze anos já era velha e adoentada.
Enquanto Conrado espera com a mais viva impaciência a hora, em que a velha escrava tem de vir dar conta de
sua comissão, acompanhemo-la nos passos que deu para desempenhá-la.
CAPÍTULO X
ESTARÁ VIVA OU NÃO?
Enquanto Conrado, sôfrego, e ansioso, dava esses passos na cidade, não menos solícita e inquieta andava a boa
Lucinda lá pelos lados da freguesia de Nossa Senhora do Ó. Nessa manhã, como prometera, foi à Santa
Ifigênia, onde ouviu missa às nove horas, e dali seguiu, em marcha a mais acelerada que lhe foi possível, pela
estrada de Jundiaí. Não tomou pelo caminho da chácara do major; nada tinha lá que fazer; continuou direito
pela estrada real até a altura, que era bem conhecida, onde existia a casa de Nhá Tuca. Não é possível explicar
qual foi o seu espanto e consternação quando, ao chegar ali, não avistou senão ruínas. Da casa não restavam
senão os esteios carbonizados e algumas paredes derruídas; o teto tinha desabado; as cercas estavam
arrombadas, e o abandono, a solidão e a tristeza reinavam naquele sítio, que outrora fora uma vivenda tão
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ruidosa, alegre e animada. A casa de Nhá Tuca era erma tapera, onde não se via viva alma, a quem se pudesse
dirigir qualquer pergunta. A tal espetáculo, um frio e angustioso desalento se apoderou do coração de Lucinda,
que quase desfaleceu. Sentou-se à beira da estrada em frente das ruínas, e pôs-se a refletir. Lembrou-se que, a
uns quinhentos passos mais ou menos pela estrada adiante, havia também, à beira do caminho, a casa de um
francês, que tinha negócio. Era o vizinho mais próximo de Nhá Tuca, e devia saber qual tinha sido o destino
dessa mulher. A casa tinha sido queimada, não havia dúvida; mas isso não queria dizer que a dona também já
não existisse. Lucinda reanimou-se de um resto de esperança, levantou-se e pôs-se a caminhar para diante.
Como era domingo, à porta da taverna do francês havia numeroso concurso de gente. Eram de dez para onze
horas; grande número de caipiras da vizinhança, que já tinham ouvido missa, uns na cidade, outros na capela de
Nossa Senhora do Ó, ali se achavam a palestrar e a molhar a goela para empurrar o domingo, conforme a frase
vulgar.
– Bom! - murmurou Lucinda consigo, – No meio de tanta gente é impossível que não haja alguém que me saiba
dizer o que é feito de Nhá Tuca.
Dirigiu-se, pois, resolutamente para a venda, comprou uma quitanda, bebeu um gole de vinho, para cobrar
alento, e depois, dirigindo-se aos circunstantes, com uma hesitação e receio fácil de compreender-se, mas
difícil de explicar-se:
– Mecês não me saberão dizer – perguntou ela que fim levou uma mulher velha, que morava aqui para atrás,
chamada Nhá Tuca?..
A companhia, que ali se achava, trazia já a cabeça bastante aquecida pelos freqüentes tragos, com que no correr
da conversação iam molhando a palavra. A pergunta de Lucinda, portanto, em vez de obter resposta, foi
recebida entre mil risadas e apodos zombeteiros, que confundiram e desorientaram completamente a pobre
preta.
–Eh! há! minha tia! pois tu ainda perguntas por essa bruxa esconjurada? – diziam eles.
– Cruz! arreda daqui, rapariga! Só o nome dessa mulher traz mau azar; vou-me embora.
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– E eu também; a pinga, que tomei está me fervendo na garganta só de ouvir esse nome. Antes o diabo me
apareça.
– Quem sabe, minha tia, se mecê também é da rodinha das pretas feiticeiras, que moravam com essa velha de
uma figa?
– Eu não! Cruz! Ave Maria! – exclamou Lucinda, espavorida.
– Pois então que diabo de negócio tens com essa carcaça excomungada, de que ninguém quer ouvir nem o
nome?
– Ué! meu branco, conheci ela noutro tempo! Agora estou perguntando; que mal faz isso?
– Não passaste pela casa dela aí na estrada?
– Passei, inhor sim; mas a casa está toda queimada, e lá não encontrei viva alma.
– A casa ardeu há de haver três para quatro anos. Assim também deve arder a dona nas caldeiras do cão
tinhoso.
– Então já morreu?! – exclamou Lucinda, transida de susto. A boa preta, interessava-se pela vida dessa mulher
perversa e detestada, como se ela lhe fora mãe idolatrada.
– Não sei, nem quero saber – respondeu o caipira sem reparar na comoção de Lucinda. – Se não deu ainda, não
tardará muito em dar a alma ao diabo, que a carregue.
– Mas enfim... – balbuciou Lucinda.
– Mas enfim – interrompeu o interlocutor – se quer saber mais alguma coisa, vá acolá naquela casinha; não está
vendo? É lá que a bruxa mora, se é que o diabo ainda não a carregou.
Dizendo isso, o homem apontava para um miserável casebre, coberto de capim, que se avistava a uns trezentos
passos de distância, e algum tanto arredado do caminho.
– Ali, meu Deus, naquele pobre ranchinho! – exclamou Lucinda. – Coitada! ela, que era tão bem arranjada!...
Como são as coisas deste mundo!
– Cala-te daí. Se tu a conhecesses melhor, não estavas aí com tanta pena dela. Ou és da mesma laia, ou não
conheces bem a tal bruxa.
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– Mas eu desejava tanto saber se ainda é viva.
– Pois vá lá saber – respondeu brutalmente o interlocutor.
– Mas olha, que não te agarre ela pelas orelhas, e não te leve consigo para os infernos! – acrescentou outro
caipira.
Atarantada com tantas chufas, e apavorada com o medonho retrato que faziam de Nhá Tuca, a pobre Lucinda
não sabia o que devia acreditar, nem o que devia fazer. Bem via que aquela gente estava toda com a cabeça
esquentada com as amiudadas libações alcoólicas, e que todos aqueles ditos contra a pobre velha poderiam não
ser mais que meros gracejos inspirados pela bebida; mas por outro lado, a antiga casa de Nhá Tuca, que
acabava de ver em ruínas e quase toda devorada pelo incêndio, e o miserável ranchinho, que lhe estavam
mostrando como sua nova vivenda, tornavam mais que provável o que estavam dizendo os caipiras. Esteve por
algum tempo em estado de hesitação, olhando para a casinha como querendo resolver-se a lá ir; mas faltava-lhe
o ânimo.
Por fim um homem algum tanto idoso, que ali estava na roda, porém com a cabeça mais calma e fresca do que
seus companheiros, observando a ansiosa inquietação em que se achava a crioula, para saber ao certo a sorte da
velha, compadeceu-se dela, e chamando-a de parte assegurou-lhe que aquele ranchinho era de fato a atual
morada de Nhá Tuca, que ainda era viva, mas que há muitos dias se achava às portas da morte. Contou-lhe
mais, em poucas palavras, que essa mulher tinha perdido tudo quanto possuía e caído na mais profunda miséria,
vendo morrer uma por uma, em pouco tempo, de moléstias ruins e contagiosas, todas as suas escravas, que
constituíam seu principal cabedal; que também, de certo tempo em diante, fora diminuindo rapidamente toda a
freguesia de seu negócio, até que por fim, para cúmulo de males, pegou-lhe fogo na casa, que ardeu toda em
uma noite, mal podendo escapar os moradores, e que Nhá Tuca, vendo-se reduzida à última pobreza, se havia
refugiado naquele ranchinho, que por compaixão lhe haviam cedido, e onde vivia das minguadas esmolas, que
bem pouca gente lhe dava: que dois dias antes morrera de repente a única escrava que lhe restava, que lhe fazia
companhia e esmolava para ambas, se bem que em estado quase tão lastimoso como a senhora. O povo atribuía
todas essas desgraças a castigo pelas maldades que essa mulher tinha praticado, e que por muito tempo
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andaram encobertas. Por isso, todos fugiam dela e a deixavam abandonada naquele miserável ranchinho, onde
se achava morrendo à míngua.
Lucinda não quis ouvir mais nada, se bem que o velho se mostrasse disposto a narrar-lhe por miúdo todas as
horríveis façanhas daquela execrável mulher. Pediu desculpa, alegando que era cativa e morava longe,
despediu-se, e se depressa tinha vindo, mais depressa voltou para a cidade, onde chegou pela volta do meio-dia.
A notícia de que Nhá Tuca estava viva, mas às portas da morte, dava-lhe asas, e a robusta crioula, a despeito de
sua idade e corpulência, em menos de meia hora venceu a distância de mais de meia légua, que a separava da
cidade.
Conrado, com o espírito desassossegado e entregue a cruéis tribulações, achava-se em casa pensando no modo
por que havia de passar as longas horas, que ainda tinham de decorrer até o prazo, em que Lucinda prometera
voltar com a resposta tão impacientemente esperada, quando inesperadamente a crioula, que o criado da porta
tinha ordem de deixar entrar a qualquer hora que aparecesse, se lhe apresenta arquejante de cansaço e coberta
de suor.
– Que é isso, Lucinda? – perguntou o moço, sobressaltado. – Que novidade temos?... Vens tão cansada e tão
antes da hora marcada!...
– Sossega seu coração, nhô Conrado – respondeu Lucinda, a ofegar. – O negócio não vai mal por ora... Vim
depressa e antes da hora, porque assim era preciso. A mulher ainda vive...
– Vive!... Louvado seja Deus! – exclamou Conrado, levantando as mãos ao céu – tudo está remediado. Rosaura,
minha filha, vais ser livre e restituída aos braços de teu pai!...
– Vive, sim senhor; mas está mal, quase a morrer. Deixemos de mais conversa, nhô Conrado; é preciso ir lá já e
já, quanto antes; a cada momento ela pode expirar.
– Tens razão, Lucinda; tens razão; vou já.
Conrado chamou imediatamente o seu pajem, e deu-lhe ordem para que selasse depressa o seu melhor cavalo.
Enquanto isso se fazia, Lucinda dava a Conrado as indicações necessárias, para que acertasse com o lugar em
que se achava situado o rancho de Nhá Tuca.
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Lucinda retirou-se para a casa, e Conrado partiu a galope para as bandas da freguesia de Nossa Senhora do Ó.
CAPÍTULO XI
NHÁ TUCA E SUA CHOUPANA
Ainda alguns caipiras ociosos e folgazões se achavam reunidos junto à porta da taverna do francês, uns
conversando, outros cochilando, outros cantando e tocando viola, sentados no patamar, quando viram despontar
na volta da estrada, pelo lado da cidade, um cavaleiro, que vinha a grande galope, e que em poucos instantes
veio esbarrar diante deles o seu lindo e garboso cavalo alazão todo arquejante e coberto de espuma. Era um
mancebo de trinta e tantos anos, de porte esbelto, de fisionomia nobre e simpática, e que trajava com primoroso
esmero e elegância.
– Podem fazer-me o favor de mostrar-me onde mora por aqui uma pobre velha, que se acha muito mal,
chamada Nhá Tuca? – perguntou o cavaleiro, depois de ter saudado contesmente a comitiva.
Os caipiras fitaram sobre ele um olhar espantado, e o deixaram por alguns instantes esperando a resposta. Cada
qual queria responder, mas revolvendo o chapéu entre as mãos, e olhando ora para o elegante cavaleiro, ora uns
para os outros, ora para o chão, ficaram como engasgados, esperando cada um que o seu vizinho o antecipasse
na resposta. Se esses mesmos homens ainda há pouco estranharam altamente que Lucinda lhes pedisse novas
de Nhá Tuca, quanto maior não devia ser seu pasmo e surpresa, quando viram aquele nobre cavaleiro perguntar
com tanto interesse e açodamento pela bruxa excomungada, que era objeto de asco e desprezo para todo o
mundo por aquela redondeza. A este, porém não ousaram responder com apodos e galhofas, como fizeram com
a pobre crioula.
– Está ali mesmo à vista, patrão; é acolá – respondeu por fim um deles, apontando para o rancho de Nhá Tuca.
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O cavaleiro agradeceu com um gesto, e tocou o cavalo a galope para o sítio indicado.
- Chê! que coisa, Deus do céu! Um moço tão chibante e luzido que terá que fazer na casa daquela velha
tartaruga amaldiçoada? – disse um dos da roda, apenas o cavaleiro se distanciou.
– Quem sabe se é parente, nhô Tico? – ponderou outro. – A velha já foi rica, e diz que é filha de muito boa
gente.
– Chê! que esperança, nhô Neco! Nhá Tuca ter um parente daquela qualidade!... Fora o irmão, que ela matou,
nunca teve parente mais nenhum, que eu saiba.
– Não é nada disso, gente; o que eu estou lembrando é que aquele moço é alguém, a quem a velha fez alguma
maldade, e que lhe vem pedir contas na hora da morte. Fora do que já anda aí na boca do povo, na casa daquela
velha fazia-se muita coisa ruim, que até hoje ninguém sabe.
– Isso é que bem pode ser, nhô Quim; mas já agora não arredo pé daqui, enquanto não ficar sabendo em que
isso se pára. Aquele moço decerto não há de ficar toda vida em casa da bruxa; há de voltar e por fim de contas
sempre se há de saber alguma coisa.
– E eu também daqui não saio, enquanto ele não voltar; estou aflito por saber em que dá essa embrulhada.
– E eu também – repetiram todos os outros.
Vamos ver em que isso dá.
Enquanto os caipiras iam discutindo e comentando nesse gosto a visita de Conrado à casa de Nhá Tuca,
resolvidos a esperarem ali a pé firme o resultado da mesma, o mancebo apeara-se junto ao rancho da infeliz
velha, e batendo palmas pediu licença em voz bem alta. A mísera mulher, que, segundo parecia, ali jazia há
dois dias no leito da miséria e do sofrimento sem ouvir voz humana, estremeceu de prazer ao perceber que lhe
batiam à porta.
– Quem é?.. Pode entrar – respondeu de dentro uma voz fraca, trêmula e esganiçada.
Foi bem difícil a Conrado dar com a entrada do rancho, a qual consistia em alguns paus-a-pique soltos, e que
não se distinguiam bem do resto da parede. Era mister afastá-las para um e outro lado a fim de franquear uma
estreita entrada. Conrado, que conhecia muito esse gênero de portas, por tê-las visto muitas vezes em ranchos
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de roça, abriu-a e não sem custo penetrou no interior da choupana, esfregando o pano de sua fina casaca nos
imundos paus daquela hedionda pocilga. Posto que não houvesse no rancho uma só janela ou fresta, por onde
penetrassem francamente o ar e a luz, contudo, as paredes formadas de paus roliços mal unidos entre si
deixavam entrar claridade bastante para que Conrado, depois que se foi afazendo à meia-luz que ali reinava,
pudesse distinguir com facilidade os objetos.
Era a palhoça dividida em dois compartimentos iguais por meio de uma esteira de taquara. No primeiro, para o
qual dava a porta única da casa, por onde Conrado tinha entrado, via-se no chão um cinzeiro apagado, e junto
dele um colchão esfrangalhado rodeado de algumas cuias e cacos de panela. Era sem dúvida a miserável
enxerga, da qual há dois dias tinha sido transferida para a sepultura a última companheira e cúmplice da
desgraçada velha.
Achavam-se junto ao cinzeiro, quando Conrado entrou, um cãozinho mofino e coberto de gafeira, procurando
no borralho extinto algum resto de calor, e um lagarto, que sem dúvida por ali rondava à caça de baratas e
outros insetos, em que a choupana devia abundar. O lagarto esgueirou-se sutilmente, e desapareceu com a
celeridade que lhe é própria; o cão, porém, levantou-se e abanando a cauda olhava para o visitante com olhos
suplicantes, como quem lhe pedia pelo amor de Deus um bocado de alimento. Conrado não lhes deu atenção, e
dirigiu-se para uma abertura que dava comunicação com o outro compartimento.
O espetáculo, que ali se lhe ofereceu aos olhos, era indescritível pela sua hediondez, e capaz de fazer recuar de
horror as almas mais corajosas e caritativas.
Em um girau, firmado sobre quatro toscas e grossas forquilhas fincadas no chão, estava estendida a mísera
velha em cima de uma enxerga de palhas de milho, tão esfarrapada e poída, que mais parecia um montão de
lixo. Ali agonizava ela há dois dias como um esqueleto embrulhado em andrajos asquerosos. Ao pé dela, à
cabeceira, o único móvel que existia era um tamborete estropiado, sobre o qual se via uma tosca tigela de
barro, vazia!... Nem uma gôta de água ali havia para a mísera enferma!... Em torno, pelo imundo e estreito
cubículo, não se viam senão alguns trapos asquerosos espalhados pelo chão. A estes contristadores e
repugnantes acessórios, se juntarmos a figura cadavérica e a fisionomia repulsiva da velha, teremos um painel
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que nenhum pincel humano é capaz de reproduzir em toda a sua lúgubre e sinistra realidade. Para receber o
hóspede desconhecido, que tão inesperadamente a vinha visitar, a enferma se reanimou um pouco, e conseguiu
levantar algum tanto sobre um montão de roupas velhas, que lhe serviam de travesseiro, o busto lívido e
descarnado. A magreza, a velhice e a doença ainda mais faziam ressaltar as linhas duras e angulosas de sua
fisionomia ignóbil e repelente. Os olhos pequenos e extintos mal se podiam divisar por debaixo das arcadas
superciliares proeminentes e ossudas. O que mais, porém, contribuía para dar-lhe ao semblante uma expressão
de fealdade, que incutia terror e repugnância, eram os dentes, que ela ainda os tinha todos, grandes, salientes e
amarelos. Como seus lábios, finos e mirrados como duas tiras de velho pergaminho, contraídos pela macilência
e pela febre, não podendo cerrar-se, conservavam-se entreabertos, um certo sorriso fúnebre e sinistro parecia
estar fixo sobre sua boca agonizante.
Se não fosse o poderoso incentivo, que ali o levava, Conrado teria recuado diante de tão lastimoso e repulsivo
quadro, e, deixando uma generosa esmola à cabeceira da enferma, ter-se-ia retirado imediatamente. Mas era
instigado por um motivo imperioso, pelo qual afrontaria mesmo todos os transes e perigos, por mais temerosos
que fossem.
– O senhor, quem quer que é, pode chegar – disse, com voz rouca e arquejante, a infeliz velha, vendo Conrado
parar ao limiar da entrada do quarto. – Não tenha susto; eu sou uma pobre velha desgraçada, que em castigo de
meus pecados aqui vivo a penar desamparada por todos, e morrendo aos poucos no fundo desta cama...
Senhor meu, tenha piedade desta pobre velha!... Foi Deus quem o mandou aqui... Há dois dias que aqui não
vem criatura viva nem para me dar um gole de água pelo amor de Deus.
Apesar do exterior repugnante da velha, e do crime inqualificável de que era responsável para com ele,
Conrado não pôde deixar de apiedar-se do estado de profunda miséria e desamparo em que jazia aquela
desgraçada criatura, e exprobrou no íntimo dalma a dureza dos vizinhos, que tão desumanamente assim a
deixavam perecer.
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– Sim, minha velha, – respondeu ele, avizinhando-se do leito – eu me compadeço sinceramente de sua
desgraça, e é por isso que venho hoje aqui com disposição de procurar alívio a seus sofrimentos, e prestar-lhe
todos os socorros, de que necessitar.
– Ah! meu senhor! Deus lhe dê muita saúde e largos anos de vida! Eu estou já com os pés na sepultura, e bem
pouca coisa posso precisar neste mundo. O de que mais preciso é que Deus me perdoe os muitos e enormes
pecados que cometi em minha vida. Ah! meu Deus, quem me dera um padre para me confessar.
– Por esse lado, sossegue seu coração; hoje mesmo lhe hei de trazer um padre, e estou pronto a fazer tudo o
mais que a senhora exigir para alívio de seus sofrimentos e sossego de sua consciência.
– Oh! meu senhor!... meu benfeitor!... Deus lhe dará o pago por essa obra de caridade.
– Sim, mas quero também da senhora uma recompensa, que lhe é muito fácil, e da qual depende todo o sossego
e felicidade de minha vida. Quero lhe pedir um favor. . .
– A mim, meu senhor!... Que favor lhe posso eu fazer, eu pobre velha desvalida, já com os pés na sepultura?
– Eu lho vou dizer já sem mais rodeios, porque não devemos perder tempo. A senhora cometeu na sua vida um
ato altamente criminoso, cujo segredo não pode levar para a sepultura sem causar a desgraça de toda a minha
vida e a da inocente vítima desse ato execrando. Não se lembra?
– Ah! meu Deus, eu pratiquei tantas ações ruins!... Qual delas será?. .
– Eu lhe vou avivar a memória. Não se lembra que na noite de vinte e quatro para vinte e cinco de novembro,
faz agora justamente quatorze anos, – amanheceu exposta na porta de sua casa uma menina recém-nascida?
– Oh! se me lembro, meu Deus! meu Deus! e com que remorsos!... É por essa e por outras muitas maldades,
que pratiquei, que hoje me acho aqui penando desta maneira, ai! meu Deus, e sem ter um confessor!
– Tenha paciência; o confessor há de vir. Agora, conte-me com franqueza e verdade, o que é feito dessa
criança? A justiça humana já nada tem que ver com a senhora; é perante o tribunal divino que em breve talvez
terá de responder. Se não confessa o seu crime, a fim de remediar o mal imenso que fez, e que até hoje pesa
sobre essa infeliz criatura, não pode esperar salvação para sua alma.
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– Graças, meu Deus! mil graças vos sejam dadas, – exclamou a velha, levantando ao céu as descarnadas mãos,
e exalando um forte suspiro, com que parecia aliviar o coração de um peso enorme, que o oprimia. Graças a
Deus, que, em minha última hora, me permite desmanchar o mal que fiz. Meu senhor, pelo amor de Deus,
perdoe-me; minha vida foi toda um tecido de perversidades. Essa menina não morreu, como eu fiz acreditar.
Nessa mesma noite, em que ela apareceu enjeitada à porta de minha casa, uma mulata, minha escrava, tinha
tido uma criança, que morreu logo depois de nascida, e eu... meu Deus! que vergonha! que abominaçao...
– Diga, diga tudo, senhora! – instou Conrado.
É preciso que não oculte nada para descargo de sua consciência e para se poder remediar o mal que fez.
– E eu fiz batizar a enjeitada como filha da escrava, e fiz constar que a enjeitada é que tinha morrido.
– E que nome deu à menina?
– Rosaura.
– E depois vendeu-a, não é assim?
– É verdade, meu senhor.
– E a quem vendeu-a?
– A um senhor Basílio, morador na Rua do Tabatinguera.
– Justamente! É ela! - exclamou Conrado, com íntimo e profundo júbilo. – Não se pode mais opor a mínima
dúvida a respeito da origem de Rosaura. Estou satisfeito, senhora; eu vou neste mesmo instante buscar um
padre para ouvi-la de confissão, e também mandar-lhe alguns meios de tratar-se. Em menos de duas horas
estarei de novo aqui com o padre e mais duas pessoas, porque me é de absoluta necessidade que a senhora
repita diante de testemunhas a confissão, que acaba de fazer-me em particular, para conseguir a liberdade da
menina, que a senhora condenou à escravidão. Está disposta a isso, minha senhora?
– Por que não, meu senhor!... Nem há coisa que eu mais deseje. Prouvera a Deus que eu pudesse desfazer assim
todas as outras maldades que pratiquei!... Ah! meu Deus, perdão!.. misericórdia!...
– Pois bem; até breve.
– Deus o acompanhe, e o traga a salvamento, meu senhor.
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Ao sair fora da palhoça, Conrado consultou o relógio; eram quase duas horas.
– Temos ainda muito tempo – pensou ele. – Ás quatro horas, posso estar de volta aqui com o padre. Os dias são
grandes, das quatro até a noite, tudo pode ficar arranjado, salvo se a velha expira antes disso.
Durante a visita, apesar da preocupação que lhe dominava o espírito, ou em razão dessa mesma preocupação,
Conrado tinha examinado com atenção o estado da enferma e apesar de não ser médico, compreendeu que ele
era gravíssimo, e que naquele caso não havia mais cura possível. Todavia, refletiu que o estado de prostração
em que a via podia ser resultado não só da moléstia, como também da inanição a que tinham reduzido o
abandono e privação absoluta, a que há dois dias se achava condenada. Se a deixasse naquele desamparo, em
que ele a tinha encontrado, corria risco de achá-la na volta senão morta, pelo menos impossibilitada de fazer de
modo inteligível a declaração, que era o alvo de todos os seus esforços. Montou a cavalo e parou de novo à
porta da taverna do francês. Os fregueses, que ali encontrara, ainda lá se achavam a pé quedo, esperando a sua
volta.
– Então, meu amo, como vai a velha tinhosa? Ainda o diabo não a carregou? – ousou perguntar um, a quem as
excessivas libações tinham tornado por demais desembaracado.
Conrado franziu o sobrolho, e sem responder diretamente a tão brutal pergunta, dirigindo-se a todos,
exprobrou-Ihes sem aspereza nem grosseria, mas em termos enérgicos e severos, sua desumanidade para com.
aquela desgraçada mulher, fazendo-lhes ver que não era próprio de cristãos deixar morrer à míngua e ao
desamparo uma criatura humana, por mais perversa que tenha sido em sua vida. A moléstia, a idade, o sexo e a
extrema pobreza, em que vivia e ia morrer, eram bastantes para seu castigo, e a tornavam digna da comiseração
de todo o mundo. Aqueles que assim a maltratavam tornavam-se tão bons como ela e dignos da mesma sorte.
Os caipiras, ouvindo as palavras severas, mas cordiais e sensatas do mancebo, sentiram mais compunção e
arrependimento, do que se tivessem escutado as ameaçadoras vociferações do mais rochonchudo e atrabiliário
capuchinho. Procuraram desculpar-se com a reputação de que gozava a velha, de ser bruxa, feiticeira e de ter
pacto com o diabo; mas enfim todos voltaram-se às boas com o gentil e generoso cavaleiro, que os afagou com
uma generosa molhadura, pedindo-lhes que não continuassem a ter em tão má conta uma pobre mulher velha,
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que estava às portas da morte. Todos protestaram que não continuariam a ter o mesmo procedimento,
declarando-se prontos a fazer tudo que Conrado determinasse. Conrado chamou de parte o francês dono da
taverna, e dando-lhe uma soma de dinheiro mais que suficiente, pediu-lhe que acudisse de pronto à doente com
algum cordial ou algum caldo, que a confortasse, visto que ela estava morrendo mais de fraqueza e inanição do
que mesmo de doença. Recomendou-lhe também que mandasse imediatamente varrer e assear a imunda
pocilga em que jazia a mísera velha, e colocar lá duas outras cadeiras ou tamboretes, porque, dentro de duas
horas ao mais tardar, tinha de voltar com um padre para ouvi-la de confissão.
– Tenha paciência! – disse ele ao taverneiro.
Não se poupe a despesas nem a trabalho, que tudo hei de remunerar generosamente, e além disso lhe ficarei tão
agradecido por tudo que fizer por essa mulher, como se fosse um serviço feito a mim próprio.
O francês comprometeu-se de bom grado a cumprir tudo que Conrado lhe recomendara. O interesse, que aquele
rico e distinto cavaleiro tomava pela pobre e desgraçada velha, lhes excitando altamente a curiosidade, os
dispunha também a secundá-lo em tão louvável e caridoso empenho.
Conrado agradeceu, e tocou a galope para a cidade.
CAPÍTULO XII
FREI JOÃO DE SANTA CLARA
Conrado, chegando à cidade, apenas parou um momento à porta de sua casa para dar ordem a seu pajem de
selar o animal mais manso que houvesse na cocheira, e levá-lo imediatamente ao convento do Carmo, onde ia
esperá-lo.
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Achava-se então em S. Paulo hospedado no Convento de sua Ordem um frade carmelita, por nome Frei João de
Santa Clara, distinto por suas virtudes e seu grande saber. Pregador exímio e teólogo profundo, este não tinha
passado seus dias vegetando em piedoso ócio e pisando mansamente os santos ladrilhos com o breviário na
mão à sombra das severas abóbadas no claustro. Tinha percorrido quase todas as províncias do Brasil,
missionado, já entre populações civilizadas, já entre aldeias de indígemas em serviço de catequese. Era também
por vezes encarregado, pelo Geral da Ordem, de árduas e importantes comissões, e era em virtude de uma
destas que se achava então em S. Paulo. Suas virtudes não consistiam meramente na prática desses exercícios
ascéticos, que seus confrades de ordinário tanto alardeiam mais para se imporem à veneração do vulgo, do que
por verdadeiro espírito de penitência e mortificação. Tolerante, benévolo e afável para com todos, nada tinha
dessa exterioridade ríspida e austera, que constitui o caráter essencial do frade. Era ameno e singelo na
conversação, e entregava-se sem escrúpulo aos prazeres lícitos e compatíveis com o seu estado. Pertencendo a
uma importante e abastada família da Bahia, renunciara a todas as vantagens, que lhe proporcionavam o
nascimento e a fortuna, e tomara o hábito em virtude de uma vocação sincera, posta à prova por longo
noviciado. Era, portanto Frei João de Santa Clara um monge moldado pelo tipo sublime dos Boaventura,
Francisco Xavier, Luís de Gonzaga e Vicente de Paulo.
A figura de Frei João estava em perfeita harmonia com sua natureza moral. Porte elevado, feições corretas e
suaves, fisionomia nobre e expansiva, maneiras singelas, mas delicadas, um timbre de voz claro e sonoro
tornavam-no um personagem altamente simpático, que logo à primeira vista conquistava a afeição e respeito de
todos. Todavia, não obstante a moderação e brandura de seu caráter, não lhe faltavam energia e severidade,
quando assim era mister, quer na linguagem quer nas ações. A idade de Frei João orçava então pelos quarenta e
cinco anos, e tanto no porte como no semblante reunia ao viço e ao vigor da juventude a gravidade e sisudez da
idade madura.
Quando Conrado esteve no Sincorá, também aí se achava Frei João missionando, e teve então aquele ocasião
de travar relações com o carmelita, relações que, em breve, se converteram em laços de recíproca estima e
amizade. Quando o frade chegou a S. Paulo, onde, na época dos acontecimentos que vamos narrando, se achava
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há cerca de um mês, Conrado foi um dos primeiros que se apressou em visitá-lo e oferecer-lhe seu préstimo e
seus serviços. Frei João folgou muito de encontrar o seu jovem conhecido e amigo de outrora em tão próspera e
brilhante posição, e como não tinha senão mui poucas relações em São Paulo, começaram ambos a
freqüentar-se com assiduidade, e os laços da antiga amizade se reataram talvez com mais força e intimidade
ainda.
Nenhum sacerdote, pois, estava em melhores condições para ser o confessor de Nhá Tuca, e auxiliar a Conrado
no melindroso negócio em que se achava empenhado.
Além de ser homem de consumada prudência e discrição e um sacerdote respeitável, por possuir em grau
eminente todas as virtudes peculiares ao seu estado, era seu amigo.
Conrado apeou-se à porta do Convento do Carmo, subiu as escadas e foi direito à cela de Frei João. Não pense
o leitor que os conventos em S. Paulo, na época a que nos reportamos, eram ainda, como outrora, claustros ou
mosteiros regulares, com bom número de frades, com seu competente abade ou prior, mantendo todo o rigor da
disciplina monástica, salmeando todos os dias, em horas próprias, matinas, laudas e vésperas. Não; já nesse
tempo os dois conventos, que eram propriedade monacal, e creio que ainda o são os do Carmo e de S. Bento,
eram apenas habitados por dois ou três frades, servindo de guardiães a esses imensos edificios desolados, tristes
e mergulhados em silêncio tumular. Esses frades tinham também às vezes por companhia algum estudante,
que, por escassez de meios ou por qualquer outro motivo, lá era admitido por especial favor a partilhar o pão e
o teto das ricas confrarias. Portanto, não se admire o leitor ao ver Conrado subir sem a menor cerimônia as
escadas do convento e dirigir-se à cela que lhe era mui conhecida ocupada por Frei João.
Não causou estranheza ao frade o aparecimento inesperado de Conrado, que em razão da intimidade lhe batia
no aposento sem se fazer anunciar; mas quando o mancebo lhe declarou o motivo, que naquela ocasião ali o
trazia, e a natureza do serviço que vinha pedir-lhe, não deixou de ficar algum tanto surpreendido.
– Em casos tais – disse ele – fosse quem fosse, que viesse reclamar de mim um tal serviço, eu não saberia
recusá-lo. Mas – continuou, com sorriso quase imperceptivel – permita-me que lhe diga, meu amigo, ao que me
parece, não é só espirito de caridade, que o faz procurar-me com tanta sofreguidão, deixando em caminho o
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cura da freguesia, que é quem tem obrigação de acudir com os sacramentos, e tantos outros padres, que aí os há
com fartura em uma cidade episcopal. Tem talvez algum interesse particular nesse negócio, e eu não devo
ignorá-lo.
– Oh! sem dúvida, e nem tenho intenção de ocultá-lo – respondeu Conrado, com vivacidade. – A pressa é que
me não permite explicar-me desde já. Tenho nessa confissão um interesse do mais subido alcance para mim.
A velha tem de fazer uma declaração, da qual dependem sossego e felicidade de toda a minha vida.
– Ah!... o negócio então é mais que sério. Pretende por conseguinte exigir dessa mulher uma confissão pública.
– Sim, meu amigo.
– E ela se prestará?..
– Acabo de estar com ela; está talvez mais disposta e mais impaciente do que eu, porque essa declaração é de
absoluta necessidade para a reparação do mal que ela fez. Mas ela se acha nas extremas entre a vida e a morte;
não temos tempo a perder; avie-se, que daqui a um instante chegará a sua cavalgadura, e de caminho lhe
contarei toda essa história.
De feito, enquanto Frei João calçava suas botas pretas de couro de mateiro com esporas de ferro, e tomava o
chapéu de fêltro com abas largas, o pajem de Conrado chegava à porta do convento, trazendo pelas rédeas um
lindo cavalo escuro completamente ajaezado. O palafrém, posto que fosse mui bem doutrinado, era vivo e
ardente.
– O maldito! – gritou Conrado para o pajem não te recomendei que trouxesses um animal bem manso?
– Pois este ainda é chucro? – perguntou, sorrindo, o frade.
– Não – respondeu Conrado –mas é tão fogoso. . .
– Não se importe com isso; não sou tão mau cavaleiro como pensa.
E de feito o frade ganhou a sela com tal presteza e agilidade, e soube sofrear e dirigir o irrequieto animal, com
tal garbo e desembaraço, que faria inveja ao mais hábil picador. A sotaina e o grande chapéu em nada
prejudicavam a habilidade e gentileza do guapo cavaleiro.
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– Na verdade – exclamou Conrado – V. Rev.ma é um homem admirável; além de ser o ornamento de sua
classe, tem as qualidades do homem do mundo o mais amável e elegante que se pode imaginar.
– Hábito e natureza, meu caro – respondeu o frade, com volubilidade. – Sempre tive gosto pela equitação; a
necessidade de viajar continuamente me tornou perito na arte.
Puseram-se a caminho. O leitor, que já visitou S. Paulo, sabe que o convento do Carmo se acha situado na
extremidade da cidade, do lado oposto àquele a que os dois cavaleiros tinham de dirigir-se.
Tiveram, pois, de atravessar toda a cidade na melhor marcha de seus cavalos, sem poderem conversar, em
razão do tumulto das ruas. Felizmente, não era extenso o trajeto da então pequena cidade, e logo que
transpuseram a ponte do Macu penetraram no bairro mais silencioso e deserto de Santa Ifigênia. Conrado,
retardando um pouco o passo do animal, começou a dar conta a Frei João do ponderoso motivo que o levara a
chamá-lo para aquele mister. Narrou-lhe com toda a sinceridade e franqueza, como se estivesse no tribunal da
penitência, aos pés do confessor, os fatos capitais, que o leitor já sabe e constituem o assunto desta história,
sem preterir circunstância alguma importante. Contou-lhe com toda a lhaneza o amor, que desde a infância
concebera pela filha de seu antigo patrão; os esforços sobre-humanos que fizera para tornar-se digno dela; a
falta em que a cegueira do amor e a imprudência e ardor da mocidade o fizeram incorrer; a invencível
obstinação com que o filaucioso velho se manteve na negativa, perseguindo-o por esse motivo
encarniçadamente e até ameaçando-lhe a existência; pelo que viu-se obrigado a retirar-se por longo tempo de S.
Paulo, sem poder ter a menor comunicação com sua amante; a ignorância em que, até àquela data, estivera, da
existência de sua filha, fato de que só na véspera tivera conhecimento por intermédio de uma escrava, que por
um feliz acaso o descobrira; como essa filha fora batizada como escrava pela mulher, que Frei João ia
confessar e nessa condição se achava até àquela data, tendo ultimamente, por um estranho capricho da sorte,
vendida à sua própria mãe.
– Agora – concluiu Conrado – já o meu amigo compreende o alto interesse que ligo à confissão dessa
desgraçada velha, que por grande favor do céu ainda encontrei viva, e o motivo por que o procuro, não só como
sacerdote, mas também como amigo, a fim de coadjuvar-me no desempenho de uma missão, que é para mim
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um dever sagrado. Conto que, não só nesta confissão, como em outros passos, que terei de dar, para ser
reconhecida a verdadeira maternidade de Rosaura, o meu amigo não me recusará o auxílio de suas luzes e de
sua influência.
O frade ouviu a narração de seu amigo com a maior atenção, e apenas o interrompera poucas vezes com
interjeições de in teresse e de surpresa.
– Por indiferente que me fosse a pessoa, que reclamasse de mim um serviço dessa ordem – respondeu frei João
– não me era lícito recusá-lo, quanto mais a um amigo, a quem tanto desejo ser útil. Na verdade a história, que
acaba de contar-me, é um drama contristador, e contém as mais severas e terríveis lições. Ainda bem que, com
o favor de Deus, tenho esperança de levá-la a um desfecho feliz e satisfatório para todos. É ainda um episódio
palpitante de interesse e de triste originalidade, que nos vem mostrar bem ao vivo os singulares e funestos
resultados a que nos pode arrastar essa desumana e degradante instituição da escravatura, que para vergonha
nossa ainda subsiste no país.
– Entretanto, noto que a divina Providência como que tem querido proteger, por um modo manifesto, a sua
Rosaura, dirigindo os acontecimentos por tal sorte, que em breve se revelará em plena luz a verdadeira origem
da menina. Repare o meu amigo como tudo vai se combinando, e como que conspirando para esse feliz
resultado!... A venda de Rosaura à sua própria mãe foi um fato providencial. Se Deus quis por esse estranho
meio colocar em contato essas duas criaturas, que pertenciam uma a outra, e conservar até hoje a vida a essa
desgraçada mulher, que reduziu a menina à escravidão, foi por certo para esse grande e misericordioso
desígnio. Vamos, meu amigo, apressemos o passo. Estou ansioso por ver chegado a um próspero desfecho este
singularíssimo drama.
Nesse ponto da conversação, já estavam à vista da casa do taverneiro francês, onde foram apear-se.
CAPÍTULO XIII
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NHÁ TUCA E SUA CRÔNICA
Apenas se apearam, Conrado chamou de parte o francês, dono da taverna, e depois de ter sido por ele
informado de que todas as suas ordens tinham sido cumpridas, pediu-lhe que fosse assistir como testemunha a
uma declaração solene, que a velha Nhá Tuca tinha de fazer em confissão pública para desencargo de sua
consciência. Pediu-lhe também que, dentre os circunstantes escolhesse para o mesmo fim mais duas pessoas,
que soubessem ler e escrever, e que gozassem de bom conceito.
Não só o desejo de servir a Conrado, que por sua generosidade e boas maneiras lhe tinha captado a
benevolência, como também a curiosidade, que semelhante fato excitava, contribuíram para que não só o
taverneiro, como todos os seus numerosos fregueses se prestassem com a melhor vontade a tudo quanto deles
exigia o cavaleiro. Vinte ou trinta testemunhas, que lhe fossem necessárias naquela ocasião, com facilidade as
acharia prontas por aquela vizinhança.
Eram já quatro horas da tarde, e quase todas as pessoas, que pela manhã encontramos juntas na taverna do
francês, ainda ali se achavam presas pela viva curiosidade, que neles excitara a visita de um tão guapo e
distinto cavaleiro em casa de uma velha bruxa, que no entender deles estava prestes a dar a alma ao diabo. Se
algumas dessas pessoas se tinham retirado, em compensação tinham chegado outras, atraídas pelo rumor que se
ia propagando, de que a velha bruxa, estando a expirar se tinha resolvido a fazer confissão pública e pôr todos
os seus podres na rua.
Conrado e o frade, seguidos pelo francês e pelas duas outras testemunhas dirigiam-se a pé para o rancho de Nhá
Tuca. Os mais fregueses também os foram acompanhando em distância e um a um, ou em pequenos grupos,
foram pouco a pouco se avizinhando e acercando em torno da mísera choupana da moribunda.
A curiosidade vence o pavor e desmancha todos os escrúpulos. Todos aqueles que ainda há pouco fugiam do
rancho de Nhá Tuca como de um lugar malsinado, e que quando por ali passavam tinham o cuidado de nem
olhar para ele, benzendo-se cheios de terror quando acontecia enxergarem a velha, agora se sentiam
irresistivelmente atraídos para aquele ponto. Era a curiosidade, esse ímã misterioso, que para ali os arrastava.
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Nas massas populares a curiosidade suplanta o medo, e faz arrostar todos os perigos reais ou imaginários.
É assim, por exemplo, que por ocasião de um grande incêndio a turba se aglomera por sob as paredes de um
edifício em chamas, que a cada momento pode desabar sobre ela, sendo necessário intervir a ação da polícia
para desviá-la. Às vezes também, para gozar de um espetáculo o mais trivial e corriqueiro, a turba não hesita
em colocar-se nas posições as mais incômodas e perigosas, em risco de quebrar um braço ou uma perna.
O espetáculo ou mistério, que atraía a curiosidade de nossos caipiras, nada tinha de realmente perigoso, mas
abalava-lhes a imaginação, como se tivessem de ver Satanás em pessoa.
– Santo Deus! – exclamava um deles. – Que irá fazer ali Frei João?.. Um santo em casa de uma bruxa! . . .
– Vai fazer obra de caridade – respondeu outro. Vai ver se ainda pode livrar das penas do inferno a alma da
pobre velha.
– Isso é impossível... pois mecê não sabe que ela é mula sem cabeça?
– E demais a mais tem o diabo no corpo – acrescentou outro.
– Pois que tem isso?.. É que o padre vai tirar o diabo do corpo dela. Ah! se eu pudesse estar lá dentro e ver o
tinhoso sair aos pinchos da boca daquela tartaruga velha!...
– Deus te livre!... Ver o quê!... A cara de Satanás!... Até estou com medo de ver agora mesmo pegar fogo no
rancho, e a velha sair de lá na figura do cão tinhoso.
– Chê! que esperança!... Então o frade não está lá dentro?...
– Mas esse é homem de Deus; não há mal que o pegue; há de sair são e salvo.
Enquanto o povo por fora se entretinha assim com estes e outros apodos e conjeturas, o frade e seu amigo
penetravam no aposento da enferma, a qual, graças à generosidade de Conrado e aos cuidados do francês,
apresentava um aspecto menos lúgubre e menos nauseabundo.
Antes, porém, de assistirmos à cena da confissão da velha, nos é mister dar aqui ao leitor uma rápida notícia
biográfica da personagem, que agora jaz no leito da agonia com a alma abarrotada de pecados e crivada de
remorsos.
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Isto nos é indispensável, porque a parte pública da confissão da velha versa somente sobre um fato, que já
conhecemos, a substituição de uma criança escrava e morta por outra viva e livre, donde resultou a
escravização de Rosaura. O resto, porém, passa-se debaixo do misterioso sigilo da confissão auricular, e como
não somos sacerdotes, e nem foi em nosso peito que ela depositou os segredos de sua abominável e execranda
vida, segredos que depois foram conhecidos e propalados a todos que tivessem ouvidos para ouvi-los, cremos
que não será pecado da nossa parte divulgá-los agora.
Alguma coisa já dissemos acerca do caráter e dos costumes de Nhá Tuca; mas apenas levantamos um canto do
véu que encobre as torpezas e atrocidades, que constituíram a ocupação única de sua longa vida.
Nhá Tuca não era natural da cidade de S. Paulo.
Nascera em Moji-Mirim, em mil setecentos e setenta, pouco mais ou menos. Portanto, já não podia descer ao
túmulo com menos de setenta e muitos a oitenta anos. Foi somente depois que recebeu a herança de seu
falecido irmão, que tomou a resolução de mudar sua residência para a capital da província, então capitania.
Essa herança, como já sabemos, na sua melhor parte consistia em uma boa porção de crioulas e mulatas, todas
novas e bonitas, vigorosas e sadias.
Parece que por desgraça sua, o irmão de Nhá Tuca tinha sangue turco nas veias; tinha pendor imenso para o
serralho, nascera para ser um sultão, ou pelo menos um vizir. Por isso toda a fortuna, que havia herdado ou
adquirido à custa de algum trabalho, ia consumindo toda em colecionar essa formosa tribo, que por força do
destino teve de transmitir à sua irmã única, sem mesmo ter o trabalho de fazer testamento. A sensualidade de
um serviu admiràvelmente à avareza da outra.
A irmã, que não podia tirar o mesmo proveito de tão preciosa deixa, excogitou outro meio de fazê-la render o
maior lucro possível. O vício capital dessa mulher era, como sabemos, a avareza, pecado mortal
incompreensível para muitos e só compreendido por aqueles que lhe sentem as delícias.
Obedecendo a essa sua tendência inata, Nhá Tuca concebeu e realizou o projeto de fundar com as raparigas,
que herdara, uma espécie de prostíbulo ou alcouce, dirigido por ela em pessoa, do qual esperava auferir grandes
vantagens pecuniárias. Mas Moji-Mirim, era então uma pobre vila, talvez arraial ainda, e não podia oferecer
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campo assaz vasto para suas altas especulações. Portanto Nhá Tuca tomou o acordo de vender tudo quanto
possuía em sua terra natal, e de emigrar com seu formoso rebanho para a capital da província, onde poderia
desenvolver em mais larga escala sua lucrativa indústria.
Em S. Paulo comprou fora da cidade o prédio, em que pela primeira vez a encontramos, e onde estabeleceu
com excelentes cômodos e por preços módicos venda, rancho e hospedaria.
A freguesia, logo desde princípios, tornou-se cada vez mais numerosa. O serviço da hospedaria era feito com
grande esmero e asseio pelas seis ou oito escravas, jovens e vistosas, e sempre trajadas com certo luxo
provocador, que atraía a atenção dos sibaritas. Elas, habilmente industriadas pela abelha-mestra, cercavam os
viandantes de mil cuidados e atenções, a que não era possível resistir. Eram outras tantas Hebes, ofertando a
Jove a taça da ambrosia.
Muita vez acontecia que o viajor, esquecendo-se de interesses, que reclamavam a pronta continuação de sua
viagem, encantado pela deliciosa hospedagem, que ali encontrava, falhava quase sem querer um, dois, três e
mais dias; tanta era a obsequiosidade, tantos os carinhos, de que se via rodeado. Em todo caso, quando o
viandante não falhava, lá ficava, além da despesa ordinária, uma grossa soma, ou uma rica jóia, que as fiéis
servidoras nunca deixavam de entregar à senhora. Nem lhes era mister guardar coisa alguma. Nada lhes faltava
nem quanto a alimento nem quanto a vestuário. Gozavam de liberdade quase absoluta, e compreendendo o
recíproco interesse, que as ligava à sua senhora, viviam com ela em perfeito pé de inteligência e harmonia. A
própria dona da casa, apesar de velha e adoentada, trabalhava tanto ou mais do que as escravas, que tafulonas e
peraltas só se ocupavam em serviços delicados e em fazer sala aos hóspedes, enquanto a senhora era apenas
ajudada por uma preta velha no serviço grosseiro da casa. Tudo isso, porém se fazia por gosto da senhora, que o
dava por muito bem empregado.
E não era só com os passageiros, que se especulava. A rapaziada da vizinhança também lá acudia atraída pela
fama da boa bebida, que lá havia, e das bonitas raparigas, que serviam de caixeiras e de serventes na
hospedaria. Mais de um filho de caipira bem arranjado ali deixou, sem saber como, os rendimentos de todo o
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bom negócio, que havia feito na cidade, e arruinou seu pai com as repetidas invernadas na taberna de Nhá
Tuca.
E não ficavam só em casa as vergonhosas especulações da velha; estendiam-se a mais longe. Todos os
domingos e dias santos, Nhá Tuca expedia para a cidade três ou quatro de suas mais lindas raparigas, bem
vestidas e prontas a armar laço à bôlsa dos estudantes. Em toda parte, onde há academia, universidade, ou coisa
que o valha, há sempre numerosa cáfila de moços ricos, pródigos e libertinos, que não hesitam em sangrar
consideràvelmente a bolsa paterna em benefício das cantoneiras.
Voltavam, portanto, as Vênus para a casa sempre com rica propina, que entregavam fielmente à senhora;
diziam, porém, alguns que ela sempre lhes deixava alguma porcentagem para os alfinetes, a fim de
desempenharem com mais zêlo e boa vontade sua afanosa profissão.
Outra traficância, porém, se não tão sórdida, ao menos igualmente imoral e repugnante, fazia ela por meio
dessas miseráveis criaturas. Sadias e bem tratadas como andavam as escravas de Nhá Tuca, não deixavam de
dar de vez em quando algumas lindas crias, que, ao chegarem à idade de oito ou dez anos, a senhora vendia por
bom dinheiro, sem que as mães educadas naquela escola de abjeção prostibular opusessem a menor resistência,
nem manifestassem mágoa alguma com a separação dos filhos.
Em abono da verdade cumpre-nos dizer que Nhá Tuca só vendia os machos, reservando as mulheres para
reforma do serralho, substituindo as mães, quando estas envelhecessem ou morressem; e mesmo os machos ela
não os vendia senão a pessoas do lugar. Com isso, tinha duas vantagens: não só obedecia aos impulsos de seu
sensível coração, não desterrando para longe de suas mães aqueles queridas pimpolhos, como também adquiria
excelentes alcaiotas para a sua grei e habilíssimos corretores para todo gênero de traficância.
Um dia, uma de suas mais belas mulatas deu à luz uma linda menina, e tão alva, que ninguém a diria
descendente de africanos. Era a própria Nhá Tuca quem assistia os partos de suas escravas, e sempre com
habilidade e mestrança, que o resultado nunca desmentiu. Dessa vez, porém, tão desastrada andou no cortar o
umbigo da criança, que esta, esvaindo-se em sangue, se finou poucas horas depois de nascida. Nhá Tuca sentiu
cruelmente esta perda, e levou uma boa hora a praguejar-se e a vomitar blasfêmias e maldições.
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Isso era pela madrugada. Mal despontou a primeira alva do dia, ela, que era sempre a primeira a levantar-se, ao
abrir a porta da frente deu com os olhos em um berçozinho, em que se achava enfaixada uma criança, cuja
procedência já conhecemos. Recuou espavorida, e benzeu-se dando três passos para trás.
– Cruzes!... credo!... que será isto, Deus do céu! – exclamou ela em atitude de espanto, e com os olhos pregados
no berço. – E não é que é uma criança, que vieram enjeitar à minha porta!... ora!... ora!... ora esta!... esta não
lembrava nem ao diabo!... Acham-me então com cara de mãe da humanidade!... Mas enfim, que hei de eu
fazer?... Não hei de deitá-la aos porcos, oh! isso não... Mas... mas... - continuou ela, coçando a cabeça,
avizinhando-se do berço, inclinando-se sobre ele, e reparando com atenção a criança. – Ora esta!... eu sou
mesmo uma pateta!... É coisa que está entrando pelos olhos. Foi minha boa fortuna que aqui me trouxe esta
criança... Vejamos! – prosseguiu ela, murmurando sempre em voz baixa e arredando as faixas, que envolviam a
criancinha. – Coitadinha! está dormindo!... Como é bonitinha!... oh!... e é fêmea!...
Tanto melhor. E é tal qual como a defuntinha, sem tirar nem pôr. E esta!... Sai-me uma morta pela porta afora,
e entra-me outra viva pela porta adentro... Mil graças a quem me fez tão delicado presente, e tão a propósito!...
Dizendo ou, antes, resmungando essas horríveis palavras, a velha recolheu o berço e, tirando dele com todo o
jeito a criança adormecida, a levou para o quarto da mulata puérpera e a depôs nos braços dela, dizendo
secamente:
– Toma tua filha.
– Como é isso, nhanhã? – exclamou surpreendida a rapariga. – Pois minha filha não morreu?...
– Qual morreu o quê, toleirona!... Quem te disse isso?... Foi vágado, que deu na menina; eu fomentei com
arruda e cachaça, e ela voltou a si. Quem morreu foi uma enjeitadinha, que encontrei aí na porta agorinha
mesmo quase a expirar.
Nhá Tuca, saindo do quarto da mulata, teve o cuidado de ir imediatamente colocar a escravinha morta dentro
do berço, donde há pouco tirara a enjeitada viva.
Não se sabe se a mãe da menina morta e as outras escravas perceberam esta manobra de Nhá Tuca, e se nela
foram coniventes; o certo é que ali nunca se ouviu nem de leve murmurar sobre tal coisa.
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O cadáver da verdadeira escrava foi nesse mesmo dia dado à sepultura como o de uma enjeitada, e quinze dias
depois a exposta era batizada na Capela de Santa Ifigênia como escrava de Nhá Tuca, e recebia na pia batismal
o nome de Rosaura.
Dessa data em diante, os negócios de Nhá Tuca começaram a desandar em progressivo desarranjo e
decadência. Com a idade, a devassidão e as moléstias, a beleza das raparigas foi murchando e se esvaecendo
com assustadora rapidez. Vendo cada vez mais ir-se-lhes escasseando a freguesia, Nhá Tuca, que era mestra
jubilada em toda a casta de tricas, abusões e torpezas, industriou as raparigas em certas práticas infames,
ensinando-lhes a preparar filtros amorosos por meio de processos imundos e nocivos a fim de prenderem o
coração dos desditosos amantes. Com esse expediente, nem por isso obtiveram grandes vantagens.
Todavia, sempre conseguiram enviar para a eternidade, depois de bem depenados, uma boa meia dúzia de
patinhos, e deixar para sempre entisicados dos pulmões e da algibeira não menos de outra meia dúzia.
Por estas e outras proezas, Nhá Tuca começou a granjear uma enorme reputação de bruxa, feiticeira e mestra
em malefícios diabólicos, passando como coisa incontestável, entre os povos daquela redondeza, que ela tinha
pacto com o diabo. Por essa razão começou ela a ser detestada e temida, execrada e evitada por toda aquela
gente. As raparigas foram-se cobrindo de uma lepra, que se propagou por todas, devida a moléstias sifilíticas
mal curadas; tornaram-se hediondas e foram morrendo uma a uma, sucessivamente. Os fregueses, que outrora
com tanta alegria e sofreguidão acudiam àquela animada e ruidosa locanda, agora fugiam de lá como quem
foge da peste.
Dorotéia era talvez a mais linda de todas as odaliscas do serralho de Nhá Tuca, e a única que ainda conservava
alguns restos da saúde e frescura da mocidade. Era ela a favorita e a confidente de Nhá Tuca, e a quem esta não
receava confiar seus segredos e suas chaves.
Em uma noite de orgia, em que houve suma profusão de bebidas espirituosas, de parceria e combinação com
um taful, com quem se ligara estreitamente, lá pela madrugada, Dorotéia, filou sutilmente a chave do
mealheiro, esvaziou-o completamente, e eclipsou-se de uma vez para sempre em companhia do amante. Ao dar
pela falta da escrava e de todo o dinheiro que possuía, a velha deu urros de desespero, e caiu fulminada por
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uma congestão; mas não morreu. Apesar de todas as diligências que empregou, nunca mais lhe foi possível
deitar a mão nem na escrava nem no dinheiro.
Foi nessa ocasião que Nhá Tuca, achando-se inteiramente exausta de recursos, se viu na dura necessidade de
vender Rosaura, que então contava dez anos, e era a única cria que lhe restava de suas escravas. Posto que
vivesse no meio daquela escola do vício e da abjeção, Rosaura, graças à índole privilegiada, e também ao
cuidado que Nhá Tuca, por exceção de regra, tinha tido de esquivar-lhe aos olhos as cenas de devassidão que se
davam em sua casa, havia conservado até ali pura e intacta a inocência de sua alma. Se era uma fada pela
formosura do rosto e pelo airoso porte de seu corpo esbelto, era um anjo pela candura e pureza do coração.
Foi um assinalado favor, que o céu fez à pobre menina, permitindo que ainda em verdes anos fosse arrancada
ao ambiente infecto daquele imundo lupanar.
O preço de Rosaura, porém, não tendo aplicação lucrativa, bem depressa se exauriu, e a miséria veio bater à
porta da desgraçada velha, que já não tinha por companheira senão uma escrava, tão idosa e inválida como ela.
Já Nhá Tuca se dispunha a vender o prédio, em que morava, para ter de que subsistir, quando, para cúmulo de
males, em uma bela noite foi ele devorado por um incêndio, do qual a custo e como por milagre ela e sua
companheira puderam escapar com a roupa do corpo. No outro dia, as duas míseras velhas vagavam pela
estrada, mendigando pelo amor de Deus um bocado de alimento e um telheiro em que se abrigassem, e bem
poucos se compadeciam delas.
– Foi bem feito! – murmurava o povo, desalmado. – É castigo de Deus. Nem outra sorte merecia semelhante
feiticeira.
Portanto, a infeliz, condenada a tragar até às fezes, a taça do abandono e da miséria, era por quase toda parte
mal acolhida, e até repelida e insultada. O povo ou porque tem por costume fazer a vista grossa sobre os
defeitos e nódoas, que enxovalham a vida de qualquer, enquanto este se acha em condições de riqueza e
prosperidade, ou porque, só depois que Nhá Tuca caiu em desgraça, começassem a divulgar-se as torpezas e
malefícios por ela praticados, o povo não teve dela menor comiseração. De feito eram execráveis as
atrocidades, que se lhe atribuíam, e foram as próprias escravas que, vendo o descalabro dos bens da senhora, e
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o desconceito em que ia caindo, se encarregaram de propalá-las. Por boca dessas desgraçadas, que a miséria e a
crápula tornavam cada vez mais abjetas, toda a gente daqueles arredores ficou sabendo não só as façanhas, que
temos relatado, como também que fora Nhá Tuca quem abreviara os dias de seu irmão para empolgar-lhe a
herança.
O francês que tinha taverna à beira da estrada foi o único que se compadeceu dela, permitindo-lhe morar no
miserável ranchinho em que a encontramos.
Aí definhava ela, há dois anos, em companhia da preta velha de que já falamos.
Era esta que, de quando em quando, saía a esmolar pela cidade para si e para sua companheira, porque se saísse
a própria Nhá Tuca, bem minguada seria a coleta. Essa mesma pobre preta, que era seu único arrimo, havia
morrido subitamente dois dias antes, deixando sua senhora entrevada sobre seu mísero grabato e no estado de
indigência e desamparo em que Conrado veio encontrá-la.
CAPÍTULO XIV
A CONFISSÃO
No quarto da moribunda havia dois tamboretes, um colocado junto à cabeceira, outro aos pés do pobre girau.
Havia também defronte do leito uma mesa pequena e tosca, sobre a qual estava colocado um crucifixo de
madeira entre duas velas acesas; assim como também um tinteiro, pena e papel. A enferma, graças aos
cuidados do francês, que, conforme as recomendações de Conrado, além de ter mandado arejar o aposento e
mudar a roupa da cama, tinha-lhe enviado um caldo e um cálix de vinho, achava-se mais reanimada. Estava ela
meio sentada, e encostada a alguns travesseiros. Conrado fez Frei João sentar-se à cabeceira, e ele mesmo
colocou-se aos pés da cama da enferma. O francês e as outras duas testemunhas, por não haver mais assentos,
ficaram em pé defronte do leito.
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– Sra. D. Gertrudes – disse Conrado, com um acento de voz pausado e brando, de modo que tranqüilizasse a
enferma – prometi trazer-lhe um confessor: venho cumprir a minha promessa. Aí está em sua presença o Sr.
Padre Frei João de Santa Clara, digno e virtuoso sacerdote, que está pronto a ouvi-la de confissão, e absolvê-la
de seus pecados.
A velha voltou a custo o rosto para o padre, depois, levando lentamente sobre o coração a destra mirrada em
sinal de gratidão e reverência, o saudou com uma leve inclinação de cabeça.
– Tenha piedade de mim, senhor padre, murmurou com voz seca e alquebrada.
– É a misericórdia divina, e não a minha, que a senhora deve implorar – respondeu brandamente Frei João. – É
Deus, e não eu, que tem de julgá-la.
– Sim, é ele, bem sei, mas minhas culpas são tantas e tão enormes...
– Embora. Se a senhora tem verdadeira contrição e arrependimento de seus pecados, por muitos e enormes que
sejam, deve ter firme esperança de que Deus se amerceará de sua alma. Há, porém, um ponto de sua confissão,
que este meu amigo, que aqui me trouxe, deseja que seja feito em voz alta e em presença das testemunhas, que
aqui nos achamos, e tomada por escrito, a fim de remediar um grande mal, que a senhora fez, reduzindo à
escravidão pessoa livre. Recorda-se desse fato?...
– Oh! sim! muito! para vergonha minha e tormento de minha alma.
– E está pronta a declará-lo em voz alta perante nós, que aqui estamos?
– Pronta, senhor padre; pronta para tudo.
– Pois bem; faça em primeiro lugar, conscienciosamente e com toda a sinceridade, a declaração desse fato com
todas as circunstâncias, de que se lembrar. Depois, a ouvirei em confissão particular e secreta.
– É verdade, senhor padre; foi um crime abominável, que cometi... Graças a Deus, que ainda me dá tempo de
remediá-lo nesta hora derradeira.
A velha em seguida fez, com voz débil e arrastada, a narração minuciosa da fraudulenta manobra, que já
conhecemos, e por meio da qual reduzira à escravidão a filha de Conrado e Adelaide. Frei João redigiu e ditou,
e o francês escreveu a seguinte declaração: .
200
"Eu Gertrudes Maria dos Anjos, natural de Moji-Mirim, província de S. Paulo, achando-me em artigo de morte
e prestes a entregar minha alma ao Criador, em confissão pública, que de viva voz e de livre vontade faço
perante o Rev.mo Sr. Padre Frei João de Santa Clara, e mais testemunhas, para desencargo de minha
consciência, salvação de minha alma, e reparação do mal causado, declaro que na noite de dezoito para
dezenove de novembro de mil e oitocentos e quarenta..., uma escrava minha deu à luz uma menina, a qual
faleceu logo depois de nascida.
Nessa mesma manhã, ao romper do dia, encontrei exposta em minha porta uma menina recém-nascida, que
substituí à criança morta fazendo-a passar pela filha da escrava, e dizendo que a enjeitada é que tinha morrido.
Esta enjeitada foi batizada na Igreja de Santa Ifigênia como escrava minha com o nome de Rosaura, e como tal
foi conservada em meu poder até a idade de dez anos, sendo vendida por mim a um Sr. Basílio, morador na
Rua do Tabatinguera. Ignoro o que depois foi feito dela. S. Paulo, 2 de novembro de 184..."
Esta espécie de termo, declaração, depoimento, ou como melhor se possa chamar, foi lido à enferma, que o
julgou conforme ao que tinha declarado, e em ato contínuo assinado por Frei João e as outras testemunhas. Frei
João, para dar maior força e autenticidade àquele importante documento, antes de assinar-se, escreveu o
seguinte juramento:
"Pelo sagrado hábito, que visto, da Ordem dos Carmelitas, juro que a presente declaração foi feita perante mim,
tal qual se acha escrita, em ato de confissão pública in articulis mortis".
Concluído este ato, retiraram-se todos deixando somente o frade para ouvir a penitente em confissão auricular.
É escusado dizer que o fato, que constituiu a confissão pública da velha, logo circulou de boca em boca, e foi
discutido, comentado, e apreciado de mil maneiras. Sua curiosidade já em parte ficara satisfeita; já sabiam qual
o nobre e generoso motivo, pelo qual o cavaleiro, que ali se apresentara pela manhã, havia mostrado tanto
interesse e solicitude pela velha, e feito tantos esforços para, que não morresse sem confissão. Não cessavam de
elogiá-lo tanto quanto maldiziam a desditosa velha. Mas restava ainda um mistério, que não podiam penetrar, e
que lhes causava no espírito o mais incômodo prurido. Dariam tudo para saber que laço misterioso havia entre
o cavaleiro e a menina batizada como escrava, que lhe merecia tantos cuidados e sacrifícios. De conjetura em
201
conjetura alguns não deixaram de tocar certo no alto; mas eram meras suposições; a dúvida e o mistério
persistiam.
Com grande desgosto de Conrado, que pretendia ir nessa mesma tarde arrancar sua filha às mãos de seus
supostos senhores, a confissão da velha teve de durar uma boa hora, tanta era a carga de pecados, de que aquela
alma trazia carregada a consciência, e que lhe era mister alijar à borda do túmulo para poder subir ao céu.
– De profundis exclamavi - veio murmurando Frei João ao sair elo rancho da moribunda.
– Morreu? - perguntou Conrado, que o esperava à porta.
– Sim; morreu. Aquela pobre alma parece que, por um supremo esforço, se mantinha presa ao corpo para
descarregar o peso de suas enormes culpas. Foi recebendo a absolvição e expirando imediatamente.
– Deus se compadeça de sua alma – disse Conrado.
– Amen – respondeu Frei João.
Enquanto Nhá Tuca se confessava, o sol próximo ao ocaso já quase tocava na serra da Cantareira, não entre
vapores diáfanos e nuvenzinhas douradas, mas entre negros e carregados bulcões de orlas cor de cobre, que a
cada instante se acendiam, e apagavam ao sulcar de mil coriscos. Era a tempestade, que se avizinhava em seu
carro impetuoso, impelido pelo sopro dos furacões.
Estava-se já nos primeiros dias de novembro, e nem uma gota de chuva tinha ainda caído do céu sobre a terra
ardente e sequiosa. A seca com seu sinistro cortejo de calamidades ameaçava a bela província de S. Paulo,
pouco afeita a ser castigada com semelhante flagelo. Já se tinham feito preces públicas implorando a
misericórdia divina; já a milagrosa Imagem de N. S. da Penha, que tem a sua capela a duas léguas de distância
da cidade de S. Paulo, tinha sido conduzida em procissão solene, desde lá até a Igreja da Sé, com grande
devoção e atos de penitência.
A tempestade, portanto, apesar de avizinhar-se medonha e ameaçadora, foi saudada com gritos de alegria pelo
povo, que se achava reunido em torno da cabana de Nhá Tuca. O vento zunia com fúria diabólica, os coriscos
fuzilavam de instante a instante, os trovões estouravam cada vez com mais força, e a chuva começava a
despenhar-se em violentas e copiosas rajadas.
202
Conrado, Frei João e toda aquela gente, que em número de trinta a quarenta pessoas ali se achava desde pela
manhã, viram-se forçados a recolher-se atropeladamente à casa do francês. Os cômodos eram bastantemente
acanhados para tanta gente; mas mesmo assim, eles em pé, apinhados e acotovelando-se, enquanto lá por fora a
tempestade desabava roncando furiosa, falavam em voz alta com a maior franqueza e desembaraço, formando
outra tempestade de horripilantes pragas e maldições.
– Aquela mulher era mesmo o diabo, que malsinava esta terra – gritava um. – Foi ela morrer, e a chuva descer.
Bendita morte e bendita chuva!
– E é mesmo assim – replicou outro. – Aquela maldita trazia o demônio na mala, e era preciso um padre santo
para mandar o cão tinhoso com a velha e tudo estourar nas profundas dos infernos, para a gente ficar livre da
seca.
– Abençoado seja o Sr. Frei João de Santa Clara! A imaginação do povo é sempre; propensa a crendices e
superstições, e aquele fenômeno, coincidindo com a morte da desgraçada velha, fez com que acreditassem que
ela, provocando com suas maldades as iras do céu era a única causadora do flagelo, com que Deus afligia
aquela terra, e portanto continuava a maldizer na morte a pobre mulher, a quem na vida já tinham votado ao
desamparo e à execração. Assim a alma de Nhá Tuca, para onde quer que tivesse de dirigir-se, retirava-se deste
mundo entre os roncos da tempestade e as apupadas e maldições do povo. O vento impetuoso tinha
dilacerado e atirado pelos ares o teto de capim do rancho, deixando o cadáver da mísera velha exposto a todo o
vigor do temporal.
– Se até o céu se zanga contra essa mulher, nós é que devemos ter piedade dela? – clamava o povo, e já se
dispunha a ir, logo que amainasse a tormenta, atacar fogo ao rancho, a fim de que ardesse completamente com
o cadáver da velha e tudo que lhe pertencia.
– Dela – diziam eles – não devem ficar sobre a terra nem mesmo as cinzas. Pouco nos custa acender um grande
braseiro, que secará a chuva, e amanhã esse maldito rancho e sua dona não serão mais que um punhado de
cinza, que o vento levará pelos ares.
203
E teriam levado a efeito sua intenção, se Conrado e Frei João não os tivessem estorvado, opondo-se com
energia a tão cruel profanação.
Quando o temporal cessou de todo, a noite vinha descendo sobre a terra. Aquela chuva, que durou cerca de
uma hora, a todos agradou, menos a Conrado, a quem viera tirar a possibilidade de ir, como pretendia, reclamar
naquele mesmo dia a entrega de sua Rosaura. Sua impaciência era legítima; quisera que nem mais uma só noite
sua filha dormisse debaixo dos tetos do major; informado por Lucinda, já era sabedor dos contínuos e graves
perigos a que ali se achavam expostas a pureza e a pudicícia da menina. Mas forçoso lhe foi diferir para o dia
seguinte a satisfação do seu intento; posto que tivesse cessado a chuva, o céu se conservava nublado, e a noite
ia-se tornando escuríssima; isto, unido ao mau estado dos caminhos escavados pelas enxurradas, retardava
consideràvelmente a marcha dos animais, e não poderiam chegar à cidade senão com noite muito adiantada.
A despeito da escuridão e das dificuldades do caminho, Conrado e Frei João, de volta para a cidade, não
deixaram de conversar largamente combinando entre si os meios que deveriam empregar para que, sem
escândalo e sem lesão da honra e da reputação de Adelaide, Rosaura fosse prontamente reconhecida como livre
de nascimento, e entregue a seu pai. Frei João aconselhava a seu amigo que procurasse ser o mais humano e
generoso, que fosse possível, para com o pai e o marido de Adelaide, os quais, se fosse possível, deveriam ficar
em perpétua ignorância da existência dessa neta e dessa enteada. Ponderava-lhe mais que, se eles recusassem
entregá-la por meios amigáveis, restava ainda o recurso dos meios judiciais, pelos quais seriam sem remissão
forçados a reconhecer a liberdade da menina e largar mão dela.
– É porque o meu amigo não conhece de que têmpera é aquele Major Damásio – respondia Conrado.
É o homem mais teimoso, mais emperrado que o sol cobre. Quando encabeça para um lado, não há força
humana, que o possa desviar. É como a anta disparada pelo mato, esbarrando furiosamente em quanto
obstáculo encontra e levando tudo de vencida. . .
– Até que cai em algum poço, e aí, querendo fazer face ao inimigo, é de ordinário vencida e morta.
– É verdade, mas depois de muito acuada e à custa de renhido combate. Mas o meu amigo ignora ainda as
perversas e sinistras intenções, que o marido de Adelaide tem sobre a minha inocente Rosaura.
204
– Ignoro certamente.
– Pois saiba que concebeu por ela a mais louca e infrene paixão, e a cada instante emprega todos os meios e
artifícios para seduzi-la ou coagi-la, de modo que a infeliz menina, a qualquer momento, pode ser vítima da
fúria libidinosa de seu pretendido senhor. E é bem de crer que, quando ele perceber que a presa está prestes a
escapar-lhe das garras, redobrará de esforços para levar a efeito seus execráveis desígnios. Eis aí por que não
posso resignar-me às delongas dos meios judiciais, sempre morosos e complicados mesmo nas coisas as mais
simples. Estou quase certo que tanto o velho como o genro hão de recalcitrar com a maior obstinação, e
cerrando os olhos à evidência, hão de opor todos os embaraços, que estiverem a seu alcance, a fim de obstar a
liberdade e a entrega de Rosaura. Creio por isso que não terei remédio senão valer-me do meio pronto e
decisivo, com que a Providência armou-me o braço.
– Tens razão de sobejo, meu caro amigo – replicou o frade. – Não sabia que as coisas se achavam em tão
melindrosa conjuntura. Não obstante, antes de lançarmos mão desse recurso extremo, convém empregar todos
os meios para conseguir a liberdade e entrega da menina sem quebra da honra de Adelaide, sem ir levar a
vergonha e a discórdia ao seio de uma família considerada.
– De minha parte – retorquiu Conrado – bem estimaria que, para seu castigo, o major viesse ao conhecimento
de todo o ocorrido, pois é ele o primeiro, o único causador de todos estes transtornos; mas a lembrança de que
Adelaide, vítima dos caprichos de um pai estúpido e brutal, também irá participar do mesmo castigo, me
contém em meus legítimos desejos de vingança.
– Nenhuma vingança é legítima, meu amigo.
– Está bem; mas isso não seria propriamente uma vingança, porém sim um castigo, que Deus lhe infligia por
minhas mãos. Esteja porém tranquilo a esse respeito; não empregarei a arma terrível, de que disponho, senão
em último caso; mas tenho quase certeza de que me forçarão a empregá-la; ver-me-ei na cruel necessidade de
invocar o testemunho da própria Adelaide perante seu pai e seu marido.
– Talvez não; o documento, que levamos, não pode ser contestado.
205
– Eles são capazes de contestar a luz ao sol. Veremos amanhã. Às dez horas, iremos à casa do Major Damásio.
Poderá fazer-me ainda este favor?
– Com muito prazer; creio até que a minha presença aí não é sàmente útil, torna-se mesmo necessária, pois
creia que não sossego enquanto não vir esse negócio terminado com o mais feliz resultado. Eu lá estarei para
coadjuvá-lo, quanto em mim couber, a fim de concluí-lo sem escândalo, e do modo o mais pacífico que for
possível. Quando tivermos esgotado todos os meios brandos, eu darei um sinal, para que o meu amigo lance
mão do extremo recurso.
Neste ponto da conversação, os dois amigos entravam na cidade. Acabavam de soar nove horas. Conrado
apeou-se em casa, e mandou seu pajem acompanhar Frei João ao Convento e trazer a cavalgadura.
CAPÍTULO XV
O SOGRO E O GENRO
Esse dia primeiro de novembro de 184... tão cheio de emoções profundas e interessantes peripécias na vida de
Conrado, não se escoou também tranqüilamente em casa do Major Damásio. Desde que Conrado aí aparecera
exigindo do Sr. Morais a libertação e a entrega de Rosaura, alegando que ela nascera livre, e declarando que era
sua filha, o marido de Adelaide perdeu não somente toda a tranqüilidade de seu espírito, como também algum
tanto de sua razão. Por mais que se esforçasse por dar pouca importância às declarações do rico capitalista, elas
não deixavam de fazer sobre sua alma a mais esmagadora impressão.
O genro do major conhecia a Conrado pela bela e honrosa reputação, de que gozava não só na capital, como em
toda a província de S. Paulo. Sabia muito bem que, além de rico, era homem honesto e honrado, incapaz de
aleives e manejos torpes.
206
– Esse homem terá decerto algum motivo particular para querer pregar-me alguma peça – murmurava consigo.
– Já fui estudante, e ele sempre foi futrica; talvez eu lhe tivesse arranjado alguma caçoada, de que não me
lembro, e para tirar desforra vem-me agora com esta... Mas perde seu tempo; não é a mim, que há de fazer
engolir araras... Vá com sua caçoada para mais longe! Decerto o maganão sabe que gosto de Rosaura, e quer
me fazer medo. . .
Com estas e outras estólidas reflexões, que o seu mesquinho espírito lhe sugeria, Morais procurava dissipar a
terrível impressão, que lhe causara a visita de Conrado; mas era debalde; a figura grave e severa de Conrado,
suas palavras firmes e concisas e o estranho motivo de sua visita eram como visões sinistras, que de contínuo
lhe apavoravam a imaginação. Embaraçado com mil conjeturas, que lhe escaldavam o cérebro, não pôde ter-se,
que não fosse comunicar ao sogro tudo quanto havia ocorrido entre ele e Conrado, esperando que aquele
dissipasse a inquietação, que o torturava. O velho, que em razão dos janeiros e das moléstias já começava a
tresler seu tanto ou quanto, soltou uma estrondosa gargalhada.
– Pois deveras não saber ainda quem é esse peralta! – exclamou ele. – Foi meu capataz; fui eu quem lhe dei a
mão e o tirei do nada; se não fosse eu, ainda hoje ele estaria em Curitiba domando burros, ou tocando tropa.
– Isso sabia eu – respondeu Morais; – mas o certo é que hoje é um homem de importância e bastante rico.. .
– Rico! ora, rico!... Não creias nisso, homem. É mais basófia e impostura do que qualquer outra coisa. Anda
nos fazendo foscas com suas pataratas de luxo e riqueza só para nos pôr sal na moleira. Se tu soubesses o
motivo por que esse biltre nos tem ojeriza, não lhe davas tanta importância.
– Então ele nos tem ojeriza?.. Dessa não sabia eu.
– Tem, e muita, meu rapaz, e eu já te conto por que. Hás de acreditar, que aquele pé de poeira, sendo meu
capataz, teve o descoco de apaixonar-se pela nossa Adelaide a ponto de ter o desaforo de pedi-la em casamento
a mim, a mim mesmo que aqui estou?!
– Deveras!?...
– Olé!... sim, senhor!... E com uma petulância e impertinência de espantar. O que vale é que a menina nunca
lhe deu confiança, e eu arrumei-lhe com um não redondo à cara.
207
– Por isso! por isso! – exclamou o genro, com alegria aparvalhada. .
– Mas o bicho teimou assim mesmo – continuou o sogro – e foi-me preciso enxotá-lo pela porta afora para me
ver livre dele.
– Por isso! por isso! – exclamou ainda o genro. Por isso é que ele vem com tamanha arrogância exigir o que
não lhe pertence, inventando embustes e patranhas para me embaçar...
– Queres saber uma coisa? – interrompeu o sogro. – Quer me parecer que esse pelintra já conhecia Rosaura, e
deseja possuí-la, decerto para seu serralho...
– O maganão gosta de boas fazendas, e como se acha apatacado, cobiçou a menina, e faz o possível para
obtê-la.
– Coitado!... Disso está ele bem livre.
– Mas escuta ainda, basbaque. Não tens reparado que Rosaura tem assim certas parecenças com Adelaide,
quando era mocinha?
– Oh! se tem!... – murmurou o genro quase falando consigo mesmo. – Pensei que só eu tinha reparado nisso.
– Pois é isso talvez que lhe despertou agora outra vez a paixão antiga e... compreendes o resto, para o bom
entendedor um pingo é letra. Mas como lhe tomaste a dianteira comprando a rapariga, que ele cobiçava lá para
seus fins, danou com o caso e agora vem com essas patranhas procurar arrancá-la de nossas mãos.
– Ah! patife! – bradou o genro, encrispando os punhos. – Volta cá outra vez a buscar lã, e verás como sairás
tosqueadinho!
Morais achou todo fundamento nas conjeturas do major, que vieram dar bases mais sólidas às suas estólidas
suposições, e em conseqüência suas inquietações se transformaram no mais entranhado rancor contra Conrado.
Lembrando-se do ar meigo e afetuoso, com que Rosaura, com seus grandes olhos límpidos e ternos, havia
contemplado o moço durante todo o tempo que estivera em sua presença, o ciúme atracou-lhe ao coração as
garras ferozes; sua paixão insensata pela inocente menina tomou um caráter sombrio de exaltação e ferocidade,
que quase tocava ao delírio. Andava de aposento em aposento, procurando Rosaura, e, quando a encontrava, a
envolvia em um olhar torvo e inflamado, que não se poderia dizer se era de cólera, ou desse ardente
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sensualismo que lhe queimava o sangue. Rosaura fugia, e correndo espavorida procurava abrigo ora junto de
Adelaide, ora junto de Lucinda.
O mau humor de Morais se fez sentir nesse dia em toda a casa. Na loja, o pequeno caixeiro que o ajudava,
tendo cometido uma insignificante falta, Morais investiu sobre ele de côvado em punho com tal fúria, que o
obrigou a saltar o balcão e correr pela porta afora para não mais voltar. A mesa achou o jantar péssimo, e a
pobre Lucinda teve de ouvir os mais horríveis repelões.
Enfim, nesse dia tudo em casa do major andou inquieto e agitado. Lucinda, preocupada e ansiosa pelo resultado
das passadas, que Conrado ia dar para conseguir a liberdade de Rosaura, não sabia o que fazia, e esperava com
impaciência a noite para pôr termo a suas incertezas.
Adelaide, apesar do prazer íntimo que sentia, vendo perto de si a filha do seu primeiro amor tão linda e tão
amável, achava-se desassossegada e apreensiva, receando, com bastante fundamento, que o reconhecimento da
liberdade de Rosaura não se pudesse realizar sem se romper, talvez para sempre, a confiança e harmonia que
até ali tinham reinado no seio de sua família.
A própria Estela, apesar de sua tenra idade, vendo que Rosaura, a quem já adorava, em vez de brincar com ela,
na forma do costume, andava ressabiada pelos cantos da casa, com ar espavorido e consternado, sem saber por
que, achava-se também triste e amuada.
Somente as crianças mais tenras brincavam, riam, saltavam com a descuidosa alegria da puerícia.
Quando desceu a noite, Lucinda achou pretexto para sair, e foi direito à casa de Conrado. Esse ainda não tinha
chegado. Lucinda o esperou à porta por espaço de quase uma hora. Triste e contrariada já vinha de volta para
casa, quando encontrou em caminho dois cavaleiros, em um dos quais reconheceu Conrado. Era tal a sua
ansiedade, que, esquecendo-se de sua condição, abalançou-se a travar da rédea do animal no meio da rua,
suspender-lhe a marcha, e dirigir ao elegante cavaleiro uma pergunta.
– Então, nhô Conrado, como é?... – foram as únicas palavras que lhe dirigiu. .
– Tudo correu à medida de nossos desejos – respondeu o cavaleiro, que logo reconheceu a velha escrava. –
Amanhã, Rosaura está livre.
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A preta voou para a casa, pulando de contente, seu humor do dia para a noite mudou-se por tal forma, que a
todos causou estranheza; ela, que durante todo o dia estivera distraída, rabujenta, e de poucas graças,
apresentava-se agora alegre e folgazona como nunca. Corria, cantava, ria-se à toa, como se fosse uma criança.
Tomou Rosaura ao colo, e cobrindo-a de carícias a chamava de sinhazinha com alegria tal, que parecia loucura.
Rosaura, Estela e as crianças, que nem por sombra suspeitavam o motivo de tão insólito contentamento,
riam-se também, a não poderem mais, da desenvoltura de Lucinda.
Adelaide, que fora a primeira a quem a preta logo ao chegar tinha comunicado as palavras de Conrado, sentiu
banhar-se-lhe em júbilo o coração; mas um cruel pressentimento pesava-lhe sobre o espírito, e não permitia que
o seu júbilo se manifestasse com as mesmas expansões do de Lucinda. Ela compreendia vagamente que se
achava na véspera de um acontecimento, que tinha de exercer a mais decisiva influência sobre seu destino
futuro, e cheia de inquietação e angústia aguardava o desenlace de uma situação, que ela, melhor que ninguém,
sabia quanto era grave e melindrosa.
Durante a noite o sono de todos, à exceção do das crianças, foi agitado, febril e povoado de sonhos. O espírito
de Adelaide debatia-se entre o prazer de ver sua filha bela, grande e pura, arrancada à escravidão e restituída
aos carinhos de seus progenitores, e o receio cruel de ver perdida aos olhos do esposo e do pai a reputação de
que até ali gozara, e estes pensamentos afugentavam o sono de suas pálpebras.
Morais teve horríveis pesadelos e sonhos pavorosos, em que se lhe apresentava a figura de Conrado, torva e
inexorável, disputando-lhe a posse da formosa Rosaura.
Para Lucinda essa noite pareceu uma eternidade; estava ansiosa pelo momento em que, em vez de dar, teria de
pedir a bênção à Rosaura.
Esta dormiu com a imaginação entre a figura sombria e sinistra de Morais, ameaçando-a com seus olhares
ardentes e carregados, e a benévola e plácida imagem, que lhe ficara intimamente gravada nalma, do homem
que estivera com ela pela manhã.
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CAPÍTULO XVI
ABATE OS SOBERBOS
No dia seguinte, Frei João veio almoçar em casa de Conrado, e daí dirigiram-se ambos para casa do Major
Damásio. A missão, que iam desempenhar, era grave e melindrosa, e é fácil de compreender a emoção com que
ambos, e especialmente Conrado, transpuseram a soleira daquela casa, onde por uma fatal necessidade iam
talvez levar a vergonha e a desarmonia.
Introduzidos na sala de visitas, foram aí recebidos pelo Major Damásio com fria polidez.
– Desejava saber – disse o major, convidando-os a sentarem-se, – a que devo a honra desta visita.
Frei João, que conhecia a velha indisposição, que existia entre o major e Conrado e refletindo que debaixo da
emoção, que o dominava, seu amigo não teria a necessária presença de espírito para entabular
convenientemente a conversação, resolveu-se a responder por ele.
– Não é propriamente uma visita, senhor major, disse o frade. – O que nos traz hoje à sua casa é um negócio da
mais alta importância, não só para nós, como para V. S.a.
– Um negócio da mais alta importância! – exclamou o major, fingindo-se surpreendido. – E comigo!... Pode
ser... Declarem qual é esse negócio, e estou pronto a dar a solução, que for de direito e couber no possível.
– Entretanto, senhor major – continuou Frei João – para tratarmos desse negócio é indispensável que estejam
também aqui presentes o Sr. Morais e sua senhora, que são nele altamente interessados, e por isso rogamos-lhe
o favor de mandá-los chamar.
– Muito grave é o negócio, mas por isso não seja a dúvida – disse o major, tocando a campainha.
Apareceu um escravo, pelo qual mandou chamar a filha e o genro, que após instantes se apresentaram na sala.
Quando Adelaide deu com os olhos em Conrado, apesar de prevenida, empalideceu, foi extraordinária sua
perturbação, e a muito custo, com passos vacilantes, adiantou-se para tocar a mão, que ele lhe estendia.
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Ah! que tristes e amargas recordações lhe oprimiam o coração, e que sérias e assustadoras apreensões lhe
assaltavam o espírito naquela ocasião e em presença daquele homem!...
Adelaide, apesar dos filhos e de mais quatorze primaveras, que tinham passado sobre sua juventude, ainda
conservava no frescor da tez, no brilho dos olhos e na delicadeza e flexibilidade de seu bem feito corpo, quase
intactas todas as graças da primeira mocidade. A matrona de trinta anos em quase nada diferençava da donzela
de dezoito.
O tempo apenas lhe tinha tornado as belas feições um pouco mais pronunciadas, e lhe imprimira na fisionomia
certa expressão grave e melancólica, que ainda mais lhe realçava os encantos.
Ao ver tão perto de si e ao tocar a mão daquela, que fora o primeiro e único amor de sua vida, Conrado sentiu o
mais violento abalo, e abafou um gemido de angústia e de saudade. Pareceu-lhe que sua antiga paixão ia
renascer com todos os seus arroubos e exaltações, e a muito custo conseguiu domar a extrema emoção que o
assoberbava.
Também Frei João se achava bastantemente comovido. Espírito elevado e alma nobre e sensível, bem
compreendia o alcance e importância da cena, que se ia passar. O major e seu genro eram os únicos que se
mostravam pouco preocupados e, apesar de não ignorarem o motivo da visita de Conrado, afetavam certo ar de
indiferença e seguridade. Tinham razão; estavam longe de suspeitar a que tristes resultados poderia chegar
aquela conferência. Se pudessem adivinhar, que vergonha e ignomínia estava suspensa sobre suas cabeças
como a espada de Dâmocles, seriam eles os primeiros a se apresentar de fronte humilhada e cheios de
confusão, pedindo uma acomodação honrosa.
– Senhor Major – disse Frei João – ainda precisamos pedir-lhe mais um favor.
– Pronto, se estiver em meu poder. . .
– É muito simples o meu pedido. É de absoluta necessidade que aquilo, sobre o que temos de conversar, se
passe debaixo do maior segredo, de modo que jamais possa ser divulgado, nem conhecido senão por nós, que
aqui nos achamos. Por isso peço-lhe que mande retirar-se dos cômodos vizinhos os fâmulos e escravos e mais
pessoas da família e feche as portas de modo que não possam escutar-nos.
212
– É boa! – exclamou o major, com desabrimento. – Nunca tive e nem tenho segredos em minha casa! Não me
dirá para que fim tanto mistério?!...
– Teremos acaso o tribunal da Inquisição em nossa casa, senhor padre? – perguntou Morais, empertigando-se.
– Não se agastem, meus senhores! – respondeu o frade, com brandura. – Bem sei que o senhor major não tem
segredos em sua vida, e se os tem, ele próprio os ignora; e fique certo o Sr. Morais, que não venho trazer à sua
casa o tribunal da Inquisição. Venho aqui a convite de meu amigo o Sr. Conrado a fim de cumprir um dever
não só de amizade, como de religião e humanidade. Tenho, enfim, o desígnio de levar a um feliz e pacífico
desenlace um negócio de muito melindre, que pende entre ele e os senhores. No fundo desse negócio existe um
segredo importante, que talvez seja forçoso revelar, e que é mister que fique sepultado aqui entre nós, sem que
jamais possa ecoar além destas quatro paredes.
O major e Morais olharam um para o outro, como que perguntando o que significavam as palavras que Frei
João acabava de proferir; Adelaide, porém, que bem compreendia o alcance delas, estremeceu e recolheu sua
alma no seio de sua angústia.
– Pois bem! – disse Morais, fechando bruscamente as portas do salão. – Faça-se a vontade a vossas senhorias;
quanto a mim, tanto me rende que as portas estejam fechadas, como abertas. Não tenho segredos, mas não
posso proibir que outros os tenham. Vejamos agora – concluiu ele, sentando-se – qual é esse tão importante e
misterioso negócio.
– Esse importante e misterioso negócio – disse Conrado, levantando-se, e com voz firme e pausada – é de suma
importância, e precisa muito da sombra do segredo e do mistério, principalmente da parte de vossa senhoria. É
coisa muito simples; e para evitar mais perguntas, vou explicá-Ia em poucas palavras. Há pouco tempo o Sr.
Morais comprou como escrava uma menina por nome Rosaura a um negociante de escravos, para servir de
mucama a uma menina chamada Estela, filha do Sr. Morais e da Sra. D. Adelaide.
– Até aí tudo é exatíssimo – murmurou Morais.
– Ora, sem o saberem – continuou Conrado compraram uma pessoa que nasceu livre, e que por fraude e
malícia de uma mulher, que ontem faleceu, foi reduzida à escravidão. Ontem eu procurei o Sr. Morais, e
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pedi-lhe o resgate dessa menina, oferecendo-lhe a quantia que quisesse; mas ele recusou-se obstinadamente.
Ontem eu ainda não tinha provas irrecusáveis; hoje, mercê de Deus, as tenho sólidas e irrefragáveis, e venho
apresentá-las e exigir que me seja entregue essa menina, sobre a qual tenho direitos sagrados.
– Direitos sagrados! – exclamou o major. – Esta ainda é mais importante. Quais são eles?
– Já ontem declarei ao Sr. Morais, e agora o repito: sou pai de Rosaura.
– Há! há! há! – gargalhou o major, com riso aparvalhado. – O senhor é o pai e não poderá fazer-nos o favor de
dizer quem era a mãe?
Conrado olhou para Adelaide, e empalideceu; ela baixou os olhos e corou. Ambos tiveram comiseração do dito
inconsciente do pobre velho.
– Não há necessidade de saber-se quem é a mãe redarguiu Conrado. – É um segredo, que desejo guardar, e que
só em última necessidade revelarei para salvar minha filha da escravidão e da desonra.
Conrado carregou nesta última palavra, fitando os olhos de Morais, que, percebendo-lhe o alcance, estremeceu
como o réu que vê seu crime descoberto.
– Estou pronto – continuou Conrado – a indenizá-los da soma, por que compraram a menina, porque sei que o
fizeram em boa-fé.
– É debalde insistir, Sr. Conrado – replicou Morais. – Nós não disporemos dela, nem mesmo que o senhor
ofereça toda a sua fortuna. A paternidade, que V. S.a chama a si, e de que não queremos duvidar, nada
significa; a maternidade é o que importa neste caso, e enquanto V.S.a não provar que Rosaura é filha de mãe
livre. . .
– Nada mais fácil – atalhou Conrado – mas quero guardar esse segredo, porque importa a honra de uma mulher
a quem consagro ... a mais alta estima.
– Ah! nesse caso, só V.S.a tentando os meios judiciais; e mesmo assim lhe será talvez necessário desembuchar
esse segredo. Devo notar-lhe também que nós não maltratamos Rosaura; pelo contrário, a consideramos como
fazendo parte da família, e a tratamos com o mimo e carinho que ela merece. A minha Estela a quer como se
fosse sua irmã, e minha mulher a estremece como se fosse sua filha.
214
– Acaba V.S.a de proferir a meio uma verdade mais verdadeira do que imagina – disse Conrado, com certo
sorriso de melancólica ironia, cuja significação só Adelaide e Frei João compreenderam.
– Mas, Sr. Morais – continuou Conrado – creio que neste negócio poderei prescindir dos meios judiciários. A
infeliz mulher, que escravizou Rosaura, faleceu ontem; mas antes de expirar fez confissão pública do seu
crime; o sacerdote, que a ouviu de confissão, foi o meu amigo que aqui se acha presente, o Sr. Frei João de
Santa Clara, de cujas virtudes, prudência e ilustração não é dado duvidar. Em presença dele, minha e de mais
duas testemunhas a velha fez a seguinte declaração, que tomamos por escrito, e que passo a ler.
Conrado tirou da algibeira e leu com voz firme e clara o papel, cujo conteúdo já conhecemos. Finda a leitura,
decorreram silenciosamente alguns instantes de angústia e inquietação para uns, e de estupefação para outros.
A angústia estava no coração de Conrado, de Frei João e de Adelaide, que compreendiam perfeitamente a
crítica situação em que se achavam. Pode-se idear, mas não explicar a penível posição em que se achavam
aquelas duas almas nobres em presença de uma mulher, cuja reputação iam ver-se talvez na dura necessidade
de sacrificar para salvar a filha da escravidão e da desonra; de uma mulher que, não obstante ter no seu passado
uma nódoa muito desculpável, se tinha mostrado por seu ulterior comportamento digna de todo o respeito e
estima da sociedade.
A estupefação era por parte do major e de seu genro, que a princípio se sentiram inteiramente desconcertados e
como que aturdidos com a leitura do documento, que Conrado apresentara. Todavia, não quiseram dar-se ainda
por vencidos. O primeiro, já treslendo algum tanto, não quis dar crédito ao que via e ouvia, e começou a pensar
lá de si para si que toda aquela cena não passava de manejo preparado pelo seu ex-capataz, que por aquela
maneira procurava vingar-se dele por lhe ter recusado a mão de sua filha. O genro, dominado pela insensata
paixão, que concebera pela gentil Rosaura, e alucinado pelo ciúme, que o sogro lhe excitara nalma, fazendo-lhe
crer que Conrado cobiçava a rapariga para sua amásia, fechava também os olhos à evidência, e não via nessa
triste e pungente cena mais que embuste e velhacaria.
Foi Morais quem primeiro rompeu o silêncio.
215
– Sr. Conrado – disse ele, com desdenhosa e impertinente altivez – sei muito bem quem era essa mulher, que
foi a primeira senhora de Rosaura, e que ontem faleceu. Também já houve quem esta manhã me desse notícia
da cena, que vossa senhoria preparou, e que de fato não foi mal representada.
Em qualquer outra ocasião Conrado teria repelido com energia e dignidade esta tão grosseira e insultuosa
insinuação; mas naquele, delicado transe lhe era mister levar ao extremo sua paciência e longanimidade. Uma
ruptura logo no começo daquela conferência podia transtornar todos os seus planos de acomodação pacífica e
honrosa, e portanto deixou passar sem resposta as palavras injuriosas de Morais.
– Não contesto – continuou este – que essa mulher foi quem vendeu Rosaura; mas vendeu-a como sua legítima
senhora; posso contestar, contesto e contestarei sempre, que Rosaura seja livre, por nascimento, como filha de
mulher livre. Merece ser livre, é verdade; mas a mim compete dar-lhe a liberdade, quando me aprouver e julgar
conveniente. Todo o povo de S. Paulo conhece muito bem quem foi essa Nhá Tuca. Foi uma boa e honrada
senhora, que há muitos anos, por desgraças e contratempos, que lhe sobrevieram, caiu na miséria e perdeu o
juízo. Caduca e alienada, como estava, com mais de oitenta anos de idade, e de mais a mais já nas vascas da
morte, que valor pode ter a sua declaração, embora feita perante três ou mais testemunhas?...
– Isso é que é verdade – ponderou o major.
– Isso é que nada tem de verdade – replicou Frei João, com voz sonora e firme. – Minha deposição ali está
firmada com juramento, e mercê de Deus nunca profanei o sagrado hábito, que visto, com um juramento falso
ou mal considerado. Também não sou tão destituído de penetração e inteligência, que não saiba discernir quem
está ou não em estado de demência, e posso asseverar e jurar, se necessário for, que essa mulher morreu no
gozo perfeito de suas faculdades intelectuais.
– Mas, senhor padre – replicou Morais – todo o homem está sujeito ao erro; V. Rev.ma bem podia enganar-se.
– V.S.a é que está perfeitamente enganado a respeito dessa mulher. Nhá Tuca nunca foi essa boa e honrada
mulher, que V. S.a pensa. A princípio passou por tal; mas há muito tempo o povo está no conhecimento de sua
triste e vergonhosa crônica, das torpezas, embustes e perversidades, que praticou para enriquecer-se. Além de
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sua própria confissão, aí está a voz pública, que há muito tempo já a tinha condenado. É, portanto, irrecusável o
documento, que o meu amigo acaba de ler...
– Vê-lo-emos em juízo – retorquiu Morais, com arrogância.
– Não há de ser preciso! – exclamou Conrado, levantando-se com indignação... – Quero poupar-lhe esse
trabalho, Sr. Morais. – A validade desse documento vai ser confirmada aqui mesmo e sem mais demora.
Frei João lançou um olhar a Conrado, e fez-lhe um gesto negativo, como dando-lhe a entender que ainda se
devia tentar algum esforço para trazer aqueles homens a um acordo razoável. Conrado o compreendeu e
calou-se.
Frei João levantou-se, então, e com ar grave e solene:
– Não posso compreender que poderoso motivo leva vossas senhorias a cerrarem os olhos à evidência e a
recusarem-se com tanta pertinácia à prática de uma ação nobre e generosa, que não é mais do que o
cumprimento de um dever de justiça e de humanidade, que em nada os prejudica. O meu amigo possui um
documento incontestável, que há pouco acabamos de ouvir ler, e que jamais, quer em juízo como fora dele,
poderá ser infirmado. Além disso alega um direito sagrado: a paternidade; o Sr. Conrado é pai de Rosaura. Por
fim, oferece-se para indenizá-los do valor por que compraram a menina, e está pronto a dar mais ainda, se o
exigirem. Por cúmulo de generosidade o meu amigo quer evitar os meios judiciários para arredar um escândalo,
cujo peso tem de recair todo sobre quem o quer provocar. A justiça, a humanidade, a religião e a honra exigem
que vossas senhorias entreguem a menina ao Sr. Conrado, restituam a filha a seu pai.
Muitas outras coisas disse o respeitável carmelita, em linguagem severa, mas comedida, e com a eloqüência de
um verdadeiro apóstolo de Cristo; não conseguiu, porém, arrancar aqueles dois homens de sua cega obstinação.
Adelaide, pálida e aniquilada, ousou também balbuciar algumas palavras em favor da pretensão de Conrado;
mas apenas havia começado a falar, um olhar terrível do marido e um gesto ameaçador do pai a fizeram
emudecer.
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– Reflitam bem, meus senhores! – disse ainda o carmelita. – Olhem que com sua obstinada recusa vão dar um
triste e escandaloso desfecho a um negócio, que bem podia terminar-se entre nós de um modo amigável e
honroso para todos.
– Desista de semelhante empresa, senhor padre! – redarguiu Morais, com azedume e mau modo. – Ela é
imprópria, para não dizer indigna, de seu estado. É a primeira vez que vejo ir-se aos conventos arrancar os
frades de suas tranqüilas celas, distraí-los de suas santas ocupações para nos virem à casa disputar-nos nossa
legítima propriedade.
A estas desrespeitosas e insensatas palavras de Morais, Frei João não perdeu a calma nem a paciência, mas
perdeu toda a esperança de poder chamar aqueles dois homens ao caminho da prudência, da razão e da justiça.
Convenceu-se por fim que baldados seriam todos os esforços que empregasse para conduzir o negócio, que ali
o trazia, a uma solução menos escandalosa e menos fatal à tranqüilidade e honra daquela família. Olhou para
Conrado e com um gesto deu-lhe a entender que já não havia outro recurso senão lançar mão da fatal e extrema
arma, de que dispunham. Conrado o compreendeu, e abafando a voz, para que não ecoasse fora daquele
recinto, mas com um acento bem distinto e repassado de dolorosa e profunda emoção:
– Deus e todos que aqui se acham – disse – são testemunhas dos esforços, que temos empregado, eu e meu
amigo Frei João, no sincero e louvável empenho de evitar um grande escândalo, conservando inviolável um
segredo, cuja revelação vai trazer a vergonha, a desconfiança e a discórdia ao seio de uma família, cuja
harmonia e felicidade eu sou o primeiro a desejar. Mas desgraçadamente forçam-me a dar esse extremo e
doloroso passo; resignem-se, portanto, a ouvir a verdade toda inteira. Senhor major, restitua-me sua neta; Sr.
Morais, restitua-me a filha de sua mulher; Sra. D. Adelaide, faça com que me seja entregue a nossa filha!
CAPÍTULO XVII
EXALTA OS HUMILDES
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Passaram-se alguns momentos de pasmo e de silêncio, durante os quais o major e seu genro ficaram como
fulminados, e Adelaide entregue à mais cruciante angústia. Morais, todavia, posto que aturdido por aquele
cruel e inopinado golpe, não quis ainda acreditar, e tentou reagir contra a terrível verdade, que o esmagava.
– Nossa filha! – bradou ele, espumando de raiva e avançando para Conrado de punho alçado. – Mentira!
infâmia! vil impostura!!...
– Que pretende, senhor? – disse Frei João, avançando também, estendendo o braço e, com um gesto firme e
imponente, contendo a cólera insensata de Morais. – Espere ainda; não se exaspere tanto; já que assim o quer e
não dá crédito a nossas palavras, tendo-nos em conta de embusteiros e caluniadores, a verdade vai-lhe ser
revelada em toda a sua cruel realidade pela boca a mais competente.
– Mentira! embuste!... Para apadrinhar um roubo, querem trazer a desonra ao seio de uma família honesta! –
bradou ainda Morais.
– Sr. Morais – disse Conrado – é vossa senhoria quem força um pai a lançar mão deste meio extremo, mas
legítimo, para arrancar a filha das garras do cativeiro e da desonra. Do cativeiro, é coisa manifesta; da desonra,
o Sr. Morais melhor que ninguém sabe o motivo por que assim me exprimo.
– Não insulte por esse modo a toda uma família honrada.
– Não insulto a ninguém; digo simplesmente a verdade. Minha senhora – continuou Conrado, voltando-se para
Adelaide, com acento repassado de amargura, espero que me não ficará odiando por tão estranho
procedimento, a que as circunstâncias me obrigam. Perdoe-me; a senhora também é mãe, e não quereria por
preço nenhum ver a sua filha reduzida à escravidão, exposta continuamente às seduções... Ah! minha senhora, é
escusado dizer-lhe mais... não posso sacrificar a liberdade e a honra da filha à reputação da mãe. É preciso que
a senhora declare quem é a mãe de Rosaura.
Adelaide não respondeu diretamente a esta pergunta, mas caindo de joelhos aos pés de seu marido, contorcendo
convulsivamente as mãos, debulhada em lágrimas e afogada em soluços, mal podia pronunciar:
– Perdão!... perdão!...
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– Levanta-te daí, mulher indigna! – gritou Morais, repelindo-a brutalmente. – Levanta-te, e nunca mais me
apareças.
– Perdão! perdão! – continuou ela, abraçando as pernas do marido. – Em nome de nossos filhinhos, perdão,
meu marido! Perdão, meu pai! Perdão, meu Deus!...
– Perdoar-te, eu? - disse Morais. – Ah! se eu soubesse há mais tempo que não passavas de uma...
– Basta! – bradou Conrado, atalhando a palavra ignominiosa, que irrompia dos lábios de Morais. – Insultar a
uma senhora, em tão aflitivas circunstâncias não é só uma crueldade, é uma indignidade, uma covardia;
quatorze anos de uma vida pura e de um procedimento exemplar são mui suficientes para fazer esquecer uma
primeira e única fraqueza, devida a imprudência e ardor da mocidade. Embora! Se V.S.a não perdoa, Deus
perdoará. E V.S.a – continuou Conrado, voltando-se respeitosamente para o major, que mal voltara a si do
efeito esmagador, com que o fulminara tão triste revelação também não perdoa à sua filha?
– Eu! eu nunca! nunca! – respondeu ele, com olhar desvairado e voz lúgubre e cavernosa. – Quando pensei eu
que estava reservada por minha filha semelhante vergonha para meus últimos dias!... Ah! meu Deus! antes
nunca semelhante opróbrio tivesse chegado ao meu conhecimento!
O velho cravou os cotovelos sobre os joelhos, e escondendo o rosto e a fronte entre as mãos trêmulas e
convulsas, caiu em triste e profundo abatimento. Adelaide, em pé, a um canto da sala, debruçada sobre um
aparador, envolvendo o rosto entre os braços, procurava em vão abafar os soluços, que lhe abalavam os seios.
Morais sentou-se a um canto, e para disfarçar a confusão, a vergonha e o desespero, que lhe flagelavam a alma,
trincava desapiedadamente entre os dentes as pontas de seu áspero e comprido bigode. Conrado e o frade
oprimidos pela mais dolorosa impressão, contemplaram por instantes, silenciosamente, aquela pungente e
contristadora cena.
– Tem razão, senhor major - disse por fim Frei João, em tom brando e benévolo, aproximando-se do major. –
Melhor seria, que vossa senhoria e seu genro ficassem para sempre ignorando esse mistério, que estava
escondido nas sombras de um passado inescrutável para vós e para todo o mundo, e era esse o nosso maior
empenho, para o qual envidamos os meios a nosso alcance. Mass quem é o culpado dessa revelação? Quem
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provocou esta cena angustiosa que ameaça destruir para sempre a paz e felicidade, que até aqui tem reinado no
seio de sua família?... Vossas senhorias mesmo, fazendo-se surdos às nossas propostas, a nossos avisos e
conselhos, inspirados por sentimentos de honra, de justiça e de humanidade. Por que razão não se decidiram a
conceder logo e sem condições, como aconselhavam a razão, a justiça e a conveniência, a liberdade a essa
menina, que nasceu livre, como tudo estava denunciando? Se assim tivessem procedido, o triste segredo, que
acaba de ser revelado, ficaria para sempre sepultado entre nós três, entre mim, o Sr. Conrado e a Sra. Adelaide.
Mas vossas senhorias, bem a pesar nosso, nos forçaram a esta cruel revelação. Ainda mesmo que não
aparecesse o próprio pai reclamando sua filha, nem eu, nem qualquer outro, que tivesse coração nobre e
sensível, uma vez ciente do ocorrido, poderia jamais consentir que o avô e a mãe continuassem a conservar em
casa, entregue aos vexames da escravidão, a neta e a filha. Agora cumpre-lhes aceitar com resignação as
conseqüências de sua imprudente e mal avisada obstinação. Cumpre-lhes sobretudo eliminar para sempre do
espírito e do coração a lembrança de uma falta, que já está amplamente expiada por longos anos de uma vida
exemplar e sem mancha, e que já se perde sepultada nas trevas profundas de um remoto passado. – Console-se,
meu amigo! – continuou Frei João, pousando brandamente a mão sobre o ombro do ancião, que ainda se não
reerguera de seu abatimento. Não se entregue a um pesar, que não tem muita razão de ser. Nenhum opróbrio
pesa sobre sua família, nem mácula alguma veio marcar a bela reputação de sua filha, que, por suas virtudes e
pelos excelentes dotes de seu coração e de seu espírito, tem sabido conquistar na sociedade o respeito e a
estima de todos. A solicitude, a paciência, o zelo religioso, com que por largo tempo tem desempenhado os
deveres de filha, de esposa e de mãe, a têm tornado tão pura, e talvez mais respeitável, do que o era antes de
sua falta. A fraqueza de sua mocidade é um segredo, que ficará para sempre entre Deus e nós. Senhor major,
sou eu quem lhe peço, em nome da humanidade e da religião, abençoe sua filha. Sr. Morais, em nome da honra
e da dignidade, e sobretudo em nome de seus inocentes filhinhos, abrace sua esposa.
As palavras graves, mas brandas e insinuantes do carmelita, produziram profunda impressão no ânimo dos que
o escutavam. Depois que terminou, reinou ainda completo silêncio por alguns instantes, durante os quais só se
ouvia a respiração ofegante de todos, e os soluços mal abafados de Adelaide.
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O espírito de Morais lutava na mais cruel perplexidade. As palavras do frade lhe haviam penetrado no coração;
não podia deixar de reconhecer quanto eram cordatas e assisadas; mas o orgulho, o pundonor e a honra do
esposo, ofendida de um modo tão brusco e doloroso, ofuscavam-lhe a razão, e quase o faziam surdo aos
ditames da justiça e da humanidade. Debalde, porém, tentaria resistir à cruel situação, que o assoberbava; se
quisesse recalcitrar, iria torná-la ainda mais complicada e escandalosa. Deu a mão a Adelaide, que de novo
tinha vindo prostrar-se a seus pés banhada em lágrimas, e ajudou-a a levantar-se.
– Levante-se, senhora! – disse friamente, dando-lhe a mão. – Da minha parte está perdoada.
Não quis porém abraçá-la.
O major sentia-se abalado até o íntimo dalma; as palavras do carmelita tinham operado nele profunda e salutar
revolução. As rijas fibras daquele coração endurecido pelos preconceitos da educação e da ignorância, agora
amolgadas pelos gelos da idade e pelas severas lições de amarga experiência, vibraram pela primeira vez a um
impulso nobre e generoso, e tornaram-se sensíveis à voz da razão e da natureza. Duas grossas lágrimas lhe
escorregaram pelas faces rugosas e macilentas; eram talvez as primeiras, que lhe corriam das pálpebras, desde
que se conhecera homem; mas por isso mesmo, quanta dor, quanta amargura, quanto arrependimento deviam
encerrar!... Levantou-se, e, avançando de braços abertos para sua filha, a cingiu contra o coração.
– Não, minha filha, não és tu que deves pedir perdão a mim, nem a ninguém – disse, com acento da mais
íntima e sincera compunção. – É teu velho pai que o vem pedir-te agora. Perdão, minha filha!
E o velho apertava a filha entre os braços e ambos derramavam lágrimas no seio um do outro.
– Perdoar-lhe eu, meu pai, por quê? – dizia a filha, entre soluços.
– Agora vejo que te fiz muito, muito mal. Eu sou a principal causa de tudo isso; fui eu o autor de tua desonra;
fui eu quem escravizei minha neta!... Perdão, Adelaide. Perdão, Conrado!...
– Não, meu amigo – atalhou Frei João – o perdão generoso, que acaba de dar à sua filha, o absolve de qualquer
falta, e o torna digno do respeito de todos nós.
– É verdade o que diz o meu amigo, senhor major – disse Conrado. – Eu também de hoje em diante, banindo
inteiramente da lembrança nossa antiga desavença, beijo a mão do pai generoso e bom, que sabe perdoar.
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E dizendo isto, beijava com respeitosa efusão a rugosa mão de seu antigo patrão.
– Mas – continuou ele – a minha culpa é talvez a, maior e a mais grave de todas; e eu também preciso do seu
perdão.
– Se não fosse a minha, Sr. Conrado, – replicou o major – a sua culpa não existiria, nem a de Adelaide. Nada
tenho que perdoar-lhe; mas se assim o quer, em minha consciência e em meu coração, está perdoado.
– Fico-lhe agradecido do fundo dalma. Agora só me resta fazer ainda um pedido. O segredo, que aqui entre nós
já não existe, deve ainda desgraçadamente ser conservado até entre irmãos. Rosaura ainda não sabe quem é seu
pai; mas hoje mesmo o saberá; e se o Sr. Morais consentir, hoje mesmo saberá quem é sua mãe.
Rosaura já tem quatorze anos, e parece-me que será capaz de guardar o segredo até para com seus próprios
irmãos.
– Não posso me opor, – respondeu Morais, com ar triste e abatido – a que Rosaura fique sabendo quem é sua
mãe; o que desejo é que meus filhos ignorem sempre a falta de Adelaide.
– Tem toda razão – confirmou o carmelita. – Seus filhos são ainda mui crianças, e a indiscrição própria da
idade os levaria naturalmente a divulgar um segredo, que deve ficar para sempre oculto aos olhos do mundo.
Mas eu também não sairei daqui com a consciência tranqüila, se não fizer ainda um pedido por minha parte e
por parte do amigo, que aqui me trouxe. Este pedido, que não importa sacrifício algum para a família, tem por
si a justiça, a humanidade, mesmo a gratidão. É inegável que, quem mais contribuiu para que se reconhecesse o
verdadeiro nascimento e a liberdade de Rosaura, foi a escrava Lucinda. Sem ela a pobre menina ficaria talvez
para sempre condenada à condição de escrava em casa de sua própria mãe, quando muito à de liberta, sem que
jamais se pudesse saber a sua verdadeira origem, e se tivesse de ter filhos, toda a sua descendência ficaria com
essa nódoa original. Decerto nem o senhor major, nem o Sr. Morais sabem ainda por que meios misteriosos a
divina Providência se serviu dessa boa rapariga como de um instrumento para seus altos e misericordiosos
desígnios; mas em breve serão informados de tudo isso, e se convencerão de que digo a verdade. Lucinda é a
verdadeira libertadora da menina Rosaura. Ora, não é justo que aquela, que dá liberdade aos outros, que acaba
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de desatar os nós que amarravam ao poste do cativeiro a filha de seus senhores, continue a ser cativa. É enfim a
liberdade de Lucinda, que lhes pedimos. O meu amigo dará por ela qualquer soma que exigirem.
– Não aceito soma alguma, nem grande, nem pequena; não quero nem mesmo agradecimento – disse o major –
porque é esse o meu dever. Lucinda desde este momento é livre.
– Deus lhe levará em conta a santa e generosa ação, que acaba de praticar. Agora podem mandar abrir essas
portas; nosso principal empenho era reconhecer Rosaura como livre de nascimento; isto felizmente está
conseguido; é quanto basta e quanto se deve saber fora daqui. Peço a Deus, senhor major, que a paz e
felicidade, que tem reinado até aqui em sua casa, não se perturbe com este incidente, e se conserve sempre
inalterável.
Conrado e Frei João se retiraram comovidos e pensativos, mas satisfeitos com o resultado da espinhosa missão,
que tinham desempenhado.
CAPÍTULO XVIII
A MÃE E A FILHA
Terminou-se assim o grave e delicado negócio do reconhecimento de Rosaura como livre de nascimento, com
aprazimento de todos. Somente Morais, apesar de reconhecer a justiça e indeclinável necessidade daquele ato,
sentia-se com razão humilhado e abatido sob o peso de sua nova situação. A revelação, que acabava de ouvir,
confirmada por um modo irrefragável de ter ele desposado como pura uma mulher maculada por uma primeira
falta, o acabrunhava. Se já os encantos de Rosaura iam extinguindo em seu coração o amor conjugal, daí em
diante jamais poderia conservar para com ela a mesma afeição e estima, que até ali lhe havia consagrado, se é
que já não lhe votava o desprezo e aversão.
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Não se pode negar que lhe assistia bastante razão. Os zelos não se limitam somente aos cuidados do presente e
aos receios do futuro; estendem-se também pelo passado, e tornam-se retrospectivos. Com efeito deve ser bem
doloroso para o coração de um marido, que tem vivido largos anos na doce persuasão que fora ele objeto do
primeiro e único amor de sua esposa, saber que esta já tivera outro afeto, talvez mais extremoso e ardente do
que aquele, que lhe consagrava, embora mesmo não fosse acompanhado das fatais conseqüências, que teve o de
Adelaide. Ainda se o objeto dessa primeira paixão já não existisse ou pelo menos a distância ou novos laços de
amor tornassem provável a completa extinção de seu primeiro afeto, o espírito de Morais poderia
tranqüilizar-se algum tanto. Mas Conrado estando ali vivo, morando na mesma cidade, solteiro, com o coração
completamente livre e isento, moço elegante, rico e rodeado de prestígio, forçoso é convir que a posição de
Morais não era das mais invejáveis.
Por outro lado a perda de Rosaura, por quem tinha concebido uma dessas paixões sensuais e infrenes, que
quase não se pode explicar, o enchia de despeito, raiva e ciúme. Rosaura, livre e debaixo do domínio de
Conrado, ficava inteiramente fora do alcance de seus libidinosos desejos, e formosa, rica e cheia de atrativos
como era, não tardaria a encontrar algum amante feliz, que a desposasse; esta idéia, por mais que ele se
esforçasse por arrancá-loa, se lhe agarrava teimosa ao coração como farpa envenenada.
Para Adelaide, também, essa nova fase de sua existência apresentava duas faces bem diferentes; uma risonha e
feliz, cheia de suaves expansões de ternura e alegria; outra, porém, carregada de sombrios matizes,
entenebrecida de cruéis angústias e pungentes inquietações. O tempo havia mitigado mas não extinguido, o
vivo pesar, antes remorso, que a cruciava, quando se lembrava da filhinha, fruto de seu primeiro amor, exposta
e falecida no mesmo dia em que nascera. Quando essa cruel recordação lhe preocupava o espírito, acudiam-lhe
as lágrimas aos olhos, acusava-se de mãe desnaturada, maldizia-se e lançava contra si mesma a exprobração de
infanticida. Essas cruéis recordações, essas amargas reflexões é que, transformando seu gênio outrora tão
alegre, descuidoso, e até mesmo leviano, tinham comunicado ao seu caráter, à sua fisionomia e às suas
maneiras esse ar grave e melancólico, que dessa época em diante sempre a distinguiu.
225
Compreende-se, pois, o júbilo íntimo, que lhe banhava o coração, vendo viva e restituída a seus carinhos a
filha, da qual julgava que na terra já nem os ossos existiam. Entretanto, esse prazer era fortemente
contrabalançado pela vergonha e humilhação, em que se via colocada perante o pai, e principalmente perante o
marido. Do pai estava ela certa que fora completo o perdão e nascido da abundância do coração; o do marido,
porém, via bem claramente, e todos compreenderam que fora arrancado pela força das circunstâncias. A infeliz
esposa já pressentia que jamais poderia gozar do mesmo grau de afeto e confiança, que até ali merecera do
marido, e antevia com tristeza um futuro de desavenças e dissabores, de zelos e desconfianças; mas estava
resignada a aceitar, submissa e sem queixume, como expiação de sua falta, o peso de sua nova e triste situação.
Lucinda, a quem Adelaide imediatamente comunicara o resultado da conferência, não cabia em si de contente;
parecia ter sacudido o peso dos anos, e ria, cantava e pulava como uma criança. Correu imediatamente para
junto de Rosaura, caiu-lhe aos pés, e abraçando-a pelos joelhos, com os olhos arrasados em lágrimas de.
alegria, chamou-a de – sinhazinha – de sinhá Rosaura – e de mil outras coisas fagueiras e afetuosas, que
puseram em grande espanto a pobre menina.
– Que quer dizer isto, tia Lucinda?! – exclamou Rosaura, entre atônita e risonha. – Você hoje está louca, ou?..
– Não sou sua tia, não, sinhazinha; mecê não é nem nunca foi cativa; seu pai e sua mãe estão aí bem vivos, e
tudo gente de bem, e gente rica.
– Eu?.. Tenho pai e mãe vivos?... Ora me deixa, tia Lucinda; você está caducando.
– Ah!... eu estou caducando!. .. Pois sim, escuta cá, menina!
Lucinda levantou-se dos pés de Rosaura, sentou-se em um tamborete e fez a menina sentar-se sobre seus
joelhos. Nessa posição, contou à menina em poucas palavras, mas com muita vivacidade, a história do seu
nascimento, a malícia e fraude da velha, que a tinha reduzido ao cativeiro, o modo singular pelo qual ainda na
véspera, e de que Rosaura estava bem lembrada, ela, Lucinda tinha descoberto que Rosaura era a menina, que
tinha sido enjeitada à porta de Nhá Tuca, a confissão da velha, e como acabava de ser reconhecida como livre
de nascimento por toda a gente de casa.
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Lucinda em toda a sua singela e animada narração tinha contado unicamente o milagre, mas muito de propósito
não tinha, nem por indícios, revelado o nome do pai nem da mãe de Rosaura; queria reservar-lhe essa deliciosa
surpresa.
Quando terminou, Rosaura saltou-lhe do colo, e colocando-se em pé defronte da velha crioula fitou-a com um
desses olhares indefiníveis, que exprimem a um tempo surpresa e prazer, dúvida e assombro.
– Então, quem é meu pai? – perguntou ela.
– É aquele moço, que ontem veio aqui, que esteve lá embaixo na loja com nhô Morais, e que hoje veio aí
também; é nhô Conrado.
– Deveras? – exclamou Rosaura, interrogando a velha crioula, com seu olhar expressivo e cintilante de alegria.
– Deveras, meu pai é aquele homem, que ontem esteve aí, e que me mandou chamar lá embaixo na loja?...
– É esse mesmo; pois ainda duvida, minha menina?
– Ah! meu Deus! não duvido não; deve ser ele mesmo; meu coração parece que estava adivinhando. Desde que
o vi, não quis mais arredar meus olhos dele, e fiquei, não sei por que, lhe querendo um bem, como você não faz
idéia, tia Lucinda.
– Como não havia de ser assim?... A voz do sangue fala muito alto.
– Mas, tia Lucinda, você disse também que eu ainda tenho mãe; isso é que eu não posso acreditar. Quem é
ela?... Onde está?... ó meu Deus, que alegria, não seria para mim ir beijar agora mesmo a mão dela!
– Isto é que nada custa.
– Mas, quem é ela?.. Fala, tia Lucinda!
– Pois sinhazinha deveras ainda não adivinhou? Rosaura olhou atônita para Lucinda, e nada respondeu.
– Pois bem, – continuou a crioula, tomando a mão de Rosaura; – eu vou levar já sinhazinha onde está sua mãe.
Rosaura, sem saber o que pensar, deixou-se maquinalmente levar pela mão de Lucinda, que a conduziu ao
quarto de Adelaide.
– Mas aqui é o quarto de sinhá Adelaide – disse Rosaura. – Minha mãe está aí com ela?
227
– Está, sim, – respondeu vivamente a crioula, empurrando a porta do aposento, que apenas se achava
encostada. – Entra, sinhazinha.
Adelaide estava só. Tinha mandado os filhos a passeio. O major, profundamente comovido pela cena, a que
acabava de assistir, tinha-se recolhido à solidão de seu gabinete. Morais havia descido para a loja a ver se ali
encontrava alguma distração ao embate de mil pensamentos peníveis, que lhe tormentavam o espírito.
Adelaide já esperava sua filha, essa que ainda ontem julgava sua escrava, e que agora, pela primeira vez, ia
apertar em seus braços. Estava encostada a um bufete, com a face pousada sobre urna das mãos, e voltada para
a porta, sobre a qual tinha os olhos fixos. Divisavam-se em suas pálpebras vestígios de lágrimas, mas
pairava-lhe nos lábios um leve sorriso cheio de afeto e melancolia. Era nobre e simpática a sua figura, e em seu
todo brilhava uma espécie de formosura, talvez mais atrativa do que essa, que na aurora da vida florejava em
seu rosto tão esplêndida e viçosa. Era a beleza calma e suave do outono, despida dos garridos encantos e das
vivazes e embaidoras seduções da primavera. Apenas viu Rosaura, que entrava por seu quarto procurando, em
vão, com os olhos, por todos os cantos, alguém que não fosse Adelaide, adiantou-se para ela com os braços
abertos.
– Vem, minha filha, vem – exclamou Adelaide, com transporte. – Vem abraçar tua mãe!...
Rosaura a princípio estacou petrificada de pasmo; seu espírito hesitou um momento; julgava-se vítima de
alguma alucinação; mas bem depressa a voz da natureza falou-lhe alto ao coração, e dissipou-lhe todas as
dúvidas.
– Minha mãe! – foi a única palavra, que pronunciou, e precipitou-se nos braços de Adelaide, inundando-lhe o
seio de lágrimas de prazer e ternura.
CAPÍTULO XIX
UM ESTUDANTE SINCERAMENTE ENAMORADO
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– Que tem, meu Carlos, que há tempos a esta parte andas triste e amuado, assim com cara de Romeu pálido,
com saudade de sua Julieta, e outras vezes com gestos de Otelo furibundo, prestes a sufocar Desdêmona?
– Tu falas galhofando, Frederico, porque não sabes o que eu sofro. É um sentimento íntimo e profundo, que
tenho vergonha, e até medo, de comunicar a vocês que tudo metem a ridículo.
– Menos eu, Carlos; principalmente, quando estamos a sós, longe da algazarra de nossos turbulentos
companheiros. Pergunto-te com verdadeiro interesse o motivo desse abatimento de espírito, que há mais de um
mês todos notam em ti, e que, digo-te com sinceridade, não deixa de me afligir e inquietar bastante.
– Obrigado, Frederico; sei que me tens sincera amizade, e que embora na turba dos outros sejas tão caçoador
como outro qualquer, tens caráter sisudo e sensível, e não zombas dos sofrimentos alheios. Por isso não faço a
menor dúvida em contar-te a causa deste aborrecimento e tristeza, que há tempos me acabrunha.
– Pois bem, vamos a isso; desembucha tudo sem receio. Sou um pouco menos frívolo e leviano do que nossos
companheiros, e saberei guardar segredo, se o exiges.
Não será mau; os gracejos indiscretos, as caçoadas cínicas, no estado em que me acho, toam-me muito mal.
– Portanto, enquanto fumamos um pouco – disse Frederico; oferecendo um charuto a seu amigo – vai-me
desfiando o teu drama, que seguramente não deixará de ser algum idílio amatório.
Este diálogo passava-se entre dois estudantes do quarto ano jurídico de São Paulo. Tinham acabado de jantar e
ainda se achavam à mesa em casa de Frederico, que morava só, no alto da Consolação, um dos bairros mais
isolados e solitários da cidade. Era isso cerca de dois meses antes dos interessantes sucessos, de que demos
conta nos dois últimos capítulos desta história. Os dois quartanistas eram da província de Minas, e amigos
íntimos de longa data, não dessa amizade fundada em relações passageiras e de ocasião, que freqüentemente se
dão entre estudantes, as quais tanto têm de francas e sinceras, como de pouco duradouras; são laços, que não se
rompem, mas que com o tempo e ausência acabam, por desatar-se insensivelmente.
Os dois mineiros consagravam-se reciprocamente uma afeição sólida, firmada pelo tempo desde os estudos
colegiais e fundada nas belas qualidades, que cada um deles reconhecia com prazer em seu amigo. Frederico
era um mancebo de alta estatura, louro e de olhos castanhos.
229
A índole bondosa, a lisura e franqueza dalma transluziam em sua fisionomia sempre plácida e expansiva, como
seu nobre coração, sobre o qual as paixões tumultuosas da juventude jamais tinham conseguido exercer império
absoluto. Lia-se em sua fronte espaçosa e bem conformada o bom senso, o juízo reto, a inteligência luminosa,
sobre a qual a imaginação podia bem exercer sua influência encantadora, mas nunca poderia dominá-la.
Parecia mais um batavo, descendente de algum dos companheiros de Maurício de Nassau, do que um brasileiro
de pura raça latina.
O outro apresentava um tipo inteiramente diverso; era um verdadeiro filho do Brasil e da província de Minas;
assemelhava-se a um napolitano.
Estatura regular, cabelos e olhos escuros, tez clara e levemente colorida, olhar cintilante e profundo revelavam
nele imaginação viva, natureza ardente e apaixonada.
Tanto um como outro eram tidos em distintos estudantes por sua inteligência, assiduidade e bom
comportamento, considerados pelos lentes e estimados pelos colegas.
Entretanto, Carlos há dois meses começara a dar muito más contas de si, falhava muitas vezes, balbuciava a
muito custo a lição, quando não era chamado, e às vezes se escusava alegando incômodo de saúde, que a sua
que sua progressiva magreza e deperecimento não deixavam de justificar. Seus companheiros notavam a grave
e profunda alteração, que se ia operando no físico e moral de Carlos, alteração que, a não ser devida a alguma
afecção do organismo, não podia ser atribuída senão a sofrimentos morais. Quando lhe inqueriam o motivo de
tão estranha modificação em todo o seu ser, dava respostas evasivas, que em nada satisfaziam a curiosidade dos
colegas.
Frederico era o que mais se afligia com o lastimoso estado de abatimento em que via o amigo, e foi com o
propósito de obter dele uma declaração confidencial e franca, que nesse dia o convidou a jantar em sua casa a
sós com ele.
Carlos não pôde esquivar-se à solicitação cordial e sincera de seu amigo, e tendo acendido o seu charuto,
começou assim:
230
– Depois que moro na Rua do Tabatinguera adquiri um conhecimento quase misterioso, que tem exercido, e há
de exercer sempre, eu bem o pressinto, poderosa influência sobre o meu destino. Além da casa, em que moro,
deves ter reparado que há outra casa baixa, separada da minha por um terreno vazio, que não pertence nem a
um, nem a outro prédio. Nessa casa, habitada por um Sr. Basílio, mora uma criatura encantadora, dotada de
tantas perfeições, tão cheia de atrativos, que são capazes de transtornar a cabeça a mais firme e inflamar o
coração mais empedernido. .
– Ah! já ouvi falar nessa menina – atalhou Frederico. – Dizem que é um prodígio de beleza; mas apenas é
visível por momentos, e esconde-se como Diana entre os véus do mais tímido recato.
– É verdade; tem mais esse prestígio a seu favor. Dizer-te que é um anjo, uma fada, que respira em todo o seu
ser um perfume de celestial candura e inocência, que impõe o respeito e adoração, é proferir palavras banais,
que nada exprimem. É preciso vê-la para poder formar perfeita idéia de sua deslumbrante formosura. Meus
companheiros, que apenas a têm visto de relance, também ficaram impressionados ao aspecto de tão rara
beleza.
– E tu... a tens contemplado mais a vontade? – Felizmente não sei por que, parece que lhe agradei mais do que
qualquer outro. No lado da casa, que olha para a nossa, há apenas uma pequena janela, que dá para o tal terreno
neutro, de que te falei, o qual fica também por baixo da janela do meu quarto.
– Oh! que condições favoráveis para o mais renhido namôro! – exclamou Frederico.
– É verdade; mesmo da minha mesa de estudo posso vê-la, quando chega à sua janelinha, moldura bem pouco
digna daquele busto mais lindo e mais ideal do que as virgens de Rafael... Ali aparece ela algumas vezes, mas
se acaso avista algum dos meus companheiros, retira-se imediatamente.
– Mas de ti nunca ela foge?...
– Não; fica enquanto eu fico, e creio que só se retira quando é chamada por alguém de casa.
– Oh! quanto és feliz, meu Carlos!... Aí temos outra vez quase a mesma aventura de Píramo e Tisbe. Mas
dize-me: teu namoro não passa dessas olhadelas de longe? Ainda não pudeste conversar de perto com ela?
– Converso da janela quase que somente por mímica. Entretanto, ultimamente pude obter uma entrevista.
231
– Uma entrevista! oh!... pois que mais desejas?.. Pela maneira, com que as coisas te vão correndo, só vejo
motivo para andares pulando de contente, e não assim como andas, torvo e sombrio, como o Hamlet de Byron.
– Ah! meu amigo! foi mesmo essa entrevista, que me lançou o desânimo nalma, fazendo-me conhecer toda a
complicação e estranheza de minha situação.
– Como assim? Não posso compreender-te.
– Vou já explicar-te tudo. Por palavras conversadas cautelosamente, ela concedeu-me uma entrevista em horas
mortas da noite. Saltei ao pátio na hora aprazada e fui colocar-me junto à janelinha, onde ela não tardou em
aparecer. É escusado, e seria enfadonho para ti, estar a descrever-te as emoções que senti.
– Oh! bem dizia eu! Temos Romeu e Julieta. - Mas a minha Julieta. . .
– Que tinha ela?
– Vais já saber. Depois de havermos feito em termos bem explícitos mútua declaração de nosso amor, disse-me
ela por fim, com voz trêmula e vacilante:
– Eu sei que o senhor me quer muito, e eu também lhe tenho muito amor... mas este nosso amor não deve
continuar. . .
– Ah! não me fales assim! Não deve continuar por que, minha querida?...
– Ah! bem me custa lhe confessar isto: mas... mas eu. .. eu não sou digna do seu amor.
– A estas palavras, um calafrio percorreu-me todo o corpo. Por que razão a menina se julgava indigna do meu
amor? A interpretação mais natural, que se me apresentou ao espírito, foi que aquela menina, apesar de parecer
tão ingênua e pura como um anjo, já poderia ter maculado o véu da inocência no lôdo da devassidão, e por isso,
conservando ainda um pouco de sinceridade, se confessava indigna de ser por mim amada. Esta sinistra idéia
pungiu-me cruelmente o coração.
– Mas por que me diz isso? Por que se julga indigna do meu amor, minha senhora? – perguntei-lhe, em tom um
tanto brusco.
– É porque eu não sou nenhuma senhora – respondeu ela, com voz tímida e angustiada. – Sou uma simples
escrava do Sr. Basílio.
232
– Escrava! Escrava a senhora! – gritei, com surpresa e indignação, esquecendo do lugar e das circunstâncias em
que me achava. Foi preciso que a menina me tapasse a boca, para que eu não continuasse a prorromper em
gritos e exclamações, que teriam traído a nossa entrevista. Foi mister que ela asseverasse mais duas e três vezes
e confirmasse com juramento, para eu acabar de crer que ela era realmente escrava. Fiquei por alguns instantes
acabrunhado sob o peso de tão cruel e estranha revelação. Como é concebível com efeito, meu caro Frederico,
que aquela mocinha de tez tão clara, de feições tão regulares e perfeitas como as de qualquer moça de pura raça
caucasiana, tenha sangue dessa raça desventurada, que nossa desumanidade e cobiça condenou à escravidão?
– Nada mais simples, Carlos; com a continuação do cruzamento, a raça africana se depura e aperfeiçoa, e eu
tenho visto mais de uma escrava mais branca e mais bonita que sua senhora.
– Seja embora assim, mas é revoltante, que haja no mundo quem tenha ânimo de manter na escravidão criatura
tão linda; servir um homem, e a que homem, santo Deus! aquela formosura ideal e celeste, digna de viver no
céu em companhia dos anjos!... Mas essa é a pura, esmagadora verdade. Rosaura percebeu a cruel impressão,
que sua declaração produzira em meu espírito, recolheu-se e, encostando-se com a fronte à parede e
escondendo o rosto entre os alvos braços meio nus, começou a chorar. Não sei explicar-te a emoção, que senti
nesse momento. Todos os horrores praticados com formosas e nobres escravas, a começar pela infeliz Agar,
barbaramente sacrificada às conveniências da família de Abrão, me vieram à lembrança; senti-me aniquilado.
– Estás quase a chorar, Carlos; continua e deixa-te de emoções.
– Se exiges que me não comova, não continuo, porque me é impossível prosseguir de sangue-frio.
– Pois vá! Lamenta-te e chora à tua vontade; mas prossegue.
– Estendi o meu braço para dentro da janela e arranquei-a suavemente daquela lastimosa atitude. Então ela,
com um tom de voz, que me doeu no íntimo dalma, disse-me:
– Agora, que o senhor sabe, que eu não passo de uma pobre escrava, vai me desprezar e fazer bem pouco caso
de mim, não é assim? Não mereço outra coisa, e nem posso ser objeto de seu amor. Foi contra minha vontade
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que fiquei lhe querendo bem; mas eu sou cativa; fuja de mim. Foi só para lhe dizer isto que deixei o senhor vir
conversar comigo.
Como única resposta, tomei ambas as suas mãos, cobri-as de beijos ardentes, e disse-lhe já não me lembro bem
que palavras loucas e apaixonadas; mas foi pouco mais ou menos isto:
– Agora que sei, que és escrava, amo-te mais que nunca, minha querida. És escrava por um capricho da sorte;
Deus te fez livre, porque Deus não permite a escravidão. Nasceste escrava, mas eu te farei livre, porque é um
insulto feito à natureza, à humanidade, ao próprio Criador conservar na escravidão um anjo, como tu és. Se a
escravidão fosse uma coisa possível aos olhos da moral e da religião, tu serias a senhora, porque todo o mundo
deve respeito e obediência, amor e adoração à inocência e à formosura, e tu possuis a beleza, a inocência e a
imaculada candura dos anjos. Não penses que desmereceste o amor, que te consagro, com a declaração que
acabas de fazer-me. Tu és escrava! Pois bem, és uma escrava, que podes ter milhares de escravos a teus pés, e o
mais dedicado, o mais submisso deles sou eu. Linda escrava, eu sou teu escravo, e de hoje em diante considero
meu principal dever empregar todo o meu esforço em quebrar-te os ferros da escravidão.
– Disse-lhe muitas outras coisas com uma eloqüência apaixonada, que me borbotava da abundância dalma. Se
bem me lembro, no meu entusiasmo febril e delirante, cheguei a dizer-lhe que, para conseguir-lhe a liberdade,
seria capaz até de matar e roubar.
– Arre lá!... misericórdia! – exclamou Frederico, rindo-se. – Salteador e assassino! Um novo Luigi Zampa!...
Apre!... é demais, meu caro.
– O certo é – continuou Carlos – que ela, com essa ingênua credulidade, própria das almas cândidas e
imaculadas, que ainda não conhecem o fingimento e a linguagem artificial dos sedutores, deu pleno crédito a
meus protestos e expansões; e tinha razão, porque, de fato, eram puros e sinceros; eram a expressão de um
amor profundo e ardente, que jamais poderei arrancar do coração. Estás a sorrir, Frederico?.. Tens razão; bem
sei que é uma loucura; mas que hei de eu fazer? . . Não posso, não posso de todo subtrair-me a ela.
– Mas enfim de contas, o que pretendes tu fazer?
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– Eu sei lá, meu amigo!... Acho-me na mais horrível perplexidade, e ao mesmo tempo na mais inabalável
resolução de arrostar todas as dificuldades, transpor todas as barreiras, que me separam dessa encantadora
menina.
– Mas acaso não tens consciência de tua fraqueza? Para superar essas dificuldades, transpor essas barreiras, de
que meios dispões, não me dirás?
– É verdade, que posso eu fazer? – suspirou Carlos, com desânimo. – É agora que compreendo quanto é real e
verdadeira a importância do dinheiro, e quanto é parvo e imbecil o desdém, que alguns pretendidos filósofos
afetam ter por ele. Estólido é aquele que diz que a tranqüilidade do espírito, os júbilos do coração não se
compram com dinheiro. É certo que muitas vezes a verdadeira felicidade, que consiste na satisfação de todos os
prazeres lícitos do espírito e do corpo, no bem-estar físico e moral, pode-se obter sem a riqueza; mas quantas
vezes também não depende dela?... Quantas vezes o destino nos prepara todos os elementos de ventura, todas
as circunstâncias conspiram para nos elevar ao cúmulo da felicidade, e a falta de dinheiro nos despenha no
abismo da dor e do infortúnio?!...
– Estás hoje um moralista de primeira força, capaz de competir com Labruyere ou com o Marquês de Maricá.
– Zombas de minhas reflexões?.. Duvidas de sua exatidão?... Se duvidas, aqui estou eu que sou o exemplo vivo
do que acabo de avançar. Fosse eu rico, e hoje mesmo ela estaria livre, embora sua liberdade me custasse toda
a minha fortuna, a receberia como esposa, embora liberta, e não teria inveja à felicidade de ninguém, porque
ela vale mais para mim do que todos os tesouros e todas as grandezas do mundo.
– Que exaltação, meu Deus!... Deveras tu tinhas ânimo de te casar com uma liberta? ...
– Pois que tem isso, quando essa liberta vale uma princesa?! Digo-te mais – continuou, levantando-se e dando a
sua voz um tom de extraordinária firmeza e exaltação – cativa como é, se eu não pudesse quebrar-lhe os ferros,
dar-me-ia por feliz em tê-la por esposa e unir o meu destino de homem livre ao de tão formosa e adorável
escrava, empregando minha vida em ajudá-la a arrastar os grilhões do cativeiro.
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– Ó nobre e magnânima dedicação, digna de um filósofo da antiguidade, ou do mais ultra-romântico poeta dos
tempos que correm! – exclamou Frederico, em tom solenemente cômico. – Agora resta saber se o tal Sr. Basílio
consentirá que te cases com a sua escrava.
– E que não consinta; um rapto e um casamento clandestino sanariam todas as dificuldades.
– Irra!.. levas bem longe a tua audácia!! Nunca pensei que fosses tão afoito.
– Demais, não será necessário chegar a tais extremos; posso conseguir tudo por meios mais naturais ou menos
violentos. Está por um ano a minha formatura, e um ano escoa-se bem depressa. Vou estudar com afinco, e
depois de formado trabalharei como um mouro, e privar-me-ei mesmo do necessário até adquirir uma soma
considerável, com que possa comprar a liberdade da menina.
– Isso é mais razoável; mas assim mesmo, a quantas vicissitudes não vai ficar exposto o teu pobre amor! . . . A
rapariga é escrava, e como tal pode ser vendida, ou o que é pior, pode ser obrigada a casar-se com outro, se não
lhe acontecer coisa pior.
– Ah! não me digas tal; isso é impossível, ela antes se deixaria matar. Demais, ela me disse que seus senhores
não a vendiam por dinheiro nenhum.
– E como esperas que a vendam a ti?
– Desesperas-me com as tuas objeções; não sei resolvê-las por agora; mas o amor, como diz Salomão, é forte e
poderoso como a morte: ele saberá a seu tempo quebrar todos os obstáculos.
– Pelo que vejo, tua loucura é incurável, meu pobre Carlos; esse teu infausto amor grudou-se ao teu coração
como ostra ao rochedo. Entretanto, sempre te direi que o melhor partido, que tens a tomar, para que ela não se
torne crônica, é procurar combater por todos os meios essa paixão romanesca e desassisada. Tua situação é
com efeito das mais estranhas e originais, e dá assunto para um bonito romance; mas o romance é bom nos
livros; na vida real é sempre uma atrapalhação, que devemos arredar. É preciso, pois, dar pronto desenlace a
tua complicada situação, e o mais pronto e mais decisivo é cortar o nó górdio com a espada de Alexandre; é
renunciar à tua paixão.
– Concordo; mas isso é que é absolutamente impossível.
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– Impossível, porque não queres, porque não fazes o mínimo esforço para suplantá-la. A primeira coisa, que
deverias fazer, era mudar de casa, fugir da vizinhança dessa mulher, que te fascina. Dado esse passo, é preciso
procurar distrações no estudo, na leitura de romances, nos passeios, nos pagodes mesmo.
– Não há distração possível para paixões desta ordem, meu Frederico; não tento nada disso, porque estou
intimamente convencido que tudo isso será ineficaz.
– Ah! bem! já que assim te entregas sem resistência ao teu insensato amor, não vejo salvação para ti;
empreendes contra o destino uma luta, em que seguramente tens de sucumbir. Se não puderes conseguir, como
é certo, nem a mão, nem a liberdade da menina, o que será de ti, maluco, com essa tua desastrada paixão?
– Bem sei que vou arcar cem mil dificuldades, vou arrostar os preconceitos do mundo, e que além disso estou
exposto a eventualidades, que podem de um momento para outro derrocar todos os meus planos, e destruir toda
a minha felicidade. Sei tudo isso; mas não posso, não posso esquivar-me à fascinação, que exerce sobre mim
aquela adorável menina. Não penses que isto em mim é exaltação romanesca, delírio de imaginação; não, não.
Bem sabes que sempre fui avesso aos namoros e amoricos, a que nossos colegas pela maior parte são tão
avezados. Este meu amor é um amor puro, verdadeiro,sincero, profundo, inextinguível; é o primeiro e creio que
há de ser o único da minha vida.
– Assim o quero crer, meu Carlos, mas desgraçadamente é um amor impossível.
– É impossível, mas entretanto, existe, e existe de parte a parte com recíproco fervor e sinceridade!... Logo que
existe, tem uma razão de ser. Deus é bom e justo, e eu confio no meu destino e na pureza de meus afetos.
– Ora, pelo amor de Deus, deixa-te dessas exaltações!! Uma escrava sempre é uma escrava; mais cedo ou mais
tarde te verás forçado a matar essa paixão que te amofina.
– Mais depressa ela me matará...
A confidência dos dois amigos foi nesse ponto interrompida pelo tropel de uma troça de estudantes, que nesse
momento invadiam ruidosamente a casa de Frederico.
Carlos calou-se instantaneamente, como o sabiá, que suspende seus plangentes arpejos quando ouve rumores
pelo bosque. Era um estudante sinceramente enamorado; coisa rara!
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CAPÍTULO XX
PROJETOS VÃOS
Passaram-se quinze dias, durante os quais o estado moral e físico de Carlos apresentou algumas melhoras, se
bem que a sua paixão nada declinasse de seu primitivo grau de ardor e exaltação. O desabafo, que tivera com
Frederico, lhe fizera bem, e como já tinha um peito amigo, a que confiasse suas mágoas e inquietações, sentia o
coração algum tanto aliviado do peso, que o oprimia, e o espírito mais calmo para entregar-se ao estudo, e
continuou a freqüentar as aulas com alguma assiduidade. O vivo desejo que tinha, de terminar seus estudos
para pôr em execução o plano que formara, para libertar sua formosa vizinha, influiu talvez mais que tudo para
esse lisonjeiro resultado.
Quanto a Frederico, esse tinha desistido completamente de seu propósito de combater a paixão de Carlos, e
dizia de si para si que só depois de dar todas as cabeçadas, que pretendia, é que seu amigo poderia tomar rumo.
Levado por uma curiosidade mui natural, quis conhecer também essa escrava de peregrina formosura, que por
tal sorte tinha transtornado a cabeca e cativado o coração de seu amigo. Foi para esse fim em casa de Carlos, o
qual não hesitou, antes folgou por ter ocasião de proporcionar a seu amigo um ensejo para ver e admirar o
encantador objeto de sua ardente paixão. Esperava que, depois de vê-la, Frederico se despojaria de grande parte
de sua austeridade, e não estranharia tanto a exaltação de seu amor. De feito Frederico, escondido
cautelosamente no quarto de Carlos, de modo que pudesse ver sem ser visto, gozou por um quarto de hora o
indizível e platônico prazer de contemplar uma das mais sedutoras belezas que o céu tinha criado, e de
presenciar um namôro o mais ingênuo, sentimental e apaixonado que se pode imaginar, expressado pela mais
eloqüente e significativa mímica. Aquilo, que para os dois amantes era o mais sério episódio do drama do
amor, para Frederico tornava-se quase uma cena cômica e ele teria soltado ali mesmo uma grossa gargalhada,
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se não o contivesse por um lado a beleza angélica, a graciosa e ingênua figura da moça, e por outro o respeito
que devia à afeição profunda e sincera do amigo. Saiu dali desanimado mais que nunca de poder desviar o
amigo de sua louca paixão, e se não deixava de lastimá-la, reconheceu todavia que a menina era, com efeito,
digna desse culto fanático, dessa fervente adoração, que lhe consagrava. Tomando sumo interesse não já só
pela sorte de Carlos, como também pela da gentil escrava, que deplorava do fundo dalma ter nascido naquela
condição, Frederico, que era filho de pais opulentos, obedecendo aos nobres e filantrópicos impulsos de seu
coração, concebeu desde logo a generosa idéia de empregar os meios a seu alcance para conseguir a liberdade
da gentil cativa. A princípio havia pensado que essa rapariga não seria mais do que uma linda mulata, como há
tantas no Brasil, faceiras e sedutoras, e a pintura, que dela Carlos lhe havia feito, levava em conta de exagero
apaixonado de um homem, que só vê o objeto amado através de um prisma ilusório, que elimina todos os
defeitos e realça as mais comezinhas qualidades. Desde que a viu, porém, suas idéias se modificaram
consideràvelmente, e o amor de Carlos, de que a princípio mofara com seu ar de risonha bonomia, lhe pareceu
plenamente justificado.
De feito, desde que se via a formosa escrava do Sr. Basílio, era preciso um supremo esforço de imaginação para
acreditar que era realmente uma escrava. Sua tez branca e delicada, os magníficos cabelos escuros, que lhe
emolduravam o rosto e lhe ondeavam pelo bem torneado colo, as feições corretas e harmoniosamente
delineadas, os ademanes naturalmente graciosos e elegantes, acrescendo a tudo isso o encanto da inocência e
candura infantil, não denunciavam por certo a filha da senzala. Ao vê-la qualquer juraria que era uma donzela
distinta, criada com todo o mimo e solicitude entre os carinhos de uma família honesta, e bafejada desde o
berço pelo sopro da liberdade.
Frederico, impressionado pela rara formosura da menina, já não julgava uma degradação, uma abdicação da
própria dignidade desposar uma liberta de tanta beleza e merecimento. Também Frederico, no íntimo de sua
consciência, estava bem convencido de que a escravidão é um acidente do destino, que não constitui uma
nódoa, e o fato de casar-se o seu amigo com uma liberta, mormente sendo dotada de tão vantajosas prendas
físicas e morais, nenhum desar, nem mesmo ridículo poderia provocar sobre a sua pessoa e reputação. Formou
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pois o generoso, se bem que um pouco excêntrico projeto de procurar aplanar o caminho, para que os votos do
coração de Carlos fossem satisfeitos. Comunicou suas intenções ao amigo, que lho agradeceu do íntimo dalma
e daí em diante criou novo ânimo e novos incentivos para prosseguir em sua arrojada empresa.
O primeiro passo que Frederico tentou foi procurar travar conhecimento e relações com o Sr. Basílio, dono da
escrava. Mas Basílio era um homem excêntrico, de difícil trato, quase incomunicável, que não dava ingresso
em sua casa senão a raríssimas pessoas. Ele e sua respeitável e veneranda esposa viviam vida misteriosa e
retraída; não saíam de casa senão aos domingos pela madrugada para ouvirem missa na Sé, o marido bem
embuçado em seu comprido capote de gola em pé, que lhe tapava a cara até os olhos, e ela toda embiocada em
sua mantilha. Fora disso, só se lhes enxergava às vezes a ponta do nariz por entre as rótulas, que apenas
entreabriam momentaneamente para espiarem a rua.
O seu tráfego de escravos também se fazia algum tanto à sorrelfa e com certo mistério; mas os habitantes de S.
Paulo já o conheciam, e quando algum, por necessidade de dinheiro ou por qualquer outro motivo, desejava
desfazer-se de algum escravo, já sabia a que porta iria bater. Quando tinha reunido uma coleção suficiente, ele
os comboiava para fora da capital, quase sempre em direção aos ricos municípios do norte da província e para a
mata do Rio de Janeiro, onde os negociava vantajosamente com os opulentos fazendeiros cafezistas daquelas
paragens. Estas suas saídas eram, como todos os atos de sua vida, feitas com segredo e mistério nas horas
mortas da noite. De um dia para outro, o velho com toda a sua família, a qual consistia em sua mulher e seu
comboio de escravos, desaparecia de casa, sem que ninguém soubesse para onde se havia dirigido.
Basílio, além de sua absoluta insociabilidade, tinha particular ojeriza à classe acadêmica, da qual se arrepelava
como de cobra venenosa ou cão danado, sem dúvida porque já alguma vez teria sido vítima de seus
desapiedados motejos.
Tudo isso dificultava sumamente a generosa empresa de Frederico e a tornava quase impraticável. Entretanto,
não desanimou. Por três vezes bateu palmas à porta de Basílio; por três vezes uma voz esganiçada gritou do
interior – não está em casa – sem que ninguém lhe aparecesse à porta. Entendeu por fim que, só por intermédio
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de um terceiro, que gozasse da amizade e confiança de Basílio, poderia penetrar naquela espelunca e entabular
negociações com semelhante casmurro.
Enquanto Frederico andava em diligências para encontrar um intermediário prestimoso, que o pusesse em
comunicação com o velho Basílio, deram-se acontecimentos, que vieram inteiramente burlar seus planos, e
derrocar todas as esperanças, que começavam a embalar a imaginação do pobre Carlos.
CAPÍTULO XXI
VENDIDA!
Desanimado de achar acesso junto à respeitável pessoa do Sr. Basílio, Frederico, mesmo na Academia, entrou a
fazer pesquisas e indagações entre os contínuos e bedéis, a fim de ver se podiam informá-lo das relações e
amizades, que porventura o tal homem entretinha na cidade. No fim de quatro ou cinco dias achava-se tão
adiantado como dantes. Como, porém, não julgava de grande urgência a solução daquele negócio, não o tangia
lá com grande afã e diligência, esperando que, com tempo e perseverança, sempre havia de deparar um meio de
achar-se face a face com o Sr. Basílio.
Entretanto, Carlos começou de novo a não comparecer às aulas, e durante toda uma semana não foi visto na
Academia, o que causava grande cuidado e inquietação a Frederico. Os dois amigos não se freqüentavam com
assiduidade, em razão da distância que separava suas residências, morando cada um na extremidade de bairros
diametralmente opostos. Perguntando Frederico por seu amigo aos companheiros que com ele moravam, estes
lhe responderam, que Carlos estava a ponto de ficar completamente maníaco; o namoro e a preguiça o estavam
pondo a perder; vivia trancado no quarto, comia pouco e às vezes nada, saía à rua de quando em quando, e
voltava sempre com ar cada vez mais lúgubre e desconsolado.
O mais breve que lhe foi possível, Frederico dirigiu-se à casa de Carlos, onde o encontrou em um estado de
prostração e desalento, que fazia dó. Soube, então, pela boca do próprio Carlos, que há mais de oito dias a
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janelinha, onde costumava ver a formosa escrava, se conservava fechada!... Nos dois ou três primeiros dias
ainda havia suportado, com alguma resignação e sem desesperar, o desaparecimento de sua amante. Talvez
estivesse doente, ou quem sabe se tinham sido percebidos os seus colóquios de janela, e por isso era agora
severamente vigiada por seus senhores? E também, que horror! quem sabe se teria sido vendida!?... Esta última
hipótese era como um estilete envenenado a pungir continuamente o coração do pobre rapaz. Para livrar-se de
tantas e tão cruéis incertezas, deliberou indagar pela vizinhança o que teria sido feito da menina. Os vizinhos,
porém, que sabiam tanto como ele, do que se passava em casa do Sr. Basílio, não puderam dar-lhe informação
alguma.
Depois de dois ou três dias de baldadas indagações pela vizinhança, resolveu-se a ir ele próprio à casa de
Basílio, e se bem que já tivesse conhecimento dos hábitos de incomunicabilidade do velho, jurou de si para si
que tanto havia de bater à porta, tanto gritar e rogar, tal algazarra e tais disparates havia de fazer, que nâo
teriam remédio senão abrir a porta e falar-lhe. Firme neste propósito tratou de pô-lo em execução, e cheio de
arrojo e resolução foi pela manhã bater à porta do misterioso e invisível vizinho Basílio. Mas... ai dele!... a
porta da rua estava fechada e sem chave, as rótulas e janelas trancadas, de modo que nem a luz nem o ar ali
podiam penetrar. Por mais que Carlos, depois de muito bater, aplicasse o ouvido, não distinguiu nem o mais
leve rumor, que denunciasse a presença de ente vivo, nem mesmo de um cão ou de um gato.
Carlos retirou-se dali pálido, exangue e a cambalear como um homem que acabasse de ser gravemente ferido.
Nesse estado ia-se dirigindo para a casa quando uma velha da vizinhança, cuja vida era tão misteriosa como a
do Sr. Basílio, pondo o nariz fora da rótula, perguntou-lhe:
– Quem estava procurando ali, meu moço?
– Ora, é boa pergunta! – respondeu Carlos, de mau humor. – Procurava o dono da casa.
– Chê! que esperança! há que tempo ele já saiu pra fora vender seus escravos.
– Que está dizendo, senhora!... Oh!... minha... senhora!... não saberá me dizer se levou também uma menina...
ainda muito nova...
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– Eu sei lá disso, meu moço?.. Ele quando sai é às chuchas caladas e fora de horas... Decerto essa também
havia de ir.
Nada mais era preciso para esmagar completamente o coração do pobre rapaz. Recolheu-se à casa e trancou-se
em seu quarto.
– Oh! minha adorada e infeliz Rosaura!... tu vendida!... Tu, a mais bela e a mais adorável das criaturas, que
saiu das mãos do Eterno, tangida a pé por essas estradas, no meio de um comboio de escravos, como uma rês
no meio da manada, para ser exposta no mercado! . . . Vendida. Deus do céu!... Vendidas a inocência e a beleza
pelo mais abjeto e ignóbil dos homens!... Vendida e a quem, Deus de misericórdia! Quem sabe em que mãos
irás parar, minha infeliz Rosaura!... Ah! talvez nas mãos de algum senhor brutal e devasso, que empregará
todos os meios para profanar-te a pureza, violar-te a pudicícia! Oh! sim, porque teus encantos fascinam,
cercam-te de mil perigos, e vão expor-te às mais terríveis vicissitudes. Ah! maldita sociedade! maldita lei! povo
e governo mil vezes maldito, que tolera e fomenta tão vergonhoso e execrando tráfico! Oh! se eu fora rico, iria
por essas estradas, acompanhado de uma escolta de bons capangas, no encalce do ladrão, havia de descobrir-lhe
a pista, e, por vontade ou por força, o infame havia de largar mão da presa. Ah! pobreza! pobreza!... Tu resumes
em ti todos os infortúnios... Pobre menina! lírio cândido e sem mancha atirado no infecto e lodacento abismo
da escravidão!...
Exalando estas e outras dolorosas e intermináveis exclamações, o mancebo passou dias e dias encerrado em seu
quarto, entregue à mais pungente angústia e desesperação, desatando torrentes de lágrimas, que em nada
mitigavam a dor, que lhe torturava a alma; seus sofrimentos não eram daqueles que acham desabafo no pranto
copioso; as lágrimas ardentes, que lhe crestavam as pálpebras, exprimidas do coração entre torturas, só
deixavam nele a aridez do desespero.
Foi assim que Frederico o veio encontrar, encerrado em seu quarto em tal estado de prostração e desalento, que
causava dó e inquietação não só pela sua saúde como pela sua razão. Não reproduziremos as violentas
explosões de furor, as amargas lamentações e terríveis imprecações, em que prorrompeu ainda o mísero
mancebo em presença do amigo. Este as escutou todas com a maior paciência sem interrompê-lo, nem
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contrariá-lo, e profundamente abalado pelo deplorável estado em que via o amigo, conservou-se mudo por
largo tempo sem achar uma frase de conforto e animação para tão acerbo sofrimento.
– Que se há de fazer em casos tais, meu amigo? disse ele por fim. – Lastimo-te deveras do fundo do coração, e
– lastimo ainda mais essa infeliz e formosa criatura, que o destino fez nascer escrava, devendo ter nascido em
berço de púrpura e ouro. Mas não serei eu mais quem te vá ainda embalar o espírito com vãs e ilusórias
esperanças; não; é escusado lutar contra a fatalidade. O único refúgio que te resta é a resignação; é pedir ao
tempo e às distrações o lenitivo para o rude golpe que te feriu o coração. Basta de te entregares a esse aflitivo
desalento, a essa desolação, que cada vez mais te agrava os pesares. Vamos, meu amigo, cobra coragem, e
mostra-te homem! Veste-te, e vamos passear; irás morar comigo de hoje em diante; é necessário que abandones
para sempre essa casa, que tão amargas recordações te traz ao espírito.
– Entrego-me em tuas mãos, meu Frederico; se bem que nada espere nem do tempo, nem das distrações, nem
mesmo da tua amizade, para mitigar a angústia, que me devora, vou, vou para onde quiseres levar-me; abdico
em tuas mãos a minha vontade, como um autômato, cujos movimentos dirigirás a teu bel-prazer, porque de fato
tudo me é indiferente; nada me interessa, nada mais desejo neste mundo.
– Isso é por agora, meu Carlos. Com o tempo, há de passar esse teu triste desalento. Vamos; quero afastar-te
dos lábios o teu cálix de amargura; quero arrancar-te deste Getsêmani, em que pareces querer exalar a
existência. Lembra-te que estamos em fim de outubro, e é preciso nos prepararmos para o ato.
– Não me fales em atos, nem estudos, nem me faças lembrar de Academia. Se não fosse essa maldita
Academia, que aqui me trouxe, eu estaria agora bem tranqüilo em minha província, e não aqui como ludíbrio
do destino, suportando as mais cruéis torturas. Diga-me de que nos serve vir aqui estudar o direito, o dever e a
justiça, se eles não são e nunca serão respeitados, nem executados?... Se se praticam por aí impunemente, todos
os dias, as mais torpes e atrozes iniqüidades, as mais flagrantes e hediondas violações da lei e do direito?
Maldita ciência – se é que merece tal nome – maldita ciência, que só existe nos livros e nos códigos, como pura
irrisão aos direitos da humanidade, que a sociedade pesa em sua balança corrupta para calcá-las aos pés!... Não;
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não vou nem mais uma vez à Academia. Em novembro irei, pela última vez, a casa de meu correspondente
para... para ir-me embora.
– Pois bem: vou de acordo com isso, Carlos; a agitação, que atualmente te perturba o espírito, não te permite
estudar. Deixarás o teu ato para março ou abril; será melhor assim. Entretanto, por agora, me pertences; já o
declaraste. Vamos com isto; avia-te, e quanto antes vamo-nos embora daqui.
Carlos vestiu-se automaticamente, e os dois amigos, de braço dado, tristes e taciturnos, atravessaram a cidade e
dirigiram-se para a casa de Frederico.
CAPÍTULO XXII
EM CASA DO CORRESPONDENTE
Em meados de novembro, vinte dias pouco mais ou menos depois que Frederico tinha levado Carlos para sua
casa, das dez para onze horas do dia, achava-se Conrado sozinho, em seu salão de visitas, folheando alguns
jornais, que acabava de receber, quando lhe bateram palmas à porta, embaixo da escada. Mandou entrar quem
fosse, e daí a alguns segundos apresentou-se na sala um moço pálido, alquebrado e macilento, na figura do qual
Conrado, não sem alguma dificuldade e depois de alguns instantes de reparo, reconheceu Carlos, o estudante
que já é do nosso conhecimento, e que era seu correspondido.
Conrado quando, em seus giros de muladeiro, viajou pela província de Minas, passou mais de uma vez pela
fazenda do pai de Carlos, com quem negociou, e em cuja casa encontrou hospitalidade franca e delicada, como
se sói dispensar naquela província, nascendo daí relações de pura e boa amizade entre os dois. Por isso, quando
o fazendeiro teve de mandar seu filho para S. Paulo, o recomendou a Conrado, pedindo-lhe que fosse seu
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correspondente. O paulista aceitou com prazer aquele encargo, e o seu correspondido, por suas belas
qualidades, seu talento e boa conduta, granjeou bem depressa sua estima e simpatia.
Carlos freqüentava com assiduidade a casa de seu correspondente, onde era tratado com particular distinção e
cordial amizade. Depois, porém, que o nosso estudante se travara de amores com a escrava de Basílio, suas
visitas começaram a escassear de mais em mais, até cessarem de todo; havia cerca de dois meses que não se
viam; a última mesada Carlos a tinha mandado buscar por um recibo.
– Oh! mui bem aparecido, meu caro Carlos! – disse alegremente Conrado. – Há que tempos o não vejo!...
Estava mal comigo? Mas estou o achando tão pálido e desfigurado!... Tem estado doente?
– Algum tanto, Sr. Conrado; tenho sofrido bastante nestes últimos tempos.
– Ah! e como não mandou me dizer nada?... Sabe quanto sou amigo de seu pai, e muito pesar me ficaria se o
filho do meu amigo sofresse alguma coisa nesta cidade sem eu lhe ter valido em coisa alguma. Tenho
estranhado a sua falta, e se não fossem certas ocorrências, que há dias a esta parte muito me têm preocupado, já
teria ido procurá-lo em sua casa.
– Muito obrigado. Sr. Conrado; mas não se inquiete; meus incômodos não são talvez de conseqüência, mas são
do número daqueles que nem a ciência, nem os cuidados do homem podem minorar, somente o tempo...
– Deus o permita – interrompeu Conrado. – Então já está preparado para fazer um brilhante ato como é seu
costume?...
– De modo nenhum; não só não estou preparado, como mesmo não quero, e nem posso fazer ato este ano.
– E por quê? Acaso perdeu o ano em razão da moléstia?
– Não, senhor; não cheguei a perdê-lo, mas dei grande número de faltas, e nestes dois últimos meses quase
nada pude estudar. Pretendo ir passar as férias em casa, e por isso venho hoje importuná-lo para dar-me além
da mesada, mais algum dinheiro para arranjar condução.
– Ah! muito bem; hei de sentir muito a sua ausência; mas não posso deixar de aprovar a sua resolução em vista
do estado de sua saúde. Faz bem; vá tomar ares em sua bela província, e volte-nos robusto, sadio, e alegre como
dantes.
246
– Não sei se voltarei, Sr. Conrado, – murmurou Carlos, com desânimo.
– Oh! por que não? Há de voltar sem dúvida. Quererá dar a seu pai o desgosto de ver interrompida sua carreira
quase no seu têrmo?... Há de voltar, sim, meu amigo. Entretanto, não quero que se vá embora, sem que fique
sabendo de uma novidade, que há aqui em nossa casa... Não é capaz de adivinhar qual é.
– Nem por sombra.
– Pois participo-lhe que sou pai; não há muitos dias, nasceu-me uma filha, que desejo lhe apresentar.
– Uma filha! – exclamou Carlos, com surpresa. Ora essa! O senhor está gracejando, não é casado, e demais...
– Ora, que tem isso? – atalhou Conrado. – Não quer acreditar? Pois vou apresentar-lha neste momento. Com
licença.
Conrado retirou-se para o interior da casa. Carlos, se tivesse o espírito menos preocupado, e não trouxesse o
coração tão pejado de amarguras, ficando ali só teria passeado uma vista dolhos em torno do salão, e teria
notado nele não pequena modificação no luxo e na disposição dos móveis. Teria notado neles um arranjo mais
caprichoso e elegante, almofadas colocadas nos sofás com o mais esmerado asseio, flores frescas em todos os
vasos, enfim em tudo certo ar garrido e festivo, que estava revelando que ali andava a mão de uma mulher, e
mulher de fino e apurado gosto. Teria visto mais sobre um bufete de jacarandá negro um rico leque, um lenço
de cambraia primorosamente bordado e um mimoso ramalhete de violetas, objetos que seguramente não eram
do uso de Conrado. O mancebo, porém, nada viu, nada observou, e durante a ausência de Conrado, que durou
poucos minutos, ficou a fazer mil conjeturas sobre o que lhe acabava de anunciar seu correspondente.
– Será gracejo? – pensava ele. – Mas que alcance, que explicação, que espírito pode ter semelhante gracejo em
tal ocasião, principalmente de um homem dotado de tanto senso e de tanta discrição como é o meu
correspondente?!... O Sr. Conrado, além de não ser casado, não me consta que tenha amásia alguma nem em
casa, nem fora dela, e passa por celibatário exemplar. É mesmo para admirar que este homem, moço ainda, rico
e elegante, não tenha tido namoro, nem intrigas amorosas de espécie alguma!... É coisa quase impossível... não
há dúvida... A única hipótese razoável, que se apresenta ao espírito, é mesmo a de alguma filha natural, fruto de
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algum amor misterioso, que ele até aqui tem sabido esconder com cuidado aos olhos do mundo. Como me tem
amizade e deposita em mim alguma confiança, vai agora fazer-me depositário do seu segredo.
– Agora mesmo vai lhe ser apresentada a minha filha, Sr. Carlos, – disse Conrado, tornando a aparecer no
salão.
Carlos, em pé, e com os olhos fitos na porta, por onde Conrado havia entrado, esperava a cada momento uma
ama ou uma escrava, trazendo nos braços, bem enfaixada, a criancinha, filha de seu correspondente. De feito,
passados alguns instantes, ouviu passadas e o leve rugir de um vestido pelo pavimento.
– Ei-la! – disse entre si.
Mas quem assomou no limiar da porta?... A mais formosa donzela que se pode imaginar, de gentil esbelto
porte, tendo no rosto não mui alvo todas as graças do pudor virginal e da ingenuidade infantil.
Vinha vestida de branco, com encantadora e elegante simplicidade. Rosaura e Carlos imediatamente se
reconheceram. Aquela mal pôde avançar dois ou três passos pela sala, e estacou como petrificada; Carlos a
muito custo pôde conter uma explosão de espanto.
Assim permaneceram por alguns instantes em frente um do outro, tolhidos, embaraçados, atônitos, e como que
julgando-se vítimas de alguma mistificação. Conrado, que ignorava a verdadeira causa daquele embaraço,
atribuindo-o a acanhamento, tratou logo de tirá-los dele.
– Minha filha – disse ele – aqui está o meu amigo, o Sr. Carlos, estudante do quarto ano, a quem queria
apresentar-te.
– Sr. Carlos... – disse Rosaura, estendendo-lhe a mão e cobrindo-se de vivo rubor.
– Rosaura! – ia quase exclamar o mancebo, no arroubo de sua indizível emoção.
– Minha senhora – balbuciou ele – custa-me a crer o que vejo; estava bem longe de esperar encontrá-la aqui!...
– Que quer dizer isto? – exclamou Conrado, com surpresa. – Pelo que estou vendo, já se conheciam?...
– Sim, senhor – respondeu Carlos, perturbado e baixando os olhos. – A senhora era minha vizinha no
Tabatinguera; já nos vimos algumas vezes.
– É verdade – murmurou Rosaura.
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– É singular! – repetiu Conrado.
– Mais singular me parece – retorquiu Carlos, um pouco restabelecido de sua primeira surpresa e emoção – vir
encontrar em sua casa esta senhora já não na condição em que a conheci, mas na qualidade de sua filha.
Perdoe-me se lhe falo com esta lisura; mas é um mistério, que me assombra, e que desejava ver decifrado. Até
mesmo ainda me quer parecer que e isto um gracejo de sua parte.
– Um gracejo! – replicou Conrado, formalizando-se um pouco. – A que propósito viria semelhante gracejo?...
Mas eu lhe desculpo; o senhor tem alguma razão para assim pensar, principalmente sabendo já dos precedentes
de Rosaura, o que eu estava bem longe de imaginar. Há mesmo aí um mistério, que eu devo e desejo lhe
comentar. Promete vir jantar amanhã conosco?...
– Com muito prazer.
– Pois bem, venha cedo, e prometo-lhe que amanhã mesmo ficará ciente da história de Rosaura, e se dissiparão
todas as suas dúvidas e incredulidades.
Conversaram ainda por algum tempo, mas nem Carlos nem Rosaura, no assombro e enlevo em que se achavam,
sabiam bem o que diziam. Também de sua parte Conrado se achava bastantemente apreensivo; o fato de já
serem os dois jovens conhecidos um do outro fizera-lhe impressão no ânimo, e não lhe tinha escapado o enleio
e perturbação com que se encaravam. Por mais que se esforçasse por dissimular sua preocupação, não podia
deixar de mostrar-se pensativo e distraído. Em vista daquele estado de embaraço e constrangimento, em que
todos se achavam, Carlos compreendeu que não convinha prolongar por mais tempo sua visita, e sem se
lembrar mais de mesada, nem de dinheiro para a viagem, levantou-se, tomou o chapéu, e já ia despedir-se.
– Então, não quer receber a sua mesada? – perguntou Conrado.
– Ah! é verdade! ia me esquecendo.
Conrado sorriu-se de um modo que fez corar o estudante, e levando-o para o seu gabinete contou-lhe o dinheiro
não só da mesada, como também do que ele exigiu para a viagem. Carlos, porém, ao retirar-se da casa do seu
correspondente, tinha tanta vontade de ir a férias, como de atirar-se nas profundas e sombrias águas do Tietê
com uma pedra ao pescoço.
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CAPÍTULO XXIII
VINTE E QUATRO HORAS DE ANSIOSA EXPECTATIVA
Conrado como dissemos, ficara seriamente impressionado ao saber que Carlos e Rosaura já se conheciam. Isto
para um homem experiente e perspicaz como era ele, e à vista dos sintomas, que rapidamente observara
naquele primeiro encontro, queria dizer que os dois jovens já se amavam. Por alguns momentos, uma vaga e
sombria desconfiança lhe adejou pela mente, lembrando-se da humilde e desgraçada condição em que até então
tinha vivido sua filha. Mas essa nuvem para logo se dissipava toda a vez que contemplava a fisionomia de
Rosaura, em que se espelhavam a candura e a inocência de sua alma. Também conhecia a Carlos como um
moço de sentimentos nobres e delicados, e o modo por que ambos se houveram naquele encontro inopinado
bem estava revelando que, se havia ali paixão, era de uma e outra parte uma paixão virginal e pura, um
sentimento honesto e recatado.
Havia apenas quinze dias que Rosaura se achava em casa de seu pai, e não diremos que se havia operado nela
uma completa transformação, porque Rosaura era elegante, discreta e graciosa por natureza; mas tinha feito
tais progressos no desenvolvimento desses seus dotes naturais, que parecia ter sido nascida e educada no meio
da mais polida sociedade. É verdade que ela, durante sua escravidão, fora sempre tratada com mais algum
mimo e delicadeza do que os outros escravos, mesmo por Nhá Tuca, sua primeira senhora; mas mesmo assim
era para admirar como em sua brusca passagem, da humilde condição de escrava e de sua vida simples e
retraída, para os salões da opulência, se familiarizasse tão depressa com a sua nova posição. Também a sua
estada por espaço de um mês em casa de Adelaide, onde era tratada como parte da família, contribuiu para
habituá-la ao trato de uma sociedade mais distinta, e serviu como de transição ou tirocínio, para que não
entrasse por demais bisonha na opulenta e luxuosa casa de Conrado.
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Este se comprazia, com justo e bem fundado orgulho, em apresentar Rosaura como sua filha aos seus íntimos
amigos, e em lhes contar o modo extraordinário e quase miraculoso, pelo qual o céu lhe concedera uma filha já
grande, formosa e dotada em tão alto grau de todos os atrativos físicos e morais. Omitia, entretanto, ou alterava
certas circunstâncias a fim de evitar indagações, e desviar toda e qualquer suspeita que pudesse pairar sobre a
verdadeira mãe de Rosaura. Assim dizia que ela nascera em Curitiba, e que sua mãe já não existia. Quanto ao
mais, alterando somente os nomes das pessoas e dos lugares, narrava com toda minudência e fidelidade o
singular acontecido, que lhe tinha dado uma filha, com cuja existência ele nem sonhava. Com o coração ermo
de afetos, como até ali tinha vivido, tendo sempre presentes ao espírito tristes e amargas recordações do seu
infeliz passado, Conrado não cessava de congratular-se com sua sorte, e bendizer o céu que, preservando e
restituindo-lhe a filha, vinha reatar seu doloroso passado a um risonho e esperançoso futuro pelos laços tão
suaves e afetuosos do amor paterno. Rosaura era uma flor cândida e mimosa, que de chofre lhe desabrochou
sob os passos como por encanto, em toda a plenitude do viço e louçania, para embalsamar-lhe o outono da vida
com seu delicado perfume.
Conrado, pois, que tinha especial simpatia e estima pelo seu correspondido, não podia deixar de apresentar-lhe
sua filha e dar-lhe conta também do modo singular, por que o destino o levara a deparar com tão precioso
achado. A surpresa que lhe causou o conhecimento recíproco dos dois jovens o tornou pensativo.
O amor que já mutuamente se consagravam era fator que, quanto mais refletia, mais claramente se lhe
apresentava ao espírito.
A enfermidade e abatimento físico e moral de Carlos e a declaração, que lhe havia feito, de que seus
incômodos não eram daqueles que se curam pelos recursos da medicina, nem pelos cuidados dos homens, bem
denunciavam que havia ali uma causa moral profunda e persistente, e essa causa não podia ser outra senão o
amor de Rosaura. Como, porém, seu espírito se perdesse em um caos de conjeturas mais ou menos razoáveis,
sobre os quais lhe era mister refletir com mais sossego, deliberou aprazar para o dia seguinte o que tinha de
comunicar ao mancebo.
251
Tudo conspirava para convencê-lo de que entre os dois jovens existia paixão recíproca, amor puro e sincero; os
ventos todos sopravam na direção de suas conjeturas, e talvez mesmo de seus desejos.
Todavia, antes de fazer a CarIos declarações mais íntimas, julgou prudente sondar de antemão as disposições
do coração da filha. Isto foi-lhe mui fácil; o coração puro é como a fonte límpida, que nada esconde em seu
fundo.
Desde que tinha em casa sua filha, Conrado havia notado que, a despeito da imensa alegria que ela sentia por
ter, por assim dizer, nascido de novo em um mundo estranho, por ter sido arrancada, pela mão benéfica da
Providência, do inferno da escravidão para um céu de venturas, onde, ao lado da liberdade, vinha encontrar pai
e mãe, uma leve nuvem de tristeza pairava de quando em quando sobre aquela fronte tão pura, tão radiante de
candura e de inocência. Por vezes a surpreendera em tal estado de melancolia, que não podia deixar de
interrogá-la; ela porém respondia que seu desgosto provinha unicamente de ter mãe tão boa e tão perto de si, e
não poder viver com ela, abraçá-la e beijá-la, todos os dias, e nem mesmo poder dar-lhe em público o doce
nome de mãe. Esse motivo tão justo, e aliás verdadeiro, mas que não era o único nem o mais poderoso de seus
melancólicos devaneios, não deixava de satisfazer algum tanto a ansiosa e solícita curiosidade de Conrado.
Depois, porém, que se deu o encontro entre ela e o seu jovem correspondido, as idéias de Conrado tomaram
outra direção. Não conhecia bem ainda a índole e o temperamento de Rosaura, mas mesmo assim compreendia
perfeitamente que aquela melancolia não era muito compatível com a sua idade, nem podia constituir seu
estado normal, e devia ser resultado de algum sentimento contrariado; que alguma coisa, fosse o que fosse,
faltava para a completa felicidade de sua filha.
Depois, porém, que em sua presença Carlos e Rosaura se encontraram em face um do outro, a luz foi-se
fazendo diante de seus olhos.
Desde que Carlos lá apareceu, a fisionomia da moça foi-se modificando de um modo tão sensível, que não
pôde escapar às vistas perspicazes e escrutadoras de Conrado.
O vivo rubor, que lhe assomara às faces, logo que deu com os olhos no mancebo, nunca mais se apagou, apenas
desmaiou um pouco, depois que ele se retirou, e assim se conservou até o dia seguinte. Eram as rosas do amor,
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que refloriam de novo no bafejo da esperança naquele cândido e encantador semblante. Os sorrisos lhe
adejavam espontâneos pelos lábios, e nos olhos lhe cintilava um fulgor sereno e bonançoso como o de uma
manhã de abril. Nesse dia, Conrado não viu mais no rosto de sua filha nem a mais leve sombra de tristeza.
Depois de ter notado com particular atenção aqueles sintomas, Conrado, procurando encobrir sua intenção, e
sem muita insistência, fez à sua filha algumas perguntas a respeito de Carlos.
– Então, já conhecias esse moço, que te apresentei hoje? – perguntou, afetando indiferença.
– Já, sim senhor; era nosso vizinho já na Rua do Tabatinguera, – respondeu Rosaura, bastantemente enleada.
– E que tal te parece ele?
– Me parece muito bom moço.
– Qual bom moço! É muito estúrdio como todos os seus companheiros... Basta ser estudante.
– Oh! meu pai não diga isso! – exclamou com toda a vivacidade e com toda a ingenuidade a menina. – É
porque meu pai não o conhece. Esse não é como os outros; é muito bem criado, e tem tão bons modos...
– São aparências, minha filha; não acredites muito nesses sujeitinhos. Não é de hoje que os conheço. Esse
Carlos mesmo, se não é um maluco ou um devasso como os outros, talvez não passe de um refinado hipócrita.
– Ah! meu pai! Será possível! – murmurou Rosaura, com voz sentida, e tornou-se triste e amuada...
Conrado sorriu-se; tinha surpreendido no fundo da alma o segredo da filha.
– Não te aflijas, Rosaura; eu também conheço Carlos, e até o vi pequenino em Minas na fazenda do pai, que é
muito meu conhecido e meu amigo.
– Ah! deveras? – replicou Rosaura, reanimando-se. – Quanto estimo isso!...
Conrado não precisava saber mais para ficar inteirado da natureza dos sentimentos de sua filha para com o seu
correspondido. Só lhe faltava agora sondar o coração de Carlos, para o que esperou com impaciência o dia
seguinte.
Quando Carlos saiu da casa de Conrado, e se achou no meio da rua, ia tão aturdido com o que lhe acabava de
acontecer, que parou perplexo sem saber para onde dirigir seus passos. Nesta hesitação ficou parado alguns
momentos; mas depois, levantando os olhos para o sobrado, viu Conrado e Rosaura, que da sacada o
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contemplavam com ar risonho; envergonhou-se, e fez um ligeiro cumprimento, e como quem despertava de um
sonho, dirigiu-se resolutamente para a casa de Frederico, com quem morava desde que este o arrancara da Rua
do Tabatinguera. Caminhava, porém, por tal sorte distraído, tal era a preocupação e enlevo em que ia
embebido, que não via onde pisava, abalroava um e outro transeunte, e não correspondia aos cumprimentos dos
colegas e conhecidos, com quem ia encontrando. Levava a alma como que fechada dentro de uma nuvem
cor-de-rosa, cheia de visões e miragens encantadoras, que não lhe permitiam ver nada do mundo exterior,
enquanto o corpo se movia automaticamente, procurando o rumo de casa. O achado que acabava de fazer, sem
o procurar, sem o saber, o atordoava. Encontrar Rosaura, que ele julgava para sempre perdida, encontrá-la de
um dia para outro livre, rica, em uma posição brilhante, transformada de escrava que era em uma distinta
donzela, filha de um opulento e amável cavalheiro, o qual, além de tudo, era o seu correspondente, o amigo de
sua família, era com efeito um acontecimento, que tinha um não sei quê de prodigioso, era um sonho das mil e
uma noites. Todavia, o azul do horizonte, que lhe sorria, não era ainda de todo puro e calmo; pairava sobre ele
uma nuvenzinha escura, que lhe turbava a serenidade. Terrível suspeita lavrava por instantes ao espírito de
Carlos. Apesar de estar bem convencido da honradez e sinceridade do caráter de Conrado, não podia
conformar-se com a idéia de que Rosaura fosse sua filha. Conrado era rico, podia satisfazer todos os seus
caprichos. Viu Rosaura, encantou-se de sua beleza, não poupou esforços nem dinheiro para obtê-la, comprou-a,
libertou-a, levou-a para casa, e não querendo casar-se com uma liberta, fê-la ou pretende fazê-la sua amásia.
Para coonestar aos olhos do público sua convivência com a gentil menina, procura fazer crer que é sua filha;
para o que pouco lhe custará inventar qualquer história. Carlos também não deixara de perceber a alteração,
que se manifestara na fisionomia de Conrado ao saber que ele e Rosaura já se conheciam e esse fato servia para
confirmá-lo em suas sombrias apreensões.
Bem se vê que eram apreensões quiméricas e disparatadas de um espírito enfermo, que, tendo surgido como
por encanto dos abismos tenebrosos do infortúnio e do desalento, a custo pôde abrir os olhos à luz da esperança
e da ventura, tendo ainda diante deles as cataratas da desconfiança.
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Não obstante, esses pensamentos, por insensatos que fossem, atormentavam cruelmente a imaginação do moço,
se bem que fossem contrabalançados por algumas reflexões mais razoáveis, que imediatamente lhe acudiam ao
espírito. Mas persistia sempre a dúvida, esse cancro roedor, que tanto martiriza o espírito e o coração, e Carlos
raivava contra o seu correspondente por ter diferido para o dia seguinte essas revelações, que deviam pô-lo ao
fato do nascimento de Rosaura, e terminar de uma vez todas as incertezas que o atormentavam.
Embebido em seus pensamentos, Carlos percorreu a Rua Direita, desceu a ponte do Pique, subiu a longa rua
que conduz ao alto da Consolação, em cuja extremidade morava com Frederico. Este não estava em casa; era
sábado, e, segundo o seu costume, tinha saído a passeio e a visitar os amigos.
Carlos não sabia como passar aquele longo dia de novembro, que tão ardentemente desejava ver caído nos
abismos do passado, não para amaldiçoá-lo, mas para glorificá-lo como a data mais feliz de sua vida, se acaso o
dia seguinte viesse confirmar as risonhas esperanças da véspera. Em casa achou somente o cozinheiro de
Frederico; que preparava o jantar. Na situação em que se achava o espírito de Carlos, o que mais lhe convinha
era mesmo ou a solidão, ou um amigo íntimo com quem desabafasse suas emoções; como Frederico não
aparecia, ficava-lhe por companheira a solidão. O cozinheiro serviu-lhe o jantar, Carlos sentou-se à mesa, mas
apenas ingeriu automaticamente alguns bocados e logo levantou-se. Consultava de contínuo o relógio, mas os
minutos volviam-se com tal lentidão, que pareciam horas. Ficar ali sozinho dentro de casa não lhe pareceu o
melhor modo de acelerar a carreira do tempo.
– Vamos passear – pensou ele – dar um passeio bem largo e bem fatigante, andar, andar, pouco importa por
onde, até anoitecer. O longo exercício trará a fadiga, e a fadiga o sono, e nada há melhor para dar velocidade às
asas, do tempo que o sono; a dormir, um século volve-se em um minuto.
Tinha bastante razão, como a experiência e o resultado vieram demonstrar. O amante de Rosaura tomou o
chapéu e saiu; foi até à Ponte Grande do Tietê, que distava de sua casa cerca de meia légua, procurando
esquecer-se, mas lembrando-se sempre do dia seguinte, que tinha de resolver o problema de seu futuro destino.
Quando voltou, já vinha caindo a noite; apesar de bastante fatigado, continuou ainda a passear à toa por todas
as ruas da cidade, até que badalaram dez horas no relógio da Sé. Então voltou para casa, que, como de dia,
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achou completamente deserta. Frederico tinha ido ao teatro. Fatigado tanto de andar como de pensar, Carlos
deitou-se e dormiu profundamente até o dia seguinte. Quando abriu os olhos e viu que já raiava a luz do dia,
estremeceu de júbilo.
– É hoje! é hoje o dia! – murmurou consigo. Dia feliz ou nefasto? Não sei, mas em poucas horas estarei ciente
do destino, que me espera.
Consultou o relógio; já era bem tarde, quase nove horas.
– Bom! – exclamou ele. – Bem-aventurado sono, que assim me encolheu o tempo! Já me faltam poucas horas;
enquanto lavo o rosto, visto-me e almoço, aproxima-se o momento suspirado. Entretanto, vamos a ver o
Frederico.
Frederico, tresnoitado do teatro, ainda dormia a sono solto.
– Melhor! – refletiu Carlos. – Deixemo-lo dormir. Não quero dar-lhe uma notícia incompleta, ler-lhe um
romance, cujo desfecho ainda não está escrito. Logo saberá tudo.
Carlos vestiu-se e preparou-se com vagar e esmero, coisa que há muito tempo não era seu costume, almoçou
mal e apressadamente, enquanto Frederico dormia, tomou o chapéu e saiu. Todavia, muito a seu pesar eram
apenas dez horas. Como era domingo vendo uma igreja aberta entrou para ouvir missa e ganhar tempo. Depois
de ter dado ainda muitas voltas, ouviu em transportes de alegria soar meio-dia na torre da Sé. Quão
harmoniosas lhe soaram aos ouvidos aquelas doze badaladas!... Era chegado enfim o momento, que há vinte e
quatro horas esperava com tão impaciente ansiedade. Conrado tinha-lhe dito que, do meio-dia em diante,
estaria em casa à sua espera.
CAPÍTULO XXIV
BEATITUDE
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Quando Carlos bateu palmas em casa de Conrado, foi Rosaura que se apresentou no topo da larga escadaria, e
com um gracioso aceno disse-lhe:
– Queira subir.
Estava divina; em toda a sua figura respirava um não sei quê de celeste e arrebatador; banhava-lhe os lábios um
ligeiro sorriso, que lhe comunicava a toda a fisionomia uma expressão de felicidade tão calma e suave, que a
teríeis por um anjo no gozo completo de todas as venturas do empíreo. Tinha chegado a pouco da rua, e ainda
não tinha deixado o vestido de nobreza preta, com que fora, com seu pai, ouvir na Sé a missa conventual. Essa
cor do vestido dava o mais esplêndido realce ao seu busto gracioso, e comunicava-lhe à tez uns matizes de
jaspe ligeiramente rosado, do mais encantador efeito.
Subindo as escadas, Carlos pensou que ia sendo assumido ao paraíso, a cuja porta um querubim o esperava
para introduzi-lo na mansão das delícias eternas. Todavia, não ia muito seguro da sorte que o esperava, e
transpôs, a passos vacilantes, o pórtico daquele recinto, que para ele simbolizava o céu. A despeito dos
lisonjeiros e esperançosos sintomas que lia no rosto radiante de Rosaura, ainda pairava-lhe na mente um resto
da dúvida e desconfiança que o assaltara na véspera. Era ainda uma alma que chegava às portas do céu para ser
julgada, e bem podia acontecer que fosse precipitada por aquelas escadas abaixo, condenada aos tormentos do
inferno.
Tendo introduzido Carlos no salão, Rosaura retirou-se, e daí a poucos instantes apareceu Conrado.
– Muito bem, meu caro Carlos, – disse ele ao entrar. – Estimo que viesse cedo, como lhe havia recomendado,
pois temos muito que conversar.
– Aqui estou a suas ordens – replicou Cralos – e ansioso por escutar as interessantes comunicações que
prometeu fazer-me. Creia que desde ontem trago o espírito atormentado pela mais viva curiosidade de saber,
por que maneira vossa senhoria de um dia para outro, se tornou pai de uma criatura de quatorze anos, revestida
de todas as ingênuas graças da infância, e de todos os encantos da puberdade. A não lhe ter caído do céu um
anjo, só se vossa senhoria tem a virtude do Onipotente, e criou de sua própria costela, de um momento para
outro, essa nova Eva, como Deus formou a mãe do gênero humano, a princesa do paraíso.
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– Creio no que me diz e compreendo perfeitamente a sua curiosidade – replicou, sorrindo-se, o pai de Rosaura.
– Dentro em pouco sua curiosidade vai ser plenamente satisfeita. Mora longe, o sol está ardente; deve estar
cansado. Também cheguei há pouco da rua, e me acho bastantemente encalmado. Descansemos um pouco
enquanto tomamos algum refresco.
Daí a instante, entrou um moleque trazendo sobre uma rica bandeja de charão copos, garrafas de cerveja e
outros refrescos. Tomaram um copo de excelente Bass, e enquanto aspiravam a fumaça de um delicioso
havana, Conrado pôs-se a contar ab ovo, com toda a minudência e franqueza, a história de seus amores, as
contrariedades que encontrou, a fraqueza em que caiu, da qual resultou o nascimento de uma filha, cuja
existência até bem poucos dias ele próprio ignorava. Contou também toda a história de Rosaura, como fora
batizada como escrava pela mulher avara e perversa, em cuja casa fora exposta, e como tal fora vendida na
idade de dez anos a esse Sr. Basílio, em cuja casa Carlos a tinha conhecido; como enfim, por um concurso de
circunstâncias, que pareciam encaminhadas pela mão da Providência, tinha-se chegado ao conhecimento da
verdadeira origem da menina, reconhecendo-se pública e autenticamente o seu nascimento livre. Nessa
narração, porém, alterando certos nomes e mudando para Curitiba o cenário de suas aventuras amorosas,
procurava como sempre arredar de sobre a verdadeira mãe de Rosaura a mais leve sombra de suspeita.
Carlos escutava absorto e enleado a narração de Conrado, como quem ouvia as melodias de um coro angelical.
Jamais havia lido páginas de mais delicioso romance em cujo festivo e risonho desenlace ia ele entrar por
caminhos juncados das flores do amor e da felicidade!
– Bem me adivinhava o coração! – exclamou, com expansivo entusiasmo. Bem me dizia não sei que voz do
céu, que essa tão formosa e interessante menina não podia ter seu berço na senzala da escravidão!... Meu
espírito revoltava-se obstinadamente contra esse fato, apesar de ser confirmado por um modo, que parecia
irrefragável. A imagem daquele anjo de celeste pureza e incomparável formosura parecia afugentar para bem
longe de mim a sinistra e aviltante idéia da escravidão. Oh! é que a verdade, sem que o soubesse penetrava em
meu espírito por caminhos ocultos, e nele derramava essa luz vaga e misteriosa, que se chama pressentimento.
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– Não duvido que assim seja, meu amigo; mas eu infelizmente não sou dotado desse sexto sentido, pois não
tive nem o mais leve pressentimento de que tinha uma filha, e essa condenada ao cativeiro. Deixemo-nos,
porém, de pressentimentos por agora, que já não nos são necessários. Tratemos dos sentimentos. O senhor, que
não é de hoje que conhece Rosaura, não acha que ela tem bastante formosura e merecimento?
– É incomparável. O meu amigo possui em sua filha um tesouro inestimável.
– Estimo muito que faça dela tão elevado conceito. Também eu estou me convencendo que Deus me deu em
minha filha uma jóia, um tesouro de inestimável valor, e é por isso mesmo que ando assustado com medo que
mo roubem.
– Por que diz isso, Sr. Conrado?
– Ora por quê?!... Linda, amável, rica, não faltarão ladrões que ma roubem, e eu ficarei órfão da filha, que há
poucos dias os céus me concederam.
– Tem razão – disse tristemente Carlos. – Mais tarde ou mais cedo tem de casá-la com alguém.
– É verdade; mas permita-me que lhe faça uma pequena pergunta. O senhor, que teve a fortuna de conhecer
Rosaura primeiro que eu, que sou pai dela, e que talvez teve com ela entretenimentos particulares diga-me
francamente, meu amigo, até que ponto chegaram as suas relações?
Carlos ficou por algum tempo perplexo e desapontado com essas perguntas de Conrado. Foi só então que
compreendeu a que alvo atiravam as palavras um pouco vagas e ambíguas do pai de Rosaura. Logo viu que ele
já suspeitava, se é que não estava certo da natureza de seus sentimentos para com a gentil menina.
– Já sabe que a amo – pensou consigo – é mister falar-lhe com toda a franqueza, revelar-lhe tudo.
Carlos, então, reanimando-se e cheio de confiança começou a contar como tinha conhecido Rosaura, e como
tinha concebido por ela a mais ardente e viva paixão. O profundo desgosto, que se apoderou de seu coração ao
saber que Rosaura era cativa, os projetos loucos que concebeu para restituí-la à liberdade, as angústias por que
passou, o profundo desalento em que caiu quando Rosaura desapareceu, constando com todos os caracteres da
certeza que tinha sido levada no comboio por seu senhor, para ser vendida em longes terras, nada disso lhe
ocultou.
259
Também lhe disse que o desespero e dor, que sofreu com este último golpe, tinha afetado profundamente a sua
saúde, fazendo-o definhar rapidamente, e talvez o tivesse levado ao túmulo, se a mais feliz eventualidade não
lhe tivesse feito deparar livre e feliz, e na mais brilhante posição social, aquela que ele supunha ainda na triste
condição de escrava, exilada de sua terra, arrancada a suas afeições, palmilhando a pé essas escabrosas estradas
para ser vendida...
Aqui a voz de Carlos embargou-se pela emoção... não pôde mais continuar.
Conrado sentia também de sua parte emoção extraordinária.
Carlos falava com tal animação, e com tal tom de franqueza e sinceridade, que Conrado não pôde deixar de dar
pleno crédito a suas palavras.
– Enfim, meu amigo – concluiu ele – conheci sua filha, supondo-a livre, porém pobre; amei-a com todas as
forças de minha alma. Vim depois ao conhecimento de que era escrava, e nem assim deixei de adorá-la com o
mesmo afeto puro e respeitoso, que sempre lhe havia consagrado. Por duas vezes me achei junto dela, e a mais
audaciosa homenagem, que meu amor ousou render-lhe, foi beijar-lhe a mão uma ou outra vez. Hoje, que a
vejo livre, rica, feliz e restituída a um tão bom pai, o meu amor é o mesmo, minha esperança, porém, é muito
fraca; bem vejo que a não mereço, e serei o último entre tantos, e tão brilhantes competidores, que sem dúvida
se apresentarão aspirando à sua mão.
Carlos pronunciou estas últimas palavras com tal tom de tristeza e desalento, que Conrado, comovido, se deu
pressa em manifestar-lhe suas verdadeiras intenções.
– Tranqüilize-se, meu caro Carlos, – disse-lhe, com benévolo sorriso – não tem por ora nem rival, nem
concorrente algum, e mesmo que os tivesse, o preferido seria sempre o senhor, não só por minha parte como
também por ela. Melhor do que ninguém o senhor deve saber se ela corresponde ou não ao seu amor. Desde
ontem que os estou observando e estudando a ambos, e agora, em vista das revelações táo explícitas e sinceras,
que acaba de fazer-me, era preciso que eu fosse bem destituído de penetração para não compreender que se
amam mutuamente.
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A estas palavras o estudante, deslumbrado pelos fulgores da mais risonha esperança e mergulhado em eflúvios
de beatitude, esteve a ponto de arrojar-se aos pés de Conrado e beijar-lhe as mãos; mas a própria violência de
sua emoção o acanhava, e naqueles momentos; não sabendo o que devia dizer ou fazer, quedou-se por algum
tempo silencioso, de olhos cravados no chão, e o peito a ofegar.
– O senhor me faz o mais ditoso dos homens; murmurou enfim – não sei como testemunhar-lhe o meu
reconhecimento...
– Nada tem que agradecer-me – atalhou Conrado.
– Concedendo-lhe a mão de Rosaura, não faço mais que dar cumprimento a um enlace, que o destino tinha
preparado de antemão, e ainda mais uma vez não posso deixar de dar graças à Providência, que, restituindo-me
a filha, depara-me ao mesmo tempo para ela um esposo tão digno de minha escolha. Não serei eu que vá
romper violentamente laços tão santos e puros, que a natureza formou, e que o céu deve abençoar. Como há
pouco lhe contei, muito sofri na minha mocidade em razão de ser contrariado em meus afetos, e a oposição
caprichosa de um pai pouco sensato nos tornou para sempre infelizes a mim e a mãe de Rosaura. Eu seria pior
mil vezes do que esse pai, se tendo passado por tão cruel e dolorosa provação, quisesse condenar à mesma sorte
a filha, que o céu preservou-me por meios tão extraordinários.
Carlos nada respondeu; tomou uma das mãos de Conrado, levou-a ao coração, e o abraçou. A emoção
embargava-Ihe a voz, e o peito lhe arfava, afogado em ondas de felicidade. A excessiva ventura, como a
extrema desgraça, quando assim vem inesperada, desorienta e embota o espírito. Conrado compreendeu o
acanhamento, em que aquela extraordinária comoção colocava o mancebo, e julgou conveniente deixá-lo a sós
inebriar-se nos eflúvios de prazer e ventura, que lhe banhavam o coração.
– Já temos conversado muito – disse-lhe. – É quanto basta por agora; permita-me que o deixe a sós por alguns
instantes; esteja à sua vontade.
Conrado retirou-se para o interior da casa, e Carlos ficou sàzinho respirando à larga as auras da esperança e da
felicidade. Ao contrário do dia anterior, começou a examinar minuciosamente todos os objetos, que ali
existiam. Viu o que na véspera não vira, sobre o bufete um pequeno ramalhete de jasmins e violetas, o par de
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luvas e o leque, que Rosaura costumava sempre ali deixar. Respirou com avidez o perfume dos jasmins e
violetas, beijou três vezes o leque que não soube retribuir-lhe tão extremosos carinhos, apertou as luvas ao
peito, e ninguém seria capaz de traduzir o hino de amor, que do fundo do coração entoava à senhora daqueles
objetos e de seus pensamentos.
Notou também que havia na sala um magnífico piano de Erard, e sobre ele aberto o método de Hünten.
– Oh! – exclamou ele – eis aí um bem singular capricho do destino!... Aquela, que queriam votar à escravidão e
condenar a só ouvir na senzala as cantigas do africano ao som da marimba ou do machete, vai, de hoje em
diante, interpretar as mais admiráveis produções da arte moderna.
Nesse seu passeio estático em roda do salão, foi interrompido pelo aparecimento de Conrado e Rosaura,
agradável interrupção, que veio pôr o cúmulo a suas deliciosas emoções. O leitor fará idéia de quão rápidas e
agradáveis correram as horas para os dois amantes. À tarde, depois do jantar, enquanto Rosaura, principiante
ainda, sentada ao piano, estudava as escalas, Conrado tomou de parte seu futuro genro, levou-o para a sacada.
– Como vê, ela é ainda muito principiante – disse-lhe. – É necessário que eu a eduque ainda para poder lha
entregar. Veio para aqui sabendo apenas ler e escrever mal; mas tem tal inteligência, é tão dócil, e entrega-se
ao estudo com tal ardor, que espero em menos de um ano dar-lhe uma noiva digna do senhor, e que poderá
apresentar-se no meio da mais distinta sociedade sem fazê-la corar.
Carlos não se enfadaria se pudesse desde logo desposar a menina assim bisonha, como estava, e essa proposta
para esperar mais um ano não lhe agradou muito.
– Paciência! – murmurou consigo – fui condenado a um ano de purgatório; porém que importa, se depois disso
tenho certa a bem-aventurança?...
Retirou-se ao pôr do sol, e voou para a casa nas asas do amor, da alegria e da esperança.
Entrando em casa, fez tais tolices, brincou, cantou e saltou por tal arte, que Frederico ficou apreensivo,
julgando que suas mágoas o tinham enlouquecido. Mal pensava ele que essas mágoas da noite para o dia se
tinham transformado em júbilos inefáveis.
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Depois, porém, que o seu amigo o pôs ao fato de todo o ocorrido, o coração do bom Frederico também
transbordou de alegria, e apesar do seu sério ficou quase tão louco como o próprio Carlos.
CAPÍTULO XXV
OS ÓBITOS
Voltemos à casa do Major Damásio, pois há muito não temos notícia do que por lá se passa, não sabemos o que
é feito da infeliz e interessante Adelaide, de seu pai, de seu marido, e nem de sua linda e crescente prole.
É-nos forçoso dar agora, ainda que com bastante pesar, uma dupla notícia fúnebre; mas como dizem que há
males que vêm para bem, devemos suportá-la com resignação, respeitando sempre os altos desígnios da
Providência.
Oito dias pouco mais ou menos depois da cena tão venturosa, tão cheia de emoções deliciosas, a que acabamos
de assistir em casa de Conrado, a família do Major Damásio cobria-se de luto. Morais, depois da terrível
conferência, que se passara entre ele, sua esposa, seu sogro, Frei João e Conrado, caíra gravemente enfermo. Os
médicos chamados à sua cabeceira declararam que era um caso de febre perniciosa, que então grassava pela
cidade, e pouca esperança mostraram de poder salvá-lo, e tinham razão.
Os sofrimentos do espírito, se não produzem, ao menos aumentam a intensidade da moléstia existente, e a
tornam incurável, quando as causas morais são desconhecidas ou quando mesmo sendo conhecidas pelo
próprio paciente, não podem ser reveladas, como as de Morais, e, portanto, não podem ser combatidas.
O infeliz Morais tinha dupla razão para desesperar-se e sofrer horrivelmente; uma legítima e natural, outra
procedente de um desvario, de uma paixão insensata; ambas, porém, inconfessáveis, porque era seu dever
recalcá-las bem no fundo do coração.
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Triste situação, em que nem ao menos lhe era permitido o alívio do desabafo! Desesperador infortúnio, cujas
causas não podia revelar sem desonra para a mulher, que tanto amara, ou sem se confessar réu de uma grande
infâmia.
Para uma organização enfraquecida, e para uma alma ainda susceptível de pundonor não era preciso mais. O
desgosto, a vergonha, os remorsos, e tudo isso reunido talvez a um insulto da febre, de que falavam os médicos,
o levaram ao túmulo em poucos dias.
Quanto ao major, sua saúde e sua razão já muito enfraquecidas pelos anos e pelas moléstias não puderam
resistir ao doloroso golpe do dia fatal da conferência. Paralítico e inteiramente desmemoriado jazia no fundo de
uma cama, e nem teve conhecimento da morte de seu genro, a quem poucos dias sobreviveu. Adelaide e
Lucinda foram, durante os longos dias de tão sinistra e dolorosa crise, os dois anjos tutelares, que em tudo
cuidavam e a tudo providenciavam.
Conrado era minuciosamente informado, pela boa e zelosa Lucinda, de tudo que se passava em casa do major.
Depois que este morreu, julgou que era seu dever ir visitá-la e oferecer seus serviços àquela, que tanto amara,
que era mãe de sua filha, viúva e órfã de pai, não tendo senão filhos em tenra idade, e entretanto herdeira de
uma fortuna, que se bem que reduzida pelos esbanjamentos e má administração dos últimos tempos, devia ser
ainda considerável.
Conrado seria levado a dar esse passo somente por seus pensamentos generosos e tão consentâneos ao seu
caráter, ou também embalado pela esperança de fazer ressuscitar o seu passado? Sua filha, cuja existência
ignorava, tinha ressuscitado. Teria ele esperanças de fazer também ressuscitar como esposa á mãe de sua filha?
Eis o que em breve havemos de saber.
Adelaide recebeu a visita de Conrado com tão cordial e sincera gratidão, que ele não hesitou em continuá-las,
encarregando-se com a melhor vontade de todos os negócios de casa.
O amor antigo e recíproco renasceu livre e expansivo como nunca. Os infortúnios de um e outro tinham posto
ao claro as nobres qualidades de ambos.
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A faceirice e galanteios de Adelaide, durante a primavera de sua vida, não eram mais do que resultado da
inexperiência e irreflexão dos verdes anos, alimentadas por uma educação mal dirigida.
Adelaide, graças ao vigor de sua organização, tendo já trinta anos, podia bem mentir, que não tinha ainda vinte
e cinco. Depois que a esperança de um novo amor antigo lhe tinha entrado no coração, havia voltado aos anos
de sua juventude, e seu ar melancólico era temperado por um desses risos meigos e suaves, como um raio de
sol escoando-se por entre as nuvens tênues e vaporosas de uma tarde tépida e serena.
O mesmo acontecia a Conrado.
Era um homem na idade viril, mas que parecia ter dez anos de menos.
Somente um aspecto mais severo e certa beleza máscula o tornavam algum tanto diferente do que antes era.
EPÍLOGO
OS CASAMENTOS
– Ó sinhazinha, escuta uma coisa – disse, um dia.
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Lucinda, à viúva de Morais, cerca de um mês depois dos fúnebres acontecimentos que acabamos de relatar; –
não ficava agora tão bonito mecê casar com nhô Conrado?...
– Que esperança, Lucinda! – respondeu Adelaide, suspirando. – Eu viúva, carregada de filhos!... Demais, bem
sabe, não pude ser-lhe fiel, como ele foi, e... e é ainda....
– E é ainda?... Como é que sinhazinha sabe disso? – atalhou a preta, sorrindo maliciosamente.
– Ora, que pergunta! – disse Adelaide, corando um pouco. – Eu casei-me e ele até hoje é solteiro...
– Deixa dessa cisma; ele bem sabe que sinhazinha, se casou, não foi muito por sua vontade, e foi porque correu
como certo que nhô Conrado tinha morrido.
– Ah! isso é a pura verdade.
– Pois então?... Escuta, sinhazinha, vou lhe contar uma coisa. . .
– O quê? – acudiu Adelaide, com impaciente curiosidade.
– É que nhô Conrado não lhe olha com maus olhos. Paixão antiga é como gameleira; por mais que se corte
sempre fica uma raizinha, que brota de novo.
– É o que te parece, Lucinda. O interesse que mostra por mim pode não ser mais que delicadeza de um coração
generoso e compassivo. Vê-me viúva, já me quis bem, tem dó de mim, e nada mais.
– Não é somente dó, sinhazinha; é mais alguma coisa; quer apostar?
– Deixemos de apostas; mas enfim...
– Mas enfim eu vou ver se o negócio tem jeito.
– Deixa-te disso...
– Deixa por minha conta.
Lucinda saiu imediatamente e voou para casa de Conrado.
– Lucinda – disse Conrado à velha crioula, depois de outras conversas próprias para disfarçar e encher tempo;
os pensamentos de ambos navegavam na mesma direção, mas desejavam encontrar-se e chegar à fala sem
abalroamento. – Lucinda, eu acho que D. Adelaide deve estar em posição bem embaraçosa...
– Oh, nhô Conrado, nem falemos nisso, coitada da sinhá!...
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– Falemos, sim, pois que inconveniente há em falar nisso, se não falamos para fazer mal a ninguém? Pobre
Adelaide! deve estar lutando com bastantes dificuldades! Como há de governar uma casa cheia de tantos e tão
complicados negócios, ela que nenhuma prática tem dessas coisas?... Rica, sem marido, sem pai, moça e
formosa ainda como sempre foi, ou mais ainda, sem mãe, sem irmãos, rodeada de quatro filhinhos em tenra
idade!... Que triste isolamento!...
– É verdade, nhô Conrado; é ela sozinha comigo, pobre negra velha e cansada, as crianças e Deus!...
– Pois eu, da minha parte, Lucinda, teria o maior prazer do mundo em adotar como meus filhos os irmãozinhos
de Rosaura.
Lucinda estremeceu de prazer, ouvindo estas palavras, cujo alcance logo compreendeu, e calou-se.
– Pois é o que te digo – prosseguiu o moço. Entendo que fica muito mal o luto em uma senhora tão moça e tão
formosa. Consentiria ela que eu fosse despojá-la de tão lúgubre vestidura?
– Não sei – respondeu Lucinda, com ar malicioso; – só indo perguntar.
– Pois pergunta-lhe e apressa-te em trazer-me a resposta.
Lucinda nada mais quis saber, e nem esteve por mais conversas; correu direito para a casa.
Dois meses depois desta conversação, uma linda caleça, puxada por duas parelhas de possantes e vistosos
cavalos brancos, conduzia para a igreja catedral dois formosos pares de noivos, que, sentados de fronte um do
outro, iam receber à face do altar.
Quem os visse não era capaz de adivinhar que eram pai e sogra, filha e genro, que assim por modo tão singular
se achavam de vis-à-vis. Um dos pares estava ainda em todo o viço da mocidade, o outro, posto que algum
tanto mais idoso, nem por isso era inferior ao outro em beleza e elegância; por isso mais facilmente se
acreditaria serem irmãos e cunhados.
Mas o leitor já sabe quem são eles.
Conrado, que nenhum desejo nem motivo tinha para adiar seu casamento com Adelaide, achou que era não só
de bom tom, como de bom agouro, celebrar também no mesmo dia, hora e lugar o consórcio de sua filha com o
seu querido Carlos e por isso concedeu-lhe perdão da pena de um ano de purgatório, a que o tinha condenado.
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FIM
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ASSOCIAÇÃO ACERVOS LITERÁRIOS
EM COLABORAÇÃO COM O CELLB/UFOP
Esta publicação contou com o apoio do CNPq
Edição: Leopoldo Comitti
Digitação e informática: Igor Guedes de Carvalho