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A prova de que o amor é capaz de superar até a morte – Beautiful Dead.VOLUME 2

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Faz quase um ano que Arizona apareceu afogada no lago Hartman. Suicídionão faz sentido: Arizona era segura demais para dar fim à própria vida, pensaDarina — que não vai descansar até encontrar a verdadeira causa da morte daamiga. Ao lado de seu amado Phoenix — que volta do mundo dos mortos-vivosdepois de uma longa e dolorosa espera —, ela inicia a busca pela verdade que,se vier à tona, vai deixar em choque a pacata comunidade dos moradores dacidade de Ellerton.

NÃO PERCA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA SÉRIE:  JONAS 

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A cidade de Ellerton continua em alerta após a misteriosa morte dos quatroadolescentes. Agora, a missão de Darina é cumprir a promessa que fez aHunter: descobrir a verdadeira causa da morte de Arizona — o segundo

Beautiful Dead —, sem deixar de aproveitar o reencontro com seu amado,Phoenix.

Darina fará que tudo o que estiver ao seu alcance para provar à cidade que abela e geniosa Arizona não se suicidou. Nem que para isso ela tenha deenfrentar a fúria dos amigos, de sua mãe, Laura, e do padrasto, Jim, que,mesmo sem saberem seu segredo, não querem vê-la envolvida em maisproblemas.

Em uma investigação árdua e complicada, descobertas intrigantes deixam aprotagonista em pé de guerra com Arizona, que impede de todas as formas queos segredos de sua vida sejam revelados.

Em sua missão para ajudar os Beautiful Dead, que estão em sério perigo,Darina entenderá de uma maneira nada convencional que o orgulho não levaninguém a lugar algum e que a justiça pode, e deve, ser feita sempre.

Eden Maguire é norte-americana e os livros da série Beautiful Dead marcaram

sua estreia na literatura. Admiradora do clássico da literatura mundial O Morrodos Ventos Uivantes, de Emile Brontë, Eden busca atualizar em suas obras o temado amor maior do que a morte. A autora vive nas montanhas geladas doColorado, nos Estados Unidos, onde, além de escrever, dedica-se a uma de suasgrandes paixões: a criação de cavalos.

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Para minhas duas lindas filhas.

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Phoenix Rohr mudou minha vida: entrou no imenso céu escuro dela como umaestrela cadente e brilhante, iluminando meu mundo. Antes de encontrar Phoenix eu erasó meia pessoa —  inacabada e com medo. Depois, por algumas poucas semanas, fiqueicompleta.

Ele e eu fazíamos tudo um pelo outro. Resistimos juntos à crueldade do mundo demãos dadas, ele sempre com o braço em volta do meu ombro. A verdade é que as pessoasdo meu mundo andam com essa mania de perder a vida —  já se foram quatro da escola

em um ano. Intensidade pelo menos não nos falta: agarramo-nos à vida que cada dia nostraz. Amor e sexo, compartilhando cada momento. Eu me apoiava em Phoenix como seele fosse minha salvação. E, então, tudo se desfez em pedaços: eu o perdi — essas três

 pequenas palavras. Ele foi assassinado durante uma briga.

Procurei por ele em todos os lugares; saí da cidade passando com o carro por entre oschoupos e as sequoias enormes até onde o desenho da serra começava a ficar irregular contra o céu. Sussurrei “Phoenix” milhares de vezes; seu nome era tudo o que eu tinha. 

Phoenix, o quarto do grupo de alunos que não voltariam mais. Um, dois, três, quatro

 golpes no coração, mas o último foi, sem comparação, o pior deles.“Phoenix”. 

Eu vivia de memórias. Seus beijos, seu toque, os dias de verão quando nadávamos noriacho Deer, as noites em que ele ligava o som do meu carro e íamos até o lagoHartmann, eu repousando em seu ombro e tentando contar estrelas. Por um tempo tivemedo de me esquecer de tudo.

Daí as asas de anjo, os fantasmas, os espíritos no limbo — como quiser chamar — começaram a dar sinais. E Phoenix voltou.

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Não quero falar com ninguém, preciso ficar sozinha.Ok, então deu tudo certo para Jonas — em parte por minha causa —, mas o

destino de três Beautiful Dead ainda está em minhas mãos. É verdade, aindatenho Arizona, Summer e Phoenix, nessa ordem — os nomes se repetiam emminha cabeça como um mantra.

— Darina, eu queria que você ficasse mais em casa, a gente podia fazer tantacoisa junta, ir ao pedicuro, fazer compras.

Essa é Laura, minha mãe.

— Darina, não dá pra você ficar dirigindo esse conversível, esse carro bebedemais.

Meu padrasto, Jim.

Assim, dá para imaginar o quadro geral.

— Nos encontramos com você no shopping, Lucas e Christian estarão lá. —  Jordan e Hannah, saltitantes e felizes como se tivessem visto um passarinhoverde.

E Logan Lavelle.

— Darina, por que você não vai lá para casa como a gente fazia antes? Euestou com um DVD novinho que a gente pode assistir.

Saiam de perto de mim todos vocês e me deixem em paz.

Minha linguagem corporal deve ter indicado isso, mas essa galera é muitocasca-grossa para conseguir entender. Ou talvez eles estejam só preocupados

comigo.

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De qualquer forma, estou sempre de carro, saindo pela Centennial emdireção à Foxton. Passo pelas montanhas, que se erguem absolutas de cada ladoda estrada contra o céu azul.

Acabo com aquela calmaria do ar aumentando o som no volume máximo episando no acelerador.

Velocidade é a única saída para tirar o peso dos meus ombros, deixandotodos para trás. Dirija, gata, dirija! Estou no meio da área onde houve aqueimada, quilômetros de floresta que ficaram completamente pretos, tocosretorcidos, restos de troncos caídos, terra cinza. Quem sabe daqui a dez anosalguma coisa verde recomece a crescer.

Saindo da área das árvores carbonizadas, acelerando na subida pelasmontanhas, as sequoias voltam a ficar verdes sobre o fundo de pedras cor-de-rosa, meu segredo pesado vai escorrendo dos meus ombros, porque alininguém consegue me pressionar. Ali estou segura.

A batida da música quase estoura meus tímpanos, o barulho das guitarras éestridente, e vou cantando junto com a música aos gritos enquanto me agarroao volante e me inclino cada vez mais para frente no banco. Carroceria de corvermelho vivo e interior de couro bege com detalhes prateados. Brandon Rohrdemonstrou ter um gosto refinado quando escolheu esse carro para mim. Passopela encosta de Turkey Shoot, a dez minutos de Foxton e a trinta dos Beautiful

Dead.

Acho que estou com uma ideia fixa. Sei que estou. A todo momento, cada vezque inspiro, espero por Phoenix, seus olhos lendo o que se passa em minhacabeça e coração, seus braços em volta de mim. Por que não posso estar com elevinte e quatro horas por dia, todos os dias da semana? É o que quero saber.

Aí está Foxton, um descampado de casas de madeira, uma antiga loja dequinquilharias com as janelas lacradas, um cruzamento sem semáforo. Pego arota alternativa, passando pelas cabanas dos pescadores com vista para as

águas turbulentas onde Bob Jonson finalmente vingou a morte de Jonas: jogouMatt Fortune para fora da estrada, e ambos se espatifaram nas pedras antes deafundar no riacho. Levaram a moto de Matt até Charlie Fortune, que aconsertou para que ele mesmo pudesse andar nela novamente. Fico apavoradaquando penso nisso. Não pense nisso, Darina, continue dirigindo.

As casas ficaram para trás e a estrada agora é de terra. Não há nada alémdesse ponto; eu preciso sair do carro e seguir o caminho que os cervos fazemquando vão para o bosque de choupos na encosta. Essa é a quinta, talvez a sextavez, que venho até aqui de carro desde que Jonas se foi, e sempre encontro só

vazio e silêncio. O vento sopra nos choupos, mas não há asas batendo, nemcampo de força dizendo aos vivos como eu para cair fora.

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Phoenix, sou eu. Onde está você? Preciso ver você . Quando ele me abraça, meucoração para, é a única hora em que me sinto em casa. Se eu continuar carregandoesse segredo por muito tempo, vou desmoronar. Conte a Hunter, conte aos outros. Não

 posso fazer isso sozinha.

Escalo a encosta e fico sem fôlego enquanto permaneço na sombra da caixad’água enferrujada. Dá para olhar entre as árvores até o próximo vale semnunca enxergar o antigo celeiro. As folhas dos choupos se agitam e farfalham — como asas? É lindo, lindo mesmo — os choupos e a face inclinada do morro, asflorzinhas amarelas das ervas levantando-se orgulhosas da campina prateada. Eo céu imenso, imenso.

Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o

barulho surdo das batidas do meu coração e minha respiração arranhando agarganta, sem sinal dos Beautiful Dead nem de Phoenix. Procuro por eleenquanto desço rapidamente o morro, mas com tanta atenção que talvez nãoesteja percebendo o óbvio e perdendo a visão do contorno de seu perfil, alto,parado na porta do celeiro, virado em minha direção, esperando. Ele vai ter que estar lá. Como se esperar e querer de verdade fossem o suficiente para fazeruma coisa acontecer...

Minhas pernas se movem roçando a grama, eu me arrasto por baixo da cercade arame farpado e consigo enxergar dentro do celeiro, porque a porta está semexendo como sempre. Nos ganchos estão pendurados antigos arreios, e asteias de aranha se espalham entre todas as vigas.

— Por favor!

Vamos deixar isto claro: estou onde os Beautiful Dead se encontravam. Elesnão se deixam ver, a menos que queiram que você os veja. Na verdade, elesprecisam permanecer em segredo para manter os vivos — eu e você, porexemplo — longe dali, senão eles acabam... Eu já ia dizendo — mortos —, masseria esquisito demais. Quer dizer: Phoenix, Hunter, Arizona, Summer e o resto

 já são parte do passado, são aparições que voltaram do mundo dos mortos.

O celeiro estava vazio — chequei cada centímetro, até no palheiro, aondefinos fachos de luz chegavam ao assoalho podre. Esse foi o lugar onde eu reviPhoenix pela primeira vez, no centro de um círculo em que todos cantavam — eram os Beautiful Dead e seu mestre que davam a ele as boas-vindas depois deseu retorno do limbo. Bum! — minha cabeça explodiu. Na hora em queconsegui juntar os cacos, meu namorado já era parte da gangue de Hunter etinha sua marca mortal para provar: uma tatuagem de asas de anjo entre suasescápulas, bem onde a faca tinha entrado.

— Phoenix, volte! — implorei.

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Saí do celeiro e atravessei o quintal, perdia as esperanças a cada passo.

— Hunter — gritei. — É você quem está fazendo isso! Eu odeio você!

O mestre dos zumbis continuou mantendo-os invisíveis. Ele achava queainda não era a minha hora de encontrar os Beautiful Dead novamente. Elemanteria seu ritmo, os deixaria acumulando forças depois do ocorrido com

 Jonas. E vocês já devem saber que eles não têm livre-arbítrio; Hunter controlacada coisinha que fazem. Mas, mesmo estando todos invisíveis, Hunter aindapôde me ouvir dizer que o odiava, bem ali, naquela hora.

Decidi apelar para seu lado sentimental, embora eu soubesse que ele nãotinha um lado sentimental...

— Hunter, por favor. Estou morrendo de saudade de Phoenix... Dói demais.

Fiquei esperando pela resposta que não veio, parada ali, ao lado dacarroceria do caminhão enferrujado.

Ainda sem resposta, subi na varanda da casa, espiei pela janela sinistra econsegui enxergar a cadeira de balanço perto da copa e a mesa coberta deséculos de poeira. Girei a maçaneta e empurrei com o ombro a porta trancada.

— Hunter, eu odeio você — resmunguei.

Um mês atrás eu teria saído andando e falado para mim mesma que todaessa história de zumbis era maluquice, que devia ser efeito da dor no meucérebro fragilizado — fazendo com que eu visse coisas que não existiam.Falando sério, de que outro jeito se pode levar a vida adiante quando a pessoaque a gente mais ama morre esfaqueada em uma briga? Perda é a uma palavraque não dá conta de dizer o que sentimos. É preciso chorar, gritar e xingar aomesmo tempo, começa-se a cair no fundo de um buraco cujas paredes sãomoles, sem nada a que você possa se agarrar. Na opinião de Kim Reiss — umaterapeuta a quem Laura me mandou ir —, é justamente nessas situações que o

cérebro fica mais propenso a nos pregar peças cruéis.Mas isso foi há quatro semanas. De lá para cá, eu viajei no tempo, desvendei

o mistério sobre a morte de Jonas Jonson e passei a acreditar de verdade emtudo que acontecia. Então, soube que Hunter, o mestre dos zumbis, com certezaestava me deixando em banho-maria e me impedindo de ver Phoenix. Era dele aescolha de manter todos afastados.

— Se você continuar com isso, não volto mais — ameacei. Pareceu um blefebarato até para mim. — Você precisa de mim, eu sou o seu elo com o mundodos vivos.

Silêncio e vazio, nada mais.

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— Arizona precisa de mim — insisti. Já fazia quase um ano desde que elatinha se afogado no lago Hartmann. — O tempo dela está começando a seesgotar.

O vento soprou pela varanda levantando uma tábua solta do telhado. Eutinha tentado fazer tudo que podia para que os Beautiful Dead voltassem, masnada adiantou. Mesmo assim, fiquei lá a manhã toda, sentada no capô daquelecaminhão velho, olhando para a Pedra do Anjo.

Por fim, desci e resmunguei:

— Tá bom, você venceu — e comecei a caminhada de volta. — Afinal decontas, preciso ir a um enterro.

Não era o verdadeiro enterro de Bob Jonson. Depois de quatro mortes em umúnico ano, parei de ir. Mas acabei indo para a vigília depois.

Todos os velhos motoqueiros estavam lá com as roupas de couro com franjas,cavanhaques e cabelos grisalhos desgrenhados. As Harleys estacionadasformavam m semicírculo do lado de fora do bar preferido de Bob. Como eu eramenor de idade, fiquei do lado de fora com Jordan, Lucas e Logan.

— Tudo é isso é tão triste — Jordan falava com os olhos cheios de lágrimas.Uma mecha de seu cabelo ondulado caiu sobre o rosto. Fiquei esperando para

ver se o tímido Lucas ia abraçá-la e confortá-la.

O moleque nem se mexeu, então me aproximei e dei um lenço para ela.

— Você estava lá, Darina — ela disse. — Você viu quando ele caiu nopenhasco.

Concordei.

— Não foi um acidente, Bob forçou Matt para fora, na beira do penhasco,acelerou a moto e se jogou atrás dele. Mas ele, sem dúvida, queria acabar com

tudo.

— Mesmo assim é muito trágico — Jordan insistiu. — Ele conseguiu sevingar, não precisava morrer.

— Sim, precisava — Logan falou, olhando não para Jordan, mas para mim.— Nada mais fazia sentido para Bob depois que Jonas morreu, a vida deleestava vazia. Ele ia sempre à minha casa para beber com meu pai. Eu mesmo vio cara ir perdendo completamente o eixo. Não é, Darina?

Concordei novamente.

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— A mãe de Jonas veio de Chicago? — perguntei a ele.

— Sim, ela veio de avião com a irmã dela. Elas estão aí dentro com os caras.

— E como ela está? — Jordan perguntou.

Uma pessoa pode perder o filho e depois se separar do marido, mas aindaassim se importar com ele — a prova disso é que veio para o velório.

— Como ela poderia estar? — retruquei.

Outros colegas de Ellerton High estavam chegando. Alguém ligou o som docarro e de longe dava para ouvir Bob Dylan estourando nos alto-falantes. Erauma música chamada ―Knocking on Heaven’s Door‖. 

— Bob Jonson teria gostado — Logan disse.

A letra triste da música me fazia querer chorar, só que eu já tinha dado meuúltimo lenço a Jordan. Em vez disso, fixei o olhar nos tanques e escapamentosbrilhantes das motos e tentei lembrar como Jonas e Zoey tinham ficado felizes.

— Sorrindo por quê? — Jordan perguntou, impaciente. — Você é esquisita,Darina — e saiu andando, com Lucas na sua cola.

— Não, você não é não — Logan me garantiu, tentando pôr um curativonaquilo que ele supunha ser o meu ego ferido. — Eu sei no que você estápensando.

Eu o encarei.

— Você pensa que sabe, Logan, mas não sabe nada!

Claro que tem uma história antiga entre mim e Logan, que me faz ter deafastá-lo toda vez que ele tenta se aproximar. Mas, para falar a verdade, elenunca deixou de me tratar como a menina do jardim de infância, a vizinha para

quem ele deu um buquê de orquídeas e foi seu par no primeiro baile da escola— como se a gente fosse ser assim, próximos para sempre, vivendo num mundoencantado onde sabiás cantam e as badaladas dos sinos da igreja soam ao longe.Ele deve estar ficando louco!

Senti seu olhar magoado. Ele passava as mãos indecisas no cabelo, castanho eencaracolado. Daí ele partiu para a redução de danos.

— Bem, ninguém pode saber exatamente o que o outro está sentindo, éóbvio. Mas você não é esquisita de maneira alguma.

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— Valeu — resmunguei, vendo a mãe de Zoey deixá-la no estacionamento.Zoey ainda estava na cadeira de rodas, mas tinha pintado e arrumado o cabelo,estava bonita. Fui direto falar com ela.

— Ei — ela disse com uma voz suave.

Tentei decifrar o jeito como ela sorriu para mim, e a palavra ―exausta‖ foi aúnica que arrumei; devo ter lido em algum lugar de seu rosto.

— Ei, Zoey — respondi. Ela parecia pequena e frágil na cadeira de rodas aolado das Dynas e Softtails monstruosas. — As coisas estão difíceis para você,não?

Ela assentiu.

— Vim por causa de Jonas.

— Você ainda tem aquela fivela de cinto da Harley que era dele? — perguntei. Não precisava quebrar gelo nenhum com Zoey, a gente já ia diretoao que interessava.

Levantando seu agasalho, ela me mostrou que estava usando a fivela em seucinto.

— O que você acha, Darina, será que Jonas e seu pai estão juntos agora?

— Boa pergunta! — desdenhei. — Depende daquilo em que você acredita.

Um grande silêncio pairou no ar. Uma dupla de ogros cabeludos cheios debroches nas roupas saiu do bar e subiu nas motos. Duas mulheres usando

 jaquetas cheias de estampas e calças pretas ficaram do lado de dentro da porta.Vi que a menorzinha e mais bonita era a mãe de Jonas.

— No que você acredita? — Zoey quis saber.

O que eu ia fazer agora? Fingir que nem ligava ou falar aquilo que ela queriaouvir?

— Acho que estão juntos — falei sem vontade.

— Juntos — ela repetiu com um suspiro. — Você não está dizendo isso sópor dizer?

Eu estava evitando a conversa. Tinha certeza de que Jonas havia se separadodo grupo dos Beautiful Dead no dia em que seu pai morreu; os dois agoraestavam num mundo de paz e liberdade. Pelo menos foi assim que Phoenix me

explicou. Mas eu não podia em pensar em dizer isso a Zoey.

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— Eu acredito, sim — disse por entre os dentes.

Vocês já tiveram de guardar algum segredo tão grande que toda vez que

abrimos a boca ele se debate para sair? Eu me imaginei pulando na garupa deuma das Harleys, esticando meus braços e gritando: ―Todos vocês, prestematenção. Jonas e seu pai estão numa boa, eles estão livres. Conseguiram a pazque desejavam. Fiquem felizes por eles!‖. 

— Darina, você está bem? — Zoey perguntou.

— Estou bem — menti.

Por sorte ela mudou de assunto.

— Lá está a Sra. Jonson. Será que devo falar com ela? O que você acha,Darina?

— Acho que sim. Quer que eu vá lá falar um oi e traga ela para cá?

Zoey fez que não com a cabeça. Depois das múltiplas cirurgias pararecuperar a coluna nos lugares quebrados por causa do acidente, para ela aindaera um esforço grande se levantar da cadeira de rodas e dar passos lentos evacilantes em direção à porta do bar.

Os meninos no estacionamento fizeram o que tinha de ser feito: tentaram nãoolhar muito. Um dos motoqueiros grisalhos, sentado em sua Dyna, largou acerveja, veio até ela e disse:

— Ei, deixa que eu ajudo você. — Juntos, eles subiram o único degrau emfrente à porta.

Haley Jonson hesitou quando viu Zoey e, em seguida, forçou-se a sorrir.

— Zoey, olha só!

Zoey mexeu as mãos como se tivesse realizado um truque de mágica.— Tcha-nam!

— Puxa, que demais — Haley disse, engasgando e com os olhos cheios delágrimas. Ela olhou para Zoey por um bom tempo, talvez pensando: Se alguémtinha de sobreviver ao acidente, por que não meu filho Jonas? Vários sentimentos semisturaram em seu rosto pálido, até que apertasse a mão de Zoey.

— É bom ver você — ela enfim sussurrou.

— Você soube? — Zoey murmurou. — Darina me ajudou a finalmentelembrar tudo o que aconteceu.

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— Querida, pare!

Zoey interrompeu sua observação.

Foi como se todo mundo no bar e no estacionamento estivesse segurando arespiração, esperando por alguma coisa para quebrar aquela tensãoinsuportável entre a mãe e a namorada de Jonas.

— Eu não preciso dos detalhes — Haley disse. — O passado é passado, elenão volta, não importa quanto a gente se esforce.

— Eu queria... — Zoey começou, mas sua voz foi perdendo a força como umbrinquedo de corda, e ninguém jamais soube o que era que ela queria.

— Escute — Haley falou baixinho, levantando o queixo de Zoey comdelicadeza para olhar seu rosto. — Olhe para frente, não olhe mais para trás.

Liguei para a Sra. Bishop para dizer que levaria Zoey para casa. Fomosdirigindo ao longo do Hartmann, a maior parte do tempo em silêncio, até queparei o carro em um mirante, de onde dava para ver todo o lago cintilando aosol.

— Eu gostaria que houvesse razões — Zoey começou. Ela inclinou a cabeça,encostando-se ao couro macio do apoio do banco, de olhos quase fechados.

— Para quê? — Tirei meus óculos escuros do porta-luvas e os coloquei,depois fiquei na mesma posição que ela.

— Para isso tudo. Jonas, Arizona...

— Summer e Phoenix — acrescentei. — Quatro em um ano. Qual aprobabilidade de isso acontecer?

Zoey suspirou.

— Se ao menos a gente soubesse o porquê.O sol estava forte, chegou a empenar o capô vermelho.

— Eu sei, tudo o que a gente queria era que fizesse algum sentido. Mastalvez seja aleatório mesmo.

— Tudo é muito assustador — ela observava o lago à distância. — ComoArizona pôde se afogar em uma coisa assim tão linda?

— Quantas perguntas! — reclamei. Mais uma vez, era hora de sair pela

tangente. — Olha, uma águia lá em cima.

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A ave planava em uma corrente de ar quente, as penas das pontas de suasasas bem abertas. Então ela se curvou e saiu da corrente, pairando sobre umponto, pronta para se lançar ao ataque.

— Eu não acredito que Arizona tenha feito isso — Zoey virou-se em minhadireção.

Nós estávamos pisando num campo minado de novo. Escondi minhasreações irritadas atrás dos óculos escuros.

— Ela não se suicidou, de jeito nenhum!

— Disseram que foi isso.

—  Quem ―disseram‖? O povo da cidade, os jornalistas, o que é que elessabem?

Tinha saído nos jornais e na televisão: uma segunda fatalidade em EllertonHigh. Dessa vez um afogamento que parecia suicídio. Foi isso que o relatório daperícia policial sugeriu.

— Eles não conheciam Arizona como eu conhecia — Zoey assistia à águamergulhando em direção ao chão e depois subindo de volta com um pequenoanimal pendurado em seu bico afiado. — Para começar, se ela quisesse se

matar, não seria na água.Não adiantava, eu estava tentando resistir, mas era impossível não especular .

— Estou acompanhando seu raciocínio, você está querendo dizer queArizona nadava muito bem, sabia mergulhar, inclusive com equipamento etudo...

— Não, não é isso. Quero dizer que Arizona era toda preocupada com ocabelo, maquiagem, com sua aparência como um todo, tente lembrar. E elaadorava fazer um espetáculo a todo momento. Se ela soubesse que a achariam

morta, com certeza tomaria um maldito cuidado para que estivesse bonita. — Zoey fez uma pausa e depois ficou vermelha. — Estou sendo malvada demais?— ela perguntou.

— Tá — sorri. — Mas concordo totalmente. —  E ela não mudou nada, quisacrescentar. Na última vez em que a vi, junto com os Beautiful Dead lá na encosta deFoxton, ela ainda era a mesma escandalosa carente de atenção .

Mordi meu lábio. Não fale sobre isso, nem chegue perto. E, para me lembrar,Hunter mandou milhões de asas batendo em volta da minha cabeça, deixando-

me tonta e forçando para que eu me sentasse direito no banco do carro.

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— Então você concorda, ela não planejou fazer isso? — A teoria de Zoey a fezse ajeitar no banco também.

Eu dei de ombros, as asas ainda estavam à minha volta. Apesar de já não meassustarem mais, sem dúvida elas prendiam a minha atenção.

— Você acha que sou o quê, uma leitora de pensamentos? — reclamei.

— Pense a respeito, Darina. Alguém por aí com um pingo de consciênciaviria esse caminho todo até aqui, sabendo que ela estava sem carro, que ficou nagaragem, porque estava quebrado, e andou tudo isso a pé, uma distância de unscinco quilômetros, coisa que a gente sabe que Arizona nunca fez na vida...?

— Certo — levantei as mãos em sinal de rendição. Eu estava quase

ensurdecida pelo aviso de Hunter que dizia para não trair os Beautiful Dead. — Não quero falar sobre isso.

— Darina! — Zoey deixou bem claro que estava decepcionada.

Balancei a cabeça e liguei o motor.

— Como a Sra. Jonson disse, passado é passado.

Ele não volta, ela tinha acrescentado. Só eu sabia que era possível, ou que pelomenos para os Beautiful Dead era possível voltar — e voltavam. As asas batiamcomo loucas enquanto eu me afastava do mirante e pegava a estrada.

— Oi, que bom finalmente ter notícias de vocês — eu disse para as asas.Deixei Zoey na casa dela e já estava indo para a minha. — Eu estava ficandopreocupada, achando que vocês não fossem mais voltar.

Dirigi com a capota baixada e asas revoavam em volta da minha cabeçanuma confusão feita de penas; mais um lembrete que uma advertência.

— Sabe quantas vezes já fui até Foxton de carro ultimamente? Acho que sabe.

Parei no semáforo fechado e olhei para o lado.

— Phoenix!

Ele estava sentado no lugar que Zoey tinha acabado de vagar, esperando queeu o visse e me dando aquele sorrisinho torto.

— Meu Deus! — gritei. O semáforo abriu e passei pelo cruzamento tão

devagar que o cara de trás quase bateu no meu para-choque.

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— Phoenix, não faça isso!

— Você quer que eu vá embora? — perguntou, naquele tom de voz molenga

e preguiçoso. — Eu posso ir... — esticou a mão para abrir a porta.— Não, espere! É que eu quase tive uma parada cardíaca. Vou fazer o retorno

com o carro. — Fiquei atrapalhada com os controles e parei bruscamente numestacionamento ao lado da mercearia.

— Ei, Darina — Phoenix sorriu.

Estiquei minha mão para tocá-lo e ver se ele... Estava ali mesmo.

Ele segurou minha mão com força.

— Quanto tempo, hein?

— Uma eternidade — suspirei. Tenho contado os dias, as horas e os minutos.Mas Phoenix estava mesmo lá e foi difícil encontrar algo significativo paradizer. Em vez disso, fiquei olhando nossas mãos dadas, a mão dele tão grande,a minha bem menor, mais delicada. Fiquei me deleitando com a sensação deseu polegar acariciando a palma da minha mão.

— Hunter falou para gente sair de lá — ele disse. — E você sabe como ele é.

— Autoritário — respondi.

— É. Eu até poderia fazer uma piada de morto-vivo sobre a falta de coraçãodele... Mas vou poupar você.

— Melhor.

— Muito de mau gosto?

Claro. Sem sentimentos e, literalmente, sem coração — passou a ser assim

quando voltou do mundo dos mortos, com a pele tão branca que parecia quenunca tinha visto o sol.

O rosto lindo e suave de Phoenix fez meu coração bater rápido o suficientepor nós dois.

— Estou aqui, agora — ele disse suavemente. Depois me fez sair do banco domotorista e tomou meu lugar. Sem dizer nada, foi dirigindo até uma estradaque levava para fora da cidade, e, então, cinco minutos depois havíamospassado as casas e estávamos indo em direção à estrada de terra que levava aoriacho Deer.

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O carro pulava e se sacudia, eu olhava para o céu. Nem ao menos uma únicanuvem e sem vento nenhum, caso alguém precise de um boletimmeteorológico.

Phoenix estacionou ao lado do riacho, perto de um monte de salgueirosdourados que começavam a crescer, agarrou minha mão de novo, dessa vezpara me puxar para fora do carro e me levar para trás dos salgueiros onde haviaum barranco que dava para a água. Ficamos lado a lado, um segurando nacintura do outro, olhando para baixo.

A água, tão cristalina que víamos os seixos no fundo do riacho, fluíatranquilamente levando as primeiras folhas de outono caídas em sua superfícieque rodopiava.

Sentamos na rocha para absorver os últimos raios de sol: Phoenix com aspernas muito longas cruzadas, deixando um vão para que eu pudesse sentarapoiando as costas em seu peito enquanto ele me abraçava.

— Senti sua falta — eu disse. O que não bastou para explicar nem um poucoo corte, o buraco que ficou no meu peito, as noites de solidão sombria semninguém para me ajudar a sair do desespero.

Virei-me para olhar seu rosto, traços que não se enquadravam exatamentenos estereótipos de beleza, apesar de sua testa alta e as maçãs do rosto estarem

quase lá e aqueles enormes olhos cinza serem mais que o estereótipo em si.Não, era a boca que o fazia diferente, um pouco viradinha para baixo só de umlado, e o modo como seus lábios se mexiam para falar de um jeito mole erelaxado.

Ele se inclinou para me beijar.

De novo! De novo!

Meu corpo pedia. Era tudo que eu queria. Nada mais importava: lábios

colados, respirações em compasso, olhando para ele tão de perto por umaabertura tão pequena entre meus cílios pretos, que sua imagem ficava borrada.

Phoenix me puxou para trás contra o mato comprido e seco e me beijou commais força. Meus sentidos estavam à flor da pele, e eu era levada pela paixãoque aumentava, ficando mais forte e perigosa que a correnteza de qualquer rioentre as montanhas.

De repente, ele parou e afastou a cabeça. Apertou os olhos e levantou asmãos para que eu não ficasse tão perto.

— Que aconteceu? — Eu olhei em volta. Alguém estava espiando a gente?Qual o problema? — Não me diga. Hunter. Ele está aqui.

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Phoenix vacilou.

— Não, é, quer dizer, ele está sempre aqui.

— O mestre — resmunguei. A paixão ardente esfriou rapidamente, e euconsegui me recompor. — Cara, ele é mais eficiente que qualqueranticoncepcional!

Rimos. Daí ele voltou a ficar sério.

Phoenix explicou:

— Existe uma regra, eu não posso... Sabe... Não posso me entregar porinteiro. Precisamos manter certa distância.

— Quem disse? Hunter? Ele não sabe que as regras são feitas para serquebradas?

Hunter era bem pior do que Laura e Jim. Em outras palavras, suas puniçõeseram muito mais duras. Se eu ficasse na rua até tarde, Laura poderia me deixarde castigo — afinal era a casa dela, ela pagava as contas etc. etc. Só que, paraPhoenix, obedecer às regras era sua única chance de continuar por aqui — casoele passasse dos limites colocados por seu mestre, seria expulso de Foxton evoltaria para o limbo, ponto final. E, prestando mais atenção agora, eu podia

ouvir as asas de milhões de almas perdidas no limbo, batendo e implorandopara estar no lugar dele.

— Tá certo — aceitei. Sem retrucar .

Phoenix fechou os olhos num suspiro.

— Você entende... Sabe quanto isso é difícil para mim?

— Sei, sim — murmurei. — De agora em diante prometo manter minhasmãos longe de você!

Nessa hora o humor já não era tanto daqueles de fazer a barriga doer, tinhavirado uma coisa mais ácida.

— O que eu fiz para merecer isso? — ele perguntou, me segurando para queeu não saísse. — Para merecer alguém igual a você, Darina? Você é a coisa maislinda que eu já vi, além de nunca saber qual vai ser a próxima loucura que vaifazer ou dizer. Você sempre me pega desprevenido.

— E você lê meus pensamentos — brinquei. Fui me sentindo rapidamentetomada pela escuridão daquele lugar deserto e só consegui voltar a mim

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mudando de assunto. — Então, pode me dizer por que Hunter deixou você viraté aqui?

Phoenix deu de ombros.— Ele nunca diz os motivos. O fato é que só apareceu de novo hoje cedo.

Não sei onde se enfiou desde que Jonas partiu.

— E onde vocês estavam enquanto isso? — perguntei. Tinha certeza de quenão era em Foxton.

Ele ficou inquieto e olhou para o lado.

— Arizona ficou no comando. Ela disse que tínhamos de sair de Foxton por

uns tempos, até que as coisas voltassem ao normal por lá.

— E aonde vocês foram? — insisti.

— A alguns lugares onde nunca tinha ido antes; não posso falar exatamente.

Fiquei irritada.

— Você quer dizer que ―não vai falar‖ porque Hunter não quer. 

— Tudo que sei é que Hunter não está mais lá, e Arizona cuidou de nós e

pediu claramente para que não fizéssemos perguntas.

— Tá bom, você não precisa responder, mas posso tentar adivinhar, muitoeducadamente: Hunter voltou para o limbo para contar as novidades paraquem, ou o que, quer que esteja acima dele: um tipo de mestre dos mestres,deixando os Beautiful Dead numa espécie de esconderijo, hibernando até queele voltasse ao mundo dos vivos — analisei a reação de Phoenix, mas ele nãotinha expressão nenhuma, o que significava que eu estava certa. — Isso éinteressante... Alguém ou algo diz a Hunter o que fazer. E, escute, Phoenix, nãoquero que você me diga que não preciso ocupar minha linda cabecinha com

isso, tá?

— Como se adiantasse — ele apoiou as costas na pedra e as mãos atrás dacabeça. — Isso seria um desperdício de energia.

— E como foi receber ordens de Arizona? — Havia uma pontinha deprovocação na pergunta, admito.

— Arizona é legal, ela é inteligente, mesmo.

— Devo ficar com ciúme? — eu só estava meio brincando porque, no fim das

contas, conhecia dúzias de meninos da escola que ficavam enlouquecidos com aaparência e o estilo de Arizona, mesmo que sua personalidade hostil fosse tão

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convidativa quanto pular sem roupa num lago congelado. Assim comoPhoenix, todos a admiravam.

— Como assim? — perguntou. — Agora, falando sério, não venha quererarrumar confusão com ela, tá bom?

— Não quero confusão, tenho apenas que salvar sua alma zumbi — lembrei-o da razão primordial pela qual estávamos ali. — Muitas pessoas estãovoltando sua atenção para Arizona desde que o mistério em torno de Jonas foiesclarecido. Zoey, por exemplo, é uma delas.

Phoenix endireitou a coluna.

— Ela tem feito perguntas?

— Sim, mas não se preocupe, nunca contei nenhum segredo.

E ele relaxou de novo.

— Zoey tem dito que não acredita que Arizona tenha se afogado e quetambém não acha que ela tenha morrido num mero acidente. E ela deve estarcerta.

— Você acha? — Phoenix, o Sr. Cuidadoso, não deixou escapar nada e veiome lembrar de que havia coisas que ele não podia contar nem mesmo paramim.

— Acho. Por que Hunter a teria escolhido se achasse que foi um acidente? — eu sabia que o mestre só cuidava de injustiças e dúvidas; bala perdida emSummer Madison por um atirador desconhecido; a morte de Phoenix poresfaqueamento e não numa briga entre gangues. Uma morte comum,explicável, não mereceria tanto a sua atenção. — Ela faz parte dos BeautifulDead porque há um mistério.

Ficamos sentados em silêncio por um tempo, observando o fluxo sem fim da

água abaixo de nós.

— Darina, você não precisa fazer isso se não quiser — quando começou afalar, Phoenix parecia estar num lugar muito remoto de sua própria cabeça. — Há uma boa chance de a gente conseguir descobrir o que aconteceu sem você.

Reagi, magoada.

— Ah, sei, já tiveram dez meses inteirinhos e aonde conseguiram chegar?Vocês só têm dois meses agora, não se esqueça.

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Como esquecer que uma alma só existia durante doze meses na comunidadezumbi, nem um dia a mais. Fim.

— Mesmo assim, você não precisa fazer se não quiser.Eu me levantei e recuperei o equilíbrio de braços abertos, bem na beira da

pedra.

— O que você está querendo dizer? Que podem apagar minha memória comseus superpoderes e eu saio daqui como se você nunca tivesse existido? Queótimo! Obrigada!

— Há uma alternativa, que talvez seja pedir demais — Phoenix me deu achance de sair de toda essa loucura, mas dava para ver em seus olhos que ele

não esperava que eu a aceitasse. Ele sabia direitinho.

— Alguma vez eu falei em desistir?

Ele me beijou muito suavemente dessa vez e acariciou minha nuca.

— Então você vai ajudar Arizona do mesmo jeito que ajudou Jonas?

— Sim. E vou ajudar Summer, e você também.

— Então está na hora — ele disse, me levando pela mão.

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Mesmo que a tarde no celeiro lá em Foxton estivesse bem ensolarada, euestava com frio só de calça jeans e camiseta. Tremi e fiquei grudada emPhoenix.

— Quem é esse aí? — perguntei a ele enquanto apontava para um cara novoque parecia tão perdido e confuso quanto eu na primeira vez que encontrei osBeautiful Dead.

Phoenix não sabia dizer.

— Nunca o vi.

O novato estava no chão, sentado em um canto escuro e abraçando os joelhos. Parecia não respirar direito, como se sentisse muita dor.

— É Lee Stone — Arizona o apresentou aos Beautiful Dead. — Lee, este éPhoenix Rohr.

Lee teve dificuldade para levantar. Phoenix tinha mais de um metro eoitenta, mas esse cara era ainda mais alto. Grande e forte, tinha cabelos claros

queimados de sol, como se acabasse de sair da praia.

— Summer, venha cá cumprimentar Lee — pediu Arizona, já puxandominha amiga para dentro da pequena roda e me deixando do lado de fora.

Phoenix percebeu o que ela fez e abriu espaço na roda para mim também.

— E aí, Lee? Esta é Darina.

O coitado do garoto mal conseguia ficar em pé. Ele não tinha ideia de ondeestava e parecia sentir falta do bronzeado que costumava combinar com seus

músculos e cabelos descoloridos.

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— Fica tranquilo, tá tudo bem — disse Summer para acalmá-lo. Ela vestiauma bata de algodão larga, bem leve, e calça jeans.

Lee continuava mudo; era possível enxergar dor e medo nas expressões de seurosto.

— O que está acontecendo? — perguntei baixinho a Summer enquanto o frioaumentava, apesar de o sol continuar brilhando.

— Estamos esperando por Hunter.

Fiquei arrepiada — em parte pela falta de calor, mas também por ouvir onome do mestre. Senti Phoenix segurar minha mão com firmeza e força.

— Então não faça mais perguntas — Arizona avisou —, porque não temos asrespostas.

À medida que o tempo passava, mais figuras familiares apareciam: Evechegou silenciosa com Kori, o bebê, pelo quintal, e Donna desceu a escadabamba do palheiro. Elas eram os braços direitos de Hunter — sempre alertas e apostos para ativar o campo de força que repelia os vivos. Até então eu nuncahavia perguntado sobre suas histórias, e elas nunca tinham falado a esserespeito. Durante a espera ninguém disse uma palavra.

Portanto, tive um bom tempo para juntar as peças. O pobre Lee devia estarsoterrado debaixo de uma avalanche de confusões, mas eu conseguia montar oquebra-cabeça sem grandes dificuldades. Jovem, alto e atlético, cheio de dor edúvidas. De quem ele me lembrava, quando vim pela primeira vez ao celeirotanto tempo atrás? Um garoto recém-morto, pálido e perfeito, dando seusprimeiros passos vacilantes ao sair do limbo para entrar no mundo zumbi dosBeautiful Dead, justamente como Phoenix fez antes dele.

Agora, tudo que eu precisava fazer era achar a marca mortal naquela pelemacia e gelada.

Uma sombra estendeu-se na entrada do celeiro, e todos nos viramos quandoHunter apareceu.

Ele estava sisudo, mais rígido, inclusive mais do que eu me lembrava.Absolutamente nada se mexia em seus traços de pedra enquanto ele andava emdireção a Lee e seus olhos tomavam nota de cada detalhe.

— Você conseguiu voltar — ele reparou.

— O que é isso? Que aconteceu? — Lee tomou fôlego e parecia pronto para

fugir ou brigar; ainda não tinha decidido qual dos dois.

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— Pode ficar calmo — disse Hunter. — Sei que neste momento você estásentindo muita dor, mas saiba que está a salvo aqui com a gente.

Suas palavras pareceram tranquilizar Lee, que agora dava a primeira olhadaatenta de verdade à sua volta, vendo Summer e Arizona, Eve e o bebê, Donna,Phoenix e eu.

— Tudo isso é estranho demais — ele balbuciou. — A última coisa de que melembro é que estava descendo um morro com meu snowboard...

— E agora você está aqui — Hunter completou. — Aqui é o que importa.Você tem algo importante a resolver, e nós vamos ajudá-lo a fazer isso.

— Eu estava sozinho no morro, fui o primeiro a chegar lá em cima. — Um

trauma do passado, derradeiro e irreversível, ainda ocupava o pensamento deLee. — Céu azul, neve perfeita, então, de repente...

— A luz se apagou — ele foi interrompido por Arizona. — E você não soubeo que houve de errado. Tem um branco enorme na sua memória, grande osuficiente para engolir você inteiro, e sente tanta dor que mal pode suportar. Agente sabe.

— Precisamos dar as boas-vindas a você — Hunter disse e fez com que Leeficasse no centro do círculo e tirasse a camisa. Em seguida, virou-se para mim e

falou. — Darina, você pode sair agora. Espere na casa.

Phoenix sorriu concordando, e eu senti o aperto de sua mão afrouxar. Aindaque eu quisesse discutir com Hunter sobre minha saída, a sensação de seusolhos austeros me perfurando fez esse desejo sumir. Com minha força devontade diminuída, saí do celeiro sem dizer um ―a‖. 

Só que Hunter não tinha dito nada sobre virar-se e olhar para trás. No meiodo caminho dei uma olhadinha.

Lee estava no centro da roda, e os Beautiful Dead cantavam. A voz deles erasuave e ritmada, a fisionomia, receptiva. Os traços delicados de Summerpareciam especialmente iluminados, seus olhos brilhavam, e o cabelo flutuavaao redor dos ombros. Ao lado dela, Arizona tinha despido aquelas camadas deamargura e sarcasmo que a cobrem, permitindo que uma alegria sinceratomasse conta dela por inteiro. Com seu bebê no colo, Eve fechou os olhos numtranse.

Darina, espere na casa! Hunter ainda estava de costas para mim, mas eletinha olhos nas costas e não precisava falar alto para distribuir ordens. Comoum robô, virei para frente e continuei andando.

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Porém, eu continuava ouvindo os cânticos, mesmo da varanda da casa e,entre as outras vozes, ouvi Phoenix dizer ―Bem-vindo, Lee. Bem-vindo aomundo dos Beautiful Dead‖. 

Eles fizeram sua sessão zumbi por lá, e depois Summer foi até a casa mebuscar.

— E aí, Darina, como você está? — perguntou.

Respondi com a cabeça.

— Quanto tempo vocês têm?

— Certo, uma pergunta idiota — ela deu uma tapinha no braço da cadeira de

balanço para que começasse a se mexer para trás e para frente, como o pêndulode um relógio antigo. — Você tem visto meus pais ultimamente?

— Não, não tenho passado por aquele lado da cidade.

— Minha mãe não sai muito de casa — Summer me confidenciou. — Faz setemeses e meio que eu faleci, e ela continua lá dentro.

Contei a ela que sua mãe ainda precisava de um tempo para se recuperar.

— Seu pai está cuidando dela. Laura o encontrou no shopping e ele disse queestá trabalhando em casa agora, que não precisa mais ir ao escritório.

— Ainda sonhando com a casa das pessoas — Summer lembrou com umsorriso. — Quando eu era pequena, adorava ficar olhando enquanto eledesenhava aquelas plantas, aquelas linhas e ângulos mágicos. É o jeito dele defazer sonhos virar realidade.

— Ele é um ótimo arquiteto — concordei. Eu sabia que o Sr. Madison haviaprojetado a casa onde Zoey e sua família viviam, além da maioria das mansõesdo bairro de Westra, inclusive a dos Taylor, que até saiu numa edição da revista

 Mountain Living uma vez.

Estranhamente, a casa dos próprios Madison não era grande coisa. Claro, eragrande e tinha portas de vidro do lado da casa que dava para o pico Amos, evocê conseguia ver quilômetros e quilômetros de serras e florestas, mas ointerior era bagunçado e aconchegante, cheio de instrumentos musicais deSummer, além de quadros coloridos e inacabados pendurados na parede.

— Estou feliz por meu pai estar trabalhando de novo — disse Summer,aliviada. — Mamãe ainda tem pintado? Ah, eu me esqueci... Você não sabe...

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Para frente e para trás, para frente e para trás, balançava a cadeira. Umapequena ruga de preocupação marcava a testa serena e pálida de Summer.

— Quer dizer que Lee entrou para o seu grupo — resolvi puxar outro papo.Eu nunca apressava as coisas com Summer como geralmente faço, ela medesacelerava e me fazia querer tomar conta dela, mesmo agora. Assim, a genteencontrava tempo para conversar.

— Ele precisa de respostas. — Summer foi até a janela e olhou para o quintal.— É duro morrer sozinho numa descida de esqui aos dezenove anos.

Como se morrer baleada num tiroteio sem motivo dentro de um shopping não fosse!  Pensei no modo como Summer partiu deste mundo, nas mãos de um psicopatadesconhecido. — Você viu a marca mortal de Lee?

Na parte de baixo de sua coluna, um par de asas de anjo perfeitas.

— Não se preocupe com Lee, Darina, Hunter vai cuidar dele. É em Arizonaque devemos manter o foco agora.

— Eu sei. — Atravessei o pequeno espaço entre a porta e a escada. — Nãovai ser fácil, é complicado gostar de Arizona — admiti.

— Quem disse que precisa gostar dela? — Summer me deu um daqueles

sorrisos grandes e abertos. — Tudo o que você tem a fazer é descobrir o queaconteceu mesmo, e ela ficará livre.

— Com Jonas não foi difícil — tentei explicar. — Todo mundo gostava dele.Não entendo por que Arizona age com tanta grosseria.

— Porque sim! — Summer abriu a porta para deixar o sol se esgueirar sobreo velho tapete. — Só não leve para o lado pessoal.

Ri um pouco.

— Mas é pessoal. Você não viu como ela me botou para fora do círculo?

— Então tente não reagir, relaxe. Pense em como Arizona era acostumada aestar sempre no controle das coisas, Darina.

— Mas agora ela não está, né? Pela primeira vez ela está dependendo dealguém.

— E esse alguém é você. Entendeu agora? — Summer finalizou.

— Darina, você está pronta? — Arizona não estava perguntando.

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Eu estava sentada com ela e Phoenix nos degraus do palheiro, uma meiahora depois de minha conversa com Summer. A tarde já escurecia, e cadacentímetro meu desejava que só estivéssemos Phoenix e eu naquela escada.

— O que é isso, os cem metros rasos? — Summer havia dito para nãodevolver as provocações, mas existia uma energia entre mim e Arizona quesempre resultava em conflito. Era como colocar duas substâncias químicas emum tubo de ensaio e se afastar para assistir às reações.

Arizona me olhou sem desviar os olhos.

— Hunter disse para eu contar a você os fatos mais importantes. Aqui vãoeles: era fim de outubro, uma quinta-feira. Estava um pouco frio, e não melembro de ter pensando em ir nadar.

 A-há!

— Encontrou alguém? Com quem você falou? — Comecei o interrogatório.

— Meus pais, talvez. Não me recordo. Meu pai estava ocupado naquelamanhã, por isso faltei à aula e fui levar meu carro para a oficina.

— No centro?

Ela negou.

Ela não retribuía meu olhar inquisidor. — Num lugar atrás do shopping, nãome lembro do nome.

— Alguém foi com você? Quem deu carona para você de volta para casa? — Era necessário espremê-la bem para tirar todos os detalhes.

— Eu não fui para casa.

Phoenix interrompeu o silêncio que se seguiu:

— Colabore um pouco, vai. Isso aqui está sendo difícil para Darina.

— E para mim, não? — Ela retrucou com grosseria, e, por um instante, elesficaram em silêncio naquele negócio de telepatia zumbi. Saíam faíscas dosolhares entre os dois, mas eu não participei da conversa sem fala deles.

Para mim, Arizona sempre foi uma pessoa dessas que aparecem em revistasde moda: jeans e camiseta apertados, botas com salto que a faziam ficar aindamais alta e magra. O rosto emoldurado pelo cabelo preto, comprido e sedoso,olhos que parecem de vidro de tão verdes, e lábios que fazem um biquinho de

desprezo permanente.

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O que eu tinha descoberto sobre a morte dela? Um conserto de carro numaoficina sem nome nem hora do dia. Não era muito. E foi quase tão complicadoquanto extrair um dente. Fiquei feliz quando nos interromperam.

— Ei, Darina — disse Iceman ao entrar no celeiro. — Acabei de chegar deGovernment Bridge.

Só aí percebi que Iceman não fez parte do comitê de boas-vindas a Lee Stone.Todos os Beautiful Dead estavam juntos, exceto ele. Como pude me esquecerdele, o outro guardião, junto com Eve e Donna?

— E aí, Iceman? — perguntei, com um sorriso meio envergonhado.

— Hunter me mandou lá para baixo para dar uma olhada nos caras dessa

nova obra de engenharia — ele explicou. — E eu não gostei do que vi.

— Quantas pessoas? — Phoenix perguntou.

— Cinco: um agrimensor e quatro para o trabalho. E um monte de máquinas,principalmente retroescavadeiras e caminhões. Eles estão planejando reforçar aponte e começam hoje.

Government Bridge ficava alguns quilômetros abaixo de onde estávamos — uma estrutura de madeira que rangia sob o peso de carros utilitários dirigidos

por caçadores e pessoas que passeavam. Era uma reserva florestal do governo,e, evidentemente, alguém no setor de planejamento havia decidido queprecisava de uma vistoria antes que o inverno chegasse.

— Mas por que eles viriam para cá? — Arizona quis saber. Pelo tom de suavoz dava para notar que não achava que poderia ser um grande problema. — Tá bom, esse riacho desce até Government Bridge, mas os caras não vão sair poraí observando as belezas da fauna e flora locais.

Em outras palavras, os trabalhadores cavariam buracos, enterrariamestruturas de aço no chão para depois, à noite, ir direto para o bar maispróximo.

— Exatamente, nosso riacho é o que passa por debaixo da ponte — disseIceman com muita calma. — E o agrimensor deve estar subindo para checar ovolume de água na nascente neste momento!

Phoenix levantou-se e pulou por cima do corrimão da escada para o chão doceleiro.

— Hunter sabe disso?

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— Eu já falei para ele. Disse para você e Arizona irem comigo. Não podemosdeixar o cara chegar aqui.

De uma hora para outra tudo mudou: Arizona deixou a atitude arrogante delado, pegou um elástico em seu bolso e amarrou o cabelo para trás. Phoenix jáestava na porta, fora do celeiro, na hora em que eu corri para alcançá-lo eperguntar se poderia ir junto.

— Não, é melhor você ficar aqui — era o que vinha da boca dele quandoHunter saiu da casa com Lee Stone.

— Ela vai junto — disse o mestre, curto e grosso, ainda na sombra davaranda. — E leve Lee também, mostre a ele como trabalhamos.

Phoenix, Iceman e Arizona tomaram a dianteira na descida até a margem doriacho, comigo e com o zumbi novato na cola deles. Fomos abrindo caminhoentre moitas de salgueiro, pedras e a grama alta, até assustarmos uma famíliade cervos que estavam descansando nos arbustos, fazendo os bichos subiremum barranco quase vertical.

— Merda! — Foi o xingamento de Lee quando afundou seu pé na águagelada.

— Não pare! — ordenou Arizona assim que ele abaixou para desamarrar a

bota. Já dava para começar a ver Government Bridge.

— Será que isso está acontecendo de verdade? — Lee se perguntava,parecendo que tinha tomado uma pancada na cabeça, como se ainda estivessezonzo do impacto.

— Mais ou menos — resmunguei enquanto tentava me jogar do paredão degranito onde estava uma pedra mais perto da água. — E se prepare, porque nãoé brincadeira!

— Abaixe a cabeça, Darina! — Arizona falou com raiva. — Você quer quedescubram a gente? E que a gente seja jogada de volta para o lugar de ondeviemos?

Talvez, falei baixinho para mim mesma.

Cinquenta metros à frente, Phoenix me ouviu com sua superaudição e fezcara de quem não gostou. Ele apontou para os dois tratores amarelos perto daponte e alguns homens ao lado das máquinas. E deu a notícia:

— Nem sinal do agrimensor.

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— Isso é péssimo. — Iceman estava certo de que ouvira o chefe falar aosoutros que ele ia subir o riacho. — Talvez seja melhor voltar e dar outra olhada.

— Agora, não — retrucou Arizona que, apesar da escuridão crescente, viuum dos trabalhadores se destacar do grupo e seguir em nossa direção. Meucoração quase parou quando vi a espingarda que ele carregava.

— Que aconteceu, Josh? O que você viu? — gritou outro cara. Um terceirotambém pegou a própria arma na caçamba da caminhonete.

— Acho que vi alguma coisa, um coiote talvez — o primeiro barrigudochamado Josh respondeu sem se virar para trás. — Ou um cervo, não sei.

Arizona se escondeu atrás de uma pedra grande.

— Obrigado, Darina. Acho que o que ele viu não foi um coiote nem umcervo, ele deve ter visto você.

— O que vai fazer? Atirar nele? — Os colegas de Josh davam risada de suaclara falta de intimidade com a difícil tarefa de subir o morro. — Vai ter bife decervo no jantar?

Mesmo que a situação fosse engraçada, ainda havia dois homens armadosavançando para o lado onde estávamos. Phoenix sabia que era hora de falar

sério.Quando cheguei por trás deles, me arrastando para dar a volta em uma rocha

e chegar à ponta de um penhasco arredondado, senti que armavam o campo deforça zumbi que tantas vezes me aterrorizou ultimamente. Um vento fortecomeçou a levantar poeira e pedregulhos numa nuvem que subia a montanha,depois um farfalhar até chegar ao barulho de asas batendo mais alto do quequalquer um pudesse acreditar.

— Merda! — Lee gritou de algum lugar atrás da gente. Parece que o choquetinha reduzido seu vocabulário... — Isso é um bando imenso de pássaros ou oquê?

A tempestade de asas invisíveis batendo atingia os caras armados e fazia comque cambaleassem e procurassem equilíbrio. Já estava escurecendo, e elestentavam proteger a cabeça levantando os braços.

— Eles vão voltar, você vai ver! — falei confiante para Lee.

Mas não foi de imediato, esses caras eram duros na queda.

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— Puta mee-eerrda! — foi o que Josh gritou enquanto as asas que Phoenix eIceman criariam se abatiam sobre eles. — Isso é o que aqueles caçadores detornados procuram. Imagina a quantidade de adrenalina!

— A gente tá onde, no olho de um furacão? — o outro homem gritava. — Velho, para mim isso aí são asas!

Mais e mais almas penadas se juntaram ao campo de força para levar ostrabalhadores de volta à ponte. Elas iam varrendo tudo pelo lado da montanha,amassando o capim e arrancando flores, rodopiando em volta dos forasteirosaté suas pernas travarem e eles se desabarem no chão.

— Espera só que agora vêm as caveiras da morte! — Achei melhor avisarLee.

Esses homens eram adultos que não queriam passar vergonha na frente deseus colegas, mas já estava escuro e continuavam sendo fustigados por umaforça que não conseguiam entender, empurrados morro abaixo. E, além detudo, agora viam coisas — coisas de pesadelo, assustadoras, dessas que não seadmitem ter visto depois, apenas porque as pessoas não acreditariam, diriamque você estava ficando louco.

Iceman, Phoenix e Arizona haviam pedido reforços: caveiras apareceram nocéu, a princípios uns borrões para em seguida tomar forma e pairar sobre os

invasores, lançando-se ao ataque uma a uma e enchendo a vista deles de crâniosamarelados com buracos negros em lugar dos olhos, em quantidade suficientepara nocautear e deixar qualquer um desacordado. Eu conhecia bem aquilo.

Assisti aos homens se contorcendo no chão. Os três outros que tinha ficado láembaixo perto da ponte começaram a subir para, logo em seguida, tambémsentir a revoada de asas batendo forte, sem cessar, e encontrar seus amigosencolhidos no chão, igual a recém-nascidos, e talvez ver — ou pensar quetinham visto — caveiras surgindo da escuridão, e enfim desistir de continuaradiante. Nem esperaram os dois que estavam no morro — ligaram os carros e

saíram de lá pela estrada de terra rumo à serra de Turkey Shoot.

Ainda atrás de mim, Lee foi lentamente percebendo o que estavaacontecendo.

— A gente pode fazer isso? Podemos trazer almas do inferno?

— Do inferno, não. Do limbo. — Mesmo nessa hora, Arizona tinha de insistirnaquela precisão desnecessária, a ponto de irritar. — Agora, veja esses dois,para eles já foi demais.

Ela estava certa. Josh e seu amigo seguravam-se um ao outro. Ficaram de joelhos com expressões tão agoniadas que não pareciam humanos. Foram

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deixando para trás suas armas à medida que iam escorregando e tropeçandomorro abaixo.

— Parece que esses dois vão ter de voltar andando para casa. — A voz calmade Hunter chegou sorrateiramente pelas nossas costas. Havia um desconhecidocom ele: um cara grisalho de óculos com aparência de desocupado, vestindocalça jeans e camisa xadrez, calçando botas de montanhismo. — E você também— ele disse para seu acompanhante.

Os olhos do homem estavam vidrados, ele não via nem ouvia nada do que sepassava à sua volta.

— Este é o agrimensor — Hunter explicou. — Deve ter passado por vocêssem que notassem. Summer o achou na trilha perto do celeiro. Não teve outro

 jeito, tive de apagar o episódio todo da memória dele.

Como condição para ficar com Phoenix, salvar Arizona tornou-se parte doacordo. A todo momento eu me lembrava disso: era como engolir um remédioamargo.

— Tome cuidado — Phoenix me disse quando estávamos nos despedindo,perto da velha caixa d’água na serra de Foxton. — E me prometa: não entre decabeça em nenhuma situação, a menos que consiga enxergar uma saída paraela.

— E desde quando eu faço isso?

— Desde que nos vimos pela primeira vez. E por isso você é tãointeressante... — Ele olhava no fundo dos meus olhos, adivinhando a dor emmeu coração. — A maioria do pessoal em Ellerton High vive a vida com o freiode mão puxado, você não.

— E você quer que eu seja igual aos outros? — reagi, inconformada. — Checar sempre se está tudo bem, ver se não tem ninguém me seguindo, andar

sem pressa. E agora, ainda por cima, as coisas na cidade estão bem piores desdeque... Você sabe.

— Desde as quatro mortes — ele sabia. — Um acidente de moto, umafogamento, um tiroteio e uma facada. Será que dá para ficar pior que isso?

Eu achava que dava.

— O pessoal tem pensado que qualquer um pode ser o próximo,principalmente os pais paranoicos. — O nível de estresse havia chegado aomaior pico de todos os tempos em Ellerton. A molecada estava sendo posta de

castigo por qualquer coisinha, os pais impunham toques de recolher quecrianças de cinco anos achariam difíceis de cumprir. — Toda vez que pego as

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chaves do carro, Laura vem na minha cola querendo saber para onde vou, comquem e para quê.

— Então se cuida — Phoenix repetiu. Ele já estava quase soltando a minhamão, de olho na descida que ia até o celeiro.

Eu precisava de toda a sua atenção novamente, por isso me pendurei de leveem seu pescoço. — No que está pensando?

— Nada, não é importante. — Ele me abraçou pela cintura, mas continuavaausente.

Pensei que o impasse se resolveria com um beijo — um daqueles tristes ecarinhosos, de despedida, quando se despedir é a última coisa que desejamos.

Errei de novo!

— Você vai ter de me desculpar, Darina. — Soltando-me e afastando-se;estava claro que a intenção de Phoenix não era a mesma que a minha. — Hunterestá precisando de mim, preciso ir.

Percebi umas pontadas leves atacando meu peito e meu estômago. EstariaPhoenix desistindo de todo o amor que eu sentia por ele? O que será que euteria feito ou dito para acontecer isso?

— Amo você — sussurrei.Com um movimento mínimo de cabeça, ele voltou a olhar diretamente para

mim. Quase sem se mexer, seu rosto confirmava sua decisão.

— Tenho de ir, dirija com cuidado, tá?

Chorei demais antes de chegar em casa. Dizia a mim mesma que estavahipersensível, que Arizona já estava me enervando, e que a chegada de LeeStone também trazia ingredientes desconhecidos para a mistura toda.

Dirigindo para Centennial, consegui me controlar novamente.

Da próxima vez tudo estará bem melhor para mim e para Phoenix, pensei. Eu deviaestar imaginando um problema que não existia de verdade, ele ainda me ama tantoquanto eu o amo, para sempre e sem fim.

— Kim Reiss ligou para você — Laura me avisou quando joguei as chaves namesa da sala e entrei na cozinha. — Ela adiantou sua consulta para segunda-feira à tarde, às quatro e meia.

— Eu preciso mesmo ir? Eu queria que você soubesse que está gastando à toaseu suado dinheirinho.

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Laura já havia adiantado o pagamento de seis sessões de terapia, portantonada faria com que ela me deixasse escapar da consulta na segunda-feira.

— Eu acredito que esteja ajudando você a superar o trauma, sim — insistiu.— É mesmo? E como é que você sabe?

— Você não passa mais o dia inteiro deitada, como costumava ficar — Lauralembrou enquanto me dava uma xícara de café.

É, foi assim logo depois da morte de Phoenix. Meu coração começou a pulare quase voltei ao descontrole de antes. Eu tinha acabado de deixar meunamorado Beautiful Dead lá na serra de Foxton depois de uma coisa estranhaentre a gente, e a ansiedade apertava meu peito.

Laura provavelmente percebeu o sofrimento em meu olhar, que mudou paraum tom de voz mais doce.

— Você começou a sair mais, a me dar trabalho, como sempre fez — comoestá fazendo agora!

— Tá, eu vou ver Kim — concordei, já que era importante para Laura edesviava a atenção daquilo que eu realmente estava fazendo.

No domingo, acordei cedo e passei na casa de Logan.

— Você está com cara de quem passou a noite em claro — ele me disse, antesque eu pisasse na cozinha. Seu pai ainda dormia e Logan estava fritando unsovos com bacon.

— Obrigada — respondi, dando uma conferida no espelho do corredor. Asolheiras em meu rosto estavam reforçadas pelo lápis esfumaçado e pelo rímelque eu nunca deixo de usar quando saio de casa.

— Quer comer alguma coisa?

— Não, obrigada. — Sentei-me à mesa, aceitei um copo de leite e, emseguida, fui direto ao ponto. — Conte sobre as aulas de guitarra que você temdepois da aula, com Frank Taylor.

Uma fumaça do bacon subia da frigideira, Logan gostava dele bem crocante.— Você tem vontade de treinar? Eu poderia ensiná-la...

— Claro, estou querendo praticar — menti. — Mas queria um professor bomde verdade. Ouvi falar que o Sr. Taylor é um dos melhores.

Fiquei a noite toda acordada, pensando em maneiras de saber mais sobreArizona para poder avançar na investigação. Geralmente havia amigos a quem

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eu poderia recorrer, e eles me colocariam em contato com toda uma rede deinformações sobre os lugares que frequentava, com quem costumava sair,algum segredo que pudesse ter. Só que Arizona não era mesmo do tipo que

mantinha amizades íntimas, então por esse caminho eu não conseguiria nada.Por isso, só me restava ficar próxima dos pais dela e da possibilidade dedescobrir mais coisas através deles. Esse era o motivo pelo qual eu estava tãocuriosa sobre as aulas de guitarra de Logan.

Admito que meu velho amigo estava sendo completamente usado, e que de jeito nenhum ele poderia ficar sabendo da verdadeira razão de meu súbitointeresse.

— Frank Taylor dá aulas de violão clássico — Logan explicou. — Tem

certeza de que não quer bacon?— Tenho. Violão clássico é exatamente o que me interessa, guitarra eu já toco

— Jonas me ensinou, lembra?

— Então, por que você não aprende violão comigo? — Logan não desistia. — Assim a gente consegue passar mais tempo junto.

Por isso mesmo é que não quero.

Logan era uma espécie de craca, dessas que grudam nos cascos dos barcos e

os marinheiros têm de ficar raspando. Um ano atrás eu não diria coisas assim aseu respeito. Há um ano, quando Phoenix ainda não tinha entrado na minhavida.

— As aulas particulares de Frank Taylor são na faculdade de música onde eletrabalha?

— Não, eu vou à casa dele. — Logan terminou rapidinho o café da manhã. — Toda terça-feira, às dezoito horas. Você precisa ver, Darina, comparado a issoaqui, comparado até a sua casa, aquilo lá é um palácio. Foram até tirar fotos

para a revista  Mountain Living, depois que a Sra. Taylor contratou umdecorador que trabalhou lá o ano inteiro. Ela renovou a casa toda.

— Eu sei. Então você vai lá — repeti. Bom, já estava tudo certo na minhacabeça. — Valeu, Logan — agradeci e roubei o último pedaço de bacon de seuprato antes de sair. — Vou ligar lá depois do almoço.

Frank Taylor com certeza não precisava de dinheiro, portanto deve ter sido opuro amor ao violão que o fazia vender seu conhecimento musical a vinte ecinco dólares por hora, preço de banana.

Fui de carro até Westra e parei do lado de fora do portão eletrônico, nonúmero 2.850 da Rua Norte. A casa dos Taylor ficava num grande terreno

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gramado, construída em estilo holandês com frontões arredondados, telhadobaixo, e a varanda era feita de madeira, muito chique e entalhada por dentro epor fora. Chamei o jardineiro que estava cuidando dos canteiros.

— Frank Taylor está?

O cara velho e magro veio até o portão e lançou um olhar me medindo.

— Quem deseja saber?

— Quero fazer aulas de violão — disse, sem responder diretamente. E, afinal,quem era esse cara?

— Tudo bem, Peter. — Um homem alto veio andando até o portão. Eu daria

pelo menos sessenta anos para ele, o que me deixou surpresa quando abriu oportão e veio me cumprimentar. — Eu sou Frank Taylor — apresentou-se.

Puxa, quer dizer que o pai de Arizona já era um senhor de idade! Os ombrosdele eram curvados e seus olhos cinza rodeados de rugas ficavam afundados norosto.

— Como você soube que eu dou aulas de violão?

— Um amigo meu me disse, Logan Lavelle.

— Sim, Logan é um bom rapaz. Toca com bastante técnica, mas sem muitotalento — fui informada. — Bem, vamos entrar, como é mesmo...?

— Darina. — Segui-o pela entrada da garagem. — Eu conhecia Arizona,éramos colegas de classe. —  Melhor soltar essa antes de entrar , pensei.

— Ela nunca falou de você — fui agora secamente informada. Ele segurou aporta para mim. — Entre.

Estávamos no hall — maior que minha casa inteira. O estilo era uma mistura

entre o tradicional e o contemporâneo: superfícies de madeira polida e açoescovado combinando, sofás de couro — onde caberia times inteiros debasquete — contrastando com o bege das paredes.

— Alysson, esta é Darina — Frank me apresentou à mulher que saía de outrocômodo. — Ela tem a mesma idade que Arizona teria.

Meu corpo arrepiou-se todo — por um segundo pensei que pudesse estarvendo uma irmã mais velha de Arizona, da qual eu nada sabia. Mas aí notei ocabelo louro, liso, perfeito demais, a maquiagem cuidadosa e a testa imóvel,sem rugas, e decidi: não, Alysson Taylor deve ser a mãe de Arizona. Se eu

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estava dando sessenta anos para Frank, sua esposa não tinha mais do que trintae cinco.

— Olá, Darina. — Alysson não poderia ter sido mais apática. Passou pormim e pelo marido, saindo pela porta da frente. — Frank, se precisar de mim,estarei no estúdio.

— Onde mais? — Ele resmungou, com ar cansado. — Minha esposa trabalhaem um canal de notícias vinte e quatro horas. Faça chuva ou faça sol,tempestade ou furacão, é lá que você vai encontrá-la.

Achei que era mais informação do que eu precisava, então me concentrei nodesign dos móveis enquanto ele me levava para um ambiente que obviamenteera sua sala de música. Chamavam a atenção meia dúzia de violões em umaparede, além dos teclados, computadores, monitores e aparelhos de som detodo tipo que havia por lá.

— Você tem algum conhecimento musical, Darina, ou está começando agora?— Frank perguntou, sentando-se atrás de uma mesa como um promotor em umtribunal.

— Toco um pouco.

Ele me deu o violão mais próximo.

— Mostre-me.

Eu sabia uma música do James Taylor que meu pai havia me ensinadoquando eu tinha dez anos, então escolhi qualquer coisa, contei para Frank ondehavia aprendido e dedilhei um pouco.

— É, como me disse, você toca um pouco. Sabe mais alguma coisa?

— Sei umas faixas do disco de Johnny Cash gravado quando estava preso emFulsom. — Como fui me meter nessa? Estava morrendo de vergonha.

— Nada de Bach ou Debussy? Seu pai não lhe ensinou a tocar como Segóvia?

O pai de Arizona estava gozando da minha cara? Examinei sua expressão enão vi sinal de humor.

Frank Taylor recostou-se na cadeira.

— Diga a verdade, Darina, por que mesmo você veio aqui?

Parecia que os Taylor estavam acostumados à bisbilhotice alheia. Depois da

matéria na revista, uma multidão de jornalistas de meia-tigela começou a baterà porta deles para tirar mais fotos para suas respectivas revistas. Ainda mais

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depois da morte de Arizona, quando esses ―amigos‖ brotavam do chão — intrometidos que faziam de tudo para estar mais perto da fonte da notícia. Pelomenos foi o que o Sr. Taylor me disse, já me colocando também nessa categoria

e emendando:

— Se não tivesse mencionado Logan, eu nem a teria deixado passar doportão.

— Não é o que você está pensando. — Estávamos no corredor, eu viajandono formato de um sofá. — Eu conheço, hã, eu conhecia Arizona. Nós éramosamigas.

Frank Taylor estava sem paciência.

— Como eu já disse: ela nunca falou de você, você nunca veio aqui antes. Fazquase um ano que Arizona morreu, e não há mais nada aqui que você possadescobrir, então peço que, por favor, vá embora.

— Sinto muito. Não pretendia incomodar ninguém.

— Você não incomodou — ele falou calmamente enquanto abria a porta paraque eu saísse.

A porta bateu e eu encarei o longo caminho até o portão.

Essa foi demais, falei para mim mesma, procurando pelo jardineiro eesperando outra dose de humilhação. Peter não estava por ali, mas haviaalguém sentado em um quiosque no meio da grama — um menino debruçadosobre uma grande pilha de papéis que apoiava no joelho, tão entretido com seulápis na mão que nem percebeu minha presença.

Ouvi uma porta abrir do outro lado da casa, e a voz do jardineiro Peterchamar:

— Raven, cadê você?

O menino levantou a cabeça e, aparentemente numa reação desproporcionalà pergunta do funcionário, saiu do quiosque correndo para atender aochamado. Ele devia ter uns nove anos, era moreno e magro como Arizona, massem nada daquele ar muito seguro dos Taylor — aliás, totalmente o contrário.Ele parecia assustado, desorientado, sem saber para que lado correr. Comotinha derrubado todas as folhas na grama, eu me apressei para ajudá-lo arecolher tudo.

— Aqui — falei enquanto devolvia as coisas dele.

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Pude ver um pouco do desenho que ele estava fazendo: uma representaçãorealista, bem detalhada da grande casa, tudo perfeitamente dimensionado,desenhado bem livre como se o lápis nunca tivesse saído do papel.

— Raven, eu falei para você não sair de casa. — Peter apareceu saindo daparte de trás da casa. Ele nos viu juntos e andou até a gente com passos duros.

— Pegue seu desenho — insisti, pressionando a folha na mão de Raven. — Élindo.

Minhas palavras não conseguiram transpor o olhar de coelhinho assustadoque foi encurralado. Ele amassou o desenho e enfiou no bolso da minha jaqueta.

— Venha já comigo, Raven — Peter disse com voz firme. — Seu pai quer

saber onde você está.

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— Foi tudo tão louco — no dia seguinte fui contar a Kim Reiss. — Eu nuncanem soube que Arizona tinha um irmão.

— Você a conhecia bem? — Minha terapeuta parecia mais interessada emminha relação com Arizona que no misterioso Raven.

— Ninguém conhecia Arizona. Ela gostava que fosse assim, mas achei que, seela tivesse um irmão, contaria a todos.

— E por que isso a incomoda tanto?

— Porque o menino estava assustado. Parecia que estavam tentandoescondê-lo, e isso não está certo.

Kim não parava de me examinar com os olhos, como se lesse um maparodoviário e traçasse a rota das minhas emoções e pensamentos.

— Talvez tenham lá suas razões para isso.

— E tem mais isso aqui. — Tirei o desenho amassado de meu bolso. — É acasa dos Taylor, detalhada em cada partezinha.

A folha de papel chamou a atenção de Kim. Ela me devolveu especulando.

— Será que ele fica em casa o dia inteiro ou vai para escola também?

— Mesmo se ele for, por que tanto segredo? — Fiquei com isso na cabeça anoite toda e durante as aulas. — E como é que a casa não tem nada que lembreArizona? Não vi nenhuma fotografia dela, nenhuma de suas coisas esquecidaspor ali, como se ela nunca tivesse existido.

— Talvez seja muito doloroso ter recordações à vista, não podemos julgar os

Taylor por causa disso. — Kim olhou para o relógio. — Darina, já passamos

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quase metade da sua consulta falando do problema de Arizona, então pensei senão há outros assuntos de que você queira tratar.

— Por onde eu começo? — perguntei, fazendo uma careta.— Como estão as coisas entre você e Laura?

— A mesma coisa: ela me pressiona, eu saio andando. É isso.

— E seu amigo Logan?

— Idem.

— E como você está lidando com suas emoções a respeito da perda de

Phoenix?— Vou levando — resmunguei. Nas primeiras sessões com Kim eu botei

tudo para fora: de como eu ainda via Phoenix na escola, no centro, em todolugar que eu olhasse. Ela me falou que era algo normal de luto, mas ela nãosabia que eu literalmente via meu namorado Beautiful Dead, fazendo seustruques de zumbi e se materializando do nada.

Isso foi antes de aprender que eu devia manter segredo e suportar o pesodele sozinha, carregando-o comigo por todos os momentos da minha vida.

Naqueles dias, toda vez que o tópico surgisse, vinha também a revoada deasas batendo — o aviso de Hunter para que eu ficasse calada. E estavaacontecendo naquele momento — o vendaval de asas prestes a me sufocar se eume abrisse com a psicóloga.

— Sabe de uma coisa? — falei, numa súbita levantada que fez a cadeiratombar para trás. — Parei por aqui.

Os olhos de Kim demostraram uma leve surpresa.

— Quer ir embora? Nossa sessão ainda não terminou.— Terminou, sim — respondi. — Só venho aqui porque Laura armou essa

coisa; não quero mais fazer isso.

A surpresa se dissipou e deu lugar a uma expressão calma, profissional.

— Entendo, Darina. Lamento que se sinta assim.

— Não adianta... Falar sobre Phoenix dói demais, você não pode entender.

Kim levantou-se também e falou calmamente.

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— Pode ir, se é o que você precisa, mas saiba que vai encontrar minha portasempre aberta.

— Valeu — agradeci à medida que as asas sumiam. Eu tinha saído de lá,ponto final. E não voltaria mais.

O que era uma pena, pois gostava bastante de Kim Reiss. Ela e eu falávamosa mesma língua, e não havia nenhuma pressão envolvida. Eu já estava meacostumando a compartilhar meus sentimentos com ela.

Passei o resto do tempo da consulta de Kim tomando refrigerante em umrestaurante na parte do centro perto da Centennial, tentando me convencer anão voltar a Foxton até que descobrisse alguma coisa útil para Arizona. Disse amim mesma: Vá para casa, durma um pouco. Tente de novo amanhã .

Mas eu me sentia como se estivesse sendo arrastada para aquele lugar,especialmente quando imaginava Phoenix andando naquela encosta emontando guarda para evitar que operários enxeridos ou uma turma decaçadores desavisados pudessem se aproximar demais.

Vá para casa, Darina!, Insisti um pouco mais. Pegar a estrada e ir até lá agoranessa escuridão não pode dar em nada de bom.

O ronco dos motores das Harleys que chegavam ao estacionamento foi o que

me trouxe de volta ao presente. Reconheci Brandon Rohr no comando do grupoe alguns outros caras, os que tinham ido ao velório de Bob Jonson.

Eles desceram das motos e foram entrando no restaurante, anunciados pelosom dos saltos das botas e pelo barulho do couro das jaquetas. Por um segundopensei que Brandon não me cumprimentaria, porém ele veio e sentou-se àminha mesa.

Um dos membros da gangue foi ao balcão para fazer o pedido. Igual aBrandon, ele tinha vinte e poucos anos e a mesma pose de machão — inclusive

mais do que o amigo.— E aí, Darina? — Brandon tirou a jaqueta sem pressa nenhuma e pendurou-

a na cadeira. — O que você achou do carro?

— Legal. — Fiquei arrependida de não ter terminado logo o refrigerante esaído de lá uns cinco minutos antes. Agora estava presa a uma conversa que eunão queria ter com o irmão mais velho de Phoenix.

— Ei, Kyle, vem conhecer a namorada de Phoenix. Darina, este é KyleKeppler. — Brandon queria me apresentar seu amigo que estava no balcão. — 

Sabe como é, falar com ela é como tirar leite de pedra.

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— E aí? — Kyle grunhiu, sem ao menos se virar em minha direção.

Brandon estava cheio de si.

— Encontrei o melhor conversível da região para Darina, e a única coisa queela consegue dizer é uma palavrinha besta: ―legal‖. — Ele se esticou no corredorpara chamar mais uns caras. — Byram, Aron, conheçam Darina.

Lembrei que Byram era o motoqueiro mais velho que foi gentil com Zoey novelório de Bob Jonson.

— Vai na dele, Brandon vai cuidar bem de você — ele me aconselhou.

Falando sério, eu estava praticamente sufocada por tanta testosterona no ar.

E, como de costume, a ligação entre Phoenix e seu irmão mais velho ainda mechocava. Havia sido o mesmo material genético que tinha dado a ambos suaaltura e os ombros largos, o cabelo escuro e o sorriso safado.

Tenho uma relação de amor e ódio com Brandon Rohr. Eu o amo pelosimples fato de ser o irmão de Phoenix, e o odeio porque era ele quemcomandava a briga em que Phoenix foi morto. Eu até apostaria uma grana nahipótese de ter sido a reputação de Brandon o motivo para o estranhamentoentre as gangues. Não que eu tenha provas disso — é apenas uma massa deinformações conflitantes aliada à minha mente desconfiada. No final das contas,

mesmo com Brandon arranjando carros para mim por causa do pedido dePhoenix em seu último suspiro, para ser sincera é mais ódio que amor.

— Você não sabe, Darina — Brandon começou, colocando o braço sobre acadeira de Kyle enquanto o amigo sentava a seu lado —, mas você e meu chapaaqui têm uma coisa em comum.

Duvidei e minha cara mostrava bem isso.

— Escuta — ele insistiu, mantendo-me amarrada ao diálogo. — O que vocêstêm em comum é: os dois perderam alguém muito próximo.

Baixei meu olhar mirando a mesa e tentando não ouvir o que ele falava.

— Você perdeu Phoenix, Kyle perdeu Arizona.

Olhei para cima num susto.

— Quer dizer... Não é possível! — Kyle estava infinitamente longe de ser dotipo refinado de Arizona — ele era loiro, meio brutamontes e, como havia dito,tinha mais de vinte anos e as unhas todas roídas, ainda por cima.

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— É possível, sim... — Brandon confirmou. — Faz um ano e Kyle ainda estátodo sentido pela morte dela. Nossa, eles estavam juntos há mais tempo quevocê e meu irmão.

Então agora havia um namorado e um irmão de quem eu não sabia — valeu,Arizona!

 Já estava ficando tarde, mas saí do restaurante e fui para Foxton mesmoassim. As primeiras estrelas apareciam no céu junto com a lua nova sobre a cruzde neon na encosta de Turkey Shoot. Na hora em que cheguei ao fim daestradinha e tive de continuar a pé até a caixa d’água escondida entre oschoupos, não dava mais nem para ver onde eu estava pisando.

— Caramba! — Tropecei em uma pedra e ralei a canela. Da próxima vez, venhade calça, fiz questão de me lembrar. Uma minissaia não era o ideal para essasocasiões, muito menos os sapatos de bico fino. E traga uma lanterna, acrescentei.

Depois de um monte de tropeções, cheguei na caixa d’água, feliz com umacoisa: não havia campo de força dos Beautiful Dead para me afastar. Esta noiteeu não teria forças para brigar contra asas e caveiras.

Em vez disso, Hunter mandou o garoto novo, Lee Stone, vir me receber. Elesaiu de debaixo da caixa d’água sem dizer nada. 

Pulei para trás de susto.

— Ainda bem que criei nervos de aço — reclamei. — Você não podia ter medado um aviso, em vez de aparecer assim do nada?

— Hunter falou para esperá-la; ele sabia que você viria.

— Ele sabe tudo, disso você pode ter certeza — eu disse num tom seco.

Lá no alto da serra, a lua e as estrelas iluminavam o suficiente para que eudesse uma olhada mais atenta a Lee, que vestia camiseta escura e uma jaqueta

conhecida minha — muito provavelmente a jaqueta que Phoenix estava usandoquando foi esfaqueado no meio das costas.

— Vire-se — sussurrei. De fato tinha um rasgo serrilhado na jaqueta. Tenteiesconder um soluço e o arrepio que correu pelo meu corpo. — Onde estão osoutros? — perguntei.

— Estão no celeiro, fazendo um tipo de reunião. — Lee parecia que aindanão tinha se acostumado à ideia de ter voltado dos mortos. — Disseram para euficar aqui vigiando.

— Bem, eu já estou aqui. Vamos até lá nos juntar a eles?

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— A reunião não é para vivos. É um tipo de ritual pelo qual eles precisampassar.

— Que tipo de ritual? — Era a primeira vez que eu ouvia falar disso, ecomeçava a me irritar com Lee tentando impedir que eu seguisse morro abaixo.— Preciso conversar com Phoenix, é coisa pessoal.

Lee recusou-se a dar passagem.

— Hunter disse que não.

— Ah, se o grande mestre proibiu, então vai ser assim! — Parti para osarcasmo, muito embora Lee não merecesse. — Diga aí, Lee, você não sente faltade um pouco de livre-arbítrio nesse lugar?

— Peço desculpas, mas aqui é assim. — Ele parecia abatido e ainda com umaponta de confusão no tom de voz. — Hunter é quem dá as ordens.

— Tudo bem, eu sei. — Fechei os olhos por um segundo, tentando entender asituação dele. — Quem devia pedir desculpas era eu, é que às vezes é difícil deaguentar.

— O quê?

— Obedecer, guardar segredos, ser deixada de fora da rodinha. Por acasoHunter disse se pelo menos me deixaria falar com Phoenix? Algum outro dia, senão hoje?

Lee fez um sinal negativo com a cabeça mais uma vez.

— Não tenho a menor ideia. Sinto muito.

— Não sinta, não é sua culpa. — Eu me coloquei no lugar de Lee por uminstante e perguntei, para tentar entender melhor: — Pelo menos já tiveramtempo de lhe explicar como são as coisas?

— Um pouco. Descobri que estou na fila atrás de Arizona, Summer ePhoenix. A espera é difícil, especialmente sabendo que existe alguma coisa aquino mundo dos vivos que ainda precisa de explicação.

— É, eles têm uma palavra para isso: espectro. Você voltou meio quetemporariamente, com todos esses poderes malucos.

O sorriso intrigado de Lee por causa do breve esclarecimento iluminou seurosto e fez com que eu notasse pela primeira vez quanto ele era bonito.

— Posso limpar sua mente e apagar sua memória, não é legal?

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— É, mas nem tente. — Falei, já mudando de assunto. — Você pode não terum coração batendo, mas em compensação tem uma superaudição.

— Ouvi seu carro antes de ele chegar em Turkey Shoot — confirmou.— Então você é um Beautiful Dead. — Olhei direto em seus olhos, e a

conversa foi morrendo ao passo que eu me adiantava para pôr a mão no ombrodele complacente. — Não se preocupe, no final tudo fará sentido.

— Ah, mas que gracinha! — Arizona provocou, saindo das sombras. — Vocês vão ter de me desculpar... Estou interrompendo algo?

Puxei minha mão do ombro de Lee, como se ele estivesse fervendo.

— Ei, como é que você não me conta de seu irmão menor? — Retruquei,desafiando. — E muito menos do namorado musculoso, Kyle Keppler!

* * *

Naturalmente, Arizona não me respondeu. Ela se esquivou das minhasgrandes questões dizendo que a reunião deles havia terminado; Hunter tinhadado permissão para que eu descesse e me encontrasse com Phoenix.

— Darina, minha querida, você  vai ter de dar algumas explicações! — eladisse, rindo e virando o jogo a seu favor, enquanto nos levava até a porta doceleiro.

O celeiro estava iluminado por lamparinas a óleo que projetavam sombrastrêmulas no chão e nas paredes. A maioria dos Beautiful Dead estava lá, emboraeu tivesse sentido a ausência de Hunter.

Phoenix me viu, estava sentado quieto junto de Eve e Kori nos degraus dopalheiro, levantou-se e veio pegar minha mão para sairmos de volta à noite

escura.— Precisamos conversar — ambos dissemos na mesma hora, e ele sorriu de

um jeito estranho.

Fomos para a casa, onde pegou outra lamparina antes que seguíssemosmargeando o riacho.

— O que está acontecendo? — perguntei, mal reconhecendo minha própriavoz, fraca e vacilante. Senti que era minúscula debaixo daquele vasto céu. Amão de Phoenix estava gelada como a água do rio. — Eu disse que amava você,

e você não me respondeu nada. Por que isso?

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Ele continuava sem olhar para mim.

— Você deveria me explicar, Darina.

Fale do que tem medo. Bote isso para fora e se abra.

— Preciso saber: estou perdendo você? Você não me ama mais? — Se elefalasse que sim, meu mundo cairia, tudo iria desabar. Mas assim mesmo euqueria saber.

Phoenix soltou minha mão e andou um pouco mais para a frente. — O que afaz pensar isso?

— Você está se fechando para mim, não está compartilhando comigo o que

está aí dentro. É a primeira vez que sinto você tão distante de mim. — Depoisde ouvi-lo respirar fundo, contei tudo: — Nesses dois últimos dias, pensei emtudo o que poderia estar acontecendo. Talvez tenha sido alguma coisa que fizde errado, sei lá. Ou quem sabe seja apenas você, Phoenix. Será que é isso o queacontece com os Beautiful Dead? Assim que voltam ao mundo dos vivos têm osmesmos sentimentos de antes, mas pouco a pouco essas emoções humanassomem, e não dá para fazer nada a respeito. É isso que está acontecendo com agente? Se for verdade, posso não aguentar, mas você precisa me dizer para euentender.

A luz piscava sobre seu rosto lindo, macio, os olhos sombreados e umapequena veia latejando na testa.

— Você acha que eu não amo você? — ele murmurou, como se essas palavrastivessem sido ditas em uma língua que ele mesmo não pudesse entender. Oriacho corria a nossos pés, brilhando prateado sob as estrelas.

Meu coração ficou acelerado de novo. Houve apenas um engano, e tudoficaria bem agora.

— Isso não é fácil — Phoenix confessou. — Na última vez que você veio,pensei que quem estava agindo diferente fosse você. Não conseguia meaproximar.

— Você nem tentou — recordei. — Foi você, você não deixou que eu meaproximasse.

— Lee tinha chegado, um monte de coisas estava acontecendo.

— Você nem olhava para mim, eu estava assustada.

— Mas você parecia distante. Eu li o que você estava pensando e vi que seupensamento estava todo concentrado nele.

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Saí em defesa própria.

— Lee estava sofrendo. Você lembra que em sua primeira volta do limbo

havia me dito que a dor era infernal?— Ele notou você desde o começo, ele gostou de você, Darina. Eu vi dentro

da cabeça dele também.

— Você está me culpando por isso?

— Arizona também percebeu.

— Você falou com ela sobre mim? Deu espaço para ela entender tudo errado,distorcer tudo? — Pelo jeito, as coisas não estavam nem perto de ficar

tranquilas. Estávamos nos afastando e nos debatendo, como quem se afoga.

Phoenix derrubou a lamparina e começou a correr morro acima.

Observei-o correr. Sobre o que ele estava falando — sobre mim, Lee, Arizona,sobre gostar e amar?

— Tudo isso é uma loucura, achei que vocês fossem telepatas de verdade!Não só uns fracassados que desistem! — gritei enquanto ia atrás dele.

Phoenix havia partido em disparada e começava a ganhar velocidade.Comecei a segui-lo.

— Você imagina que eu sinta algo por Lee? Então acha que sou tãosuperficial assim?

Ele parou de correr até que eu chegasse a uns dez passos de distância dele.

— O que estou dizendo, o que estou fazendo? — ele se perguntava enquantotentava recobrar o fôlego.

— Você está louco. — Minha fé estava abalada, e minha confiança, a pontode se partir.

— Darina, pensei que... Eu estava com medo...

— De me perder? — Percebi, num piscar de olhos. — De jeito nenhum,Phoenix.

Ele veio para perto de mim bem devagar.

— Toda vez que você vai embora eu acho que não vou aguentar. Sinto meu

coração se partir.

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— Eu também.

Debaixo de um milhão de estrelas, cada vez mais próximas.

— É mito difícil. De vez em quando penso em esquecer o mundo dos vivos.Apenas desistir e voltar.

— Não! — implorei. Agarrei a gola da jaqueta dele.

— Penso na vida que vivia em Ellerton. Tudo o que mais quero é estar comvocê.

— Não! — minha voz sumiu completamente.

— Eu não quero que ninguém, que nenhum outro cara, chegue perto devocê.

— Não vou deixar que cheguem — prometi.

Phoenix me abraçou com força.

— Eu amo você e não posso ter você.

Eu me afastei um pouco, peguei sua mão e a coloquei sobre meu coração.

— Por favor, não fale mais.

Foi apenas nessa hora que notamos as pequenas chamas no lugar ondePhoenix havia deixado a lamparina cair. Elas iam se alastrando pela grama epelos espinheiros, ganhando terreno rapidamente, como se tivessem vidaprópria.

Daí Hunter surgiu da escuridão, tirando o casaco e usando-o para apagar ofogo, até que restassem só pequenas brasas e uma nuvem de fumaça.

O mestre parou em cima do pedaço de solo queimado, com os braçoscruzados. Ele tinha tanta raiva no olhar que eu cheguei a dar um passo atráspara me proteger.

— Já viram alguma vez um incêndio na mata? Sabem a rapidez com que sealastra?

— Você precisa desculpar a gente, Hunter — gaguejei. — A gente, não... Eu!Foi minha culpa.

Phoenix veio ficar entre mim e Hunter.

— Não ouça o que ela diz, fui eu que derrubei a lamparina.

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— Estão achando que eu ligo para detalhes? — A voz de Hunter permaneciaterrivelmente calma enquanto ele ia andando em direção a Phoenix. Euesperava que sua raiva explodisse a qualquer segundo. — Existem coisas mais

importantes por aqui. Por acaso eu disse que podia trazer Darina aqui fora?

Phoenix abaixou a cabeça.

— Disse para eu falar com ela na casa, mas a gente precisava de privacidade,então decidi subir um pouco o riacho.

—  Você  decidiu? — Hunter demorou-se bastante nessa frase. — E desdequando você pode decidir alguma coisa?

Eu já tremia inteira a essa altura do campeonato — ele continuava

impassível, mas dava para perceber que a raiva queimava dentro dele comonuma fogueira.

Phoenix não respondeu, parecia que a força tinha se esvaído de seu corpo.

— Nossa, como eu devia acabar logo com tudo isso — Hunter ameaçou echegou mais perto de Phoenix. — O que é que me impede de mandá-lo paralonge daqui, de volta para o lugar aonde você merece ir?

— Não, isso não! — Corri e tentei segurar o braço de Hunter, mas só o que

consegui foi ser jogada de volta, como se não pesasse mais que uma pena. Caínas cinzas mornas do chão. Phoenix quis sair em meu socorro, porém suaspernas dobraram-se e ele ficou de joelhos.

— Eu dei uma ordem — Hunter relembrou a Phoenix, chamando umatempestade de asas invisíveis para reforçar o que estava dizendo. — Eu dissepara você, palavra por palavra, ―leve Darina para a casa, fale com ela edescubra qual o problema‖. Muito simples, até para você. 

Phoenix voltou a ficar em pé, com a cabeça erguida e o queixo empinado,como se fosse um condenado disposto a enfrentar a morte.

— Só que o problema não era com ela, era meu. Eu não estava pensando comclareza.

— Já disse para me poupar dos detalhes. — Hunter pareceu impiedoso comonunca. — Vocês descumpriu a ordem, veio até aqui, perdeu o controle dasituação e começou um incêndio que poderia ter trazido todo o corpo debombeiro até nós. Portanto, Phoenix, diga o que é nisso tudo que pode mefazer querer que você fique no mundo dos vivos.

— Você não pode mandá-lo de volta! Se mandar, eu não ajudarei maisnenhum de vocês!

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A reação não foi mais que uma virada de cabeça de Hunter, com um olhar deleve curiosidade.

— Você se considera muito valiosa, Hunter.— Vocês precisam de mim — insisti. — Eu sou sua ligação com o mundo dos

vivos, a única em que vocês podem confiar.

— Fale isso para Arizona. Ela ainda está esperando por isso que você chamade ajuda.

— Não é justo, Arizona esconde coisas de mim. — Mudei de tática para tertoda a atenção de Hunter. Ele ficou em alerta total me encarando nos olhos. — Équase como se ela não quisesse que desse certo.

Hunter franziu a testa e começou a descer o morro na nossa frente.

— O futuro de Arizona está em jogo, seu futuro eterno. Então o que é que elanão está revelando? E por quê?

Eu poderia explicar o que ela não estava revelando, durante aquelacaminhada no escuro sob as estrelas — eram Raven Taylor e Kyle Keppler —,mas não os porquês dela.

— Não entendo como a cabeça dela funciona — contei a ele.

O mestre parou perto do caminhão, estacionado para sempre ao lado da casadecrépita.

— Você é simplória demais. E Arizona é sutil demais. Isso é uma parte doproblema com o qual estamos lidando aqui.

— Então, qual o motivo de tanto segredo? — Arizona e eu estávamos

sentadas dentro do velho caminhão, olhando as estrelas, quando eu a intimei.Hunter havia nos dito estritamente para levarmos uma conversa franca. Eu

tinha certeza de que agora ele estava com Phoenix, dando o castigo peloacidente com o fogo. E se ele sumisse com Phoenix de volta para o limbo, e eununca mais o visse? Sem dúvida, Hunter tinha os poderes para fazer isso.

Concentração! — disse para mim mesma. Preste atenção às desculpas de Arizona.

— De quais segredos você tá falando? — Como sempre, ela queria controle,devolvendo perguntas para mim e me testando.

— Vamos começar por Raven. Conte sobre ele.

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— O que tem para contar? Ele tem nove anos, gosta de desenhar numcaderno. Ponto final.

— De que ele tem tanto medo? — Resolvi cortar o papo-furado que elaqueria começar.

Arizona tamborilou os dedos da mão direita no painel oco do caminhão.

— Ele acha que o mundo é um lugar perigoso para pessoas como ele.

— O que quer dizer com pessoas como ele?

— Gente que não saia do útero como todo mundo, cujo cérebro funciona deum jeito diferente, isto é, supondo que haja algo como um cérebro normal, o

que eu duvido.

— Por favor, pare. Não venha dar uma de louca com essas teorias para cimade mim. Estamos falando de seu irmão aqui. Vi quando ele estava no jardim. Deque ele tem medo?

Arizona virou-se para mim.

— De tudo — ela disse com calma.

Esperei por mais informações.

— Olhe — ela pediu.

Fiquei olhando.

Arizona apertou os olhos e franziu bem a testa.

— Qual meu humor agora?

— Pare com isso e responda à minha pergunta.

— Estou respondendo. — Ela trocou a testa franzida por um sorriso. — Eagora, estou triste ou alegre?

— Responda à pergunta!

— O negócio é que você sabe, você consegue ler meu rosto, não é? Bem, meuirmão não pode fazer isso. Ele não sabe dizer o que um sorriso significa, nemquando alguém está prestes a ficar bravo com ele, nem se uma pessoa pretendeser gentil. O cérebro dele não consegue identificar essas coisas. Por isso, ele seprevine desconfiando de todo mundo o tempo todo.

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— Que loucura. — O olhar de superioridade com que Arizona me tratou fezcom que eu me arrependesse da minha escolha de palavras. — Quer dizer, doque se trata? É uma doença?

— Só se você não entender a situação. — Seu tom de voz tinha mudado, e ela já não estava mais tão arisca. — Nunca considerei meu irmãozinho doente. Elesó é do jeito que é — louco para o mundo, mas quem pode culpá-lo?

— Mas, seus pais... Eles não acharam que ele precisava de tratamento?

— Sim. Desde que Raven era pequeno eles o levavam para neurologistas empraticamente todos os estados. Ele já passou por todo tipo de terapia:convencional, alternativa, experimental, de ponta, totalmente doida. O que vocêimaginar.

— E?

Ela deu de ombros.

— Em cada uma dessas colocavam nele um rótulo novo e o mandavam devolta para casa. Ou o trancavam num hospital ou, mais recentemente, numaescola para autistas. E tudo o que Raven queria era poder fazer seus desenhos eficar em paz.

— Uau! — O quadro que ela descreveu era bem sofrido. O que será um ―lar‖com um problema como esse acontecendo? — E os seus pais, o que eles querem?

Os dedos de Arizona batucavam mais devagar no painel.

— Eles queriam que isso não tivesse acontecido — ela falou baixinho. Asbatidas no painel foram ficando mais rápidas. — Esse é o motivo pelo qual eleso mandaram para a escola.

— Raven... Ele se sente sozinho? — Tentei compreender melhor a situação,lembrando-me do garotinho assustado de cabelo e olhos escuros no quiosque

da casa dos Taylor.

O suspiro dela demorou um bom tempo.

— Com certeza — ela admitiu. — Agora que não estou mais lá, Raven nãotem mais ninguém no mundo para apoiá-la.

— Agora você já sabe. — Os mecanismos de defesa de Arizona voltaram afuncionar e nós já estávamos fora do caminhão, andando na varanda e olhandopara o céu. Ainda não havia sinal de Hunter ou Phoenix. — Essa é a razão para

eu ter voltado ao mundo dos vivos, preciso que Raven saiba que eu nunca,nunca faria aquilo que disseram que fiz no lago Hartmann.

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— Você quer dizer, nunca o deixaria de propósito. — Pelo menos isso eutinha entendido.

— É, não especialmente agora.Esperei por sua explicação, mas o esclarecimento só veio com minha

pergunta.

— Por que não agora?

— Agora meu pai está acertando a papelada do divórcio.

Essa nova informação caiu como uma bomba para mim.

— Então, quando eles se separarem, você não sabe quem vai ficar comRaven. É isso que está tentando dizer?

Outro longo suspiro e uma afirmação com a cabeça.

— Quem é que vai se preocupar? — ela acrescentou, desaparecendo dentroda casa e fechando a porta.

Hunter me encontrou sozinha na varanda.

— Eu não fazia ideia dos problemas com que ela estava lidando — contei a

ele.

— O quê? Arizona não se encaixa no papel de vítima? — ele perguntou,sorrindo sem o menor sinal de humor nos olhos. — Só que com o históricofamiliar dela, acho que se encaixa, sim.

— Os pais dela pareciam tão unidos. O pai dá aula de música numafaculdade, a mãe é apresentadora de televisão.

— Você chegou a conhecê-los?

— Não até ontem. E só vi Allyson Taylor por alguns segundos. Ela estavasaindo para trabalhar. O pai é mais velho do que eu pensava. Parece que nãocombinam muito como casal.

— Então sua tarefa é ajudar o irmão dela a superar isso. Você vai ter detrazer algumas verdades à tona e encontrar uma maneira de se comunicar como menino.

— Aí Arizona poderá descansar?

— Talvez. De qualquer modo, a missão dela aqui estará cumprida. AssimRaven saberá que ela o amava e que não desejava ter partido.

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Eu conseguia enxergar esse plano dando certo, mas, na minha opinião, aindanão traria muito conforto. O garoto continuaria atrapalhado e ficaria totalmentesozinho.

— Não questione, Darina — Hunter havia lido minha mente. — Apenas faça.Descubra como Arizona morreu e não volte aqui até que tenha descoberto.

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— Hoje, mais cedo, tivemos a notícia de que pais dos alunos da escolaEllerton High School, no condado de Bishop, estão formalizando pedidos demaior segurança à própria instituição. Essa medida chega após os trágicoseventos do ano passado, quando quatro dos alunos do último ano perderam avida.

Isso é o que se chama de chorar sobre o leite derramado  — pensei, já no meuquarto, enquanto assistia a Allyson Taylor ler as reportagens da noite. Nossodiretor, o comandante da prisão de Guantánamo — Dr. Valenti —, anuncioupara as lentes da televisão que tem planos de expandir a cobertura do circuitointerno de câmeras de vigilância e implantar um sistema de abordagem e

revista dos estudantes suspeitos de estar levando facas ou armas de fogo para aescola. Achtung! 

Tudo acontecia sem levar em conta que nenhuma das quatro vítimas haviamorrido dentro do ambiente escolar. Mas esse ―detalhe‖ parecia não terimportância — como eu disse, a maior parte dos pais estava se deixando levarpor uma histeria coletiva, temerosos de que o dia seguinte pudesse ser o últimopara seus filhos.

— Darina, vai jantar hoje ou não? — Laura perguntou da escada.

— Não — respondi.

— Desça, eu fiz macarrão.

— Então eu não tenho escolha?

— Venha comer! — ela insistiu.

Desci a escada admirando a mãe de Arizona pelo modo profissional com queapresentava sua própria tragédia familiar ao vivo. Pela primeira vez estava feliz

por ser da mesma família de Laura. Allyson Taylor podia ser bem vestida, teruma postura elegante e refinada, podia ser incrivelmente bem sucedida e rica,

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mas estava se divorciando e nunca estava presente na hora das refeições paraobrigar seus filhos a comer.

— Por que está sorrindo? — Laura perguntou enquanto me passava o prato.— Desculpe, não sabia que era proibido.

No canto, com o prato de macarrão num joelho e o laptop no outro, Jimresmungou. Ele quis dizer: Faça o favor de respeitar a sua mãe.

Levantei uma sobrancelha em sua direção, o que significava: E que tal você demonstrar algum respeito e sair do computador para vir comer à mesa? 

Felizmente, nenhum de nós achou que valesse a pena partir para o confronto

explícito.

— Você sabia que Arizona Taylor tinha um irmão autista? — perguntei aLaura, do jeito mais casual que pude. Eu tinha passado um bom tempo duranteas aulas de hoje fazendo meu plano de ação até chegar aos seguintes tópicos:

  Pesquisar sobre autismo na internet;  Pedir para Logan me levar à oficina mecânica atrás do shopping;  Xeretar por aí e descobrir mais a respeito da reputação da família

Taylor.

 Já tinha feito a pesquisa sobre autismo antes de ligar a televisão e assistir aAllyson dando as notícias. Uma visita a Logan estava marcada para depois do

 jantar. Quem sabe nesse meio tempo Laura pudesse lavar alguma roupa sujados Taylor.

Ela parou com o garfo a meio caminho da boca.

— Não, pelo que eu sei Arizona é filha única.

— Ele deveria ter uns nove anos — emendei.

— Quando foi que os Taylor chegaram em Ellerton? Deve fazer uns oito ounove anos, na verdade. Mas que eu lembre não tinham nenhum bebê.

Uau! Raven era mesmo um segredo bem guardado!

Laura continuou comendo.

— Sabia que Arizona era filha da primeira mulher de Frank Taylor? Allysonnão era sua mãe biológica.

Outra novidade para mim.

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— Eu nem sabia que ele havia sido casado antes.

— É, com outra mulher também muito mais nova. Ele e Allyson só se

casaram depois de terem se mudado para aquela mansão nova lá em Westra. — Laura desatou a falar sobre o passado. — Os Madison eram muitíssimopróximos deles naquele tempo, então foram convidados para o casamento. Foi

 Jon Madison quem projetou a casa deles.

Finalmente eu conseguia visualizar uma brecha na muralha ao redor doproblema de Arizona.

— E os Madison ainda são amigos dos Taylor? — Se fossem, eu poderia ligarpara os pais de Summer e tentar uma investigação mais a fundo.

Laura disse que não.

— Tem uma história de que os Taylor não pagaram tudo o que deviam a Jonpor seu trabalho de arquiteto, e a amizade começou a minguar. E você sabe, Jone Heather não têm mesmo muito a ver com os Taylor, especialmente Allyson.Ela está nessa coisa de mídia, e é cada um por si nessa área.

— Então não tem mesmo irmão mais novo de Arizona — murmurei. E amuralha ainda continuava sólida.

— Allyson tirou uma licença no período em que eles estavam construindo acasa. — Laura foi recordando. — Ela trocou de canal e saiu da frente dascâmeras por um tempo. Minha amiga Kristina jurou que foi para fazer umaplástica, sabe como é. Quando voltou ao ar, achei que Kristina tinha razão.

— Por quê? Que idade ela tem? — Eu quis saber.

— Ela está com quarenta e sete — foi o torpedo que Laura me devolveu. — Éisso o que eu quero dizer: ela definitivamente entrou na faca!

— Agora não, Darina, estou ocupado. — Logan jogou um balde de água fria

em mim.

Eu tinha ido até a sua casa para que ele me levasse ao shopping, achando queele saberia melhor que eu onde ficava uma oficina lá perto. Também pensei queele não pareceria tão deslocado naquele ambiente. Talvez ele pudesse conversarcom o cara da oficina, pedir umas peças para o motor enquanto eu dava umaolhada no último lugar que Arizona lembrava ter visitado.

Mas Logan disse que não; já era o meu segundo choque da noite. O primeirofoi quando Jim deixou escapar um comentário justo na hora em que eu estava

saindo de casa, no instante entre me falar o modo tecnicamente correto de

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colocar a louça suja na máquina de lavar pratos e a ida à geladeira para pegaruma cerveja.

— Na verdade, Allyson e Frank Taylor tiveram um filhinho, sim, na épocaem que eu dirigia um táxi para ter uma renda a mais. Lembro-me de ter levadoAllyson e o bebê de um hospital até a casa nova em Westra.

Valeu, Jim, por essa pequena e surpreendente pepita.

— E como é que Laura não soube?

Ele fez que não sabia e abriu a latinha.

— Ouvi dizer que o bebê não era muito saudável — sua voz abafou o chiado

do gás. — Pode ser que os Taylor não quisessem tocar no assunto com gentenão tão conhecida.

— Ocupado com quê? — Ainda na varanda e com a informação de Jimguardada, desafiei Logan. Não estava vendo nenhuma tarefa da escola na mesada cozinha, e ele não estava com a cabeça embaixo do capô do carro.

— Preciso encontrar uma pessoa — ele falou, pegando e balançando aschaves do carro.

— Que pessoa? — Logan Lavelle nunca me decepcionava, era vidrado emmim, quase ao ponto de ser considerado um perseguidor compulsivo.

— É só um cara — respondeu, já ligando seu Honda branco impecável acaminho da rua.

Portanto, tive de esperar até quarta-feira à tarde para encontrar Logan emseu horário livre.

— Claro, conheço a oficina, sim, Mike Motores — ele me contou durantenosso percurso até o centro. — Meu pai é colega de bar de Mike Hamill.

Ele não me perguntou o porquê de querer ir lá, o que era outra mudança nomodo de Logan agir.

— Você não quer saber por que estamos indo para lá?

Ele deu sinal ao parar no semáforo e pegou uma rua à esquerda do shopping.

— Você me daria uma resposta clara?

Dei uma olhada mais atenta no rosto de Logan. Ele sentiu que eu o encarava,

mas não reagiu. De perfil ele parecia mais sério e maduro, quase bonitão. Quer

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dizer, ele tem traços bonitos, um cabelo escuro e espesso, é um chamariz bompara qualquer garota em qualquer lugar.

— Eu quero ver como é, foi o último lugar a que Arizona foi antes de morrer.No carro, Logan e eu tivemos uma briga.

— O que é isso, algum tipo de missão insana? — ele gritou e saiu da estrada.Perdeu toda aquela maturidade interessante e começou a fazer o papel do caraestressado, sabe-tudo e perseguidor. — Primeiro a obsessão com a morte de

 Jonas, depois vem me dizer que nunca vai superar a de Phoenix, e, agora, éArizona. Pelo amor de Deus, esse pessoal está morto!

— Eu sei que é estranho, Logan...

— Isso não está certo, Darina, não pode fazer bem para você.

— Então me deixe sair do carro — falei calmamente. Abri a porta e fui a pé oresto do caminho até a Mike Motores. Ficava nos fundos do quarteirão,espremida entre um armazém de contêineres e uma fábrica de toldos. A placaparecia que precisava de uma mão de tinta, e o painel de vidro quebrado estavacoberto de tábuas.

— Ei!

Chamei, mas ninguém respondeu. Dentro só havia um monte de carros sujosde graxa no chão de concreto e um rádio tocando música country, bem alto. Aslatarias queimadas de dois carros estavam empilhadas uma em cima da outra,num canto lá no fundo. No outro canto, enxerguei o utilitário prateado deArizona.

Tive de olhar uma segunda e uma terceira vez, porque o automóvel estavacoberto de poeira e meio escondido debaixo de outras coisas, mas eu conhecia aplaca e reconheci o interior de couro preto, muito bem cuidado.

— Você precisa de alguma coisa? — uma voz grave perguntou, e eu dei avolta até ver Kyle Keppler, o amigo de Brandon.

Kyle não era mesmo o tipo de Arizona — pela segunda vez esse pensamentome vinha à cabeça, agora com mais clareza do que antes. Seu macacão demecânico estava todo sujo, e ele ficou parado com os pés bem afastados,desconfiado e com aquela mandíbula grande acentuando sua expressãodesconfiada. Talvez, depois de um bom banho..., pensei.

— Claro, vim encontrar um amigo aqui — falei.

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Kyle tombou a cabeça para o lado, sem dúvida para dar uma olhada emminha calça e camiseta apertadas e dar uma nota nove para o conjunto — nãochegava a dez porque devia estar faltando um decote revelador.

— E qual seria o nome dele? — perguntou.

— Logan Lavelle. — Falei o primeiro nome que me veio à mente. Por queserá que o carro empoeirado de Arizona ainda estava na oficina? — A gente jáse encontrou, você estava com Brandon Rohr — quis lembrá-lo.

Ele fez um movimento rápido com a cabeça, afirmativo.

— Não tem nenhum Logan Lavelle aqui.

— Mas ele não trouxe o carro para consertar?

— Dá uma olhada.

— Certo, devo ter me confundido. Peço desculpas. E o que acontece com ocarro de Arizona? Os pais dela não o querem de volta? — Parti para o ataque,sem medir consequências.

Kyle enrugou a testa.

— Já falei que Logan não está aqui.

— Eu entendi, mas é que vi o carro lá e fiquei meio espantada. Peçodesculpas de novo.

Talvez eu tivesse conseguido furar seu bloqueio, ou ele ainda estavaadmirando minha calça.

— Tudo bem. Na real, Frank Taylor achou melhor vender o carro para o meupatrão depois que Arizona... Você sabe... Faleceu. Precisava de uns consertos.

— Por isso ela trouxe o carro para cá, afinal de contas, imagino. É, fazsentido, você e Arizona tiveram um lance, você trabalha aqui. Então ela vinhatrazer o carro para consertar, por que não? — Só que ela tinha me dito que nemsabia o nome do lugar, e isso era, evidentemente, uma mentira.

O humor de Kyle mudou, e ele veio andando de um jeito vagaroso eameaçador em minha direção. — Alguém já lhe disse que sua boca pode metê-la em problemas?

Fui andando de costas, de volta para a porta aberta.

— Só estou falando o que Brandon me disse. Que você e Arizona...

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— Brandon fala muita abobrinha — Kyle resmungou. — O que ele disse épapo-furado.

Enquanto isso, no rádio, Tammy Wynnete debulhava seu coração emlágrimas, cantando: ―fique ao lado do seu homem‖ ou ―não fique ao lado dele‖— não me lembro de qual das duas frases.

Confusa, comecei a sentir que tinha entrado em um universo paralelo etenso.

— Você e Arizona, você não estavam...?

Kyle deu uma longa e derradeira olhada para mim.

— O que você acha? — ele perguntou e bateu a porta da oficina com força,deixando-me do lado de fora.

— Para mim, você não era desse tipo que desiste fácil, Darina. — Minhaprofessora de música, Katie Jones, estava me lançando um olhar fulminante. Eupertencia a um bando de alunos que formavam o grupo musical, que incluía ossuspeitos de sempre: Jordan, Hannah, Lucas e Logan. Perto do começo deoutubro uns doze de nós havíamos nos juntado e planejado uma apresentação

em homenagem a Summer Madison, a grande promessa de talento e sucesso deEllerton High. Como sentíamos saudades de Summer e de suas músicas lindas,pensamos que essa seria uma forma especial de demonstrar nosso pesar.

— Não tenho tempo para ensaiar — expliquei. — Nem concentração, nemvontade.

— Ela está com a cabeça em outras coisas. — Logan cochichou para Hannah.— Está em sua própria missão secreta.

— Para fazer o quê? — Ao sentir o cheiro de fofoca, Hannah eriçava as

orelhas.

— Xeretar sobre a morte de Arizona. O dedo de Darina está querendoapertar o botão de autodestruição, se liga.

Ignorei a provocação e tentei me concentrar em minha professoradecepcionada.

— E quem a gente vai achar para substituir você a essa altura docampeonato? Não é nada certo você dar para trás agora.

Respondi com um suspiro.

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— Logo você encontra alguém que toque violão melhor que eu.

— Ah... Ela não vai ter a menor dificuldade de encontrar — Jordan sussurrou

para Lucas.E esses eram os meus ―amigos‖. Mas, por outro lado, eu estava dando um

fora imenso neles, então entendia perfeitamente de onde vinha todo aqueleressentimento.

Bem devagar, a Srta. Jones me levou até a porta do estúdio.

— Para mim, você era uma guerreira, não alguém que desiste fácil — eladisse baixinho. — Tem certeza de que está tudo bem?

— Tão bem quanto qualquer um aqui — resmunguei, olhando de relancepara ver Logan engajado na fofoca com minha amiga nem sempre amiga,Hannah Stoltmann.

Era certo abandonar a apresentação? Fui para casa e fiquei remoendo oassunto.

 Já era sexta-feira, e como minha visita a Mike Motores tinha sido em vão,comecei a entrar nas profundezas do desespero. Não consigo destrinchar essa coisade Arizona! Isso não me saía do pensamento. Não sei mais o que posso fazer! 

Na sexta-feira, Laura e Jim tiravam a noite para ir ao cinema, e eu ficava coma casa só para mim. Deixei o jantar de lado e fui mais uma vez procurarinformações em sites sobre autismo. Transtorno Autista — Autismo infantil — Síndrome de X-frágil — epilepsia.

Li que crianças nascidas com autismo têm dificuldades para comer e nuncasorriem, que podem ficar um dia inteiro indo para frente e para trás numacadeira de balanço, olhando as próprias mãos. E que isso pode ocorrer numamédia de três a seis bebês entre cada cem nascidos, ou em 8,7 de cada mil,dependendo da página em que você lê.

Pode ter sido consequência de rubéola no primeiro trimestre de gravidez, oude níveis desequilibrados de serotonina no cérebro — quem sabe? De qualquermodo, essa parte estava muito além da minha compreensão, então resolvi pulá-la e ir aonde queria.

O que me interessava eram crianças autistas com habilidades extraordinárias— algo como dez por cento dos afetados. Eles podiam ter uma memória incrívelpara caminhos e também habilidade musical ou, como em um caso famoso deum menino do Reino Unido, a criança conseguia, com apenas uma olhada para

um edifício — como o Parlamento inglês ou a Casa Branca, por exemplo —,

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pegar um lápis e um papel e reproduzir tudo só de memória. O trabalhoartístico desse menino acabou ficando famoso.

Podem estar falando de Raven! — pensei.Contudo, autismo geralmente é puro sofrimento. Sem fala, sem sorrisos,

essas crianças não o olham nos olhos e, por possivelmente terem outros gravesproblemas mentais, podem ficar sujeitos ao uso de medicamentos por toda avida.

Daí, qual sua reação quando a vida o trata desse jeito? Parei de mexer com omouse e tentei imaginar como os Taylor enfrentaram a situação depois queAllyson foi para casa com o neném no táxi de Jim. Arizona falou dediagnósticos e tratamentos, hospitais e escolas. Falou também que seus pais nãoqueria acreditar que aquilo havia acontecido.

―Ouvi dizer que o bebê não era muito saudável‖, Jim tinha me contado e eletinha razão. Os pais resolveram negar, um pouco como: Vamos manter a doençaem segredo, e quem sabe o problema suma.

Seria isso mesmo? Perguntaria na próxima vez que me encontrasse comArizona.

Esse pensamento me levou do computador para a janela do quarto. Fiquei

olhando o céu estrelado.Quando será a próxima vez? 

Não antes de achar os fatos que estão por trás desse mito que é o suicídio deArizona — Hunter deixou isso claro e transparente como água. Fechei os olhose visualizei os traços fortes e severos do mestre, a tatuagem desbotada das asasde anjo na sua testa e me lembrei da história que Phoenix contou sobre Hunterter levado um tiro na cabeça à queima-roupa do homem que havia poucotempo tinha tentado estuprar sua esposa, Marie.

 Assim eu vou morrer!  — falei para os milhares de estrelas. Preciso subir aencosta de Foxton e ver se Phoenix ainda está por lá .

“Quero que você me dê um motivo para que eu não mande você de volta para o limbo— e agora de uma vez por todas”. 

Ou qualquer coisa nesse sentido. De novo, era Hunter — com os braçoscruzados ao lado do pedaço queimado do gramado, sua raiva prestes aexplodir. Só a lembrança disso já me amedrontava — a maneira como a raivapodia incendiar-se e eliminar quem estivesse no caminho. Hunter era o mestre e

tinha o poder absoluto para hipnotizar, ler mentes e até, como último recurso,

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trazer almas perdidas para bater asas, viajar pelo tempo para o início ou o fimdo mundo, e mais além.

Tremi com as recordações da experiência de minha própria viagem no tempopara definir Matt Fortune como o assassino de Jonas, de como eu nunca haviasentido tanta dor, de ter voltado traumatizada e exausta. Por isso Hunter sóusou esse dispositivo depois que todos os outros métodos falharam.

Mestre. Senhor de tudo: o todo-poderoso Hunter.

Senti uma lufada fresca de vento passar pela janela. As cortinas brancasesvoaçaram. Quando me virei para trás, Phoenix estava no quarto.

— Ah, graças a Deus! — Voei para os braços dele, agarrando as mangas da

 jaqueta e pondo minha cabeça em seu ombro. — Eu não sabia, estava com medode que...

— Eu também. — Ele me abraçou com força, apertando os lábios na minhacabeça.

— Com tanto medo. — Tomei um tempo para respirar. — Não me atrevi avoltar a Foxton. Hunter ainda está bravo com a gente?

— Ele está num péssimo humor, mandou que Lee e eu fôssemos até

Government Bridge montar guarda.— Que dureza. — Sabia do ciúme que Phoenix sentia de Lee, e Hunter

conseguia entender a dinâmica dessa situação bem claramente. — Ele sabe comcerteza como nos machucar.

— Ficamos lá a semana inteira, vinte e quatro horas por dia. — Phoenix mesoltou e foi um pouco para trás, para ver melhor meu rosto. — Estou mesentindo muito mal, Darina. Lee é um novato, mas consegue ler meuspensamentos com clareza. Ele viu o idiota que eu estava sendo.

Dei um leve sorriso.

— Ele brigou com você por causa disso?

— Não, Lee foi legal. Falou que se você fosse a namorada dele, ele reagiria domesmo jeito.

— Então não preciso me preocupar com dois Beautiful Dead brigando porminha causa?

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— Lee é tranquilo — Phoenix insistiu e passou o braço em volta da minhacintura para que eu me sentasse na cama a seu lado. — Você tem ideia dequanto cai a temperatura lá de madrugada?

— Agora fiquei morrendo de pena de você!

— É, devia ficar mesmo.

Paramos de falar e caímos direto nos beijos intensos que estavam nosfazendo tanta falta ultimamente. Fui me deixando envolver, adorando a pressãodos lábios dele nos meus, nas minhas bochechas e bem de levinho nas minhaspálpebras, mergulhando naquele sentimento surreal e etéreo que surge. Derepente, Phoenix se afastou devagar.

— Sabe de uma coisa?

— Não, o quê?

— Aqueles operários de Government Bridge nem estão mais lá. Parece que onovo relatório do agrimensor diz que não há necessidade de reforçar a ponte,afinal.

— E essas noites todas lá fora no frio! — Dessa vez nossos beijos era maisleves, como nosso espírito: risada, beijo, sorriso, biquinhos para outro beijo. — 

Aposto que Hunter sabia que isso aconteceria. Foi ele quem ficou brincandocom a saúde mental do agrimensor, lembra?

E por falar em saúde mental, parei de fazer biquinhos para ter tempo decontar a Phoenix o que tinha descoberto sobre a doença de Raven Taylor, alémde como eu tinha ido até a Mike Motores e visto o utilitário de Arizona para serenxotada de lá por Kyle Keppler.

— Cada coisa estranha... Arizona tinha me dito que nem sabia o nome daoficina, só que é o lugar onde o namorado dela trabalha!

Phoenix esticou as pernas e se deitou na cama.

— Quer saber de mais uma coisa?

Fui me aconchegando ao seu lado e pondo o braço no seu peito.

— Se eu quero? Na verdade, não faço questão que a gente fale muito agora.

Ele tapou minha boca e fez com que eu escutasse.

— Hoje à noite, um pouco mais cedo, Hunter deixou que Lee e eu saíssemos

do castigo e voltássemos ao celeiro para descansar. Por mim, estava tudo bem.A primeira pessoa que vi quando voltei foi Arizona, que estava no campo,

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parada sob o luar e o céu estrelado, sem olhar para nada, sem escutar, como senão estivesse mesmo ali. Ela me ouviu, mas não se mexeu para olhar.

— Acha que ela estava brava? — Talvez comigo, por não ter avançado nainvestigação.

— Brava? Não. Parecia mais triste.

— Triste? — Essa emoção não pertencia à Arizona que eu conhecia. — Comlágrimas e tudo?

Ele riu baixinho.

— Nós não choramos.

— Ah! — Os Beautiful Dead também não tinham batidas do coração, nemsangue, eram frios, pálidos, e agora fiquei sabendo que também não podiamchorar. — Você conseguiu entrar e ler o que estava se passando na mente dela?

Ele se apoiou no travesseiro e deu de ombros.

— Os poderes de Arizona são bem fortes, mas até hoje à noite não sabiaquanto ela é mais avançada que eu. Tentei entrar, mas era como se tivesse umaforça ali me impedindo.

— Ela o bloqueou, e você não pôde usar sua telepatia? — Para mim aquiloera completamente contra as regras; fiquei pensando no que Hunter diria.

— Aí, fui até ela. Queria falar que estava tudo bem, que ela não corrianenhum perigo, mas ela me mandou embora e disse que estava em perigo, sim,que eu fosse perguntar a Hunter sobre isso.

— E você foi? — A história estava me cativando, pensei em Arizona sozinhae fria, no meio do campo, mandando Phoenix embora.

— Espere, a parte esquisita vem agora: encontrei Hunter na casa, no quartodo andar de cima, sentado com as mãos na cabeça. Esperei até que ele parassede me ignorar e olhasse para cima. Ele me perguntou ―Phoenix, alguém já traiuvocê?‖, e eu disse que não que eu soubesse. 

A voz grave de Phoenix calou-se, eu esperei.

— Se é que é possível, eu diria que aquele cara tinha envelhecido. Pareciaestar confuso, debaixo de um peso enorme.

— É de Hunter que você está falando? — resolvi confirmar.

— É que ele teve um embate com Arizona.

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— Uau! A menina deve ser louca ou muito corajosa.

— Hunter me explicou que Arizona o havia acusado de não estar fazendo o

suficiente para resolver o problema dela. Ela falou que você não conseguiria de jeito nenhum romper as barreiras do silêncio por aí sem ter mais ajuda.

— Ela desafiou o mestre? — Esse era o tipo de coisa que não acontecia jamais! Eu fiquei impressionada por Arizona ainda continuar no mundo dosvivos.

— Pior que isso. Ela perguntou como era possível que ele tivesse tantacerteza de estar agindo direito. E se não passava pela cabeça dele que as coisasnem sempre aconteciam da maneira como ele as enxergava.

— E Hunter contou tudo isso para você?

— Sim. Arizona já devia estar maluca nessa hora, porque perguntou se eletinha certeza sobre as circunstâncias de sua própria morte, defendendo aesposa. Se seria possível que Marie não estivesse lutando contra o estuprador,mas que na verdade estivesse traindo Hunter com o cara...

— Peter Mentone.

 Já me referi a uma parte dessa história, mas recapitulando: lá atrás, no

começo de século XX, Mentone era o vizinho mais próximo de Hunter e Marie.Um dia, enquanto Hunter estava fora de casa, ele foi fazer uma visita. Huntervoltou mais cedo e pegou os dois juntos.

— Não se pode dizer uma coisa dessas para Hunter! — Precisei sentar porconta do choque causado pela história.

— Arizona disse. Você fica achando que o cara é feito de aço, mas se vissecomo ele estava quando entrei no quarto, veria como estava acabado. Foi porisso que me perguntou sobre esse negócio de traição. Pouco depois, ele selevantou e tentou espairecer a mente e disse que tinha algo que queria que eufizesse.

— Pensei que você fosse descansar.

— Ele mudou de ideia. Disse para eu levá-la a Foxton imediatamente.

Meu coração deu um pulo: Phoenix estava ali para me levar de volta com ele.Eu estava pronta para ir.

Phoenix me fez esperar mais um pouco; ele ainda não tinha terminado de

dizer tudo o que queria.

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— Só uma coisa, Hunter não falou ―Traga Darina‖, mas sim ―Traga Marie‖. 

Fiquei sem ar. Por que esse deslize, esse ato falho estava me fazendo tremer e

ter calafrios por toda a coluna?— Summer disse que você se parecia com Marie, lembra? — Phoenix pegou

minha mão e fomos até a janela. — Ela viu aquela fotografia antiga.

— Pare, essas coisas confundem minha cabeça. De qualquer modo, vocêentendeu o que ele queria dizer, e aqui está você para me levar. Hunter falou omotivo?

— Por causa de Arizona. Tem mais coisas que ela não está contando, eHunter descobriu que não são poucas.

Essa revelação não me espantou tanto quanto Phoenix esperava.

Agora Hunter e os Beautiful Dead sabiam aquilo que eu já vinha sentindohavia tempo — que Arizona escondia verdades importantes por motivospróprios. Em outras palavras, ela era um deles, mas nem sempre era possívelconfiar nela.

— Então você já sabe — falei para Phoenix enquanto ele se preparava parame desmaterializar. — E a partir de agora não estarei mais lutando sozinha

nessa batalha: Hunter vai conseguir fazer com que ela revele a verdade, nãovai?

— Não tenho a menor ideia, esse é um território novo. Certo, Darina, Hunterprecisa de você lá mais rápido do que a gente poderia chegar indo de carro,portanto vamos fazer do jeito dos Beautiful Dead.

— Estou pronta! — Isso também era novo para mim. Viajar pelo espaço àmoda deles, e, sem dúvida, eu estava morrendo de vontade de ter essaexperiência.

— Não vai doer nada — Phoenix me prometeu. — Só se lembre de não mesoltar.

Concordei, eletrizada pelo bater das asas que haviam descido à nossa volta,levantando as cortinas de seda com seu movimento intenso e gerando umabrisa que as jogava para fora da janela.

— Feche os olhos e não abra até eu mandar — avisou. Fiz isso um pouconervosa, com as asas batendo mais forte e a energia delas parecendo maisameaçadora.

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— Estou segurando forte — assegurei para mim mesma, assustada tambémpelos desenhos que via com as pálpebras fechadas: zigue-zagues de setas cor delaranja e roxas em movimentos rápidos. — Quanto tempo isso vai demorar?

Phoenix não respondeu e continuou me segurando, a despeito das asas e dasformas esquisitas; mãos frias, porém firmes. Senti um vento forte, frio como amorte, uma sensação difusa e flutuante, quase como se meu cérebro fosse seperder dentro do crânio — uma desorientação total —, e, finalmente, uma luzbranca luminosa penetrando em minhas pálpebras.

— Ok, abra os olhos — Phoenix enfim falou.

Estávamos no celeiro no pé da encosta de Foxton. Estava escuro, e não havialampiões, apenas finos raios do luar desenhando o piso.

— Que loucura! — Não soltei minhas mãos de Phoenix até conseguir meequilibrar e poder dar uma olhada em volta. — E onde está todo mundo?

Saímos do celeiro, e do lado de fora continuava a escuridão profunda. Comohavia uma luz acesa na casa, fomos para lá.

— Ei! — Iceman ouviu nossos passos e abriu a porta, sorrindo para mim. — Tudo bem com você, Darina?

— Foi muito estranho, mas está tudo legal, sim — contei a ele.Phoenix entrou na casa antes de mim e perguntou:

— Onde está Arizona?

— Foi embora.

— Embora para onde? — A resposta de Iceman foi um choque para mim,pensei que ele estivesse querendo dizer que, depois de ter deixado Hunter tãoirado com seu comportamento, Arizona havia sido banida de vez do mundo

dos vivos.

— Ninguém sabe. Aonde quer que ela tenha ido, foi Hunter quem a levou. Emandou vocês dois esperarem aqui.

— Ele vai demorar muito?

Phoenix tinha dito que eu devia chegar rápido em Foxton, por isso o truqueda desmaterialização. Mas agora parecia que algo mais importante haviasurgido.

— Quanto for preciso. — Num suspiro, Iceman virou-se para Phoenix econtinuou: — Nunca tinha visto Hunter agir desse modo.

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Phoenix concordou:

— Nunca tinha visto ninguém desobedecê-lo antes disso.

— Já viu, sim — recordei. — Ultrapassamos o limite naquela segunda-feira ànoite, mas acho que nada comparado a Arizona.

— De qualquer maneira precisamos esperar. — Phoenix se sentou na beiradada mesa, com as pernas esticadas em minha direção. — Sente-se você também— ele disse, apontando para a cadeira de balanço. — Tente dormir um pouco.

— De jeito nenhum — respondi. — Estou cansada demais para isso.

***

Seis horas depois, Phoenix me acordou com um beijo.

— De novo, senão eu vou pensar que ainda estou sonhando — falei baixinho.

Ele me beijou os lábios e o pescoço com carinho.

— Ainda sem notícias de Hunter nem Arizona — fui informada. — Masvenha dar uma olhada nisso.

Saí da casa seguindo Phoenix num mundo ainda em total escuridão, ondeaparecia o arco dourado do sol se anunciando no horizonte. Assistimos aonascer do sol, incrivelmente rápido, passando de um laranja intenso para umrosa brilhante, derramando-se pelo topo das montanhas.

— Legal, não? — Phoenix sussurrou no meu ouvido.

— Estou sem palavras — contei para ele. Naquele exato momento, a vidaestava sendo mais-que-perfeita.

O silêncio só se quebrou com o barulho de Summer correndo na campina daencosta do morro. Ela era como uma fadinha de cabelos dourados e membroslongos, linda.

— Tem um pessoal a cavalo lá no alto de Pedra do Anjo — ela contou,apressada. — Acho que saíram cedo para assistir à alvorada.

A voz dela atraiu Donna e Lee para o jardim.

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— Vamos — Donna disse antes que eu pudesse ter qualquer reação. — Darina, talvez seja melhor você ficar por aqui.

Rapidamente, os quatro partiram na direção de onde Summer tinha vindo eme deixaram plantada na varanda, sem saber o que fazer.

Desde quando Donna me dava ordens? Perguntei a mim mesma e resolvisegui-los a distância, mas mantendo-os ainda em meu campo de visão. O sol játinha se levantado, e eu sabia chegar à Pedra do Anjo.

Phoenix, Summer, Donna e Lee logo sumiram atrás da encosta. Fui vencendoos alámos e a caixa d’água, até chegar a tempo de avistar ao longe um reboquepara cavalos estacionado no final de uma estrada de terra e três cavaleiros.

Os quatro Beautiful Dead já haviam se escondido e se espalhado pelo morroseguinte. Não demorou para eu sentir aquela brisa conhecida descendo do picoAmos, amassando a grama e assobiando por onde passava.

Os cavalos também ouviram. O que era aquilo — vento ou asas? De ondevinha?

Agora eles vão ficar assustados mesmo, eu já sabia. Vi Donna e Leedesaparecerem por trás da formação de granito que chamam de Pedra do Anjo,ouvi as asas baterem mais forte e senti a luz intensa da manhã começar se esvair

e ficar sombria.

Os três cavaleiros lutavam para manter seus cavalos sob controle. Elestentavam ficar de costas para o vento para se proteger, até notar que os soprosmudavam de direção e enrolavam a crina e o rabo dos cavalos por todos oslados. Um dos cavalos, o Quarto de Milha malhado, empinou e ficou sobre aspatas traseiras.

Eu estava longe demais para ver ou ouvir os detalhes, mas percebi que asasas bateram e levantaram um campo de força que aterrorizou os cavalos. Eles

queriam sair de lá, só que os cavaleiros, também em pânico, seguravam asrédeas bem firme.

— Pare! — falei para Phoenix.

Ele ouviu e gritou para Summer, que concordou e desceu o morro também.Porém, Lee e Donna estavam agindo separadamente e continuarampressionando os cavalos e os cavaleiros, empurrando-os para longe do celeiro eda casa, mas ainda mais para dentro do deserto de espinheiros e rochas deAmos.

— Phoenix, peça para eles pararem! — falei mais uma vez.

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Era tarde demais. A pessoa que montava um Quarto de Milha soltou asrédeas, e o cavalo saiu em disparada. O segundo cavalo, um Appaloosa, ficoupulando e dando coices até seu cavaleiro se debruçar sobre a crina e deixá-lo

sair galopando atrás do primeiro. O terceiro, um alazão que ficou preso à Pedrado Anjo por causa do vento pulsando em suas orelhas e narinas, relinchava depavor.

Vi o cavalo balançar de um lado para o outro bruscamente e a pessoa cairpara o lado na sela. A égua inclinou-se para trás, desequilibrando ainda maissua amazona. Ela se esforçava para se recompor, e eu até achei que fosseconseguir, mas não — já tinha perdido o equilíbrio havia tempo e acabou sendo

 jogada ao chão. Enfim livre, o cavalo fugiu mais que depressa dali.

Summer e Phoenix correram até a amazona caída, e fui me juntar a elesenquanto a viravam e descobriam que estava inconsciente, porém viva. Elaficou deitada em uma elevação plana da rocha, um braço torcido por trás dascostas e os olhos fechados.

— Meu Deus, que vamos fazer? — perguntei, cheia de medo.

Lee e Donna ainda estavam mantendo o campo de força aterrorizante atrásda Pedra do Anjo, e o vento continuava soprando em direção ao pé do morro.Bem longe, cavalos e cavaleiros corriam fora de controle.

— Não encoste nela — avisei Summer. — Não até sabermos se quebroualgum osso.

— Vá e faça Lee e Donna parar — Phoenix disse a ela. Ele ficou comigo parachecar o pulso da moça, e eu cheguei mais perto para sentir a respiração delaem meu rosto.

— Parece que está com o braço quebrado. Onde vocês estavam com a cabeça?Não se usam as asas batendo quando há cavalos envolvidos na situação!

— A coisa saiu do nosso controle — Phoenix admitiu. Ele recuou quandopercebeu os olhos da mulher começarem a se mexer. — Ela está acordando.

— Vocês quatro precisam sair daqui rápido — decidi. — Peguem os outros esaiam!

Fiquei vendo seus olhos piscar, e ela começando a gemer.

— Vá, Phoenix!

Ele foi buscar Summer, Donna e Lee para sumirem dali antes que a moça

machucada soubesse onde estava.

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— Está tudo bem — falei, à medida que ela tentava se apoiar em um doscotovelos. Agora, vendo seu rosto com mais atenção, percebi que não era tãonova — possivelmente perto dos cinquenta. O cabelo escuro preso para trás

numa trança tinha mechas grisalhas, e o rosto tinha marcas, mas ela ainda eraesbelta e estava em boa forma.

— Não sei o que aconteceu — disse com a voz fraca. — Meu cavalo seassustou. O vento estava muito esquisito. Foi um furacão?

— Não fale, nem precisa se preocupar, vou tirar você daqui.

Quando tentou levantar o braço direito, ela gemeu de dor. Então ela sedeitou de novo na rocha, com lágrimas escorrendo do canto dos olhos.

— Parece que o braço está quebrado — confirmei. — Dói em mais algumlugar?

Ela respondeu que não.

— Preciso ir para um hospital — disse num suspiro.

— Eu sei. Fique deitada, tente não se mexer. Vou ver se consigo achar sinal eligar do celular.

Tirei o celular do bolso e liguei para a emergência. Chamada perdida — uma,duas, três vezes. Tentei mais uma vez — finalmente chamou.

— Precisamos de ajuda com urgência no alto da serra de Foxton — falei paraa telefonista. — Tem uma mulher machucada aqui, ela caiu do cavalo. O lugarexato é a Pedra do Anjo. Venham o mais rápido que puderem.

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Eu estava atolada até o pescoço com problemas vindo de todos os lados.— Não acredito que fez isso comigo! — Laura choramingou. — Jim e eu

chegamos do cinema e fomos para a cama pensando que você estivesse a salvono seu quarto para depois saber que você nem tinha dormido lá!

— E como é que você chegou à Pedra do Anjo antes de amanhecer? — Loganquis saber depois que Laura ligou histérica para ele. — Não, nem me fale. Naverdade, eu não quero saber.

Antes disso eu estava sob forte pressão dos paramédicos.

— Você viu o que causou o acidente? O que foi que assustou os cavalos?Tinha mais alguém no lugar do acidente?

E, ainda, os médicos no hospital.

— Você quer dizer que dirigiu até lá sozinha? — Naturalmente, eu mentisobre isso. — Seus pais sabiam onde você estava?

Na próxima vez em que alguém cair do cavalo, eu atravesso a rua e finjo que não vi ,

pensei.Saí do hospital perto das onze da manhã e peguei uma carona com um

médico que estava deixando o plantão. Cheguei em casa algumas horas depois,tentando inventar uma desculpa boa o suficiente para deixar Laura satisfeita.

— Não estava conseguindo dormir, por isso levantei cedo.

— E a sua cama?! — ela gritou, com os olhos saltados e os punhos cerrados.— Você nem sequer se deitou nela!

Fechei os olhos fazendo negativas com a cabeça e implorei.

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— Por favor.

— Aonde você foi? — Ela continuou com a marcação. — Não ouvi você sair,

eu teria escutado o carro sendo ligado.— Não dê as costas para sua mãe — Jim aconselhou. — E tente pelo menos

uma vez na vida nos falar a verdade!

Era tudo o que faltava!

— Pare de me dizer o que fazer! — gritei com ele, sentindo aquela questãoque estava ali, sempre presente. — Você não tem o direito, não é nem meu pai!

Daria para pensar que eu tinha dado um soco no estômago de Laura pela

maneira como ela engasgou e caiu sentada no sofá. Ela ainda estava decamisola, enrolada no roupão de banho cor-de-rosa, e a máscara facial da noitepassada manchava seu rosto pálido.

 Jim inclinou a cabeça para o lado, os olhos miúdos brilhavam.

— Vou fazer de conta que não ouvi isso, Darina.

— Tanto faz! — Já estava na hora de cair fora, não importava para onde.

Saí e estava ligando o carro quando o Honda de Logan parou na calçada, meimpedindo de sair.

— Saia da minha frente! — berrei.

Ele bateu a porta e caminhou até a garagem.

— Pare de gritar comigo, você não vai a lugar nenhum.

Saltei do carro, passei por cima da grama e pulei a cerquinha que dava para acalçada.

— Não chegue perto, Logan. — Esse cara estava passando dos limites. — Você mesmo disse por telefone que não quer saber!

Logan não se deixou abalar. Começamos a correr pela rua, ele segurandomeu braço.

— Você extrapolou, entende?

Hora de as questões surgirem novamente.

— Logan, você é pior do que Jim, não tem direito nenhum de querer meforçar a aceitar suas opiniões. Você não é nada na minha vida, tá bom?

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Era hora, também, de Logan ser nocauteado. Ele respirou fundo e pisou navaleta.

Eu já podia seguir em frente sem ninguém me impedir, mas parei para irmais fundo na questão.

— Você não é meu irmão, nem meu namorado, nem meu pai, você é meu...Não, você não é nem mesmo meu amigo! — Ainda que eu quisesse, nãoconseguiria tê-lo machucado mais.

Fiquei chocada — ao invés de continuar nocauteado como Laura e Jimficaram, Logan voltou na minha direção. Ele conseguia correr mais rápido queeu e, novamente, estava fechando meu caminho.

— É a hora da verdade? — ele perguntou com uma voz seca e amarga. — Quer ouvir o que está acontecendo, Darina? Você tem agido como umacompleta demente. Ninguém acredita em uma palavra do que você diz.Ninguém. Nem Hannah, nem Lucas, ninguém gosta de você do jeito que estáagindo.

— Quero ouvir isso mais uma vez — desafiei, com o peito arfando. — Nãoacabei de salvar uma mulher ferida numa montanha? Desde quando isso éerrado?

— Você sabe que não estamos discutindo isso. Qual é o grande segredo sobreFoxton e a Pedra do Anjo? O que você está escondendo? Por que iria lá antes doamanhecer?

— Não vou falar!

Finalmente consegui deixá-lo para trás quando chegamos a uma fileira deplátanos e o som das folhas farfalhando foi se transformando em bater de asas.

— Eu posso ir para onde eu quiser, Logan, nenhuma lei me proíbe.

— Então vá — ele disse, conformando-se de repente. Ele tinha ido longedemais comigo, até o último round: o gongo havia soado, e era chegado a horade o juiz apontar o vencedor, quem quer que fosse.

Com cuidado, andei ao seu redor ainda acreditando num golpe derradeiro.

— Então vai tirar o carro de lá? — perguntei, para confirmar.

— Claro — ele respondeu com desdém e voltou pelo caminho de ondetínhamos vindo. — Vá para onde quiser, Darina. Só que, daqui por diante, não

venha mais à minha casa procurar ajuda e um ombro para chorar quandochegar ao fundo do poço.

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Depois disso tudo, mesmo com Logan tendo tirado o carro da calçada, eunão consegui ir a lugar nenhum.

— Darina, visita para você — Jim falou da varanda antes que eu pudesseengatar a primeira marcha.

Um estranho segurando um buquê de flores estava ao lado de Jim, e eudemorei um tempo para lembrar de onde o conhecia. Só quando saiu da sombraé que pude ver o cabelo grisalho penteado para trás, aquela figura magra, e tiveum estalo: era o jardineiro da casa dos Taylor! Se fosse qualquer outra pessoa,eu teria pedido desculpas e me retirado.

O jardineiro Peter me reconheceu praticamente no mesmo instante. Percebique piscou nervoso e engoliu seco. Continuou vindo até a garagem e seapresentou pela janela do motorista.

— Peter Hall. Vim aqui para agradecer-lhe.

— Pelo quê? — Eu pensava nas linhas de Raven Taylor, o desenho amassadoe os olhos assustados do menino.

— Por tirar minha mulher, Jenna, do alto da montanha hoje de manhã. Senão fosse você, a coisa poderia ter sido feia.

Entramos na casa, e Laura pôs os lírios num vaso e saiu com Jim para medeixar falar a sós com Peter.

— Não tinha a menor ideia de que ela fosse sua mulher.

— De qualquer modo, obrigado. Acabei de chegar do hospital, e os médicosdisseram que querem mantê-la internada por mais alguns dias. Eles precisamesperar até o ferimento desinchar antes de decidir o que vão fazer. Talvez umacirurgia, talvez não. Além disso, Jenna ficou bastante abalada e foi medicadacom sedativos.

— Ela vai ficar bem?

— Sim, e pediu que eu viesse lhe agradecer.

— É estranho que a gente já se conheça — lembrei.

Ele preferiu não continuar a conversar sobre isso.

— Preciso ir andando. Preciso buscar o reboque do cavalo de Jenna lá emFoxton. — Peter Hall terminou rápido a conversa, levantando-se para irembora. — Então, obrigado, Darina.

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Fui com ele até o lado de fora da casa, contente por estar longe dos ouvidosatentos de Laura.

— O que foi que fez sua mulher e os amigos dela irem lá em cima tão cedo?— resolvi perguntar.

— Certo romantismo a respeito de assistir ao nascer do sol no alto do picoAmos. Eles passaram o outono inteiro planejando o passeio.

— E olhe só o que aconteceu quando foram — lamentei. — Eles sabem o queassustou o cavalo de Jenna?

— Nenhuma pista — Peter falou já indo em direção ao carro que haviaestacionado mais adiante. — Dizem que os cavalos conseguem enxergar no

escuro, então pode ser que tenham visto alguma coisa na sombra de uma pedra,um coiote, talvez. E o cara que estava cavalgando com eles disse que havia umvento esquisito por lá. Cavalos detestam quando o tempo está indicando chuva.

— É, deve ser isso, sim. — Aliviada, parei entre ele e seu automóvel, masainda cheia de perguntas que não estavam apenas relacionadas ao resgatedaquela manhã. — Quer que eu mostre onde foi exatamente que elesestacionaram o reboque?

— Não, obrigado. Você já ajudou demais.

— Para mim não é problema nenhum, de verdade. Eu até gostaria.

— Então entre aí — ele disse, não querendo ser indelicado. Peter Hall era umcara bem-educado, trazia lírios cultivados por ele mesmo para agradecer efalava com um tom culto. — Você precisa avisar seus pais? — ele perguntou.

Fiz que não e entrei no banco do passageiro.

— Você pegou os lírios no jardim dos Taylor? Pergunto porque lembro de sóter visto lírios rosa lá perto daquele quiosque.

— Não, estes vieram da minha casa. Jenna gosta de cultivar flores. Saio dacidade pela esquerda?

— No próximo semáforo. Vá em direção à serra Turkey Shoot. Há quantotempo trabalha com os Taylor?

— Há vários anos. Por quê?

— Por nada. — Fiquei quieta enquanto saíamos da cidade, e, após umpequeno parque industrial, passamos por casas em ruínas para entrar na área

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onde houve a queimada. Chegamos à estrada principal por volta das três e meiada tarde.

 Já era hora de a sorte vir me visitar, pensei, enquanto o rádio de Peter tocavatranquilamente ao fundo. Se é que se pode chamar de sorte quando umamulher cai do cavalo e me põe em contato com o único cara que eu sei queconsegue chegar perto e ser íntimo de Raven Taylor.

— Quer dizer que você estuda em Ellerton High, Darina? — Peter meperguntou depois de algum tempo já na estrada.

Respondi que sim.

— E o que trouxe você até Foxton cedo assim?

Dei a velha desculpa de não conseguir dormir.

— Gosto de dirigir. Pego o carro e tento deixar meus fantasmas para trás — expliquei.

Peter assentiu, como se entendesse o que eu falava.

— Foi sorte de Jenna que você tenha ido.

— Você já deve saber que eu conhecia Arizona — contei calmamente, indodireto ao assunto que interessava.

No rádio, anunciavam a previsão do tempo para amanhã. Peter olhou paramim também calmo e disse:

— Agora já faz quase um ano. Antes dela, teve Jonas e, depois, Summer ePhoenix.

Magro e esbelto, com calça jeans escura e camisa azul-clara, as mãos finas novolante não pareciam ter passado mais de quarenta anos realizando trabalhos

pesados. Essa era uma coisa nele que não conferia com o resto da história.— As famílias ficaram muito abaladas — comentei. — A Sra. Madison

raramente sai de casa... Quando encontrei a mãe de Jonas no velório de Bob, vicomo as coisas estão difíceis para todos.

— Estou com os Taylor há bastante tempo — ele me contava. Tínhamospassado pelo morro com o crucifixo gigante de neon, uma referência que eusempre usava nas vezes em que dirigia por essa estrada. Estávamos a dezminutos da saída para Foxton. — Sinto muita falta daquela menina, mais doque posso expressar.

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— Sente? Quer dizer, claro que você sente. — Tentei tirar o tom de surpresada minha voz, mas Peter já havia sacado.

— Ela era uma menina muito complexa, difícil de conhecer bem. Mas assimque se conseguia enxergar por trás daquela imagem de espertalhona, Arizonaconseguia fazer qualquer um ficar a seu lado.

— Nunca a conheci direito — admiti. Devagarinho eu dava a volta na chaveque abria a porta onde se escondia a verdadeira Arizona Taylor. — Nãoconheço ninguém que a tenha conhecido.

— Dura por fora, mas com um coração mole como manteiga por dentro.Uma menina muito, muito doce.

— Vire à esquerda no semáforo — disse a ele, disfarçando minha surpresa nanossa chegada ao entroncamento de Foxton. — Vá beirando o rio, até depoisdas cabanas dos pescadores.

— Se você a tivesse visto tomando conta de Raven... — Peter explicou. — Elao amava como ninguém. Os outros, Frank e Allyson, não tinham nem temponem paciência. Eles não têm o amor que Arizona tem.

Minha reação era de incredulidade.

— Então nós podemos falar sobre Raven?— Claro. Você o viu no quiosque, por que fingir que não?

— Eu só pensei que...

— Ninguém fala sobre ele, não é? É desse jeito que os pais dele preferemlevar a situação.

— E Arizona, enquanto estava viva, era assim também? Ela não falava doassunto?

— A família inteira. Para Frank e Allyson chegava a ser um tipo deconstrangimento, como se ele fosse algo vergonhoso para a reputação dafamília. Essa é a principal razão por eles terem educado Raven em casa.Arizona, porém, tinha motivos diferentes, ela pensava que o silêncio seria amelhor forma de protegê-lo. Ela não queria gente fazendo perguntas echateando o menino com coisas assim.

— E onde você entra na história?

— Eu sou o jardineiro, durante meio período — ele retrucou.

— E guarda-costas?

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— Jardineiro, e ponto final. — A estrada só piorava até chegarmos a umacurva fechada onde ele foi obrigado a pisar no freio. As rodas traseirasderraparam e levantaram poeira. — Isto é, até o final do meu contrato com eles,

que acaba no fim deste mês.

— E depois?

— Depois a casa será vendida, e eu vou perder o emprego.

— O reboque para os cavalos está por aqui — falei —, logo ali na frente.

Ajudei Peter a engatar o reboque em sua caminhonete, deixando o tempopassar antes de bisbilhotar um pouco mais. Decidi que gostava dele e pronto — ele era direto e consistente, não ficava fazendo joguinhos.

Ele me colocou no banco do motorista e falou para ir de marcha a ré até oreboque.

— Tá bom, pode parar aí. Estou virando a alavanca. Assim tá ótimo. Legal,conseguimos engatá-lo. Quer dirigir? — perguntou quando voltou à cabine.

— Nunca puxei um reboque antes — era melhor contar.

— Acho que você dá conta — Peter falou com um sorriso, sentou no bancodo passageiro e me explicou a melhor maneira de sair dali para pegar a estrada.— E você conseguiu o que queria daquela sua visita a Frank?

— Não. Fui pedir aulas de música, mas ele se negou. — Dirigi devagar,margeando o rio em direção à rodovia. — Na verdade, eu não queria aprendero violão — confessei. — Ouvi histórias sobre Arizona e quis conferir.

— Que tipo de histórias? — Por um breve instante, Peter levantou a guardanovamente.

— Algumas pessoas disseram que ela não se suicidou no lago Hartmann, que

não foi bem assim que aconteceu. — Será que eu tinha dado um passo a maisdo que deveria, e isso faria com que ele se fechasse completamente?

Não, mesmo.

— Concordo com eles — Peter disse, cheio de emoção em suas palavras. — Que motivo Arizona teria para tirar a própria vida? Por que em nome de Deusela deixaria Raven para trás?

— Exatamente! — Na minha agitação, pisei no acelerador ao invés do freio, epassamos no cruzamento direto para a rodovia. Felizmente o sinal estava verde.

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— Ela cuidava dele — Peter insistiu. — Para falar a verdade, ela foi para eleuma mãe muito melhor do que Allyson jamais conseguiu ser.

— Interessada demais na própria carreira, não? — Eu estava de volta aocontrole da situação, descendo em direção a Turkey Shoot.

— Não é bem isso. Várias mulheres têm carreiras e família sem problemas.Mas com Allyson é como se ela não tivesse um instinto maternal. Ficou faltandoesse gene nela.

— Frank Taylor também não é um cara carinhoso e amoroso. — Para mimparecia que ele era só racional, sem sentimentos.

— Agora você entende por que Arizona assumiu o papel de mãe. Jenna e eu

fizemos o que podíamos, ainda fazemos, sempre que dá.

Dirigi em silêncio por um tempo. Estava caraminholando uma novapergunta na cabeça, mas guardei-a mais um pouco.

— O que acontece com Raven? — foi o que perguntei no lugar da outra queestava tramando. — Bom, ele é autista e eles sentem vergonha. Mas, no fim dascontas, qual é a questão? Por que o estão escondendo realmente?

— Ele precisa de muitos cuidados, remédios e monitoramento vinte e quatro

horas por dia. Também há a alteração de humor dele, que pode levá-lo a seferir. Além disso, ele sofre de hiperatividade, e a única hora em que fica calmo équando está desenhando.

— Parece bem difícil de lidar... Mas ele entende o que se passa a seu redor?Ele fala? — Lembrem-se de que Arizona havia me dito que ele não sabia nem oque significava um sorriso.

— Não fala nada — Peter confirmou. — Mas Arizona tinha um jeito dechegar até ele, só ela conseguia.

— Ele sente muito a falta dela?

— Fica louco de saudades. Quando chega da escola, ele vai de quarto emquarto procurando por ela, querendo mostrar seus desenhos novos.

— E você? — Foi aí que soltei aquela pergunta: — Arizona significava maispara você do que está me contando?

Peter respirou fundo, superou quaisquer dúvidas que ainda o faziam hesitare seguiu em frente:

— Jenna e eu... Nós somos os pais da primeira esposa de Frank, Kathryn.

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— Vocês são os avós de Arizona? — Fiquei sem ar.

— Foi uma tragédia, Kathryn morreu dando à luz Arizona. Ela nunca

conheceu a mãe, então fizemos todo o possível para suprir essa falta.— Eu avisei que ela era esperta demais para você. — Hunter voltou a ser o

mesmo, controlador e sisudo. Ele me ouviu chegar depois de Peter ter medeixado em casa, onde peguei o carro e voltei direto para Foxton. O mestrehavia saído do celeiro para me encontrar.

— O que você tinha dito foi ―sutil‖, não esperta. Não acho que as mentiras eas coisas que ela escondeu sejam algo esperto de fazer. Adivinhe só a última: elatem avós!

Ele me olhou com atenção.

— Você está brava.

— Claro que estou. Você, não? — Na realidade, eu não esperava muito queessa fosse minha última conversa com o líder dos Beautiful Dead sobre Arizona.— Diga, ela saiu daqui? Você a mandou de volta para o limbo?

— Que resposta você quer, sim ou não?

— Sim, se ela continuar mentindo para nós. Se fosse por mim, diria ―adeus,Arizona‖ e passaria para o caso de Summer. — Só que estava em jogo o futurode Raven, a chance remota que eu tinha de descobrir a verdade e fazê-loentender o que havia acontecido com sua irmã.

— Exatamente. — Hunter tinha lido meus pensamentos. — É por isso quevocê está aqui.

— Então você não a mandou de volta, mesmo depois do que fez? — Estavafrio ali no quintal, e a lua tinha sumido atrás de um denso nevoeiro. Fiqueiarrepiada, esperando impacientemente pela resposta de Hunter.

— Eu resolvi esse negócio — ele disse sem pressa. — De agora em diante,Arizona falará a verdade.

— É melhor que fale, porque estou sabendo de um monte de coisas novassobre ela. Por exemplo, os avós, Jenna e Peter Hall, também cuidam de Raven.Arizona não era a única a tomar conta dele.

— Mas Arizona soube que eles terão de ir embora no fim do mês. — Huntere Arizona estavam dois passos à minha frente, como de hábito. — Como eles

não são parentes de sangue de Raven, Alysson Taylor jamais daria a eles odireito de continuarem com as visitas.

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— Arizona disse isso para você?

— Conseguimos nos entender melhor, desde que eu a vi pela última vez.

— Você a perdoou? — Por sonegar informação, por desafiar a autoridadedele, por colocar dúvidas sobre os atos da esposa falecida fazia tempo. Euestava chocada, mas pus minha cabeça no lugar e continuei a pressioná-lo. — Ela disse por que ficou escondendo tudo aquilo?

Ele coçou o queixo.

— É de admirar a força da mente dela — ele falou, sem responder à minhaquestão. — Ela manteve a barreira por quase um ano, até para mim. Ninguémconseguia atravessá-la, o que demonstra caráter.

— Mas por quê ?

— Aí vem ela. — Hunter deu um passo para o lado para que eu pudesse vera silhueta de Arizona na porta do celeiro, iluminada ao fundo pela luz suave dolampião. — Você poderá lhe perguntar pessoalmente.

— Fiquei chocada ao saber que Hunter não puniu você — eu disse a Arizonaà medida que íamos andando pelo morro no escuro.

— O que faz você pensar que eu não fui punida? — Ela estava um pouco àfrente de mim, só de camiseta e calça jeans. O vento jogou o cabelo sobre seurosto.

— Por você ainda estar aqui — esclareci.

— Ele diminuiu meu tempo no mundo dos vivos — falou com uma vozdesanimada. — Eu tinha duas semanas, agora tenho só uma.

— Nossa! — Acelerei o passo para conseguir ver a expressão em seu rosto. — Sete dias para resolver essa bagunça toda!

— E tem mais, ele me mandou de volta ao dia em que aconteceu, para tentarme fazer lembrar de mais detalhes. É uma dor infernal.

— Como se eu não soubesse. Quer dizer que ele fez você viajar no tempo. Efuncionou?

Arizona balançou a cabeça negativamente.

— Cheguei ao ponto em que estava andando na beira do lago, no dia em quemorri. Essa parte ainda está bem visível em minha memória: o sol já baixo, o

gelo na margem, a água cintilando. Eu não estava sozinha, mas não sei quemestava comigo, sei que estava assustada.

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— E depois?

— Depois foi uma explosão de medo, de puro terror, tudo borrado, e daí um

apagão geral. Hunter me puxou de lá e me trouxe de volta para o presente.Sentia-me como se estivesse sendo rasgada em pedaços. E tudo isso para nada.

Caminhamos um pouco, marcando o passo.

— Acho que Hunter sabia que não haveria nada de novo.

— Como disse, ele estava me castigando. Eu revivi tudo até certo ponto, epara quê?

— Para ter essa conversa comigo — expliquei. — É hora da verdade,

Arizona, e eu sou toda ouvidos.

Sentamos debaixo da caixa d’água, encostadas às vigas de ferro e rodeadasde silêncio. Esperei um bom tempo até Arizona começar.

— Imagine só isto. Parece que em toda a minha vida eu estive vivendo numacasa onde as pessoas negavam tudo. Primeiro, fingiam que não tinha nada deerrado com seu bebezinho querido. Raven não comia e não olhava paraninguém, mas por que se preocupar? A babá cuidava do problema da comidaenquanto papai e Allyson iam para o trabalho. Quando Raven tinha ataques de

epilepsia, mandavam chamar os médicos, que acabavam convencendo-os deque ele cresceria sem esse problema. Diziam que era um mal menor e, comosoava chique, estava tudo bem.

— Você sabia que não estava?

— Desde o começo. Ele era um neném quando o vi enfiando as unhas naprópria pele. Quando os dentes cresceram, ele passou a se morder. Era tãopequeno e indefeso; nós dois éramos.

— Sinto muito.

— Não sinta. Eu logo fiquei mais durona e entendi que não era bom ficarindefesa, então comecei a lançar provocações. ―Como é que vocês nãoentendem isso? Por que não fazem nenhum esforço de verdade?‖ Mas meu paie Allyson não gostam de lidar com a doença nem com a incapacidade.

Interrompi para contar a ela que, por acaso, tinha aprendido um bocado comseu avô. Se ficou chocada ou envergonhada, disfarçou bem.

— Você era uma criança naquela época, mas Peter e Jenna eram adultos. Eles

conseguiam ver o que estava acontecendo e, com certeza, se importavam.

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Arizona me deu um daqueles seus olhares duros de desconsideração.

— Todo mundo se importava — ela argumentou. — Mas Allyson é a

poderosa, ela faz as coisas do jeito dela. Disse que se meus avós tivessemalguma reclamação sobre como ela lidava com o caso de Raven, eles podiamfazer o favor de ir embora.

— Que medo!

— Uma madrasta malvada arquetípica. E eu estava no caminho dela,atrapalhando.

— Sei bem como é — resmunguei comigo mesma: Onde se lê Allyson no caso de Arizona, leia-se Jim no meu.

— Daí eles foram enfeitando o estado de Raven com mais rótulos chiques.Um dia eu acordei e ele não estava mais lá.

— Tinha sido levado para a escola?

— Allyson estava ocupada apresentando os boletins de notícias na televisão,e meu pai tinha ido para um congresso na Europa. Portanto, só havia sobrado amoça que cuidava dele para me dizer o nome da escola para onde tinha levadomeu irmão: o Instituto Lindsey. Ela disse que ele voltaria em algum momento.

— Nossa... Peter falou que você era a única que sabia como entrar em contatocom Raven. Como é que fazia isso?

— Eu me concentrava naquilo em que ele é bom — ela explicou, como se aresposta fosse óbvia para todos. — Ele gosta de desenhar.

— Então você desenhou?

— Sim, e mostrei umas imagens a ele, de vez em quando fotografias, outrasvezes, pinturas. Tem uma galeria grande de arte na cidade, e eu o levei lá.

Raven gosta de Andy Warhol, do modo como ele fica repetindo imagens de silkscreen de Marilyn Monroe, de Elizabeth Taylor, das latas de sopa.

— Vou me lembrar disso — prometi, espantada por ver que meu comentárioencheu seus olhos de lágrimas. — Quando tudo isso tiver acabado, vou levá-lopara ver os quadros de Andy Warhol.

Arizona não resistiu e chorou.

— Sem que eu possa estar lá para protegê-lo, vão trancá-lo em qualquerlugar e jogar a chave fora. É o que vão fazer depois do divórcio, eu sei.

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— Olhe — falei, tirando o desenho amassado de Raven do meu bolso. Tinhaficado com ele por ser a única coisa concreta que podia guardar. Desdobrei afolha e entreguei a ela.

As mãos de Arizona tremiam enquanto ela examinava cada linha daqueleesboço.

— Obrigada — ela repetia baixinho. — Oh, Raven, pobrezinho, o que vai serde você agora?

Quando a vida é dura, você acaba criando uma casca grossa para ajudar aaguentar a situação — foi o que aprendi nas últimas horas. Porém, de repente, odesenho de uma casa quebra essa casca e deixa que a luz entre. Eu vi uma novaArizona — finalmente uma que eu queria ajudar.

— Você precisa me falar sobre Kyle Keppler — insisti, durante nossacaminhada. — O que eu preciso saber?

Ela saiu do topo da serra, descendo para o lado escuro do morro.

— É complicado.

— Complicado como? Escute, você me disse que não sabia o nome da oficinade Mike Hamill, mesmo sendo o lugar onde seu namorado trabalha. Por que

escondeu isso de mim?— Não queria Kyle envolvido nessa história.

— Oficialmente, ele não está, então você fez um bom trabalho — resmunguei. — E, por falar nisso, sabia que agora ele fala que vocês nuncanamoraram? — Sem dúvida isso a magoou e eu me arrependi — Seu carroainda está na oficina, por isso consegui entender algumas coisas sozinha.

— Que eu levei o carro para o conserto naquele dia? Que, depois, meu pai eAllyson nem se importaram que ele ficasse lá? E que também esconderam todas

as fotos e mandaram minhas roupas para um bazar de caridade? O que mais?

— Você e Kyle estavam acobertando alguma coisa, não sei o quê. Em todocaso, por que queria que o nome dele ficasse fora disso?

— Por que o que tínhamos, nosso relacionamento, era um segredo.

— Brandon Rohr sabia. Ele me contou.

Arizona diminuiu a velocidade, passou a mão em volta de uma árvore detronco fino e olhou para a escuridão da abóbada celeste.

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— Brandon jurou para Kyle que não contaria. Kyle é amigo dele, confiavanele.

— Enganou-se. Pelo amor de Deus, nem eu confio em Brandon, mesmo elesendo irmão de Phoenix. Ele só dança conforme sua própria música.

Arizona balançou-se em volta da árvore até que ficamos cara a cara.

— Vá em frente e tente imaginar os motivos para que eu não quisesse que aspessoas soubessem sobre mim e Kyle.

— Numero uno: ele não é muito o seu tipo.

— Por ser pobre?

Não pude discordar.

— Além disso, ele não é velho, é pré-histórico!

— Tem vinte e dois — confirmou. — E daí?

— Também não é muito o tipo dos seus pais.

— E isso seria problema para mim?

— Tá, não seria. Então me diga você, o que mais?

— Que tal... Ele já tem uma namorada?

Lamentei.

— Nossa, Arizona. Quem é ela?

— Ela se chama Sable, não mora em Ellerton.

— Espere, deixe-me adivinhar o resto. Sable é a namoradinha dele, estão

 juntos desde a infância. Ele a trai e jura manter segredo. Mas por que vocêconcordaria?

— Só descobri a existência de Sable depois que Kyle e eu já estávamos tendoum caso; e aí eu já estava apaixonada.

— Não entendo, Arizona. Certo, Kyle é bonito de se ver, mas tem mais outracoisa, além disso?

— Você está querendo saber se a gente conversava? Ah, vai, Darina, desdequando conversar é tão necessário assim?

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— Talvez você ache isso estranho, só que conversar é legal, na verdade. — Naturalmente, eu estava pensando em mim e em Phoenix, além de não estargostando do jeito com que Arizona voltava a falar comigo, com aquele ar de

superioridade. — Devia experimentar uma hora dessas.

— Ok, você tá certa. Quando conheci Kyle, eu estava num momento no qualprecisava mesmo de alguém para poder me apoiar. E não estou querendo dizerapenas fisicamente. Nós dançamos e conversamos. E, sim, ele sabe articularpalavras com mais do que duas sílabas.

— Você falou de Raven para Kyle? — Fiz a pergunta definitiva; se sim, entãoera um amor verdadeiro.

— Chegou uma hora que eu contei. Estávamos juntos havia dois meses, e mesentia totalmente segura com ele. Foi quando ele também se abriu e me contousobre Sable.

— Valeu por essa, Kyle! — Para variar um pouco, assumi o papel sarcástico.— Arizona, ele poderia ao menos ter poupado você desse fato.

— Sable Jackson, a garota de Forest Lake. — Arizona fechou os olhos aolembrar. — Acontece que ela e Kyle eram noivos.

— Meu Deus, Arizona!

— É, eu sei, idiota, né? Devia ter me afastado disso. Mas ainda tem mais.

— Mais ainda? Isso não é o máximo a que dá para chegar?

— Vamos adiantar alguns meses. Eu ainda estava completamente envolvidacom Kyle e, apesar de saber de Sable, eu fugia de casa e passava todo o tempoque podia junto dele. Depois da aula, matava o tempo perto da oficina de MikeHamill, esperando Kyle sair do trabalho. Um dia, fomos de carro até o picoAmos para ficarmos sozinhos. Era nosso lugar preferido, e lá eu o coloqueicontra a parede, dei um ultimato. Então ele me disse que não podia terminarcom Sable, jamais.

— Ele disse por que não? — Eu odiava Kyle Keppler mais e mais a cadaminuto que passava.

— Ela estava grávida — Arizona falou, soltando um longo suspiro. — O bebênasceria no Natal, e eles tinham marcado o casamento para a última semana deoutubro.

— Então o bebê já deve ter uns nove meses de idade agora, talvez dez. — De

repente eu estava com um problema complexo demais, fora de minha alçada, eolhando para Phoenix à espera de um conselho. Arizona e eu havíamos

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chegado da serra, e Lee foi mais uma vez conversar com ela e Hunter dentro dacasa. Phoenix tinha ordens de conferir se eu tinha chegado a salvo em casa.

— Onde moram? — Ele perguntou, quando chegamos ao carro.— Fora da cidade, em Forest Lake. Acho que Kyle Keppler seguiu com os

planos e se casou com Sable perto da época em que Arizona morreu.

— E Arizona escondia tudo porque não queria comprometê-lo. Como é queisso pode fazer sentido? — Phoenix processava as informações que eu tinhaacabado de lhe passar e ainda estavam rodopiando em sua cabeça. — O que elaestava fazendo? Protegendo-o?

Concordei, arrebatada por um pensamento repentino:

— Do mesmo modo como protegeu Raven todos esses anos, é isso queArizona faz quando ama alguém, ela constrói um círculo de silencio em voltadessas pessoas.

— Só que isso coloca Kyle no lugar certo, a Mike Motores, e na hora certa, natarde em que Arizona se afogou. Mais ainda, ele tinha um motivo.

— Para matá-la? — Fiz um som de estalo com a boca e depois expireibruscamente. — É isso o que estamos procurando?

— Se não foi suicídio, então foi assassinato.

— Ou um acidente? — Mas logo em seguida lembrei-me da volta de Arizonaà cena, de como ela sentiu que havia alguém lá no Hartmann e do medo quepercorria seu corpo. — Com certeza tudo indica um assassinato — concordei.

Phoenix, pensativo, segurava a cabeça.

— E esse cara, Kyle, ele tem cara de quem faria uma coisa dessas?

— Ele anda com o seu irmão, pilota uma Harley Dyna, tem mais ou menosum metro e noventa e cinco de altura, é tudo o que sei.

— Portanto, não chegue perto dele — pediu, segurando minha mão. A vozde Phoenix ficou intensa e ansiosa. — Você me escutou? Faça o que tiver defazer para ajudar Arizona, mas mantenha distância de Kyle Keppler.

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O dia seguinte era um domingo, e eu estava de castigo.

 Jim e Laura me fizeram sentar à mesa da cozinha para escutar quais seriammeus novos limites. Foi mais ou menos assim:

 Jim: Sua mãe e eu conversamos e queremos esclarecer algumas coisas.

Eu: Vá em frente, comece.

 Jim: Precisamos que você concorde em não sair de casa à noite.

Eu: Sobre o que exatamente estamos falando quando você diz noite? Seriadepois da meia-noite, ou depois das vinte e duas? Vinte? Mais cedo ainda,quem sabe?

Laura: Pode parar, Darina. Escute o que Jim tem a dizer.

 Jim: Esta cidade é perigosa, veja o que aconteceu a Summer. Nós... Sua mãeestá ficando louca de preocupação. Ela precisa saber onde você anda — na

escola, na casa de amigos, aqui no seu quarto.

Eu: Então isso seria um toque de recolher de vinte e quatro horas diárias?

 Jim (rangendo os dentes): Também gostaríamos que você demonstrasse maisrespeito.

Assim que introduziu a palavra — respeito —, ele perdeu a minha atenção.Comecei a viajar, imaginando onde estaria Phoenix e o que Arizona estariafazendo naquele exato momento. Lembrei-me do último instante de meu

envolvimento com atividades dos Beautiful Dead na noite passada.

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Foi Lee Stone quem interrompeu a fala de Phoenix, ―Fique longe de KyleKeppler‖. Ele havia corrido até o alto do morro para contar a Phoenix queHunter estava precisando dele imediatamente, pois um bando de turistas de

fim de semana que estavam no acampamento de Government Bridge haviabebido demais e planejava um passeio de caça aos fantasmas madrugada aforaaté a serra de Foxton.

— Você sabe de algum nome? — perguntei, pensando que talvez pudessemestar incluídos Charlie Fortune e alguns outros vigilantes de plantão que, devez em quando, resolviam se mostrar indo até Foxton para tirar a limpo osboatos famosos de fantasmas e acontecimentos estranhos.

— Infelizmente não sei. — De qualquer modo, Lee assinalou que era novo

por ali e que nomes não significariam muito para ele. — Hunter disse que nãosão de Ellerton.

— Uau, sua fama está se espalhando — cochichei, quando Phoenix veio medar um beijo de despedida. — Daqui a pouco a região inteira vem conferir.

Soou como uma brincadeira, mas eu estava terrivelmente preocupada. Onúmero de vigilantes que acreditavam que algo esquisito estava acontecendoem Foxton só aumentava. Nos bares, ouvia-se uma história de vultos que eramvistos na serra durante a noite, depois surgiu o caso do agrimensor do condadoque quase enlouqueceu de medo e, agora, o vento esquisito que assustou o

cavalo de Jenna Hall. Perguntei a mim mesma por quanto tempos os BeautifulDead conseguiriam manter a salvo o segredo de sua existência...

— Darina? — Laura trouxe-me de volta ao presente com uma sacudida. — Você está me ouvindo? Você vai ficar de castigo hoje o dia inteiro.

Pais fazem isso — conspiram contra você usando toda hora o grande ―nós‖,como se fossem um grande exército defendendo um império, e você, um relessoldado raso.

— Queremos que você limpe seu quarto e depois comece a arrumar acozinha. Vai comer com a gente o almoço de domingo e fazer todos os deveresde casa antes do jantar. Ouviu o que eu disse? Não é para você sair de casa.

Quantos anos fazia que Laura não dava uma dessas? O que fez ela pensarque agora funcionaria?

De qualquer modo, resolvi não levantar a cabeça acima das barricadas ecorrer o risco de ser alvejada, pelo menos hoje. Eu ficaria de castigo porqueprecisava de um pouco de espaço para pensar e planejar.

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Deixei o aspirador de pó fazendo barulho em cima do meu carpete. Será queaceito o conselho de Phoenix e vou procurar a ajuda de Brandon? Essa dúvida ficavazumbindo na minha cabeça.

— Se a coisa ficar feia, vá procurar meu irmão — ele disse antes de saircorrendo morro abaixo com Lee.

Esvaziando a lixeira do meu quarto, decidi que não iria. Brandon compartilhainformações com Kyle Keppler , recordei, e eu não queria de jeito nenhum que issose espalhasse por aí. Concordei com Phoenix sobre ficar longe de Kyle, masentão será que em vez disso eu deveria ir até Forest Lake e investigar Sable? Nahora de levar o lixo para fora resolvi que, sim, iria até lá, porque já nãotínhamos mais quase tempo nenhum por causa da punição dada por Hunter. É,

iria sim, sem dúvida — para em seguida tentar descobrir uma maneira deencontrar o endereço dela.

Então, assim que pudesse, eu iria de carro até Forest Lake. Talvez desse umaparada para tomar um café e fizesse umas perguntas inofensivas.

* * *

— Ei, Darina, como a Srta. Jones reagiu? — Jordan me encurralou na saída daescola no dia seguinte. — Ela quis fazer picadinho de você por ter abandonadoos ensaios da apresentação agora tão perto da data?

Eu estava querendo sair dali rápido para ir a Forest Lake e dar continuidadeao meu plano. — Ela jogou a responsabilidade para mim, mas não liguei, queriamesmo sair.

— Entendo completamente. Sei como está sendo difícil para você, desdePhoenix.

— Valeu. — Não seja legal comigo, Jordan! Compaixão me atinge em cheio e eufico toda mole.

— Nada me faria concordar com Hannah — ela continuou.

 Assim é melhor — venha fazer um comentário manipulador e venenoso desses paraeu ter ao que me agarrar .

— Por quê? O que Hannah pensa? Que desisto por qualquer motivo, que sópenso em mim mesma e que afinal de contas eu devia isso a Summer e blá-blá-blá?

— Sim, todas as alternativas acima — Jordan afirmou.

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Nesse exato instante, Hannah saiu da escola com Logan. Eles estavam debraços dados, bem à vontade. Ergui uma sobrancelha na direção deles eperguntei a Jordan.

— Desde quando?

— Por quê? Você se incomoda? — ela respondeu com um sorriso cínico.

— Não, mesmo! — O dito popular sobre negar demais alguma coisa me veioà cabeça. Meu ―não, mesmo‖ deve ter vindo junto com pelo menos uns dezpontos de exclamação na sequência.

— Hum — Jordan disse, saindo e me deixando livre para ir pegar o carro.

Dei mais uma olhada para Hannah e Logan. Ela estava com a boca na orelhadele, cochichando alguma coisa; ele lançou um olhar em minha direção e riu.Entrei no meu carro.

Forest Lake ficava a uma hora de Ellerton — uma cidade que vivia dopassado, com uma ferrovia de bitola estreita e trem a vapor de verdade, ummuseu e uma série de lojas que vendiam selas e chapéus de vaqueiro. Maspoucos turistas apareciam num lugar afastado assim. A rua principal estavadeserta naquela segunda à tarde. Estacionei o carro e passei por uma loja quevendia artesanato indígena no caminho até o único restaurante da cidade, onde

pedi um café e me sentei perto da janela para olhar a rua vazia. Agora que euestava lá, ter vindo pareceu uma ideia estúpida. Como estavam sem nadamelhor para fazer, mandei uma mensagem de texto para Laura, dizendo queestava na casa de Jordan fazendo um trabalho da escola.

Um velho entrou e pediu rosquinhas frescas para viagem. Um cachorromagro, malhado de marrom e branco, andava pela calçada. De vez em quandoum carro chegava ao estacionamento da loja de conveniências do outro lado darua.

— Você quer alguma coisa junto com o café? — perguntou a garçonete, atrásdo balcão.

— Não, obrigada. Na verdade, estou procurando Sable Jackson, mas estousem o endereço dela aqui comigo.

— Desculpe-me, acho que não posso ajudá-la, não conheço nenhuma Sable Jackson. — A garçonete disse e continuou limpando o balcão. — Tem umaSable aqui na cidade, mas ela se chama Sable Keppler.

— Claro. — Dei uma tapa em mim mesma pela confusão e tentei disfarçar

com uma risada de constrangimento. — Ela casou com Kyle no ano passado. Euvim de Ellerton, acho que vou voltar lá e pegar o endereço dela.

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— Não precisa. — Mais um pouco de limpeza, desta vez na máquina de caféexpresso prateada. — A casa de Sable fica logo atrás da rua principal, nonúmero 505. É só virar à esquerda no semáforo.

 Já em pé, e fora do restaurante, deixei o café por beber.

— Valeu! — agradeci, sem nem me virar para a atendente. Voei para dentrodo carro, dirigi até o semáforo e virei à esquerda, como a garçonete havia dito.Quase parando, segui pela White Eagle Road, procurando o número 505.

Mesmo não esperando que fosse grande coisa, a casa de Sable e Kyle nãobatia com a imagem que eu tinha em mente. Era cercada por uma tela de aramee tinha dois pastores alemães guardando um barraco cuja varandadesmoronava. Um carrinho de bebê estava tombado ali ao lado, e a gramacrescia nas rachaduras do piso do quintal. Quando vi pela porta aberta que umhomem e uma mulher conversavam, passei de carro direto, sem nem parar.

Pelo que vi de relance, a mulher tinha em torno de vinte e poucos anos e umcabelo escuro até a cintura, vestia jeans e camiseta branca — uma versão deArizona menor e com menos classe, foi o que me pareceu. O cara também eramoreno... E com certeza não era Kyle Keppler.

Manobrei no final da rua e fiz o retorno.

Sable e o cara já tinham saído para a varanda, e os cachorros estavamfarejando as rodas da Harley Softtail estacionada na porta. Ele a abraçou pelacintura para dar um beijo de despedida.

Então quer dizer que Kyle a traía, e agora ela o está traindo . Era uma conclusãoóbvia. E onde o bebê se encaixa nisso tudo? O que acontecerá quando Kyle descobrir?

O cara desceu da varanda, levantou o carrinho de bebê e deu a partida naHarley. Ele ainda gritou alguma coisa para Sable, em meio ao ronco do motor.

Preocupada demais em espioná-los, discretamente, nem notei umacaminhonete vir da rua principal e parar em frente ao 505. Só quando a portabateu é que eu desviei a minha atenção para o motorista que descia, e vi que eraKyle.

Epa! De repente, eu estava no meio de uma situação típica daquelesprogramas de flagras na televisão: “Minha mulher descobriu que eu a traía e estátentando se vingar, dando por aí!” 

Fui reduzindo a velocidade do carro até parar e esperei pela explosão deraiva.

Êpa de novo! 

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Kyle pegou sua jaqueta de brim suja de graxa do fundo da caminhonete,desamarrou uma parte da cerca e entrou no quintal. Os cachorros foram recebê-lo, fazendo festa. Ele cumprimentou o cara da Harley e parou para conversar.

Depois, ele se virou para o meu lado e viu meu conversível vermelho ebrilhante comigo dentro. Demorou um pouco até processar o que tinha visto — tempo suficiente para que eu ficasse gelada de tanto medo — e entendesse: euera a menina irritante que havia ido fazer uma visita a Mike Motores parainterrogá-lo sobre Arizona.

Kyle Keppler era rápido para um cara grande como ele. Os cachorros latiamcada vez mais, enquanto ele saía do quintal correndo e atravessava a rua. Piseino acelerador na hora em que ele chegou ao meu carro e segurou a maçaneta.Por uma fração de segundo ele conseguiu resistir enquanto eu derrapava e

cantava os pneus tentando arrancar com o carro, até finalmente largar.No retrovisor, vi o homem moreno juntar-se a ele. Os cães continuavam

latindo, e Sable estava entrando em casa para se esconder. Saí de Forest Lake epeguei a estrada de volta para Ellerton, ignorando todas as leis de trânsito nocaminho.

Ainda tremia quando cheguei em casa e percebi que Laura e Jim estavam notrabalho. Tinha a casa todinha para mim e bastante tempo para me arrependerdo que tinha acabado de fazer. Respirei fundo e vaguei pelos cômodos,tentando me convencer de que no fim das contas Kyle não havia mereconhecido.

— Darina? — Logan me chamou da varanda, dando uma espiada pela janelada cozinha que estava aberta.

Quase bati no teto com o pulo que dei.

— Não me assuste assim! — gritei.

— Não quis assustar, até bati na porta. Você não respondeu.

— Talvez por que eu não quisesse — indiquei. — O que você quer, Logan?

— Vim me desculpar. Sei que pareceu que eu estava rindo de você, mas nãoestava.

— Quando? Do que você está falando?

— Hoje mais cedo, com Hannah. Depois eu percebi, não era o que vocêestava pensando.

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— Quer dizer que você sabe o que estou pensando de novo? — Suspirei, maspor dentro eu estava finalmente feliz com uma visita de Logan. — Entre e meconte o que aconteceu.

Ele se curvou para passar pela porta e, de repente, pareceu grande demaispara as cadeiras de madeira da cozinha de casa.

— Pode ser que Hannah estivesse querendo que fosse do jeito que vocêenxergou a coisa, sabe, ela e eu, mas nada disso é verdade.

— Você vê algum sentido nisso que acabou de dizer? — questionei, parafazê-lo sofrer de propósito. — Ou é um jogo de adivinhação?

— Eu e Hannah não temos um caso — ele revelou após respirar fundo. — Ela

me chamou para ir ao cinema com ela hoje à noite, mas eu disse que não.

— E precisava vir me falar? — Meus olhos estavam bem abertos, eucontinuava me divertindo à custa dele. — Escute, Logan, fique à vontade para irao cinema com Hannah quando quiser.

Ele franziu a testa, recostou-se na cadeira frágil e olhou para o teto.

— Detesto como as coisas têm acontecido entre nós ultimamente — disse. — Quando foi que entramos nessa de joguinhos?

Foi a minha vez de respirar fundo. O modo como ele me olhava, com mágoanos olhos, conseguiu me acertar em cheio.

—Será que foi quando me apaixonei por Phoenix? — sugeri. — Estou falandosério, desde então as coisas não vão tão bem para você.

Sem pressa, Logan deixou que os pés dianteiros da cadeira voltassem aochão. Ele concordava.

— É verdade, você tem razão.

— Não tenho como ajudar você, aconteceu e pronto. Eu amava, amo Phoenixmais do que tudo. Você precisa largar de mim. — Debrucei-me por cima damesa e segurei sua mão. — Deixei-me seguir adiante, Logan, e poderemos seramigos de novo.

Pensei que já havíamos dado um pequeno passo nessa direção antes deLaura chegar do trabalho e Logan ir embora.

— Logan parecia triste — Laura notou. Ela estava com a expressão exausta, amesma de sempre, depois de passar o dia vendendo roupas em oferta noshopping.

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— Estamos todos tristes — falei, e foi o suficiente para deixá-la calada.

No dia seguinte, de manhã bem cedo, Jim atendeu o telefone quando saía

para o trabalho.— Darina! — ele gritou, lá do pé da escada. — É aquele senhor das flores,

Peter Hall.

Corri para atender, descendo os degraus de dois em dois.

— Peter, sou eu, como está Jenna?

— Jenna está bem. É por causa de Raven que estou ligando.

— O que aconteceu? Onde ele está?— Esse é o problema. Acabei de chegar na casa, e está um clima indescritível.

Frank estava aqui, Allyson também. Eles me disseram que haviam recebido umtelefonema da escola de Raven. O menino desapareceu.

— Quando? — perguntei num sobressalto.

— Hoje cedo, mas pode ter sido ontem, tarde da noite. Alysson ainda está notelefone, brigando para saber quando ele foi visto pela última vez. Frank jápegou o carro e foi até lá.

—Que terrível — lamentei.

— Péssimo. — Por sua voz, Peter parecia muito sentido, sua respiraçãoestava toda alterada. — Eu precisava conversar, você é a única pessoa comquem posso contar.

— Então você precisa que eu fique de olho, caso Raven volte para Ellerton?— Era difícil imaginar que o menino conseguisse voltar sozinho, mas mesmoassim eu prometi a Peter. — E você, o que vai fazer? Tá bom, não precisa

responder. Fique aí onde está. Já estou saindo para encontrar você, daí nósconversamos.

Peter Hall me encontrou no portão da casa dos Taylor e rapidamente melevou a um anexo ao lado da casa principal.

—Ninguém precisa saber que você está aqui — explicou.

— Alguma novidade? — perguntei, enquanto olhava as ferramentas de jardinagem, vasos de planta e fertilizantes todos muito bem organizados. Haviauma pilha de revistas bem-arrumadinha em uma estante e um canto do cômodo

com uma pia, uma chaleira e canecas de café. — Eles acharam Raven?

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Ele disse que não e tentou, do jeito que podia, manter a voz firme enquantofalava.

— Chegaram à conclusão de que ele saiu durante a madrugada. Frankacabou de chegar na escola e ligou aqui para casa. Allyson está falando com apolícia do condado de Shepherd.

— Ela vai para a escola encontrar Frank depois?

— Duvido. Ela é do tipo que deixa as autoridades fazerem o trabalho quelhes cabe, enquanto continua com sua própria rotina. Allyson sabe que Frankconsegue lidar sozinho com as coisas lá na escola.

— Mas essa não é nem de longe a questão... Como é que ela não está indo à

loucura, como qualquer outra mãe?

— Allyson não é como qualquer outra mãe — ele me lembrou. — Alémdisso, não é a primeira vez que Raven faz algo assim. Das outras vezes acaboubem, a escola ou a polícia acabavam encontrando-o e o trazendo de volta empoucas horas.

— Só que dessa vez você não está tão certo disso?

Houve uma pausa.

— Ele nunca havia saído no meio da noite antes. Desde que Arizona faleceu,ele tem feito coisas cada vez mais esquisitas.

— Ele está com saudades dela — falei baixinho. — Talvez não entenda quenão vai mais voltar.

Peter estava de costas para mim e olhava pela janela, vigiando a casaprincipal. Ele enrijeceu quando viu a porta abrir e Allyson Taylor sair da casa.

— Esconda-se — avisou.

Fiquei abaixada num canto escuro, ouvindo o som de um carro dar a partidae o assobio suave dos pneus rodando pela saída da garagem.

— Ela está indo para a emissora de TV — Peter me informou. — Tudo bem,pode relaxar.

— Então Raven já tinha fugido antes, na época em que Arizona ainda estavapor aqui?

— Centenas de vezes. Arizona e seus pais brigavam o tempo todo por causa

disso. Ela dizia que era óbvio que ele não estava feliz na escola, que deviamtrazê-lo de volta para casa, mas Frank e Allyson não davam ouvidos.

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—E de que lado você ficava?

Com as mãos bem abertas, ele levantou os braços, explicando-se.

—Eu não sou nenhum especialista em autismo. Não como Arizona era, ela liatodos os livros, procurava em cada página da internet. Ela até foi filiada a umaorganização dedicada a lutar contra o problema por meio de tratamentosalternativos. Estava certa de que conseguiria ajudar Raven a melhorar. Alémdisso, o menino só se relacionava com ela e mais ninguém, o rosto dele brilhavacada vez que a via.

— É, parece mesmo uma descrição de Arizona. Ela não ficaria tranquila semfazer alguma coisa.

Peter precisava muito desabafar, por isso atropelou a minha fala.

— Ela odiava os remédios que davam a ele na escola. Arizona tinha lido umateoria de que toda criança com autismo necessita de uma sombra, alguém quepossa ser uma ponte entre ela e o mundo exterior, que esteja ao lado dela vintee quatro horas por dia, para ajudá-la a entender o sentido das coisas.

— Acho que todos nós precisamos... — Apesar de soar cínica, eu estavafalando sério. — De qualquer forma, Arizona nunca deixava nada pela metade.

— Ela teria feito isso por ele, teria sido a sombra dele — falou, engasgando.— Ela daria a própria vida para salvá-lo.

Finalmente, Peter fez uma pausa, mas eu já estava sem condições de falar,sem encontrar palavras para preencher o silêncio que surgiu.

— Como no dia em que ela morreu. Foi uma quinta-feira. Allyson e Frankestavam ocupados com seus compromissos, e Raven estava na escola. Daí odiretor ligou para casa para contar a Arizona que ele havia fugido de novo.

— E o que ela fez?

— Ela foi à loucura, ficou culpando o pai e dizendo que ele deveria tirarRaven da escola de uma vez por todas, mesmo se Allyson discordasse.

— E para onde Raven tinha ido?

— Acho que tinha ido procurar a irmã. Como ela acabou no fundo do lagoHartmann, então ele nunca pôde encontrá-la.

Coitado desse menino — quanta crueldade.

— Arizona tinha levado o carro dela para consertar. — Estávamos nummomento de baixar a guarda, e deixei meu próprio pensamento sair em voz

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alta. Em poucos segundos, as asas de Hunter estariam causando umatempestade.

— Na verdade, sim. Como você sabia disso?— Alguém me disse, não lembro quem. Onde foi que o encontraram, afinal?

— Na cidade, vagando pelo shopping no horário em que as lojas fecham.

— E ninguém soube por onde ele andou o dia inteiro?

— Àquela hora estavam surgindo notícias sobre um corpo no lagoHartmann. Ficamos muito envolvidos com os acontecimentos posteriores parapensar sobre onde Raven poderia ter se escondido.

— Com certeza — concordei. Minha mente estava num turbilhão. Já queRaven tinha ido procurar Arizona naquele dia, será que existia a chance de tê-laencontrado? E se existisse, teria tido alguma influência no que aconteceudepois?

Havia novas perguntas, e ninguém por perto para respondê-las — pelomenos Raven certamente não as responderia. Mas quem sabe Arizona pudesse.Precisava sair de Foxton rápido.

— Preciso ir — disse a Peter. — Matei aula para vir aqui...

— Certo, melhor ir — ele falou. — Mas procure por Raven, pode ser? E nãoconte para ninguém. Terei problemas se Frank e Allyson descobrirem que eudisse alguma coisa fora da rodinha.

— Claro. E você me liga se... Quando ele for encontrado? — Apressada, dei onúmero do meu celular. — Tente não se preocupar, Peter. Raven sempreaparece, como você mesmo disse.

— Talvez não dessa vez — suspirou. — Dessa vez está parecendo que é

diferente.

— Diferente como?

— Estranho, meio assombrado. É como se houvesse alguém mais, algumacoisa a mais envolvida. Fico sempre pensando nesses boatos que correm pelacidade sobre fantasmas, espíritos andando na serra lá em Foxton. Não meentenda mal, não sou um cara que se assusta com facilidade, mas dessa vezpode ser que...

— Não fale mais, você já está me deixando apavorada. — Fingi um calafrioao sair do anexo e corri para o portão.

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Fui pensando:  Arizona não iria... Nem ela usaria seus poderes zumbis paraencorajar seu irmão menor tão querido a sair da escola...  

Eu corria acima do limite de velocidade mais uma vez e já chegava à cruz emTurkey Shoot quando Phoenix e Arizona se materializaram no carro, bem aomeu lado. Apareceram naqueles círculos difusos de luz que tremelicavam atéque suas formas sólidas chegassem, e o choque me fez desviar em direção aocanteiro central.

— Encoste o carro — Phoenix disse, sem cumprimentos nem sorriso amável.— Estávamos em Westra, na casa de Arizona. Ouvimos tudo que Peter falou avocê.

Virei o volante e parei bruscamente no acostamento coberto de terra,levantando poeira e insetos naquele ar quente e parado.

Do banco de trás, Arizona respondeu à maior das minhas dúvidas pavorosase não ditas.

— Não tenho nada a ver com isso, Darina. Raven decidiu fugir por contaprópria, como sempre.

— Você não o tirou da escola? — perguntei ao me virar no banco para ver anova e verdadeira Arizona, não mais a Senhorita Indiferente, mas, em vez

disso, uma menina com cara de louca e o cabelo bagunçado caindo no rosto,cujo irmão menor havia desaparecido.

— Por que tiraria? — ela perguntou.

— Porque você detesta aquele lugar, queria que seus pais o tirassem de lá.

Ela me encarou, conseguindo ler meus pensamentos muito profundamente.

— Isso foi naquela época — ela falou com pesar. — Quando ele tinha a mimcomo motivo para voltar para casa.

— Entendi — concordei. — Peço desculpas...

— Vamos lá, Darina — Phoenix interrompeu. — Nós vamos ajudar aprocurar Raven, e você será nossa ligação com o mundo dos vivos, comosempre.

— E por onde começo? — Voltei-me de novo para Arizona, dessa vez parareceber algum conselho. — Para onde é que ele vai quando foge?

Phoenix respondeu por ela.

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— Geralmente ele não vai longe, então começaremos por perto de onde fica aescola. Vamos ter de ser cuidadosos, pois haverá policiais por lá.

— Qual o caminho?— Voltando para a cidade. — Arizona falou com um jeito de robô, muito

calma e muito distante, para disfarçar o pânico. — Antes de chegar lá, pegue adireção oeste, pela estrada do pico.

Fiz a volta com o carro, pensando nas instruções e com um arrepio descendopor toda a coluna.

— Essa estrada vai para o Hartmann.

— Sim.

— E aí?

— Ela também leva ao Instituto Lindsey, quinze minutos estrada afora, ao pédo pico Amos. Num dia bonito, Raven conseguia enxergar o lago da janela deseu quarto.

Então fui seguindo com meus passageiros Beautiful Dead para o lagoHartmann, sentindo a tensão incômoda crescer. Phoenix sentado a meu lado, ocabelo balançando com o vento, olhava superatento para frente, como se cadaárvore ou pedra pelas quais passávamos tivesse informações sobre o garotodesaparecido. No banco traseiro, Arizona se encolhia incapaz de olhar para olugar onde havia se afogado.

— Você se lembra de que Raven realizou esta mesma façanha no dia do―acontecido‖? — Questionei, tentando me concentrar na estrada que tinha pelafrente, ainda que o brilho da água e o horror daquilo que havia se passado aliestivessem me distraindo.

— Peter acha que Raven veio procurar por você.

— Pode crer. — A resposta descomprometida de Arizona quase foi silenciosademais para se notar.

— Ele não encontrou você? — Procurei pela expressão dela no meu espelhoretrovisor.

Ela fechou os olhos, e seus lábios mal se moveram.

— Depois de ter discutido com meu pai, fui para a Mike Motores. Raven nãosaberia ir lá me procurar. Até onde lembro, não nos encontramos.

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Olhei para Phoenix de relance, para confirmar se desta vez Arizona estavafalando a verdade. Disfarçadamente, ele fez que sim.

— Diga uma coisa, Senhor Zumbi, como é que tudo em torno do―acontecido‖ se torna um borrão? 

Foi a mesma coisa com Jonas — quando voltou para o mundo dos vivos,graças ao mestre, o todo-poderoso Hunter, suas lembranças do acidente tinhamsido todas apagadas.

— Você e Summer também não se lembram.

— Não dos detalhes — ele admitiu. — Hunter disse que o trauma do eventofaz isso, meio que frita o cérebro. Você fica só com poucas recordações, pode ser

um cheiro ou uma cor que tem a ver com o que aconteceu, mas a coisa em si éapagada. Esse é o motivo pelo qual estamos aqui, para trazer de volta essasmemórias, consertar o necessário e ficar livres.

— E até lá estamos presos. — O tom da voz de Arizona estava amargurado.—Aqui, nesse lugar no meio do nada, estamos mortos, mas não em paz.Estamos aqui e ao mesmo tempo não estamos; sem poder confiar em ninguémnem descansar um segundo. Você não faz ideia de como é isso, Darina.

Uma rajada de vento bateu no para-brisa e nos colocou dentro de um

pequeno redemoinho. Pisquei os olhos com força.

Não saia com o carro da estrada!  — falei para mim mesma. À nossa frenteestava o pico Amos, azul-acinzentado ao longe e com o topo já nevado naquelefim de outubro.

— Você está certa, eu não faço mesmo ideia — concordei. — Mas assim comovocês, Arizona, quanto mais fundo eu vou nessa história, menos eu possoconfiar nas pessoas. E isso eu posso lhe dizer com certeza.

A escola de Raven era um conjunto de pequenos chalés de madeiraconstruídos ao redor de um lago artificial e, desde os anos 1970, se chamavaInstituto Lindsey, o nome de seu fundador. Quando chegamos lá, em vez deum lugar infestado de policiais, encontramos apenas um carro da polícia naporta principal de um prédio grande de estilo colonial, estacionado junto aoMitsubishi vermelho de Frank Taylor.

— Eles com certeza colocaram todo o efetivo para trabalhar nessa busca — Arizona disse com rancor. Parei do lado de fora dos portões, de onde erapossível ver a escola de cima.

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— Ei, pelo menos fica mais fácil para Darina xeretar por aí — Phoenixamenizou. — Os chalés devem ser o lugar onde as crianças dormem, mas o queé o prédio principal?

— É onde elas têm aula, fazem terapia, recebem as visitas da família. — Asituação ficava cada vez mais difícil para Arizona à medida que as memóriasdolorosas afluíam. — Tudo parece rústico e acolhedor, só que esse lugar é umcampo de concentração, podem acreditar.

— Por onde começo, então? — Saí do carro e procurei uma entrada pelosfundos onde eu pudesse chegar a pé, contando com uma estradinha estreitacoberta de mato que pretendia pegar. — O que acontece se eu trombar comalguém? Qual minha desculpa?

— Você é esperta, Darina, pense em alguma coisa — ela respondeurispidamente, voltando atrás em seguida. — Ok, esqueça o que eu disse. Aspessoas que trabalham aqui não se parecem com médicos. Elas vestem tênis ecalça jeans, inclusive a diretora, Rebecca Davis. Ela é magra e loura, com ocabelo cacheado, mas não se engane pelas aparências. Se encontrar com ela,tome cuidado.

— Ela estará com Frank e o delegado — Phoenix lembrou. — Comece dandoa volta por trás do prédio principal. Se alguém lhe perguntar alguma coisa, digaque é uma turista que se perdeu quando voltava do Hartmann.

— Raven geralmente fica perto da escola quando faz isso — Arizonaexplicou. — Ele sabe que precisa sair, mas não faz a menor ideia para onde querir, por isso sobe até a área dos pinheiros, ou vai se sentar à beira do lado. Ou,quem sabe, vaga da margem do riacho até chegar à casa dos Pooles, pouco maisde um quilômetro rio abaixo. Foi o mais longe que ele já chegou.

— Nós vamos tentar no riacho — Phoenix decidiu. — Darina, você procuraperto dos prédios.

— Aposto sem sombra de dúvida que vocês é que vão encontrá-lo — falei,risonha. — Levando em consideração que conseguem ouvir cada folha que cai.— Iniciei a descida do morro não muito preocupada, a não ser em ficar longe davista de Frank Taylor e Rebecca Davis. Minhas desculpas teriam de ser muitomais sofisticadas se trombasse com eles.

Metade do caminho já havia sido percorrido, quando a porta da frente seabriu e uma loura saiu com um cara de uniforme — o delegado da região. Eume atirei atrás de uma pedra convenientemente localizada para esperar queterminassem a conversa. Enquanto estava ali, analisei o estacionamento, que

ficava nos fundos do prédio, onde os funcionários deixavam seus carros e ondeas entregas deviam ser feitas. Observei um ajudante de cozinha sair do edifício

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e jogar um saco na caçamba de lixo. Daí ele ficou parado de braços cruzados,olhando para o céu.

Volte para dentro! Eu ficava torcendo. Você está me encurralando!Finalmente, o cara da cozinha parou com aquela contemplação e voltou ao

trabalho. Desci mais um pouco do morro com pressa, até chegar a uns cemmetros do estacionamento, quando levei outro susto no momento em que odelegado entrou na viatura e pegou a estradinha, só parando bem no meio entrea subida do morro e a saída. Mais uma vez, eu me abaixei atrás de outra pedra,prendendo a respiração e esperando.

O delegado falava no rádio da viatura, encostado na lateral do carro, sempressa.

— Wes, está ouvindo? É, é o garoto de sempre: Raven Taylor. — Euconseguia entender a voz fraca dele. — O pessoal da escola anunciou odesaparecimento hoje, durante o café da manhã. Câmbio. — Houve uma pausaenquanto ele escutava, até o momento de falar de novo. — O pai está aqui.Rebecca mandou alguns funcionários procurar nas redondezas. Ainda não oencontraram. Câmbio.

Resolvi deixar o delegado fazer seu relatório para a base e decidir qual seriao próximo passo, para continuar descendo o morro engatinhando em direção a

uma lata de lixo gingante que me daria uma boa cobertura, sem acreditar muitoque seria eu a pessoa a encontrar o menino perdido. Estava agachada, tentandopassar entre um jipe preto e um utilitário prateado, quando ouvi o primeirobarulho.

Vinha do utilitário — um som baixinho de batida que parou e depoisreiniciou, como se alguém dentro do carro estivesse batendo um pequenoobjeto numa superfície de metal. Fiquei sem respirar. O que faria agora? Se euaparecesse de repente, o que a pessoa dentro do carro pensaria? Se eucontinuasse com minha abordagem sorrateira, de qualquer modo a brincadeira

 já teria acabado. As batidas voltaram e eu me levantei.

Num primeiro instante, pensei que tinha me confundido — não havianinguém dentro do carro. Só que olhei e ouvi novamente. Toc, toc, toc vinha dofundo do automóvel — um compartimento atrás de uma grade de metal feitapara colocar malas ou um cachorro, talvez. Fui até a janela traseira e dei maisuma boa olhada dentro do carro.

O garoto estava sentado de pernas cruzadas no porta-malas, com um livrosobre os joelhos e um caderno de desenho a seu lado. Balançava para a frente e

para trás, imerso em seu próprio mundo, batendo a caneta de metal contra agrade.

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Sem pensar, abri a porta. Raven não parou de se balançar nem de batucarcom a caneta. O livro no seu colo tinha uma imagem de uma das famosasMarilyn de Andy Warhol, toda cor de laranja e amarelo brilhante, com o cabelo

roxo e lábios carmim fazendo um biquinho.

—Oi, Raven — sussurrei.

Ele se balançava e batia a caneta, como se eu não estivesse ali.

— O que você está fazendo aqui?

Ele passou a caneta pela grade, como um pianista passando os dedos pelasnotas do piano. A capa do caderno a seu lado estava coberta de rascunhospequenos e complexos de sua casa em Westra.

— Ei, gostei dos seus desenhos — falei para ele, que levantou o olhar paramim. Estendi minha mão, e ele a pegou.

Obviamente, Phoenix e Arizona souberam na mesma hora que eu haviaencontrado Raven. Num segundo eles estavam comigo no estacionamento paravigiar — porém, sem ficar muito à vista —, ao passo que eu ajudava o menino asair do automóvel com delicadeza.

— Esses aqui são ótimos — disse-lhe, enquanto tirava as fotos de Marilyn de

perto dele. — Pegue seu caderno de desenho, vamos almoçar.Ele franziu a testa e empacou, voltando em direção ao utilitário. Cada

movimento era lento e um pouco desajeitado. A maneira como ele se movia melembrava daqueles antigos teatros de marionetes.

— Você quer ficar aqui? Tudo bem.

Por que este carro? Interroguei-me até que a resposta surgiu como um clarão:este carro é idêntico ao de Arizona. O mesmo modelo, a mesma cor .

— Eu gosto deste carro, ele é legal.

Coitadinho — o único lugar no mundo onde ele se sentia seguro era dentrodaquele carro de um estranho, pois acreditava que sua irmã logo viria buscá-lo.

Com o canto do olho, vi Phoenix pegar a mão de Arizona e segurá-la forte.

— Se você não quer almoçar, que tal ver seu pai? — Tentei uma táticadiferente. — Ele veio aqui fazer uma visita.

Não houve retorno — nenhuma relutância, nenhuma ansiedade, apenas um

grande vazio.

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Arizona deu um passo à frente, mas Phoenix a puxou de volta. Eu sabia que,se ela aparecesse, eles teriam de levar Raven e apagar a memória de seu cérebro

 já avariado.

Nossa, ela estava mesmo passando por uma dificuldade terrível quandoaceitou voltar. Pense um pouco a respeito: tudo o que ela queria era justamenteo que não podia fazer — abraçar seu irmão com força e falar para ele que tudoficaria bem.

— Arizona, você precisa ir embora — Phoenix disse a ela.

Ela levantou a mão para cobrir o rosto, apertando as têmporas e segurando ochoro.

— Não fique aqui sofrendo, vá embora logo — insistiu. — Eu cuidarei dascoisas.

Ela deu meio passo em direção ao irmão e hesitou.

— Venha ver seu pai — insisti também, batendo na capa do livro de Marilyncomo uma espécie de isca. — Venha comigo.

— Vá! — Phoenix falou baixinho para Arizona.

Enfim, ela não resistiu mais. Fiz a volta pelo lado da casa colonial comRaven, ao mesmo tempo em que ela usava seu poder para desaparecer. Ocírculo de luz brilhante se esvaiu com rapidez até sumir completamente.Phoenix ficou sozinho.

— Leve-o para dentro da casa. Faça com que ele chegue às mãos de RebeccaDavis. — Phoenix era o mais forte e o mais calmo dos pretensos salvadores deRaven.

— Então, venha me contar mais sobre sua foto preferida — disse para omenino, tentando esconder os tremores da minha voz. — Será que é dessa

Marilyn ou das latas de sopa que você gosta mais?

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— Você viu Frank Taylor? — Phoenix queria saber enquanto dirigia meucarro e nos levava em direção ao lago Hartmann. Raven já estava com adiretora: dei uma desculpa esfarrapada e saí logo de lá.

— Encontrei o menino na floresta — contei a ela. — Imaginei que tivessevindo daqui.

Vocês precisavam ver o modo como Raven olhou para mim quando RebeccaDavis assumiu o controle — confuso e magoado talvez não seja a melhordescrição, mas é o mais perto que eu consigo chegar. Ele pensou que fôssemos

dois amiguinhos de Marilyn amarelos, vermelhos, roxos e verdes, só que agoracá estava eu, jogando-o de volta para as pessoas cinzas.

— E então, viu? — Phoenix repetiu.

— Hum, não. Por sorte, Frank não estava perto. — Tive de parar de sentirpena de Raven para me concentrar em nosso próximo passo. — Saí de lá o maisrápido que pude, antes que Rebecca me perguntasse qualquer coisa a que nãosoubesse responder.

— Legal. — Phoenix disse e continuou dirigindo por mais um tempo.

— Como será que é ser Raven: não falar, não entender outras pessoas, viverapenas dentro de uma bolha? — Tive curiosidade de saber. — Acho que deveser bem solitário. Pense, Phoenix, em todas as respostas que o garoto poderianos dar se conseguisse falar. Como, por exemplo, aonde foi na manhã em queArizona se afogou, quem ele viu, como foi parar no shopping...

Ele deu uma olhadela para mim e voltou a encarar a estrada à frente.

— Quer saber de uma coisa estranha? — ele confidenciou. — Lá no

estacionamento, tentei ler os pensamentos de Raven, mas não consegui.

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— Que loucura! — Os poderes telepáticos que Phoenix e os Beautiful Deadtinham eram impressionantes. — O que aconteceu?

— Tentei, e não havia nada, somente um amontoado de coisas.— Talvez você não tenha tido tempo suficiente. — Inventei uma desculpa. — 

Arizona também não estava nada bem para conseguir ler pensamentos, com ummonte de coisas acontecendo.

— Não. — Phoenix me interrompeu. — O caso é que o cérebro do garoto temuma estrutura diferente. Não consegui atingi-lo de jeito nenhum.

Permanecemos os dois em silêncio, passando de carro à beira do lago. O soldo outono reluzia dourado na água verde-clara. Na margem distante, sozinho,

um cervo bebia água.

— Tive notícias sobre o último bando de vigilantes. — Phoenix reiniciou aconversa assim que entramos na estrada pavimentada seguindo para a cidade.— Sabe os caras que vieram encher o saco no fim de semana?

— Aqueles que acamparam lá em Government Bridge?

— É. Bem, eram Kyle Keppler e seus amigos de Forest Lake.

A nova informação me fez resmungar.

— Esse cara é um carrapato, quase impossível se livrar dele. Sabia que fui láontem?

Phoenix assentiu com a cabeça.

— Mesmo eu tendo dito para você ficar longe dele...

— Não achei que ele fosse estar lá.

—Você não devia chegar perto dele nem da casa dele, Darina.— Mas você não escutou o que eu disse? Pensei que ele estivesse trabalhando

na Mike Motores. Eu precisava falar com Sable e descobrir se ela sabia sobreKyle e Arizona. E, se sabia, o que exatamente havia feito a respeito.

— Arriscado demais — ele insistiu e apertou os dentes quando fez umacurva muito rápido, jogando-me contra ele.

Voltei para meu lugar me recompondo e fiquei completamente calada.

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— Então quer dizer que estou fazendo tudo errado? — Não resisti e estourei.— No outro dia Arizona falou que eu era burra demais para ajudar vocês. Eagora você também acha!

— Não falei isso — ele suspirou e encostou o carro num acostamento de terraao lado da estrada. Paramos em frente a um campo de capim-amarelo, com umceleiro ao longe. — Você sabe que me preocupo com você, Darina.

— Não precisa — reclamei. Mas não consegui enganá-lo. — Certo, então vocêse preocupa comigo. Obrigada. — Sorri e nos beijamos.

Ele soltou um suspiro breve e triste.

— Tudo isso está acontecendo com você por minha causa. Toda essa dor e

dúvida. Não queria que fosse assim.

— Eu não me importo que seja desse jeito. — Precisava que Phoenix soubessedisso. — Cada segundo que passamos juntos é uma dádiva para mim, não meimporta o quanto doa.

Ele me olhou profundamente, com o longo capim dourado balançando aovento na direção das montanhas atrás de sua cabeça e seus lindos olhos azuisbrilhando.

— Faça isso por mim, não se arrisque tanto — ele sussurrou e me beijousuavemente nos lábios. — E deixa eu me preocupar, tá?

— Tá — sorri.

— E isso não tem nada a ver com você ser burra.

— Certeza? — perguntei, encarando-o nos olhos.

—Confie em mim — ele disse e me beijou novamente, para ter certeza de queeu acreditava nele. — Darina, eu amo você.

— Mas?

— Sem ―mas‖. 

— Então a gente não acabou de ter outra briga? — eu me inclinei para beijá-lo também. Tive aquela sensação dolorosamente incrível de estar mais próximade Phoenix do que quaisquer outras duas pessoas jamais estiveram oupoderiam estar.

— Vá com calma — ele me falou, saindo do carro e esperando que eu

voltasse para pegar a rodovia.

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— Eu amo você! — declarei.

— Eu amo você — ele devolveu.

Meu coração doeu.

Mantive-o à vista no retrovisor pelo maior tempo que pude — ele lá em pécom as pernas separadas, segurando o cinto com os polegares, observandoenquanto eu me afastava.

Minutos depois eu desejava que Phoenix ainda estivesse no carro comigo.

O incidente começou com uma caminhonete, vindo de traz em altavelocidade e me ultrapassando numa curva.

— Seu barbeiro! — Pisei forte no freio para deixar a caminhonete passar. — Qual o seu problema?

Aí o motorista da caminhonete entrou bem na minha frente e freou derepente, fazendo a luz vermelha de sua lanterna brilhar sob a copa dospinheiros.

Freei de novo, soltando um bocado de xingamentos, até reconhecer o carapara fora da janela do passageiro: era o homem da Harley que vi no quintal dosKeppler — aquele que estava dando o abraço mais que amigável em Sable.Senti como se tivesse tomado um soco no estômago. Reduzi a velocidade eparei o carro, rezando para que a caminhonete desaparecesse da minha visão.

Mas não, o motorista fez um retorno espetacular na estrada estreita e veio emminha direção. Vi que era Kyle Keppler em pessoa no volante, com aquele seuamigo moreno ainda para fora da janela do passageiro, gritando e me xingando.A caminhonete parou e eu me preparei para encará-los.

Primeiro Kyle e seu amigo Neandertal desceram do carro e caminharamlentamente para o meu lado. O amigo parou a uns três metros do meu carro, eKyle continuou vindo em minha direção.

— Querida, sua sorte acaba aqui — ele zombou. — Você escapou de mimuma vez, e essa foi a última.

— O que foi que eu fiz? — reagi, com o coração quase salto do meu peito.Desejando mais do que acreditando ser possível, olhei no retrovisor paraprocurar por Phoenix.

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Consegui usar minha voz e gritei para avisar Phoenix.

Com uma das mãos ele segurou a barra no ar e, com a outra, arremessou tão

forte o cúmplice que quase foi parar embaixo do meu carro. Agora com as duasmãos livres, Phoenix pôde usar toda a força de seu poder zumbi contra Keppler:tirou a barra das mãos do ogro e o jogou de costas contra a rocha. A barraestava no pescoço de Keppler, forçando sua cabeça para trás e fazendo os olhosrevirar. Marquei minha presença, pisando nas mãos do cara número doisquando ele tentou sair de baixo do carro se arrastando.

— Não toque em Darina! — Phoenix encontrava-se a milímetros das feiçõesdistorcidas de Kyle. — Se você encostar um dedo nela, você morre!

E então ele atirou para longe a barra, que caiu fazendo um barulhosincronizado com o soco que Phoenix acertou na mandíbula de Keppler,lançando-o no chão de terra para rastejar ao lado de seu amigo.

— Eu devia matá-lo por causa disso — Phoenix esbravejou.

— Não! — implorei. Chega de brigas. Por favor, sem facas escondidas! 

Nossa breve conversa deu tempo para os dois tomarem fôlego, levantarem evirem juntos para cima de Phoenix.

Nessa hora eu gritei mesmo.Phoenix segurou o punho de Kyle Keppler e jogou-o de encontro ao amigo,

arremessando os dois na lateral do meu carro, fazendo a coisa toda parecermuito fácil.

— Certo, já foi o suficiente — ele decidiu em voz alta. — Porque agora vaidoer bastante.

Daí, ele encarou os dois bem nos olhos — primeiro o parceiro, depoisKeppler —, apagando a memória deles com toda a força de seu poder arrasador

de mentes.

De repente, bateu uma ventania violenta, e eu pude ver a poeira subindo eouvir as asas começando a bater. Milhões de asas — hordas de almas penadastrazidas do limbo que davam a Phoenix o poder de eliminar memóriasdeixando as vítimas doloridas e vazias, para acordar mais tarde se interrogandosobre que diabo teria acontecido e como é que haviam ido parar ali deitados naterra, cheios de hematomas.

Keppler resistiu, a princípio. Ele tentou investir mais uma vez contra

Phoenix, mas meu namorado Beautiful Dead permaneceu firme, com o olharfixo como se estivesse emitindo um laser para o cérebro dele. Keppler

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cambaleou para trás, chegou até seu amigo, derrubou-o e ficaram os dois, juntose caídos no chão.

Infinitas asas levantavam a tempestade de poeira pelo céu, enquanto Phoenixmantinha-se altivo e vitorioso.

— Brandon vai cuidar do conserto do carro — Phoenix me prometeu.

Tivemos de deixar o carro na vala e andar rumo à cidade antes que Kyle eseu comparsa voltassem a si.

Eu estava atordoada e confusa, minha mente não conseguia funcionar comclareza depois do choque.

— Logan pode consertar o carro... Só preciso pedir para ele e Christian. Elespodem fazer isso juntos.

— Brandon! — Phoenix insistiu. — Diga a ele onde foi que deixamos o carro,e ele o rebocará de volta para a cidade.

— Só não diga para ele levar na Mike Motores — brinquei. — Tá, não tevegraça nenhuma, né? E antes que diga alguma coisa sobre Kyle Keppler, admito:você tinha razão.

— Um selvagem — Phoenix confirmou.

Caminhamos lentamente pela calçada irregular; não havia ninguém porperto. As almas penadas já haviam se organizado e partido para onde quer quefosse sua casa.

— Conte o que sabe sobre ele, além da ligação com Arizona.

Phoenix enfiou as mãos no fundo do bolso da calça antes de soltar a bomba.

— O cara que estava com ele era o irmão de Sable, Jon Jackson.

— O irmão dela! — Não tinha pensado me nada disso quando imaginei acena do programa de flagras da televisão, lá no quintal dos Keppler. Pois, paramim, ele era um amante rival. Tá, eu tenho mesmo o defeito de tirar conclusõesapressadas, e esse foi mais um exemplo.

— Jon estava em Government Bridge com Kyle e alguns outros caras. Elescurtem sair juntos.

— E Brandon estaria incluído na gangue? — Quis saber onde exatamente omais velho dos irmãos Rohr se encaixava. — Brandon, Kyle e Jackson, eles são

do mesmo time?

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— De vez em quando, sim. — Phoenix se calou, baixou o olhar e foi andandoum pouco à frente. — Olhe, eu não escolho os amigos do meu irmão!

Pensei sobre o assunto.— Certo, entendi. Você não quer envolver Brandon nessa história, porque

Kyle é um cara péssimo para se ter por perto e prefere que eu não coloque osdois no mesmo saco, não é?

Uma confirmação com a cabeça foi tudo o que tive como resposta.

Corri para alcançá-lo.

— Além disso, Kyle e Jackson estavam lá na... Na noite! — O fato me atingiu

como uma paulada na testa: eles tinham sido parte da gangue assassina que sereuniu perto do posto de gasolina na cidade. — Phoenix, eles fizeram parte doque aconteceu com você!

Ele balançou a cabeça.

— Isso significa sim ou não? — Segurei a mão dele e fiz com que diminuísseo passo. — Olhe para mim e diga a verdade.

— Eles estavam lá — ele admitiu. — Junto com talvez mais uns vinte caras.Mas não precisamos nos concentrar nisso agora. Lembre-se de que nestemomento estamos pensando em Arizona.

— Nossa, como ela pode  gostar desse cara? — Continuamos andando, quaseenxergando as primeiras casas da estrada do pico, na entrada da cidade.

— Arizona amava Kyle — ele lembrou. — Gostar e amar não são a mesmacoisa.

— E agora? — Eu estava querendo saber qual seria nossa próxima manobradepois de falar com Brandon para que cuidasse do capô amassado do meu

carro. — Faço mais uma tentativa de pegar Sable sozinha e ver se ela abre aboca?

— De jeito nenhum.

— Não esqueça que só temos mais três dias para fazer isso! — O prazo finaldado por Hunter, sexta-feira, estava chegando cada vez mais rápido. — Em vezdisso, vou lá confrontar os Taylor e fazer com que soltem os segredos defamília?

— Melhor assim — ele disse. Nosso ritmo diminuía, e já podíamos ver ascasas; era hora de Phoenix partir.

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— Talvez seja mais ou menos deste jeito: Arizona briga o tempo todo com ospais, especialmente com Allyson. Ela quer que Raven volte para casa, estápreparada para desistir de tudo para ficar com ele vinte e quatro horas por dia,

ser a sombra que ela acredita que ele precisa.

Phoenix entendeu a situação.

— Você quer dizer que ela acaba brigando muito feio com Allyson. A coisapassa dos limites, e a família começa a se desestruturar. Frank é fraco demaispara impedir que aconteça.

Concordo e falo cada vez mais rápido.

— E você conhece Arizona, quando ela acha que está certa, nada a faz mudar

de ideia. Allyson também. São duas forças que não se movem. No fim dascontas, as coisas terminam de modo violento.

—Pode ser — Phoenix disse, tão baixo que quase não dava para escutar.

— É possível, sim! Imagine só. Existe alguém mais insensível do queAllyson? Aí está uma mãe que não fica em casa nem quando o filho autista fogeda escola. A gente ouve falar de mães anormais como ela, que aparecem nos

 jornais, só que ninguém acredita que possa encontrar uma dessas pela frente.Mas talvez ela seja um monstro em pessoa!

— Então elas acabaram brigando lá no Hartmann. — Phoenix puxou mais ofio do enredo da minha última teoria. — Arizona saiu para procurar Raven, eAllyson foi lá atrás dela...

— E acusa Arizona de saber onde está o menino, que é tudo armação dela,que é maluca e está escondendo o irmão da polícia...

— Elas brigam na beira do lago, e acontece um acidente: Arizona escorrega ecai dentro d’água... 

Eu concordo com a cabeça sem parar. Isso poderia mesmo ser a chave paradesvendar o mistério de Arizona. Restando três dias, estávamos quase lá...

— Mas Arizona sabia nadar. — Phoenix deu uma freada na imaginação. — Ela até ganhava medalhas nas competições da escola.

Agora eu estava determinada a provar que Allyson era a culpada, o monstroem pessoa.

— Ela bateu a cabeça na queda, perdeu os sentidos e foi direto para o fundo

do lago. — Parei no ponto onde a estrada de terra em que estávamos passava aficar pavimentada. — Melhor você não continuar — avisei.

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— Você quer que eu vá embora? — ele perguntou com aquele meio sorrisotorto.

— Hunter vai ficar sabendo se você vier. Você tem que voltar para Foxton. — Empurrei-o para que fosse embora. Ele segurou minhas mãos. — Vá! — faleiquase chorando.

Tivemos tempo para um longo beijo antes que ele voltasse.

— Você não vai acreditar — ele riu e interrompeu o que estava dizendo comose estivesse com vergonha.

— O quê?... Phoenix tem um carro vindo! — Ouvi o barulho que vinha dealgum ponto mais acima na rua, aumentando cada vez mais.

— Hunter falou que posso ficar.

— Ficar aqui comigo? E não voltar para Foxton?

— Sabemos que Kyle Keppler vai procurá-la novamente. Hunter disse paraeu ficar aqui e tomar conta de você.

Suspirei, sentindo todo o meu corpo vibrar.

—O dia inteiro? É isso o que você está dizendo?

—E à noite também — ele prometeu, passando o braço em volta da minhacintura e me levando para trás de um outdoor grande, fora da vista do carro quepassava.

Phoenix estava no meu quarto, sentado na cama e esperando por mim. Nosarredores da cidade, nós nos despedimos e eu vim sozinha para casa. Ele tinhaido se reunir com Hunter e os Beautiful Dead lá em Foxton e, mesmo assim, já

estava na minha casa antes de mim.— Você precisa falar com Brandon sobre seu carro — insistiu o senhor da

razão.

— Amanhã — negociei. Não queria nenhuma interrupção durante nossomomento a sós.

— Agora. Está dando na previsão que vai chover. Ligue para ele e peça pararebocar o carro.

Suspirando, peguei meu telefone.

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Brandon atendeu à minha chamada quase antes de o telefone tocar. — Darina, o que foi?

— Meu carro é que foi.—Você o bateu? — Ele já se precipitou para a conclusão óbvia, como se

tivesse gostado da ideia.

— Não, ele foi detonado. Seu amigo Kyle Keppler me atirou para fora dapista, e o cunhado dele praticou alguns atos de vandalismo com uma barra deferro.

— Por que ele faria isso? — o tom de voz dele mudou, e a pergunta veiocheia de suspeitas e farpas.

Olhei para Phoenix, que havia levantado da cama e ido para a janela.

— Kyle não gosta de mim, é só o que posso dizer.

— Nossa, mas eles têm mesmo que odiar você para terem feito uma coisaassim com seu carro. Você se machucou?

— Não, eu estou legal, só meu carro está mal. Estava pensando se você nãoconseguiria rebocá-lo para consertar o estrago.

Brandon não hesitou. Conferiu se eu estava em casa e me falou para esperar.— Vou pegá-la, aí você pode me mostrar onde o carro está.

Com outro suspiro, desliguei o telefone. — E como explico isso ao seu irmão?— perguntei a Phoenix.

— Diga que tem a ver com Arizona. — Ele sugeriu que uma meia verdadeseria suficiente. — Brandon sabia sobre ela e Kyle, lembra?

Aceitei.

— Tá, isso vai funcionar. Ele vai pensar que Kyle ficou furioso comigo porestar me intrometendo de algum jeito em sua vida pessoal. E ele sabe que o caraé bem esquentado.

— Acredite em mim, Brandon não vai lhe fazer perguntas. Ele vai tomarconta de você, como me prometeu fazer.

Com suas últimas forças, Phoenix, antes de morrer, fez seu irmão prometerque me protegeria. Brandon segurou o irmão nos braços e jurou por ele que ofaria.

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Keppler. Eles entrariam num acordo para Kyle ficar longe de mim dali pordiante.

— Obrigada — agradeci a Phoenix assim que ele me passou a toalha paraenxugar meu cabelo ensopado. Alguns sons a mais do lado de fora da casa meavisavam que Laura havia chegado do trabalho. — Espere aqui — sussurrei.

No andar de baixo, Laura estava cansada, nada que fosse novidade. Ela tirouos sapatos com os próprios pés e sentou com uma cerveja na mão.

— Com esse vento deve vir uma tempestade... — fez a previsão. — Onde estáseu carro, Darina? Não o vi na garagem.

— O limpador de para-brisa se soltou. — (Verdade, de fato). — Brandon Rohr

vai consertá-lo. — (Também verdade).

— Que ótimo. Você já comeu?

— Comi uma pizza. — (Não era verdade).

— Você devia comer melhor, Darina. — (Verdade).

— E onde está Jim?

— Viajando, em outro estado. Não vai vir para casa.

— Não precisa preparar nada para o jantar, porque eu já comi. — Fiqueirondando em volta do pé da escada. — Tenho de fazer um trabalho de ciências.

— Então vá — Laura suspirou e colocou os pés em cima do sofá, pousando acabeça numa almofada.

Phoenix deitou-se ao meu lado no quarto. Ouvimos os pingos de chuvacaírem no vidro da janela e olhamos para o céu negro lá fora.

Eu estava mais viva do que em qualquer momento de que pudesse melembrar, o coração explodindo de alegria.

Deitados de costas, com os braços esticados por cima da cabeça e, os dedosentrelaçados... Fitávamos os olhos um do outro. Eu me enrosquei nele, que nãose mexeu, e ficamos lá parados por uma eternidade. Daí, ele beijou minha testa.Levantei o rosto e deixei seus lábios tocar os meus. Mais viva e sensível quenunca, entre infinitos beijos.

A chuva batia na janela.

Queria que durasse mais, mesmo sabendo que não seria possível. Teria sidodesse jeito se...

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Antes da meia-noite a tempestade chegou e aumentou com um vento cadavez mais forte que trouxe trovões e relâmpagos dividindo o céu em dois.

Phoenix sentou-se e pôs as pernas por cima da beirada da cama. Apertou amão trêmula contra a testa.

— O que foi, a tempestade? — Fui arrancada do meu paraíso e fiqueisubitamente assustada. Uma tempestade elétrica era o maior perigo que osBeautiful Dead poderiam encontrar no mundo dos vivos — enfraquecia-os eroubava seus poderes, tornando-os vulneráveis a seus inimigos.

— Estou com uma dor, bem aqui. — Phoenix pegou a minha mão e levoumeus dedos à tatuagem de asas de anjo, logo abaixo de sua espádua.

— É muito forte? — perguntei e toquei de leve a pele macia e fria, paradepois inclinar-me e beijar as asas uma, duas, três vezes.

— Você está fazendo melhorar — ele disse baixinho. — Darina...

— Eu sei... Você precisa ir — murmurei rapidamente. — Os outros estãoesperando por você lá na serra de Foxton.

Ele se levantou e me puxou para perto. Sussurrou em meu rosto enquantome abraçava:

— Queria ficar com você, eu juro!

— Eu amo você. Vá.

— De manhã, venha até a serra, nos encontraremos por lá.

Um raio se bifurcou no céu, e o vento chacoalhou a janela. Tremi de medo dacabeça aos pés.

— Vá — implorei. — Vá, antes que seja tarde demais.

A tempestade caiu violenta a noite toda — chuva, vento e o céu preto cortadopor raios serrilhados. Deitada na cama, dizia a mim mesma em diferentes grausde aflição que Phoenix teria conseguido chegar a Foxton e se reunido comHunter e os Beautiful Dead, que agora eles já estariam longe do mundo dosvivos, a salvo em algum lugar do outro lado. Eu iria até lá pela manhã, assimque a tempestade passasse.

Quinta e sexta-feira — é tudo o que temos, falei para mim mesma. Mas como é queeu vou chegar a Foxton sem meu carro? Sentei na cama, ouvindo as trovoadas aofundo.

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Agora, sem meio de transporte, eu me sentia como se minhas pernastivessem sido amputadas.

Ei, o que eu faço agora?Talvez se eu sair agora, no meio da tempestade e pegar uma carona na Centennial

 para descer no entroncamento de Foxton, subir andando até a serra, consiga chegar aoceleiro perto do amanhecer .

Estava de calça jeans, camiseta e calçando minhas botas quando Hunterapareceu.

O quarto se encheu de luz prateada. Ele se materializou ao lado da janela, ospingos pesados açoitando o vidro. Pensei que minha mente havia se

atrapalhado e eu estivesse completamente louca.

— Você não deveria estar aqui! — falei num sobressalto, plantada ali, semsair do lugar. — Cadê Phoenix? Onde estão os outros?

— A salvo — ele respondeu. Na luz difusa, eu via que ele tremia. Escorriaágua do cabelo para seu rosto de granito. Os olhos eram tão escuros e fundosque, por um instante, tive medo de ele ter virado uma daquelas caveirastrazidas do limbo para aterrorizar os vivos que chegam perto demais do celeiro.

— Você deveria estar lá com eles. — Se ele permanecesse mais tempo, ficariaferido e muito fraco para ir embora. — Por que está aqui?

— Preciso de você — Hunter confessou. Um relâmpago rasgou o céu e o fezestremecer. Ele colocou uma mão sobre a mesa para se equilibrar.

Nada fazia sentido. Hunter era forte e seguro — inabalável. Não era para eleestar fraco e tremendo.

— Precisa de mim? Para quê?

— Venha comigo — ele pediu. — Rápido.— Para onde? — Eu estava pronta para viajar, se ele ainda tivesse forças.

Preparei-me para ouvir as asas batendo e a luz me rodeando.

— Para Foxton.

— Fazer o quê? — Aí vinham eles, o bando de asas, o sopro intenso e frio doar molhado assim que Hunter abriu a janela do quarto.

— Achar Lee Stone — Hunter me contou. Ele pegou minha mão e, imerso

nos ventos poderosos da tempestade, levou-me para fora da casa, adentrando aescuridão. — Lee não conseguiu... — ele explicou, à medida que a energia

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misteriosa rasgava minha cara, meu cabelo, e cada músculo e osso do meucorpo. — Ele ainda está aqui no mundo dos vivos. Você precisa vir.

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Quando se viaja com o mestre dos Beautiful Dead, não se voa nem se flutua

nem se gira nem se é arrastado pela correnteza. É mais como se você tivessecaído no olho de um furacão e ficasse por lá até chegar ao lugar que queria. Aívem uma queda livre de quilômetros em meio à escuridão antes que possa serecuperar.

Estávamos no entroncamento de Foxton, ainda era noite, e a tempestadehavia piorado.

Tive de me segurar em Hunter para poder continuar em pé resistindo aovento que soprava serra abaixo. Ele ainda tremia, com os olhos mais escuros e

fundos. A chuva pingava em sua têmpora sobre a tatuagem quase apagada daasa de anjo, o lugar onde ele havia sido baleado.

— Lee estava aqui quando o tempo mudou — Hunter disse com a voz muitobaixa, os ombros encolhidos e os dentes batendo, como se estivesse morrendode frio. — Ele ficou gravemente ferido pela tempestade elétrica, e nãoconseguiu voltar.

Quase sem ar, dei uma olhada nas cabanas de pescadores enfileiradas àmargem do riacho revolto. Apenas uma dentre elas estava iluminada.

Hunter foi cambaleante sob a chuva e o vento até a luz solitária.

— Retornei para procurá-lo depois de ter mandado os outros de volta. Nãose preocupe, Darina, com certeza Phoenix está a salvo.

— Mas você não! — lamentei. Estava tão escuro que tropecei no meu própriopé. — Você está ficando mais fraco a cada segundo que continua aqui!

— Estou aqui por causa de Lee — disse, por entre os dentes cerrados. —Ocara dessa cabana encontrou Lee caído na beira do rio. Ele o arrastou para um

lugar coberto antes que eu pudesse alcançá-lo. Acho que ele imaginou estarfazendo uma boa ação.

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— Um lugar coberto? Onde? — Lentamente recuperava meu fôlego ecomeçava a pensar. Estava claro que era eu quem tinha de tirar Lee das mãos deseu suposto salvador e trazê-lo para Hunter. Daí, os dois poderiam dar o fora

logo.

— Ele o levou para dentro da casa.

— Quanto tempo ainda temos? — perguntei, calculando se poderia esmurrara porta e levar o homem para fora enquanto Hunter ficava invisível e seesgueirava para dentro da casa, aproveitando o tempo em que ele estivesse decostas.

— Não muito. — Hunter mal podia abrir a boca e falar, de tão fraco queestava. Vi que correu todos os riscos por causa de Lee. — O raio o pegou e eledesmaiou. Vá, Darina!

Fui tropeçando e subi o degrau da varanda. Bati com a mão na porta demadeira.

De início, ninguém veio. Dentro da cabana, o cara devia estar pensando quenuma noite como essa ele não abriria a porta para um segundo estranho de jeitonenhum. Mas talvez tenha cogitado que alguém tivesse ido procurar por Lee epor isso a porta se mexeu.

Pela fresta estreita, vi um par de olhos brilhando.

— Ajude-me, você tem que vir aqui! — Gritei, com o cabelo grudado na carae a água da chuva escorrendo do meu corpo. —Meu carro ficou preso na valado entroncamento. Preciso que você me ajude a tirá-lo!

Agora sei que, com um pouco mais de tempo, teria enfeitado mais minhahistória.

A porta permaneceu imóvel.

— Não dá, não —falou a voz, que parecia velha e mal-humorada. — Estoumuito ocupado com um jovem aqui. Ele caiu no rio.

—Por favor! — implorei, tentando olhar do lado de dentro.

— Não sei se ele está vivo ou morto — disse o velho. — Não consigo sentir apulsação nem algo assim, mas acho que está respirando.

A porta ia fechando na minha cara.

— Eu posso dar uma olhada! — insisti. — Fiz treinamento de primeirossocorros, talvez possa ajudar.

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Entrei, mas Hunter continuava do lado de fora, desamparado. Se eu ia juntarHunter e Lee, era preciso pensar rápido.

Porém meus planos foram por água abaixo.Lee estava deitado num sofá que também servia de cama para o velho.

Numa primeira olhada, poderia se dizer, sem dúvida, que era um cadáver — orosto pálido como um fantasma, a boca aberta e os olhos fechados. Um dosbraços caindo inerte para fora do sofá.

Havíamos chegado tarde demais — senti um baque no meu coração.

Mas então Lee se mexeu. Virou a cabeça para mim, e eu pensei que tivesseme reconhecido.

—Vá em frente, examine-o — o velho foi me apressar. Havia uma garrafa deuísque aberta em cima da mesa, e eu senti o hálito dele fedendo a álcool.

Um baque, e depois batidas aceleradas. Meu coração estava disparadoquando me abaixei ao lado de Lee. Seus olhos não conseguiam focalizar nada,portanto imaginei que afinal ele não tinha me reconhecido.

— Sou eu, Darina.

— Darina. Diga a Hunter que eu sinto muito. — A voz dele também saíacomo um sussurro que quase não entendi, de tão desarticulado que era o som.

— O que ele disse? — quis saber o velho pescador, debruçando-se sobre nóscom seu rosto peludo e marcado, além do bafo de uísque.

— Vou tirar você daqui —inclinei-me mais um pouco e prometi a Lee. Tardedemais! Minha mente falou a verdade, e o coração quase pulou para fora do meupeito.

Lee Stone era um dos espectros Beautiful Dead que nunca soube das

circunstâncias relacionadas à sua morte. A tempestade o pegou em cheio e tiroutoda a sua força sobrenatural, tanto que agora ele parecia com o cadáver querealmente era, com a cabeça pousada sobre o travesseiro encardido e o braçoamolecido pendurado. Onde estaria àquelas asas e as caveiras, o campo de forçaque o protegia? O que Hunter poderia fazer agora?

Nada. Eu sabia a resposta sem precisar perguntar em voz alta.

— Não, quem sente muito sou eu — choraminguei. Confuso, o velho seafastou. — Hunter tentou salvá-lo, fez tudo o que podia.

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Os olhos de Lee mostravam que ele havia me escutado, mas estava muitofraco para falar. Peguei sua mão gelada e, assim que fechei os dedos sobre ela,vi sangue vivo escorrendo no braço dele, vindo de uma ferida em seu ombro

que, mal havia aparecido, já estava pegajosa e coagulando. Mais sangue seesvaia de suas costelas e do canto da boca, fazendo uma linha fina em seu rosto.

Segurei forte em sua mão. A porta atrás de nós abriu-se, e veio uma lufadade vento intensa. Quando ela parou, Lee se fora.

* * *

A estranha semivida/semimorte de Lee foi desaparecendo devagar, mas aosolhos dos que ficaram ela parecia ter sumido depressa. Com cuidado, coloquei

o braço imóvel sobre seu peito. O pescador permaneceu mudo enquantoacontecia aquilo que se passa quando os Beautiful Dead partemdefinitivamente. Primeiro, as pálpebras de Lee tremeram e se fecharam, osangue que saía sumiu. Em seguida, surgiram a luz prateada em volta do corpoe as asas batendo — mas não violentas e ferozes, suaves apenas. O brilho eracomo uma aura penetrando lentamente por toda a extensão de Lee,dissolvendo-o gradualmente e fazendo-o reluzir até que ele desaparecesse. Opretenso salvador de Lee ficou olhando embasbacado para um sofá vazio.

— Você bebeu uísque demais — disse ríspida ao velho pescador, para deixá-

lo perdido em sua própria confusão. Que isso se tornasse mais um dos boatosesquisitos que escapam da montanha para os bares e lanchonetes de Ellerton.Uma noite feia de tempestades, uma história de bêbado...

Saí da cabana para procurar Hunter. Chamei por ele na estrada de terra edepois mais abaixo perto do rio. Só consegui ouvir a água passando pelaspedras e sentir a correnteza negra descer rápida perto dos meus pés.

Sentei-me no chão.

— Chegamos tarde demais — lamentei.

A única resposta que tive foi o bater de asas raivoso, amontoando-se sobre aserra de Foxton e lançando-se vale adentro, e uma horda de caveiras naescuridão com um brilho branco amarelado, cujo topo dos crânios parecia-secom seixos desgastados de uma praia e os buracos dos olhos com abismosnegros.

A tristeza pesou sobre mim. Eu havia segurado a mão de Lee e assistido àsua partida para sempre. E agora Hunter também havia ido — como umasombra de si mesmo, tão fraco que talvez não tivesse conseguido sair do mundo

dos vivos e ir para um refúgio seguro, longe da tempestade.

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Um clarão de relâmpago cortou o céu e, logo em seguida, um estrondo detrovão. Sentei-me à beira do rio e chorei.

Amanheceu e eu subia a serra, esgotada e cheia de dor, com menosesperanças do que jamais havia tido. Andei até à caixa d’água observando decima o celeiro e me joguei morro abaixo, meio correndo, meio tropeçando,esperando os Beautiful Dead voltarem para o mundo dos vivos.

O céu se iluminava em cor-de-rosa riscado de cinza e azul por nuvens finas.Gotas caíam dos galhos dos choupos, fazendo poças no chão de areia grossa. Vio vapor levantar do telhado do celeiro à medida que o sol subia.

Onde estão vocês? Perguntei para Phoenix, Hunter, Arizona e o resto.

Lembrei da ocasião anterior em que os Beautiful Dead foram forçados a fugirpor causa de outra tempestade. Eu havia ficado sentada a noite toda esperandoeles voltarem, e demorou mais do que eu esperava — metade de um dia paraeles descansarem e recuperarem suas forças, ficarem prontos para voltar aomundo dos vivos.

— E já é quinta-feira — falei em voz alta. O tempo gerava uma pressãoenorme que eu sentia em meus ombros. — Certo, então vai ser assim!

Resolvi seguir meu pressentimento de que ainda teria de esperar algumas

horas e que era melhor não desperdiçá-las ficando por ali. Portanto, subi denovo a encosta pela trilha dos cervos até a estrada de terra onde pretendiapegar uma carona. Demorou vinte minutos até o primeiro veículo aparecer. Omotorista desacelerou para dar uma boa e longa conferida no meu aspecto derato afogado.

— Precisa de carona? — perguntou.

— Para Ellerton. — Não liguei se ele pensou que eu fosse uma doida sem-teto pega desprevenida pela chuva da noite passada; subi na cabine de sua

caminhonete.— O que aconteceu com você?

— Meu carro foi arrastado pela correnteza. Acabei indo parar numa vala.

— Você mora em Ellerton?

Fiz que sim.

Tá, você está me dando uma carona, mas eu não tenho de lhe contar a história da

minha vida.— Quantos anos você tem?

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— Ninguém melhor que eu para saber disso. Temos exatamente trinta equatro horas e quinze minutos antes que meu tempo acabe, por isso Hunterpermitiu que eu viesse mais cedo.

— As coisas mudaram. Hoje em dia ele deve confiar em você cem por cento— resmunguei, ainda desconfiada pelo fato de estarmos expostas. PuxeiArizona para um beco ao lado de um pequeno conjunto de prédios. — Não seipor que ele fez isso, depois do modo como você agiu.

Ela se soltou de mim.

— O que você sabe, Darina? Sinceramente, quero dizer, o que você sabe deverdade?

Por onde começar?

— Sei que você não me contou sobre Kyle Keppler e Sable Jackson, nemsobre seu irmão mais novo. Como posso ajudá-la se você esconde coisas comoessas?

Ela fechou os olhos e suspirou.

— Sabe como é quando precisa proteger alguém que ama?

— Sim, você os coloca acima de tudo, em primeiro lugar. E entendo que façaisso com Raven, o pobrezinho necessita de todo o carinho que possa receber.Mas Kyle é diferente.

— Você quer dizer que ele pode cuidar de si mesmo? — ela balbuciou.

Recordei de Kyle Keppler dando um cavalo de pau com sua caminhonete,dirigindo em minha direção e, me puxando para fora do carro, eu jogada nasarjeta.

— Minha nossa, Arizona, o cara é um animal.

Encostando-se a parede de tijolos, ela olhou para mim com os olhos quasefechados.

— É isso o que o povo fala dos Rohr, Brandon e Phoenix, sabia?

— De jeito nenhum. Você não pode fazer essa comparação!

Ela me desdenhou com um daqueles seus velhos gestos de desprezo, comose estivesse espantando uma mosca.

—Dizem que Brandon só consegue resolver uma discussão usando ospunhos, e que Phoenix puxou ao irmão.

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— Você sabe que isso não é verdade.

— Mas é o que parece quando se está vendo de fora. E é disso que estamos

tratando aqui.— Você está dizendo que Kyle é igual a Phoenix? — Eu estava possessa, a

ponto de sair andando e deixar Arizona seguir seu destino Beautiful Dead enunca mais falar com ela. — Lembre-se de que Phoenix nunca me traiu.

Ela assentiu, mexendo de leve a cabeça.

— E se ele tivesse traído, você ainda o amaria?

Respirei fundo, incapaz de dar uma resposta que não quebrasse as pernas do

meu próprio argumento.

— Entenda, não se deixa de sentir algo por alguém, mesmo quando essapessoa magoa você. A gente aguenta firme e espera que vá passar.

— Mas Sable estava grávida, eles iam se casar...

— Eu sei, não precisa me dizer. Eu devia ter saído dessa situação. Eu tenteicomo pude.

Permaneci em silêncio por um longe tempo, mexendo a cabeça.

— E Kyle? Depois que você soube de toda a história sobre Sable e o bebê, eleterminou com você imediatamente?

— Ele tentou, mas se sentia do mesmo modo que eu, não conseguimos evitar.Ele se afastava por uns dias, depois me ligava de novo.

— Dizendo que ainda a amava?

Ela fez que sim.

— E então eu ia até a Mike Motores para vê-lo. Às vezes, outros caras,Brandon, Joe Jackson, estava por lá, e eu precisava inventar alguma desculpa.

Imaginei olhares safados e comentários maliciosos indo em direção aArizona.

— Sabe de uma coisa, isso não era amor, era masoquismo.

— Uma obsessão — lamentou. — Mas eu vi um lado de Kyle que você nãoacreditaria: engraçado, nada amedrontador. Ele faz palhaçadas e faz eu me

sentir melhor a meu respeito... Ele fazia — ela se corrigiu. — Ele entendeu o jeito que minha mente funcionava. Com ele eu podia ser eu mesma.

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— Isso é muito triste — disse a ela. — Você não podia ser você mesma comninguém a não ser com Kyle, agora entendi. Pelo menos, acho que entendi.

— Você consegue compreender agora por que Kyle precisa que você fiquelonge de Forest Lake? Para manter o relacionamento dele com Sable e com obebê — Arizona afirmou. — A única vez em que ele ficou bravo comigo foiquando eu apareci em sua casa.

— Que loucura. Por que você fez isso? — O velho ditado do roto falando dorasgado veio à minha mente. Quero dizer, não foi exatamente a mesma coisaque eu fiz?

— Para ficar quieta no meu carro e observar. Eu não estava pensando em irfalar com ele e Sable, só queria vê-los juntos para talvez me convencer de que jáestava tudo acabado entre mim e Kyle.

— E ele viu você?

Ela assentiu.

— Ele não me encostou um dedo nem perdeu a cabeça, mas disse paranunca, nunca mais fazer aquilo novamente. E agora eu quero pedir para quevocê me prometa a mesma coisa.

— O que exatamente? — Na minha opinião, Arizona não estava em condiçãode impor nada.

— Deixe Sable fora disso. E Kyle também.

— Mesmo sendo uma das últimas pessoas que você viu antes de acabar noHartmann?

Ela negou veementemente.

— Não tenho certeza disso. A última coisa da qual me lembro é estar indo

para o shopping de carro. Não tenho a menor ideia se consegui chegar até aMike Motores, nem se Kyle estava lá.

Desisti das perguntas, por saber que não daria para transpor o bloqueio dememória de Arizona.

— Então você está de acordo com a minha ida até a casa da sua família?

— Para fazer o quê?

Francamente, alguém pensaria que eu havia dormido com o inimigo, pelo

modo como ela reagiu.

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— Para falar com quem quer que esteja lá, com Peter. Ou talvez Frank me dêalguns novos detalhes que eu possa usar.

— Ou talvez não. — Ela riu a velha risada de Arizona, cheia de zombaria esem humor nenhum. — Conseguir informações do meu pai é pior que tirar leitede pedra.

— Eu notei. — Não tive tempo de perguntar como isso podia ser verdadeantes que uma janela acima de nós se abrisse e uma mulher pusesse a cara parafora.

— Parem com essa tagarelice a essa hora da manhã — ela gritou para nós.

Arizona e eu saímos correndo do beco como se tivéssemos sido picadas por

um enxame de vespas e voltamos para a rua.

— Então vá em frente. Fale de novo com meu avô — ela me disse, já prontapara se desmaterializar.

— Onde você estará? — perguntei.

— Por perto — ela falou. — Você não me verá, mas com certeza estarei lá.

Fui direto para a casa de Logan e bati à sua porta.

Mesmo ainda sendo somente oito da manhã, ele apareceu já todo vestido edesperto.

— Ei, Darina, tudo certo?

— Meu carro está arrebentado — disse com a voz fraca. — E, antes que vocêpergunte, não, não foi minha culpa. Uma pedra caiu do nada e amassou o capô.

—Então quer uma carona pra escola?

— Hoje não, obrigada. Mas você pode me levar até Westra? — Para fazê-lonão perguntar mais nada, inseri o que pareceria um motivo puro. — Lembra-seda mulher que caiu do cavalo? O marido dela, Peter Hall, trabalha lá.

—E você quer saber como ela está? — Logan rapidamente pegou as chaves.— Dou uma passada lá para levar você.

Sorri e sentei a seu lado. Fomos ao carro sem muita conversa, apenastranquilos e relaxados, até onde ele sabia. No final da Rua 22 Norte, pedi paraele me deixar saltar.

—Quer que espere você? — ele perguntou.

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— Não, vou voltar andando. — Dei um sorriso de agradecimento e o vi ficarcorado.

Por que é que eu não me apaixono pelos caras fáceis de levar deste mundo?  — perguntei a mim mesma e não foi a primeira vez.

Assim que Logan pôs o carro na direção de Ellerton High, andei quase umquilômetro até o número 2.850, sem conseguir evitar olhar para trás,procurando uma Arizona invisível. Que estranho — um ano após ter morrido,ela voltava para visitar sua própria casa, e eu era a única que sabia.

Virei na entrada do carro e fui em direção ao anexo do jardineiro, mas nãoandei muito antes de ver Raven sentado em seu lugar habitual no quiosque. Eletirou os olhos do caderno de desenhos para me ver e logo os abaixounovamente. Por alguns poucos segundos, ouvi numa súbita lufada de vento, areação fraca e assustada de Arizona, como um suspiro entre as sequoiaspróximas ao portão.

Peter Hall prontamente saiu do viveiro de plantas e atravessou o gramadopara me encontrar.

— Como é que Raven saiu da escola e veio parar em casa? — questionei. — Aúltima coisa que fiquei sabendo é que ele havia voltado ao Instituto.

— Graças a você, pelo que soube. — O senhor de idade me levou para longede Raven, seguindo para seu anexo. — A diretora fez uma descrição da meninaque o encontrou: alta, magra, morena de cabelo curto; e imaginamos que fossevocê.

— Você me conhece, eu gosto de passear de carro pelas montanhas — desdenhei. — Quer dizer que o tiraram da escola?

— Finalmente — Peter falou aliviado. — Acho que ele já fugiu vezes demais.Rebecca Davis e Allyson conversaram a respeito e decidiram que seria melhor

ele tirar umas férias do Instituto.Havia mais agitação entre os galhos dos pinheiros — estava sendo muito

difícil para Arizona ver o irmão e ouvir essas últimas notícias sem poder ir atélá e abraçá-lo, examinar umas imagens de Warhol com ele e fazer aqueles olhosvazios brilhar.

— Sabe de mais uma coisa? — Peter continuou. — Ontem à noite Frankenfim saiu de casa.

— Eles vão levar o divórcio adiante?

— Com certeza. Ele vai se mudar comigo e com Jenna.

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— Uau, ele não está de brincadeira... — compreendi.

Peter concordou.

— Foi como um castelo de cartas desmoronando. Raven veio para casa,Frank saiu, e hoje, pela primeira vez na vida, Allyson faltou ao trabalho.

— Ela está em casa? — Olhei alerta para a casa grande com a porta da frenteaberta e uma dúzia de janelas brilhando ao sol, mesmo com o frio que fazia. — E você, Peter? Como você e Jenna ficarão agora?

— Nós teremos de ir embora — ele disse, gesticulando para mostrar as caixasde papelão no chão. Dentro, ele havia empilhado os livros de jardinagem juntocom a chaleira e as canecas de café. — Agora que Frank saiu de cena, Allyson

não quer nem que venhamos visitar Raven; em vez disso, ela vai contratarajuda profissional para cuidar dele.

— Ela está pondo você para fora? — Quando fico chocada, tenho o péssimohábito de afirmar o óbvio.

Peter suspendeu os ombros.

— A não ser que mude de ideia — resmungou. — Mas conheço Allyson, elanunca volta atrás no que diz. O certo é que dessa vez vamos mesmo embora

daqui.* * *

— Darina, você precisa voltar lá e conversar com Raven, ajudá-lo a superarisso! — Quando me encontrei com Arizona do lado de fora dos portões da casa,ela estava um caco: tinha escutado cada detalhe da conversa entre mim e seuavô e não suportou me ver indo embora.

— Por quê? O que isso vai trazer de bom?

— Fale dos desenhos dele, tente contar a ele sobre mim, o motivo de eu nãoestar mais por perto, de como não o deixei de propósito. Não, esqueça, só diga aele que o amo.

A força do pedido dela quase me nocauteou, mas eu me lembrei de Phoenixcontanto que o cérebro autista de Raven era estruturado de um jeito diferente,portanto impossível de ser alcançado.

—Ele não vai entender — disse a ela. —Você sabe disso melhor que eu.

Arizona olhou para mim em completo desespero.

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—Tente — ela implorou. — Você sabe que é tudo o que me importa, queRaven perceba que eu teria feito qualquer coisa por ele. Ele é incrível, umgaroto especial. Diga isso a ele por mim, Darina.

— Não acho que isso seja uma boa ideia — resmunguei. Eu nem sabia seconseguiria entrar de novo no jardim sem ser vista, mas por sorte Peter tinhasumido do anexo, e também não havia, sinal de vida na casa principal.

Então entrei de volta no jardim e me esgueirei até ele, pegando-o desurpresa.

Da maneira como reagiu parecia que eu tinha apontado uma arma para acabeça dele, com uma grande sacudida percorrendo todo o seu corpo por causado choque.

— Tá tudo bem — murmurei. — Lembra de mim, Raven? A gente já seencontrou outras vezes antes.

Ele apertou o caderno de desenhos contra o peito e começou a balançar paraa frente e para trás, recusando-se a olhar para mim. Pobrezinho — magro efrágil como um pássaro, com aquele cabelo preto, brilhoso, e olhos que selançavam ora aqui, ora ali.

— Mostre-me o que você acabou de desenhar.

Mas não — ele manteve os desenhos escondidos e balançou ainda maisrápido.

— Não vou machucá-lo, sou sua amiga — tentei dizer a ele, mas não estavadando resultado. Eu não havia mentido para ele e não o havia entregado para adiretora da escola?

— Raven, eu conhecia sua irmã, Arizona.

O nome dela foi a única coisa que pôde quebrar a barreira. Falei — Arizona

— e, antes que a palavra saísse da minha boca, o menino parou de se balançar eolhou para mim sedento, querendo mais.

— É, Arizona — ela me falou de você, Raven. ―Ele faz os melhores desenhosdo mundo‖, foi o que ela disse. Você quer me mostrar o caderno? 

Ele arregalou os olhos. Desviou o olhar de mim para o caderno e, de repente,empurrou-o em minha direção.

Peguei e comecei a virar as páginas.

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— Ei, esta é sua casa e este é o quiosque, que perfeito que está. E o anexo dePeter, e esta é sua escola. — Sem demora, estávamos os dois sentados lado alado no banco do quiosque, com a cabeça abaixada vendo o caderno e passando

os dedos por cima dos desenhos. Virei mais uma página e me percebiencarando um retrato de Arizona. Era ela sem tirar nem pôr — fui atraída pelosolhos amendoados e as sobrancelhas arqueadas, o rosto longo e ovalemoldurado pelo cabelo preto com corte reto.

Raven correu o dedo indicador em volta do contorno do rosto, tocando-ocom ternura e leveza. Daí, olhou para mim com o esboço de um sorriso.

Eu estava sorrindo de volta para ele, tentando segurar as lágrimas, quandoAllyson Taylor, também conhecida como monstro em pessoa, nos interrompeu.

— Não sei quem você é, nem o que está fazendo aqui — ela disse com frieza.— Mas é melhor você sair antes que eu chame a polícia.

— Não precisa, já estou saindo — respondi. Levantei, surpresa por sentirRaven segurando a barra da minha jaqueta e não me deixando sair. Outrasurpresa foi a aparência de Allyson sem o ―rosto de televisão‖: pálida erepuxada, com o cabelo louro amarrado para trás, os cantos da boca caídos eflácidos, além de bolsas sob os olhos. — Vim ver Peter — expliquei. — Fui euquem encontrou Jenna na montanha após o acidente.

— Você conseguiu vê-lo antes que ele fosse embora? —A atenção de Allysonestava fixada na mão de Raven agarrada à minha jaqueta.

Assenti com a cabeça.

— E seu filho me mostrou os desenhos dele. Ele realmente tem talento.

— Ele gosta de desenhar. — Houve uma pausa no tom de voz frio. — Solte a jaqueta, Raven, seja bonzinho.

Ele virou a cabeça para o outro lado, mas se manteve segurando firme.

— Tá tudo bem, não tem problema.

— Solte, por favor! — Allyson abaixou-se e tentou desdobrar os dedos dele.Existia algo tão triste e desesperado naquele ato que as lágrimas vieram. — Desculpe-me — ela soluçou, dando um passo atrás e cobrindo o rosto com amão.

— Não tem problema, de verdade. Arizona falou comigo sobre o irmão dela.Eu entendo.

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— Ela falou? — Foi difícil para Allyson engolir essa informação. — Euachava que Arizona não se abria com as pessoas. Pensei que ela sofressedaquele grande mal familiar de guardar tudo dentro de si.

— Na maior parte do tempo era o que fazia — concordei. Eu estava fitando amulher que chorava, imaginando para onde teria ido o monstro em pessoa eminha suspeita número dois. — Mas algumas coisas são duras demais paraesconder.

Allyson voltou para dentro do quiosque e todos nos sentamos, Raven aindasegurando-se em mim com força. — Então, ela explicou a condição dele?

Nesse exato momento, a sensação da presença de Arizona ficou mais forte.Ouvi a voz dela repetindo por vezes a fio ―Você não vai me ver, mas comcerteza estarei lá‖. 

— Arizona disse que Raven era incrível, um garoto especial — contei aosdois. — Ela jamais iria querer abandonar Raven, porque ela o amava mais doque qualquer outra coisa no mundo.

— Não, ele não entende. — Lágrimas corriam pelas bochechas de Allyson. — Ele pensa que a irmã vai voltar. Espera por ela todos os dias.

—Talvez você entenda, Raven. Você sabe que Arizona o ama.

—E por que ela fez o que fez? — Um tom mais amargo surgiu por entre aslágrimas de Allyson. — Se ela o amava, não teria se afogado no lago.

Respirei fundo.

— Quem sabe não tenha sido assim que aconteceu?

— Claro que foi — veio a réplica defensiva. — Suicídio por afogamento. Foi oque disseram no inquérito, sem dúvida.

— E por que têm tanta certeza?

— Porque não há outro modo de olhar para o fato. — Allyson levantou amão para tirar o cabelo de Raven do rosto. — Em todo caso, existe um históricona família de Frank. Um tio estourou os miolos, e ele também tem um irmãocom transtorno bipolar.

— Desculpe-me, eu não sabia. — Num instante minha própria condição deter mãe solteira e sem dinheiro começou a parecer quase desejável.

— E, naturalmente, Frank foi afetado por isso. Você não vê muita emoçãonele, ele mantém as coisas trancadas. Mesmo quando Raven nasceu e nós

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descobrimos que alguma coisa estava errada, Frank nunca quis compartilharcomo se sentia. E eu tive de fazer todas as coisas práticas: as clínicas, os exames,os tratamentos, ele nunca foi comigo.

— Sinto muito... — falei novamente. Minha visão da conspiração dos Taylorestava mudando de novo. Toda vez que eu pensava ter encontrado algumapista para seguir — mãe hiperambiciosa que não queria desistir da carreira paracuidar do filho autista — e as pegadas pareciam firmes na areia, o ventosoprava e turvava as linhas, fazendo tudo parecer diferente.

— Frank queria motivos — Allyson suspirou. — Raven é desse jeito porcausa dos fatores genéticos? Níveis anormais de serotonina no cérebro, umvírus durante a gravidez, síndrome do X frágil, ele vasculhou tudo tentando

descobrir.— E não adiantou?

—Não. E ainda por cima Arizona fez a mesma coisa quando ficou maisvelha. Ela leu sobre todas as teorias, tal qual o pai dela.

— Ela era inteligente — lembrei-a.

— Mas esse era um fator que trazia muita briga entre nós. Ela pensava quesempre sabia as respostas — uma dieta especial, terapia cognitiva-

comportamental...

— Entendo.

— Então eu ficava como sendo a malvada, seguindo o caminho tradicional,mandando Raven para o Instituto Lindsey e, quando ele estava em casa,fazendo-o tomar o remédio para epilepsia. Brigamos muito sobre esse assuntoenquanto Frank, como era de esperar, tirava o corpo fora.

— E a deixava sozinha cuidando dos problemas práticos?

Allyson concordou.

— Você é muito nova, não tem como saber o que é ser casada, mas não teralguém com quem possa contar, alguém que lhe dê apoio. É algo que a faz ficaramarga.

Coloquei-me no lugar dela e concordei.

—Sabe de uma coisa? Logo depois de Arizona ter partido, Frank levouembora todas as fotos, além dos livros didáticos, joias, roupas, tudo relacionado

a ela.

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— O que ele fez com essas coisas?

— Guardou em caixas e as trancou no anexo, dizendo que não queria ter

lembranças. Foi assim que lidou com o fato. — Allyson inspirouprofundamente, para depois soltar os ombros para trás. — Peter lhe contou quetudo por aqui mudou? Raven deu um tempo do Instituto, ao mesmo tempo emque Frank e eu demos um tempo um do outro.

Assenti. Agora ela estava mesmo por conta própria, e isso aparecia nos seusolhos rodeados de marcas vermelhas e na boca caída. Teve um efeito que euacreditaria ser impossível meia hora antes, senti muitíssimo por Allyson Taylor.

Onde é que estava Arizona quando saí de volta para a rua?

Verifiquei ambas as direções e segui para o centro, supondo que naquelahora os Beautiful Dead já teriam chegado à Foxton e que Hunter havia dadoordens para que ela se encontrasse com eles — o que significava que eu tambémdeveria voltar para lá.

— É nessas horas que se vê como é útil possuir um superpoder — resmunguei, à medida que ia apressada. — Precisava só de uma pequenadesmaterialização agora. — Caso contrário, como chegaria até o alto da serra?

Com Brandon, era assim que iria. Ele apareceu com a Harley justo quando eu

chegava ao galpão industrial atrás do shopping.

— Kyle consertou o carro — ele me contou ao parar na beira da calçada,parecendo não acreditar que eu estivesse querendo chegar de um ponto A atéum ponto B andando com meus próprios pés.

Olhei de volta bem séria.

—Kyle? — repeti.

— Claro. E sem cobrar nada. Falei que era o mínimo que ele podia fazer.

— E ele... Ele disse alguma coisa?

— Só disse que você precisa aprender a parar de meter o nariz onde não échamada. Mas eu não perguntei nada. — Com umas batidinhas, Brandon medisse para subir no assento da garupa. — Vamos lá, você quer o carro de voltaou não?

Óbvio que queria, mas não me deixava nada feliz ir na garupa de BrandonRohr, colocar os braços ao redor da cintura dele e sentir o calor do corpo

debaixo da camiseta branca. Dava vontade de chorar.

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Passamos pelos galpões das lojas atacadistas de material elétrico, viramos àesquerda e seguimos para a Mike Motores. Brandon parou do lado de fora daoficina e me falou para esperar ao lado da Dyna enquanto ele ia lá dentro.

Alguns minutos depois ele tirou meu carro da rampa.

— Como novo — ele disse, saindo e me atirando as chaves.

Na porta da oficina, eu vi Kyle Keppler em pé, de braços cruzados e olhandoatentamente.

— Como foi que você fez isso? — cochichei com Brandon, incrédula.

— Kyle sabe que passou dos limites. Além disso, ele me deve uns favores.

— Obrigada, então — agradeci. Eu já estava entrando no carro para irembora quando Brandon pôs a mão em meu ombro e me fez parar.

— Que loucura — ele balbuciou, encarando-me nos olhos. — Jurei a meuirmão que cuidaria de você.

A mão pesada incomodou e me fez sentir todas as diferenças entre Brandon emeu Phoenix.

— Valeu — agradeci novamente. — Você está fazendo um bom trabalho.

Brandon soltou um suspiro.

—Você acha que Phoenix está vendo? De onde quer que ele esteja agora?

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Onde quer que ele esteja agora.

É como eu já disse — de vez em quando as pessoas acertam tão em cheio omeu segredo que me dá vontade de gritar. Dirigi rápido até Foxton,desesperada para ver Phoenix, olhando o estrago que a tempestade haviadeixado pelo caminho. Na área queimada perto de Turkey Shoot, árvorescarbonizadas haviam tombado e ficado atravessadas umas sobre as outras naencosta do morro, enquanto uma enxurrada de água marrom e espumanteentupia as valas. Ao virar à esquerda no cruzamento de Foxton, passeiapressada pela cabana do pescador onde Lee realizou sua derradeira partida.

No alto da serra, no ponto em que a estrada terminava, abandonei o carro ecorri pela trilha dos cervos até a caixa d´água.

Phoenix, preciso vê-lo! 

Meu coração gritava, ao passo que meu corpo era castigado pelo vento forteque tinha afastado a tempestade algumas horas antes. Vento e asas misturados,o som aumentava até parecer com uma nova tormenta assim que parei perto datorre enferrujada. Qualquer forasteiro que enfrentasse esse campo de forçainvisível com certeza teria dado meia-volta e ido embora.

Mas eu encolhi a cabeça e segurei firme a jaqueta sobre o peito para descer omorro em direção ao celeiro, de cujo telhado subia uma nuvem de vapor epingava água. Corri às cegas com a cabeça baixa e o coração aos pulos — diretopara os braços de meu namorado.

— Darina, está tudo bem — Phoenix sussurrou, com os lábios apertados noalto de minha cabeça. Daí ele levantou meu rosto, colocando a mão debaixo doqueixo até que eu olhasse em seus olhos.

— Meu Deus, fiquei com medo de que você não tivesse conseguido sair da

tempestade! — Chorei, agarrando a gola da jaqueta de couro dele como se fosseuma questão de vida ou morte.

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— Estou aqui — ele procurou amenizar — com a voz grave e intensa,esperando que eu me acalmasse. O vento soprou com força no cabelo dePhoenix, jogando-o na sua testa e, em seguida, tirando-o de seu lindo rosto.

— Lee... — balbuciei, escondendo minha cara no peito dele.

— Eu sei. Coitadinha, pobre Darina, sinto muito que você tenha visto aquilo.

— Tinha sangue e ele sentia dor. Não havia como ajudá-lo. 

— Hunter nos contou — Phoenix disse calmamente. — Lee foi atingido emcheio — a queda de um raio o pegou.

— Tentei tirá-lo da cabana — solucei. — Para que Hunter conseguisse ajudá-

lo.

— Não, já era tarde demais. Nós não sobrevivemos por muito tempo depoisde um golpe certeiro. Desfalecemos em poucas horas. — Phoenix queria fazercom que eu me sentisse melhor. Abraçou-me forte e passou a mão pelo meucabelo. — Lee estava fraco demais, a tempestade elétrica já tinha feito o trabalhodela antes de você ter chegado lá.

— É muito triste. — Gradualmente, parei de chorar e relaxei nos braços fortesde Phoenix. — Fiquei muito assustada.

— Pobre Darina — ele disse novamente, apertando-me e balançando de leveenquanto estávamos no quintal.

— Não, não é por minha causa. O que me assustou mesmo foi o pensamentode que a mesma coisa pode acontecer a qualquer um de vocês — Summer,Arizona e especialmente você, Phoenix.

Dessa vez não houve palavras de conforto. Ele me olhou nos olhos semcontestar.

— Uma tempestade pode acontecer a qualquer hora. Na noite passada, vocêestava em Ellerton comigo. Poderia ter sido com você o que aconteceu com Lee.

Phoenix concordou:

— Todos nós assumimos esse risco. É por isso que Hunter nos tira daqui emduplas ou em trios sempre que ele pode.

— Hunter... Esse cara é corajoso mesmo — confidenciei.

Phoenix sorriu.

— Então você não o odeia mais?

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— É, ainda odeio. Ele é controlador demais. — Consegui sorrir de volta paraele. — Ele me lembra o pior tipo de pai, aquele com quem você não consegueargumentar.

— Nem me fale. — Se havia alguém que conhecia bem essa característica domestre eram meu namorado e os outros membros dos Beautiful Dead. — Vocêsabia que ele está nos escutando exatamente agora?

Claro que sim.

— Onde ele está?

— Está no palheiro com os outros. E você, está pronta para se juntar a eles?— Phoenix pegou minha mão e me levou para dentro do celeiro, fechando o

ferrolho da porta atrás de nós.

Finalmente protegida do vento, e mais calma, levantei a cabeça e olhei emvolta. Cobertos de poeira, rédeas e arreios velhos pendiam dos ganchos, pás eforquilhas repousavam encostadas na parede. Teias de aranha cheias de póestendiam-se, intocadas, de uma viga a outra.

— No andar de cima — Phoenix mostrou. Mais uma vez ele conduzia ocaminho. Os degraus de madeira estalavam com o peso dele.

E lá estavam eles — Arizona, Summer, Eve e o bebê, Kori, Donna e Iceman—, os Beautiful Dead. E o mestre deles, Hunter, poderoso e de expressãosevera.

Pareciam distantes e sérios, em profundo pesar por causa de Lee.

Arizona chegou mais perto.

— Desculpe, Hunter me obrigou a ir embora mais cedo. Mas você conseguiufalar com Raven? — ela perguntou, ansiosa.

Assenti.

— Disse a ele tudo que você queria.

Ela sorveu minhas palavras como se seu último fio de esperança, delicadocom os das teias de aranha, estivesse dependendo da minha resposta.

— Como ele estava?

— Não dá para enganá-la e, de qualquer modo, você mesma o viu. Allysondisse que ele ainda espera que você volte.

Lampejos de pânico passaram pelo rosto de Arizona.

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— Allyson? — ela repetiu.

— Ela apareceu e confirmou que não quer mesmo mais as visitas de seus

avós. Está decidida pela opção de pagar alguém para que tome conta dele.— Meu Deus, ela não pode fazer isso! — Minha resposta deixou Arizona em

parafuso. — Raven precisa da família perto dele.

— Sinto muito. Mas, para mim, Allyson não reagiu da maneira como euesperava. — Tentei desfazer o pânico. — Ela liga, sim, para Raven, mais do queeu pensava.

— É, ela liga o suficiente para colocá-lo naquela escola! Ela liga o bastantepara não ver coisas dietas e toxinas, nem terapias modernas!

— Não foi isso o que ouvi dela — era tudo o que podia dizer, virando-mepara Hunter, que havia chegado. — Nada é bem assim quando se vê de fora.

— Inclusive Arizona — o mestre ressaltou. — Você nunca imaginou que elasofresse o tanto que sofre.

— É verdade. Escute, Arizona, eu não vou abandonar Raven, em hipótesealguma.

— Jura? — Ela se agarrou a essa promessa como se fosse um colete salva-vidas jogado a um náufrago. — Você será uma ligação com o passado dele. Nãovai deixar que ele me esqueça?

— Prometo. Ele sabia seu nome e é isso que me liga a você. Fiz o que vocêpediu, disse a ele que você o amava.

Acho que nessa hora Arizona teria realizado feliz a partida definitiva. Elaestava como queria estar — sabendo que no futuro eu cuidaria de Raven, queele entenderia um pouco e que ela teria feito tudo o que pôde. Acreditosinceramente que ela não se importava sobre como havia morrido, nem o que

aconteceria consigo mesma agora.

Mas os Beautiful Dead tinham a missão de ir até o fundo do mistério, eHunter era o cara no comando.

— Temos menos de vinte e quatro horas — ele nos recordou. — Ainda estáparecendo que foi um suicídio, a menos que Darina possa trazer algo novo.

Todos olharam para mim.

— Vamos nos mexer. — Summer quebrou o clima tenso. — O que temos,Darina? Temos um namorado que está por um fio, se Sable descobrir o caso

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dele com Arizona. Temos a família Taylor que, de tão envolvida com brigas ediscussões, não consegue nem pensar direito.

— Além disso, avós que cuidam, mas não podem chegar perto demais — acrescentei. — E um irmãozinho que fugiu da escola na mesma manhã em queArizona se afogou.

— E eu — Arizona nos lembrou. — Uma garota maluca e confusa, semfamília ou amigos com quem possa conversar. Talvez seja isso, não resisti àpressão e pulei no lago, como disseram.

Summer fez algo que nunca eu tinha visto antes: ela ficou brava.

— Você não acredita de verdade nessa história! — ela gritou, partindo para

cima de Arizona. — Você é uma lutadora, você não se rende.

Arizona balançou a cabeça.

— Talvez eu tenha me rendido, apenas desta única vez.

— Não acredito. — Concordei com Summer. — Ainda que o problema comKyle não tivesse solução e a atingisse, você não desistiria de Raven. Não,alguém mais está envolvido, e você esta bloqueando essa memória, como se otrauma fosse forte demais.

— Então você deveria voltar para Ellerton, Darina — Hunter interrompeu. — Phoenix pode ir com você. Se decidir se encontrar cara a cara com Kyle Kepplere perguntar onde exatamente ele estava e quem ele viu no dia em que Arizonamorreu, Phoenix vai tomar conta de você.

Se Kyle viesse com violência, Phoenix poderia acabar com ele novamenteusando seus superpoderes. Ele conseguiria me tirar de qualquer perigo em queeu me metesse. Eu sabia também que essa era uma tática que Hunter jamaisaprovaria, a não ser numa emergência. O tempo era tão curto que deixava todosagoniados, e as questões principais ainda permaneciam sem resposta.

Virei-me na direção de Phoenix e vi que ele estava temeroso por mim.

— Ei, pelo menos a gente vai passar outra noite juntos — brinquei.

Arizona não aprovou meu senso de humor.

— Você não vai conseguir respostas de Kyle — ela ainda insistia. — Não temcomo ele estar envolvido.

Não acreditávamos nela — nosso silêncio dizia tudo.

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Estávamos no palheiro e com a guarda baixa, senão teríamos ouvido asmotos se reunindo perto da Pedra do Anjo.

Vindo de Forest Lake em cima de suas Harleys e Kawasakis para caçarfantasmas, havia um grupo de caras valentões que tinham ouvido as falasdesconexas de um velho pescador que havia voltado da cabana dele com umahistória confusa sobre um rapaz pego pela tempestade, que se afogou no riachoe cujo cadáver que sangrava brilhou e desapareceu na sua frente.

Num primeiro momento eles riram do velho maluco, daí tomaram algumascervejas. Um pouco depois, alguém sugeriu subir lá e dar mais uma olhada.

— Iceman, suba lá! — Hunter deu a ordem quando enfim escutou o barulhodos motores. — Donna, você vai com ele. Montem uma barreira, não deixemninguém passar.

As ordens vieram rapidamente e aos montes. Ele falou para Summer, Eve eArizona darem a volta por trás dos motoqueiros e depois se aproximarem peladireção do pico Amos.

— Vamos espremê-los por todos os lados — ele explicou. — Vamosamontoar todos juntos e empurrá-los pela serra no sentido de Foxton. Façam oque tiveram de fazer! — Ele disse para que Phoenix e eu não saíssemos da casaaté que a barra estivesse limpa. — Vão! — ele ordenou, quase empurrando a

gente escada abaixo. — Tranquem a porta por dentro.

Obedecemos, cruzando o quintal enquanto os Beautiful Dead espalhavam-sepelo morro e desapareciam entre os choupos à medida que caía a noite.Moviam-se silenciosos e velozes como sombras.

— Hunter está com um olhar esquisito — Phoenix me contou quandoentramos na casa. —Ele está tão bravo que não colocou vigias. Agora estamostodos em perigo.

— Até Hunter se engana de vez em quando — resignei-me. Eu me sentiasegura na casa, mesmo que as paredes fossem apenas troncos serrados semmuito acabamento e o ferrolho da porta estivesse enferrujado. Estava feliz porHunter ter escolhido Phoenix para ficar e cuidar de mim.

— Você precisa me contar o que está acontecendo na Pedra do Anjo — insisti.

Phoenix ouviu com cuidado.

—Donna e Iceman estão posicionados. Os motoqueiros estão conversando

entre si.

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— Você consegue ouvi-los? — Pessoalmente, eu só conseguia escutar sonsnaturais, como o vento farfalhando no capim seco, a brisa movimentando asfolhas de outono dos choupos. — Sabemos quem está por lá?

— Posso dizer quantos, mas não quem são. Iceman está dizendo que podemser doze ou treze. Ele e Donna estão começando a conduzi-los pela encosta.Arizona e os outros logo estarão atrás deles, aumentando a pressão.

— Tomara que saiam sem briga — tive um calafrio. Eu já não me sentia maistão confortável agora que tinha escurecido, sabendo que não poderíamosacender nem um lampião para não denunciarmos nossa presença. Ficamossentados no escuro, esperando.

— Está dando certo, eles estão indo embora — Phoenix anunciou. — Depoisdas barreiras montadas eles já não continuam tão valentes.

Visualizei o desespero entre os motoqueiros, crescendo de um nervosismoinquieto, quando as asas invisíveis começariam a bater, até chegar a espasmosde medo na hora em que as caveiras iniciariam o ataque, para depois viraraquela loucura irracional. Por conta de todas as bravatas regadas à base decerveja eles se deitariam sobre os guidões, ligariam os motores e dariam o foradali.

— Dois se separaram do grupo — Phoenix disse, preocupado. Ele foi até a

 janela para olhar para a encosta. — Está escutando esse barulho? Eles estãovindo nesta direção.

— Você tem certeza?

— Iceman está vindo atrás deles. Agora você consegue ouvi-los, nãoconsegue?

Ao lado de Phoenix na janela, escutei com muita atenção até ouvir ozumbido de dois motores. Olhei para o alto de morro escuro com o coração

quase saindo pela boca.— A situação é grave — Phoenix decidiu. —Eles estão bem à frente de

Iceman, acho que ele não vai alcançá-los.

De repente, duas luzes brilhantes apareceram na encosta, e os feixesmergulharam nas baixadas, depois subiam varrendo o céu.

— O que vamos fazer? — perguntei.

— Você fica aqui esperando. Eu vou ajudar Iceman.

— Mas Hunter disse para você ficar aqui!

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— Não, você, mas você tem de ficar escondida — ele insistiu. — Mantenha aporta trancada. Você vai ficar bem. — Phoenix soltou o ferrolho e saiu para avaranda. — Feche a porta, Darina!

Rangi os dentes e forcei o ferrolho de volta no lugar. Permaneci com o ombroencostado na porta, os olhos fechados e mal conseguindo respirar. As duasmotos rasgavam o vale com os faróis amarelos invadindo a escuridão.

No quintal, Phoenix pensou numa maneira de detê-los. Ele pegou um rolo dearame farpado que estava ao lado do celeiro, segurou-o acima da cabeça e o

 jogou no caminho do motoqueiro que estava mais perto. O piloto freou ederrapou, desviando bruscamente para cima do que vinha atrás. As duas motoscolidiram, e ambos caíram ao chão. Pela janela encardida, vi os dois

aterrissarem na terra. Em seguida, Iceman juntou-se a Phoenix próximo aoceleiro.

Dois Beautiful Dead contra dois motoqueiros desmiolados de Forest Lake — não deveria haver nenhuma dificuldade. Esperei Phoenix e Iceman seaproximar e pegar os dois caras como se fossem sacos de lixo, apagar sua mentee mandá-los para casa com a cabeça doendo.

Mas não foi o que aconteceu. Pela luz fraca de um dos faróis vi um dosmotoqueiros lutar para ficar em pé e fugir para a casa. Enquanto isso, ocamarada dele havia enlouquecido completamente. Ele pegou o rolo de arame

farpado e o atirou de volta em Iceman e Phoenix. O arame desenrolou-se aospés deles como uma serpente, fazendo uma espiral mortal. O primeiro caraagora tropeçava na varanda, recostando-se na parede para recuperar o fôlego.Olhei-o de perto e reconheci os traços, mesmo no escuro. Era Kyle Keppler — quem mais poderia ser?

Uma nova onda de pânico tomou conta de mim, e fiquei com as pernasbambas. Phoenix e Iceman estavam encurralados, o cara que eu suspeitava termatado Arizona estava a menos de um metro, vindo do choque de ter sido

 jogado para fora da moto e procurando uma arma para usar contra seus

agressores. Ele pegou um machado de cabo comprido que estava encostado àparede.

— Phoenix! — Gritei para avisar de dentro da casa. Meu rosto na janela, paraquem quisesse ver.

Keppler ouviu e viu. Em vez de correr em direção ao inimigo original, elesubitamente meteu o machado na porta, levantando-o e baixando-o,estilhaçando a madeira e quebrando o vidro em milhares de pedaços. Outrogolpe destruiu o ferrolho, e a porta se abriu.

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—Aqui, Jonno, pegue isso! — ele gritou para o segundo cara e lançou a armacomo se fosse uma machadinha indígena.

 Jonno... Jon... Jon Jackson, o cunhado inseparável de Kyle. Jackson agarrou omachado e empurrou Phoenix e Iceman para o celeiro.

O que me deixou sozinha encarando Kyle Keppler no escuro. O terror meparalisou e não consegui sair do lugar. Na minha cabeça eu estava morta, semdúvida.

— Acabou, menina. Você já cruzou meu caminho vezes demais. — Eleimpediu a saída pela porta, seus pés esmigalhando o vidro quebrado. — O quequer que esteja acontecendo aqui, você está bem no meio da coisa.

— Não está acontecendo nada aqui — protestei. — Eu e alguns garotos deEllerton High... A gente vem aqui de vez em quando.

Caí por cima do fogão quando Kyle avançou sobre mim. Ele segurou meupulso e me jogou de volta para o meio da sala.

— E estes são os mesmos garotos que jogaram arame farpado do quintal?Eles vão se arrepender de terem feito isso.

Fechei os olhos e rezei para que Jon Jackson não fosse tão bom com o

machado quanto Kyle foi. Phoenix e Iceman cuidariam dele cedo ou tarde, maslevaria algum tempo.

— O que é que acontece mesmo por aqui? — Ainda segurando meu pulso,Keppler me fez sentar na cadeira ao lado da mesa. — Ouvi dizer que um garotose afogou no riacho ontem à noite. Quem era ele? Cadê o corpo?

— Não sei, não me pergunte! — Quando Kyle levantou a mão eu me encolhitoda. Eu estaria morta de verdade se Phoenix não aparecesse logo. — Arizonacostumava vir aqui — contei a ele.

Falar o nome dela serviu como pausa. O punho levantado não desceu comviolência.

—Ninguém sabia deste lugar aqui naquela época. Ela gostava do silêncio.

— Arizona esteve aqui? — Keppler tentava processar a informação enquantoolhava o cômodo antigo. Notei que dessa vez ele não tentou negar orelacionamento. — Quando foi isso? Ela não me falou.

—Típico dela: ela gostava de guardar segredos — fiz questão de lembrar.

— Mas ela contou para você?

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— A gente conversava bastante.

— Sobre mim?

Fiz que sim.

— Ela dizia que o amava. Ela tentou terminar, só que não foi forte osuficiente para isso.

Um meio sorriso de descrença surgiu no rosto de Kyle.

— Estamos falando da mesma garota? Eu nunca conheci alguém mais forteque Arizona.

— Por fora — concordei. — Você não faz ideia de quanto ela estava magoadapor dentro.

Ele olhou por um bom tempo para mim na sala iluminada pela lua,transformando meu último comentário em uma dura crítica a ele mesmo.

— Ela fez a escolha dela — retrucou.

Fui de encontro ao olhar dele.

— Ela tinha dezessete anos.

Alguma coisa deu um clique em seu cérebro, e ele voltou a ser o psicótico,chegando tão perto de mim que pude sentir seu hálito na minha cara.

— O que você sabe? — ele rosnou, inconscientemente repetindo a ex-namorada. — O que você sabe de verdade?

Hunter nos encontrou assim — cara a cara, eu indefesa e Kyle Keppler meempurrando da cadeira da cozinha, prestes a bater as costas da mão no meurosto. O mestre entrou para o grande número da noite. Em um instante ele tirou

toda a força de Kyle até ele ficar mais fraco que um bebê, fazendo-o cambalear ecair de joelhos. Outro golpe com a mente fez Kyle se espichar todo, agarrando acabeça e gritando de dor. Hunter continuou em cima dele — calmo e impassível— escutando os gemidos.

— Não saia deste cômodo — ele me disse em voz baixa.

Eu estava pensando em sair correndo para o quintal, e Hunter sabia disso.

— Phoenix e Iceman já cuidaram de Jackson — ele me falou. —Ele já estáindo embora daqui.

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Era verdade — ouvi o ronco de um motor de Harley e vi um facho de luzsolitário cortando o morro.

— Você falou com Keppler a respeito de Arizona — Hunter ressaltou. — Foiarriscado.

— Eu tinha de dizer alguma coisa. Ele estava possesso. Achei que fosse mematar.

Hunter piscou e virou seus olhos frios e acinzentados para mim.

—Você precisa confiar em mim, Darina. Keppler não é uma coisa com a qualeu não possa lidar.

— Mas eu não sabia onde estava! — chorei. — Pensei que você estivesse naencosta com os outros.

— Estou em todos os lugares — ele disse, ao mesmo tempo em que arrastavaKeppler para perto dos pés e mandava mais um torpedo de hipnose zumbi paraa mente dele. — Venho quando precisam de mim.

Na sequência ele atirou Keppler no quintal, onde Phoenix e Icemancolocavam o arremedo de um homem saído de uma lavagem cerebral na moto eindicavam o alto do morro.

—Então, obrigada — relaxei — uma palavra que não dava para representartodo o drama da situação, eu sabia.

Hunter estava virado de costas, parado perto da porta assistindo à saída deKeppler.

— Esse é o lugar, aí onde você está agora — ele me disse, como se tivesseolhos na nuca. A voz dele ficou vaga e distante. —Enrole o tapete, Darina.

— O que você quer dizer? — Fiquei olhando o chão e o tapete estampado e

desbotado.

— Foi aí que eu caí. Enrole o tapete.

Agachei-me e levantei a ponta do tapete até ver uma mancha escura nastábuas de madeira — parecia preta à luz da lua, mas foi, sem dúvida, vermelho-sangue por todos aqueles anos.

— Meu sangue — Hunter confirmou. — Mentone atirou em mim, e eu caíbem aí.

Tremi.

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Por que me contar isso agora?

Os gestos de Hunter eram lentos, como se estivesse em transe.

— Marie estava em pé ali, perto do fogão. Estava em choque, paralisada peloque tinha acontecido. Mentone sacou a arma e atirou.

Ele acertou você na cabeça, a bala atravessou o crânio — eu sei!

— Não falei sobre isso com ninguém — Hunter disse com a voz cansada. — Ano após ano eu volto. Já vi a justiça ser feita para outros dos Beautiful Dead,em muitas ocasiões. E cada vez que uma alma é libertada, sei que meu trabalhofoi feito.

— Não entendo por que está me dizendo isso agora. — Hunter parecia terfeito o tempo parar. Eu estava presa na cápsula da memória dele, lutando parasair.

Ele se virou para me ver, prendendo-me naquele olhar poderoso.

— O que há com você, Darina? —ele perguntou. —Digo a mim mesmo quevocê nem se parece com ela.

— Com Marie? — Eu me esforçava para respirar, presa como um inseto numalfinete.

E daí que lembro sua esposa? Não faça isso comigo! 

— Ela era uma boa mulher, simples e feliz, sem sombras escuras dentro dacabeça, não como você. Marie era cheia de vida. Ela se vestia muito bem.

— Desculpe se você não gosta do jeito que eu me visto — resmunguei. — Ascoisas eram diferentes naquela época.

Foi como se eu nem tivesse falado.

— E aí eu olho nos seus olhos e eles são os mesmos — ele suspirou. —Asmemórias dolorosas voltam todas. Não me dão descanso.

— Como é que você não conseguiu justiça para você mesmo? — questionei.— Você ajuda os Beautiful Dead, mas nunca a si próprio.

Ele se concentrou ainda mais no meu rosto.

—Nunca vai acontecer... Eu nunca encontrarei a paz.

— Um dia, quem sabe — falei, sem acreditar nem esperar que ele o fizesse.

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totalmente o controle. Talvez tivesse uma ferramenta ou algo pesado na mão.Lutamos. Ele me acerta, por acidente, ou de propósito. Eu caio no chão.

— Pare com isso! — implorei. Parecia que Arizona tinha chegado tão pertodo limite que era capaz que ela caísse no abismo da loucura e nunca maisrecuperasse a sanidade.

— Você nunca me perguntou sobre minha marca mortal, não é, Darina?Devo mostrá-la para você? Você gostaria de vê-la?

— Não. Pare. Se você não lembra o que aconteceu, então você não lembra...Desculpe-me, não quis pressioná-la tanto.

— Marca mortal! — ela insistiu com um olhar quase tão poderoso quanto o

de Hunter. Senti minha força de vontade se esvair. —Espera-se que ela esteja nomeu peito, mostrando que eu caí na água e me afoguei. — Ela passou os longosdedos na parte superior do corpo esbelto. — Mas não está aqui, pode acreditar.

—Onde, então? — Percebi que ela me mostraria, eu querendo ou não.

Lentamente, ela levantou os braços, tirou os longos cabelos das costas e ostorceu como se fossem um corte de seda preta, daí virou-se para que eu pudessever o pescoço. A pele era branca, cada vértebra visível e vulnerável.

— Está vendo? — ela sussurrou.Vi a tatuagem de asa de anjo abrigada entre dois ossos do pescoço dela,

escura em contraste com a pele clara, muito delicada e toda definida.

— Sim — respondi. — Você não se afogou no lago. Você quebrou o pescoço— foi isso o que matou você.

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Quando cheguei em casa, Laura já nem tinha mais vontade de brigar comigo.

Ela estava com o conhecido olhar de mágoa — Certo, não sou nada além de suamãe. Não estou esperando que você demonstre nenhuma consideração ou respeito.

— Peço desculpas... É que não vi a hora — despistei, tentando fugir para oquarto.

— Jim ligou — ela me disse — Ele sofreu um acidente. O pneu estourou, e elederrapou para fora da pista.

A notícia funcionou como um freio para mim.

— Ele está bem?

Ela fez que sim.

— O carro foi rebocado. Ele vai passar a noite num hotel de beira de estrada.

— E você  está bem? — Era claro que não, ela estava pálida, com os olhosvermelhos de tanto chorar.

— Qual é o problema com essa família e os carros? — ela lamentou. — Qual é

o problema com essa família, afinal?— Veja dessa forma: graças a Deus ele não se machucou. — A essa hora eu já

teria dado bastante tempo para Phoenix subir pela janela do meu quarto, e Jimter sofrido um pequeno acidente de trânsito não estava na minha lista deprioridades. — Durma um pouco. De manhã estará tudo bem.

— Onde você esteve, Darina? — Ela parecia irritada. — Não me diga que foina casa de Jordan ou na de Hannah, pois já conferi.

—Na casa de Logan — falei para ela e subi correndo a escada. Eu sabia que

ela não havia ligado na casa dele para não ter de falar com o pai de Logan,bêbado como de costume.

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Phoenix estava lá, esperando.

Tê-lo no meu quarto, enchendo o espaço com sua linda presença era o

paraíso. Nunca vou poder dizer quanto ele é lindo, como ele ilumina minhaalma toda vez que o vejo, nem como me sinto segura com ele por perto mesmohavendo perigo à nossa volta. Caí nos seus braços.

Phoenix me abraçou — sou o centro do mundo dele, assim como ele é ocentro do meu. Fazemos parte um do outro — ninguém pode nos separar.

Deitamos juntos na cama, imersos naquele momento, felizes apesar de todasas coisas. Seu rosto estava tão perto, tão macio — os cílios escuros faziamsombra nos olhos pálidos e acinzentados, os lábios suaves na minha bochecha.

— No que você está pensando? — ele perguntou após um silêncio muitolongo.

— Em nada. Só em como isto aqui é perfeito.

— Finalmente conseguimos parar o mundo e descer?

— Acho que sim. Estamos no fundo do espaço sideral, flutuando entre osplanetas. É escuro e silencioso, ninguém pode nos alcançar.

— Não sente como se o tempo tivesse parado?

Respondi que sim com a cabeça e o beijei, começando de leve para depois melevantar sobre ele e mergulhar num abraço mais forte e apaixonado.

Foi Phoenix quem se afastou primeiro.

— Eu a amo tanto que até dói — contou, jogando as pernas para o lado defora da cama e sentando-se curvado para a frente. — Dói termos tão poucotempo juntos e que eu não tenha livre-arbítrio.

— Hunter está vigiando você? — perguntei, já sentada ao lado dele.— Sempre.

— Ele voltou a falar de Marie — disse a Phoenix pegando sua mão ecolocando a palma pequena da minha sob a dele, bem maior. — Agora hápouco, ele me fez olhar para uma velha mancha de sangue no chão. Ele meconfidenciou sua própria história.

— Porque você o faz lembrar-se da esposa. — Phoenix entendeuimediatamente. — Depois de três ou quatro gerações, ele enxerga Marie em

você.

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— Ele diz que são os meus olhos. —Recordar da intensidade da conversa meencheu de tremores mais uma vez. — Hunter me assusta, Phoenix. Mas em umcantinho dentro de mim, sinto pena dele.

Phoenix sorriu.

— Ele não precisa da sua piedade, pode acreditar.

— Quem sabe eu investigue a história dele um dia. Quando eu tiver umtempo, depois de ter resolvido o mistério de Arizona. — E os Beautiful Deadterem ido para longe do mundo dos vivos para poder descansar e se recuperar.— O caso de homicídio de Peter Mentone deve estar arquivado em um jornalvelho de algum lugar. Eu poderia procurar nos arquivos da biblioteca, ou noescritório do jornal. Eles guardam coisas assim, não guardam?

— Acho que guardam. — Nesse exato momento, Phoenix não estava tãointeressado nos detalhes da história de Hunter, por isso nos trouxe de volta aopresente. — Quando Arizona enfim mostrou para você a marca mortal dela, oque você pensou?

— Fiquei chocada. — Ela havia levantado o cabelo pesado e me mostrado apequena tatuagem das asas de anjo. Uma atitude que parecia ter posto o destinodela nas minhas mãos de uma vez por todas. — Estou pensando. Será que foimesmo um acidente, no fim das contas?

— E não um suicídio?

— É possível. As margens do Hartmann são bem irregulares e cheias depedras. Talvez ela tenha escorregado e caído.

— Mas, de qualquer modo, por que ela estaria lá? — Phoenix virou minhamão para que repousasse sobre a dele. Enquanto falava, ele traçava com oindicador as linhas da palma da minha mão — a linha do coração cruzando alinha da vida. — Arizona não andaria tanto, nunca foi de fazer trilhas, e lembre-

se de que também não havia carro nenhum no local.— Alguém a levou até lá de carona? E mesmo se tivesse sido um acidente, se

Arizona tivesse caído e batido a cabeça em uma pedra, a outra pessoa nãomergulharia para salvá-la?

— Pois é. E por que não pediram ajuda? Você sabia que foram duas pessoasfazendo trilha que acharam o corpo dela flutuando no lago?

Fiquei sentada e quieta por um tempo.

— Tá, pense nessa hipótese — falei por fim. — Arizona vai desesperada verKyle na Mike Motores, num humor enlouquecido, e usa a desculpa de consertar

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o carro. Ele fica com medo de ela falar demais na frente de Mike Hamill, entãocombina de encontrá-la no Hartmann de carro naquela manhã. O lago fica bemlonge da cidade, ninguém os veria lá.

Phoenix pegou a história.

— Eles se encontram e tudo vai por água abaixo. Arizona perde o controle eameaça Kyle. Ela jura que vai impedi-lo de se casar com Sable. Sabemos que eletem um temperamento brutal, ele bate, ela tropeça, cai e bate a cabeça tão forteque quebra o pescoço.

Esse raciocínio fazia muito sentido.

— Kyle fica com medo — continuei. — Ele não sabe se Arizona está viva ou

morta, mas percebe que está enfrentando o maior problema da vida dele:explicar o que aconteceu a Arizona. O lago é fundo, ele acredita que esse possaser o único modo de resolver o problema. Daí, levanta Arizona da pedra e a

 joga dentro do lago.

Cada detalhe parecia se encaixar no lugar certo, agora que estávamosdizendo em voz alta. Foi completamente convincente para nós.

Phoenix concordou.

— Aí Kyle vai embora. Ele não precisa de um álibi, poucas pessoas sabem daconexão dele com a garota que morreu. A reação dele é de espanto, como a detodo mundo quando o corpo é descoberto. Mais tarde, no inquérito, ouve-seque Arizona era solitária, que estava deprimida. Dão o veredicto de suicídio.Não há buracos na história nem há uma contestação por parte da famíliachocada e retraída. Tudo em seu lugar.

— Toda a cidade está abalada por ser a segunda morte em poucas semanas.Primeiro Jonas, depois Arizona. Eu me lembro bem, foi quando o pessoalcomeçou a acreditar que havia uma maldição pesando sobre os jovens de

Ellerton. Ninguém conseguia pensar com clareza. Estávamos todos assustados.— Kyle escapa. — Phoenix coloca no lugar a peça que faltava.

— Pelo menos é o que ele pensa — acrescentei. — Mas ele não sabe sobre osBeautiful Dead.

Sentamos juntos, admirando a nossa versão bem-acabada dos fatos. Fiqueimais determinada que nunca a extrair a verdade de Kyle Keppler.

— Quanto tempo falta para o amanhecer? — perguntei a Phoenix. — Quanto

tempo ainda temos até a hora de ir para Forest Lake?

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Ele olhou para a lua e as estrelas.

— Tempo suficiente para você dormir — foi a resposta. — Vou ficar aqui

vigiando, agora descanse.Foi espantoso, mas eu dormi. Phoenix segurou minha mão e não a soltou até

eu levantar com o primeiro raio do sol que surgia, vermelho e dourado, sobre asmontanhas do leste. Abri os olhos, e a primeira coisa que vi foi a luz cálidaresplandecendo em seu rosto maravilhoso.

— É agora ou nunca — ele me lembrou, como se precisasse.

Saímos da casa como dois ladrões, descendo pela janela do quarto e pulandono carro. Sem dar a partida, tirei o carro da garagem e só fui virar a chave na

ignição quando já estávamos longe da casa, indo para a Centennial e para arodovia mais adiante.

— Esqueça a Estrada do pico, pegue a estrada alternativa para Forest Lake — Phoenix sugeriu. — Assim cortamos alguns quilômetros do nosso caminho.

— Sim, senhor! — As ruas estavam completamente vazias, e eu estava comos nervos à flor da pele, porque essa era nossa última chance de resolver asituação de Arizona. Pela primeira vez, a imagem de Kyle Keppler não meassustava, pois eu tinha Phoenix sentado ao meu lado. Precisamos chegar a

Forest Lake antes que Kyle saia para o trabalho.

— E dessa vez não vamos nos preocupar se Sable vir você — decidiu. — Vamos pressionar esse cara até o fim, ele vai confessar.

— Você também vai? — quis confirmar.

— Estarei lá o tempo todo. Agora pise fundo. Rápido, Darina!

Passamos por entre montanhas escuras contornadas por uma luz vermelha edourada, pela estrada de terra levantando uma nuvem de poeira, sem nenhum

carro à vista.

Phoenix usava óculos escuros sentado ao meu lado, com o corte redondo dagola da camiseta fazendo um forte contraste ao V da jaqueta de courosemiaberta. Liguei o rádio e escutei uma música sertaneja do Oeste cantandosobre dizer um último adeus a quem se ama. A morte cruel vem e leva a garota.―Diga adeus, Marianna está de partida, Diga adeus, Marianna foi embora‖. Aspalavras ―partida‖ e ―foi embora‖, repetidas tantas vezes no refrão, batiam forteno meu coração.

Então chegamos a Forest Lake, a cidade caipira que tenta viver da suahistória, mal conseguindo se arrastar para dentro do século XXI.

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Pequenas casas de madeira margeavam a rodovia, carros batidos ecaminhões estacionados a seu lado. As cortinas ainda estavam fechadas, umcervo vagava fora da floresta e pastava nas rampas de gramados desgastados. A

única luz da cidade que estava acesa ficava embaixo do toldo do restauranteonde tomei um café e observei o cachorro malhado de marrom e branco.

— Estamos indo para a White Eagle Road — falei para Phoenix já tensa esegurando o volante com força. Tentei não pensar muito no que aconteceriapara não perder a estribeira.

— Cuidado! Você passou no sinal vermelho! — ele avisou.

Para falar a verdade, eu nem vi nada. Agora já estávamos na rua certa,procurando a caminhonete de Kyle parada do lado de fora do número 505.

— Acha que é esta aqui. — Apontei para a casa com a cerca feia e a gramaalta. Mas não havia caminhonete, nem cachorros, nem um sinal de vida.

— Ninguém em casa. — Phoenix examinou a casa deteriorada. — Comopode ser? Onde estão Sable e o bebê?

— Espere aqui. Vou lá bater na porta — disse a ele com o estômagoborbulhando à medida que entrava no terreno. Procurei o carrinho de bebê,talvez uma roupa secando no varal, mas não encontrei. Bati com o nó dos dedos

no vidro da porta, chamando a atenção de um cachorro no quintal do vizinho,só que de dentro do número 505 ninguém apareceu.

O labrador do vizinho pôs as patas sobre a cerca de madeira e pulou até queeu visse o focinho preto pontudo e os dentes arreganhados.

— Pelo amor de Deus, Troy, pare com esse barulho! — falou uma voz, e umamulher com cara de intrometida apareceu na cerca. — O que você quer? — elaperguntou, não muito mais amigável que o cachorro.

— Vim ver Kyle — disse a ela. — É esta casa aqui, não?

— Não está — a mulher grunhiu. — É só olhar, não precisa ser muitoesperta.

A vizinha dos Keppler foi até a entrada da garagem dela e esperou que eume juntasse a ela. — Quem é ele, seu namorado? — ela quis saber, dando umaolhada em Phoenix, que tinha levantado a gola da jaqueta e olhava para o outrolado.

Confirmei.

— Aonde foram Kyle e Sable?

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— Por que eu ia saber? — A mulher estava desconfiada, e o cachorrocontinuava rosnando no quintal. — Quanto mais tempo ficarem longe, mais euvou gostar. Talvez aí eu tenha um pouco de paz.

Fiz um esforço para parecer simpática.

— Festeiros, né?

— Bebem muito — reclamou. — Bebida demais com uma criança pequenapara cuidar, não é certo.

— Fazem muito barulho?

— Gritam o tempo inteiro. — A mulher magra de cabelo descolorido ergueu

os olhos para o céu. — Os cachorros latem e a criança chora a noite inteira. Anoite passada foi a pior de todas... Pare com isso, Troy, estou tentandoconversar!

O labrador corpulento nem tomou conhecimento do pedido. Resistibravamente à trilha sonora dos latidos em alto volume.

— E então... Noite passada? — instiguei.

— Kyle chegou tarde em casa, completamente bêbado como sempre. O irmãodela apareceu também, tão fora de si que não conseguia andar em linha reta.

— Jon Jackson?

— Esse mesmo. Eles são camaradas de bebedeira e Deus sabe do que mais.

Eu podia ter dito a ela o motivo pelo qual eles chegaram bêbados na noitepassada — para voltar de Foxton eles tiveram que passar em pelo menos trêsbares. Uma cerveja para anestesiar as dores de cabeça e do resto do corpo, outrapara acalmar os pensamentos doidos a respeito de fantasmas e cadáveres.Porém, seria necessário mais que duas para superar aquilo que Hunter, Phoenix

e Iceman tinham feito a eles. Portanto, ficaram para a terceira e a quarta.

— Fica na varanda dos fundos com o cachorro, então escuto tudo. — Amulher finalmente tinha a chance de desabafar. Parecia que havia dormidopouco e estava feliz de ter encontrado alguém que a escutasse. — Kyle tropeçouem alguma coisa jogada no quintal. Ficou bravo, resmungou, os cãescomeçaram a latir, o bebê acordou e começou a chorar. Sable já estava de sacocheio, não é flor que se cheire, pode acreditar, e deu uma dura nele. O irmãodela defendeu Kyle. Pouco depois, a Terceira Guerra Mundial estourou a vintemetros de onde estou sentada.

— Espero que ninguém tenha se machucado — interrompi.

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Dessa vez Phoenix não me deixou ir sozinha. Em vez disso, ele se concentrouno truque do desaparecimento, criando aquela aura luminosa ao redor de todoo corpo e, gradualmente, sumiu até ficar invisível.

— Estou bem do seu lado — prometeu.

Foi muito esquisito ouvir a voz e o som dos passos dele subindo a rampacomigo e ainda conseguir enxergar através dele.

— Ei — falei para um cara mais velho inclinado sobre o motor de umaToyota azul. — Nós estamos... Eu estou procurando Kyle Keppler.

— Então somos dois. — Mike Hamill saiu de debaixo do capô e seendireitou. — Se você o vir antes de mim, pode dizer que ele não precisa mais

voltar, porque este emprego ele já não tem mais.

Engasguei, tossindo ao inalar o cheiro de diesel junto com óleo de motor.

— Você o mandou embora? Desde quando?

— Desde as oito da manhã, quando ele não apareceu para trabalhar. — Avoz de Hamill era monótona, dando a impressão de que Kyle já tinha passadodos limites por vezes demais. — Ele teve as chances dele, mas dessa vez jogoutudo para o alto.

— Ele tem família — observei. — O que vai acontecer a eles se Kyle nãoconseguir voltar ao trabalho?

Mike Hamill pegou um pedaço de estopa sujo de cima de um tambor de óleoe limpou as mãos. Ele tinha um bigode grande e escuro que o deixava maisvelho e não combinava com as sobrancelhas e o cabelo grisalho. A calça jeansfolgada e manchada fazia par com a camisa xadrez repuxada na altura dabarriga flácida.

— Olhe — ele me disse — sei que isso não é da sua conta, mas a família de

Kyle é o motivo pelo qual o mantive aqui por tanto tempo. Minha mulher émuito amiga da mãe de Sable, as duas me pressionaram para que eucontinuasse com ele no emprego, blá-blá-blá, sabe como são as mulheres. Alémdisso, quando está sóbrio ele sabe consertar um motor de carro como ninguém.

— E alguém sabe onde ele está agora? — O relógio estava correndo, e osumiço de Kyle foi mais um contratempo.

— Acho que dormindo e curtindo a maior ressaca. — Mike levantou o boné ecoçou a testa com as costas da mão. — Estão dizendo que ontem à noite a

bebedeira dele ficou fora de controle de novo. Minha mulher soube que Sablefez as malas e foi embora de uma vez por todas.

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Fiz uma bela cena.

— Meu Deus, que horror! A vida dele está sendo destruída!

— Um cara que bebe e apronta por aí assim, não dá outra. — Mike entrounuma salinha de escritório e sentou em uma cadeira giratória. Pegou o telefonee já ia discando.

— Quando você fala ―apronta por aí‖, você está querendo dizer com outrasmulheres, no plural? — Dessa vez eu estava chocada de verdade, nem preciseifingir.

— Pelo menos meia dúzia — ele disse, apertando os olhos ao imaginar porque eu estaria tão interessada no ex-empregado da oficina. — Olhe, querida, se

você é a atual encrenca de Kyle, saiba que é a última de uma fila comprida.Com o passar dos anos, Keppler fez a festa com quase toda a cidade de Ellerton.

— Eu não sou a última de nada... Eu não tenho nada a ver com ele! — Vamosesclarecer as coisas! Respirei fundo e tentei arrancar mais informações: — Então,mesmo depois de Sable ele continuou aprontando por aí?

Mike assobiou por entre os dentes.

— Mulher e filho não mudam um cara como Kyle, só que Sable não quis

saber disso. Minha mulher, Karen, tentou avisá-la que ele estava pulando acerca, um ano, um ano e meio atrás.

O dedo grosso apertava as teclas dos números no telefone. Tive tempo paraapenas mais uma pergunta.

— Na mesma época em que Kyle estava com Arizona Taylor?

O dedo de Mike não terminou de discar. Ele olhou para mim sob assobrancelhas, cheio de desconfiança.

— A menina que se afogou?

Confirmei.

— É, mesma época — ele falou vagarosamente.

— Ela era minha amiga.

Mike assobiou daquele jeito de novo.

— Bem, fico sentido por ela, era nova demais. Você ou quem quer que se

importe com ela devia ter dito que Kyle era uma fria.

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— Eu não soube da ligação entre eles até que fosse tarde demais.

Ele voltou um ano e meio atrás no tempo, lembrando-se de Arizona.

— Coitada, ela poderia ter arranjado coisa melhor que Kyle Keppler.Lembro-me das vezes em que vinha até aqui tentando se fazer de durona. Naverdade, ela não era.

— Ela veio aqui na oficina no dia em que se afogou no lago?

O dedo de Mike preparou-se para discar novamente.

— Ela veio vários dias e, sim, ligou na manhã daquele dia. Ela ficou umpouco descontrolada quando descobriu que Kyle não estava aqui. Imagino que

estivesse sarando da ressaca e da dor de cabeça de costume.

— Ele faltou ao trabalho? — Eu precisava ter mais que certeza.

— É. Por sorte eu não estava ocupado aquele dia. Mais tarde ficamossabendo da notícia da menina Arizona.

— Valeu — agradeci, deixando o ar sair do meu pulmão num longo suspiro.

— Não era isso que queria ouvir, não é? — Mike Hamill era um cara corretoe percebeu minha clara expressão de decepção. Mas ele errou feio quando mepôs no mesmo saco que Arizona, na categoria das traídas. — Kyle é bonitão epega qualquer garota que quiser, mas é melhor você terminar isso aí que temcom ele.

— Eu não...

— Sinceramente, querida, ele não vale a pena. Não dá pra confiar no caranem quando ele lhe diz que horas são.

O fato era que já passava das dez horas do nosso último dia, e não estávamos

nem perto de achar Kyle. Virei para onde achava que Phoenix estivesse e disse aele que não tínhamos chegado a lugar nenhum.

Ele respondeu de um ponto bem mais à frente.

— Aprendemos muita coisa com Mike Hamill — ele salientou. — Paracomeçar, sabemos que Kyle e Arizona não tinham combinado de se encontrarno Hartmann.

— Então estamos muito pior do que ter chegado a lugar nenhum — resmunguei. — Só tínhamos essa única teoria, que agora foi por água abaixo.

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Um homem que passava por ali me viu falando aparentemente sozinhaenquanto entrava no carro. Ele me lançou um olhar estranho e pegou o celular.

Ao ouvir Phoenix sentar no banco do passageiro, saí dirigindo com pressa.— Preferia não ter sabido que Kyle é um traidor compulsivo.

— É, é uma droga.

Ambos ficamos pensando no que essa notícia faria a Arizona.

— Devemos contar pra ela? — perguntei.

— É difícil dizer. Acho que não precisamos falar, a menos que faça parte da

solução do caso.— Que não estamos nem perto de descobrir — A frustração me perturbava

enquanto dirigia em direção ao centro da cidade sem saber o motivo.

— Keppler pode estar em qualquer canto. Como vamos encurralá-lo se nemsabemos onde ele está?

Parei em um semáforo vermelho de travessia para pedestres. Entre aspessoas que atravessavam, estava uma mulher empurrando um carrinho debebê. Demorei alguns segundos para reconhecê-la como sendo Sable Keppler eo bebê!

— Encoste o carro — Phoenix disse, depois de ter tido a mesma reação lentaque tive.

Entrei em um posto de gasolina, e observamos Sable encontrar-se com umamulher que parecia uma versão mais velha dela própria — o mesmo cabeloescuro e a linha de contorno do rosto bem definida. Pequenas e magras, ambasvestiam jeans apertados e jaquetas largas que chamavam atenção para as pernasfinas como gambitos, além de echarpes listradas em volta do pescoço.

 Juntaram-se na calçada, firmemente engajadas na conversa.

— Quero ouvir o que estão dizendo. — Decidida a me arriscar saindo docarro, atravessei a rua como se fosse conferir a vitrine de uma loja. Um barulhode couro rangendo e passos leves indicavam que Phoenix vinha comigo.

A loja vendia varas de pescar, que são tão fascinantes quanto se podeimaginar. Tentei parecer interessada nos carretéis e iscas artificiais.

— Comprei fraldas descartáveis. — A mulher que imaginei ser a mãe deSable carregava uma sacola plástica. — Precisamos do que mais?

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— Deixei a tigelinha e a caneca preferidas de Mischa lá na casa. — Sable fezuma lista. — Além disso, preciso de lenços umedecidos e chupetas.

— Tá, então nos encontramos na farmácia a caminho de casa. Podemoscomprar isso tudo lá. Kyle tentou ligar?

— Cinco ou seis vezes. Deixei tocar até parar.

— Cedo ou tarde você vai ter que falar com ele. — A mãe de Sable pegou ocarrinho e começou a empurrá-lo para o estacionamento. Preso dentro docarrinho, o bebê se contorcia para ver se Sable estava indo com eles.

— Hoje não — Sable teimou, pegando o celular do bolso e desligando-o.

Esperei que andassem um pouco mais e passei a segui-las. Era muito ruimestar testemunhando a destruição da família de Kyle, até este momento aesposa e o bebê não pareciam reais. Mas aí estava Sable, o rosto corado porcausa do vento frio, a boca fazendo uma curva para baixo. E o bebezinho tinhaum nome — Mischa. Era uma menininha linda de cabelo escuro e cacheado.

— Escute, Sable, liguei para seu irmão — a mãe de Sable admitiu quandochegaram ao carro.

— Você não deveria ter feito isso. — Sable ficou brava. Tirou Mischa do

carrinho e a prendeu na cadeirinha do carro, para depois dobrar o carrinho commuita força e arremessá-lo no porta-malas.

— Eu estava preocupada com ele. — A mulher mais velha ficou segurando aporta do motorista, tentando justificar seus atos. — Se ele estava fora de si detão bêbado como você disse, ele poderia ter batido a moto, saído da estrada,qualquer coisa assim.

— E você acha que eu dou a mínima? — Sable inclinou-se para conferir aspresilhas da cadeirinha de Mischa. — Jon e Kyle são iguais.

— Mas Sable, Jon é seu irmão e ele a ama. Ele queria conversar com você. Eudisse a ele para vir até a cidade.

— Você não contou a ele onde estou, contou? — Sable afastou-se do carro e,em seguida, voltou a toda. — Escute aqui, mãe, eu não quero conversar com

 Jon, nem agora, nem nunca mais. Ele pode ser meu irmão, mas é um fracassado,tá entendido?

— Filhinha, escute...

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— Não, escute você. Quer que eu veja seu filho? Tá certo, você fica aqui e euvou falar com ele. Mas você vai me dar a chave do carro e me deixar dirigir. — Sable apanhou a chave e entrou no carro.

A mãe dela tentou pôr a cabeça pela janela.

— Onde eu encontro você?

Sable respirou fundo e procurou se acalmar.

— Mischa está cansada. Vou levá-la para sua casa e fazê-la dormir. Para ondemais eu iria?

E o que mais Phoenix e eu poderíamos fazer senão seguir Sable? Corremos

de volta para o carro e saímos a tempo de ver Sable entrando numa rua menorque levava à rodovia. Aqui, na Rua Daler, as casas eram um pouco afastadas davia e bem espaçadas entre si, um pouco maiores e mais ajeitadas que na WhiteEagle Road. Algumas tinham sido pintadas em tons pastel de azul e amarelo,com as varandas brancas e flores crescendo nos jardins. Sable parou na garagemde uma casa de cumeeira cinza que precisava de reforma.

Encostei o carro na calçada e observei Sable tirar o bebê do carro, ouvindo oscachorros latir de dentro da casa.

— Isso aqui está uma balbúrdia — lamentei.Ao meu lado, Phoenix materializou-se num círculo luminoso. Ele aparentava

estar tenso e com dúvidas.

— Está complicado — concordou. — Essas pessoas, Sable e Mischa, nãomerecem ter a vida destruída.

— Por nós. — Vislumbrei o que acontecia a essa família se nós provássemosque Kyle havia matado Arizona. Daí, tentei olhar por outro ângulo. — Ei, eles jáestão fazendo um bom trabalho em destruir a própria vida.

— E Arizona merece justiça. — Phoenix também conseguiu enxergar deoutro modo. — Então vamos em frente?

Assenti.

— Vamos descobrir quem levou Arizona ao Hartmann e por quê.

Os acontecimentos se desenrolaram assim: Jon Jackson encontrou a mãe nocentro pouco depois de Sable ter saído com Mischa e não demorou muito paradescobrir onde a irmã estava. Cinco minutos depois da chegada de Sable à casada mãe, Jon apareceu na Softtail preta e lustrosa.

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Phoenix e eu continuávamos no carro discutindo estratégias.

Vimos Jon ir direto à porta da frente e gritar por Sable. Como não teve

resposta, ele invadiu a casa. Depois de alguns segundos ele, Sable e doispastores alemães surgiram na varanda da frente da casa.

Meu carro não estava parado perto o suficiente para que eu escutasse aquiloque os irmãos estavam falando, por isso fiquei dependendo de Phoenix.

— Ela disse que não quer falar com ele — ele relatou. — Ela está dizendopara ele dar o fora.

Assisti a Sable encarar o irmão assustador dela bem de perto. Ele era morenocomo ela, com sobrancelhas grossas e uma boca carrancuda. A altura dela só

chegava à do peito dele, no qual ela batia os dedos a cada palavra que dizia.

— Ela está dizendo a ele que a história dela e de Kyle já terminou. Ele estápedindo outra chance. Tem também um monte de xingamentos das duaspartes.

— Vou até mais perto da casa?

— Um pouco. Agora Jon disse que está do lado dela, mais do que ela podeimaginar.

— O que isso significa? — Pude perceber que havia uma relação intensaentre os irmãos e, agora mais perto, tive condições de ouvir por mim mesma.

— Kyle fez algumas coisas, sabemos disso — Jon insistiu. — Mas eleaprendeu a lição.

Sable deu uma risada cínica.

— Então o episódio da noite passada, você chama aquilo de aprender umalição?

— Fomos até Foxton com um monte de caras — Jon tentou explicar. — Vocêacredita em fantasmas, Sable? Não, eu também não acreditava até ver o que vilá naquela serra. Você ouviu os boatos sobre os garotos mortos voltarem paraassombrar o lugar? É tudo verdade.

— A verdade da cachaça! — ela zombou e o jogou para fora da varanda. — Bem, você e Kyle, os dois podem detonar a cabeça e fantasiar sobre fantasmas oquanto quiserem. Vá embora agora, Jon, e diga a Kyle para não aparecer maisaqui.

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Tarde demais — já tinha havido comunicação entre Jon e Kyle, que veioroncando o motor da Dyna pela Rua Daler no momento em que Sable dizia afala da ―verdade da cachaça‖. 

A aparição me deixou pregada no banco de couro creme do carro onde euestava e fez Phoenix realizar mais uma vez seu ato de desaparecimento.

Claro que Kyle Keppler me viu e quase arrancou a porta do carro. Ele nãogritou — só me lançou um olhar de completo ódio e falou calmamente para queeu saísse do carro, o que foi mais assustador para mim do que a violência típica.

Os cachorros se aproximaram da cerca, rosnando. Na porta da frente, Sableesmurrava o peito do irmão.

Permaneci no limite entre a grama alta e o cascalho, tremendo de medo.

— Qual é a parada? — Kyle perguntou, pegando-me pelo pulso e puxando-me pela rua.

Atrás de nós, ouviam-se os passos de Phoenix pela grama seca. Nossos pésesmagavam as pedrinhas.

— Você está pensando em contar para minha esposa sobre mim e a garotamorta? Porque se você abrir a boca e disser esse nome, você é quem vai estar

morta.— Por que eu contaria? — Usei toda a minha força para tentar me soltar dele,

a pele do pulso queimava pelo esforço. — Arizona já partiu. Nada vai mudarisso.

— Então pare de meter o nariz onde não é chamada. — Por fim, ele mesoltou. — Você está prestes a dar meia-volta e entrar no carro. Eu estou prestesa pedir desculpa a Sable e continuar com minha vida.

A arrogância dele me deixou com raiva.

— Vai precisar de muito mais que desculpas — disse a ele. — Além disso,você perdeu o emprego. Mike Hamill falou para avisá-lo.

Alguns nervos saltaram da mandíbula de Keppler. Ele fechou os olhos einclinou a cabeça para trás. Mais um segundo e eu acho que ele teria mesurrado com aquele punho descomunal.

Mas Jon Jackson interveio, carregando uma espingarda. Ele mirou bem emmim.

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Encarei o cano longo e pensei tranquila: Então é assim que vai ser . Meusúltimos instantes alongando-se em câmera lenta: a grama amarela mexendo nabeira da rua, um avião deixando um rastro branco no céu de um azul muito

vivo.

Quando Phoenix, Hunter e Arizona materializaram-se de repente, pensei:Então... Agora não, não desse jeito.

Hunter andou entre mim e Jackson, pegou o cano da arma e o inclinou numângulo de quarenta e cinco graus.

 Jackson e Kyle partiram em disparada para cima de Hunter, mas Phoenixderrubou os dois. Eles se espatifaram na grama seca, e a espingarda caiu fora doalcance deles.

Olhei para Arizona. A decepção que havia nos olhos dela vendo seu amorespichado no chão era profunda como o oceano.

— Não consegui nada dele — choraminguei. — Eu tentei, vocês têm deacreditar.

— Então Keppler escolheu o caminho mais difícil. Ele vai viajar no tempo — Hunter falou severamente. — Não pense que chegamos ao fim da linha,Arizona. Ainda há uma coisa que podemos fazer.

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Quando se viaja no tempo a dor é indescritível — muito maior que aquelacausada pela lavagem cerebral zumbi usada para apagar a memória.

Uma energia opressora nos invade e torce todos os músculos e tendões. Ador se concentra entre as espáduas, uma sensação de que estamos sendoqueimados e rasgados até olharmos para trás e vermos nosso lindo par de asasde anjo que se abrem, fecham e sentem o vento roçar nas penas branquíssimas.

Hunter, eu, Arizona, Kyle e Jon Jackson viajamos até exatamente um ano esete dias atrás para rever a verdade por trás do mistério sobre a morte deArizona.

Poder-se-ia dizer que voamos pelo ar tempestuoso, exceto pelo fato de quehá uma força que rodopia tragando-nos, um tipo de túnel do tempo que nossuga tanto a ponto de as asas não funcionarem até que se saia do outro lado eestejamos de volta ao momento decisivo no lago Hartmann, flutuando acima dosolo e assistindo aos atos.

O Hartmann durante o outono — nossa última trincheira, o derradeiro

ataque em busca da verdade. O chão continuava congelado, apesar de passardo meio-dia e uma camada fina de gelo se formar na superfície da água.

E a água — com clareza e suavidades deslumbrantes — estava de um azul-esverdeado sem fim. Na margem mais distante, um morro coberto de chouposdourados se elevava até a vereda de pedras. Eu sei, tudo podia estar numfolheto de agência de viagens.

Visite as intocadas Montanhas Rochosas. Veja a Natureza em todo o seu esplendor .

E agora calcule o poder de Hunter, mantendo-nos a todos dentro de umafenda no tempo e fazendo-nos testemunhas oculares dos acontecimentos.

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— Esta é a última vez — Kyle diz a ela. — Estou prestes a me casar comminha namorada, então vamos ter esta única conversa antes disso e ponto final.

Arizona está sofrendo. Está muito branca e com profundas olheiras escuras.— Está me escutando? — Kyle segura o braço dela e a puxa da caminhonete.

— Não me ligue mais, não chegue perto da Mike Motores, entendido?

— Quem falou para você? — A voz fraca dela pertence a outra pessoa, não àArizona orgulhosa e cheia de brios que eu conhecia.

— Eu sei e pronto!

Entre o grupo de observadores invisíveis com asas de anjo, Kyle e Jon

entraram em pânico e tiveram vontade de se libertar. Viraram em direção aolago na tentativa de voar, só que Hunter, usando uma tempestade de asasinvisíveis para segurá-los, não deixou.

— Então foi para isso que você me chamou, para me trazer aqui e dizer quenão quer mais me ver? —Era a Arizona antes de ser zumbi argumentando pelaúltima vez. — Não acredito em você, Kyle. Já tentou antes, mas eu sei que nãoconsegue me largar.

Voltando ao meu ponto de vista privilegiado o que se podia ver? Duas

figuras pequenas e uma caminhonete vermelha no vazio da mata, a geadaoutonal nas árvores e um cara prestes a perder o controle.

— É melhor acreditar em mim, Arizona, vou me casar com Sable. Eu e você,nós nos divertimos, mas acabou.

A Arizona vive reage como se ele tivesse lhe dado um tapa na cara.

— Nos divertimos? — Ela não consegue entender a expressão. — É isso o quefui para você? E o que me diz das coisas pessoas que me contou, sobre você sersolitário, um garoto perdido que passava dias inteiros aqui à beira do lago

sozinho, sobre não se adequar, detestar a família e a necessidade de se libertar?

Kyle dá de ombros.

— Era verdade.

— E para onde foi esse cara que eu amava? De onde veio esse outro que nãoentendo? — Ela faz uma tentativa de colocar os braços ao redor do pescoçodele, mas ele a afasta.

— Tudo mudou — resmunga. —Temos que seguir adiante.

— E se eu disser não? O que acontece se eu falar com Sable?

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Ao meu lado, a Arizona com asas de anjo cobre o rosto de vergonha.

Foi o que faltava para Kyle se descontrolar.

— Tente, Arizona, e você vai morrer.

 Morrer  — cai como uma pedra dentro d’água, em ondas crescentes.  

— Você não pode me impedir — ela contesta. — Sou uma pessoa. Tenhodireitos como todo mundo. Você não pode me trancar num armário como se eununca tivesse existido.

Ele é cruel — absolutamente cruel.

— Você nunca existiu para mim, no fundo, não — revela com desdém. — Comparada a alguém de verdade como Sable, que fala a minha língua, você nãoé nada, só uma criança mimada que chora para conseguir as coisas do seu jeito.Quando é que você precisou levantar um dedo para ter aquilo que quis?

— Você acha isso? — Pelo menos ela devolve a agressão. — Você imaginaque eu estalo os dedos e as pessoas vêm correndo? Ah, você me conhece emuito!

— Uma criancinha rica e mimada, tão cheia de si que não dá para acreditar.— Ele a empurra para longe da caminhonete, saindo debaixo das sequoiassombrias. Agora eles estão num penhasco rochoso que avança sobre o lago. — Espere até ver quem eu trouxe comigo, aí você vai saber que estou falandosério.

Outra tempestade de asas me disse que Kyle e Jon estavam lutando comHunter novamente sem conseguir escapar. Ele os segurou bem onde estavam eos forçou a olhar para baixo, para o que acontecia havia um ano.

— Estamos sozinhos aqui — Arizona exclama, olhando em voltadescontroladamente. — O que quer dizer? Quem você trouxe?

— Certo, Jon — Kyle fala, mantendo a voz totalmente impassível. —Está nahora.

E Jon Jackson, vestido com uma camiseta preta e calça jeans, sai de trás deuma rocha. Ele não está sozinho, tem Raven consigo.

O irmão desnorteado de Arizona não tem ideia de onde esteja nem domotivo de estar ali. Está apavorado. A Arizona viva está tão aturdida que nãoemite som algum. A Arizona Beautiful Dead tapa a boca com a mão,

horrorizada como um pequeno animal diante de um predador que dá tapinhasna presa antes de desembainhar as garras.

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Raven encolhe-se indefeso ao lado de Jackson.

— Fácil, né? — Jackson vangloria-se. — Eu o encontrei perto do lago na

escola, não havia ninguém por perto. Colocá-lo na minha caminhonete não foidifícil, ele não pesa mais que trinta quilos.

Arizona corre em direção ao irmão. Ela só consegue dar alguns passos antesque Kyle obstrua seu caminho. Ela tropeça e escorrega para perto da borda dopenhasco.

Raven a vê e faz sua própria investida para chegar a ela, antes de serinterceptado por Jackson.

— Eu confiei em você. Por que fui fazer isso? — Arizona está em pedaços por

causa do choque, do medo e da desilusão. Kyle continua em pé perto dela. — Nunca na minha vida eu falei de Raven para quem quer que fosse, a não servocê. Kyle, não faça isso com ele, solte-o.

Raven luta contra Jackson. Ele é fraco e sem coordenação, braços e pernassem muito controle. Jamais na minha vida vi algo tão triste — nunca mesmo.

— Solte-o! — Arizona grita.

O pânico dela chega até Raven. Ele bate os braços franzinos no peito de

 Jackson. Por um segundo penso que ele vai conseguir escapar, mas aí Jacksonfaz com que ele se vire e segura os bracinhos atrás das costas do menino,levantando-o antes de jogá-lo no chão ao pé de uma árvore.

Kyle parece não gostar dessa violência que se instala. Ele vira as costas e dáum passo.

Então é a vez de Jackson incrementar as ameaças:

— Chegue a um quilômetro de distância da minha irmã e isso vai acontecerde novo — ele avisa Arizona, apontando para Raven com o polegar e indo para

perto dela. — Posso apanhá-lo na escola a qualquer hora e fazer o que quisercom ele, está ouvindo?

— Ei, eu disse para soltá-lo — Arizona implora.

Raven segura os joelhos junto ao peito e começa a balançar para frente e paratrás.

 Jackson permanece entre Arizona e o irmão.

— Não até você jurar que não vai se aproximar de Kyle ou da minha irmã.

Ela sacode a cabeça desesperadamente.

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Mas consegue agarrar uma muda de choupo e se segurar. Depois deconseguir se apoiar, ele surge outra vez na beirada da pedra e avança contraArizona, que tenta chutá-lo de volta para onde estava. Ela usa os pés para

atacar, completamente ensandecida. Não é uma disputa justa — Jackson temquase o dobro do tamanho e da força dela.

Ele a empurra, apertando-a contra o tronco da árvore onde Raven haviaficado encolhido e apavorado. É quase possível ouvir sua falta de ar à medidaque ele a esmaga na superfície áspera. Ela levanta os braços para se defenderdele, mas ele logo põe as mãos no pescoço dela e a sacode como uma boneca depano, batendo Arizona na árvore uma, duas, três vezes. Ela para de se debater,ele a solta e a vê escorregar até o chão.

Arizona fica lá estendida por uns cinco segundos, uma eternidade. Jacksonhesita, inclina-se sobre ela como se procurasse sinais de vida e, como não osencontra, dá um passo atrás. Ele olha por cima do ombro, perguntando-seaonde Kyle e Raven teriam ido. Não há nem vestígio deles. Ele cutuca o corpode Arizona com o pé, e ela não reage.

Ela continua deitada de costas sobre uma pedra de granito, a cabeça fazendoum ângulo e os braços abertos.

Então, do mesmo modo que um caçador que abateu um cervo faria, Jacksonlevanta Arizona e a joga por cima dos ombros, carregando-a até a beira da

rocha. Ele inclina o tronco para frente e a deixa escorregar e cair não muitolonge da encosta da laje natural e o corpo vai batendo na pedra durante adescida até mergulhar no lago fazendo barulho.

Talvez o contato com a água gelada a tenha reanimado. Por um curtomomento Arizona volta à vida, mexe os braços e se esforça para chegar àmargem. Ela não se entrega à morte sem lutar.

Agora Jackson está na água — ela pula de cima da pedra já conseguindopegar Arizona. Facilmente, ele a domina e a arrasta para longe do raso,

parecendo um monstro negro do mar que se eleva das águas, com o cabeloescorrido para trás e grudado no crânio, e as mãos na garganta de Arizona. Elesegura o rosto dela debaixo d’água até que não reste vida nenhuma em se ucorpo. Ele a mantém lá até que esteja morta.

Em seguida, a criatura obscura se arrasta até a areia. Mais pelo meio do lago,o corpo de Arizona sobe à superfície — os braços esticados e o cabelo longobrotando do rosto alvo como se fossem algas. Os olhos sem expressão fitam océu.

Estávamos errados. Todos nós estávamos errados, o tempo todo. Arizonanão se matou, e tampouco havia sido Kyle Keppler. Hunter, o mestre, mantinha

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o culpado na cena do crime usando a força do seu pensamento. Ele nos davaum tempo que parecia não ter fim para encararmos Jon Jackson.

Kyle desfez o silêncio.— Você me disse que tinha sido um acidente.

 Jackson negou.

— Você acreditou no que quis acreditar.

— Você me disse claramente que Arizona caiu e bateu a cabeça.

— Que diferença faz? O seu problema desapareceu, fim de papo. — Se

 Jackson sentia remorso pelo que fez, conseguia esconder bem. — Eu tirei vocêde lá sem que ninguém nos visse, não foi? Fui eu quem salvou sua pele.

Eu ainda observava o cadáver de Arizona boiando, a superfície brilhante dolago e seu olhar morto.

A Arizona Beautiful Dead estava ao meu lado. Vimos o Kyle de o anopassado surgir do meio das árvores com Raven e assistimos à sua reação dechoque quando enxergou o corpo no lago.

— Você a matou — o Kyle com asas de anjo disse com a voz sem emoçãoalguma.

— Preparem-se para partir — Hunter falou a todos. — Já vimos o queprecisávamos ver.

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Viajamos mais rápido do que se pode imaginar, impulsionados pelo vento eflutuando entre milhões de asas. Rodamos em um túnel do tempo, sentimos ovazio do olhar de incontáveis crânios girando no escuro sobre nós. Arizona nosguiou em nossa volta ao presente, ao mato que beirava a Rua Daler.

— Qual é a parada? — Kyle perguntou, pegando-me pelo pulso e puxando-me pelarua. — Você está pensando em contar para minha mulher sobre mim e a menina morta?Porque se você abrir a boca e disser esse nome, você é quem vai estar morta.

— Por que eu contaria? — Usei toda a minha força para tentar me soltar dele — a pele do pulso queimava pelo esforço. — Arizona já partiu. Nada vai mudar isso.

— Então pare de meter o nariz onde não é chamada. — Por fim, ele me soltou. — Você está prestes a dar meia-volta e entrar no carro. Eu estou prestes a pedir desculpa aSable e continuar com minha vida.

 A arrogância dele me deixou com raiva.

— Vai precisar de muito mais que desculpas — disse a ele. — Além disso, você 

 perdeu o emprego. Mike Hamill falou para avisá-lo. Alguns nervos saltaram da mandíbula de Keppler. Ele fechou os olhos e inclinou a

cabeça para trás. Mais um segundo e eu acho que ele teria me surrado com aquele punhodescomunal.

 Mas Jon Jackson interveio, carregando uma espingarda. Mirou bem em mim. Encareio cano longo e pensei tranquila: Então é assim que vai ser. Meus últimos instantesalongando-se em câmera lenta: a grama amarela mexendo na beira da rua, um aviãodeixando um rastro branco no céu de um azul muito vivo.

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Sabendo o que o cunhado havia feito no Hartmann, Kyle parou entre mim e Jackson, segurou a arma com força e a arrancou das mãos dele, virando aespingarda ao contrário e apertando o cano contra o peito do cunhado.

— Kyle, não faça isso. Não acredito em você! — Jackson engasgou. Mas eleestava com medo, dava para ver e até sentir o cheiro do medo, como dizem quedá.

Keppler foi empurrando-o pela rua, com a arma ainda no peito. Huntermanteve Arizona e eu imóveis onde estávamos.

— Kyle, você viu como Arizona agiu, ela parecia um bicho selvagem. O quemais eu podia fazer?

É horrível ouvir um cara implorando pela própria vida e não sentircompaixão nenhuma. Admito que eu também queria que Kyle puxasse ogatilho.

— Você disse que ela se afogou. — Kyle não escutava Jackson, ele ainda tinhana cabeça as imagens do cunhado batendo Arizona contra a árvore, carregando-a até a beira do lago e jogando-a dentro d’água — para primeiro bater naspedras e depois afundar.

— Aconteceu assim — eu não planejei nada. Nós dois levamos o menino

para a cidade e o largamos lá sem que ninguém nos visse, não foi?Conseguimos escapar.

Sabe Deus como deve ser a sensação de vazio e impotência quando se tem oaço mortal pressionado ao coração, as palavras saírem da boca sabendo que sãosó um desperdício daquele último fôlego.

Kyle estava de costas para mim, Hunter e Arizona. Não vimos o rosto delequando apertou o gatilho. O som fez a vizinhança sair às portas, parando otrânsito que ia e vinha da rodovia.

De certo modo, o tiro deu um fim a tudo. De outro, não.

Pessoalmente, nunca vou me esquecer do estouro que saiu da espingarda efoi capaz de fazer os carros parar, e do jeito que ele ecoou por toda Rua Daler.Está bem vivo na minha mente e na de todos que o ouviram.

 Jon Jackson cambaleou, os joelhos dobraram e ele caiu sobre as costas.Keppler jogou a arma de lado.

Qualquer pessoa que visse acharia bizarra a reação seguinte do assassino.

Via-se que ele se contorcia como se sentisse dor, balançava em pé para frente epara trás e tentava virar-se num esforço de fugir da cena, mas percebia-se

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também que suas pernas não respondiam e a expressão do rosto dele estavacongelada numa máscara de agonia. Ele girou sobre o próprio eixo e quase caiusobre o homem morto, mas recuperou o equilíbrio a tempo.

Apenas Arizona, Phoenix e eu sabíamos que aquilo era trabalho de Hunter.Vimos como ele apagava a memória da sua vítima sobre a viagem ao lagoHartmann para um ano e sete dias atrás no tempo.

Agora ele nunca saberia por que atirou em Jackson. Não é uma loucura?

Os psiquiatras descreveriam a situação como uma raiva imensurável,possivelmente alimentada pelo abuso do álcool e uma rusga secreta com

 Jackson que Kyle se recusava a revelar. Poderiam tachá-lo de psicótico — incapaz de reconhecer as consequências de seus atos — e oferecer-lhetratamento psiquiátrico enquanto estivesse cumprindo pena.

As sirenes soaram. Arizona, Hunter, Phoenix e eu ainda tínhamos nossasasas. Levitamos sobre as casas, assistindo aos policiais registrar o flagrante elevar Keppler embora.

Hunter permitiu que Arizona fizesse uma última visita a seu querido Raven.

Ele nos transportou — ela e eu — da Rua Daler até a casa estilo  MountainLiving dos Taylor, para que Arizona pudesse ver por ela mesma que tudo se

encaminhava.

Fui eu quem bateu à porta do número 2.850 da Rua 22 Norte, já sem asas ecom Arizona invisível na minha cola.

Para minha surpresa, Peter Hall foi quem me fez entrar.

— Como foi que deixaram você voltar? — perguntei.

— Um milagre. Allyson sofreu uma profunda transformação em seussentimentos. — Ele cruzou o longo lobby comigo, ostentando um sorriso

amarelo. — Frank também está aqui. Além disso, as fotografias de Arizona nãoestão mais guardadas.

De fato, o rosto incrivelmente fotogênico dela aparecia em molduras de açoescovado, e um retrato em tamanho natural estava pendurado em cima dalareira.

Durante seus últimos instantes na Terra, minha amiga Beautiful Deadrespirava ofegante e andava silenciosamente atrás de mim.

— E então, eles vão mesmo vender a casa e se mudar? — quis saber.

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 Justamente nesse momento, Allyson e Frank surgiram da sala de música. Eugostaria de falar que também ali havia acontecido uma transformação — queestavam felizes e relaxados, com sorrisos calorosos e uma luz acolhedora nos

olhos. Mas não — ambos pareciam exaustos, sem forças, indecisos e confusos.

Allyson deu continuidade ao assunto.

— Tudo está sendo discutido — ela me disse. — A casa, nosso casamento,tudo.

Pelo menos eles estavam conversando — e, para mim, isso era outro milagre.

— Raven é nosso foco — Allyson insistiu. — Ele já passou por muita coisa.Sentimos que devemos dar a ele mais estabilidade, seguir a rotina dele, cercá-lo

de objetos familiares.

— E de gente — Frank acrescentou. — Minha esposa disse que você veiovisitá-lo e que ele parece ter formado um tipo de vínculo.

Allyson esboçou um sorriso.

— Literalmente — ela recordou. — Raven segurou a jaqueta de Darina, e nãohavia nada que o fizesse soltar.

— Por isso, ficaremos contentes se quiser aparecer sempre que tiver vontadede nos visitar. — Frank nos conduziu até o fundo da casa, a um grande jardimtodo arborizado que tinha uma vista fenomenal, bem distante do pico Amos.

Olhei para Raven sentado à sombra de um choupo com a jaqueta azul-escurafechada até o queixo. Por um segundo, fiquei nervosa ao sentir Arizona sair domeu lado e ir em direção a ele.

Ela deve ter tocado o rosto dele. Vi ele levar a mão na bochecha e tentar tiraralguma coisa — uma, duas, três vezes.

— Raven, a amiga de Arizona veio vê-lo — Allyson falou para ele.

Ele piscou e virou a cabeça em movimentos convulsivos em minha direção.Demorou um pouco, mas ele me ligou a um lugar da sua memória onde euparecia fazer sentido. Ele se levantou e veio até mim.

— Ei — eu disse.

Ele piscou novamente. Num movimento lento, colocou a mão no bolso etirou um pedaço de papel dobrado com muito cuidado para me dar.

Desdobrei o papel. Veja, quis falar para Arizona —  é o retrato que ele fez devocê! Segurei o desenho com as mãos tremendo.

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Nossa, como se agitaram e sacudiram aquelas folhas de choupo — o suspirode Arizona parecia ser o de um coração realmente partido. Pelo menos elasoube que os pais não estavam a ponto de trancar o irmão num lugar qualquer

e jogar a chave fora.

Daí Raven nos levou de volta para dentro da casa, pegou minha mão emostrou as fotografias da irmã, novamente nas mesas e estantes. Ficamos umbom tempo vendo aquela pendurada acima da lareira. Era a imagem de algoincomum — Arizona sorrindo. É, de verdade. O cabelo sedoso, escuro eperfeito, usando uma gargantilha de prata junto com brincos grandes de argola.E ela estava feliz.

— Legal — disse a Raven.

Haviam me dito que o cérebro dele não era capaz de identificar expressõesfaciais, mas não me convenceram.

Ali em pé, vendo o retrato com a Arizona invisível ao lado, eu poderia dizerque Raven sabia totalmente o que aquele sorriso significava. Que vinha docoração da irmã dele e que estaria lá sempre que ele cruzasse o lobby e olhassenos impressionantes olhos verdes e amendoados.

— Você conseguiu a justiça e a liberdade — Hunter falou a Arizona. — Masninguém prometeu que o gosto não seria amargo.

Ele nos permitiu alguns momentos em Foxton antes de Arizona partir de vez.

Os Beautiful Dead se reuniram no celeiro. Pareciam precisar da segurança edo abrigo oferecidos pela construção sombria.

Eve e Donna ficaram bem ao lado de Arizona, e Summer segurava sua mão. Junto a Phoenix, completamente calado, eu me senti triste e decepcionada porela.

Arizona pendeu a cabeça para trás.

— Lá no Hartmann vi a mim mesma como realmente era — corroída pelociúme, egoísta, burra...

— Um ser humano — Hunter disse sem julgamentos e saindo do celeiro.

A porta fechou e me perguntei quando o veria novamente.

— Hunter está certo — Summer concordou. — Todos já agimos daquelemodo.

— Coloquei a vida de Raven em perigo. Estava tão carente... Detesto isso.

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Não — pensei. Não se martirize assim.

Phoenix leu minha mente e gesticulou para os outros nos deixarem a sós.

— Estarei por perto — ele me sussurrou ao sair também. Logo o celeiro ficouvazio, a não ser por mim e Arizona. Permanecemos nas sombras frias, eutentando me esgueirar pela barreira de ódio por si mesma que Arizona haviaconstruído mais uma vez.

— Estou planejando visitar Raven de novo, talvez amanhã — falei baixinho.— Vou levar umas imagens novas de Warhol para ele dar uma olhada. — Era amelhor maneira que eu conhecia para tentar libertá-la daquela barreira.

Ela lentamente fechou os olhos, respirou fundo e disse três palavras simples,

que representaram tudo para mim.

— Muito obrigada, Darina.

— Ele me reconhece — insisti. — Ele conecta você a mim.

— Você tem razão — ela concordou. O tempo dela tinha acabado, ela estavasumindo.

— Vou conversar com ele sobre você — prometi. — Não posso ser a sombradele como você queria ser, mas vou continuar contando a ele como você oamava e amará para sempre. De como você era uma menina louca e forte, decomo eu passei a entendê-la e a admirá-la de um jeito que jamais pudeimaginar.

Arizona olhou fundo nos meus olhos.

— Desculpe, Darina. Eu lhe dei bastante trabalho.

— Deu, sim. Agora sei o motivo.

— Eu nunca... — Ela procurou as palavras certas. — Eu nunca encontrei meuequilíbrio, nem mesmo enquanto estava viva. Fiquei sempre, sempre balançandona beira do penhasco, prestes a cair.

Assenti, não era necessária nenhuma palavra de minha parte. E, de qualquermodo, ela podia ler minha mente.

— Você sabe como é — ela observou, no momento em que um vento entravano celeiro, abrindo e fechando calmamente a porta. — Você sabe que estarsempre prestes a cair pode levar qualquer um a tomar decisões desesperadas.

— Algumas vezes.

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— Estou falando de Kyle — ela explicou.

— Mas não de Phoenix — contestei, justo na hora em que ele entrava de

novo. Sorri para ele. — Ele foi a melhor decisão que já tomei na vida.— Estou aqui para confirmar — ele me falou e pegou minha mão como se

nunca mais fosse soltar.

Arizona suspirou.

— Sorte sua, Darina. E ainda assim você o perdeu.

Phoenix continuou me segurando firme e me dando força. Falei para ele, nãopara Arizona:

— E aí o achei novamente. Aqui em Foxton, por doze meses.

— Um ano inteiro — ele prometeu.

Fitei seus olhos azul-claros cintilando cristalinos como a água do lago.

— E logo vou me unir a você para solucionarmos o mistério, descobrir porque você morrer.

Phoenix ergueu minha mão e a colocou em seu rosto pálido e frio.

— Você vai me libertar — falou, emocionado. — Darina e eu vamos comvocê até o Hartmann — ele disse a Arizona.

Ficamos à beira do lago cheio de gelo, enquanto o sol se punha. Phoenixsegurou minha mão e assistimos a Arizona entrar na água.

O lago alongava-se até o infinito, as árvores e a outra margem perdidasnuma bruma cinza.

Com a água na altura da cintura e os dedos tocando de leve a superfície, elase voltou para nos olhar.

O cabelo longo estava muito preto, e as asas de anjo de um branco puro.

— Vá — murmuramos.

Ela se virou e olhou para frente. O Hartmann estava imenso e silencioso.

E então a bruma veio da margem oposta, envolveu Arizona e a levou.

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Phoenix e eu procuramos por ela na neblina por um bom tempo, tentandoescutar qualquer som sem soltarmos as mãos, sabendo que havia partido domundo dos vivos.

— Vamos — eu enfim falei a Phoenix.

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