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Textos de Bento Domingues no "Público" de 13|20|27 de janeiro de 2013: "Ano da fé. Um decreto, para quê?"TRANSCRIPT
PÚBLICO, DOM 13 JAN 2013 | 53
Ano da fé. Um decreto, para quê? (1)
1. Enquanto não chegar o fi m do
mundo, depois de um ano, há
sempre outro. Para não o enfren-
tar como uma aposta no vazio, é
corrente consagrá-lo a um desejo,
em forma de projecto. Diz-se que,
perante a crise que atravessa o
país, na conjuntura internacional
em que temos de nos mover, é
difícil confi gurar um caminho,
com previsões que não se confundam com
adivinhas ao sabor dos palpites de optimis-
tas ou pessimistas e segundo os interesses
que cada um tenta defender.
A verdade é que uns já decretaram que
Portugal não tem solução, nem dentro nem
fora do Euro e que o melhor é a liquidação
total, a preço de saldo. A própria ideia de
país independente seria uma fi cção e neste
tempo, comandado pela transformação e
globalização dos negócios, é uma crença
ridícula. Outros continuam a falar da
urgência de uma política patriótica, quando
a pátria de cada um é aquela para onde se
consegue emigrar. Seja como for, os velhos
vão continuar a morrer e se os nascimentos
continuarem a diminuir, a sorte do país
é previsível. Não será preciso dar-se ao
trabalho de “repensar Portugal”, como
desejava o Pe. Manuel Antunes.
Diz-se isto como se poderia dizer outra
coisa qualquer. Quando tudo passou para a
ordem do inevitável, já nada tem sentido. O
próprio sofrimento das vítimas da história
da crise não conta para nada.
A incapacidade de questionar, em
profundidade, esta versão trituradora
da máquina capitalista é a vergonha do
nosso tempo. O Papa relembrou-o, muito
recentemente, mas os economistas, os
gestores, os banqueiros, os ministros
que se confessam cristãos preferem
espiritualidades de chá de tília religiosa,
a ouvir o clamor dos pobres e dos
empobrecidos e questionar teorias que
mostram a sua inadequação, pelos frutos
que produzem. As teorias são para os seres
humanos, não estes para teorias, onde as
pessoas estão sempre a mais.
2. As interrogações são inevitáveis: tanta
ciência económica e fi nanceira, ensinada
nas Universidades Católicas, não será capaz
de imaginar contributos para alternativas
concretas, técnica e politicamente viáveis?
A Banca é para salvar as pessoas ou serão
estas, as exploradas, que devem salvar os
interesses da Banca, mediante decisões
governamentais? Não será possível
desconstruir confi gurações políticas que,
nos seus efeitos, resultam em grandes
negócios para uns e em castigo para a
maioria da população? Estaremos numa
civilização esgotada a transitar de continente
para continente, enquanto sistema de
exploração, sem tentar curar as suas raízes?
Os chamados regimes democráticos fazem
tudo para não se distinguirem das ditaduras.
O fascínio pela China é interessante.
Com isto tudo, não creio que se possam
extrair dos Evangelhos ciências ou políticas
confessionais, em concorrência com
ciências e políticas laicas, nem aceito que
se diga que quanta mais ciências menos
religião. Há grandes cientistas e políticos
crentes, agnósticos e ateus.
Francisco José Ayala, um dos maiores
representantes do neodarwinismo,
tem uma posição que me parece muito
sensata: “Não vejo razão para pensar
que as descobertas científi cas sejam
incompatíveis com a fé religiosa. A ciência
procura descobrir e explicar os processos
da natureza: o movimento dos planetas,
a composição da matéria e do espaço,
a origem e a função dos organismos. A
religião trata do signifi cado e propósito do
universo e da vida, das relações apropriadas
entre os humanos e o seu Criador, dos
valores morais que inspiram e guiam a
vida humana. A ciência nada tem a dizer
sobre estas matérias, nem é assunto da
religião dar explicações científi cas, para os
fenómenos que têm lugar na natureza.”
3. Daqui não se pode concluir que os
cristãos possam ser indiferentes ao que
se passa na sociedade. Não dispõem de
uma mensagem, descida do céu, para
os levar para o céu, sem se importarem
com o que se passa na terra. Se a Bíblia
fosse, apenas, revelação divina escrita
por autores inspirados, não teria de dar
contas de nada nem a ninguém, era puro
ditado sobrenatural. Esta é a posição
do fundamentalismo mais ignorante.
Nessa perspectiva, a Bíblia poderia ser
decorada, mas nunca estudada. Não é esse o
pensamento católico
actual. O documento
A Interpretação da
Bíblia na Igreja (1993)
liberta a investigação
de qualquer
constrangimento.
A Bíblia não remete
para si mesma:
aponta para o
mistério de Deus
e para o mistério
do mundo. Deus
não estava calado
antes da Bíblia,
nem emudeceu
depois do último
parágrafo da Sagrada
Escritura. É preciso
aprender a escutá-
lo na experiência
de cada um, nos
acontecimentos da sociedade e em todas as
tentativas para decifrar o sentido da vida.
Logo após o Vaticano II, E. Shillebeeckx,
para lhe ser fi el, desenvolveu a perspectiva
do mundo como “lugar teológico”: a história
humana, em todas as suas manifestações, é
o espaço e o tempo da contínua revelação de
Deus, acolhida ou traída, a decifrar em cada
conjuntura cultural.
O Ano da Fé não foi decretado para dizer
que a Igreja tem a resposta pronta para tudo.
É porque a não tem que, na humildade, tem
de partir para a escuta de todos os mundos.
Quais serão esses mundos?
Escreve ao domingo
Os chamados regimes democráticos fazem tudo para não se distinguirem das ditaduras
Frei Bento Domingues O.P.
Para o Antoninho
Um dia, quando o meu primeiro
neto António tiver bondade
e paciência sufi cientes para
ir ler todos os louvores dele
que já escrevi — a que ele, um
estupor encantatório com três
anos (e muitos), até hoje não
ligou nenhuma —, espero que
ele saiba quanto foi apreciado
por mim e pela mais do que
cúmplice Maria João.
Hoje vai ser baptizado. Eu cá não acredito
no baptismo nem que se nasça com um
pecado que, de original, não tem nada. Mas
os pais acreditam e muito boa gente acredita,
a começar pela mãe dele e a irmã dela (as
minhas fi lhas, Tristana e Sara), que quiseram
ser baptizadas com treze anos.
Foi a minha querida mãe que foi ter
com o maravilhoso e abençoado António
Ribeiro, então cardeal-patriarca de Lisboa
(e responsável pela melhor tradução da
Bíblia até à altura), para conseguir que
ambas fossem baptizadas.
Eu cá, não obstante ter sido baptizado,
tornei-me judeu e não acredito que se nasça
culpado de um único pecado que seja:
original ou não.
Mas isso — das crenças de cada um — que
importância tem? Nenhuma. Há muito mais
ateus bons do que crentes. Deus ou é grande
(e não liga às religiões, que são, literalmente,
as maneiras de voltarmos a ligar-nos com
Aquilo, mais do que Ele ou Ela) ou não existe
ou, se existir, existirá tanto para os sectários
como para os que não querem saber.
Seja como for, o António, hoje baptizado,
está bem entregue. A Deus e ao amor: no
caso de não serem a mesmíssima coisa.
Que devem ser.
Miguel Esteves CardosoAinda ontem
BARTOON LUÍS AFONSO
PÚBLICO, DOM 20 JAN 2013 | 49
Ano da fé.Um decreto, para quê? (2)
1. Em 1953, numa curta viagem de
camioneta, sentou-se ao meu lado
um padre de outra congregação
religiosa. Sobre as características
e as imagens de marca das
invocadas na conversa adiantou:
“Em humildade ninguém nos
supera.” Não estava a fazer humor.
Fiquei tão alérgico ao elogio da
humildade como às disputas
entre arrogantes. Nada, no entanto, mais
inspirador do que uma pessoa humilde.
Esteve, em Portugal, frei Bruno Cadoré.
Nasceu em 1954, formou-se em Medicina,
entrou nos dominicanos, foi director do
Centro de Ética Médica do Instituto Católico
de Lille e, depois de ter sido provincial em
França, foi eleito, em 2010, mestre geral da
Ordem.
Não interessa explicitar aqui o que foi o seu
brilhante e inspirador percurso profi ssional
e dominicano, pois ele próprio nunca se lhe
refere. É como se não tivesse existido.
Veio para visitar a família dominicana
portuguesa, na diversidade dos seus ramos,
e revelou um estilo que não é muito habitual
nos eclesiásticos.
Na primeira reunião com a comunidade a
que pertenço, procurou ouvir-nos acerca da
situação da Igreja em Portugal, da diocese
em que estamos inseridos, do papel das
ordens e congregações religiosas, masculinas
e femininas, segundo o carisma de cada uma.
Passou, depois, ao encontro fraterno, com
cada um, individualmente, não para falar,
mas para escutar. Durante meia hora ouviu-
me, sem dizer uma palavra, despediu-se, sem
me fazer qualquer recomendação. É evidente
que debateu, com os órgãos das instituições
da Província Dominicana Portuguesa, as
questões com que ela está confrontada. Fez
também a visita às monjas dominicanas,
fundadas, no século XIII, por S. Domingos.
Ainda antes do ramo masculino, eram elas a
Santa Pregação. Encontrou-se também com as
outras religiosas e com os leigos dominicanos.
Se Cristo veio, não para condenar, mas para
manifestar o amor de Deus pelo mundo, como
se poderá chamar evangelização, nova ou
antiga, às obras, palavras e atitudes que não
sejam escuta humilde dessa amizade divina?
O método de Frei Bruno — muito ouvir
antes de falar — foi praticado e exposto na
Paróquia de S. Domingos de Benfi ca, ao
apresentar a tradução da obra clássica sobre
A Pregação, de Humberto de Romans, e as
Actas do Colóquio sobre a Restauração da
Província Dominicana em Portugal.
2. É antiga a convicção de que o silêncio
é o pai dos pregadores e que a graça da
pregação é secundada pelo estudo e pela
contemplação. A fórmula dominicana foi
cunhada muito cedo e já fazia parte do
ensino de Tomás de Aquino: contemplar e dar
testemunho da realidade contemplada. Era,
desde a antiguidade, conhecida e exaltada
a superioridade da vida contemplativa em
relação à vida activa. Em benefício da sua
própria causa, o santo doutor observou:
a vida activa, que nasce da abundância da
contemplação, vale mais do que a pura
contemplação. Iluminar é melhor do que ser,
apenas, luz. Foi este, aliás, o estilo da vida
escolhida por Jesus.
A resposta é brilhante. Na prática,
continuava a rivalidade entre o tempo
consagrado ao principal e o tempo gasto com
realidades temporais, inferiores. O tempo
gasto na actividade esvaziava os ganhos da
contemplação. A oração de S. Domingos,
testemunhada pelos seus contemporâneos,
estava sempre povoada pelas alegrias e
tristezas do quotidiano. O trabalho apostólico
não o dispersava nem o esvaziava.
Na sua conferência, frei Bruno Cadoré
saltou fora do esquema de falsas oposições.
A fonte e o alimento da contemplação não
se restringem ao quadro conventual ou às
celebrações litúrgicas. A Igreja – e nela o
dominicano – não se pode apresentar ao povo
cristão, aos membros das outras religiões,
aos agnósticos e aos ateus como quem está
na posse da verdade, dos bons princípios,
dos bons caminhos e das boas soluções. Essa
arrogância impede o caminho humilde da
escuta, do estudo e do diálogo com todos os
mundos em que se encontra, ou aos quais
se dirige: a bondade e a verdade, servidas
ou traídas, estão disseminadas em todos os
estilos de vida e em todas as dimensões da
existência. A Igreja, sem crescer e amadurecer
nesse convívio, não pode partilhar nada, está
fora de jogo. Esquece que Deus se insinua, de
muitos modos, na vida das pessoas, expressa
na diversidade de problemáticas e linguagens
das sociedades, nas suas diferentes épocas
e culturas. Os processos não são lineares e
nunca nada está
garantido. 3. Em
vários países, sob
o ponto de vista
cristão, o século XX
foi prodigiosamente
fecundo, apesar
de duas guerras
mundiais. Basta
pensar nos
movimentos
bíblico, litúrgico,
missionário,
ecuménico, social,
na redescoberta da
teologia patrística
e medieval, nos
novos modelos
e paradigmas de
teologia — das
realidades terrestres,
do trabalho, da
matéria, da evolução,
da conjugalidade
—, assim como nas formas de evangelização
da pura presença, nos meios mais afastados
das instituições da Igreja. Foi uma história
exaltante de muitas esperanças e desilusões
continuadas, pela repressão que se abateu
sobre vários destes movimentos.
O Vaticano II, iniciativa de um papa
que tinha os olhos postos no mundo em
transformação e no aggiornamento da Igreja,
recuperou e alargou a geografi a da esperança.
Como e porquê se perdeu este impulso?
Escreve ao domingo
O Vaticano II recuperou e alargou a geografia da esperança. Como e porquê se perdeu este impulso?
Frei Bento Domingues O.P.
As estrelas do cinema
Muitos dias da minha vida
passei a pensar num sistema
jornalístico para avaliar fi lmes
e substituir as convencionais
cinco estrelas e uma bola
preta das sentenças críticas.
O melhor baseou-se na
observação que fez Samuel
Johnson (SJ), na biografi a
de Boswell (se ainda não
leu, leia imediatamente), acerca da Giant’s
Causeway. É um arranjo fortuito de rochas
na costa da Irlanda do Norte, que parece
um caminho para pés gigantes, que eu e o
meu amigo Carlos Quevedo só vimos porque
fi cava perto da destilaria Bushmills.
Traduzo: “Ele [SJ], não sei porquê,
mostrou sempre uma aversão a visitar a
Irlanda, quando eu propunha fazermos essa
viagem.” Johnson: “É o país a que menos me
apetece viajar.” [...] Boswell: “Não me diga
que não vale a pena ver a Giant’s Causeway?”
Johnson: “Sim, vale a pena vê-la; mas não
vale a pena ir vê-la”.
Tivemos assim, n’O Independente, uma
graduação “Vale a pena ir ver” (a mais alta);
“Vale a pena ver mas não ir ver” (para quem
não fosse a um cinema); “Não vale a pena
ver” (mesmo para quem visse em casa).
Durou três meses, se tanto.
A melhor constelação é a do PÚBLICO,
que funciona porque os nossos três críticos
— Jorge Mourinha, Luís Miguel Oliveira e
Vasco Câmara — têm gostos pessoais, muito
diferentes uns dos outros.
São maravilhosamente difíceis de
satisfazer: Amor não recebe 5 estrelas
(“excelente”) de ninguém e até Vertigo não
atinge a unanimidade da excelência.
São estrelas em que se pode confi ar.
Miguel Esteves CardosoAinda ontem
BARTOON LUÍS AFONSO
PÚBLICO, DOM 27 JAN 2013 | 53
BARTOON LUÍS AFONSO
Ano da fé.Um decreto, para quê? (3)
1. No passado domingo, referi alguns
dos movimentos que, durante a
primeira metade do século XX, não
aceitaram um destino previsível:
a uma religião exterior ao tecer do
mundo, sucederia um mundo fecha-
do a qualquer transcendência.
Esses movimentos recusaram as
alianças da Igreja com os poderes
de dominação que a divorciavam
de Cristo, dos pobres, do mundo operário
e dos novos percursos culturais de
surpreendentes e estranhas linguagens
fi losófi cas, científi cas, poéticas, musicais,
artísticas. Eles desejavam-na mais leve, mais
disponível, sem fi xações doutrinais ou rituais
que a impedissem de caminhar no interior
misterioso de Deus e do mundo. Para ser fi el
à sua condição de peregrina do Absoluto,
bastavam-lhe provisórios recursos de viagem.
Com erros e acertos, procuravam que a
Igreja fosse vivida e entendida, na diversidade
de carismas e serviços do povo cristão, como
voz de Cristo num mundo dilacerado por
duas terríveis guerras mundiais. A repressão
exercida sobre as expressões dos mais audazes
criou uma atmosfera irrespirável, em vários
sectores católicos. Perdia-se a esperança de
que ela se tornasse um espaço de liberdade.
Temos muitas narrativas dessa situação.
2. João XXIII, com os olhos postos
nesse mundo em transformação, apostou
no aggiornamento da Igreja. Este termo,
usado para expressar uma das intenções
fundamentais do Vaticano II, é muito mais
do que uma operação de marketing ou um
truque, como se este Papa procurasse uma
imagem modernaça para um catolicismo
envelhecido. Entretanto, já circulava
outra expressão de sinal oposto, “voltar
às fontes”. Acabaram ambas conjugadas
com os enigmáticos “sinais dos tempos”. A
aproximação destas metáforas é um bom
caminho para perceber a importância
incontornável da iniciativa deste Concílio,
sem cair na sua sacralização.
Quando se proclama o texto do Evangelho,
na Eucaristia, começa-se sempre por dizer
“naquele tempo”, como se fosse necessário
manter a comunidade cristã colada ao
passado. Se isso fosse verdade, o Evangelho
seria uma boa notícia, não para nós, mas
para “aquele tempo”. O paradoxo desta
linguagem não é inocente nem passadista.
Mantém o contraste de uma tensão essencial
ao tempo cristão da fé.
Por um lado, não temos de resolver os
problemas do primeiro século da era cristã,
sejam de ordem teológica, religiosa ou social,
como certa investigação exegética poderia
sugerir. Pelas pessoas de há dois mil anos, a
única coisa que poderíamos fazer seria rezar
pelo seu eterno descanso. O passado não é o
objecto da evangelização.
Se a Eucaristia exige a sua proclamação
é, precisamente, porque o considera a
melhor notícia para as pessoas do mundo
de hoje. Com uma condição incontornável:
que seja a partir dos problemas concretos
das comunidades de hoje, nas linguagens
que reconheçam as suas interrogações mais
profundas e urgentes. A Eucaristia é de vivos
e para vivos e só tem sentido se Cristo está
actuante e pode vivifi car a fé, a esperança e o
amor da comunidade.
Então porque continuar a repetir e a insistir
em dizer sempre “naquele tempo”?
O cristianismo nasceu não nas nuvens do
mito, mas na história. O Verbo de Deus fez-se
fragilidade humana. É nessa fonte, sempre
fecunda, que precisamos hoje de beber. É
nessa fonte que beberam todas as pessoas
que, ao longo dos séculos, consentiram em
deixar transformar a sua vida e trabalharam
na transformação do seu tempo. Esta é a
tradição viva, muito diferente de um museu
da santidade.
3. Não podemos deixar de nos congratular
com muitas iniciativas e publicações para
celebrar, estudar e avaliar a herança do
Concílio Vaticano II . Esperemos que não seja
para o arrumar de vez.
Dir-se-á que ainda não há distância
sufi ciente para interrogar e avaliar o
período pós-conciliar que, segundo alguns
observadores, misturou a Primavera com
o Inverno, de que falava Karl Rahner.
Mais delicada ainda será a apreciação das
medidas da Congregação da Doutrina da Fé
que atingiram os mais inovadores teólogos
e movimentos teológicos e pastorais, nos
diversos continentes, sobretudo nas décadas
de oitenta e noventa, medidas que, aliás,
ainda não estão cansadas.
A distância, em temos históricos, é de facto
curta. A Igreja dispõe de academias para
avaliações históricas de carácter científi co.
Mas a vida e as instituições da Igreja não se
situam todas a nível académico.
Diante dos
gravíssimos
problemas actuais
da sociedade e da
Igreja, nota-se um
tal retraimento
e timidez, que é
legítimo perguntar:
não estarão as
comunidades cristãs
a serem vítimas de
um longo período no
qual a sua voz não
contou para nada?
Quando, agora,
nos interrogamos
sobre a sua falta
de empenhamento
militante, talvez
esqueçamos uma resposta antiga: ninguém
nos convocou, ninguém quis ouvir a nossa
voz, compartilhar as nossas dúvidas e
interrogações, tomar a sério a nossa situação
pouco canónica e pouco alinhada com
a opinião dominante. Deixaram-nos em
autogestão…
A preocupação do Ano da Fé talvez não seja
para aqueles que só procuram paz e sossego.
A fé cristã não é um calmante. É a certeza
de que sem obras está morta (Tiago, 2-4).
1) Cf. Communio, n.º 3 – Setembro; Didaskalia,
vol. XLII, 2
Escreve ao domingo
A fé cristã não é um calmante. É a certeza de que sem obras está morta
Frei Bento Domingues O.P.
Evite estes filmes
Eis a confi ssão horrenda de
um velho mentiroso: sabe-me
melhor ler dizer mal das coisas
que odeio (e de que toda a
gente, isto é, apenas a máquina
de hype dos publicistas, gosta)
do que ver dizer bem das coisas
de que gosto.
Quando eu era novo, desfazia-
me para que toda a gente (no
máximo, uma minoria iluminada) gostasse
daquilo que eu gostava. Agora prefi ro gostar
das coisas em particular, com medo que se
estraguem, caso se tornem populares.
Chego agora ao ponto em que prefi ro
que digam mal das coisas de que gosto
a dizerem bem das coisas que detesto.
No Ípsilon do PÚBLICO de anteontem,
deu-me prazer ler o Luís Miguel Oliveira
(LMO) a amaldiçoar as primeiras duas
horas de Zero Dark Thirty, de Kathyrn
Bigelow. É uma boa merda de um fi lme
— nem jornalismo nem televisão nem
cinema. A classifi cação de LMO é generosa
(medíocre) porque a meia hora fi nal é
melhor do que as duas horas antecedentes.
Só um cinéfi lo doente perdoa as duas
horas antes perdidas por causa de 25
minutos medíocres que se seguem. São os
últimos 25 minutos que valem duas estrelas.
As duas horas perdidas — pelas razões
sucintas que LMO deu — são duas horas
gastas de vida fi nita que a vida jamais será
capaz de nos devolver. Eu também as gramei
e arrependo-me de ter gramado. Mas não as
perdoo: uma estrela seria sufi ciente.
O fi lme de 2012 de que mais gostei,
foi Beasts of the Southern Wild, de Benh
Zeitlin. O mais frio, sádico e realista foi o
Amour, de Michael Haneke.
Miguel Esteves CardosoAinda ontem