barroco e pedra do reino
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABACENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
RODRIGO EMMANUEL ARAJO LEO
O CASO DA PEDRA DO REINO E A IDENTIDADE NORDESTINA:
QUADERNA E A DEFINIO CULTURAL DA REGIO
NORDESTE E DO BRASIL
JOO PESSOA2011
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RODRIGO EMMANUEL ARAJO LEO
O CASO DA PEDRA DO REINO E A IDENTIDADE NORDESTINA:
QUADERNA E A DEFINIO CULTURAL DA REGIO
NORDESTE E DO BRASIL
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras, do Centro de CinciasHumanas, Letras e Artes, da Universidade Federalda Paraba, como requisito para a obteno do graude Mestre em Letras, na rea de concentraoLiteratura e Cultura.
ORIENTADORA: Profa. Dra. Elins de Albuquerque Vasconclos e Oliveira
JOO PESSOA
2011
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L437c Leo, Rodrigo Emmanuel Arajo.O caso da Pedra do Reino e a identidade
nordestina: quaderna e a definio cultural da regionordeste e do Brasil / Rodrigo Emmanuel ArajoLeo.- Joo Pessoa, 2011.
111f. : il.
Orientadora: Elins de AlbuquerqueVasconcelos e OliveiraDissertao (Mestrado) UFPB/CCHLA1. Suassuna, Ariano (A Pedra do Reino)
crtica e interpre-tao. 2. Literatura e Cultura. 3.Identidade cultural nordeste. 4. Historiografiabrasileira.
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RODRIGO EMMANUEL ARAJO LEO
O CASO DA PEDRA DO REINO E A IDENTIDADE NORDESTINA:
QUADERNA E A DEFINIO CULTURAL DA REGIO
NORDESTE E DO BRASIL
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras, do Centro de CinciasHumanas, Letras e Artes, da Universidade Federalda Paraba, como requisito para a obteno do graude Mestre em Letras, na rea de concentraoLiteratura e Cultura.
Aprovada em 30 de Maio de 2011
BANCA EXAMINADORA
Professora Dra. Elins de Albuquerque V. e Oliveira (Orientadora)
Professora. Dra. Maria Luiza Teixeira Batista (1a. examinadora)
Professora Dra. Antonia Marly Moura da Silva (2a. examinadora)
Professora Dra. Ana Cristina Marinho (Suplente)
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A Josefa Possidnia de Arajo,minha av e Rainha do reino imaginoso de minha infncia.
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AGRADECIMENTOS
A todos os nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos que
comigo caminharam pelas terras desse serto imaginoso. Muitoagradecido.
A painho e mainha, que acreditaram quando ningum acreditava,deram um sacode quando pensei em relaxar e me sustentaram eofereceram uma garapa quando tropecei assustado. Muito agradecido.
A minha orientadora, profa. Dra. Elins de Albuquerque Vasconclose Oliveira, pela valentia de me pegar pela mo quando o calor doserto quase torrou o meu juzo e por me oferecer a sombra deUmbuzeiro que me deixou terminar a caminhada. Meu eterno respeito,
carinho e amizade. Muito agradecido.
s duas professoras que coordenaram a ps-graduao durante minhasandanas sertanejas, a profa. Dra. Profa. Dr. Liane Schneider e a
profa. Dra. Ana Cristina Marinho Lcio. Meu respeito pela vitalidadee competncia com que organizaram essa feira de ideias e meurespeito e gratido pela pacincia com que aturaram e solucionaramtantos dos meus problemas. Muito agradecido.
s grandes amigas Luciany, Suelany, Gilsa, Marina e ao amigo Joopelos dedos de proza e gaitadas que ficaro pra sempre gravadas nosolo pedregoso de minha memria. Muito agradecido.
A minha famlia e minha namorada Rayane Dantas, que conseguiramsuportar as invencionices e aporrinhaes que surgiram junto com ocalor sertanejo. Muito agradecido.
Ao CNPq, que financiou essa viagem pelas palavras desse sertoimaginoso, e aos professores e colegas com quem constru tantossaberes. Muito agradecido.
A todos enfim, que mesmo no sendo citados nessas bandas, sabemque foram importantes para essa jornada. Meus prstimos, minhagratido, minha festa, minha alegria, meu carnaval.
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O cisico, coisica: os cavalos, cavalam, as rvores arvoram, osjumentos jumentam, as pedras pedram, os mveis movelam, ascadeiras cadeiram e o farutico, machendo e feminando, queconsegue genter e farauticar! assim que o tdico tudica e o penetral
penetralae esta, Quaderna, a realidade fundamental!
(Clemente explicando a Quaderna a filosofia do Penetral)
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Destruir um Imprio para vencer uma guerra no vitria.E abandonar uma batalha para salvar um Imprio no derrota.
(PROVRBIO KLINGON)
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RESUMO
Esta dissertao versa sobre a identidade cultural brasileira, e mais especificamente
nordestina, no Romance dA Pedra do Reino e o prncipe do sangue do vai-e-volta, de autoria
do paraibano Ariano Suassuna. Nosso objetivo principal foi a investigao do pensamento
sobre a identidade nordestina que empregado na obra de Suassuna. Qual sua definio?
Quais so os traos que podemos apontar como constitutivos do nordestino, segundo o autor?
Para a investigao, buscamos na historiografia brasileira os pensadores e movimentos
culturais que se ocuparam da definio identitria do pas. Buscamos tambm as influncias
apontadas pelo prprio Suassuna como fonte e filiao de sua arte, a saber o barroco e suavariante contempornea, o neobarroco. Por encontrarmos na obra do estudioso Bakhtin vrios
conceitos que trabalham com elementos do barroco, como o caso da carnavalizao,
tambm associamos e utilizamos tal conceito em nossa anlise. A anlise da obra se deu em
trs etapas: primeira a estrutura, se ocupando da diviso da obra, da narrativa e sua
composio fsica. Segunda, do personagem-narrador Quaderna, que defendemos ser uma
representao da identidade nordestina. Por fim, na terceira etapa, investigamos uma
derivao da obra de Suassuna: a minissrie televisiva A Pedra do Reino, a fim de saber comoos elementos que encontramos no romance foram traduzidos para outro meio que no a
escrita.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade, Nordeste, Romance dA Pedra do Reino
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ABSTRACT
This dissertation focuses on the problem of Brazilian cultural identity, more specifically on
the identity of the Brazilian northeast region present in the Romance da Pedra do Reino e o
prncipe do sangue do vai-e-volta, written by Ariano Suassuna. The aim of this work is to
investigate the Northeastern identity and the way it is presented by Suassuna. What is its
definition? What are the features that can be pointed out through Suassunas work? Trying
to answer these questions, we seek in the historiography thinkers and cultural movements
that have previously studied the matter of the Brazilian identity. We also researched on the
studies developed by Suassuna himself about this matter pointing out it as a strong influenceto which his art is affiliated. This analysis is also supported by the theories of the baroque and
its contemporary variant, namely the neo-baroque. From Bakhtin came the concept of the
carnavalization that is joined to the two previously presented to complete the theoretical basis
of this work. In matter of presentation, this work follows three steps. First of all, it will be
presented the structure showing the division of the work, the narrative and its physical
composition. The second part will contemplate the character-narrator Quaderna that is
considered, in this study, as the representation of the northeastern identity. And finally, thisinvestigation will focus on the television mini series A Pedra do Reino, analyzing in which
way some elements from the novel were translated to another medium.
KEY-WORDS: Identity, Northeast, Romance d`A Pedra do Reino.
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SUMRIO
PEQUENO CANTAR ACADMICO A MODO DE INTRODUO 12
FOLHETO IO caso do barroco e a construo da identidade nacional 16
1.1. Do Barroco ao Neobarroco 16
1.2. O Neobarroco na construo-formao da identidade cultural brasileira 23
1.3. Movimento Armorial: atualizao nordestina do Neobarroco 31
FOLHETO IIO caso de Quaderna, sua obra e a representao da identidade 40
2.1. O romance e sua estrutura 41
2.2. As faces de Quaderna 47
2.2.1 Quaderna, o Rei 47
2.2.2 Quaderna, o Intelectual 50
2.2.3 Quaderna, o Narrador (ou o pcaro farsante) 542.3. Aproximaes entre A Pedra do Reino e a Stira Menipia 61
2.4. O cordo azul e o encarnado 71
2.5. Por cima da Pedra: o barroco evidenciado 80
2.5.1. Lodo e p: teorizaes e referncias de Quaderna 80
2.5.2. Minrio 83
FOLHETO IIIO caso da releitura da Pedra do Reino na minissrie televisiva 87
3.1. Caracterizao: entre a fantasia e a alegoria 90
3.2. Cenrio e atuaes: o espao em movimento 97
A SAGRAO DO GNIO NORDESTINO CONHECIDO 107
REFERNCIAS 110
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O grande idealizador do Movimento Armorial o escritor paraibano Ariano
Suassuna. Autor de obras traduzidas para diversos idiomas, consagradas pela crtica e
pelo pblico, o controverso autor j se tornou uma figura notria quando o assunto a
defesa da cultura brasileira diante da influncia estrangeira.
Em praticamente toda a produo do escritor, a temtica nordestina est
presente, valorizando elementos da dita nordestinidade e contribuindo para ideais
pregados pelo prprio: a ampliao da cultura nordestina como sendo a essncia da
cultura brasileira.
A tarefa a que nos propomos pegar uma de suas poucas obras publicadas em
prosa, O romance dA Pedra do Reino e o Prncipe do Sangue do vai -e-volta, e
investigar os traos da identidade nordestina presentes na mesma. Sabemos que o
escritor, sempre que tem tal oportunidade, afirma o quanto essa identidade nordestina a essncia da identidade brasileira. Todavia, mesmo sabendo o que afirma o prprio
Suassuna a respeito do assunto, preferimos escapar da falcia de discusses em torno da
existncia ou no de uma identidade nacional. Para isso, resolvemos afunilar o conceito
e tratar apenas de identidade nordestina.
Sabendo da multiplicidade que a identidade, do quanto complexo delimitar
tal conceito e definir o que vem a ser essa nodestinidade, propomos investigar o que
Suassuna prope enquanto tal. Que elementos ele emprega em sua obra pra constituiressa tal identidade, para afirmar e definir o que vem a ser o nordestino (ou, como o
prprio autor prefere, o brasileiro)?
At mesmo o conhecedor mediano de Suassuna, de sua produo acadmica,
literria e em colunas de jornais, sabe que o autor defende a herana portuguesa e
ibrica como os elementos mais fortes e mais dignos de valorizao dentro do leque da
cultura brasileira, e, para fins de nosso trabalho, nordestina. Nesse conjunto que so as
culturas ibricas e portuguesas, h um estilo artstico que digno das maiores atenes
por parte de Suassuna e apontado por ele como algo eterno e constante na arte universal
e especificamente brasileira: o barroco. Com isso em mente, torna-se inevitvel no
investigarmos o barroco e sua influncia na cultura brasileira e nordestina ao longo da
histria. Nessa empreitada, surge o neobarroco, movimento artstico formalizado
principalmente por Lima e Sarduy e que deixou traos fortes por toda a Amrica Latina.
Por isso mesmo, o primeiro captulo de nosso trabalho ser totalmente dedicado
investigao do barroco e do neobarroco. Como entender a valorizao da cultura
brasileira hoje e ontem de extrema importncia, tambm dedicaremos parte deste
captulo tal tema. At mesmo porque h momentos importantes em que a valorizao
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do nacional no Brasil se cruza com o pensamento barroco, se no explicitamente, ao
menos de forma implcita, na adoo de pontos de vista semelhantes e realizaes
estticas em comum. Neste momento do trabalho, faremos tambm uma leitura de
pensadores clssicos do pensamento social brasileiro at os dias de hoje, sempre
trazendo isso para o contexto da produo de Suassuna e da esttica barroca.
No segundo captulo, iniciaremos a anlise propriamente dita. Munidos de boa
parte do que discutimos a respeito do barroco e do pensamento social brasileiro,
pretendemos lanar um olhar sobre a obra de Suassuna, buscando quais traos da obra
podem ser apresentados como representantes ou caractersticos da cultura nordestina.
Lembrando sempre que no estamos buscando um conceito existente (a identidade
nordestina) na obra, mas apenas observando nela a construo desse conceito. Quem
conhece o Romance dA Pedra do Reino sabe que no um livro dos menores, deleitura rpida. Isso sem dvida dificulta a leitura e a anlise. Entretanto, em contato com
a obra, inevitvel desviarmos de um foco constante assumido pela narrativa: o
narrador Quaderna. Justamente por isso, adotamos a investigao do personagem como
parmetro metodolgico de nossa anlise. Assumimos com isso que a identidade de
Quaderna uma representao em microescala da identidade nordestina, e, por isso
mesmo, ao investigar o personagem estaremos investigando o conceito de
nordestinidade construdo por Suassuna em seu livro.Aps a anlise do romance, dedicamos o terceiro captulo a um tpico que
compreendemos no apenas como pertinente como tambm inevitvel. Vamos neste
tpico analisar uma adaptao televisiva da obra de Suassuna, a minissrie da rede
Globo de televiso, A Pedra do Reino, dirigida por Luiz Fernando Carvalho. Neste
captulo, alm de uma abordagem introdutria e conceituao do meio audiovisual de
produo da obra, pretendemos demonstrar como os traos da nordestinidade, do
barroco e sua essncia carnavalizante, foram interpretados pelas lentes do diretor. Assim
como elencamos Quaderna como nosso parmetro de anlise para o romance, na
investigao da minissrie, resolvemos nos distanciar do roteiro e focar em elementos
de cena, como os figurinos, os cenrios e as atuaes. Com a anlise de tal material
audiovisual, pretendemos alm de tudo demonstrar que a percepo da identidade
nordestina dentro da obra, bem como a essncia barroca da mesma, so to
fundamentais para o romance que se torna fora motriz da mesma, sendo inevitvel a
reproduo destes elementos em provveis adaptaes.
Ao final de toda a anlise, esperamos ter em mos material consistente o
suficiente para compreender no apenas o pensamento deste importante escritor
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paraibano que Suassuna ou uma faceta de sua obra, mas, principalmente, compreender
como o pensamento sobre a identidade nordestina e brasileira foi moldado e como o
barroco esteve sempre presente, seja de forma explcita ou implcita, dando consistncia
essncia carnavalizante que Suassuna faz questo de representar em sua escrita.
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FOLHETO I
O caso do barroco e a construo da identidade nacional
Neste trabalho, nosso objetivo maior investigar os traos da identidade
nordestina na obra do escritor paraibano Ariano Suassuna. Suas peas e romances so
intencionalmente recheados de uma temtica regional difcil de limitar em qualquer
investigao. Na tentativa de entendermos o cenrio cultural no qual Suassuna est
inserido, precisamos ir muito alm da sua obra e buscar na histria nacional as matizes
ideolgicas que constituem o pensamento do autor paraibano. Para tanto, temos alguns
caminhos a percorrer que nos auxiliam na investigao. Algumas correntes de
pensamento, bem como algumas figuras de importncia nacional e alguns conceitospodem ser percebidos de forma clara em praticamente todos os textos publicados pelo
autor em revistas, jornais e ensaios.
O primeiro tema a ser enfocado, e principal conceito trabalhado por Suassuna,
o barroco, que, segundo o prprio, a raiz da cultura brasileira e isto seria retomado de
forma evidente em suas obras. Em seguida, precisamos analisar o conceito de cultura
castanha trabalhado pelo prprio autor, bem como a aproximao deste conceito ao de
miscigenao, de presena constante na histria da ideologia brasileira. Por fim, aindaneste captulo, abordaremos tambm o Movimento Armorial, sempre muito citado entre
os estudiosos de sua obra e que representa uma formalizao concreta de seus ideais.
1.1. Do barroco ao neobarroco
Enquanto estilo, o barroco faz parte da histria artstica do mundo ocidental.
Mesmo no tendo presena em todos os pases, este estilo de poca, como se
convencionou chamar, deixou profundas marcas por onde passou. sabido que em seu
surgimento, o barroco foi elemento do conhecido movimento de Contra Reforma da
Igreja Catlica, utilizado principalmente pelos jesutas e levado aos novos
continentes, principalmente aqueles sobre os quais a Espanhaum dos principais pases
em que este estilo artstico se proliferouteve domnio.
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No caso brasileiro tivemos como principais expoentes desta expresso as formas
de Aleijadinho na escultura, as cores de Mestre Atade na pintura, os versos de Gregrio
de Matos e os sermes do padre Antnio Vieira1na literatura.
Entre todos esses nomes, podemos destacar como mais conhecidos os versos de
Gregrio de Matos e as formas de Aleijadinho. Ambas trazem alguns dos principais
traos do Barroco: a mescla de contrrios e o rebaixamento da nobreza ou divindade
para junto do povo, s pra citar alguns. Aleijadinho caracterizava suas esculturas sacras
com traos que no eram encontrados comumente nesse tipo de arte: seus santos eram
todos meio caboclos, com olhos amendoados e pouca barba, rosto afilado, muito
diferente do tipo europeu que se tornou modelo de representao das divindades crists.
Gregrio de Matos, tambm conhecido como Boca do Inferno, utilizava-se da
lrica da poesia para jogar pedras na vidraa de grandes personalidades da sua poca.Carregava de ironia versos que eram comumente usados para falar de temas distantes e
no terrenos, quase sempre criticando a prpria instituio catlica. Como o barroco
assumiu aqui uma caracterstica quase devoradora, de incorporar o alheio e
reconstru-lo em novos moldes, estudiosos chegaram a descrever o citado autor como
um dos primeiros antropofgicos da nossa literatura2.
No sculo XX o estilo barroco foi atualizado, tornando a fazer parte da cultura
da Amrica Latina e tambm do Brasil. a que surge o chamado neobarroco, queacabou se concretizando como principal fora da literatura latino-americana. Sabendo
disso, precisamos entender como este estilo artstico retorna especificamente na
literatura, e tambm entender quais so as suas principais caractersticas. A respeito do
neobarroco e sua evidente relao com o barroco, a obra de Chiampi (1998) a mais
completa que pudemos encontrar.
Logo no incio de seu livro, este autor aponta:
Um passado mediterrneo, ibrico, colonial e finalmente assumidocomo americano ao ser reapropriado por nossa escritura moderna,salta da esfera do marginal e excludo e, conquistando a sualegibilidade esttica, alcana a sua legitimao histrica. A Funo dobarroco, com a sua excentricidade histrica e geogrfica, diante docnone do historicismo (o novo classicismo) construdo nos centroshegemnicos do mundo ocidental, permite recolocar os termos com
1 Mesmo sendo portugus, o que implica numa viso portuguesa dentro do Brasil, foi aqui que ele
produziu parte de sua obra enquanto missionrio e como parte do barroco brasileiro que ele catalogadoem livros escolares no geral.2Mais adiante em nosso trabalho, explicitaremos melhor este conceito, citando inclusive Helena (1983)como um desses estudiosos dos quais falamos.
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que a Amrica Latina se posicionou ante a modernidade euro-norte-americana (CHIAMPI, 1998, p. 3).
Para ele, o barroco condiz com caractersticas prprias do continente latino-americano:
a incapacidade (ou impossibilidade) dos pases constituintes do continente em
incorporar o projeto iluminista, isso aliado (e tambm devido) a certa dissonncia da
modernidade do continente em relao ao resto do mundo.
Devemos salientar que a apropriao e releitura do estilo no se deu de forma
imediata, segundo Chiampi (1998, p. 126):
As inseres do barroco no arco histrico da modernidade literria daAmrica Latina descrevem, portanto, uma longa trajetria de 100 anose coincidem, grosso modo, com os ciclos de ruptura e renovao
potica que compendiam o seu processo: 1890, 1920, 1950, 1970.Neles, a continuidade do barroco revela o carter contraditrio dessaexperincia moderna, que canibaliza a esttica da ruptura produzidanos centros hegemnicos, ao mesmo tempo que restitui o incompleto einacabado de sua prpria tradio.
Ou seja, o barroco foi incorporado arte latino-americana em etapas. Na modernidade,
o primeiro a utiliz-lo em sua produo literria foi o poeta Rubn Drio, que manteve
um uso recreativo e sem grandes pretenses ideolgicas. A etapa de apropriao veio
com os poetas de vanguarda, que buscaram no barroco um meio de renovao da suaproduo. Apenas nas dcadas de 1950 e 1960 que a apropriao assumiu uma
perspectiva crtica, dos reais significados e usos da esttica barroca no contexto da
modernidade americana, bem como uma preocupao de incorporar elementos da
cultura do continente aos meios estticos do estilo. Chiampi (1998) aponta Lezama
Lima (1950) e Alejo Carpentier (1960) como os principais nomes desta fase
consciente do barroco latino-americano:
O terceiro ciclo da insero do barroco na modernidade literria daAmrica Latina s se inaugura quando a experimentao (e recreao)com as formas barrocas se conjuga com a atribuio de um contedoamericano. Refiro-me, claro est, a uma conscincia americanista,reivindicatria de identidade cultural, que explicita ideologicamente oque as formas poticas s consigam sub specie metafrica[...]. Estespassos decisivos so tomados pelo prprio Lezama Lima, nos anos 50e Alejo Carpentier nos anos 60 (CHIAMPI, 1998, p. 6)
O primeiro, Lezama Lima (apud CHIAMPI, 1998), institui que este estilo algoespecificamente ibrico e latino-americano, no obtendo correspondente no resto do
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mundo. Com isso, ele define que este o mais importante e mais caracterstico produto
da cultura que o continente produziu. Isto serve como ponto de partida para a
proposio do barroco como ferramenta se que assim podemos chamar o papel de
uma escola dentro de um movimento artstico capaz de elaborar a fundao da nova
ordem cultural necessria aos artistas latino-americanos.
Ao falarmos dessa pretenso de Lima, devemos ter em mente que o continente
latino-americano demorou muito para se firmar enquanto proprietrio de um tipo de arte
e de uma cultura institucionalizada e reconhecida pelos meios acadmicos3. No caso
especfico da literatura, a recente produo se comparada produo dos pases que
praticamente inauguraram a literatura clssica engatinhou por muito tempo at se
firmar em suas prprias caractersticas.
A preocupao de uma definio de seus traos, de uma identidade artsticaenquanto pertencentes ao continente latino-americano, era uma constante para os
artistas do incio e de meados do sculo XX. No Brasil, devemos lembrar a famosa
semana de 1922, que inaugura o Movimento Modernista e estabelecesse as bases da
literatura brasileira ao romper os laos com as escolas clssicas e manter, quase que
exclusivamente, alguns poucos laos com o simbolismo.
Para Lima, o barroco, com seu poder de contestao, de destruio e,
ambiguamente como o prprio estilo, de reunificao dos fragmentos, era o meio peloqual poderia se chegar definio da genuna arte da Amrica Latina, at porque ele
considerava este um estilo quase que exclusivamente de seu continente.
Em contraposio a Lima, Carpentier (apud CHIAMPI, 1998) enxerga o barroco
enquanto universal e constante na histria artstica de todas as civilizaes. Enquanto
Lima o propunha como tipicamente nosso, numa tentativa de dar ainda mais autoridade
de apropriao do estilo pelos artistas latino-americanos, Carpentier o coloca como
universal e explicita essa autoridade pelo vis da propriedade coletiva mesmo sendo
universal isso no nos tira o direito de dele nos utilizarmos e dele fazermos proveito.
parte as contradies quanto concepo do barroco enquanto propriedade
universal ou americana, ambos enxergam nele uma possibilidade de retirar a literatura, e
ainda mais a prosa, de um contexto da mera descrio para um cenrio de elaborao de
alegorias e recriao das formas e contedo.
3Sabemos que em toda Amrica Latina, como em qualquer cultura, sempre existiram manifestaesartsticas e culturais prprias do continente. Entretanto, estamos nos referindo neste trecho culturaacadmica, formalizada e institucionalizada dentro de certos cnones e padres.
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Era necessrio romper com as amarras da arte clssica que assolava o continente
e instaurar uma nova arte, menos descritiva, mais imaginativa e contestadora. Para
ambos, tanto Lima quanto Carpentier, o barroco carrega as caractersticas necessrias
para essa contestao.
Lembrando o contexto de seu surgimento e de sua utilizao inicial, percebemos
que o barroco foi uma das principais ferramentas da Contrarreforma. Usada e
disseminada principalmente pelos jesutas, este estilo artstico serviu para combater a
nova ordem imposta tempos atrs pela Reforma Protestante, ou seja, esses primeiros
pensadores do Barroco na Amrica Latina, o viam como uma ferramenta de contestao
por excelncia, que servia em essncia para questionar a ordem e inserir nela aqueles
que foram colocados a sua margem.
Vindo para o passado mais recente, incio e meados do sculo XX, podemospensar tambm no continente latino-americano como que isolado nas manifestaes
artstico-culturais por qual passava a Europa, ou, se no isolado, mantendo-se em
postura de copiar o queacontecia no velho-continente.
Assim como o barroco foi utilizado na Contrarreforma para questionar a ordem
que vinha sendo imposta pelo velho continente, os idealizadores do que se conheceu
como Neobarroco, propunham sua utilizao para questionamento da ordem artstica
que vinha sendo imposta, ou, como nas palavras de Chiampi (1998, p. 18): Se obarroco a esttica dos efeitos da Contra-Reforma, o neobarroco o da contra-
modernidade. Tal utilizao possui ainda mais autoridade no caso de Lima, que
enxerga o barroco como um produto genuinamente latino-americano. Dessa forma, com
seu poder de destruio e sntese, este estilo artstico serviria para os fins propostos:
derrocada de velhos paradigmas e estabelecimento de novas diretrizes artsticas capazes
de definir culturalmente o continente.
Severo Sarduy, escritor cubano que, dentre todos os escritores contemporneos e
at anteriores a ele, foi o que mais se ocupou em teorizar a esttica do neobarroco,
definiu algumas das bases dessa esttica. O termo neobarroco, por exemplo, foi
primeiramente teorizado pelo prprio, conforme nos diz Chiampi:
O termo Neobarroco tem sido frequentemente usado para referir-se aosexerccios verbais de alguns notveis romancistas latino-americanos [...]Mas foi Severo Sarduy o escritor latino-americano que recolheu essatradio reivindicatria dos mestres cubanos e desenvolveu sua prpriateorizao no quadro das mudanas culturais dos anos 60 (CHIAMPI, 1998,
p.26).
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Sarduy ainda foi muito mais alm da definio do estilo e se ocupou de
descrever os processos de aplicao dessa esttica. Mostrar o como fazer parecia ser
uma preocupao do escritor cubano. Foi assim que ele definiu que uma das bases do
neobarroco a pardia e a autopardia.
Consultando o livro de SantAnna (2007)e o trabalho de Monegal (1980) sobre
o assunto, vemos que a pardia um mecanismo essencialmente de contestao da
ordem, de violao da estrutura, de questionamento do que parodiado. Com seu tom
paro e autoparodstico, o barroco moderno, ou neobarroco, vem para questionar a
influncia ou a presena dos elementos estrangeiros dentro do cenrio cultural latino
americano, bem como questionar o prprio cenrio latino americano como detentor de
uma identidade prpria e isenta de influncias. E, alm disso, o barroco serve ainda para
vislumbrar essa influncia (ou presena) estrangeira como algo no mnimo positivo paraa construo de uma cultura prpria da Amrica Latina. Comentando a pardia, o
barroco e a carnavalizao, Monegal (1980, p. 11) afirma:
Em um movimento tipicamente carnavalesco, Bakhtin deslocou ocentro para a periferia e provou que as formas marginais haviamocupado o centro. [...]. A mesma operao pode ser praticada com aliteratura latino-americana que sofreu, at pouco tempo atrs, por estarsubmetida a uma crtica demasiado preocupada com o logocentrismo
dos modelos ocidentais.
O prprio Sarduy revela que justamente pela polifonia cultural que o Neobarroco se
inscreve com propcia facilidade neste terreno americano.
Entendemos com Propp (1992) que a Pardia tambm insere um elemento de
comicidade no contexto no qual ela est inserida. O autor nos diz que a pardia um
dos instrumentos mais poderosos da crtica social. Segundo ele, podemos encontrar
muitos casos de pardia principalmente no folclore.
A pardia um dos instrumentos mais poderosos de stira social.Exemplos muito evidentes disso so fornecidos pelo folclore. Nofolclore mundial e no russo existe uma quantidade de pardias damissa, da catequese das oraes.A pardia cmica somente quando revela a fragilidade interior doque parodiado (PROPP, 1992, p. 87).
A pardia como um recurso de comicidade foi amplamente utilizada pelo poeta
Gregrio de Matos, que, segundo o que dissemos anteriormente, j foi apontado pelacrtica Helena (1983) como um poeta essencialmente antropofgico j em sua poca.
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Ora, nada mais apropriado para um artista barroco, estilo prprio para a destruio e
unio de contrrios, do que ser reconhecido enquanto antropofgico, adjetivo este que
deriva do Movimento Antropofgico proposto por Oswald de Andrade para renovao
da literatura brasileira. Um movimento que colocava a cultura estrangeira do outro,
como algo a ser devorado, digerido e s ento reconstitudo com traos tipicamente
nacionais.
Essa postura de unio sem a perda das caractersticas, de compartilhamento do
que h de melhor no outro, nos faz pensar num conceito amplamente utilizado por
Bakhtin, especificamente em Esttica da Criao Verbal (BAKHTIN, 2006). Antes,
vejamos um trecho da obra:
O que enriqueceria o acontecimento se eu me fundisse com outrapessoa, se de dois passssemos a um? Que vantagem teria eu se ooutro se fundisse comigo? Ele veria e saberia apenas o que eu vejo esei, ele somente reproduziria em si mesmo o impasse da minha vida; bom que ele permanea fora de mim, porque dessa sua posio elepode ver e saber o que eu no vejo nem sei a partir da minha posio,e pode enriquecer substancialmente o acontecimento de minha vida.Se apenasme fundo com a vida do outro, no vou alm de aprofundara sua inviabilidade e duplica-la numericamente. Do ponto de vista dareal eficcia do acontecimento, quando somos dois o que importa no que alm de mim exista maisum indivduo, no fundo o mesmo(doisindivduos), mas que ele seja outro para mim, e neste sentido a
simples simpatia dele por minha vida no representa nossa fuso numser nico nem a repetio numrica de minha vida e sim umenriquecimento substancial do acontecimento, pois minha vida vivenciada empaticamente por ele em nova forma, em nova categoriaaxiolgica como vida do outro, que tem colorido axiolgico diferentee aceita e justificada diferentemente da prpria vida dele. A eficciado acontecimento no est na fuso de todos em um todo mas natenso da minha distncia e da minha imiscibilidade, no uso doprivilgio do meu lugar nico fora dos outros indivduos (BAKHTIN,2006, p. 80).
O conceito de exotopia, elaborado e discutido por Bakhtin, no possui uma
definio pontual dentro da obra do autor, assim como acontece com vrios outros
pontos por ele trabalhados. Amplamente utilizada para discutir a relao entre autor e
personagem, nada impede que a estendamos tambm para o contato entre culturas, entre
indivduos. Conforme vimos no trecho acima, o que importa no contato no outro no a
fuso total de dois em um, mas o compartilhamento de experincias e caractersticas.
Tal qual defende Oswald com o antropofagismo, o importante aqui a transformao apartir do contato com o outro.
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1.2. O neobarroco na construo-formao da identidade cultural brasileira
Anteriormente, no incio desde captulo, comentamos que o neobarroco surge do
interesse de artistas latino-americanos, a partir do sculo XX, em definir uma identidade
cultural para o continente. No Brasil tambm havia uma necessidade de definio de
identidade e um interesse cada vez mais crescente nos que j haviam se ocupado desta
definio.
Ao tentar elencar um conjunto de correntes ideolgicas, de pensamentos e
pensadores sobre um determinado tema ao longo da histria, temos a tendncia de
agrupar pensadores e pensamentos em uma grade linear, com pensamentos que so
ultrapassados e do origem a novos conceitos. Quando pretendemos falar do Brasil e dopensamento construdo acerca dessa nao, devemos enxergar o conjunto de
pensamentos e pensadores dentro de um conjunto no-linear e sem pretenses
evolutivas. Devemos entender
que as diferentes interpretaes do Brasil tambm se tornaram, aolongo do tempo, como que matrizes de diferentes modos de sentir epensar o pas e de nele atuar. Justamente porque no operam apenasem termos cognitivos, mas constituem tambm foras sociais que
direta ou indiretamente contribuem para delimitar posies e conferir-lhes inteligibilidade em diferentes disputas de poder travadas nasociedade, as interpretaes do Brasil existem e so relidas nopresente. (BOTELHO e SCHWARCZ, 2009, p.13).
Assim, no podemos definir que pensamento X ou Y foi ultrapassado ou coisa do
passado, todos influenciam e so influenciados em leituras constantes que so realizadas
no presente.
Em Cultura Brasileira e Identidade Nacional, Ortiz (2006) coloca Euclides da
Cunha, Nina Rodrigues e Silvio Romero como os percussores do pensamento social
brasileiro bem como do pensamento racial. Segundo o prprio autor:
O discurso que construram possibilitou o desenvolvimento de escolasposteriores, como por exemplo a escola de antropologia brasileira,que, vinculada aos ensinamentos de Nina Rodrigues, adquire comArthur Ramos a configurao definitiva de cincia da cultura (ORTIZ,2006, p.14).
Ou seja, estes trs autores seriam basilares para o pensamento que foi construdo e aindacontinua em fase de construo nos dias de hoje sobre a identidade brasileira.
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No incio do pensamento social brasileiro, o conceito do negro no existia
enquanto parte do Brasil. Alis, havia uma ausncia do brasileiro de origem africana
no s no pensamento social, mas tambm em todas as reas, inclusive na artstica.
Ortiz (2006) comenta este fato demonstrando que at um autor pouco progressista como
Silvio Romero chega a comentar (e reclamar) deste que, segundo o prprio, era to
prejudicial s Cincias Sociais.
Somente com o movimento abolicionista e as transformaesprofundas por que passa a sociedade que o negro integrado spreocupaes nacionais. Pela primeira vez pode-se afirmar o que hojese constitui num trusmo, que o Brasil o produto da mestiagem detrs raas: a branca, a negra e a ndia (ORTIZ, 2006, p.38).
Contudo, apesar da mestiagem j ser cogitada, ela vista de forma negativa eapontada por muitos como um dos principais, seno o principal, motivos do fracasso
brasileiro. Havia at os que defendiam um embranquecimento do povo na tentativa de
melhorar as chances de sucesso do pas.
Evidentemente a negativizao no era a nica tendncia de pensamento sobre a
mestiagem. Entretanto, aqueles que no a negativizavam no tinham fora suficiente
dentro do cenrio ideolgico para impor a prpria voz.
Ortiz coloca Gilberto Freyre como o pice e firmao definitiva da positivao
da mestiagem: Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestio em positividade,
o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que h muito
vinha sendo desenhada (Ortiz, 2006, p.41).
Freyre, em sua poca, teve a grande vantagem diante do pensamento local
brasileiro de ter sado para estudar nos Estados Unidos, sob a orientao do renomado
professor Franz Boas, que tinha como grande diferencial de seu trabalho o culturalismo.
Ou seja, o orientador de Freyre, em seus estudos de sociedades, deixava de lado, ou
dava menos importncia, o fator raa conceito ainda amplamente utilizado no Brasil
por essa poca e inseria o fator cultural como motivador e esclarecedor dos
movimentos sociais.
Casa-Grande & Senzala(FREYRE, 2006), principal obra de Gilberto Freyre, a
obra que rene com maior clareza embora falar de clareza seja um tanto quanto
arriscado quando se trata desta obra aquilo que ns e Ortiz (2006) chamamos de
positivao do mestio. Algo caracterstico deste livro sua capacidade de sntese, de
unio.
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ele une a todos, casa-grande e senzala, sobrados e mocambos. Por issoele saudado por todas as correntes polticas, da direita esquerda. Olivro possibilita a afirmao inequvoca de um povo que se debatiaainda com as ambiguidades de sua prpria definio. Ele setransforma em unicidade nacional. Ao retrabalhar a problemtica dacultura brasileira, Gilberto Freyre oferece ao brasileiro uma carteira de
identidade (ORTIZ, 2006, p. 42).
Percebemos com isso que o trabalho de Freyre vai alm da mera positivao da
mestiagem e coloca-se em prol do prprio brasileiro, numa tentativa de unir a todos,
sejam estes diferentes ou semelhantes entre si.
Diante do que se afirmou sobre o Barroco no incio deste captulo, vemos como
impossvel no comentarmos a aproximao deste percurso realizado por Freyre na
unio dos diversos povos para formao dessa identidade nacional genuinamentemestia com a caracterstica barroca de aproximao de contrrios e, alm disso, para a
caracterstica barroca de criao de simulacros4.
Mesmo falando de povos, ou raas como Freyre por tantas vezes se refere em
Casa-Grande & Senzalaevidentemente distintos em tantos aspectos, o autor utiliza-se
do poder das palavras para a criao de um universo, de um territrio por vezes
imaginrio, fantasiosoem que brancos, negros e ndios (estes em menor proporo e
relevncia) vivem em um estado harmnico. Para o autor, a colonizao no Brasiladquiriu ares diferenciados do restante do mundo, criando laos entre colonizadores e
colonizados:
A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternizao entrevencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem deser relaes as dos brancos com as mulheres de cor desuperiores e inferiores e, no maior nmero de casos, de senhoresdesabusados e sdicos com escravas passivas, adoaram-se,entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos deconstiturem famlia dentro dessas circunstncias e sobre essa base. Amiscigenao que largamente se praticou aqui corrigiu a distnciasocial que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala (FREYRE,2006, p. 33).
Laos estes completamente contraditrios, estabelecidos por meio da dominao, mas
que, para Freyre, se adoam por meio do que os colonizadores tm de humano,
representado na necessidade de constiturem famlia.
4O que aqui consideramos simulacros a criao de um ambiente ficcional de tal forma que parea real.Ou seja uma realidade que, mesmo evidentemente ficcional, seja palpvel e concreta o suficiente para serreal.
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Por essa caracterstica barroca, geradora de simulacros para estabelecimento de
verdades, a obra de Freyre recebeu suas maiores crticas, muitas das quais aconteceram
quando o autor ainda estava vivo. Entretanto, nenhuma dessas crticas foi forte o
suficiente para retirar a importncia da obra e a tornar menor do que de fato ela .
Devemos reconhecer, evidentemente, que a obra tem seus deslizes e que a
gerao de simulacros como os propostos por Freyre no so cabveis em uma obra que
se pretende cientfica. Entretanto, havemos de reconhecer que justamente essa
caractersticae cremos que no arriscado dizeressencialmente barroca de Freyre
que o torna grande e o que define sua posio na histria brasileira. Afinal, foi o seu
simulacroresponsvel pela consolidao de uma identidade dentro e fora do Brasil
que estabeleceu a importncia da mestiagem enquanto fator positivo para nossa
formao e nos liberou de um estigma que perseguia a constituio de nosso povo.No nenhuma novidade afirmar que Casa Grande & Senzala, sua obra mais
estudada e citada, um dos estudos fundantes da identidade brasileira. Tambm no
nenhuma novidade afirmar que nesta obra o autor cria uma viso idlica sobre a
colonizao portuguesa, como se todo o perodo de ocupao, povoamento e
gerenciamento da colnia tivesse sido dotado de extrema harmonia entre portugueses,
negros e ndios.
Entretanto, mais importante do que estas afirmaes so as suas comprovaes ea compreenso de seus motivos. isso que tenta fazer Ricardo Benzaquen de Arajo
em sua obra Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos
anos 30 (ARAJO, 1994). Durante toda a obra, que uma verso de sua tese de
doutorado, Ricardo faz uma leitura, e at certa medida um questionamento, das crticas
ao trabalho empreendido pelo estudioso pernambucano. Para tanto, ele utiliza-se de
elementos do contexto histrico-ideolgico da produo de sua obra mais popular.
A ns interessa um captulo em especial do livro de Arajo (1994), o segundo,
no qual o autor tenta compreender e (em certa medida) rebater a crtica a respeito da
construo de um paraso tropical na obra freyriana, paraso este construdo, segundo
o prprio autor, sob o elogio da miscigenao:
A acusao de que Gilberto esboa em CGS, por intermdio do elogioda miscigenao, um quadro extremamente suave, edulcorado econsequentemente mistificador do nosso passado colonial ,realmente, das mais graves e recorrentes (ARAJO, 1994, p. 43).
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Ele explicita que utilizar especificamente o captulo 3 de CG&S5 (Casa-Grande &
Senzala), justamente o que trata da formao do povo portugus e suas caractersticas.
Isso porque o conceito de miscigenao trazido principalmente neste captulo estaria
intimamente relacionado ao conceito de mestiagem. Em um primeiro momento ele se
detm a demonstrar que a mestiagem reconhecida por Freyre como no sendo
exclusiva do povo brasileiro, mas tambm prpria do portugus, que o resultado da
miscigenao entre diversas raas desde os perodos mais remotos. Em trecho do
captulo estudado por Arajo (1994), encontramos as seguintes afirmaes de Freyre:
Essa dualidade de formas de cultura caracterizaria a situao daPennsula, em geral, e do territrio hoje portugus [...].[...]
Durante a poca histrica, os contatos de raa e de cultura, apenasdificultados, nunca porm impedidos pelos antagonismos de religio,foram em Portugal os mais livres e entre elementos os mais diversos(FREYRE, 2006, p. 279, 282).
Na qual percebemos a noo do autor de que o povo portugus, era de fato o mais
miscigenado da Europa, desde as suas mais remotas razes.
importante salientar que todo o movimento intelectual empreendido por
Arajo (1994) at este momento realizado levando-se em considerao apenas o
conceito de miscigenao dentro de CG&S, independente da conceituao que outros
estudiosos empreguem ao termo, da a total desconsiderao de outros estudos da poca
de Freyre, ou at mesmo anteriores, sobre o mesmo assunto.
Aps realizar um determinado percurso expondo pontos do terceiro captulo que
comprovem a noo do portugus enquanto povo miscigenado, o autor conclui a
respeito da concepo de mestiagem em Freyre:
Essa concepo envolve, a meu juzo, uma compreenso damestiagem como um processo no qual as propriedades singulares decada um desses povos no se dissolveriam para dar lugar a uma novafigura [...] temos a afirmao do mestio como algum que guarda aindelvel lembrana das diferenas presentes na sua gestao(ARAJO, 1994, p. 44).
5Como neste trecho de nosso trabalho precisaremos citar repetidas vezes a obra Casa Grande & Senzala,de Gilberto Freyre, optamos por abreviar tal ttulo sob a forma CG&S, com fins meramente pragmticosde tornar a leitura mais fluda.
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Com isso, o crtico associa esta concepo de miscigenao trazida por Freyre a uma
outra ideia j exposta no primeiro captulo, que a de que a obra freyriana marcada
por ambiguidades, tal como acontece com a prpria definio do povo portugus.
No restante do captulo, onde parte para a investigao da escravido segundo a
tica de Freyre, Arajo (1994) tenta demonstrar que o que mais importa em CG&S o
hibridismo caracterstico da colonizao portuguesa, um hibridismo que se encontra
presente inclusive nas ambiguidades do prprio Freyre. Nas palavras do estudioso da
obra freyriana:
Assim, da mesma maneira que as distintas influncias tnicas eculturais conseguiam combinar-se separadamente no portugus, aviolncia e a proximidade sexual, o despotismo e a confraternizao
familiar parecem tambm ter condies de conviver lado a lado, emum amlgama tenso, mas equilibrado (ARAJO, 1994, p.57).
Antes de o miscigenado ser o resultado de uma unio inter-racial, ele
essencialmente um ser hbrido, que mantm em seu cerne elementos de todos aqueles
outros que participaram de sua constituio. Com essa viso, Freyre desbanca a antiga
ideologia de desvalorizao da miscigenao por culpa de um certo enfraquecimento
da raa e instaura na ideologia brasileira a noo de que justamente essa
miscigenao o maior atributo do povo brasileiro.Gilberto Freyre se popularizou rapidamente e sua influncia foi decisiva na
moldagem de vrios movimentos do incio do sculo XX. Alis, o incio do referido
sculo foi bastante movimentado, com pelo menos dois eventos de grande importncia
para os rumos culturais do pas. O primeiro deles, e talvez o mais significativo em
escala nacional, foi a Semana de Arte Moderna de 1922. Este evento lanou as bases do
movimento modernista e foi responsvel pela grande virada cultural brasileira.
Finalmente a arte nacional deixou as slidas amarradas que por sculos manteve com ocontinente europeu e passou a enxergar o solo nacional como principal fonte de sua
produo artstica. Evidentemente, as amarras no foram rompidas por completo, afinal,
vrias foram as influncias de vanguarda no modernismo brasileiro. Entretanto, os
princpios das vanguardas europias foram usadas sempre no intuito de trabalhar com a
matria-prima nacional.
No muito mais tarde, ainda dentro dos eventos relacionados ao Modernismo,
Oswald de Andrade liderou o chamado Movimento Antropofgico, que pregava a
absoro (e digesto) dos elementos estrangeiros junto com a cultura local. Algo que, de
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certa forma, s intensificava uma posio do prprio Modernismo em relao cultura
estrangeira.
Isso mais uma vez nos remete ao incio deste captulo, quando citamos o caso de
Gregrio de Matos, que, barroco como era, tinha caractersticas antropofgicas.
Evocamos esse trecho de nosso trabalho, pra lembrar que o Modernismo, chegando no
Brasil no incio do sculo, integra parte das iniciativas latino-americanas de definio
das identidades locais. Por isso mesmo, acaba no sendo coincidncia a utilizao do
modernismo no Brasil e, mais tarde, do Neobarroco como forma para a produo
artstica. como se o barrocoo primeiro, o mesmo de Gregrio de Matosfosse uma
rvore frondosa que lana seus galhos ao longo da histria da Amrica Latina e deixa
embries que frutificam em tentativas e mais tentativas de definies identitrias.
Em paralelo ao Movimento Modernista inaugurado pela popular Semana de1922, ocorreu, sob liderana de Gilberto Freyre, um evento de natureza regionalista,
com presena de vrios intelectuais da poca e no qual foi lido o Manifesto
Regionalista. O evento e o manifesto serviram de base para o que se chamou de
Movimento Regionalista. Diferente do Modernismo, o Regionalismo6 pregava total
desprendimento das influncias estrangeiras e pregava um olhar focado apenas na
cultura nacional, mais especificamente na cultura do interior do Nordeste.
Os seguidores desta corrente justificam a busca pela cultura do interior porqueesta seria a fonte mais confivel da genuna cultura nacional. O interior, estando mais
isolado pela falta de tecnologia e dificuldade de acesso, manteria a cultura intacta,
distante das culturas estrangeiras e, sendo a cultura estrangeira a principal causa de
degradao da cultura nacional, o interior nordestino justamente por o Nordeste ser
um reduto afastado do progresso o ideal a ser alcanado para perpetuao da nossa
verdadeira cultura e identidade.
Na segunda metade do sculo XX, em plena ditadura militar, o Tropicalismo
reviveu os ideais modernistas com ainda mais vigor. Utilizando-se da traduo de
elementos estrangeiros e nacionais lanou as bases para a produo cultural que temos
at os dias de hoje. Apesar de ter nordestinos no ncleo base de sua idealizao e
execuoGilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Z, s pra citar alguns o Tropicalismo
teve as regies sul e sudeste, ento principais eixos de desenvolvimento do Brasil, como
vitrine para o resto do pas e do mundo.
6Devemos salientar que o regionalismo a que aqui nos referimos o movimento de 1930, que, comoressaltamos foi liderado por Gilberto Freyre.
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Ainda na segunda metade do sculo XX, especificamente no ano de 1970, o
dramaturgo Ariano Suassuna iniciou no Nordeste o Movimento Armorial, que tinha
como um de seus objetivos revigorar e perpetuar a genuna cultura nacional. Assim
como o Movimento Regionalista, o Armorial em sua base ideolgica renega qualquer
influncia estrangeira.
interessante observar como estes dois movimentos se aproximam primeira
vista dos movimentos do incio do sculo, o Tropicalismo mais para o Modernismo e o
Armorial mais para o Regionalismo, sendo que o que os diferencia so os mesmos
elementos essenciais: aproveitamento ou total desprendimento da influncia estrangeira
contempornea.
No Armorial bem clara a existncia de um elemento cultural estrangeiro: o
barroco ibrico. Segundo o prprio idealizador do Movimento Armorial, ArianoSuassuna, tal fato ocorre porque o barroco a base para as principais manifestaes de
cultura popular que encontramos. Este estilo seria o gene principal de nossa genuna
cultura, pois a partir dele e o recriando que a arte popular se manifesta.
At onde nos foi possvel averiguar, nos trabalhos e colunas publicadas por
Suassuna no h referncia clara aos idealizadores do que comentamos at agora como
neobarroco. Entretanto, as circunstncias temporais e os motivos so to coincidentes
que fica fcil acreditar numa vinculao intencional ou ao menos numa influncia nopensamento do escritor paraibano das ideias desse movimento estabelecido na Amrica
Latina. Para comprovarmos isso, basta observarmos dois fatores: a) a preocupao do
Armorial essencialmente com a identidade cultural brasileira e b) o Armorial acontece
algumas dcadas aps a difuso das ideias de Sarduy.
Como temos observado at aqui, o barroco uma influncia artstica que vem
permeando toda a produo cultural brasileira ao longo dos sculos. Quando se busca
uma definio identitria para o pas, muito comum encontrarmos caractersticas desse
estilo mesmo que inconscientemente que apontem para uma possibilidade real de
definio. Assim aconteceu com os primeiros pensadores sociais, que vimos com base
no trabalho de Ortiz (2006), assim aconteceu com o pensamento e a estrutura adotada
por Freyre, e assim se repetiu no Modernismo, no Regionalismo, no Tropicalismo e no
Armorial. No caso deste ltimo, de uma forma ainda mais clara que nos outros, j que o
barroco nele apontado claramente como o gene da cultura brasileira.
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1.3. Movimento Armorial: a atualizao nordestina do neobarroco
Conforme vimos no primeiro ponto deste captulo, o neobarroco instaura na
Amrica Latina a noo da unio de contrrios, algo necessrio para a definio
identitria de povos que possuem tantas diferenas dentro de suas comunidades. Desta
forma, o poder de sntese e de unio dos contrrios instaura uma unio das diferenas,
que entrega ao continente uma identidade cultural e artstica h tanto tempo buscada.
Claramente filiado ao barroco ibrico mas no explicitamente ao neobarroco
de Sardu o escritor paraibano Ariano Suassuna coloca como um dos ncleos
emblemticos do Movimento Armorial a noo de que o povo brasileiro miscigenado
em essncia, uma ideia que o escritor j vinha amadurecendo h tempos, como pregamalguns dos estudiosos de sua obra, a exemplo de Newton Junior (1999), e como
podemos perceber na sua tese de livre-docncia (SUASSUNA, 1976).
Apesar de sempre fazer questo de declarar abertamente o seu distanciamento da
ideologia freyrianaprincipalmente no tocante opinio acerca do sertanejo enquanto
tpico brasileiro a tese de Suassuna tambm parte do princpio cultural adotado por
Freyre e v na mestiagem a grande vantagem do povo brasileiro. Assim como tambm
acontece em Casa Grande, o autor da Pedra do Reino(SUASSUNA, 2007) adota emsua obra uma postura que visa demonstrar o quanto vantajoso para os povos
castanhos a unio de contrrios, a miscigenao.
O contraditrio do pensamento de Suassuna, bem como do prprio Freyre,
enxergar na influncia estrangeira moderna um mal, e apenas na influncia estrangeira
do passado algo valoroso. Para ambos, a formao da identidade nacional vista no
como processo constante, mas como um resultado findo que deve ser conservado a
qualquer custo. A entrada do elemento estrangeiro modernizante seria um deturpador
da nossa identidade e, portanto, um mal a ser evitado.
Logo no incio de seu trabalho, Suassuna (1976) se ocupa de definir
caractersticas para diversos povos. As definies do autor paraibano so limitadas e
passveis de questionamento, principalmente porque, adotando um ngulo culturalista, o
autor ignora o quanto estes conceitos sobre cada povo esto permeados de esteretipos
construdos ao longo de sculos por historiadores, artistas e pensadores. Nos diz
Suassuna, que os povos castanhos e insulares so ao mesmo tempo apolneos e
dionisacos, solares e noturnos, numa sntese entre opostos que nos lembra de imediato
a premissa barroca. O autor ainda complementa afirmando que, diferente dos povos
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frios do norte da Europa, os povos castanhos so mais danarinos e musicais do que
reflexivos. O autor ressalta que o fato de serem esses povos mais danarinos e musicais
do que reflexivos no significa necessariamente uma desvantagem. Citando Nietsche, a
quem ele chama de um castanho nascido entre os povos frios, esclarece que o excesso
de razo muitas vezes prejudica o progresso, bem como classifica os povos castanhos
como mais performticos, capazes de se expressar mais pela performance do que pelo
isolamento.
Ao definir os povos castanhos, que seriam povos essencialmente misturados
advindos no norte da frica e da pennsula ibrica, Suassuna (1976) prossegue
afirmando que mais castanho ainda se tornou o povo brasileiro que mistura dos j
castanhos portugueses foram acrescentados os elementos negros e indgenas.
O autor ento tenta sintetizar o povo brasileiro em poucas palavras:
[...] reduzindo essas caractersticas mais marcantes do Povo brasileiroa uma s, que resume todas: trata-se, a meu ver, da unio decontrrios, da tendncia para assimilar e fundir contrastes numasntese nova e castanha que d unidade a uma complementaridade deopostos (SUASSUNA, 1976, p. 4).
Ora, nada mais apropriado para os ideais barrocos do que um povo que tem como
principal caracterstica a miscigenao. Suassuna (1976) percebe isso e logo em seguidacomenta que o barroco [...] um estilo contraditrio e totalizante, por ser a primeira
manifestao romntica de dissoluo do Clssico (SUASSUNA, 1976, p.7).
Essa noo de dissoluo do Clssico, como coloca o autor, condiz
perfeitamente com aquilo que j vimos no tpico anterior deste captulo. Quando o
neobarroco comea a tomar forma enquanto estilo prprio da expresso artstica latino-
americana, justamente essa noo de dissoluo do clssico que os intelectuais da
poca pretendiam. Afinal, estando a Amrica Latina margem do mundo artstico ento centrado na Europarestava apenas destruir o clssico institudo para instaurar a
sua prpria ordem.
O autor paraibano sabe da margem em que se encontra o Brasil dentro do
cenrio global e sabe mais ainda da situao marginal da cultura nordestina dentro dessa
margem que j o nosso pas. Por isso, ele lana mo do barroco, assim como fizeram
os artistas latino-americanos, na tentativa de desconstruir a viso instaurada, de romper
a viso clssica de que a cultura de valor sempre vem de fora, para estabelecer no serto
as verdadeiras razes da cultura brasileira, e, para alm disso, estabelecer esta cultura
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enquanto dotada de valores e atributos universais que tambm esto presentes nas mais
elogiadas obras da cultura mundial.
Suassuna no se mede publicamente em tecer elogios ao barroco e evidenciar a
influncia deste estilo na sua obra como um todo e tambm nas proposies artsticas do
prprio Movimento Armorial. Em texto sobre a arte popular brasileira (SUASSUNA,
2008a), comenta:
O Barroco, com sua capacidade dialtica de unir contrastes,introduz s vezes o esprito popular na Literatura erudita. Surgem,ento, os romances em verso de Gngora ou as novelas picarescascomo o Lazarilho de Tormes. [...]No caso do Brasil, a situao muito semelhante. A causa principal dadiscriminao, aqui, o encontro cultural que nossa formaopropiciou, com a cultura europeia dominando entre os Senhores e coma negra e a indgena formando a base da cultura do Povo. verdadeque imediatamente o nosso Povo comea a recriar e reinterpretar oBarroco ibrico de um modo brasileiro, tosco, mestio [...](SUASSUNA, 2008a, p.153-154).
No trecho citado podemos perceber toda a importncia que o autor v no barroco
e sua justificativa enquanto elemento essencial daquilo que ele chama de cultura
popular brasileira. O prprio escritor paraibano fala do poder sintetizante de contrrios
do povo brasileiro, que de um modo at natural comea a recriar e reinterpretar o
estilo artstico europeu a seus moldes.
Neste ponto, podemos trabalhar com clareza a aproximao de dois conceitos
que estamos trabalhando: barroco e mestiagem, ambos complementares,
principalmente no Brasil. Aqui tambm conseguimos entender porque no h uma
filiao clara de Suassuna ao movimento neobarroco. Para este autor, o barroco j foi
reinventado dentro das razes da cultura popular brasileira, assim, ele nega (ou sequer
nota) a influncia acadmica produzida pelos artistas e intelectuais latino-americanos
na segunda metade do sculo XX.
Prosseguindo no j citado texto, Suassuna continua com uma srie de
comparaes a autores clssicos da literatura com elementos da cultura popular, como,
por exemplo, Gil Vicente e o Bumba-meu-boi. O autor no fim desse seu ensaio se refere
peculiaridade da arte popular e a define:
A cultura popular feita pelo Povo, pelo quarto-Estado, aqui
identificado com os analfabetos ou semi-analfabetos. o conjunto dosespetculos como o Bumba-meu-boi, dos versos do Romanceiro, doscontos orais, das xilogravuras das capas dos folhetos das esculturasem barro queimado, das talhas, dos ornamentos, das bandeiras e dos
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estandartes de cavalhadasenfim, de tudo aquilo que o Povo cria paraviver ou para se deleitar e que, tendo sido criado margem dacivilizao europeia e industrial, , por isso mesmo, mais peculiar esingular (SUASSUNA, 2008a, p. 156).
A partir dessas consideraes, abrimos espao para a introduo de um aspecto
fundamental de sua obra: o Movimento Armorial. Conforme percebemos no trecho
anterior, Suassuna define a cultura popular essencialmente como um produto do
Povo, o quarto-Estado, que, segundo o prprio, seria constitudo essencialmente por
analfabetos ou semi-analfabetos, ou seja, pessoas com pouca escolaridade.
Como j afirmamos em outro ponto deste captulo, a premissa base de Suassuna
e de tantos outros pensadores que o precederam ou a ele se filiaram de que a genuna
cultura brasileira a cultura popular. Evidente que dentro desta definio de cultura
popular, mesmo seguindo o conceito passado pelo prprio Suassuna, no se enquadra
outras produes do Povo que possua alguma influncia de elementos de culturas
estrangeiras. Para ser a genuna cultura popular, a nica influncia estrangeira aceitvel
a vinda com portugueses e espanhis na poca da colonizao.
Assim sendo, e ainda segundo a tica do Movimento Armorial, dentro do nicho
da cultura popular, uma cultura que est ainda mais prxima da verdadeira e genuna
cultura nacional a cultura sertaneja. Como j dissemos, justamente por ser o serto
uma parte isolada do pas, distante do avano tecnolgico e, quase que por
consequncia, das influncias estrangeiras. Vale lembrar que Suassuna assumidamente
contra o avano tecnolgico e continua, at hoje, a produzir sua obra toda mo, sem
uso sequer de mquina de datilografar.
Com essa noo de cultura popular enquanto o elemento essencial da cultura
nacional brasileira, Suassuna empreende a partir de 1970 o chamado Movimento
Armorial, que em termos simples podemos dizer que se pretende uma revitalizao da
cultura popular por vias eruditas ou uma apropriao clssica da cultura popular.O Movimento Armorial teve incio oficialmente em 18 de outubro de 1970, na
cidade de Recife (PE), conforme nos mostra Newton Jnior (1999). De acordo com o
estudioso, o movimento foi lanado com um concerto da Orquesta Armorial de Cmera
e uma exposio de gravuras, pinturas e esculturas.
Na poca de lanamento, pouca ateno foi dada ao Movimento pela imprensa
em geral. Apenas um ano aps o seu lanamento que o resto do pas e at mesmo do
Nordeste comea a tomar conhecimento do Movimento Armorial, tudo devido a umasrie de excurses que o prprio Suassuna passou a fazer com a Orquestra Armorial a
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fim de divulgar a produo artstica dos que a ele aderiram, eram as chamadas aulas -
espetculo.
Podemos dizer que o sucesso da excurso representou o lanamento,
em nvel nacional, do Movimento Armorial. A partir dela, de fato, oMovimento comeou a ser conhecido e divulgado para alm dasfronteiras do que Suassuna considera o corao do Nordeste Pernambuco, Paraba e Rio Grande do Norte (NEWTON JNIOR,1999, p.85-86).
Para definir o movimento, sua premissa bsica e seus ideais, devemos pensar
primeiro no porqu do nome Armorial. Pra entender, citemos mais uma vez Newton
Jnior (1999,p. 86-87)
Armorial, em nosso idioma, era somente substantivo: livro ondevm registrados os brasesuma palavra ligada herldica, portanto.Ariano Suassuna, idealizador do Movimento, passou a emprega-latambm como adjetivo. Criou, assim, um neologismo para identificara arte que defendia e defende, uma arte erudita que, baseada nopopular to nacional quanto a arte popular, elevando-se importncia desta e conseguindo manter, com ela, uma unidadefundamental para combater o processo de vulgarizao edescaracterizao pelo qual vem passando a cultura brasileira.
Ou seja, o Movimento Armorial formulado por Suassuna com o intuito essencial demanter viva a cultura nacional diante do processo de vulgarizao e descaracterizao
pelo qual vem passando a cultura brasileira. Para isso, os artistas armoriais se munem
da produo popular e a recriam dentro dos moldes eruditos, dando a essa nova
produo uma importncia e validade identitria to genuna quanto a prpria cultura
popular.
nesse ponto que Suassuna recebe as mais negativas crticas ao seu
pensamento. Defensor da cultura popular nordestina, Suassuna v toda influnciaexterna contempornea como sendo uma vulgarizao. uma posio radical, que
estabelece como ideal a ser seguido apenas uma arte clssica, que funciona muito bem
dentro da histria da arte, mas no tem muito sentido em um mundo modernizado e
tecnolgico como o que vivemos nos sculo XX e continuamos ainda mais a viver no
sculo XXI.
Os modernistas entenderam a necessidade da simbiose de culturas e de suas
vantagens, principalmente Oswald de Andrade, assim como entenderam ainda mais os
Tropicalistas, que levaram ao extremo a mistura entre os elementos culturais mais
diversos.
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Porm, Suassuna se mantm como um Rei, o mesmo Rei degolado de sua obra,
A Pedra do Reino, tentando defender seu castelo diante das invases brbaras. H em
Suassuna o mesmo esprito saudosista que encontramos em Gilberto Freyre. Este via
nas antigas casas-grandes e senzalas uma poca gloriosa a que ele no tinha mais acesso
porque j estava em vias de extino. J o escritor paraibano, membro de uma das mais
poderosas famlias da Paraba, v ainda criana o poder de sua famlia se esvair diante
das investidas de polticos progressistas. Perseguidos, seus familiares fogem para
Pernambuco, seu pai assassinado e fica em Suassuna uma necessidade de reviver um
passado que durou pouco demais para t-lo satisfeito e que acabou rpido o suficiente
para deixar o desejo de revitalizao desse passado. Nesse desejo saudoso, o progresso,
a produo cultural que vem com ele e as inovaes tecnolgicas so os inimigos a
serem combatidos, justamente porque esse progresso que destri as possibilidades derevitalizao e manuteno do passado idealizado.
O Movimento Armorial em si uma tentativa de revitalizao de um passado.
Sabemos que a cultura um elemento dinmico e que formas artsticas vm e vo de
acordo com as necessidades da poca. Entretanto, isso no significa que o Armorial seja
um equvoco, muito pelo contrrio. Junto com outras produes da sua poca ele
tambm atendeu uma necessidade e teve seu papel dentro da cultura contempornea
nacional.O msico e compositor Chico Science, muito conhecido nos anos 1990 pela
ampla divulgao a nvel nacional do movimento conhecido como Manguebeat
reconheceu vrias vezes sua filiao aos apontamentos armoriais, como diz o prprio
Suassuna em entrevista contida na edio do Cadernos de Literatura (SUASSUNA,
2000) a ele dedicado. Nesta mesma entrevista, Suassuna afirma que no concordava
com Science na valorizao de elementos da cultura estrangeira que o escritor paraibano
classifica enquanto lixo cultural, como o rock.
Diferente do que aconteceu nos movimentos de vanguarda, no Armorial no
tivemos um manifesto.
Quando se fala em um movimento, pensa-se, logo, em um grupo deintelectuais reunidos para escrever um manifesto, para ento, a partirda, surgirem obras que expressem friamente as reflexes tericas dogrupo. Nada disso pode ser vinculado ao Armorial. Primeiro porque,neste caso, a arte armorial precedeu o prprio Movimento. De fato,muito antes do lanamento oficial do Movimento, vrios artistas,
intuitivamente ou no, j trilhavam o caminho que mais tarde seriaanunciado como bandeira do Armorial [...] (NEWTON JUNIOR,1999, p.88).
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Como vemos no trecho citado, a ideia era que o Armorial agregasse os artistas
que j mantinham essa orientao em comum sem ser necessrio a exposio de um
manifesto ou elaborao de uma espcie de manuala ser seguido.
Entretanto, apesar da inexistncia de um Manual e de um manifesto, vrias
concepes de arte guiam o trabalho daqueles artistas que se agregam ao Movimento.
Apenas em 1974 que Suassuna publica uma coletnea de suas colunas publicadas no
Jornal da Semana, na qual falava sobre os ideais armoriais. Em essncia, a arte
armorial de base popular, porque, para seus seguidores, o popular a base do
nacional. Newton Junior (1999) nos fala da problemtica em se aliar popular nacional
diante da viso de que esta uma postura retrgrada e esclarece que, para Suassuna, a
questo da arte popular e da arte erudita tpica de culturas constitudas por povos quedominam outros. A arte popular, no caso do Brasil, identifica-se com aqueles elementos
do nosso povo mantidos, de qualquer forma, desde o sculo XVI, margem da cultura
oficial. So os descendentes mais escuros de ibricos pobres, negros e ndios
(SUASSUNA, 1986 apud NEWTON JUNIOR, 1999, p.101-102).
Definir uma arte como erudita ou popular no atribuir qualidade, mas sim
distinguir diferentes categorias. Da mesma maneira, filiar-se a uma ou a outra no
questo de escolha, mas de formao. Um determinado artista que tenha formaoerudita no poder, mesmo que queira, fazer arte popular. O que ele pode fazer ligar-
se de alguma maneira ao popular, em busca de uma unidade nacional (NEWTON
JUNIOR, 1999, p. 104).
Nesses termos, havemos de considerar a coerncia do escritor paraibano em
definir aqueles que participam de seu movimento. Os artistas armoriais no produzem
arte popular, mas sim se utilizam desse tipo de arte para produzir algo nos moldes
acadmicos. O prprio Suassuna faz questo de no ser classificado enquanto escritor
popular, afinal, ele em sua posio de ex-professor universitrio e fomentador cultural
que tantas vezes ocupou importantes cargos pblicos em Pernambuco est longe de ser
um semi-analfabeto, premissa bsica, segundo o prprio, para a produo de cultura
popular.
O Movimento Armorial possui pelo menos trs fases bem definidas e que
condizem com a forma que ele foi assumindo ao longo do tempo. Assim que surgiu, por
querer agregar um nmero cada vez maior de artistas, o Movimento acabou assumindo
muitas incoerncias e at desvios. Essa, de 1970 a 1975, Suassuna chamou de
experimental (NEWTON JUNIOR, 1999). Nesse perodo, houve a adeso de muitos
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artistas ao Movimento, muitos dos quais no possuam tanta qualidade artstica, mas
que mesmo assim eram muito bem recebidos pelo idealizador e tinham seus trabalhos
divulgados. Em citao trazida por Newton Jnior (1999, p. 92), Suassuna explica:
[...] na primeira fase, eu tive que comear vrias coisas de qualquermaneira, fechando deliberadamente os olhos para certos adesismos,improvisaes, artificialismos e equvocos, algumas vezes graves. [...]Bastaria o aparecimento de Antnio Jos Madureira, do QuintetoArmorial e da Orquesta Romanal Brasileira para justificar todo oresto do trabalho. No esquecer, por outro lado, que Gilvan Samicoprestigiou o movimento, que se engrandeceu com seu nome,respeitado por todo mundo. O tempo vai depurando tudo: uns, deixamo Movimento porque, de fato, nunca se interessaram verdadeiramentepela Cultura brasileira; outros porque, mais sensveis s modas e scrticas, resolveram tomar outros caminhos; outros porque tm o
temperamento mais solitrio, e assim por diante.
A segunda fase do movimento, denominada Romanal (de 1975 a 1981),
considerada a mais madura, tendo na Orquestra Romanal e no Bal Armorial os
grandes expoentes da produo. Na terceira, a Arraial, iniciada a partir dos anos 1990,
h uma influncia dos folguedos e festas populares na obra de todos os artistas
integrantes.
Hoje o Movimento Armorial tem no artista Antnio Nbrega e na figura do
prprio Suassuna seus maiores expoentes. Apenas para termos uma ideia, um site da
web que agrega vdeos mandado por usurios o Youtube possui inmeros vdeos
protagonizados pelo idealizador do Movimento Armorial em inmeras aulas-espetculo.
Uma doce ironia, j que justamente a tecnologia, to criticada pelo autor paraibano,
que ajuda na difuso de seus ideais.
Ao longo deste captulo vimos as caractersticas do barroco, seu ressurgimento
no sculo XX, seus principais pensadores e idealizadores, bem como suas diversas
apropriaes seja de forma explcita ou no no Brasil e na Amrica Latina.
Suassuna, enquanto autor comprometido com a revitalizao da cultura popular (ou
genuinamente brasileira) tambm se filia ao neobarroco, mesmo sem citar essa filiao,
ao estabelecer o barroco como uma essncia da cultura popular que ele prope
revitalizar.
A filiao ao neobarroco corresponde no pensamento de Suassuna com a sua
concepo do povo brasileiro enquanto uma raa castanha, ou seja, dotada de
caractersticas mestias prximas ao estabelecido por Freyre. Um povo que mantmelementos das mais diversas culturas, reunindo em um todo partes que muitas vezes so
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antagnicas, mas que no prejudicam a hegemonia geral, assim como acontece com o
prprio barroco, estilo dos paradoxos por essncia.
Para promover o ideal barroco nas artes e na cultura brasileira em geral,
Suassuna torna-se o grande fomentador do Movimento Armorial, que se prope a fazer
releituras da cultura popular por meios clssicos. Tal movimento, apesar de controverso,
deixou suas marcas na cultura brasileira em geral e marcou fortemente principalmente a
produo literria de Suassuna, como acontece com a obra que nos propomos analisar:
O Romance da Pedra do Reino.
No captulo seguinte, pretendemos iniciar a anlise da obra,A Pedra do Reino,
luz essencialmente do neobarroco e do dilogo desta vertente artstica com o
Movimento Armorial. Entendendo os paradoxos, a parodizao e a carnavalizao,
acreditamos que poderemos entender tambm a essncia da prpria obra de Suassuna, oque nos levar, consequentemente, a entender a concepo do autor a respeito da
identidade nacional.
Antes de prosseguirmos, devemos salientar que haver em nossa anlise um
afunilamento desse conceito identitrio. Apesar de sempre se referir a identidade
nacional, sabemos e entendemos que da identidade nordestina que Suassuna est
falando. Assim, sempre vamos nos referir a identidade nordestina em nossa anlise,
muito embora dentro do prprio livro seja a identidade brasileira que seja trabalhada ereforada. Como j ressaltamos ao longo deste captulo, o Brasil tanto por suas
dimenses continentais, como por seu complexo processo de formao formado por
inmeros povos que clama, com direito, cada um a sua prpria identidade. Dizer que a
representao tipicamente nordestina deA Pedra do Reino um exemplo da identidade
nacional como um todo, um reducionismo que Suassuna comete e ns no precisamos
repetir.
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FOLHETO II
O caso de Quaderna, sua obra e a representao da identidade
A partir deste ponto de nosso trabalho, iniciaremos a anlise propriamente dita.
Destacando trechos e elementos da obra, pretendemos evidenciar os traos constitutivos
da identidade nacional presente no livro e o quanto esta identidade corresponde aos
ideais ou caractersticas da esttica barroca.
Investigar um romance como aPedra do Reinono uma tarefa fcil, tanto pela
sua extenso quanto pela variedade de elementos. Para guiar nossa investigao
precisamos de um ponto concreto ao qual poderemos nos prender e dele extrair o
mximo possvel de elementos passveis de investigao. A escolha de um nico pontose justifica por preferirmos levantar elementos coerentes, inter-relacionados, que
passem em si uma vista ampla da homogeneidade da obra de Suassuna.
Quaderna o grande foco da obra e em torno dele que ela construda.
Conforme veremos, cada detalhe do romance tecido em volta de seu narrador e sua
trajetria identitria. Por isso, torna-se quase impossvel fugir da escolha de Quaderna
como o pilar de nossa anlise. Quando colocamos seu narrador no foco da investigao,
a obra do escritor paraibano funciona como um romance de formao. A vida destepersonagem, suas ideias e motivaes so temas recorrentes em toda a narrativa.
Percebemos ao longo do romance a formao da identidade desse personagem e, mais
que isso, como essa identidade uma representao em microescala da identidade
nordestina defendida por Suassuna e que tem na filiao ao barroco nossa hiptese de
trabalho. Assim, sempre que estivermos falando de Quaderna tambm do nacional que
estamos falando. Ao passo que formos analisando este personagem, vamos tambm
evidenciar o quanto esta relao que propomos pertinente, afinal, o prprio
personagem que tantas vezes se coloca como o genuno brasileiro ao longo de narrao.
Neste captulo optamos pela diviso em dois aspectos: o primeiro tratando do
romance em sua estrutura e o segundo mais focado em Quaderna, do qual iremos extrair
boa parte do contedo de nossa argumentao.
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2.1 O romance e sua estrutura
O Romance dA Pedra do Reino e o Prncipe do Sangue do Vai-e-Volta o
primeiro romance escrito por Ariano Suassuna a ser publicado. Datada de 1971,um ano
aps o lanamento do Movimento Armorial, esta a sua obra mais extensa. O Romance
dA Pedra do Reino uma obra ficcional, ambientada no serto paraibano, mais
especificamente em Tapero e regio fronteiria entre Paraba e Pernambuco. Apesar de
tratar-se de uma fico, a obra traz em seu mote narrativo fatos conhecidos da histria
brasileira. O personagem principal e narrador da obra ou ao menos assim se
proclamabisneto da principal figura envolvida no, assim chamado, massacre da Pedra
Bonita. Segundo relatos do prprio personagem, o seu av teria escapado ainda beb,aps nascer no exato momento em que sua me foi degolada pelo Rei da Pedra
Bonita, que por sua vez era pai deste e bisav do personagem-narrador.
Seu av cresceu sob os cuidados de um padre, que suprimiu o sobrenome
Ferreiramais conhecido quando o assunto era o massacre na pedra e registrou o
menino apenas com o sobrenome de Quaderna, muito menos conhecido que o primeiro.
Para completar toda a herana real do personagem, o pai deste portanto, filho do
beb que teve o sobrenome Ferreira suprimido casou-se com a irm de um poderosofazendeiro do serto paraibano, Sebastio Garcia Barreto. Desse casamento nasceu,
entre outros tantos irmos, Pedro Dinis Ferreira Quaderna, o nosso narrador, que, sendo
descendente dessas duas linhagens, se acha no direito de se proclamar herdeiro do
verdadeiro trono do Brasil.
A princpio tudo pode parecer confuso e podemos acreditar que Quaderna
simplesmente um louco megalomanaco, entretanto, o modo como o discurso narrativo
constitudo nos ajuda a entender o personagem e at simpatizar com suas nobres
causas. Toda a obra focada em seu narrador, apesar desta por ele ser elaborada e ter
como principal objetivo narrar uma aventura pica e inigualvel que o consagraria como
o gnio da raa algo que ser melhor compreendido apenas adiante, quando
adentrarmos nestes pormenores. Vejamos como o livro est organizada estruturalmente
e como se configura o prprio personagem principal na estrutura narrativa.
A Pedra do Reino um livro robusto, de 754 pginas em sua nona edio, e
composto por cinco Livros. No devemos achar que esta diviso em livros seja algo
prximo a algumas investidas contemporneas de fragmentao da narrativa. O padro
narrativo permanece clssico e a mesma histria segue ao longo dos cinco livros. O que
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vai distinguir cada uma dessas divises menores apenas a temtica abordada por cada
uma dessas partes.
O Livro I uma apresentao do personagem principal, com contextualizao
bsica de sua condio atualpreso na cadeia pblica de Tapero. Aps isso, temos boa
parte desta parte dedicada formao de Quaderna sua infncia e educao os
caminhos que o levaram a se entender enquanto membro de uma linhagem real e
explorao da histria de sua famlia paterna, os reis da Pedra do Reino. Aqui vemos o
Quaderna menino procurando entender a desordem da sua famlia e se encantando pelos
elementos da cultura popular que tanto venera.
O Livro II descreve a relao de Quaderna com seus professores Samuel e
Clemente e sua ascendncia materna, a filiao famlia dos Garcia-Barreto. Neste
livro, entendemos as aspiraes rgias de Quaderna e acompanhamos sua formaointelectual. Aqui comeam a serem delineados os traos ambguos de seu carter,
sempre caminhando entre a esquerda-extremista de Clemente e a direita-conservadora
de Samuel.
No Livro III tem incio o maior conflito da obra e o principal mote de progresso
da narrativa: o inqurito ao qual Quaderna submetido e que est relacionado morte
de seu tio e padrinho, Sebastio Garcia Barreto morto a facadas enquanto estava
trancado em uma torre a quem ningum poderia ter acesso. O depoimento possui umtom de confisso ou at mesmo de sesso psicanaltica se assim podemos dizer. Tal
qual um paciente sendo analisado, Quaderna vai sendo interrogado de tal forma que
comea a se desdobrar. Segundo a psicanlise, justamente aquilo que no
queremos dizer que mais importa (FINK, 1998). Alm disso, apesar de reconhecermos
em outras passagens da obra as contradies de Quaderna, no depoimento ao
corregedor que vemos o seu carter redondo, conforme a conceituao de Forster
(1985)7. Para o terico, os personagens podem ser divididos em redondos e planos, os
redondos sendo personagens previsveis, de comportamento uniforme, enquanto os
redondos so personagens que surpreendem o leitor pelo seu comportamento,
aproximando-se, segundo o prprio Forster (1985), mais da natureza humana. Assim,
Quaderna comea a dizer coisas que no queria dizer. Neste trecho da obra, o prprio
7No original: The test of a round character is whether it is capable of surprising in a convincing way. If
it never surprises, it is flat. If it does not convince, it is a flat pretending to be round. It has theincalculability of life about itlife within the pages of a book. And by using it sometimes alone, moreoften in combination with the other kind, the novelist achieves his task of acclimatization and harmonizesthe human race with the other aspects of his work (FORSTER, 1985, p. 78).
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leitor apresentado a uma face do personagem queapesar de j conhecidano tinha
se mostrado de forma to explcita e agressiva: o mentiroso.
O foco do inqurito, at ento dedicado chegada de Sinsio filho de
Sebastio Garcia Barreto e sobrinho-primo de Quaderna (porque era filho do padrinho
com a irm do narrador) passa a ser o prprio Quaderna a partir do Livro IV.
Deixamos de prestar ateno aos fatos que cercam a chegada do rapaz do cavalo
branco e passamosa enxergar apenas os atos do narrador.
Neste livro o corregedor se ergue narrativamente como o grande antagonista
do personagem-narrador e arranca destes fatos que o leitor sequer tinha conscincia da
existncia. Esta parte da obra tem uma importncia significativa por contribuir para a
revelao da farsa narrativa de Quaderna e nos fazer mergulhar com mais intensidade
em suas ambiguidades.O Livro V intensifica as revelaes do personagem e nos mostra melhor a
faceta enganadora do narrador. Submerso em sua prpria narrativa, Quaderna se desfaz
de suas mscaras e revela para o corregedor fatos que at ento tinha ocultado de todos,
inclusive do leitor.
Como podemos perceber, apesar da pretenso de Quaderna ser a abordagem da
saga dos filhos de seu padrinho aps sua morte o caso do rei degolado o prprio
narrador que se torna o foco maior da narrativa. Assim, fica fcil entender porqueescolh-lo como nosso objeto de anlise.
Ainda no plano estrutural, e alm da diviso em Livros, A Pedra do Reino
evidencia toda sua intertextualidade com a literatura popular ao adotar Folhetos ao
invs de Captulos. A respeito desta presena de elementos da cultura popular na obra,
h trabalhos como o pioneiro estudo de Lind (1974) e a pesquisa de Moura (2002).
O trabalho de Lind (1974) se deteve a um levantamento quantitativo de folhetos
presentes na obra do escritor paraibano. Como podemos ver no trecho a seguir:
Destes 37 romances, dois pertencem ao ciclo dos romances deamor [...], trs aos romances de safadeza e putaria [...]. Ao ciclodos cangaceiros e cavalarianos pertencem 12 romances [...]. Dosromances de espertezas o autor aproveitou apenas um, o do JooMalasarte e o Portugus. O ciclo melhor representado, logo aseguir aos romances de cangaceiros e cavalarianos o religiosoe proftico: Suassuna cita 8 destes romances religiosos [...]. 26dos 37 romances so facilmente classificveis. Os restantes 11
ou resistem a uma classificao fcil ou revelam-se comoinvenes do prprio cronista D. Pedro Dinis (LIND, 1974,p.36-37).
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J Moura (2002) realiza uma investigao sobre as relaes estticas que Suassuna
estabelece entre seu romance e a arte popular nordes