bernardet, jean-claude. o atrevido provocador

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REVISTA DE CINEMA / 2003 O atrevido provocador Jean-Claude Bernardet entrevistado por Maria do Rosário Caetano

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  • REVISTA DE CINEMA / 2003

    O atrevido provocador

    Jean-Claude Bernardet entrevistado por Maria do Rosrio Caetano

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    Jean-Claude Bernardet o francs mais brasileiro que

    conhecemos. H 43 anos estuda e faz cinema brasileiro, como

    jornalista, professor, escritor, roteirista e ator. Seu forte mesmo

    so o ensino e o estudo crtico do nosso cinema, sua grande

    paixo, qual dedicou a maior parte de sua vida. Como jornalista,

    escreveu nos principais jornais e revistas do pas. Em 1965,

    ajudou a fundar a UNB e, em 1968, se transferiu para a USP,

    onde se tornou um dos principais nomes do ensino de cinema no

    pas. Nos anos 70, sofreu perseguio da censura e chegou

    assinar seus artigos com o nome de Carlos Murao.

    Alm do jornalismo e do ensino de cinema, Jean-Claude

    sempre teve uma queda pelo texto, pelo roteiro principalmente, e

    chegou ainda nos anos 60 a escrever dois que nunca foram

    filmados, SSS contra a Jovem Guarda e A Hora dos

    Ruminantes uma adaptao do livro de J. J. Veiga, que at hoje

    ningum conseguiu filmar, apesar dos vrios projetos. O filme

    seria dirigido por Lus Srgio Person. Com Joo Batista de

    Andrade viu seus primeiros textos sendo filmados, Gamal e

    Paulicia Fantstica, alm do experimental filme de Joo Silvrio

    Trevisan, Orgia, ou o Homem que Deu Cria. Em 1996, voltou a

    se dedicar aos roteiros e escreveu para Tata Amaral Um Cu de

    Estrelas e, em 1999, Atravs da Janela. Atualmente lidera um

    grupo de roteiristas, Nudrama (Ncleo de Dramaturgia), da USP,

    e, junto ao professor Roberto Moreira, procura aplicar ao cinema a

    sua parte mais literria e mais criativa.

    Como crtico, apresenta-se, sempre, como provocador

    ousado, atrevido at. Recentemente, nesta Revista de CINEMA,

    assinou artigo nitroglicerina pura. Comparou o cinema brasileiro

    ao argentino, dando vantagem a este. Muitos ficaram indignados.

    Era isto que ele queria. Basta conferir no irnico fecho de sua

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    resposta-avaliao de Cidade de Deus, filme de Fernando

    Meirelles. Nesta entrevista, Jean-Claude Bernardet fala de tudo,

    sem papas na lngua, da sua tumultuada relao com Glauber

    Rocha s respostas sinceras sobre os filmes Cidade de Deus e

    Carandiru, afirmando que o primeiro foi enfocado

    polemicamente pela crtica que se baseia no pensamento dos anos

    60 e o segundo por erros no roteiro e personagens.

    Dirigiu dois ensaios poticos de mdia-metragem, So

    Paulo, Sinfonia e Cacofonia (que forma um longa com So Paulo,

    Cinemacidade, de Aloysio Raulino) e Sobre Anos 60. Agora

    prepara, com Eugnio Puppo, o longa documental Amplaviso de

    So Paulo. A matria-prima da dupla ser o acervo de cinejornais

    do controvertido Primo Carbonari.

    Ms que vem, Jean-Claude vai lanar a segunda edio

    revista e ampliada de um de seus livros mais famosos: Cineastas

    e Imagens do Povo. A primeira edio saiu em 1985 e causou

    forte impacto entre os jovens documentaristas brasileiros, em

    especial a turma da ECA-USP. , porm, na rea da reflexo

    esttico-histrica que a obra deste francs, nascido por acaso em

    Charleroi, na Blgica (02 de agosto de 1936), se avoluma e ganha

    significado especial. Ele autor de mais de uma dezena de livros.

    Alguns marcaram indelevelmente a histria do cinema brasileiro.

    Este o caso de Brasil em Tempo de Cinema, bblia para quem

    quer conhecer e refletir sobre a produo cinemanovista. Outro

    grande momento da produo de Jean-Claude O Nacional e o

    Popular na Cultura Brasileira Cinema/1983 (escrito em

    parceria com Maria Rita Galvo e que merece urgente reedio).

    Outro de seus livros, este muito polmico, O Vo dos Anjos:

    Estudo sobre o Processo de Criao na Obra de Bressane e

    Sganzerla (1992). H tambm os memorialsticos Aquele Rapaz

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    e A Doena, uma Experincia, e os ficcionais Os Histricos e

    Cus Derretidos (escritos em parceria com Teixeira Coelho). H

    quem veja em Historiografia Clssica do Cinema Brasileiro

    (Annablume/95), seu livro mais importante. Difcil realizar tal

    escolha.

    Revista de CINEMA Voc lana, em breve, pela Companhia das Letras, edio revista e ampliada de

    Cineastas e Imagens do Povo, livro de 1985. O que esta edio traz de novo?

    Jean-Claude Bernardet Ela traz, na ntegra, o material de

    1985, com acrscimos e apndices. E mais trs textos inditos.

    Um deles analisa Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo

    Coutinho. Falo tambm de Os Anos JK, de Slvio Tendler, e

    Braslia segundo Feldman, de Vladimir Carvalho. H, ainda, um

    texto sobre os curtas Vida de Cachorro, de Thiago Villas-Boas, e

    Margem da Imagem, de Evaldo Mocarzel, e outro sobre filmes

    que tm os operrios como tema. Trabalhei material colhido pelo

    Idhart (Instituto de Documentao Artstica da Cidade de So

    Paulo, hoje Diviso de Pesquisa do CCSP), que promoveu

    seminrio sobre o assunto, nos anos 80.

    Revista de CINEMA Voc terminou a primeira edio de Imagens do Povo avisando que um grande

    documentrio, Cabra Marcado para Morrer, estava chegando ao pblico. Mas que o deixaria para outra

    oportunidade. Desta vez, outro grande documentrio, Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, est no circuito de festivais. Voc o analisa?

    Bernardet No, e a razo a mesma que me levou a no

    analisar Cabra Marcado, em 1984. Adoro Prisioneiro, acho que

    o filme um acontecimento nacional e internacional, mas no

    quis analis-lo s pressas. Vou v-lo e rev-lo, dezenas de vezes,

    antes de escrever a anlise que ele merece. Os originais do livro j

    estavam na editora e Prisioneiro fica para a terceira edio.

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    Revista de CINEMA Mas Prisioneiro tem tudo a ver com a espinha dorsal de Cineastas e Imagens do Povo. Um dos pontos bsicos do livro a experincia de Aloysio Raulino que, no curta Jardim Nova

    Bahia, colocou a cmera na mo de um lavador de carros, para que filmasse seu cotidiano. No filme de

    Sacramento, Raulino atua como fotgrafo e, muitas vezes, a cmera colocada na mo de vrios presos,

    para que documentem o inferno no Carandiru.

    Bernardet Raulino foi, realmente, o primeiro cineasta

    brasileiro a entregar a cmera a seu personagem. No Prisioneiro,

    esta experincia pde ser radicalizada porque hoje dispomos de

    novos e levssimos equipamentos, cuja manipulao bem mais

    simples. Quando Aloysio filmou Jardim Nova Bahia (1971) havia

    limitao oriunda do peso dos equipamentos, alm de

    manipulao complexa. Na anlise que pretendo fazer de

    Prisioneiro da Grade de Ferro, pretendo mostrar que as novas

    tecnologias, em si, no geram novas atitudes, novas estticas.

    necessrio saber como elas sero encaminhadas, que projetos

    estticos os realizadores tm para explorar as novas possibilidades

    agora oferecidas. No caso do filme do Sacramento, ele tinha, como

    ponto de partida, um projeto inovador, ousado.

    Revista de CINEMA A crtica brasileira dividiu-se historicamente, entre as questes formais e o apelo

    temtico, ou seja, na insero social e poltica do filme em seu tempo e espao. Voc vem de tradio ligada aos anos 60, que valorizava muito as vertentes polticas e sociais. Como voc se coloca, hoje, como crtico e ensasta?

    Bernardet Passei pelos dois nveis de interesse. Nos anos

    60, escrevi textos no jornal ltima Hora, muito voltados para a

    temtica dos filmes. Mas, ainda nos anos 60, mudei bastante e me

    transformei num hiperformalista. O que precisamos interrogar a

    materialidade, a concretude do filme. Foi isso que tentei fazer em

    Cineastas e Imagens do Povo. Gosto de filmes que intervenham

    na realidade social do pas, desde que materializem suas intenes

    na prpria linguagem, no seu projeto esttico. No me interessam

    filmes cujas posturas ideolgicas dizem aquilo que as pessoas

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    querem ouvir. Maria Rita Galvo, num debate sobre Cineastas e

    Imagens do Povo, disse algo que me deixou satisfeito. Para ela,

    neste livro a proposta terica est na constatao de que contedo

    e forma no se separam. E isso que vemos em Prisioneiro da

    Grade de Ferro. No h separao entre o contedo e a postura

    do realizador. Quando Sacramento passa a cmera pela fresta da

    porta de ferro da cela e a entrega aos presos que ajudam a fazer o

    filme, sabemos que o que ele pensa est na materialidade do filme.

    Outro texto meu que acho que representa bem esta minha postura

    como crtico o que dediquei recentemente a Bressane (Brs

    Cubas: Reflexes sobre Dois Planos, Revista de CINEMA/fevereiro

    de 2003). Neste ensaio, busquei o que os franceses chamam de

    dispositivo que revela a postura do realizador.

    Revista de CINEMA Do Carandiru de Sacramento partimos para o Carandiru de Hector Babenco. O

    que voc achou deste filme, visto por mais de quatro milhes e meio de espectadores?

    Bernardet Carandiru, de Babenco, tem problemas

    srios. A nvel de linguagem, traz problemas bastante

    surpreendentes. Um deles so as passagens do tempo presente

    para os flashbacks. D-se, na narrativa, algo to elementar que

    ficamos at saudosos dos anos 50, tempos da Vera Cruz. No plano

    do roteiro, o problema mais grave o personagem do mdico. Ns

    compreendemos que o personagem existe no livro, que aquele

    mdico, o narrador, atuou na cadeia, atendendo aos presos. Mas,

    ao analisar sua construo dramtica no filme, vemos que ele se

    reduz a mero anteparo, um mediador entre o narrador/realizador

    do filme e o objeto real, que so os presos, a vida na cadeia, etc. A

    uma pergunta nos ocorre: por que no ir direto ao assunto? Eu

    tenho a resposta. Ela est em entrevista de Drauzio Varela

    revista Cult (nmero 59). Drauzio diz que o sucesso do livro vem

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    do fato de ele no usar linguagem de preso. Por isto, o leitor se

    sente seguro, ele no conduzido ao inferno interior da

    penitenciria. Drauzio, o narrador, faz transio suave para a

    classe mdia do que ele viu l dentro do Carandiru. Ao ler o livro

    (ou ver o filme) esta classe mdia os toma como o inferno do outro.

    J Sacramento assume outra postura e mergulha no inferno. O

    mdico-narrador do Babenco no propriamente um narrador. H

    algo mal resolvido ali. E disto decorre outro problema: o Luiz

    Carlos Vasconcelos um timo ator, mas coube a ele personagem

    ininterpretvel. Por isto, o ator nunca sabe onde est seu

    personagem. Obviamente ele no o alter-ego do diretor do filme,

    mas sim um escudo, um biombo. Ao mesmo tempo, ele no

    participa da ao. Fiz papel semelhante ao de Vasconcelos no

    filme A Cor dos Pssaros, de Herbert Brdl, sobre meninos de

    rua, rodado em Manaus. Meu personagem era um viajante, que

    fazia a ponte entre o diretor e os meninos, que percebia a ao dos

    meninos. Por que o diretor no ia direto aos meninos? Por que

    esta intermediao? No havia ao para meu personagem.

    Revista de CINEMA E outros filmes de temtica social, como Cidade de Deus, de Fernando

    Meirelles, e O Invasor, de Beto Brant? Como voc os v?

    Bernardet Cidade de Deus diferente de Carandiru.

    um filme realmente poltico, no por suas intenes, no pela

    mensagem que ele trouxe, mas sim porque teve atuao real na

    sociedade brasileira. Ele bem diferente de um certo pensamento

    comum no cinema brasileiro dos anos 60. Para este pensamento,

    o poltico era inerente ao filme por sua temtica e pela postura

    assumida pelo realizador, narrador ou roteirista. Cronicamente

    Invivel (Srgio Bianchi, 2000), em menor escala, causou

    fenmeno semelhante ao de Cidade de Deus. A gente percebe

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    estes dois filmes como organismos vivos. Cidade de Deus

    conseguiu tal potncia por ser um filme bem realizado. Parte da

    crtica tachou-o de simples demais. Fez muita cobrana. Esta

    simplicidade, talvez, tenha sido necessria para provocar as

    reaes que provocou. Me lembro de conversas minhas com Paulo

    Emlio sobre alguns paradoxos dele. Eu dizia que muitas das

    idias dele eram simplificadas, que faltavam nuances,

    aprofundamentos. Sabe o que ele me respondia? Que, muitas

    vezes seja em idias ditas ou escritas preciso simplificar para

    que tais idias abram o caminho necessrio, provoquem. Se voc

    comear a nuanar demais, a colocar muitos fatores e

    complicaes, voc ter uma audincia intelectual, restrita. H

    idias que precisam causar impacto, instigar.

    Revista de CINEMA E O Invasor?

    Bernardet Concordo com artigo do Eduardo Valente (no

    site Contracampo), no qual ele diz que o personagem do invasor

    (Paulo Miklos) um invasor na prpria dramaturgia do filme. Num

    primeiro momento, o filme parece ser sobre dois caras de classe

    mdia (os engenheiros vividos por Marco Ricca e Alexandre

    Borges) que ocupavam os principais papis. S que o invasor

    chega da periferia e invade a narrativa. D-se ento uma

    construo belssima, em que o problema social no apenas o

    tema, o referente do filme, mas a prpria estrutura dramtica.

    Revista de CINEMA Voc realizou dois mdias (So Paulo, Sinfonia e Cacofonia e Sobre Anos 60). Agora est preparando (com Eugnio Puppo) Amplaviso de So Paulo, a partir do acervo de Primo Carbonari. Trata-se de mais um ensaio potico com imagens de arquivo?

    Bernardet Este novo filme ainda est em processo. E

    como se trata de uma parceria, muito ainda est por se definir.

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    Alm do mais, no sabemos o nvel de autonomia que teremos.

    Mas claro que a sala de montagem ser o templo deste filme.

    nela que ele se tornar realidade. nela que trabalharemos

    nossas idias, associaes, sugestes, msicas, pontos e

    contrapontos. Como este tipo de filme no trabalha com roteiro

    prvio, tudo pode acontecer na sala de montagem.

    Revista de CINEMA Em Sobre Anos 60, voc d grande destaque participao de Odete Lara no filme Cncer (Glauber (1968/72). Por que esta sequncia lhe to cara?

    Bernardet Por ser realmente extraordinria. Esta

    sequncia me surgiu como essencial (para a narrativa de Sobre

    Anos 60), quando quis que as atrizes tivessem destaque no filme.

    Na minha avaliao, o cinema brasileiro dos anos 60 muito

    masculino. H mulheres em Deus e o Diabo, O Desafio e

    outros ttulos cinemanovistas, mas a problemtica bsica destes

    filmes masculina. Eu quis, ento, apresentar todas as grandes

    atrizes da dcada de 60, dar conta de Leila Diniz e das mudanas

    ideolgicas e comportamentais que se deram ento. Mas a nfase

    da participao da Odete em Cncer me pareceu a mais

    significativa. Vamos ao comeo do plano do filme do Glauber:

    Odete Lara est direita da tela e, ao fundo, entediado, vemos

    Hugo Carvana. Ela comea a falar, improvisando os prprios

    dilogos. E o que aparece (e ela busca nas prprias memrias

    afetivas) to pessoal, ntimo e revelador, que o foco, que

    permanecia em Carvana, na metade do plano, desloca-se dele para

    ela. Ento, o que vemos ali: Odete, por sua autenticidade,

    sinceridade e despojamento, conquista o foco. Mostrar tal

    processo de conquista me pareceu mais importante que dizer esta

    mulher livre!. Como sou um formalista, vi que aquele pequeno

    drama se d, de forma extraordinria, na prpria construo da

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    imagem.

    Revista de CINEMA Sua correspondncia com Glauber muito rica. Vocs viveram frtil troca de

    idias e brigaram muito. Pode sair um livro sobre esta rica e tumultuada convivncia?

    Bernardet De forma alguma. No tenho nenhum projeto

    de livro sobre Glauber. Num momento difcil de nosso

    relacionamento, mandei uma carta para ele. A Raquel Gerber foi a

    portadora. Eu no sabia nem onde ele estava, nem se a recebeu.

    Sei que a carta era longa e manuscrita. Naquela poca diziam que

    ramos os irmos inimigos. A questo que estvamos muito

    prximos, e isto gerava muita agressividade. Maurcio Gomes Leite

    me contou que perguntou a Glauber, num jantar na casa de Sylvie

    Pierre (crtica francesa), por que ele me atacava tanto se eu no

    era contra o cinema brasileiro. Sabe o que ele respondeu: se eu

    no atacar o Jean-Claude, a quem vou atacar? Sabe que antes de

    ele levar Idade da Terra ao Festival de Veneza (1980), ele passou

    cinco horas dialogando comigo, alis, monologando, pois no me

    deixava falar? Ele dizia que eu era o candidato dele para ocupar a

    DONAC (Diretoria de Operaes No-Comerciais, da Embrafilme),

    enquanto o (Carlos Augusto) Calil iria para a direo-geral da

    empresa. Eu tentava dizer que no era candidato a nada, que no

    tinha vocao para cargos burocrticos. Mesmo assim, ele me deu

    (deciso unilateral dele) prazo para pensar. Foi nosso ltimo

    encontro.

    Revista de CINEMA Sua histria pessoal muito curiosa. Sua famlia viveu na Frana ocupada pelos

    nazistas. Que lembranas guarda deste perodo?

    Bernardet Nasci em 1936. Era criana, portanto, quando

    a Frana foi ocupada pelos nazistas. Meu pai recebeu, em 1940, a

    visita de comitiva de militares alemes pedindo que colocasse a

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    produo da fbrica dele (de dispositivos de medir presso em

    turbinas) a servio dos nazistas. Meu pai ficou num impasse. Se

    recusasse, seria morto. Se aceitasse, seria colaboracionista. Ele

    pediu cinco dias para pensar e desapareceu. Foi para a

    Resistncia. Se o vi algumas vezes foi em furtivas madrugadas.

    Fui morar com meus avs. E me lembro das bombas que caiam

    perto da nossa casa ou da fbrica. Quando a guerra acabou, meu

    pai (Andr Bernardet) regressou, divorciou-se de minha me e

    casou-se com uma cantora, Olga Dalbanne. Eu e meu irmo

    (Jean-Pierre) perdemos o contato com nossa me e passamos a

    viver com nossa madrasta e meu pai. Nos processos do ps-

    guerra, montados para julgar colaboracionistas, minha me

    acusou meu pai, que dirigia um dos tribunais, de ser ele mesmo

    um colaboracionista. O que no era verdade. Muito pelo contrrio.

    Revista de CINEMA E por que vocs vieram para o Brasil?

    Bernardet Porque nossa vida ficou muito difcil. A Frana,

    no ps-guerra, passou por imensas dificuldades. Em 1948, meu

    pai veio, sozinho, ao Brasil, ver se valia a pena. Nos buscou em

    1949 e fomos morar num sobrado na Vila Mariana. Mas no deu,

    pois o dinheiro era muito curto. Fomos morar em Socorro, pra l

    de Santo Amaro. Era muito longe e eu e meu irmo estudvamos

    no Liceu Pasteur. S sabamos algumas palavras de portugus: o

    necessrio para comprar po e caf na padaria. Isto quando havia

    dinheiro. Cheguei a pedir comida em restaurantes com minha

    madrasta. Meu sonho era voltar para a Frana. Mas no tnhamos

    dinheiro para tal. E fomos perdendo os vnculos com os parentes

    franceses.

    Revista de CINEMA E quando que voc percebeu que tinha que se adaptar ao novo pas, aprender a

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    lngua?

    Bernardet Cinco anos depois, j com 18 ou 19 anos. E

    decidi que ficaria, mas no mais dentro da colnia francesa.

    Afinal, l eu no estava nem na Frana, nem no Brasil. Fugi de

    casa, tive muitas brigas com meu pai, mas acabei voltando. Ele

    me dizia que at 21 anos a lei lhe dava poder sobre mim. Que ao

    atingir os 21 eu estaria livre para fazer o que bem entendesse.

    Comecei a trabalhar, primeiro na Difel Editora, depois na Livraria

    Francesa. Nem terminei o curso no Liceu Pasteur. Fiz um curso de

    Desenho, no Senac, e este foi o nico diploma que tive comigo.

    Mergulhei de cabea no Brasil.

    Revista de CINEMA De seus mltiplos estudos sobre o cinema brasileiro, quais julga os mais consistentes?

    Bernardet Gosto muito de Cineastas e Imagens do Povo.

    Acho meu trabalho mais consistente. Iniciei os estudos que

    embasam o livro em Paris, tendo Christian Metz como orientador.

    Gosto, tambm, da primeira parte de Historiografia Clssica do

    Cinema Brasileiro (1995), mas a segunda parte, embora

    interessante, necessitaria ser reescrita. Gosto tambm da primeira

    parte de Cinema de Autor (1992). E, repito, gosto muito do

    estudo que fiz sobre um filme de Jlio Bressane (Brs Cubas

    Estudo sobre Dois Planos) e que saiu na Revista de CINEMA

    (nmero 34).

    Revista de CINEMA Voc atuou em vrios filmes como ator. Gostaria que falasse desta vertente do seu

    trabalho.

    Bernardet Fiz uma ponta, nada de especial, em Ladres

    de Cinema. Conhecia Coni e estava morando no Rio. Eu sempre

    me preocupei com a formao do crtico cinematogrfico no Brasil.

  • 13

    Escrevi alguns artigos sobre isso. E percebi que era importante

    para um crtico ir tambm para o lado de l. Ou seja, entrar no

    processo de realizao de um filme. Conhecer o outro lado. Fui

    assistente de montagem em filme de Khouri, escrevi o roteiro de

    Braslia, Contradies de uma Cidade, com Joaquim Pedro.

    Alis, neste filme, fui at diretor de produo. Sabe aquilo de

    arrumar dinheiro, arranjar hotel, carro para a produo? Eu odeio

    isso, mas fiz. Escrevi roteiros com Person, trabalhei muito com

    Joo Batista. Meu primeiro trabalho como ator se deu em

    Anuska (1968), do Francisco Ramalho. Eu tremia. Nunca realizei

    estes trabalhos pensando em ser ator. Foi meu lado pragmtico

    que me levou para a frente das cmaras. Em P. S. Post-

    Scriptum, do Romain Lesage (1980), fui marcado de forma

    hiperprecisa. Numa cena, na cama, eu viraria para a atriz, com

    um telefone na mo. O Lesage colocou fita crepe na cama, fez

    marcaes draconianas. Fiquei bloqueado. Ele dizia que se eu no

    respeitasse tais marcaes, sairia do quadro e do foco. Foi um

    duro aprendizado. Em Gamal, Delrio do Sexo (Joo Batista,

    1969), fui assistente de montagem. Me lembro de cenas de Joana

    Fomm, em planos muito longos. Dentro de uma mesma tomada,

    ela estava bem ou no. Tirei trechos de tal sequncia e montei em

    outra. Este tipo de experincia voc no aprende nos livros.

    Revista de CINEMA Arthur Autran conta, no livro que escreveu sobre Alex Viany (Perspectiva/2003), que Nelson Pereira passou quase 20 anos sem falar com Alex, por causa da crtica que este fizera de Rio

    Zona Norte. Voc tambm teve problemas com realizadores que no gostaram de suas avaliaes?

    Bernardet Muitos. Veja o caso de Viramundo. Vi o filme

    umas 100 vezes, estudei-o minuciosamente e o resultado do meu

    estudo est em Cineastas e Imagens do Povo. O (Geraldo) Sarno

    ficou chateado com o que leu. Ficou muito tempo sem falar

    comigo. Certo dia, pedi ao (Thomaz) Farkas, produtor do filme,

  • 14

    cpia para exibir numa mostra de documentrios. Ele disse que ia

    falar com Sarno. Falou e Sarno perguntou por que eu queria

    mostrar o filme, se no gostava dele. Como no gosto de

    Viramundo? Por que eu assistiria a um filme cem vezes, ou o

    estudaria plano a plano, se no gostasse dele? O mesmo se deu

    com Passe Livre (1974), do Oswaldo Caldeira. Gostei tanto do

    filme que comecei a circular com ele, exibindo-o em vrias cidades

    do interior de So Paulo (Assis, Presidente Prudente, etc).

    Chegamos a mostr-lo a operrios da Volkswagen. O debate foi

    muito rico. Um dia, uma amiga minha, Yuma Santana, passou o

    filme no vestirio, para jogadores de futebol. E me contou as

    reaes. Os operrios da Volks no se sensibilizaram com a

    postura do jogador Afonsinho. Afinal, para eles, o risco que o

    atleta corria ao desafiar os cartolas era pequeno, pois ele tinha

    alternativa profissional, era mdico. E o chamavam de branquelo

    (a maioria dos operrios era mulata ou negra). J esta questo

    no aparecia no debate com os universitrios, que se encantavam

    com a posio do Afonsinho. Caldeira passou a me ter como

    inimigo, depois de ler minhas crticas ao filme. Me colocou na lista

    dos que no gostavam de Passe Livre. Se eu no gostasse do

    filme, como que eu ia lev-lo para sesses em diversas cidades?

    E projetar filmes na poca da ditadura militar no era fcil. Alm

    do mais, a questo no gostar ou no gostar. H ingrediente de

    narcisismo ou fragilidade neste processo. Os realizadores se

    defendem no contra a crtica, mas contra a discusso, o debate.