bento domingues ano da fé_um decretopara

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Ano da fé. Um decreto, para quê? (1) 1. Enquanto não chegar o fim do mundo, depois de um ano, há sempre outro. Para não o enfren- tar como uma aposta no vazio, é corrente consagrá-lo a um desejo, em forma de projecto. Diz-se que, perante a crise que atravessa o país, na conjuntura internacional em que temos de nos mover, é difícil configurar um caminho, com previsões que não se confundam com adivinhas ao sabor dos palpites de optimis- tas ou pessimistas e segundo os interesses que cada um tenta defender. A verdade é que uns já decretaram que Portugal não tem solução, nem dentro nem fora do Euro e que o melhor é a liquidação total, a preço de saldo. A própria ideia de país independente seria uma ficção e neste tempo, comandado pela transformação e globalização dos negócios, é uma crença ridícula. Outros continuam a falar da urgência de uma política patriótica, quando a pátria de cada um é aquela para onde se consegue emigrar. Seja como for, os velhos vão continuar a morrer e se os nascimentos continuarem a diminuir, a sorte do país é previsível. Não será preciso dar-se ao trabalho de “repensar Portugal”, como desejava o Pe. Manuel Antunes. Diz-se isto como se poderia dizer outra coisa qualquer. Quando tudo passou para a ordem do inevitável, já nada tem sentido. O próprio sofrimento das vítimas da história da crise não conta para nada. A incapacidade de questionar, em profundidade, esta versão trituradora da máquina capitalista é a vergonha do nosso tempo. O Papa relembrou-o, muito recentemente, mas os economistas, os gestores, os banqueiros, os ministros que se confessam cristãos preferem espiritualidades de chá de tília religiosa, a ouvir o clamor dos pobres e dos empobrecidos e questionar teorias que mostram a sua inadequação, pelos frutos que produzem. As teorias são para os seres humanos, não estes para teorias, onde as pessoas estão sempre a mais. 2. As interrogações são inevitáveis: tanta ciência económica e financeira, ensinada nas Universidades Católicas, não será capaz de imaginar contributos para alternativas concretas, técnica e politicamente viáveis? A Banca é para salvar as pessoas ou serão estas, as exploradas, que devem salvar os interesses da Banca, mediante decisões governamentais? Não será possível desconstruir configurações políticas que, nos seus efeitos, resultam em grandes negócios para uns e em castigo para a maioria da população? Estaremos numa civilização esgotada a transitar de continente para continente, enquanto sistema de exploração, sem tentar curar as suas raízes? Os chamados regimes democráticos fazem tudo para não se distinguirem das ditaduras. O fascínio pela China é interessante. Com isto tudo, não creio que se possam extrair dos Evangelhos ciências ou políticas confessionais, em concorrência com ciências e políticas laicas, nem aceito que se diga que quanta mais ciências menos religião. Há grandes cientistas e políticos crentes, agnósticos e ateus. Francisco José Ayala, um dos maiores representantes do neodarwinismo, tem uma posição que me parece muito sensata: “Não vejo razão para pensar que as descobertas científicas sejam incompatíveis com a fé religiosa. A ciência procura descobrir e explicar os processos da natureza: o movimento dos planetas, a composição da matéria e do espaço, a origem e a função dos organismos. A religião trata do significado e propósito do universo e da vida, das relações apropriadas entre os humanos e o seu Criador, dos valores morais que inspiram e guiam a vida humana. A ciência nada tem a dizer sobre estas matérias, nem é assunto da religião dar explicações científicas, para os fenómenos que têm lugar na natureza.” 3. Daqui não se pode concluir que os cristãos possam ser indiferentes ao que se passa na sociedade. Não dispõem de uma mensagem, descida do céu, para os levar para o céu, sem se importarem com o que se passa na terra. Se a Bíblia fosse, apenas, revelação divina escrita por autores inspirados, não teria de dar contas de nada nem a ninguém, era puro ditado sobrenatural. Esta é a posição do fundamentalismo mais ignorante. Nessa perspectiva, a Bíblia poderia ser decorada, mas nunca estudada. Não é esse o pensamento católico actual. O documento A Interpretação da Bíblia na Igreja (1993) liberta a investigação de qualquer constrangimento. A Bíblia não remete para si mesma: aponta para o mistério de Deus e para o mistério do mundo. Deus não estava calado antes da Bíblia, nem emudeceu depois do último parágrafo da Sagrada Escritura. É preciso aprender a escutá- lo na experiência de cada um, nos acontecimentos da sociedade e em todas as tentativas para decifrar o sentido da vida. Logo após o Vaticano II, E. Shillebeeckx, para lhe ser fiel, desenvolveu a perspectiva do mundo como “lugar teológico”: a história humana, em todas as suas manifestações, é o espaço e o tempo da contínua revelação de Deus, acolhida ou traída, a decifrar em cada conjuntura cultural. O Ano da Fé não foi decretado para dizer que a Igreja tem a resposta pronta para tudo. É porque a não tem que, na humildade, tem de partir para a escuta de todos os mundos. Quais serão esses mundos? Escreve ao domingo Os chamados regimes democráticos fazem tudo para não se distinguirem das ditaduras Frei Bento Domingues O.P.

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Textos de Bento Domingues no "Público" de 13|20|27 de janeiro de 2013: "Ano da fé. Um decreto, para quê?"

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Page 1: Bento domingues ano da fé_um decretopara

PÚBLICO, DOM 13 JAN 2013 | 53

Ano da fé. Um decreto, para quê? (1)

1. Enquanto não chegar o fi m do

mundo, depois de um ano, há

sempre outro. Para não o enfren-

tar como uma aposta no vazio, é

corrente consagrá-lo a um desejo,

em forma de projecto. Diz-se que,

perante a crise que atravessa o

país, na conjuntura internacional

em que temos de nos mover, é

difícil confi gurar um caminho,

com previsões que não se confundam com

adivinhas ao sabor dos palpites de optimis-

tas ou pessimistas e segundo os interesses

que cada um tenta defender.

A verdade é que uns já decretaram que

Portugal não tem solução, nem dentro nem

fora do Euro e que o melhor é a liquidação

total, a preço de saldo. A própria ideia de

país independente seria uma fi cção e neste

tempo, comandado pela transformação e

globalização dos negócios, é uma crença

ridícula. Outros continuam a falar da

urgência de uma política patriótica, quando

a pátria de cada um é aquela para onde se

consegue emigrar. Seja como for, os velhos

vão continuar a morrer e se os nascimentos

continuarem a diminuir, a sorte do país

é previsível. Não será preciso dar-se ao

trabalho de “repensar Portugal”, como

desejava o Pe. Manuel Antunes.

Diz-se isto como se poderia dizer outra

coisa qualquer. Quando tudo passou para a

ordem do inevitável, já nada tem sentido. O

próprio sofrimento das vítimas da história

da crise não conta para nada.

A incapacidade de questionar, em

profundidade, esta versão trituradora

da máquina capitalista é a vergonha do

nosso tempo. O Papa relembrou-o, muito

recentemente, mas os economistas, os

gestores, os banqueiros, os ministros

que se confessam cristãos preferem

espiritualidades de chá de tília religiosa,

a ouvir o clamor dos pobres e dos

empobrecidos e questionar teorias que

mostram a sua inadequação, pelos frutos

que produzem. As teorias são para os seres

humanos, não estes para teorias, onde as

pessoas estão sempre a mais.

2. As interrogações são inevitáveis: tanta

ciência económica e fi nanceira, ensinada

nas Universidades Católicas, não será capaz

de imaginar contributos para alternativas

concretas, técnica e politicamente viáveis?

A Banca é para salvar as pessoas ou serão

estas, as exploradas, que devem salvar os

interesses da Banca, mediante decisões

governamentais? Não será possível

desconstruir confi gurações políticas que,

nos seus efeitos, resultam em grandes

negócios para uns e em castigo para a

maioria da população? Estaremos numa

civilização esgotada a transitar de continente

para continente, enquanto sistema de

exploração, sem tentar curar as suas raízes?

Os chamados regimes democráticos fazem

tudo para não se distinguirem das ditaduras.

O fascínio pela China é interessante.

Com isto tudo, não creio que se possam

extrair dos Evangelhos ciências ou políticas

confessionais, em concorrência com

ciências e políticas laicas, nem aceito que

se diga que quanta mais ciências menos

religião. Há grandes cientistas e políticos

crentes, agnósticos e ateus.

Francisco José Ayala, um dos maiores

representantes do neodarwinismo,

tem uma posição que me parece muito

sensata: “Não vejo razão para pensar

que as descobertas científi cas sejam

incompatíveis com a fé religiosa. A ciência

procura descobrir e explicar os processos

da natureza: o movimento dos planetas,

a composição da matéria e do espaço,

a origem e a função dos organismos. A

religião trata do signifi cado e propósito do

universo e da vida, das relações apropriadas

entre os humanos e o seu Criador, dos

valores morais que inspiram e guiam a

vida humana. A ciência nada tem a dizer

sobre estas matérias, nem é assunto da

religião dar explicações científi cas, para os

fenómenos que têm lugar na natureza.”

3. Daqui não se pode concluir que os

cristãos possam ser indiferentes ao que

se passa na sociedade. Não dispõem de

uma mensagem, descida do céu, para

os levar para o céu, sem se importarem

com o que se passa na terra. Se a Bíblia

fosse, apenas, revelação divina escrita

por autores inspirados, não teria de dar

contas de nada nem a ninguém, era puro

ditado sobrenatural. Esta é a posição

do fundamentalismo mais ignorante.

Nessa perspectiva, a Bíblia poderia ser

decorada, mas nunca estudada. Não é esse o

pensamento católico

actual. O documento

A Interpretação da

Bíblia na Igreja (1993)

liberta a investigação

de qualquer

constrangimento.

A Bíblia não remete

para si mesma:

aponta para o

mistério de Deus

e para o mistério

do mundo. Deus

não estava calado

antes da Bíblia,

nem emudeceu

depois do último

parágrafo da Sagrada

Escritura. É preciso

aprender a escutá-

lo na experiência

de cada um, nos

acontecimentos da sociedade e em todas as

tentativas para decifrar o sentido da vida.

Logo após o Vaticano II, E. Shillebeeckx,

para lhe ser fi el, desenvolveu a perspectiva

do mundo como “lugar teológico”: a história

humana, em todas as suas manifestações, é

o espaço e o tempo da contínua revelação de

Deus, acolhida ou traída, a decifrar em cada

conjuntura cultural.

O Ano da Fé não foi decretado para dizer

que a Igreja tem a resposta pronta para tudo.

É porque a não tem que, na humildade, tem

de partir para a escuta de todos os mundos.

Quais serão esses mundos?

Escreve ao domingo

Os chamados regimes democráticos fazem tudo para não se distinguirem das ditaduras

Frei Bento Domingues O.P.

Para o Antoninho

Um dia, quando o meu primeiro

neto António tiver bondade

e paciência sufi cientes para

ir ler todos os louvores dele

que já escrevi — a que ele, um

estupor encantatório com três

anos (e muitos), até hoje não

ligou nenhuma —, espero que

ele saiba quanto foi apreciado

por mim e pela mais do que

cúmplice Maria João.

Hoje vai ser baptizado. Eu cá não acredito

no baptismo nem que se nasça com um

pecado que, de original, não tem nada. Mas

os pais acreditam e muito boa gente acredita,

a começar pela mãe dele e a irmã dela (as

minhas fi lhas, Tristana e Sara), que quiseram

ser baptizadas com treze anos.

Foi a minha querida mãe que foi ter

com o maravilhoso e abençoado António

Ribeiro, então cardeal-patriarca de Lisboa

(e responsável pela melhor tradução da

Bíblia até à altura), para conseguir que

ambas fossem baptizadas.

Eu cá, não obstante ter sido baptizado,

tornei-me judeu e não acredito que se nasça

culpado de um único pecado que seja:

original ou não.

Mas isso — das crenças de cada um — que

importância tem? Nenhuma. Há muito mais

ateus bons do que crentes. Deus ou é grande

(e não liga às religiões, que são, literalmente,

as maneiras de voltarmos a ligar-nos com

Aquilo, mais do que Ele ou Ela) ou não existe

ou, se existir, existirá tanto para os sectários

como para os que não querem saber.

Seja como for, o António, hoje baptizado,

está bem entregue. A Deus e ao amor: no

caso de não serem a mesmíssima coisa.

Que devem ser.

Miguel Esteves CardosoAinda ontem

BARTOON LUÍS AFONSO

Page 2: Bento domingues ano da fé_um decretopara

PÚBLICO, DOM 20 JAN 2013 | 49

Ano da fé.Um decreto, para quê? (2)

1. Em 1953, numa curta viagem de

camioneta, sentou-se ao meu lado

um padre de outra congregação

religiosa. Sobre as características

e as imagens de marca das

invocadas na conversa adiantou:

“Em humildade ninguém nos

supera.” Não estava a fazer humor.

Fiquei tão alérgico ao elogio da

humildade como às disputas

entre arrogantes. Nada, no entanto, mais

inspirador do que uma pessoa humilde.

Esteve, em Portugal, frei Bruno Cadoré.

Nasceu em 1954, formou-se em Medicina,

entrou nos dominicanos, foi director do

Centro de Ética Médica do Instituto Católico

de Lille e, depois de ter sido provincial em

França, foi eleito, em 2010, mestre geral da

Ordem.

Não interessa explicitar aqui o que foi o seu

brilhante e inspirador percurso profi ssional

e dominicano, pois ele próprio nunca se lhe

refere. É como se não tivesse existido.

Veio para visitar a família dominicana

portuguesa, na diversidade dos seus ramos,

e revelou um estilo que não é muito habitual

nos eclesiásticos.

Na primeira reunião com a comunidade a

que pertenço, procurou ouvir-nos acerca da

situação da Igreja em Portugal, da diocese

em que estamos inseridos, do papel das

ordens e congregações religiosas, masculinas

e femininas, segundo o carisma de cada uma.

Passou, depois, ao encontro fraterno, com

cada um, individualmente, não para falar,

mas para escutar. Durante meia hora ouviu-

me, sem dizer uma palavra, despediu-se, sem

me fazer qualquer recomendação. É evidente

que debateu, com os órgãos das instituições

da Província Dominicana Portuguesa, as

questões com que ela está confrontada. Fez

também a visita às monjas dominicanas,

fundadas, no século XIII, por S. Domingos.

Ainda antes do ramo masculino, eram elas a

Santa Pregação. Encontrou-se também com as

outras religiosas e com os leigos dominicanos.

Se Cristo veio, não para condenar, mas para

manifestar o amor de Deus pelo mundo, como

se poderá chamar evangelização, nova ou

antiga, às obras, palavras e atitudes que não

sejam escuta humilde dessa amizade divina?

O método de Frei Bruno — muito ouvir

antes de falar — foi praticado e exposto na

Paróquia de S. Domingos de Benfi ca, ao

apresentar a tradução da obra clássica sobre

A Pregação, de Humberto de Romans, e as

Actas do Colóquio sobre a Restauração da

Província Dominicana em Portugal.

2. É antiga a convicção de que o silêncio

é o pai dos pregadores e que a graça da

pregação é secundada pelo estudo e pela

contemplação. A fórmula dominicana foi

cunhada muito cedo e já fazia parte do

ensino de Tomás de Aquino: contemplar e dar

testemunho da realidade contemplada. Era,

desde a antiguidade, conhecida e exaltada

a superioridade da vida contemplativa em

relação à vida activa. Em benefício da sua

própria causa, o santo doutor observou:

a vida activa, que nasce da abundância da

contemplação, vale mais do que a pura

contemplação. Iluminar é melhor do que ser,

apenas, luz. Foi este, aliás, o estilo da vida

escolhida por Jesus.

A resposta é brilhante. Na prática,

continuava a rivalidade entre o tempo

consagrado ao principal e o tempo gasto com

realidades temporais, inferiores. O tempo

gasto na actividade esvaziava os ganhos da

contemplação. A oração de S. Domingos,

testemunhada pelos seus contemporâneos,

estava sempre povoada pelas alegrias e

tristezas do quotidiano. O trabalho apostólico

não o dispersava nem o esvaziava.

Na sua conferência, frei Bruno Cadoré

saltou fora do esquema de falsas oposições.

A fonte e o alimento da contemplação não

se restringem ao quadro conventual ou às

celebrações litúrgicas. A Igreja – e nela o

dominicano – não se pode apresentar ao povo

cristão, aos membros das outras religiões,

aos agnósticos e aos ateus como quem está

na posse da verdade, dos bons princípios,

dos bons caminhos e das boas soluções. Essa

arrogância impede o caminho humilde da

escuta, do estudo e do diálogo com todos os

mundos em que se encontra, ou aos quais

se dirige: a bondade e a verdade, servidas

ou traídas, estão disseminadas em todos os

estilos de vida e em todas as dimensões da

existência. A Igreja, sem crescer e amadurecer

nesse convívio, não pode partilhar nada, está

fora de jogo. Esquece que Deus se insinua, de

muitos modos, na vida das pessoas, expressa

na diversidade de problemáticas e linguagens

das sociedades, nas suas diferentes épocas

e culturas. Os processos não são lineares e

nunca nada está

garantido. 3. Em

vários países, sob

o ponto de vista

cristão, o século XX

foi prodigiosamente

fecundo, apesar

de duas guerras

mundiais. Basta

pensar nos

movimentos

bíblico, litúrgico,

missionário,

ecuménico, social,

na redescoberta da

teologia patrística

e medieval, nos

novos modelos

e paradigmas de

teologia — das

realidades terrestres,

do trabalho, da

matéria, da evolução,

da conjugalidade

—, assim como nas formas de evangelização

da pura presença, nos meios mais afastados

das instituições da Igreja. Foi uma história

exaltante de muitas esperanças e desilusões

continuadas, pela repressão que se abateu

sobre vários destes movimentos.

O Vaticano II, iniciativa de um papa

que tinha os olhos postos no mundo em

transformação e no aggiornamento da Igreja,

recuperou e alargou a geografi a da esperança.

Como e porquê se perdeu este impulso?

Escreve ao domingo

O Vaticano II recuperou e alargou a geografia da esperança. Como e porquê se perdeu este impulso?

Frei Bento Domingues O.P.

As estrelas do cinema

Muitos dias da minha vida

passei a pensar num sistema

jornalístico para avaliar fi lmes

e substituir as convencionais

cinco estrelas e uma bola

preta das sentenças críticas.

O melhor baseou-se na

observação que fez Samuel

Johnson (SJ), na biografi a

de Boswell (se ainda não

leu, leia imediatamente), acerca da Giant’s

Causeway. É um arranjo fortuito de rochas

na costa da Irlanda do Norte, que parece

um caminho para pés gigantes, que eu e o

meu amigo Carlos Quevedo só vimos porque

fi cava perto da destilaria Bushmills.

Traduzo: “Ele [SJ], não sei porquê,

mostrou sempre uma aversão a visitar a

Irlanda, quando eu propunha fazermos essa

viagem.” Johnson: “É o país a que menos me

apetece viajar.” [...] Boswell: “Não me diga

que não vale a pena ver a Giant’s Causeway?”

Johnson: “Sim, vale a pena vê-la; mas não

vale a pena ir vê-la”.

Tivemos assim, n’O Independente, uma

graduação “Vale a pena ir ver” (a mais alta);

“Vale a pena ver mas não ir ver” (para quem

não fosse a um cinema); “Não vale a pena

ver” (mesmo para quem visse em casa).

Durou três meses, se tanto.

A melhor constelação é a do PÚBLICO,

que funciona porque os nossos três críticos

— Jorge Mourinha, Luís Miguel Oliveira e

Vasco Câmara — têm gostos pessoais, muito

diferentes uns dos outros.

São maravilhosamente difíceis de

satisfazer: Amor não recebe 5 estrelas

(“excelente”) de ninguém e até Vertigo não

atinge a unanimidade da excelência.

São estrelas em que se pode confi ar.

Miguel Esteves CardosoAinda ontem

BARTOON LUÍS AFONSO

Page 3: Bento domingues ano da fé_um decretopara

PÚBLICO, DOM 27 JAN 2013 | 53

BARTOON LUÍS AFONSO

Ano da fé.Um decreto, para quê? (3)

1. No passado domingo, referi alguns

dos movimentos que, durante a

primeira metade do século XX, não

aceitaram um destino previsível:

a uma religião exterior ao tecer do

mundo, sucederia um mundo fecha-

do a qualquer transcendência.

Esses movimentos recusaram as

alianças da Igreja com os poderes

de dominação que a divorciavam

de Cristo, dos pobres, do mundo operário

e dos novos percursos culturais de

surpreendentes e estranhas linguagens

fi losófi cas, científi cas, poéticas, musicais,

artísticas. Eles desejavam-na mais leve, mais

disponível, sem fi xações doutrinais ou rituais

que a impedissem de caminhar no interior

misterioso de Deus e do mundo. Para ser fi el

à sua condição de peregrina do Absoluto,

bastavam-lhe provisórios recursos de viagem.

Com erros e acertos, procuravam que a

Igreja fosse vivida e entendida, na diversidade

de carismas e serviços do povo cristão, como

voz de Cristo num mundo dilacerado por

duas terríveis guerras mundiais. A repressão

exercida sobre as expressões dos mais audazes

criou uma atmosfera irrespirável, em vários

sectores católicos. Perdia-se a esperança de

que ela se tornasse um espaço de liberdade.

Temos muitas narrativas dessa situação.

2. João XXIII, com os olhos postos

nesse mundo em transformação, apostou

no aggiornamento da Igreja. Este termo,

usado para expressar uma das intenções

fundamentais do Vaticano II, é muito mais

do que uma operação de marketing ou um

truque, como se este Papa procurasse uma

imagem modernaça para um catolicismo

envelhecido. Entretanto, já circulava

outra expressão de sinal oposto, “voltar

às fontes”. Acabaram ambas conjugadas

com os enigmáticos “sinais dos tempos”. A

aproximação destas metáforas é um bom

caminho para perceber a importância

incontornável da iniciativa deste Concílio,

sem cair na sua sacralização.

Quando se proclama o texto do Evangelho,

na Eucaristia, começa-se sempre por dizer

“naquele tempo”, como se fosse necessário

manter a comunidade cristã colada ao

passado. Se isso fosse verdade, o Evangelho

seria uma boa notícia, não para nós, mas

para “aquele tempo”. O paradoxo desta

linguagem não é inocente nem passadista.

Mantém o contraste de uma tensão essencial

ao tempo cristão da fé.

Por um lado, não temos de resolver os

problemas do primeiro século da era cristã,

sejam de ordem teológica, religiosa ou social,

como certa investigação exegética poderia

sugerir. Pelas pessoas de há dois mil anos, a

única coisa que poderíamos fazer seria rezar

pelo seu eterno descanso. O passado não é o

objecto da evangelização.

Se a Eucaristia exige a sua proclamação

é, precisamente, porque o considera a

melhor notícia para as pessoas do mundo

de hoje. Com uma condição incontornável:

que seja a partir dos problemas concretos

das comunidades de hoje, nas linguagens

que reconheçam as suas interrogações mais

profundas e urgentes. A Eucaristia é de vivos

e para vivos e só tem sentido se Cristo está

actuante e pode vivifi car a fé, a esperança e o

amor da comunidade.

Então porque continuar a repetir e a insistir

em dizer sempre “naquele tempo”?

O cristianismo nasceu não nas nuvens do

mito, mas na história. O Verbo de Deus fez-se

fragilidade humana. É nessa fonte, sempre

fecunda, que precisamos hoje de beber. É

nessa fonte que beberam todas as pessoas

que, ao longo dos séculos, consentiram em

deixar transformar a sua vida e trabalharam

na transformação do seu tempo. Esta é a

tradição viva, muito diferente de um museu

da santidade.

3. Não podemos deixar de nos congratular

com muitas iniciativas e publicações para

celebrar, estudar e avaliar a herança do

Concílio Vaticano II . Esperemos que não seja

para o arrumar de vez.

Dir-se-á que ainda não há distância

sufi ciente para interrogar e avaliar o

período pós-conciliar que, segundo alguns

observadores, misturou a Primavera com

o Inverno, de que falava Karl Rahner.

Mais delicada ainda será a apreciação das

medidas da Congregação da Doutrina da Fé

que atingiram os mais inovadores teólogos

e movimentos teológicos e pastorais, nos

diversos continentes, sobretudo nas décadas

de oitenta e noventa, medidas que, aliás,

ainda não estão cansadas.

A distância, em temos históricos, é de facto

curta. A Igreja dispõe de academias para

avaliações históricas de carácter científi co.

Mas a vida e as instituições da Igreja não se

situam todas a nível académico.

Diante dos

gravíssimos

problemas actuais

da sociedade e da

Igreja, nota-se um

tal retraimento

e timidez, que é

legítimo perguntar:

não estarão as

comunidades cristãs

a serem vítimas de

um longo período no

qual a sua voz não

contou para nada?

Quando, agora,

nos interrogamos

sobre a sua falta

de empenhamento

militante, talvez

esqueçamos uma resposta antiga: ninguém

nos convocou, ninguém quis ouvir a nossa

voz, compartilhar as nossas dúvidas e

interrogações, tomar a sério a nossa situação

pouco canónica e pouco alinhada com

a opinião dominante. Deixaram-nos em

autogestão…

A preocupação do Ano da Fé talvez não seja

para aqueles que só procuram paz e sossego.

A fé cristã não é um calmante. É a certeza

de que sem obras está morta (Tiago, 2-4).

1) Cf. Communio, n.º 3 – Setembro; Didaskalia,

vol. XLII, 2

Escreve ao domingo

A fé cristã não é um calmante. É a certeza de que sem obras está morta

Frei Bento Domingues O.P.

Evite estes filmes

Eis a confi ssão horrenda de

um velho mentiroso: sabe-me

melhor ler dizer mal das coisas

que odeio (e de que toda a

gente, isto é, apenas a máquina

de hype dos publicistas, gosta)

do que ver dizer bem das coisas

de que gosto.

Quando eu era novo, desfazia-

me para que toda a gente (no

máximo, uma minoria iluminada) gostasse

daquilo que eu gostava. Agora prefi ro gostar

das coisas em particular, com medo que se

estraguem, caso se tornem populares.

Chego agora ao ponto em que prefi ro

que digam mal das coisas de que gosto

a dizerem bem das coisas que detesto.

No Ípsilon do PÚBLICO de anteontem,

deu-me prazer ler o Luís Miguel Oliveira

(LMO) a amaldiçoar as primeiras duas

horas de Zero Dark Thirty, de Kathyrn

Bigelow. É uma boa merda de um fi lme

— nem jornalismo nem televisão nem

cinema. A classifi cação de LMO é generosa

(medíocre) porque a meia hora fi nal é

melhor do que as duas horas antecedentes.

Só um cinéfi lo doente perdoa as duas

horas antes perdidas por causa de 25

minutos medíocres que se seguem. São os

últimos 25 minutos que valem duas estrelas.

As duas horas perdidas — pelas razões

sucintas que LMO deu — são duas horas

gastas de vida fi nita que a vida jamais será

capaz de nos devolver. Eu também as gramei

e arrependo-me de ter gramado. Mas não as

perdoo: uma estrela seria sufi ciente.

O fi lme de 2012 de que mais gostei,

foi Beasts of the Southern Wild, de Benh

Zeitlin. O mais frio, sádico e realista foi o

Amour, de Michael Haneke.

Miguel Esteves CardosoAinda ontem