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AVENTURANDO-SE NAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INTERCULTURAIS
PARA A LEI 11.645/08: SABERES E PRÁTICAS CORPORAIS INDIGENAS
Considerando que o conhecimento da Lei 11.645/08 que recomenda a inserção de
aspectos da cultura afro-indígena nas escolas foi que ao planejarmos as Olimpíadas
inclusivas 2015 da Escola Municipal de Educação Básica Ministro Marcos Freire em
Cuiabá, MT, tomamos a decisão de dar início ao processo de inserção-inclusão desta lei
com as crianças da Educação Infantil e as do 1º, 2º e 3º anos (1º ciclo do ensino
fundamental) através da metodologia da pesquisa ação. Acadêmicos do curso de
licenciatura em educação física de uma faculdade privada, estagiários, amparados por
esta lei, foram orientados a planejarem uma estação de jogos indígenas através de um
projeto de implementação/implantação da Lei 11.645/08 com aspectos da cultura
indígena durante o Estágio Supervisionado I. Optou-se por dois jogos – “corrida com
tora” e “arco-e-flecha, que foram desenvolvidos em uma estação temática por cerca de
250 crianças distribuídas em cinco equipes Além do componente lúdico-desafiador
destes jogos, percebeu-se o quanto todos participaram interessados em conhecerem os
jogos indígenas, tanto as crianças quanto professoras/es. Considera-se que as boas
condições de início da inserção dos jogos indígenas nesta comunidade escolar, que
possibilitou a interculturalidade, seja apenas um marco desafiador para se continuar
aprofundando nesse tema e sobretudo espera-se que a história e a cultura indígena que
requer cuidadoso, amoroso e competentes empenhos por parte de todos, sejam
conhecidas e valorizadas nas suas peculiaridades e, sobretudo, espera-se que os
participantes tenham histórias para se contar sobre esse tema.
Palavras-chave: Lei 11.645/08. Interculturalidade. Jogos Indígenas.
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PRÁTICAS CORPORAIS INDÍGENAS INSERIDAS À EDUCAÇÃO FÍSICA
ESCOLAR NÃO INDÍGENAS
Gédson Cardoso Kempe - FCARP
Attico Inácio Chassot - REAMEC
RESUMO
Nas aulas de Educação Física, usualmente, se observa práticas corporais que são
alienígenas ao mundo cultural dos educandos e, muitas vezes, até do mundo dos
professores. Assim, o objetivo principal desse estudo foi desenvolver uma pesquisa-
ação, sobre as práticas corporais indígenas, para melhor compreender como essas
acontecem e como poderiam ser utilizadas na composição dos currículos da educação
física escolar em escolas não-indígenas. Partindo dessa análise e compreensão, buscou-
se construir uma proposta de uma Educação Intercultural. Num campo mais específico,
houve tentativas de compreender e utilizar práticas corporais sistematizadas de outras
culturas, como uma forma de refletir, por deslocamento, sobre os próprios padrões
culturais, ponderar sobre as relações de identidades e valorizar a pluralidade
sociocultural. Procurou-se avaliar práticas corporais indígenas enquanto caminho
inverso do que usualmente ocorre, isto é, ao invés de impor aos indígenas a cultura dita
branca, houve a tentativa de trazer a cultura destes à escola não-indígena. Assim, se
propôs uma aproximação com culturas usualmente não consideradas na escola não-
indígena. Os dados foram coletados e analisados em uma perspectiva qualitativa,
utilizando-se a observação, entrevista e referenciais acerca do contexto, podendo-se
caracterizar como uma Pesquisa-Ação. Os sujeitos da pesquisa foram os acadêmicos de
um Curso de Licenciatura em Educação Física da Faculdade Rainha da Paz (FCARP),
uma faculdade isolada privada do Oeste do Mato Grosso. Com o presente estudo
evidenciou-se a necessidade de cumprir e fazer cumprir Leis que disciplinam a trazida
da cultura indígena à Escola. Na elaboração da pesquisa houve a convicção de que há
necessidade urgente de se preservar saberes populares detido por diferentes culturas, até
porque muitos destes correm o risco de desaparecerem.
Palavras-chave: Educação Física. Formação de professores. Lei 11.645/2008.
Introdução
Este estudo, recorte de uma dissertação de mestrado da qual fomos orientador e
orientando, se inscreve na área da Educação, especificamente a Educação Física, e o
todo escolar em que está imerso esse componente curricular e visa investigar como as
práticas corporais indígenas poderiam ser utilizadas na composição dos currículos da
educação física escolar.
De caráter qualitativo, o presente estudo buscou “uma avaliação da relevância
política dos grupos e das ideias que vinculam dentro de certa conjuntura ou movimento.
Trata-se de chegar a uma representação de ordem cognitiva, sociológica e politicamente
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fundamentada. Com possível controle ou ratificação de suas distorções no decorrer da
investigação” (THIOLLENT, 2005, p. 69).
O percurso da investigação foi dividido em três grandes etapas: a) levantamento
do material bibliográfico; b) classificação do material selecionado como fonte de
pesquisa; e c) proposição de formas de execução e levantamento das informações e
resultados finais.
Os sujeitos do estudo foram acadêmicos do 5º Semestre do Curso de
Licenciatura em Educação Física da Faculdade Católica Rainha da Paz (FCARP) na
cidade de Araputanga-MT, com a faixa etária entre 20 a 40 anos de ambos os sexos.
O estudo foi dividido em três fases a saber:
1ª fase – Situar os acadêmicos acerca dos objetivos da pesquisa e formas que a
mesma se realizaria. Aqui foi oferecido aos alunos opção de participar da pesquisa ou
não, para tal, utilizamos recursos audiovisuais como slides, vídeos, filmes,
documentários, assim como materiais impressos como artigos, livros, relatos e histórias
Com o tema, prática corporal indígena, os acadêmicos tiveram a incumbência de
elaborar no mínimo 10 (dez) seções – planos de aula.
2ª fase –Realização de seções de aula, com duração de 01 (uma) hora/aula, que
foram executados em Escolas públicas não indígenas da região geo-educacional onde
está a Faculdade onde estudavam os acadêmicos de Educação Física, como atividade de
estágio, que em conformidade com o Cronograma de Supervisão Pedagógico-
Avaliativa do Estágio Curricular Supervisionado Fase III – FCARP - Regência:
planejamento de planos de aulas e regência de aula com duração mínima de 40
(quarenta) horas/aula, teóricas e práticas.
Para aprimorar os conhecimentos e o envolvimento acerca das práticas corporais
indígenas, foi realizado um Seminário, intitulado: “1º Seminário de Práticas Corporais
Indígenas”, aberto a toda a população e acadêmicos, em especial aos acadêmicos do
Curso de Licenciatura em Educação Física, envolvidos na pesquisa, onde foram
abordados assuntos referentes às práticas corporais indígenas, através de palestras e
mesas redondas, com condução e orientação pesquisadores da temática. Assim como
oficinas temáticas sobre as práticas corporais indígenas e apresentação das práticas
corporais realizadas e materiais confeccionados.
3ª fase – Ao término de todas as seções, tanto as teóricas quanto as práticas, os
acadêmicos tiveram a oportunidade de, através de uma roda de conversa, expor suas
vivências, pontuando os pontos positivos e negativos, de aplicação das práticas
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corporais indígenas como conteúdo nas aulas de educação física das escolas não
indígenas.
Delimitar a FCARP como espaço para a pesquisa, justifica-se por ser esta
instituição lócus desencadeador de discussões acerca da diversidade cultural e também
de saberes, e de forma mais específica, o local onde há uma maior possibilidade de ter
acadêmicos interessados na temática da pesquisa, por serem futuros profissionais da
área, ou moradores da região. Outro fato a constatar, foi a necessidade dos cursos
formadores de professoras e professores promover e transmitir a cultura brasileira e
regional, em suas diferentes modalidades, tornando-a patrimônio de toda comunidade.
Deve-se salientar também que um dos autores deste relato de pesquisa é professor
responsável por disciplinas de formação pedagógica da Licenciatura em Educação
Física, na instituição antes referida.
Os instrumentos para coleta de dados foram empregados em duas fases. Na
primeira foi utilizada a observação, na segunda foi realizado uma entrevista
semiestruturada. As entrevistas aconteceram, seguindo um questionário com 15 (quinze)
perguntas abertas, foi realizada, individualmente, no curso de Educação Física da
FCARP. As entrevistas aconteceram logo após o término das sessões de aulas.
A pesquisa teve uma abordagem qualitativa, para tanto foi utilizado a
observação, entrevista e documentos.
Para a coleta de dados foram percorridos três momentos, a saber: 1) Roda de
conversa, onde eram traçados caminhos a serem percorridos, bem como os conteúdos
das práticas corporais indígenas e materiais que seriam ou poderiam ser utilizados,
sempre levando em consideração os escolares e os espaços físicos de cada unidade
escolar parceira na pesquisa.
2) Seminário de práticas corporais indígenas: contou com a participação do
Grupo de Estudo e Pesquisa do Curso de Educação Física – GRUEFIS, vinculado à
FCARP, objetivou a vivência de práticas corporais indígenas, com foco na Lei nº
11.645, de 2008.
3) Questionário/observações: nessa parte da coleta de dados propiciou a
efetivação dos anseios anteriores à pesquisa. Feedback ímpar, e ao mesmo tempo
orientando novos caminhos.
Com o objetivo de identificar as práticas corporais indígenas que poderiam ser
inseridas no currículo da Educação Física Escolar em Escolas não indígenas, mais
especificamente analisar práticas corporais sistematizadas para compreensão de outras
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culturas, ponderando sobre identidades e as relações com a pluralidade sócio cultural,
assim como avaliar a prática corporal indígena e as contradições com as práticas usuais,
desta forma aproximar culturas indígenas com as práticas curriculares de escolas não
indígenas.
Este estudo se construiu a partir da experiência de mais de 19 anos, do então
mestrando, como docente da Educação Básica, a vivência com o ensino da Educação
Física Escolar em diferentes localidades do Estado de Mato Grosso (MT), em especial,
a região dos municípios de Castanheira e Juína, onde encontram-se aldeias indígenas.
A um dos autores pode ser conferido status privilegiado para propor e
desenvolver pesquisa acerca do tema, pois desenvolve atividades profissionais tanto no
ensino fundamental e também no médio, além de se envolver, enquanto docente do
ensino superior na formação professoras e professores de várias partes da região.
Com a pretensão de oportunizar aos acadêmicos do Curso de Licenciatura em
Educação Física da Faculdade Católica Rainha da Paz – FCARP, contato com uma nova
possibilidade de saberes científicos, que apesar de serem natos da terra, ainda não fazem
parte das práticas corporais aprendidas ou ensinadas dentro das escolas. Também vale
destacar as relações e modificações na forma de ver e viver a vida, o que possibilita,
quase como um subproduto muito significativo a (re)valorização de parentescos,
restabelecendo laços familiares.
Não menos relevante, para a preposição deste estudo, a possibilidade de trazer
para dentro das escolas, mais especificamente nas aulas de educação física, os saberes
primevos, os quais Chassot caracteriza-os como populares, primitivos ou da tradição.
Saber primevo é produzido a partir de práticas sociais de grupos específicos. Pode ser
considerado um saber cotidiano, do ponto de vista de um pequeno grupo. De maneira
geral eles são importantes para que determinada população viva melhor (CHASSOT,
2008).
Assim na “busca” de saberes populares, que correm o risco de extinção, e trazê-
los para a sala de aula. Na escola, esses saberes podem ser trabalhados à luz dos saberes
acadêmicos, para então converterem-se em saberes escolares” (CHASSOT, 2014, p.
119), nesta direção realizamos o presente estudo com pretensão de investigar “Práticas
corporais indígenas inseridas à educação física escolar não indígenas”, analisando a
possibilidade da implantação das mesmas nos currículos escolares e acadêmicos de
escolas não indígenas, priorizando a socialização, privilegiando a postura e a cultura dos
povos indígenas e enfatizando a relevância para a Educação Física escolar.
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Ao levar os acadêmicos a defrontarem-se com problemas elencados nesse
estudo, assim como a sua participação nas discussões preliminares, na realização dos
experimentos e na organização de atividades de intervenção, propiciando um
aprendizado único, diferenciado, desafiador, capaz de desencadear novas motivações,
desta forma podendo tornarem-se agentes transformadores dentro da educação por meio
das práticas corporais indígenas.
Parece possível afirmar que tal situação não terá um desfecho, sem que haja uma
mudança em nossa postura enquanto formadores de futuros professores, uma mudança
significativa onde passemos a procurar e propor caminhos, novas formas de pensar e
agir. Nessa perspectiva proponho a pesquisa que poderá tornar-se significativa para
promover tais mudanças.
Desta forma, sendo menos evasivos no sentido de não adentrar em aldeias e mais
efetivos em colocar em prática o que já fora estudado por detentores de experts em
culturas indígenas brasileiras, sendo provável que assim se contemple a necessidade de
olharmos com novos óculos as práticas corporais indígenas.
Um diálogo onde saberes primevos se fazem saberes escolares
Marcados por algumas incertezas, e, talvez, anunciando propostas alternativas a
novas abordagens para a Educação Física escolar, que visem tornar possível um ensino
emancipatório, capaz de formar sujeitos críticos e conscientes da realidade de sua
comunidade, região e país.
Mesmo colocando-se como lócus da pesquisa o Oeste do Estado do Mato
Grosso, região habitada há séculos por vários povos indígenas, percebemos, no
transcorrer de um semestre de atividade docente, acompanhando atividades de Estágio
Supervisionado, com alunos do 4º Semestre do Curso de Licenciatura em Educação
Física da FCARP, que sabíamos muito pouco sobre nossos ancestrais e vizinhos.
As aulas de Educação Física Escolar são essenciais para a formação integral da
criança e do adolescente, razão pela qual as mesmas têm caráter obrigatório no currículo
escolar. A LDBEN (Lei 9394/96) é explícita: “Art. 26. Os currículos do ensino
fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em
cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida
pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura e da economia” e no
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parágrafo 3º consagra: “A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é
componente curricular obrigatório da educação básica”.
Por meio da Lei nº 11.645, de 2008, que inseriu alterações na LDBEN buscando
valorizar as diferentes matrizes formadoras da cultural brasileira, isto está explícito nos
seguintes artigos, nos quais se fez grifos:
Art. 26- A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,
públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-
brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história
da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a
cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da
sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história
brasileiras. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
Parafraseado com Chassot (2014) quando propõe que se estimulem os estudantes
a buscarem nos saberes primevos o resgate de práticas sob risco de extinção, fica
evidente a preocupação com a preservação do conhecimento de maneira similar àquela
proposta aqui. O autor completa que “a escola, não obstante, precisa aprender a
valorizar os mais velhos e os não letrados como fontes de conhecimentos que podem ser
levados à sala de aula. Evocamos, uma vez mais, a metáfora que esteve muitas vezes
presente quando se discutia o tema da dissertação: “Quando um velho morre, é como
uma biblioteca que queima” (CHASSOT, 2014, p. 122).
Assim, Chassot (2014, p. 122) diz que “[...] há necessidade de procurar saberes
populares, estudá-los – com ajuda dos saberes acadêmicos – e, se possível, torná-los
saberes escolares [...] ”, para o enfrentamento dos desafios postos por um mundo em
transformação no âmbito do trabalho, do conhecimento e das relações sociais. Inserto
em uma realidade na qual existem várias etnias indígenas, verifica-se o
desconhecimento das práticas corporais dos povos indígenas por parte dos alunos da
escola não indígena. Partindo dessa realidade, parece significativo promover um diálogo
dentro de um processo de socialização e aproximação, e privilegiando a cultura do povo
indígena e trazendo-a para dentro da escola tradicional.
Isso por compreendermos que as “[...] práticas corporais que tradicionalmente
compõem os conteúdos de ensino da Educação Física contribuem para desqualificar e
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até eliminar práticas corporais tradicionais indígenas” (GRANDO, 2004, p. 17), pois na
maior parte das situações as práticas corporais propostas são alienígenas ao mundo
cultural dos educandos e, muitas vezes, até do mundo dos professores.
Assim, Castro (2009, p. 235) “[...] entende que a pedagogia da cultura corporal,
da mesma forma que as intervenções educativas, não poderão permanecer inalteráveis
diante das modificações produzidas no seu entorno social e cultural”. Enfatiza que nesse
sentido, cada escola deve desenvolver currículos que levem em conta os fatores que
configuraram o surgimento e a reprodução de determinadas práticas corporais, bem
como o repertório das manifestações da linguagem corporal que caracterizam os grupos
que coabitam a escola.
Aqui é oportuno recordar Chassot (2008) quando afirma a convicção de que há
necessidade urgente de se preservar saberes populares, até porque muitos correm o risco
de desaparecerem. As práticas corporais indígenas, mesmo que ainda não sejam
reconhecidas como saberes populares, porém, oferecem inúmeras contribuições para a
formação de nossas sociedades. Aliás, muitas dessas práticas corporais indígenas são ou
foram praticadas por nós e por nossos familiares, só que sem a conotação de indígenas,
com outros nomes.
Esse é um bom exemplo e certamente muitos já passaram por esses dilemas,
principalmente na atualidade, onde atuar nas Escolas está cada dia mais desafiador por
vários fatores não citados aqui, por se tratarem de temas que demandariam outros
trabalhos e pesquisas. É explícito que a Educação Física é um componente curricular
obrigatório garantido na Lei e integrado à proposta pedagógica da Escola, é uma
disciplina formativa e deve ter as mesmas valorizações das demais disciplinas.
Por essa e outras razões, somos tomados por uma quase certeza de estarmos no
caminho certo. Devemos ampliar as discussões sobre a Educação Física e suas práticas,
para que as mesmas possam ser reconhecidas como uma disciplina formadora, assim
como de fato ela deve ser. Ampliar os desafios, propormos práticas inovadoras, nos
remetendo a rever nossos conceitos e métodos de ensino.
Talvez um dos maiores desafios desta pesquisa tenha sido propiciar a mudança
de olhares dos acadêmicos acerca das práticas corporais indígenas, já que quase todos
tinham visão estereotipada dos povos indígenas, pois foram formados dentro dessa
ótica. Fazer o caminho inverso do que habitualmente se faz, foi essencial para essa
mudança de postura.
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Dedicarmo-nos à formação de professoras e professores, parece-nos, no
momento, a decisão mais certa, pois dentro de um processo onde se busca a mudança é
crucial que se inicie em nós. Também não queremos afirmar que todo o processo de
formação está equivocado, mas sim, enfatizar a necessidade de oportunizar novos
saberes, novos conhecimentos que venham acrescentar nessa formação em curso.
Através da fala dos acadêmicos, observa-se a necessidade da inserção dos
mesmos em novas práticas, novas formas de perceberem a Educação Física, priorizando
saberes adormecidos, encobertos por preconceitos, dogmas estereotipados por quem na
verdade sempre procurou, de forma unilateral, se impor como dominante. Estabelece-se
assim a necessidade de colocar em prática esses saberes, na busca de novas
possibilidades para a docência da Educação Física.
Com o transcorrer das observações, na medida em que os problemas se
apresentavam, observa-se nos acadêmicos a falta de uma vivência direcionada às
práticas corporais indígenas, local destinado ao fazer pensar, aprender e praticar, todas
as possibilidades que se desenham através dessa nova prática. Parecia surgir a
necessidade de uma nova disciplina nos currículos das Instituições Superiores. Em
vários momentos da pesquisa, testemunhamos o total desconhecimento sobre os povos
indígenas, dentro e fora da Escola. Ao abordarmos a temática indígena na Escola, é
comum sermos indagados sobre os “índios”. Primeiramente, não deveríamos usar esse
termo: “índios”, uma vez que o mesmo foi uma criação dos colonizadores, para
justificar um erro, intencional ou não.
De acordo com Gusmão (2003), “Índio” é uma construção branca, pois, “os
povos indígenas são guarani, avá, terena e outros, mas não são índios”. Segundo a
autora, chamar todos de “índios” implica desrespeitar a especificidade de cada grupo,
“alocá-los em um único “padrão cultural”, desconsiderando o que são de fato e o que
pensam sobre si mesmos como componentes de uma história singular de grupo que tem
suas próprias marcas, portadoras de significados, sentidos e visão de mundo únicos”
(GUSMÃO, (2003) Apud OLIVEIRA, 2007).
Na Escola, essas indagações não devem possuir simples respostas, pelo
contrário, devem demandar debates e pesquisas, principalmente, dentro das aulas de
Educação Física. Os acadêmicos souberam aproveitar tais momentos, aprofundando
sobre as práticas corporais indígenas e oportunizando aos escolares serem inseridos nas
atividades, pesquisando sobre as práticas, confeccionando os materiais e vivenciando a
sua prática. Essas ações nos deixam mais convictos para, mais uma vez, enfatizar a
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necessidade da inclusão das práticas corporais indígenas nas aulas de Educação Física.
Há possibilidades de se elaborar projetos de caráter interdisciplinar, envolvendo toda a
comunidade escolar.
Pensar as práticas corporais indígenas com esses óculos, seria mais uma vez,
diminuí-la, reduzindo a uma mera imagem folclórica essenciais em datas
comemorativas, onde tem a função de mostrar a escola como um local onde as culturas
são respeitadas, principalmente as culturas renegadas. Uma simples prática cultural fora
do processo socioeducativo, os educandos, disseminando estereótipos, que atentem aos
interesses dos dominantes e aos menos informados, dando uma sensação de saciedade
de outras culturas, de civilidade, necessárias à formação de seres “críticos”, que na
verdade são apenas reprodutores de estigmas.
O fato de discutirmos, dentro da Escola, sobre essas práticas ocasionou uma
movimentação de várias esferas daquela comunidade escolar. Parece que o professor
regente veio até à coordenação e falou sobre um estagiário do Curso de Educação Física
que iria ministrar suas aulas naquela unidade escolar, e teria como conteúdo as práticas
corporais indígenas. Essa por sua vez fez o mesmo percurso com a direção da escola.
Uma nítida mudança de olhar sobre as práticas dos povos indígenas, pois se
imagina o ponto de interrogação em suas cabeças, perante o fato de as práticas corporais
indígenas nas aulas de Educação Física? O que vai acontecer? Como vai acontecer?
Estamos preparados? Temos espaço físico? E os materiais, são suficientes?
Nesse ponto, pensamos ser as práticas corporais indígenas, fator que pode
propiciar prazer, ao mesmo tempo, se tornar um agente diversificador dos conteúdos da
Educação Física, por seu caráter inovador e com resquícios nostálgico, pois podemos
reviver novas/velhas maneiras de aprender sobre nossos limites, respeitando o limite
dos outros.
Ao contrário do que parece, as práticas corporais indígenas são de fácil
aplicabilidade, apresentando inúmeras possibilidades tais como a confecção de
materiais, realização de teatros, coreografias e danças, entre outras, que pensamos poder
oportunizar aos profissionais de Educação Física um grande leque de possibilidades e
variações, o que fatalmente poderá desencadear um grande interesse pela disciplina.
Conviver com as diferenças dos outros não pode ser considerado um fardo,
tampouco nos esforçarmos para negar a existência de outras culturas, outras práticas,
contudo, devemos sim é reconhecer nossa dependência dessas práticas, afinal, mesmo
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não reconhecendo essas sociedades, vivemos rodeados de práticas pertinentes aos povos
indígenas.
(Quase) Conclusões
Quando nos dedicamos a esses estudos, desafiadores porque, quase inéditos na
realidade estudada, lembramo-nos de citação atribuída a Isaac Newton, talvez um dos
maiores gênios da Ciência, “Se consegui enxergar tão longe, é porque me apoiei em
ombros de outros gigantes! ” Não sem razão que há um excerto desta frase na abertura
Google acadêmico.
Dentro de um processo de socialização entre os povos não indígenas, vemos um
total asfixiamento da cultura indígena, onde sempre permeiam a ideia de inferioridade e
uma imposição de uma cultura elitizada. Dentro desse processo devemos promover
ações que venham realizar o estreitamento e a sutura de todo esse processo.
Esse comentário reflete que, mesmo sendo a região onde se realizou a
investigação aqui descrita rodeada de aldeias e povos indígenas, a comunidade escolar
regional apresenta ainda uma visão estereotipada sobre os povos indígenas e sobre sua
cultura, por sinal, a compreensão apresentada nos remete a imagens e rótulos impostos
pelas mídias ou através das próprias escolas, por meio dos livros didáticos, que na sua
maioria apresentam-se distantes de nossas realidades.
As práticas realizadas no presente estudo nos evidenciaram outros desafios: a
urgente necessidade de produção, com assessorias de pesquisadores e especialistas de
diferentes mídias, subsídios didáticos, textos, sobre as práticas corporais indígenas para
serem utilizados em sala e também fora dela.
Realizar discussões, principalmente no meio acadêmico, formador de novos
profissionais, objetivando o aprimoramento dos conhecimentos. Através da realização
do 1º Seminário Sobre as Práticas Corporais Indígenas, descrito na seção “Resultados e
Discussões” que fez parte da dissertação da qual este texto é um excerto, passamos a
conviver com práticas inovadoras, que podem diminuir as diferenças, e oferecer novas
alternativas às práticas corporais usualmente presentes nas aulas de Educação Física.
Trazer a temática das práticas corporais indígenas para dentro da Escola é
procurar fazer o caminho inverso ao habitual. O propósito, aqui, foi o de demonstrar,
que as práticas corporais indígenas passem a reconhecer os povos indígenas, longe de
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um senso comum, e considerá-los como portadores de uma cultura pura que tem suas
identidades sistematicamente negadas.
Encaramos a presente pesquisa como ponto de partida para o ensino crítico da
temática indígena pensando na atualidade, desvinculando da ideia de um passado
colonial e com ênfase na sua sociodiversidades desmistificando imagens genéricas do
índio, e da cultura indígena. Repensando a ideia equivocada da presença do “índio”
apenas na época remota, problematizando a sua influência nas várias instâncias, no
processo de formação de nossas sociedades, enfatizando momentos de convivência
entre os povos indígenas e os povos não indígenas.
É nesta dimensão, que nos encorajamos e somos encorajados por nossos pares
para prosseguir meus estudos, tanto contribuído para a melhor implementação de uma
nova disciplina, fazendo-a catalisadora de um espaço para a trazida de uma continuação
de estudos desenvolvidos nesta dissertação, bem como um de nós definir-se na busca de
uma formação doutoral. Estes são sonhos. É preciso fazer realidade de nossas utopias.
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OLIVEIRA, Rogério Cruz de. Educação física e diversidade cultural: um diálogo
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p. 19-30, jul./dez. 2007. ISSN: 1983 – 9030
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 14 ed. São Paulo: Cortez, 2005.
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A AVENTURA DA AÇÃO INTERCULTURAL ESCOLAR COM JOGOS
INDÍGENAS - HISTÓRIA QUE SE DEVE CONTAR
Valda da Costa Nunes
COEDUC/PPGE/UFMT - SME/CUIABÁ
RESUMO
Considerando que o conhecimento da Lei 11.645/08 que recomenda a inserção de
aspectos da cultura afro-indígena nas escolas foi que ao planejarmos as Olimpíadas
inclusivas 2015 da Escola Municipal de Educação Básica Ministro Marcos Freire em
Cuiabá, MT, tomamos a decisão de dar início ao processo de inserção-inclusão desta lei
com as crianças da Educação Infantil e as do 1º, 2º e 3º anos (1º ciclo do ensino
fundamental) através da metodologia da pesquisa ação. Acadêmicos do curso de
licenciatura em educação física de uma faculdade privada, estagiários, amparados por
esta lei, foram orientados a planejarem uma estação de jogos indígenas através de um
projeto de implementação/implantação da Lei 11.645/08 com aspectos da cultura
indígena durante o Estágio Supervisionado I. Optou-se por dois jogos – “corrida com
tora” e “arco-e-flecha, que foram desenvolvidos em uma estação temática por cerca de
250 crianças distribuídas em cinco equipes Além do componente lúdico-desafiador
destes jogos, percebeu-se o quanto todos participaram interessados em conhecerem os
jogos indígenas, tanto as crianças quanto professoras/es. Considera-se que as boas
condições de início da inserção dos jogos indígenas nesta comunidade escolar, que
possibilitou a interculturalidade, seja apenas um marco desafiador para se continuar
aprofundando nesse tema e sobretudo espera-se que a história e a cultura indígena que
requer cuidadoso, amoroso e competentes empenhos por parte de todos, sejam
conhecidas e valorizadas nas suas peculiaridades e, sobretudo, espera-se que os
participantes tenham histórias para se contar sobre esse tema.
Palavras-chave: Lei 11.645/08; Interculturalidade; Jogos indígenas;
Introdução
Ao pronunciar que “O homem é um animal amarrado a teias de significados que
ele mesmo teceu”, Max Weber admite que somos seres de escolha e, ao concordar com
esta tese, Clifford Geertz (2013), assume a cultura como sendo essas teias e a sua
análise como uma ciência interpretativa à procura do significado, acrescentando que “A
cultura é formada por teias de significados tecidas pelos homens”.
Sob os efeitos semióticos das imagens que estas teses complementares me
provocam, e reconhecendo que a Lei 11.645/08 é um forte fio de uma possível ampla e
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significativa teia de conhecimentos que vem auxiliando profissionais que se sentem
provocados, impelidos e comprometidos com as questões indígenas em nosso estado,
em nosso país, foi que enveredamos numa pesquisa ação que envolveu acadêmicos de
educação física de uma instituição privada de ensino superior, alunos e alunas de uma
escola municipal de educação básica (Educação Infantil e 1º Ciclo), de Cuiabá, MT
buscando criar metodologias para tecer esta teia de significados em torno da experiência
de implantação desta lei.
Durante o planejamento das Olimpíadas inclusivas 2015, e ao realizar a escolha
de alguns jogos que fossem provocativos, instigantes, diferentes, mais próximos de uma
aventura, para compor as suas estações temáticas, optamos por incluir, dois jogos da
cultura indígena – “corrida de tora” e “arco e flecha” que foram eleitos não por acaso,
mas pelo fato de que já era do nosso interesse, implementar esta Lei 11.645/08 nesta
escola a fim de possibilitar aos alunos e alunas, a iniciação no conhecimento da cultura
indígena e, ao mesmo tempo, poderem corporificar experiências motoras
compartilhadas.
Mas as teias mudam com o passar dos tempos mudando também os seus apoios
e passando a gerar necessidades de mudanças educacionais e consequentemente,
mudanças no próprio ser humano diz Goulart (2011) em seu texto sobre professores e
aranhas. Ao mudar o apoio ou os apoios, o professor ou professora se desequilibra e
sente necessidade de lançar um novo fio ou partir para a construção de uma nova teia.
Assim, o objetivo desta pesquisa ação, foi o de compreender como se deu a
tecedura da teia de significados desta implementação/implantação da Lei 11.645/08,
pela identificação de seus fios fundantes.
O primeiro fio – a sensibilização dos estagiários
O primeiro fio, foi a providência, como orientadora, de mostrar aos acadêmicos
estagiários, alguns fios da teia de significados em torno da cultura indígena e de como
ela tem avançado ao longo da história. Conversamos sobre a obra de Berta Gleizer
Ribeiro, “O índio na história do Brasil” a fim de demonstrar-lhes que a história que se
conta sobre os indígenas no nosso país nada tem a ver com a verdadeira história sobre
eles e que não se conta; uma história de marginalização progressiva tanto geográfica
quanto cultural.
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A intensão foi a de sensibilizar aos acadêmicos/as para que se sentissem
provocados a querem se enveredar na construção da teia da implantação da Lei
11.645/08 de maneira consciente.
O segundo fio – a Lei 11.645/08
O segundo fio dessa etapa, foi a proposição da leitura conjunta, com os
acadêmicos estagiários, da Lei 11.645/08, por considerarmos que ela representa um
avanço em termos de políticas públicas, uma vez que atinge, pela educação, professores,
equipe gestora, alunos e seus familiares. Tal leitura, foi mais acompanhada de perto
durante a elaboração dos projetos de intervenção dos acadêmicos e acadêmicasi de um
curso de graduação de licenciatura em Educação Física de Cuiabá, MT, durante a
disciplina de Estágio I, com crianças da Educação Infantil e do 1º ciclo do Ensino
Fundamental. Alguns textos complementares de algumas obras foram ainda sugeridos a
eles e elas.
O terceiro fio – o jogo e os jogos “corrida de tora” e “arco-e-flecha”
O terceiro fio, foi o do conhecimento sobre os jogos “corrida de tora” e “arco e
flecha” buscando fazer adaptações às condições motoras das crianças, às suas
potencialidades e peculiaridades. Para isso, a tora ao invés de ser de madeira de lei que é
maciça e normalmente pesada, pensou-se em uma de bananeira de pequeno diâmetro
que foi colhida alguns dias antes dos jogos para que se desidratasse e ficasse mais leve
ainda. Uma tora mais longa, sendo possível ser carregada por até três crianças e outra
menor para até duas crianças. Queríamos que tudo desse certo, para que a experiência
corporal de cada um/uma pudesse vir a ser significativa e agradável para que pudessem,
ao referirem-se a elas o fizessem destacando ou qualificando-as como tendo sido
prazerosa. Os preparativos eram no sentido de ampliar as teias de significados.
Os jogos são a melhor maneira de se trabalhar com crianças, devido aos
simbolismos que eles podem lhes oferecer e devido às possibilidades de tê-los como
referência e forma de aprendizagem pela identificação ou não com tais elementos
simbólicos.
Grando et all (2010) menciona que
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[...] o jogo como conteúdo da educação física deve ser inserido
no trabalho pedagógico do professor no sentido de levar os
alunos a vivenciarem práticas sociais que tenham significados,
que desafiem para conhecerem novas formas de movimentarem-
se [...]
Assim, os jogos indígenas “corrida de tora” e “arco e flecha”, por possuírem tais
aspectos educativos significantes e desafiantes, foi uma escolha privilegiada para nós e
para as crianças, sobretudo por atender à demanda de necessidades da novidade, do
diferente que chegou de forma arrojada encantando a todos os participantes na escola.
Sendo assim, o riso, a alegria, foram componentes intrínsecos das experiências
deles e delas, o suficiente para tirarem seus pés do chão. O diferente, o inusitado, o
inesperado leva a criança a sentir-se surpresa, maravilhada e provocada a participar da
atividade proposta se ela contiver tais características.
O quarto fio – o espaço de corrida e de lançamento
O quarto fio, foi o da preparação do espaço de corrida e o de lançamento.
Limpeza cuidadosa, eliminação de possíveis objetos causadores de acidentes, “desenho”
da pista de corrida retirando todas as pedrinhas do diâmetro da corrida deixando a terra
bem batida pois as crianças correriam de pés descalços. Foi indicado o local com uma
faixa designando “Jogos Indígenas”. De ambos os lados da pista, bandeirolas coloridas
foram afixadas dando um caráter festivo à estação e às olimpíadas em geral.
Queríamos, eu como orientadora do estágio e os estagiários, criar imagens que,
aliadas à experiência corporal das crianças, pudessem atingir a todos os seus sentidos
pela: visão do espaço bem preparado; pelo toque na espessura e superfície lisa da tora
de bananeira; pela noção do espaço e tempo de corrida do percurso. Todos esses
preparos prévios são indicadores de que havia interesse em que “tudo” desse “certo” do
início ao “fim” para que cada um dos envolvidos na construção da teia e significados
interculturais na escola, pudesse ter um ponto de partida e um desenho que pudesse
servir de base para a sustentação de outros futuros fios.
Rubem Alves (1985) profundo admirador das aranhas, diz que os fios, por mais
finos e leves que sejam, têm de estar amarrados a coisas sólidas: árvores, paredes,
caibros. Se as amarras são cortadas a teia é soprada pelo vento, e a aranha perde a casa e
foi principalmente porque essa ação cultural na escola envolveu crianças da Educação
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Infantil e do 1º ciclo que tivemos essa preocupação com possibilitar amplas
possibilidades de amarrar e desamarrar teias em coisas concretas.
Sendo assim, a corrida de tora e o arco e flecha, por causa de todo o aparato do
espaço e por causa da tora e do arco com a flecha, possivelmente serão lembrados pelas
crianças, sempre, por causa das teias de significados construídos por elas juntamente
com seus pares educativos – professoras referência, professoras e professores de
educação física, de artes, seus coleguinhas de turma e de outras turmas, todos imbuídos
do mesmo espírito de desejo de participar de algo que só de olhar de longe, parecia ser
interessante e possibilitar momentos e experiências corporal – esperar a vez para
empunhar a tora nos ombros juntamente com um colega, correr o percurso e se deliciar
de alegria.
O quinto fio – corporificação de experiências interculturais: o diálogo
Assim, chegou o esperado dia, o dia que seria diferente de todos, o dia em que às
crianças seriam proporcionadas possibilidades de corporificarem experiências,
interculturais significativas, possibilitando-lhes o reconhecimento do outro, da cultura
do outro, da diversidade étnico-cultural do nosso país, condição primordial para o
diálogo e a convivência pacífica.
Em se tratando do diálogo, quem poderia falar com propriedade, senão Paulo
Freire que o ressalta em suas obras como sendo uma condição sine qua non para que a
educação, a liberdade, os direitos, a justiça, as culturas e para o olhar atento e
reconhecimento do Outro dentro e fora delas?
O diálogo crítico para Freire, é um princípio para que a educação se realize sem
transferência de conhecimentos de um para outro no processo educativo, mas numa
perspectiva que possibilita a transcendência de seus participantes com igualdade de
direitos pelo exercício pleno do direito ao uso da palavra, o direito à diferença.
Freire e Gadotti (1992, p 10), partindo das necessidades dos educadores
atentarem para as diferenças de cor, classe, raça, sexo, que as teorias multiculturais
apresentam, enfatiza, que “[...] a diferença não deve apenas ser respeitada. Ela é a
riqueza da humanidade, base de uma filosofia do diálogo”.
Através do diálogo crítico isso pode ser possível, pois ele cria condições
favoráveis para que as culturas sejam reconhecidas apesar de causarem estranhamento
inicial impactante. Por ser aberto, tal forma de diálogo aceita que mesmo “não sendo
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bonitas” para o observador que delas não faz parte, o é, para outros e principalmente
para o povo que a criou, que a teceu fio a fio ao longo de suas existências e que as
trazem tecidas nos seus corpos, na tecedura de seus corpos, em cada componente dele -
ossos, músculos, órgãos, pensamentos, sentimentos, emoções.
Pertencer a uma cultura, é uma experiência de corpo inteiro que atinge a
totalidade do ser de uma determinada cultura. Assim, podemos dizer que os corpos
podem se dialogar uns com os outros na perspectiva intercultural.
Mas afinal, o que é o diálogo?
O diálogo é o encontro entre homens, mediatizados pelo mundo,
para designá-lo. Se ao dizer suas palavras, ao chamar ao mundo,
os homens o transformam, o diálogo impõe-se como um
caminho pelo qual os homens encontram seu significado
enquanto homens; o diálogo é, pois, uma necessidade
existencial” (FREIRE, 1980, p. 42).
Para pensarmos e efetivarmos atitude intercultural e promover a
interculturalidade na escola, o diálogo deveria ser o grande parceiro dessa empreitada.
Os resultados poderão ser favoráveis se ele se efetivar na sala de aula, nos pátios, nas
quadras, tanto entre os alunos quanto entre alunos- professores-professoras-alunos.
Assim, será possível encontrar o real significado e sentido de ser humano, o
sentido da existência através do amor. Sim, é isso mesmo! “O diálogo não pode existir
sem um profundo amor pelo mundo e pelos homens. Designar o mundo, que é ato de
criação e de recriação, não é possível sem estar impregnado de amor. O amor é ao
mesmo tempo o fundamento do diálogo e o próprio diálogo” (FREIRE, 1979, p. 42-43).
Para que o espírito da interculturalidade de estabeleça na escola, o diálogo deve
se instalar concomitante, uma vez que a intercultura convida aos que desejam se
enveredarem nesse ato, a também dialogar. A interculturalidade é, então, um ato de
adoção, por amor ao conhecimento relacional do e com os Outros. É amor em
movimento livre, arrojado, pungente, que corporifica os aspectos éticos, étnicos e
estéticos no qual o pensar, sentir e agir são equalizados indistintamente nos processos
de corporificação das experiências.
O sexto fio – a cultura
Mas, e a cultura, o que é a cultura?
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Passos (2010, p. 23), diz que cultura é uma coisa que somente pessoas possuem
e que “[...] jamais poderão adotar uma que já esteja inteiramente feita”. Sendo assim,
cada um possui a sua e [...] “Terão, para vivê-la, que tecê-la, [...] com muitas lágrimas,
renúncias, marcas no corpo e na alma [...]” Sendo assim, a cultura do outro não pode ser
apropriada tão completamente, mas degustada aos poucos como forma de
interculturalidade com o Outro. Como forma de reconhecimento de que o que há
naquela ou naquele, falta em mim e eu me realizo ao reconhecer tal ausência em mim
que me completo no Outro ou em outra cultura. Assim, cultura pode ser considerada
uma forma de diálogo.
As cerca de 250 crianças distribuídas em cinco equipes que passaram por esta
estação de Jogos Indígenas, durante as Olimpíadas Inclusivas 2015 juntamente com
suas professoras que as acompanharam e mais os quatro estagiários e eu, que se
empenharam nesse processo de aprendizado de aspectos interculturais, estamos de
algum modo protagonizando uma educação que, ao contrário das visões etnocêntricas,
valorizam e respeitam as diferenças das diferentes culturas.
Ao ajudar a contar e recontar as histórias passadas e repassadas sobre esse tema,
o professor e a professora auxilia a si mesmos e aos seus alunos a estabelecerem
conexões entre os fios de significados culturais e seus sentidos numa perspectiva
intercultural ressignificante das teias culturais devido ao fato de estar considerando o
Outro ou Outros do passado e os Outros do presente (seus alunos).
Empresto aqui, palavras de Tassinari (2010) que ao prefaciar a obra „Jogos e
culturas indígenas: possibilidades para a educação intercultural na escola‟, organizada
por Grando e Passos. A autora menciona a importância de criar espaços para que as
crianças possam praticar, dentre outros, os jogos, que segundo ela, Mário de Andrade
soube valorizar muito bem enquanto gestor do Departamento de Cultura de São Paulo,
(1935-1938) com a criação de Parques Infantis, como “[...] uma forma de reconhecer
heranças de tradições muito antigas transmitidas pelas próprias crianças em considerá-
las parte de um patrimônio cultural com possibilidades fecundas de educação”.
Se além da experiência corporal que as crianças podem ter com os jogos
indígenas, não só com os apresentados aqui, mas tantos outros, se elas puderem ter
momentos destinados à reflexão sobre o significado de tais jogos para os seus
praticantes em suas aldeias específicas, sobre os significados para elas próprias, tanto
melhor será para seus aprendizados.
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Grando et al (2010, p. 92), diz que o jogo contribui para que a criança possa
criar novas formas “[...] de compreender sua realidade sociocultural, seu grupo social, a
sociedade onde vive, outros povos e outras possibilidades de viver coletivamente”.
Compreender a sua cultura, é fundamental para as crianças, e ela o faz através dos
passeios e escaladas que realiza sobre a teia de significados da sua cultura para alçar
com liberdade, voos que transcendem que faz dela um ser peculiar, único no mundo.
É no interior do jogo, que a criança, pelo exercício da liberdade de pensar, sentir
e agir, vai construindo a sua própria teia de significados, e se tornando, pela experiência,
parte intrínseca da cultura que seus pares desenhou, arquitetou e construiu ao longo de
suas existências.
Quando a criança joga, sente-se desafiada pelas condições que o ato de jogar lhe
oferece e então, ela vai se apropriando pelo ato da escolha, dos elementos que essa ação
favorece e ao mesmo tempo criando e recriando o jogo.
Considerações
À sombra de duas mangueiras em uma rampa natural que se assemelha a
arquibancadas, foi possível tecer fios aparentemente tênues, mas que ao contrário,
contêm características e elementos que poderão possibilitar a urdidura e a tecedura da
teia intercultural tão necessária para o reconhecimento de aspectos da cultura dos povos
indígenas e ao mesmo tempo criação de condições favoráveis para que os alunos, alunas
com seus professores e professoras, vão se apropriando, na ação, do conhecimento de
suas origens.
As crianças do turno vespertino não se beneficiaram desses jogos no dia das
olimpíadas devido ao forte calor e baixa umidade relativa do ar que fez naquele 9 de
outubro, mas em breve isso se dará.
Todos os participantes das equipes - branca, verde, azul, amarela, vermelha
participaram com interesse deixando transbordar aspectos do componente lúdico (risos,
leveza de movimentos, sensação de liberdade, supressão da realidade, interesse em
participaram e conhecerem esses dois jogos indígenas – “corrida de tora” e “arco e
flecha”.
Micro ações interculturais como esta, contém na sua essência, qualidades que
extrapolam a nossa percepção. Ela representa finos fios de uma grande teia idealizada
por alguns, mas que juntamente com outros provenientes de sala de aula e em outros
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momentos na escola e fora dela, poderão contribuir para que a teia de significados
inclusivos de outras culturas prevaleça, em detrimento das pedagogias excludentes ou
das que não são nem uma nem outra.
Considera-se que as boas condições de início da inserção de jogos indígenas
nesta comunidade escolar, seja apenas um marco desafiador para continuarmos
aprofundando nesse tema que requer cuidadoso, amoroso e competentes empenhos da
parte de todos para que a história e a cultura indígena sejam conhecidas e valorizadas
nas suas peculiaridades e sobretudo espera-se que os participantes tenham histórias para
contarem a partir de suas experiências vividas de modo compartilhado nos espaços e
tempos da sua escola.
Referências
ALVES, Rubem. O poeta, o guerreiro, o profeta. Ed. Vozes: Petrópolis, 1995.
BRASIL, Ministério da Educação. Lei 11.645/08. Relações étnico-raciais.
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação – uma introdução ao
pensamento de Paulo Freire. 3ª edição. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979.
_______ e GADOTTI, Moacir. Pedagogia, diálogo e conflito. 4ª ed. São Paulo, 1995.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1. Ed. Rio de Janeiro: LTC, 2013.
GOULART, Fábio. Professores aranhas: A teia da educação e sua história. Porto
Alegre, 2011. http://www.filosofiahoje.com/2011/11/professores-aranhas-teia-da-
educação-e.html?m%3d1&ei=alrG4lpW&lc=pt-
BR&s=1&m=958&ts=1449800485&sig=ALL1Aj5vECtOwJZuEe4LtpqFpkgqmcaVqQ
Acesso em 10-12-2015 as 23h35min.
GRANDO, Beleni Saléte; PASSOS, Luiz Augusto (Orgs.) Jogos e culturas indígenas:
Possibilidades para a educação intercultural na escola. Cuiabá: EdUFMT, 2010.
PASSOS, Luiz Augusto. Cultura: Flecha humana e cósmica que aponta o caminho para
os sentidos IN: GRANDO, Beleni Saléte e PASSOS, Luiz Augusto (ORGs.) O eu e o
outro na escola: contribuições para incluir a história e a cultura dos povos indígenas na
escola. Cuiabá: EdUFMT, 2010.
RIBEIRO, Berta Gleizer. O índio na história do Brasil. Ed. Global: São Paulo, 1983.
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ELAÇÕES ENTRE SABERES DO CORPO BAKAIRI E A PRÁTICA
PEDAGÓGICA DAS CIÊNCIAS NATURAIS
Edinéia Tavares Lopes /Bolsista PNPD/CAPES-PPGE/UFMT, PPGECIMA-UFS
Darlene Yaminalo Taukane /Pesquisadora do Povo Bakairi
Beleni Saléte Grando /Colaboradora Pesquisa PPGE/UFMT
Este texto tem o objetivo de sistematizar saberes e práticas que possibilitam inserir a
história e a cultura do Povo Bakairi no ensino de Ciências Naturais na educação escolar
de um município do estado de Mato Grosso. O ato de produzir e pintar os corpos são
diferentes entre os grupos indígenas e ao aprendermos a forma como os Bakairi o fazem
nos auxilia na compreensão dos conceitos que devemos rever na cultura brasileira que
marginaliza e generaliza os povos e suas formas de identificação. Podemos também
compreender outras formas de produzir conhecimento e estabelecer diálogos
interculturais entre os próprios saberes e fazeres a que a ciência também recorre e nela
identificar relação com as produções de conhecimentos ancestrais e tradicionais.
Ademais, a inclusão da temática indígena no currículo escolar, no âmbito do ensino de
CN, se dá a partir da compreensão de que há diferentes formas de ver e de agir sobre e
no mundo, as quais produzem diversos conhecimentos como os da ciência e os
conhecimentos tradicionais indígenas.
Palavras-Chave: Lei 11.645/2008. Ensino de Ciências Naturais. Pinturas Corporais
Bakairi.
A temática indígena na escola: aproximações ao tema
A diversidade cultural brasileira coloca diversas demandas para a educação
nacional e, por consequência, aos professores, no sentido de que estes e aquela não
podem ignorar o multiculturalismo presente na sala de aula. Nesse sentido, é defendido
por Candau (2006) a perspectiva do professor enquanto agente cultural, pois, para a
autora, a compreensão das relações entre educação e cultura/s refere-se à concepção da
escola como espaço de “cruzamento de culturas”, atravessado por “tensões e conflitos”.
No que diz respeito aos documentos oficiais, os Parâmetros Curriculares
Nacionais para a Educação Básica (EB) destacam a Pluralidade Cultural como sendo
tema transversal. Nessa linha de pensamento, em 2003, são instituídas as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas, que têm por objetivo:
[...] a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de
atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à
pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de
negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos
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legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da
democracia brasileira (BRASIL, 2013, p. 512)
A partir das diretrizes, foram aprovadas duas leis complementares à Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN 9.396/1996: a Lei 10.639, de 2003,
que trata da obrigatoriedade da inclusão de História e Cultura afro-brasileiras e africana
nos currículos da Educação Básica, e a Lei 11.645 de 2008, que amplia a anterior,
destacando a inclusão da história e cultura indígenas como obrigatoriedade no currículo.
Esta última nos desafia a inserir no currículo escolar as contribuições desses
povos para a(s) cultura(s) brasileira(s), propondo sua compreensão para além da visão
colonizadora de ensino. Logo, essa problemática coloca inúmeras provocações aos
pesquisadores e educadores brasileiros, no que diz respeito à produção científica e à
(re/des) construção de práticas que atendam a essa realidade. Assim, vale ressaltar que
não se trata apenas de mudar um ensino etnocêntrico, marcadamente de raiz europeia,
mas “de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial,
social e econômica brasileira” (BRASIL, 2013, p. 503).
Destarte, tais provocações têm nos impulsionado a investigar as possibilidades de
inclusão da temática indígena no ensino de Ciências Naturais na EB em um município
do interior do estado de Mato Grosso (MT). Nessas investigações, temos defendido a
inclusão da temática indígena – sem propor a exclusão, por exemplo, da africana – no
ensino das Ciências Naturais na EB, partindo da compreensão de que, consoante Brasil
(2013), a referida lei “[...] provoca bem mais do que inclusão de novos conteúdos, exige
que se repensem relações étnico-raciais, sociais, pedagógicas, procedimentos de ensino,
condições oferecidas para aprendizagem, objetivos tácitos e explícitos da educação
oferecida pelas escolas” (BRASIL, 2013, p. 503). De tal maneira, essa defesa se insere
numa perspectiva intercultural, que se pauta na busca pelo reconhecimento das
diferenças “[...] entre os agentes socioculturais no mundo contemporâneo e de
potencializar a conexão crítica, criativa e decolonial entre seus respectivos contextos”
(FLEURI, 2012, p. 21).
Com isso, a perspectiva do nosso estudo e da prática pedagógica, pauta na
pesquisa desenvolvida junto a uma comunidade indígena de MT, é a de que, para que
possamos inserir a “história e a cultura indígenas”, o fazemos de um tempo e de um
espaço específico, de um povo específico, pois reconhecemos que os mais de 300
grupos étnicos indígenas do Brasil atual têm suas culturas e histórias permanentemente
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em movimento, e por isso mesmo, para inserirmos o conhecimento que prevê a Lei
11.645/08, este deve ser pautado na realidade sociocultural e histórica de um povo
específico e contextualizado na sociedade atual.
Assim, reconhecemos que os saberes e práticas sociais de um povo, para ser
transformado em conteúdo de ensino e prática pedagógica, requerem uma reflexão sobre
quais são as condições históricas e culturais que possibilitaram a sua produção e
reconhecimento como relevante para a comunidade ontem e hoje. Por isso, trazemos,
neste texto, de forma sistematizada, saberes e práticas que nos possibilitaram inserir a
história e a cultura do Povo Bakairi no ensino de ciências na educação escolar.
Ao enfatizar os saberes e práticas como conhecimento da sociedade brasileira e a
revisão histórica de suas relações com os povos nativos, nos cabe refletir inicialmente
como a sociedade brasileira, e por isso a escola, tem tratado ou reconhecido os povos
indígenas, suas histórias e suas culturas. Ou seja, como o conhecimento, sistematizado e
inserido na prática pedagógica, vem produzindo relações de exclusão e desvalorização
dessa parcela da população brasileira.
O conhecimento que se transforma em prática pedagógica a partir dos estudos da
história e cultura do Povo Bakairi se traduz na prática pedagógica para o ensino de
Ciências Naturais ao mesmo tempo em que busca refletir e ultrapassar as visões
equivocadas acerca dos povos indígenas manifestadas em diversas realidades
brasileiras.
O contexto sociocultural e histórico da inclusão da temática indígena na escola
Este texto é subsidiado pela pesquisa de doutoramento da primeira autora
realizada entre 2011 e 2012 junto ao povo Kurâ Bakairi de Paranatinga, em MT, cujo
foco foi a Educação Escolar Indígena (EEI), e sua pesquisa realizada entre 2015 e 2016,
com o objetivo de inserir a cultura Bakairi no ensino das Ciências Naturais das escolas
do município no qual está o território indígena. A última fase da pesquisa (2015 e 2016)
teve como recorte o estudo das pinturas corporais, que, para a escrita final deste texto,
passou pelo crivo crítico de pesquisadores e lideranças do próprio povo Kurâ Bakairi.
Os Bakairi, como são conhecidos na literatura sobre os povos ameríndios,
atualmente habitam dois territórios em MT delimitados em: Terra Indígena Santana,
localizada no município de Nobres; e Terra Indígena Bakairi (TIB), que está demarcada
em sua maioria no município de Paranatinga e uma pequena parte em Planalto da Serra.
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Os Bakairi se autodenominam Kurâ, que remete à ideia de “nosso povo, aquilo que é
inerente do povo Kurâ” (TAUKANE, 1999, p. 35). Sua língua pertence ao tronco Karib
e praticamente todos os Bakairi são bilíngues. Atualmente existem 10 aldeias na TIB.
Os dados da pesquisa que trazemos neste texto são da Aldeia Aturua.
Ao privilegiarmos um povo indígena, estamos considerando que, entre os mais de
300 povos e as mais de 274 línguas faladas no Brasil pelos povos nativosii, estaremos
apresentando os saberes e as práticas que identificam o Povo Kurâ Bakairi e, por isso
mesmo, práticas que os diferenciam dos demais povos. Aspectos de como vivem e quais
as práticas que garantem a educação tradicionalmente passada nos rituais nos auxiliam a
discutir as concepções distorcidas que permeiam as práticas conservadoras nas escolas.
Essas práticas consolidaram aspectos que, enraizados na cultura dominante
brasileira, reproduzem na escola a visão estereotipada e distorcida sobre quem são os
indígenas atuais: todos os índios são iguais em termos de cultura e história; os indígenas
são preguiçosos, moram na floresta e vivem nus; para sobreviver, vivem em aldeias,
caçam, pescam e coletam seus alimentos. Esses argumentos buscam reforçar a visão de
que os indígenas eram os que viviam antes da colonização, os demais não mais existem,
pois a cultura não muda como qualquer outra. Ser indígena significa ter a mesma
história e costumes, língua, estrutura familiar, religiosidade, entre outros, e, por fim,
todos os indígenas não trabalham, pois desde a colonização eles não trabalhavam e por
isso buscavam-se outros povos para escravizar. O imaginário social brasileiro carece ser
desmontado quando pretendemos atender aos preceitos da Lei 11.645/08, pois com
esses estereótipos não avançam os estudos que nos possibilitam conhecer a história e a
cultura de um povo indígena do Brasil.
Assim, neste trabalho, permeiam os saberes que articulam os saberes específicos
de um povo com os saberes necessários à revisão dos conteúdos que se consolidaram na
educação escolar com uma prática pedagógica preconceituosa e eurocêntrica, que
desqualifica os saberes e práticas que constituem a cosmovisão ameríndia e suas
práticas que salvaguardam a vida em cada contexto socioambiental.
Há consenso na literatura nacional no que diz respeito ao fato de a imagem dos
povos indígenas brasileiros ser caracterizada por estereótipos construídos pelos
discursos veiculados pela mídia e pela escola. Nesse sentido, as incursões
investigatórias sobre a inserção da temática indígena nas escolas brasileiras explicitam
que o ensino da história e das culturas desses povos ora é caracterizado pelo
silenciamento ora por discursos equivocados.
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Pensar nas populações indígenas como um conjunto uniforme de culturas é um
erro, uma vez que cada povo é um povo, com suas particularidades, rituais, línguas,
costumes e comportamentos sociais. A retirada das especificidades de seus contextos
culturais de produção leva à imposição de valores externos que desconsideram todo o
legado cultural e tecnológico dos povos indígenas brasileiros. Tal imposição pode levar
à construção dos estereótipos e, o que é mais grave, ao preconceito e a discriminação.
Em Paranatinga residem dois povos indígenas: os Bakairi e os Xavante, cujas
identidades socioculturais são totalmente diferentes, assim como a história de contato
com o colonizador, as formas de organização dos seus territórios e cosmologias,
organização familiar e também a própria língua. Diferente dos Bakairi, que é da família
linguística Karib, a língua Xavante pertence ao tronco Macro-Jê.
Para introdução aos estudos da história do povo Bakairi, recorremos à literatura
que nos informa que o contato do colonizador se deu em 1723 por José Pires e que a
primeira descrição etnográfica sobre eles foi realizada em 1884 por Karl Von Den
Stenein. Desde a primeira descrição, suas pinturas corporais foram evidenciadas por
serem práticas sociais relevantes para o Bakairi desde sempre. Atualmente, como ocorre
com todos os grupos humanos, a dinâmica das relações sociais que, inclusive, promoveu
a diminuição da população, também levou às mudanças nos territórios, nas educações (a
partir da escola) e provocou alterações e ressignificações de suas práticas tradicionais,
assim como ocorre com as pinturas.
Assim, a nosso ver, propor uma prática pedagógica para incluir história e cultura
indígenas no município de Paranatinga passa pela sensibilização de que, mesmo que
existam dois povos, cada um deverá ser estudado de forma única, pois suas
peculiaridades culturais não nos permitem generalizações ou comparações, pois são
povos diferentes e, como tais, quando os alunos se inserem nas escolas urbanas, não os
devemos considerar indígenas, mas aluno bakairi e aluno xavante.
Da temática escolhida: ideia de cultura estática
As práticas corporais são formas de produção cultural que marcam no gesto e na
forma como a pessoa se constitui como pertencente a um dado grupo e a uma cultura.
Com os estudos de Mauss (2003), Grando (2009) nos esclarece que as técnicas
corporais resultam de práticas sociais que educam os corpos/pessoas para que possam
ser inseridos/as nos grupos sociais e neles se reconheçam e sejam reconhecidos/as. As
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práticas corporais são formas de expressão das identidades e dos contextos interétnicos,
como os vivenciados pelos munícipes de Paranatinga, Bakairi, Xavante e os demais não
indígenas, que podem expressar todo um contexto histórico e cultural que contribui para
identificar e ao mesmo tempo diferenciar cada grupo social específico.
As pinturas corporais são manifestações culturais que podem apresentar diversos
significados, os quais estão profundamente ligados à cultura de quem as produz e
utiliza. A pintura corporal foi uma das primeiras formas de comunicação entre os seres
humanos. Antes do surgimento da escrita, o corpo já servia para expressar e deixar
registrado como linguagem o que desejamos comunicar ao outro a respeito de quem
somos. Assim, essa técnica corporal é utilizada desde os primórdios em todas as
civilizações americanas, africanas, asiáticas, europeias. Além das insígnias tribais (de
ontem e de hoje), as pinturas sempre evidenciaram as tecnologias dominadas pelo grupo
humano que a utiliza, pois, para além dos rituais, o corpo é protegido/untado para a vida
cotidiana frente aos desafios do ambiente – proteção contra insetos, raios solares, e
outros inimigos do mundo dos vivos e dos mortos.
Dentre as diversas práticas corporais, as pinturas corporais sempre estiveram
entre as mais diversas sociedades e em todos os períodos da história humana, inclusive
na atualidade. O ser humano sempre buscou marcar no corpo sua natureza social. Se por
um lado o corpo nos evidencia que somos todos iguais, humanos, por outro, é nele
próprio que nos diferenciamos e nos tornamos únicos. As pinturas corporais, sejam elas
permanentes ou ritualísticas e temporárias, servem para identificarmos quem somos no
próprio grupo e para dizer aos demais qual é o nosso grupo.
Com isso, trazemos neste texto as “Pinturas Corporais Bakairi” como uma forma
de dar a conhecer quem são os Kurâ Bakairi, pois cada indivíduo vive no espaço e
tempo do corpo (GRANDO; HASSE, 2002). Essas pinturas corporais são feitas a partir
da extração de pigmentos de partes de plantas como o urucum e o jenipapo.
Os Kurâ recorrem a essa mesma prática social até os dias atuais, pois, como
afirmam os mais velhos, os “Kurâ Bakari vieram com essas práticas culturais marcadas
em seus corpos” (LOPES, 2015). Desse modo, para os mais velhos, a origem das
pinturas corporais se deu desde os tempos imemoriais, pois os Bakairi usam as pinturas
e se enfeitam ainda hoje como faziam seus antepassados. As pinturas são repassadas de
geração a geração e são memorizadas como saberes por meio dos desenhos, dos nomes
das pinturas e da diferenciação dos grafismos que se diferenciam para as pinturas de
homens, de mulheres e de crianças.
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Para os Bakairi, é durante a arte de pintar o corpo que a pessoa que está sendo
pintada se transforma no “outro”. O “outro” que o grafismo nele está sendo impresso o
faz ser representado. Esse outro pode ser um animal ou qualquer outro ser da natureza.
(COLLET, 2006). A representação, quando impressa no corpo de indivíduos desse povo
possui um significado muito importante dentro de sua cultura, pois, além de representar,
por exemplo, um animal, é o momento em que conseguem se transformar nesse ser,
adquirindo suas características próprias, como força, agilidade, entre outros atributos.
Essas pinturas são utilizadas em diversos eventos e rituais Kurâ Bakairi.
O conjunto de pinturas corporais é denominado de kwywenu, que significa
nossa pintura, e iwenu, quando se refere à pintura dele (a), e ywenu, quando se refere à
pintura do meu corpo. As cores básicas das pinturas são branco, preto, avermelhado e
azulado, que são provenientes de jenipapo, urucum, carvão, cera de breuzim - retirada
de uma planta da região -, e barro, chamado de tabatinga, que produz tinta branca.
As pinturas femininas são feitas nas laterais do corpo, nos braços, no rosto. A
pintura nas mulheres começa abaixo da linha dos seios e vai até aos tornozelos, os
traços são definidos de acordo com o desenho que a pessoa escolhe. Os desenhos podem
ser de traços simples até aos mais elaborados e trabalhosos. As mulheres usam cocar
desde tempos imemoriais, quando, numa determinada época, as Yamurikuman se
debelaram contra os homens. Elas usam cocar como sinônimo de igualdade, direitos
iguais perante aos homens. Yamurikuman significa mulheres guerreiras, mas hoje em
dia esse nome é atribuído ao conjunto de cantos das mulheres. Usam colares de
miçanga, brincos de penas e algodão nos tornozelos.
As pinturas corporais que se destinam às crianças são as utilizadas nas laterais
do corpo: “Xurui”, que representa o peixe pintado (Figura 01a), o “Âgudo”, que
representa a sucuri, o “Saro”, que significa ariranha, e “Mainmai Iwenu”, que significa
jabuti e é pintado na direção do estômago. Eles acreditam que as crianças, sendo
pintadas com desenhos desses bichos, crescem mais rapidamente e mais fortes. Elas são
enfeitadas principalmente para se protegerem de espíritos sobrenaturais.
Os homens também pintam as partes laterais do corpo, a parte do peito e as
costas. Geralmente os adornos masculinos são: cocar, brincos de penas, pintura
corporal, chocalhos e algodão branco para amarrar nos tornozelos e nos braços. Quem
porta um chocalho normalmente é a pessoa que vai iniciar os cantos, o tirador de cantos.
Os chocalhos são usados tanto pelos homens como pelas mulheres.
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As pinturas faciais das mulheres são feitas de traços largos de urucum na testa.
Dos cantos externos dos olhos até os cantos superiores e inferiores das orelhas são feitos
os traços com jenipapo, com urucum, de carvão misturado com resina de breuzim.
Existem várias pinturas faciais para os homens: desenhos de peixes, de onças, de
japuíras e outros. Durante as festas tradicionais desse povo, tanto os homens como as
mulheres exibem seus corpos como tela humana. Existem algumas restrições da pessoa
da comunidade em pintar seu corpo, geralmente em casos de a pessoa estar doente, estar
de luto ou os pais terem bebê recém-nascido.
Tradicionalmente, são os mais velhos que detêm o conhecimento dessa prática e
são eles que devem incentivar os mais novos a iniciarem e terem gosto pela arte da
pintura corporal. Os mais velhos dizem que, quando o povo Kurâ Bakairi não conhecia
roupa, a pintura corporal era usada como vestimenta. Além dos fatores estéticos,
também era usada para evitar o mau olhado e proteção dos espíritos maus. Atualmente,
as pinturas corporais são mais usadas durante as festividades culturais, como na semana
do índio, no batizado de milho, na furação de orelhas e em outras atividades que a
comunidade considera importante, como na formatura do Ensino Médio. Os grafismos
são ensinados na educação escolar das crianças kurâ nas aldeias. Ilustramos a seguir
com a pintura „Tuturein”, que se refere à jiboia (Figura 01b) e a pintura denominada de
“Semimu”, que significa morcego (Figura 01c) (COLLET, 2006; BARROS, 2003).
Figura 01: a) Xurui (peixe pintado) pintura de crianças, b) Tuturein (Jiboia) pintura dos homens, c)
Semimu (Morcego) pintura das mulheres
Fonte: Desenhos de Kaya Agari, Exposição Kurâ-Bakairi Yakuigady e Kywenu, Museu de Arte de Mato
Grosso, 2015.
Mesmo com as tradicionais pinturas corporais e com o ensino dessa arte na
escola, por conta das dinâmicas socioeconômicas impostas pelas relações cotidianas
com os não indígenas, numa perspectiva colonizadora, está havendo mudança nas
práticas corporais, entre elas o uso não tão frequente das pinturas corporais. Isso, no
entanto, não significa que os Bakairi esperavam manter sua cultura estática, mas essa
cobrança de que não podem mudar suas culturas se instala nas relações com os demais
munícipes que permanentemente os analisam e os condenam: “os Bakairi não são mais
índios”, “os Bakairi perderam sua cultura”, “eles têm carro, moto”.
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Essa reflexão é pertinente para o trabalho pedagógico da Lei 11.645/08, pois,
como afirma Laraia (1986, p. 96): “[...] existem dois tipos de mudança cultural: uma
que é interna, resultante da dinâmica do próprio sistema cultural, e uma segunda que é o
resultado do contato de um sistema cultural com um outro” . Com isso, o autor nos
mostra que a cultura é sempre resultado de mudanças históricas, um processo lento e
gradual de mudanças, e lidar com essas mudanças, reconhecendo-as como constitutivas
do ser humano, nos permite não termos uma visão de cunho preconceituoso. Além de
sofrer mudanças internas decorrentes da mudança de pensamento dos indivíduos que
formam as sociedades culturais, existem ainda as mudanças recorrentes do contato e da
descoberta de outras culturas, a absorção voluntária ou não de características de outras
culturas que porventura venha a entrar em contato com outra (LARAIA, 1986).
Desse modo, as mudanças ocorridas na cultura Bakairi são resultados de
processos históricos pelos quais esse povo passou, pois nesse processo ocorreram
contatos com outros povos indígenas e não indígenas, assim como os contextos dos
territórios e das possibilidades econômicas de produção da vida coletiva geraram
dinâmicas que diferenciam os Bakairi de hoje dos seus antepassados. Assim, é
necessária a compreensão da cultura, ou das culturas, e de como elas são construídas
para aprendermos a conviver, respeitar e reconhecer as diferenças.
Da mesma forma que os colonizadores, as culturas que identificam as práticas
sociais cotidianas nas cidades e regiões do país foram marcadas pelas culturas indígenas
locais, sejam nas formas de falar (os vários sotaques e até dialetos que temos da língua
portuguesa no Brasil), nas formas de se alimentar e de usar o milho e a mandioca
(plantas domesticadas e plantadas), de fazer uso da água ou higiene – como o banho e a
depilação, que são práticas corporais da cultura brasileira enraizadas de tal forma que
nos identificam fora do país.
Dos saberes e fazeres tradicionais aos saberes e fazeres da ciência
Para a produção da pintura corporal, além das insígnias que marcam as crianças,
os homens e as mulheres, a forma como o Kurâ Bakairi desenvolveu a tecnologia capaz
de marcar os corpos, expressa sua história e cultura específica. Para além das cores, o
uso da natureza para garantir as marcas no corpo também traz saberes e práticas sociais
ancestrais, e duas frutas presentes em seus territórios são a base para a produção das
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pinturas: o jenipapo e o urucum, conforme trazemos a seguir, em diálogo com os
saberes das ciências.
O urucuzeiro é conhecido cientificamente por Bixa orellana L., é um arbusto
tropical pertencente à divisão Magnoliophyta conhecida como Angiospermas, que pode
apresentar tamanhos variados com flores e frutos (STRINGHETA e SILVA, 2008).
Essa planta pertence à classe Dicotiledoneae, família Bixaceae e gênero Bixa. As
Dicotiledôneas, também conhecidas por Magnoliopsidas, pertencem à divisão
Angiospermae. As sementes do urucum apresentam em sua película externa (cobertura
carnosa denominada arilo da semente) uma substância vermelha denominada bixina. A
bixina é uma das principais matérias-primas utilizadas na produção de corantes naturais
que são encontrados no país, como no colorau usado como corante natural para dar e
realçar cor nos alimentos (STRINGHETA e SILVA, 2008). Para a extração do
pigmento bixina os Bakairi maceram com as mãos as sementes do urucuzeiro, que em
contato com a água formam uma pasta. Adicionam também pequenas quantidades de
óleo vegetal. Após a formação da pasta, os Bakairi deixam essa mistura em repouso até
apresentar consistência de tinta. Essa tinta geralmente é feita um dia antes de seu uso.
A Genipa americana L., conhecida popularmente como jenipapeiro, pertence à
família Rubiaceae (família do café) e é uma árvore nativa do Brasil que pode chegar a
20m de altura. Além disso, é uma espécie vegetal pertencente à subdivisão
Angiospermae, classe Dicotiledoneae, a mesma do urucum. O fruto de jenipapeiro,
enquanto verde, possui uma substância corante, denominado genipina, que, em contato
com o ar, apresenta uma coloração azul-escuro ou violeta (RENHE, 2009). Para a
extração do pigmento genipina é necessário deixar a polpa do jenipapeiro entrar em
contato com água numa temperatura mais alta do que a ambiente. Nesse processo a
coloração dessa mistura fica escura e apresenta consistência mais „firme‟. Para o
preparo dessa tinta escura, esse povo indígena corta a polpa do jenipapo em pequenos
pedaços ou a rala e insere um pouco de água e leva ao fogo até que mude de cor e esteja
no „ponto de fazer as pinturas‟.
Esses pigmentos são fortemente utilizados pelas indústrias alimentícias, de
cosméticos, têxteis, farmacêuticas, entre outras, pois, atualmente, é dada preferência aos
corantes de origens naturais. Com a extração dos pigmentos naturais, como a bixina e a
genipina, é possível produzir outras substâncias com base em diferentes processos
químicos. O pigmento bixina pode ser encontrado em produtos como colorau, manteiga,
margarina, batons, maquiagens, filtros solares, entre outros. O pigmento genipina pode
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ser encontrado em diversos produtos industrializados. Além disso, o jenipapo pode ser
consumido, enquanto fruto, em sucos, junto com outros alimentos, e em algumas
indústrias, como as alimentícias, como fonte de corantes alimentícios. O pigmento
genipina juntamente com outros derivados (outras substâncias) pode ser usado na
detecção de impressões digitais a partir de outros meios tecnológicos. Assim,
percebemos a grande utilização desses pigmentos em diversos meios e produtos, que
muitas vezes empregamos diariamente, mas não sabemos o que os constituem.
Considerações finais
Podemos concluir, assim, que o ato de produzir e pintar os corpos são diferentes
entre os grupos indígenas e ao aprendermos a forma como os Bakairi o fazem nos
auxilia na compreensão dos conceitos que devemos rever na cultura brasileira que
marginaliza e generaliza os povos e suas formas de identificação.
Por mais que haja saberes partilhados e que possamos encontrar identificações
entre as práticas corporais, como o fato de a maioria dos indígenas do Brasil recorrer a
frutos como fonte para extração dos pigmentos, como o fruto do urucuzeiro (urucum) e
do jenipapeiro (jenipapo), outros elementos como o carvão, a argila e outros também
são utilizados. Assim, ao focarmos nos conhecimentos produzidos pelos Bakairi,
podemos também compreender outras formas de produzir conhecimento e estabelecer
diálogos interculturais entre os próprios saberes e fazeres a que a ciência também
recorre e nela identificar relação com as produções de conhecimentos ancestrais e
tradicionais.
Ao buscarmos fazer uso dos diferentes conhecimentos, como os produzidos
pelos discursos científicos e os produzidos pelos discursos do cotidiano Bakairi,
compreendendo seus significados, em ambos reconhecemos que os conhecimentos,
mesmo diferentes, são “sistemas de significados” produzidos e de “propriedade coletiva
de um grupo”, o que, para Geertz (1989),
[...] denota um padrão de significados transmitido historicamente,
incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas
expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens
comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas
atividades em relação à vida. (GEERTZ, 1989, p. 66)
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Assim, a inclusão da temática indígena no currículo escolar, no âmbito do ensino
de Ciências Naturais, se dá a partir da compreensão de que há diferentes formas de ver e
de agir sobre e no mundo, as quais produzem diversos conhecimentos como os da
ciência e os conhecimentos tradicionais indígenas.
Referências
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i Agradeço aqui, aos acadêmicos Ronimárcio, Cilmar, às acadêmicas Dalva e Fabiana, que sob nossa
orientação, elaboraram o projeto “Jogos indígenas na escola – Lei 11.645/08” e juntamente conosco, com
a escola e com as crianças, ajudaram a construir o primeiro fio da teia de significados da inclusão de
aspectos da cultura indígena na Escola Ministro Marcos Freire. Agora, é só dar continuidade com outras
iniciativas metodológicas. ii Segundo dados do censo do IBGE realizado em 2010 e coletado em 02/12/2015 no site da FUNAI.
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