autobiografia, história e memória em à mão · pdf...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO
ESTUDOS DE LITERATURA
PAULO ALEX SOUZA
AUTOBIOGRAFIA, HISTÓRIA E MEMÓRIA EM À MÃO ESQUERDA ,
DE FAUSTO WOLFF
NITERÓI 2010
PAULO ALEX SOUZA
AUTOBIOGRAFIA, HISTÓRIA E MEMÓRIA EM À MÃO ESQUERDA ,
DE FAUSTO WOLFF
Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em
Letras – subárea de Literatura Brasileira e Teorias da
Literatura, da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre.
Área de Concentração: Estudos de Literatura.
ORIENTADORA: PROF.a DR.a MATILDES DEMÉTRIO DOS SANTOS
NITERÓI 2010
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
S729 Souza, Paulo Alex. Autobiografia, história e memória em À mão esquerda, de Fausto Wolff / Paulo Alex Souza. – 2010.
128 f. Orientador: Matildes Demétrio dos Santos.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2010.
Bibliografia: f. 125-128.
1. Wolff, Fausto, 1940-2008 – Crítica e interpretação. 2. Wolff, Fausto, 1940-2008. À mão esquerda. 3. Ficção brasileira. 4. Autobiografia . 5. Memória e história. I. Santos, Matildes Demétrio dos. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título. CDD B869.3009
AGRADECIMENTOS
Aos Professores Doutores Pascoal Farinaccio (UFF), Iza Terezinha Quelhas (UERJ),
Fernando Monteiro de Barros (UERJ) e Eliane Vasconcelos Leitão (Fundação Casa de Rui
Barbosa), pela disposição tão empenhada para participar da banca examinadora. Agradeço
também a todos os professores que passaram em minha trajetória até aqui, pois trago comigo
a contribuição de cada um.
Com especial ternura, agradeço a Prof.a Dr.a Matildes Demétrio dos Santos, pela
orientação dedicada com vigor, paciência e sabedoria, em todos os momentos mostrando-se
uma amiga de quem nunca esquecerei.
À CAPES, pelo incentivo institucional prestado com fidelidade, uma oportunidade
inigualável.
À minha mãe, Regilda, pelo amor, esforços contínuos e exemplo de vida. Ao meu pai,
Paulo César – in memoriam –, pela dedicação prestada. Aos meus irmãos Rodrigo e
Alessandra e ao meu cunhado, Reinaldo, companheiros inseparáveis. À minha linda sobrinha,
Rayssa, um raio de vida a iluminar minha vida. À minha namorada Sirlea, pela compreensão e
amor devotados e à minha prima Cristiane, pela leitura zelosa deste trabalho.
RESUMO
Esta dissertação analisa o romance À mão esquerda, de Fausto Wolff, sob uma perspectiva que destaca o conteúdo variado do qual é formado. Tomamos como base os conceitos de memória e história, pois os discursos dos diversos narradores-personagens nascem, primordialmente, da rememoração dos sujeitos. Atrelado a isso, o romance foca de modo crítico e irônico, a história sócio-política do Brasil e do mundo, veremos alguns temas e aspectos trazidos por essa investida, bem como o processo de sua condução. Analisamos também o conteúdo metalinguístico da obra, lendo-o como a história da construção do romance. Como é recorrente na literatura do autor, o romance tem forte inclinação autobiográfica, motivo que nos faz iniciar este trabalho pela análise dessa questão.
PALAVRAS-CHAVE: ficção, autobiografia, história, memória.
ABSTRACT That dissertation analyzed the novel The left hand, by Faust Wolff, under a perpective
that detach the varied content wich is formed. We take with base the concepts of memory and history, because the speeches of many narrators-characters are born, primordially, from the remomeration of the people. Related in that, the novel focus of a critic and ironic way, the social-politic from Brasil and from world, we will see some teams and aspects brought by that inverted, as the process of it conduction. We analyzed also the novel metalinguistic content, read it like the history of construction of novel. Like it is recurrent in author’s literature, the novel has stronger autobiographic inclination, motive that make us to begin that work by analyze of that question.
KEYWORDS: fiction, autobiographic, history, memory.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 8 I – À MÃO ESQUERDA: ROMANCE AUTOBIOGRÁFICO ........................................ 14 II – A SAGA DA FAMÍLIA TRAURIGZEIT ................................................................. 24 A vida à esquerda de Percival von Traurigzeit ...................................................................... 35 III: LITERATURA E MEMÓRIA .................................................................................... 52 Formas testemunhais em À mão esquerda............................................................................. 53 Para além da memória ........................................................................................................... 64 IV – A PERFORMANCE DA ESCRITA EM À MÃO ESQUERDA.............................. 78 O Narrador coringa do romance ............................................................................................ 78 A trindade romanesca e a história da escrita de uma história ................................................ 84 V – LITERATURA E HISTÓRIA ..................................................................................... 95 O Bobo da corte e do romance .............................................................................................. 95 Ler a história do mundo ......................................................................................................... 102 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 120 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 125
INTRODUÇÃO Fausto Wolff, cujo nome real é Faustin von Wolffenbüttel, nasceu em 1940 na cidade
de Santo Ângelo – RS, começou a trabalhar aos catorze anos de idade como repórter policial e
contínuo do jornal Diário de Porto Alegre. De família pobre, mudou-se para o Rio de Janeiro
aos dezoito anos. No Rio, chegou a manter três colunas simultâneas, escrevendo sobre
televisão no Jornal do Brasil, sobre teatro na Tribuna da Imprensa e sobre política no Diário
da Noite. Suas opiniões polêmicas e independentes também começaram a aparecer na TV,
com sua participação no Jornal de Vanguarda, de Fernando Barbosa Lima, a partir de 1963.
Atingido pela censura do governo militar, em 1968, Fausto Wolff exilou-se na Europa, onde
passou dez anos na Dinamarca e na Itália. Ainda no exílio, foi um dos editores de O Pasquim,
além de diretor de teatro e professor de literatura nas universidades de Nápoles (1968 a 1972)
e de Copenhague (1972 a 1978).
Na volta ao Brasil, com a Anistia, trabalhou em jornais como O Globo e Jornal do
Brasil, em seguida, passou a dedicar-se apenas à imprensa independente, em especial a O
Pasquim. Apoiou Brizola em sua eleição para o governo do Estado do Rio de Janeiro em
1982. A partir daí, longe do cotidiano das redações de jornais, dedicou-se à literatura, também
se responsabilizando pela tradução de algumas obras, tais como, Branca de Neve e outras
histórias (Bertrand Brasil, 2006) e Detonando a notícia: como a mídia corrói a democracia
americana, de James Fallow (Civilização Brasileira, 1997). Em 1999, participou da revista de
humor e política Bundas, assinando duas colunas. Em uma delas, com o pseudônimo de
Nataniel Jebão, um colunista social de direita e defensor da corrupção do poder, despertou
muita polêmica pelo tom irônico e debochado. Voltou a colaborar para o Pasquim, por meio
da reedição do periódico, em 1º de abril de 2002, rebatizado de Pasquim 21. Teve também
algumas participações no cinema. Em 1977, foi co-roteirista e um dos atores do filme
dinamarquês Jorden er flad. Fez ainda pequenos papéis em filmes dirigidos por amigos seus:
Tanga (Deu no New York Times?) (1987), do cartunista Henfil; Natal da Portela (1988) e O
Viajante (1999), de Paulo César Saraceni.
Com À mão esquerda, obra escolhida para essa pesquisa, ganhou o Prêmio Jabuti, de
1997, concedido pela Câmara Brasileiro do Livro. Foi finalista do mesmo prêmio em 2004, na
categoria Poesia e, em 2006, na categoria Contos, com A milésima segunda noite. Em seus
últimos anos de vida, manteve uma coluna diária no “Caderno B” do Jornal do Brasil. Morreu
em cinco de setembro de 2008, no Rio de Janeiro, cidade que adotou como lar ainda jovem.
Fausto Wolff publicou vinte e duas obras, entre contos, poesias, romances, ensaios, traduções,
histórias infanto-juvenis e jornalismo. Algumas delas fogem de uma classificação tipológica
cerrada, constituindo-se de variadas formas textuais. Assim é A milésima segunda noite, uma
reunião de 1002 textos sobre temas diversos, sob a forma de crônicas, contos ou pequenos
artigos, numa expressão livre e crítica. Em termos de ideologia política, o autor declarava-se
comunista e não se abstinha de fazê- lo, por exemplo, em suas crônicas. Por ser um crítico
ferrenho da imprensa, a quem acusava de ser “sócia do poder” e de deturpar o que
considerava a missão do jornalismo, sofreu uma espécie de excomunhão do meio jornalístico
e da mídia em geral; só aos poucos conseguiu inserir-se novamente e ver seus livros ganharem
cada vez mais espaço no mercado editorial.
Sua estréia no gênero romance se deu com O acrobata pede desculpas e cai, de 1965,
três anos depois veio O campo de batalha sou eu; em 1978 foi a vez de Matem o cantor e
chamem o garçom. Após um longo período sem criação no gênero, o autor elabora uma obra
que parece compensar o jejum literário, À mão esquerda, publicado em 1996, inaugurando
uma fase nova em sua vida de ficcionista; depois deste, mais dois romances de peso: O lobo
atrás do espelho: (o romance do século), de 1999, e Olympia: um romance, de 2007. Ambos
são densos e complexos em suas estruturas e refletem a preocupação do autor em trabalhar
criativamente a forma romanesca, além de apresentarem um universo ficcional multifacetado,
com histórias paralelas e personagens inusitados.
Assim é À mão esquerda, um romance com quase quinhentas páginas, na edição
utilizada aqui, composto por sessenta capítulos intitulados com o nome do personagem que o
narra, acompanhados da data anual em que acontece algum fato narrado por cada um deles.
No capítulo II Percival: 1943, por exemplo, o narrador aborda, não exclusivamente, eventos
ocorridos no ano de 1943, relembrando sua infância, quando tinha três anos de idade. No
capítulo X Theodoro: 1924, este personagem fala de sua situação a partir daquele ano,
quando, com doze anos de idade, foi morar com o pai. São vinte e oito narradores que surgem
em uma distribuição meio aleatória, na qual, alguns comparecem apenas uma vez, enquanto
outros surgem duas ou mais vezes, de acordo com a importância do que contam.
Em uma narrativa fragmentada e não- linear, o romance conta a história da família von
Traurigzeit, desde a sua origem na cidadezinha de mesmo nome, localizada na região da
Baixa Saxônia, por volta de 1118, e tendo como foco principal a trajetória de vida de Percival
von Traurigzeit, o protagonista, até 1995. Em sua origem, os Traurigzeit pertenciam à realeza
europeia, eram duques e príncipes, mas, em virtude de disputas políticas e religiosas ao longo
dos séculos, perderam a riqueza e o ducado em 1824, quando o duque Antônio e seus filhos,
juntamente com centenas de camponeses, foram expulsos do ducado e vieram para o Brasil
atraídos pelas promessas do governo brasileiro de que ganhariam terras e dinheiro para
colonizar a região sul do país. Desses familiares, a narrativa salta para os seus descendentes
no início do século XX, enfocando a história do núcleo familiar formado pelo casal Theodoro
e Yolanda, seus quatro filhos, entre os quais, Percival, além de outros familiares deste, como
avós, tios, sobrinhos, cunhada, filha, enteado.
Em vez de uma voz onipotente a dar conta do enredo, deparamo-nos com uma
multiplicidade de vozes que pouco a pouco desvenda a história dessa família, marcada por
inúmeras dificuldades econômicas, sociais e pessoais. Suas histórias de vida compõem a
estrutura do romance e seus discursos são de estatutos diversificados – conversas informais,
diário íntimo, carta, entrevista –, falando do protagonista, da referida família e da vida
particular de seus enunciadores, abordando uma fatia de vida de cada um deles. Começando
pelo mais importante, justamente o personagem central, Percival ou Pérsio, como é mais
conhecido, surge dez vezes como narrador de capítulo. A grande maioria dos narradores faz
parte da sua família, num total de quinze indivíduos que, com algumas exceções, contam algo
relacionado a ele, que tem sua história de vida destacada em meio às variadas pequenas
histórias que compõem o romance, sendo abordada em profundidade, desde sua infância
pobre, passando pelas suas peripécias pelo Brasil e pelo mundo, até chegar ao ano de 1995,
quando o personagem conta com cinquenta e cinco anos de idade. Na conta dos personagens-
narradores, entram sua mãe Yolanda, o pai Theodoro, seus três irmãos, Ulisses, Otávio e
Ruth, os dois avôs, João von Traurigzeit e Hermano Malokinsky, o tio Thibaldo (irmão de seu
pai), duas tias maternas, Ofélia e Almira, a cunhada Márcia, esposa de Otávio, o primo Olavo,
o sobrinho Harry, sua filha Ângela e Breno, seu enteado.
Quatro amigos de Pérsio figuram como narradores: Balduíno, amigo de adolescência,
Nikolay, filósofo e escritor dinamarquês, Glênio, que deu o primeiro emprego de Pérsio como
auxiliar de repórter policial no Diário de Notícias, em 1954, em Porto Alegre, Rolando Góes,
um amigo da juventude. Quatro mulheres com as quais Pérsio se relacionou, Mei Mei,
Assunta, Marjorie e Mabel, relatam suas experiências amorosas com o herói. A primeira é
uma prostituta vietnamita que o personagem conheceu quando fo i enviado ao Vietnã, para
cobrir a guerra. Herdeira de uma rica família romana, Assunta nutriu uma paixão intensa por
Pérsio. Já Marjorie, é de família tradicional da classe alta do Rio de Janeiro e manteve um
relacionamento conturbado com o protagonista. Mabel é a adolescente com quem Pérsio teve
sua primeira experiência sexual. Há ainda a presença de um dono de bodega, o senhor Herbert
Muller de la Cruz, que primeiramente dialoga com Otávio, e depois assume a narração de um
capítulo. Sendo Pérsio o protagonista, é compreensível que uma professora dele faça parte do
rol de narradores, trata-se de Dona Candinha, professora primária. Dois personagens-
narradores destoam dos demais não apenas pelo que dizem, mas pelo que são: o Bobo e o
Narrador. O primeiro faz parte inicialmente do tempo histórico mais longínquo abrangido pela
narrativa, século dezesseis, porém sua atuação extrapola os limites do tempo cronológico e a
matéria que apresenta refere-se aos antepassados de Pérsio, pertencentes à realeza europeia. O
segundo é um personagem metanarrativo incumbido de ordenar, comentar e explicar a matéria
narrativa; em termos de análise do discurso, ele não faz parte do enunciado, a história dos von
Traurigzeit, sendo atrelado ao plano da enunciação. Como podemos ver, o rol de narradores é
bem eclético, uma miscelânea de pontos de vistas, pois Fausto Wolff dá voz a figuras
marginalizadas e excluídas, figuras diferentes e separadas no tempo e no espaço, sem
qualquer ligação entre si, a não ser o fato de terem convivido com Pérsio, às vezes nem isso.
Dentro do próprio leque de narradores familiares, vemos a multiplicidade e a disparidade da
seleção, pois até mesmo o enteado do protagonista possui um capítulo, à semelhança da mãe e
da irmã.
Além do enredo propriamente dito, a respeito dos Traurigzeit, há em À mão esquerda
um discurso metanarrativo que enfoca o processo de produção da própria narrativa, aludindo a
si mesma como sendo escrita no ato da enunciação. Trata-se de um enredo paralelo que traz o
Autor e o Narrador como os seus agentes (ambos são grafados com letra minúscula, mas,
devido às suas especificidades, usaremos a forma maiúscula para diferenciá- las das
respectivas noções gerais). São passagens longas e intensas no propósito de expor ao leitor o
trabalho de criação literária do romance por parte do Autor, que mantém com o Narrador uma
relação interessante, pois discutem entre si sobre a escrita da obra.
Focando no título, À mão esquerda, com o acento diferencial no a, foge da maioria dos
títulos de obras artísticas em geral, nas quais predomina a nomeação objetiva, direta e
delimitadora, por meio de artigos, pronomes e numerais acompanhando os substantivos.
Apoiando-se em análises de Evanildo Bechara e Rocha Lima, o professor Manoel Pinto
Ribeiro (2003, p. 287-288) ensina que, no título, em vez de artigo, apenas uma preposição
antecede o substantivo feminino, determinando-o por uma via oblíqua e formando com ele
uma locução adverbial, possuidora de um sentido específico. O acento não indica a presença
de crase, mas chama-se acento diferencial precisamente por indicar que o a trata-se de uma
preposição.
Até certo ponto, o título remete ao personagem Mão Esquerda de Deus, um assassino
profissional que tem por objetivo eliminar aqueles que, por suas ações ou atividades,
considera responsáveis pela desigualdade social do mundo, que, para ele, são os políticos,
banqueiros, industriais, latifundiários, empresários da imprensa, indivíduos endinheirados que
fazem parte da classe dominante. O Mão Esquerda manda- lhes bilhetes pedindo uma quantia
financeira para deixá- los vivos, os que se negam a entregar o dinheiro são mortos. O assassino
nomeia-se desse modo, por julgar “a mão direita de Deus”, responsável pelos malefícios e
agruras que atingem os mais pobres; agindo como um justiceiro, ele “limparia” a sujeira
deixada por ela. Tudo o que sabemos dele são referências feitas por outros personagens ou
pela leitura de alguns de seus bilhetes. Sua participação é mediada por palavras e pontos de
vistas alheios. Outro aspecto relacionado ao Mão Esquerda é o paralelismo com Pérsio. A
narrativa aproxima os dois personagens sem contudo identificá-los, deixando ao leitor a
impressão de que Pérsio seja o assassino misterioso, embora o romance termine sem que seja
revelada a verdadeira identidade do matador, que, com sua presença misteriosa, cria um clima
de romance policial.
O adjetivo esquerda enforma o sentido da locução adverbial por meio da vasta
significação que contém, a começar por estabelecer contraste com à direita, seu antônimo. Na
tradição cristã, por exemplo, diz-se que Jesus está assentado à direita do Pai, como um lugar
de honra e prestígio; da mesma forma os reis dignificavam os seus agraciados, colocando-os à
sua direita e fazendo deles o seu braço-direito, auxiliares principais em quem podiam confiar.
Sendo assim, por oposição, o lado esquerdo seria o lado menos honroso, de menor prestígio
ou sem glória, ou então detentor de uma glória enviesada, às avessas, configurando-se uma
posição peculiar dentro de uma dada situação, de um lugar à parte, uma posição marginal.
Enfim, a locução que serve de título ao romance, guarda um lastro de significado cujo efeito é
dar um direcionamento à narrativa, em termos de sentido, levando às indagações: que é feito,
formado, ou constituído à mão esquerda? Seria o protagonista Percival, cujo nome remete ao
lendário cavaleiro da Távola Redonda, dono de um destino escrito à mão esquerda? Seria a
estrutura fragmentária da narrativa escrita de uma forma contrária às narrativas lineares
tradicionais?
Ao debruçarmos sobre esse quarto romance de Fausto Wolff, um primeiro objetivo,
amplo e simples, nos impulsiona: conhecê-lo como um todo, mirando no conteúdo variado
que traz, nas questões que levanta e nos aspectos que entram em sua formação. Consoante a
isso, no capítulo a seguir, analisamos a relação que a obra ficcional mantém com a questão da
autobiografia, já que pode ser notada dentro do romance a presença do autor, isto é, de sua
história de vida, por meio de situações, referências e jogos de dizeres em geral. No segundo
capítulo, apresentamos alguns aspectos gerais que compõem tanto os personagens em si como
a saga familiar da qual eles fazem parte, aspectos que dizem respeito à configuração física,
psicológica e comportamental de alguns Traurigzeit de destaque, que vistos em conjunto, nos
permitem enxergar a preocupação do autor em formar um quadro familiar característico. Em
seguida, destacamos a trajetória do personagem principal, focando nos aspectos e
características que fazem de Pérsio um perfeito herói problemático. O capítulo terceiro é
dedicado à questão da memória, pois a base dos discursos dos narradores-personagens é a
rememoração de acontecimentos de suas próprias vidas ou sobre Pérsio. Fazemos uso do
conceito de testemunho em sentido amplo para dar conta dessas falas que se configuram,
algumas, de um modo singular, enquanto as demais se apresentam simplesmente como relatos
espontâneos. São abordados também nesse capítulo outros aspectos e características
relacionados diretamente aos personagens e à narração em si, por incrementar e potencializar
o discurso rememorativo.
No penúltimo capítulo, o personagem Narrador é analisado em destaque. Apontamos a
tradição conceitual e estética da qual ele é originado, destacando os lances narrativos que
expõem as características de sua composição e atuação. Também analisamos a relação que
mantém com o personagem Autor e com o protagonista, enfocando as passagens
autorrepresentativas do romance, lendo-as como uma história da criação da obra. No último
capítulo, focamos o personagem-narrador Bobo, vendo as características sui generis que
fazem dele um ser em especial dentro das histórias dos personagens contadas por ele. Nos
detemos no diálogo que o romance estabelece com a história sócio-política do Brasil e do
mundo, abordando problemáticas recorrentes em momentos diversos da história da família,
sempre o ponto de partida para a abordagem. Na parte final, comentamos inicialmente três
aspectos específicos do romance, concernentes à sua estrutura, classificação e idealização,
indicando uma intenção, ampla e abstrata, do romance, relacionada à ideia de totalidade.
I – À MÃO ESQUERDA: ROMANCE AUTOBIOGRÁFICO
Na verdade, dentro do nosso espírito as recordações se transformam em romance, e os fatos, logo consumados, ganham outro contorno, são acrescidos de mil acessórios que lhes atribuímos, passam a desenrolar-se num plano especial, sempre que os evocamos, tornando-se, enfim, romance, cada vez mais romance. Romance trágico, bufo ou sem nenhum sentido, conforme cada um de nós, monstros imaginativos, é trágico, é cômico ou absurdo” (O amanuense Belmiro , Cyro dos Anjos, 1966, p. 71)
Não são poucas as pessoas que reconhecem a literatura de Fausto Wolff como feita na
fronteira entre a história de vida do autor e a mais pura e forte imaginação, ou, para usar as
palavras de Millôr Fernandes sobre À mão esquerda na orelha do livro, uma literatura rica de
“fascinante verdade e delirante invenção”. Tanto no romance em análise, quanto nos demais,
a presença da mundividência do autor é palpável e o acento autobiográfico parece ser a linha
mestra do seu fazer literário, desde a sua estréia com O acrobata pede desculpas e cai, em que
o protagonista é um jornalista em crise familiar e profissional, em constante embate contra o
poder constituído, lembrando a cruzada pessoal do autor em busca da libertação pessoal e
social.
Neste romance surge a personalidade de um personagem que será “repetido” nas obras
posteriores. Trata-se da criação de um tipo com características físicas, psicológicas e sociais,
que se repete e é facilmente identificável de uma narrativa para outra. Por exemplo, os heróis
wolffianos são sempre altos, medindo quase dois metros de altura. Essa característica é
destacada dentro de À mão esquerda, com alusões espalhadas em vários momentos, como as
feitas pelo Bobo, em relação aos seus senhores. Além da alta estatura, entram na composição
desse tipo, a força física e a coragem.
No tocante à profissão, os personagens principais são sempre jornalistas com o mesmo
amor, empenho e visão sobre o exercício profissional. Todos possuem espírito aguerrido e
combativo, enxergando o jornalismo como uma missão sublime e eles, como arautos da
verdade que devem informar o povo a respeito do que faz o “poder”, e não o contrário.
Também são escritores que têm a metalinguagem como um dos temas principais de seus
livros. O protagonista d’O acrobata não tem nome e escreve em meio aos caos que é a sua
vida: “Talvez um dia eu ainda me mate. Talvez um dia, quando acabar de escrever este livro.”
(WOLFF, 1998, p. 12). Preocupado com a escrita, continua: “Faço um parágrafo para
explicar: escrevo no presente, mas isso tudo se passou há algum tempo e eu não me matei,
inclusive.” (Idem, p. 13).
Também Pérsio, de À mão esquerda, escreve a sua narrativa, como atesta sua irmã, no
capítulo XXVIII Ruth: 1995: “Bárbara me disse agorinha mesmo que ele está mais calmo
porque, finalmente, começou a escrever um outro romance, que ela está adorando.” (p. 145).
Como sabemos, o ano de 1995 é o limite de tempo que o romance abarca, correspondendo à
atualidade cronológica interna da narrativa. Em Olympia: um romance, o protagonista e
narrador, Jeová Lobo, é jornalista e escritor comunista, publicando sob o pseudônimo de Joel
de Freitas, encontra-se escrevendo a narrativa que lemos, declarando logo no segundo
capítulo: “No momento tenho uma ideia vaga de como será este livro que, presumo, terá umas
quatrocentas, quinhentas páginas. Sei o começo, o meio e o fim que, provavelmente, será
outro daqui ha dois, três meses quando o trabalho estiver acabado.” (WOLFF, 2007, p. 16).
São condições parelhas que denotam o gosto do autor em trabalhar uma mesma situação
narrativa, pautada sempre pela metalinguagem, pelo jogo entre enunciado e enunciação.
Em termos psicológicos e sociais, os personagens apresentam um comportamento bem
semelhante, são divertidos, gostam de alegrar os amigos, têm boa conversa e sabem contar
histórias, fazem uso de bebida alcoólica como se fosse água e são do tipo conquistador de
mulheres, com vida sexual intensa. Todos são indivíduos problemáticos, atormentados com
dúvidas e crises existenciais, apresentando um comportamento conflituoso com o mundo. Em
geral, não se preocupam em ter dinheiro ou acumular bens materiais, mas estão sempre
preocupados com o fato de não possuírem um emprego que lhes renda uma estabilidade
econômica mais duradoura.
No quarto romance, O lobo atrás do espelho: (o romance do século), de 1999,
encontramos uma descrição do protagonista, Antônio, que é a síntese desse tipo a que estamos
referindo:
Antônio era uma lenda ambulante. Escritor, jornalista, diretor de teatro, repórter que estivera em pelo menos duas guerras como correspondente, um gigante forte, contador de casos; um homem pelo qual as mulheres se apaixonavam facilmente. Seus livros tinham um público cativo, pequeno mas fiel. […] Um homem que não se encontrara, um homem que devia ter uma profunda ferida dentro dele e que escondia seus sofrimentos com um sorriso feito de álcool. […] Antônio, aparentemente, vivia com parcos recursos e gastava rapidamente o que ganhava. Jamais deixava de informar onde podia ser encontrado, geralmente na casa de alguma nova namorada. Suas raras e misteriosas visitas eram uma festa para todos (WOLFF, 2000, p. 285-286).
O trecho acima serviria perfeitamente para descrever Pérsio, Jeová Lobo ou o anônimo
d’O acrobata. Todos eles apresentam as mesmas características pessoais e sociais. Fausto
Wolff criou e elegeu um personagem modelo para ser o centro axial de suas produções
ficcionais, criando histórias diferentes para ele, sempre recriado em cada uma delas, com
nome diferente e vivendo situações semelhantes ou diferentes. Entretanto, esse não é o limiar
da questão. Os referidos personagens são como cópias, que têm como matriz, o autor, o
próprio Fausto Wolff, que tomou a si como imagem para construir seus personagens. E
quando falamos em imagem, também nos referimos ao aspecto físico, pois, segundo Millôr
Fernandes, Fausto media um metro e noventa e dois, motivo pelo sempre fora chamado de
gigante, da mesma forma como Pérsio é chamado. No posfácio de À mão esquerda na edição
utilizada aqui, Marcelo Backes diz do seu jeito, e com foco em Pérsio, o que afirmamos
acima:
Pérsio nasceu no mesmo ano (1940), ns mesma cidade (Santo Ângelo) em que Fausto nas ceu. O personagem tem o porte – físico e metafísico –, o gênio, a profissão e o mundanismo do autor. O que Pérsio conta, Fausto sentiu; ambos são gaúchos, correram o mundo e adotaram o Rio de Janeiro para morar. Percival Von Traurigzeit, ou Pérsio Traurig! Faustin von Wolffenbüttel, ou Fausto Wolff (BACKES, 2007, p. 487).
O crítico sintetiza alguns dados que nos levam a considerar que o leitmotiv da obra é
autobiográfico, na expressão de Moacir Werneck de Castro. No fundo, boa parte do mundo
ficcional em que vivem os personagens, desde o lugar onde moram, os lugares que
freqüentam, os amigos de longa data, até muitas situações vividas por eles, tudo remonta
fortemente ao mundo do autor. Além disso, Backes destaca, inclusive, a “brincadeira” criativa
com o nome do personagem, que reproduz o procedimento adotado pelo autor em relação ao
seu próprio nome; embora pareça uma brincadeira desprovida de significação e importância,
no fundo, é outra forma de manifestação da intenção autoral de se autorrepresentar em sua
ficção.
Os referidos dados são muitos e diversificados, os mais gritantes e sólidos são as
referências às viagens e aos lugares nos quais o autor e Pérsio viveram e trabalharam, bem
como o ano de suas ocorrências e a duração. A identidade literária e a autoral, mais do que
uma forma de expressão, suscitam a fusão, manifestando claramente a intenção do autor de se
fazer presente em sua ficção. Em crônicas reunidas e publicadas no livro A imprensa livre de
Fausto Wolff, o autor fala bastante de si mesmo e da história familiar; em uma, intitulada, “O
menino no escuro”, ele relembra o tema da Segunda Guerra Mundial, quando ele era apenas
uma criança:
Choque cultural ambulante que sou desde que nasci, a primeira lembrança da guerra é a de meninos e meninas mais ou menos da minha idade correndo atrás de mim e cantando: “Alemão batata, come queijo com barata”. Desde cedo, pais ignorantes ensinam aos filhos que devem odiar o que é diferente. E eu era diferente em Porto Alegre. Havia nascido na colônia Buriti, onde todos falavam alemão e onde jamais foram cumpridas as promessas de ajuda aos colonos desde os tempos de Dom Pedro II. A garotada me chamava de alemão batata e o mais irônico nisso tudo é que minha família havia vindo para o Brasil da Alemanha em 1824. Claro, eu também tinha um nome complicado – não era Silveira, nem Silva, nem Oliveira – e era mais alto. Perguntei para minha mãe: “Por que as crianças me odeiam tanto?”. Ela também não sabia responder, pois para ela – camponesa – a guerra não existia. Ela tinha de preservar o seu lar e tentar sobreviver na cidade grande. Definitivamente, eu não queria ser alemão. (WOLFF, 2004, p. 152).
O menino da crônica é o Pérsio do romance, cuja trajetória de vida, bem como a
trajetória familiar, é a de Fausto Wolff: a vinda da família da Europa para o Brasil, as
promessas não cumpridas pelo governo brasileiro; do ponto de vista particular, tem-se o
sofrimento do menino estigmatizado pelo nome, pela origem e pela altura, vivendo a
experiência traumática da diferença, assim como Pérsio. Na crônica, “Bom humor & poesia”,
o cronista presta uma homenagem aos profissionais da educação que marcaram sua vida, entre
eles, dona Candinha, professora “do primeiro ao quinto ano primário do Grupo Escolar 1º de
Maio, de Porto Alegre” (WOLFF, 2004, p. 181). Não por coincidência, a professora primária
de Pérsio é exatamente, Dona Candinha: 1948, que no capítulo vinte e quatro fala do
protagonista, com quase oito anos de idade, seus problemas familiares e as suas aptidões
artísticas. Por repetições sucessivas, apreendemos certos aspectos da vida de Fausto Wolff, de
suas convicções, lutas e dificuldades, sem jamais alcançar o sentido numa biografia total. São
diversos retratos, guiados e interpretados por diferentes personagens, em diferentes espaços
ficcionais, visando a uma impossível biografia completa e acabada.
O caráter fragmentado e fortemente ideologizado das fontes não pressupõe uma
verdade capaz de operar uma síntese, mas deixa transparecer o sentido dessas fabricações
biográficas. Fausto e suas imagens ficcionais são agradáveis e inteligentes, gostam de chamar
a atenção para si, são populares e briguentos. Quando escrevem, suas composições são
engraçadas, causam estranhamento pela liberdade da forma e pelo acúmulo de informações.
Na profissão, são muito bons, mas destoam pela ingenuidade com que tratam assuntos sérios,
por exemplo, Fausto e Pérsio tinham veleidades políticas e ambos concorreram a eleições e
perderam por ignorarem as manhas e artimanhas de uma candidatura. O autor conta sua
experiência na crônica citada abaixo:
Quando me candidatei a deputado federal para a Constituinte, meus amigos mandaram confeccionar uma única faixa com meu nome e número. Filhos de amigos carregariam essa faixa pelos locais movimentados do Rio. Disse carregariam, pois essa minha única faixa foi apreendida pela legislação eleitoral no primeiro dia. Para vocês terem ideia da farsa: duas famílias inteiras votaram em mim numa zona eleitoral de Icaraí, bairro de Niterói, onde nem fiz campanha com meu único carro emprestado que vivia enguiçado. Foram 33 votos e nas urnas apareceram apenas 3. Um mês antes das eleições, O Globo publicou que eu seria um dos candidatos a deputado federal mais votados no Rio de Janeiro. Tive menos de 10 mil votos e a pesquisa avaliava que minha votação seria superior a 50 mil votos. Mais tarde, uma velha raposa política me disse: “Eleição se ganha depois da eleição, junto aos apuradores”. (WOLFF, 2004, p. 180-181).
No romance, Pérsio também foi candidato à Câmara Federal, não logrando êxito e
chegando à mesma conclusão de seu criador:
O ano de 1993 nos pegou aqui no Rio de Janeiro, mais ou menos assim: eu mais uma vez saíra derrotado de uma campanha para deputado federal. Não consegui entender, pois nos primeiros trinta dias meu nome aparecia nas pesquisas sempre entre os mais votados e acabava morrendo na praia, com menos de dez mil votos. Só no ano seguinte descobriria que eleições se vencem na hora das apurações, na hora de corromper apuradores. (p. 356).
A crônica é mais detalhista, com números e exemplos concretos, como a referência
aos eleitores de Icaraí, enquanto que a narração literária aborda o mesmo núcleo temático com
uma visão panorâmica, mas ainda assim, Pérsio traz dados iguais aos relatados por Wolff: a
questão do nome cotado entre os mais votados, a conquista de menos dez mil votos e a
menção da descoberta da fraude eleitoral. Tudo faz parte de uma mesma experiência de vida
transposta do autor para o personagem, são “realidades” que se espelham, a ficcional e a real.
Se esse tipo de dado pode ser considerado mais sólido, os do tipo psicológico e
comportamental são vistos com mais encantamento pelo público que se interessa pela vida do
autor. Algo como uma lenda se formou em torno do nome Fausto Wolff, que foi com o passar
dos anos se tornando sinônimo de combatente a favor do jornalismo autêntico (ter assumido a
editoração do lendário Pasquim deve ter colaborado para isso), de opositor do regime militar,
de crítico ferrenho do capitalismo e do neoliberalismo e, no que tange à literatura, de escritor
ácido, pronto para o ataque verbal. Há um impacto dessa questão nos leitores, que buscam
conhecer o autor pelo conhecimento de suas obras, empreendendo aquele antigo vezo de ler a
obra buscando encontrar nela o seu autor. No caso de Fausto, os leitores não se enganam, pelo
menos não totalmente, já que ele está nela como é o seu desejo. Em uma entrevista concedida
ao site Fazendo Média, em fevereiro de 2006, à interpelação de que costumava falar bastante
de si mesmo, declarou que buscava inspiração nas suas experiências de vida:
Aprendi isso com a literatura. Uso-me como matéria prima para que o público melhor possa julgar. Antes disso, porém, eu vivi. O diabo não é esperto porque é velho. É velho porque é esperto. Tenho 65 anos, oito casamentos, filhos, netos, vinte livros, três guerras. As dores e alegrias são muitas. Porque usar as experiências alheias se as minhas senti na alma e no corpo?
Na própria resposta, o uso do dito popular como argumento para passar sua ideia traz a
marca do saber aprendido com o transcorrer dos anos. Na crônica de 29 de fevereiro de 2008,
publicada no Caderno B do Jornal do Brasil, ele defende essa postura como um meio para o
trabalho de autor: “Escrever bem é importante, mas não é essencial. Essencial é a sinceridade.
Pelo menos tentar ser sincero de todo o coração. Isso, em si só, já é um estilo. Um livro que
não é o autor não serve para nada”. Para Wolff, o autor deve estar na obra e a obra deve ser o
autor, numa elaboração fictícia de si mesmo. Essa concepção de literatura contém uma
afinidade com o mito da criação do homem, narrado no principal texto da tradição judaico-
cristã, a Bíblia, no livro de Gênesis, no qual lemos que Deus criou o homem à sua imagem e
semelhança, ou seja, a criatura é reflexo do criador. A perspectiva de Wolff, todavia, é
tricotômica, pois remete à tríade autor/obra/leitor. É isso que depreendemos da declaração,
quando diz que usa-se como matéria para que o público melhor possa julgar. Em seu
processo de criação, Fausto pensa no leitor com o pressuposto de envolvê- lo, como faz o
Narrador, ao buscar o diálogo e procurar esclarecer pontos e situações ao leitor.
Em À mão esquerda, o jogo lúdico entre o autobiográfico e o ficcional parece tornar a
obra de Fausto Wolff inclassificável quanto ao gênero literário, pois o próprio autor faz
questão de fazer da sua literatura um campo de experimentação. Valendo-se da prática de
trabalhar com paratextos, em um pequeno comentário, misto de agradecimento bem
humorado e observação crítica, colocado antes do sumário da obra, o romancista adverte:
“Gostaria de agradecer de antemão a todos que se identificarem com algum personagem e
garantir- lhes que estão redondamente enganados. Este é um livro de ficção. Talvez um dia eu
escreva a minha biografia, pois, embora escritor menor, sou um mentiroso maior” (p. 8).
Este texto é uma rua de mão dupla. Ele nega uma possível identificação que pessoas
reais possam ter em relação a alguns personagens, porém, dialeticamente, ao fazer isso chama
atenção para a possibilidade de legitimação dessa via. Além desse fato, vale registrar que a
quarta edição do romance (2007), traz, nas abas do livro, comentários críticos de leitores que
já denunciam o cunho autobiográfico do romance. Para um leitor que não conheça a obra do
autor ou que não conheça episódios de sua experiência, saberá de antemão que se move em
terreno movediço quanto à matéria narrada, tendo diante de si um jogo sinuoso entre vida do
autor e imaginação criadora: se o escritor é de pouca expressão, o “mentiroso maior”
compensa pela inventividade.
Os frágeis limites entre a autorreferencialidade e a ficção, ou a inseparabilidade entre
vida e obra que se observa na literatura de Fausto Wolff, se estendem aos personagens que
vivem situações que se repetem ou se desdobram de um livro para outro. Em mais um
exemplo dessa prática, na primeira página de Olympia, no texto que antecede a narrativa
propriamente dita e ao mesmo tempo faz parte dela, intitulado “Mais ou menos no meio…”, o
narrador informa: “Agora, por exemplo, são 11 horas da noite de um belo verão em
Copenhague no princípio dos anos 70*.” (WOLFF, 2007, p. 9). O narrador está na
Dinamarca, país em que Pérsio e Fausto viveram, o que faz o leitor de À mão esquerda
reconhecer uma mesma ambientação migrando de uma obra para a outra. Contudo, o que
queremos destacar é o asterisco que faz parte do texto narrativo, mais precisamente, a nota de
rodapé em que se lê: “Quem quiser saber mais sobre essas aventuras nos anos 70 terá de ler À
mão esquerda, romance vencedor do prêmio Jabuti e também publicado pela Editora Leitura.”
(Idem).
A declaração estabelece instantaneamente uma ligação entre as duas narrativas
separadas por pelo menos dez anos, abrindo a necessidade de uma outra leitura que
complementaria a primeira. Nesse caso, a obra que utiliza o “eu” como narrador que coincide
com o “eu” do escritor e se ramifica em outros personagens no todo da obra, radicaliza de
forma desprendida ao informar que utiliza a literatura como cenário para a germinação de
diferentes “eus”, em qualquer tempo e espaço, mas sempre convergindo para sua história
pessoal, sua profissão de jornalista, sua escrita literária. Com À mão esquerda, Wolff re-insere
a categoria autor na escrita, em outros termos, traz de volta a imagem do sujeito ao mesmo
dentro e por trás da obra. A imagem de autor está multiplicada pelo jogo de espelhos
estabelecido pela presença do Autor, do Narrador e de Pérsio, que juntos, formam uma
trindade, indissolúvel, como um “deus uno”, divididos em três personalidades distintas, mas
complementares, que se unificam na experiência de vida e na realização pela arte. Veremos a
questão dessa trindade em outra parte do trabalho.
Em Escritas de si, escrita do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica, Diana
Irene Klinger investiga a possibilidade do retorno do autor, depois de decretada sua “morte”,
desde final do século XIX, com Nietzsche, passando por Foucault e culminando no
estruturalismo. A autora apoia-se no conceito de autoficção como sendo capaz de empreender
o referido retorno, afirmando em determinado ponto:
Paul de Man rejeitava a noção de “pacto” de Lejeune, porque – segundo de Man – ela sustenta a noção de autoridade transcendente do autor. Pois bem, uma vez aceita a ideia foucaultiana da “morte do autor”, podemos supor que seu “retorno” implica uma visão diferente, que desvincula autoria e autoridade. No meu entender, o autor retorna não como garantia última da verdade empírica e sim apenas como provocação, na forma de um jogo que brinca com a noção do sujeito real . (KLINGER, 2007, p. 44) (grifos da autora).
A autora considera que a noção de jogo representativo é o meio pelo qual o autor se
faz presente na escrita. Ele compareceria no texto na forma de provocações lúdicas que
apontariam com maior ou menor força para a noção de sujeito real. Ora, nas obras de Fausto
Wolff, há um campo inteiramente livre para as performances do autor e dos seus eus fictícios.
Ele não só declara a sua participação, como também coloca o histórico em tensão com a
ficção. Para o ficcionista, a escrita de um romance presta-se a toda sorte de desvios: as
trajetórias dos personagens de À mão esquerda estão em perpétuo fluxo de recomposição:
autor/narrador/personagem relatam seus itinerários de vida com a vontade de preservar ou
reservar traços significativos de suas personalidades, acontecimentos marcantes, casos
amorosos, realizações felizes, mas se recusam a compreender a vida como uma série única,
pronta e acabada. O percurso é sinuoso, conduz a transgressão das normas e o sujeito fica
entregue à pluralidade.
No tocante a essa questão do retorno do autor, Klinger (Idem, p. 38) considera que o
“termo autoficção é capaz de dar conta do retorno do autor, pois ele problematiza a relação
entre as noções de real (referencial) e de ficcional”. Ao fazermos uma aproximação com o
termo em questão, não estamos dizendo que À mão esquerda enquadra-se nessa modalidade
literária, mas tão somente que contém procedimento bem semelhante ao praticado por ela, a
saber, a ficcionalização de acontecimentos e fatos da vida do autor. O termo foi cunhado pelo
escritor e crítico francês Sergue Doubrovsky, em 1977, para classificar o romance que
escrevera como uma resposta à colocação de Philippe Lejeune, que, em O pacto
autobiográfico, indagava sobre a possibilidade de existência de um romance com identidade
nominal entre personagem, narrador e autor, concluindo que é possível, mas não sabia de
nenhum. De lá para cá, o termo se tornou problemático porque não definido ainda com
justeza, fazendo-o figurar bem de perto de outros discursos cuja prática é aparentada e que se
enquadram na perspectiva da escrita de si, como nos dias atuais são designados
genericamente os discursos em primeira pessoa cujo foco é o sujeito que os profere, são
exemplos, o diário íntimo, as memórias, a autobiografia, os relatos confessionais, e, com o
advento da Internet, a escrita nos blogs.
À mão esquerda não se enquadra no conceito elaborado por Doubrovsky, pelo simples
motivo pelo qual o escritor criou o seu romance, a narrativa de Wolff não apresenta a
homonímia entre aquelas três instâncias literárias, característica da autoficção, mas parece
enquadrar-se numa categoria muito próxima: o romance autobiográfico. Vejamos as
considerações de dois estudiosos sobre esse subgênero, para ver se a hipótese é válida.
Tomando a distinção feita por Philippe Gasparini em, Est-il je? Roman autobiographique et
autofiction, entre os discursos de enunciação autobiográfica ficcional, Diana Klinger explica
que a diferença entre a ficção autobiográfica e a autoficção se dá em termos de
verossimilhança.
O romance autobiográfico se inscreve na categoria do possível, do verossimilmente natural, ele suscita dúvidas sobre sua verificabilidade mas não sobre sua verossimilhança; enquanto que a autoficção mistura verossimilhança com inverossimilhança e assim suscita dúvida tanto a respeito da sua verificabilidade quanto da sua verossimilhança. Pelo contrário, mantendo-se dentro da categoria do possível, do verossimilmente natural, o romance autobiográfico convence o leitor de que tudo se passa logicamente, mesmo que o narrado não seja verificável. A identificação do herói com o autor passa necessariamente pela ambiguidade: o texto sugere uma identificação entre eles e, ao mesmo tempo, distribui índices de ficcionalidade que atentam contra a identificação. (Idem, p. 46).
A teorização em torno da questão da verossimilhança nos parece um pouco superficial
e arbitrária, pois não fica claro porque a autoficção faz a mistura atribuída a ela. Não pode
haver uma narrativa autoficcional verossímil? Mas consideramos válidas o que é dito sobre a
ficção autobiográfica, principalmente a respeito da necessária ambiguidade entre autor e
personagem, nessa modalidade literária. Trata-se de uma outra forma de apontar a
impossibilidade de estabelecer uma fronteira geométrica entre um pólo e outro, tudo fica meio
nebuloso, sugestivo, ora aproximando criador e criatura, ora os afastando. No mesmo livro
mencionado acima, ao refletir sobre a utilização de um nome fictício para um dado
personagem, cuja história o leitor tem razões para desconfiar se tratar da história de vida do
próprio autor, Philippe Lejeune define de forma simples o que vem a ser uma narrativa
romanesca autobiográfica:
Esses textos entrariam na categoria do “romance autobiográfico”. Chamo assim todos os textos de ficção em que o leitor pode ter razões de suspeitar, a partir das semelhanças que acreditar ver, que haja identidade entre autor e personagem, mas que o autor escolheu negar essa identidade ou, pelo menos, não afirmá -la. Assim
definido, o romance autobiográfico engloba tanto narrativas em primeira pessoa (identidade do narrador e do personagem) quanto narrativas “impessoais” (personagens designados em terceira pessoa); ele se define por seu conteúdo. À diferença da autobiografia, ele comporta graus. A “semelhança” suposta pelo leitor pode variar de um vago “ar de família” entre o personagem e o autor até uma quase transparência que leva a dizer que aquele é o autor “cuspido e escarrado”. (LEJEUNE, 2008, p. 25).
As palavras do crítico caem como uma luva ao romance À mão esquerda, no qual
vimos que Pérsio é a imagem “cuspida e escarrada” de Fausto, que tanto escolheu colocar o
protagonista para narrar a sua própria vida, como convocou a participação de narradores
falando dele em terceira pessoa. Na narrativa, não há apenas o estabelecimento de uma
identidade entre autor e personagem, mas joga-se com essa identidade transparente o tempo
todo. A propósito, o termo jogo é importante também para o crítico em questão, que o
emprega diversas vezes no mesmo sentido que é empregado aqui, como um procedimento de
afirmação e negação, aproximação e distanciamento, apontamento e desvio do olhar. Ao
conteúdo do romance, definidor do gênero, segundo Lejeune, comparamos os fragmentos de
duas crônicas do autor, trechos curtos mas significativos, com conteúdos que funcionam como
correspondências externas ao que lemos no romance e contribuem para que o leitor veja o
elemento “vida do autor” comparecendo em alto grau na ficção.
Mais acima é dito que por meio da lógica do possível o romance autobiográfico
convence o leitor, ainda que este não possa verificar a exatidão do narrado. Se mesmo nessa
circunstância a ficção autobiográfica consegue tal efeito, o que esperar se por informações
externas o leitor consiga estabelecer a identidade? Na crônica “A vida abominável do homem
honrado!”, após falar da vinda do seu antepassado, o princípe de Braunschwig Wolffenbüttel,
para o Brasil, e de alguns descendentes do nobre alemão, Fausto Wolff declara: “Isso tudo eu
contei em meu romance À mão esquerda” (WOLFF, 2004, p. 203). O autor não quis apenas
falar de si, já havia feito isso no primeiro romance, ele quis narrar a sua vida, colocar no papel
as experiências vividas ao redor do mundo. Mas não o fez pela via mais esperada, a
autobiografia clássica, escolheu o romance, escolheu a ficção para narrar as experências
acumuladas e construir uma obra ficcional de várias faces.
II – A SAGA DA FAMÍLIA TRAURIGZEIT Como se trata de um romance de quase quinhentas páginas, com um enredo
fragmentado envolvendo muitos narradores, personagens e eventos, torna-se interessante
apresentar os von Traurigzeit ao longo de quatrocentos anos, pontuando momentos e aspectos
mais significativos. O termo saga é utilizado apropriadamente pelo Narrador para se referir à
trajetória da família, pois ele é uma variante do termo épico e indica tanto a história de uma
família, quanto uma jornada heróica (D’ONOFRIO, 1995, p. 113). Sendo assim, além do
sentido usado na narrativa, podemos aplicar o termo ao protagonista, posto que sua trajetória
de vida constitui uma jornada singular pautada pela busca existencial de encontrar a si
mesmo.
O lugar onde nasceram os primeiros Traurigzeit, o ducado ou principado de mesmo
nome, tem início no século doze e envolve doação de terra, disputas políticas, bélicas e
religiosas; o Narrador tenta, sem sucesso, mapear essa origem: “Desde quando existe
Traurigzeit? Só posso especular.” (p. 27). Sem estar seguro das fontes pesquisadas, ele traça a
árvore genealógica da família, retratando esse começo medieval de maneira nebulosa, com
informações desencontradas e vagas, sem correlações entre si, criando uma atmosfera de
mistério, típica de histórias de tempos antigos e imemoriais, onde tudo girava em torno da
posse da terra, cuja extensão e características condicionavam o status e o título de nobreza de
seu dono.
A dinastia dos Traurigzeit inicia-se oficialmente no século XVI com Henrique, o
Velho. Com sua morte, o principado de Traurigzeit passou, em 1514, para a tutela de seu
filho, Henrique, o jovem, “que viveu até 1568 de acordo com o seu moto: ‘Tempo é
Turbulência’.” (p. 28). Este lema instigante remete ao nome da família, formado por dois
radicais de origem alemã: traurig e zeit. O primeiro significa triste e o segundo, tempo,
formando então a expressão tempo triste. Esta informação surge, propositadamente, nas
últimas palavras do romance, quando um personagem pergunta para um amigo de Pérsio, qual
é o significado de seu sobrenome. O procedimento fecha de forma simbólica a trajetória não
apenas do personagem principal, mas de toda a família. O significado da expressão
acompanha a vida de seus integrantes, marcando com sua negatividade a trajetória dos
Traurigzeit ao longo do tempo, marcada por infortúnios que se abateram sobre a vida de seus
integrantes.
O primeiro aspecto de destaque na construção dessa saga é que ela está atrelada a um
personagem masculino, que sempre vem à frente do nome da família, na verdade, falar dos
Traurigzeit é falar dos homens que a compõem. Nesse início, por exemplo, além dos dois
citados acima, seguem na sucessão do principado, o duque Julius e depois seu filho, o duque
Henrique Julius, sobre o qual é o Bobo quem fala, ocupando para isso um total de três
capítulos dos cinco narrados por ele. Na verdade, a narrativa privilegia uma imagem de
masculinidade que percorrerá toda a história familiar, trazendo caracteres físicos e
psicológicos que atravessam as gerações e entram na formação de pelo menos um de seus
membros. Todos são altos, com quase dois metros, fortes e corajosos, com grande atração e
apetite sexual por mulheres, em geral, exageram no uso de bebidas alcoólicas, sendo que
Pérsio se destaca em todos esses quesitos.
O duque Henrique Julius, por exemplo, tem uma enorme compulsão sexual e é um
bebedor inveterado, diz o Bobo: “Embora beberrão e mulherengo, vi poucos príncipes tão
respeitados. É claro que suas dimensões gigantescas ajudam.” (p. 113). Em outro momento,
assim ele se refere ao seu amo: “esse estranho príncipe, que bebe por dez homens e é capaz de
matar um boi com um soco na testa” (p. 193). Outra característica marcante de Henrique
Julius, compartilhada por Pérsio, é o gosto pelo conhecimento e pela arte, a ponto de o Bobo
dizer: “o duque só sai da biblioteca para foder, beber e trabalhar como ator em peças que ele
mesmo escreve” (p. 108). Para tanto, conta com uma biblioteca que é uma das maiores da
Europa, pois “compra qualquer volume impresso que passe por aqui a caminho dos grandes
centros” (idem). Saltando no tempo (século XVII) e no romance (L Bobo: 1689), lembramos
o duque, Augusto, o jovem:
Tinha quase dois metros de altura, era capaz de levantar um terneiro de duzentos quilos com uma das mãos, hábil espadachim, amante de literatura e exímio enxadrista. […] Das suas características, porém, a mais impressionante era o seu amor pelas mulheres […] mantinha amantes nas principais cidades europeias. (p. 348).
Trata-se de um verdadeiro paradigma de masculinidade estipulado e defendido por
toda a narrativa. Altura e força físicas e libido a todo vapor fazem parte dele, como também o
fazem características de outra ordem, como a inteligência e a intelectualidade manifestas no
amor pela arte e pelo conhecimento, e a emotividade, pois alguns deles vão da raiva ao afeto
em segundos. Como num episódio envolvendo o mesmo duque Augusto, que por determinado
motivo se enraiveceu com o Bobo e reagiu desse modo:
Enfureceu-se, jogou um garrafão de vinho contra a parede, levantou-me do chão com seus braços que mais pareciam troncos de árvores […].
De repente, parou de balançar-me no ar como um boneco e me abraçou. Senti sua barba contra o meu rosto e suas lágrimas que molhavam a minha face. Como Henrique Julius, era um monstro da natureza. (p. 354).
O Bobo, que não sucumbe à passagem do tempo, pois é eterno, como veremos, aponta
a semelhança entre Augusto e seu ascendente, reforçando pela metáfora o que estamos
apontando aqui. Chegando ao século vinte, vamos encontrar essa gama de caracteres nos
irmãos Theodoro e Thibaldo. Este, fala de si no quarto capítulo, Thibaldo: 1944: “Desde que
me conheço por gente, fui cachaceiro, putanheiro, briguento e garganta. Os outros sempre
deram jeito de se arrumar na vida. Eu, não. Não sei que maldição carrego na alma que sempre
acabo fazendo cagada na hora em que as coisas vão indo bem.” (p. 20). A índole do
personagem faz parte da imagem dos Traurigzeit que a narrativa põe em evidência do começo
ao fim e cujo ápice encontra-se justamente na figura do personagem principal. Já Theodoro,
se afasta um pouco da índole dos demais no que se refere ao comportamento social e sexual,
em compensação, é a cópia física dos outros, pois também é alto e forte. Nos bailes em que
iam quando jovens, enquanto Thibaldo “Tirava as moças para dançar sem pedir licença para
pai, mãe, noivo, irmão ou namorado”, diz Theodoro, “eu ficava no balcão do bar tomando
meu chope e só tirava guria para dançar uma polca ou uma valsa depois de pedir licença pros
pais dela. Davam, eu dançava, não davam eu voltava pro balcão do bar porque nunca fui de
desrespeitar ninguém.” (p. 47). Theodoro não traz em si a inquietude e o espírito aventureiro
que caracteriza os Traurigzeit mais famosos e de destaque no romance. Em contrapartida, ele
apresenta outros traços que fazem parte do conjunto de características de seus familiares, tais
como, o respeito e a solidariedade para com o próximo, a honestidade e a disposição para o
trabalho.
Quanto à Pérsio, é a síntese bem acaba do que conhecemos nos demais personagens.
Também é alto e forte, mede um metro e noventa e dois, motivo que o faz, vez ou outra, ser
chamado de “gigante”. Bebe desde os dezesseis anos, na verdade “já entrara no pronto-
socorro duas vezes em coma alcoólico!” (p. 180). No tocante à aptidão artística, é jornalista,
escritor, diretor e crítico teatral, roteirista e ainda deu aula em duas universidades europeias.
Em relação ao sexo, embora não entendesse bem o que se passava, teve a primeira experiência
aos cinco anos de idade, com Mabel, uma menina de doze anos. Adulto, as referências se
multiplicam, teve uma vida sexual muito intensa, em todos os lugares em que ia ou estava,
exercia um verdadeiro fascínio sobre as mulheres. Para se ter ideia, peguemos um caso de
quando ele vivia com uma grega chamada Milena, na Roma da década de 70, quando a AIDS
não era um temor. Ele fala de uma líder feminista americana que achava “que todos os
homens deveriam ter seus testículos pendurados num varal até apodrecer. Pois quando
apareceu para visitar a irmã, fiz ela mudar de ideia. Alunas, professoras, atrizes, vizinhas,
italianas, escandinavas, recomecei minha vida sexual do tempo pré-Milena. Fodia muito e
bem” (p. 244). Suas palavras dão a entender que, antes de Milena, já se dedicara com vigor ao
prazer sexual. A questão da sexualidade comparece com muita força no romance e sempre de
um jeito exagerado, caracterizando os von Traurigzeit como amantes insaciáveis e vigorosos.
Voltando às palavras de Thibaldo, em que menciona a tendência de fazer cagada na
hora em que as coisas vão indo bem, leva-nos a apontar um segundo aspecto relacionado aos
Traurigzeit, a saber, uma espécie de má sina particular dos homens da família, impelindo-os a
fazerem escolhas erradas que provocam grandes dissabores. O Bobo coloca a questão de
maneira explícita, no final do capítulo sobre o duque Augusto, quando diz: “Pobre casa de
Traurigzeit, tão rica de ilusões e de sonhos. Quantos ainda terei de enterrar? Eu sei.” (p. 356).
Ele se refere ao desejo do nobre de se casar com a rainha da Suécia. O Bobo o aconselha a
desistir de tal ideia, pois sabia que seu amo iludia-se, não amava a mulher, queria apenas
“estar na cama com o poder”. A declaração tem alcance maior, pois fala da casa de
Traurigzeit, designando a família como um todo, inclusive os descendentes do duque, como
atesta a locução verbal no tempo futuro, terei de enterrar. Embora rica em bens materiais, o
narrador chama a dinastia dos Traurigzeit de pobre, conferindo à palavra o sentido de
infortúnio e com ela dizendo que os membros da família são desafortunados, pois se deixam
levar por seus sonhos e ilusões vãos. Já no século dezenove, em discussão com o duque
Antônio von Traurigzeit, atual chefe da dinastia, o Bobo tenta em vão evitar uma
“embrulhada” de seu senhor, que decidiu se converter ao catolicismo, objetivando conseguir
dinheiro com o papa para reerguer o ducado. Ele se opõe e sentencia:
— “Grandes Feitos e Grandes Cagadas” deveria ser o moto da Casa de Traurigzeit – lhe disse quando me comunicou sua decisão. — Por que, Ruíz? – perguntou-me ele na sala do trono. Respondi: — Porque vocês carregam o estigma da autodestruição. De todas as besteiras que já vi vocês fazerem nos últimos séculos, esta de se converter, agora, ao catolicismo é a maior (p. 399).
O duque Antônio efetivamente se converteu ao catolicismo, desprezando o conselho
em contrário de seu servo. O papa morreu e seu sucessor desfez o tratado, levando o ducado
de Traurigzeit a uma guerra da qua l não possuía chances de vencer, enquanto que o duque foi
expulso do país. Novamente um comentário de longo alcance do Bobo, que embora fale
diretamente com o duque, fala em besteiras que já vi vocês fazerem nos últimos séculos,
assinalando a desventura que os Traurigzeit trazem para si, fazendo do significado do nome
da família – lembramos, tempo triste – uma verdade. Esse estigma da autodestruição está
presente na vida de Pérsio de modo aprofundado, envolvendo questões problemáticas de
várias ordens que serão tratadas em destaque quando abordarmos a vida do protagonista. Por
enquanto, basta colhermos declarações como esta: “Toda minha vida andei sobre uma frágil
ponte feita de medo, falta de dinheiro, culpa e busca do amor. Quando tudo vai indo muito
bem, faz-se uma cagada.” (p. 244). A confluência entre esses exemplos é tal que, a palavra
“cagada” comparece em contextos distintos, comprovando a força desse aspecto negativo dos
personagens. Como os seus familiares, Pérsio toma decisões equivocadas e entra em situações
que lhe rendem desgosto e sofrimento, encarnando como nenhum outro a ideia do indivíduo
assinalado negativamente.
Um terceiro aspecto que queremos ressaltar diz respeito a dois conceitos: experiência e
narração. É bastante conhecida a sentença de Walter Benjamim sobre a questão, em seu texto
“O narrador”: “a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas
que sabem narrar devidamente. […] Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da
experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça
de todo” (BENJAMIN, 1985, p. 197-8). Narração e experiência são processos intimamente
ligados entre si. Para narrar, o sujeito deve possuir um acúmulo mínimo de experiências
vividas, sejam vividas por ele como protagonista, sejam as experiências de ouvinte, a
disposição do indivíduo em escutar as narrativas alheias, pois, como o filósofo salienta, “O
narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros” (Idem, p. 201).
A despeito do diagnóstico de Benjamin, observamos que essa ligação entre
experiência e narração pode ser encontrada quase que em estado bruto, por assim dizer, em À
mão esquerda. As histórias contadas pelos narradores nascem diretamente da vivência ou da
observação por parte deles; vivência e observação que se interiorizaram no indivíduo e
tornaram-se legítimas experiências de vida, potencializadoras do ato de narrar. Por todo o
romance encontramos dizeres que remetem a essa ideia, bem como a outros aspectos
relacionados a essa noção clássica de narrativa, chamada por Benjamin de “narrativa
verdadeira”, espontânea, calcada na experiência, que trabalha com a memória, ligada à
praticidade da vida e que denota sabedoria. Não queremos praticar aqui, aquele tipo de análise
que descobre uma certa teoria e a conforma integralmente à obra literária. Por outro lado, não
podemos nos furtar a apontar características ou aspectos assinalados por Benjamin como
pertencentes à “narrativa verdadeira” e presentes no romance de Fausto Wolff.
O episódio da vinda dos Traurigze it para o Brasil também é tratado por João von
Traurigzeit, “mestre carpinteiro, tocador de violão, jogador de cartas, contador de anedotas”
(p. 26), bisneto do duque Antônio e avô do protagonista. Passados exatos cem anos da
emigração, ele conta essa história para os dois filhos que moram com ele, Thibaldo e
Theodoro, como resposta a pergunta feita por um deles, sobre o motivo de serem pobres,
enquanto que os parentes de outra cidade eram ricos. Ele responde: “ Pois dá-se que
estamos na merda em que estamos por causa de religião, guerra e mulher.” (p. 39). O narrador
resumiu competentemente em três substantivos os motivos que levaram a família à
decadência econômica, apontando a condição precária deles, herdada do tempo do seu bisavô;
retomaremos essa declaração em outro momento.
Um aspecto relacionado à enunciação deve ser esclarecido, a saber, que João von
Traurigzeit é convocado para falar pelo narrador do capítulo, Percival: 1995, que, falando
temporalmente deste ano, relata eventos relacionados ao pai e ao tio, quando os dois voltaram
a morar com o pai deles, em 1924. Então, trata-se de uma narração dentro de outra, um
primeiro narrador (Percival) conta uma história na qual surge um segundo (João) narrando a
sua. Na situação evocada por Pérsio, seu avô se dirige aos filhos e diz: “— Vou vender a
história pra vocês como o meu avô vendeu pro meu pai e o meu pai vendeu pra mim” (p. 39).
Esta declaração remete à questão em torno da narração e de sua relação com a experiência. A
advertência de João aos filhos traduz do seu jeito a característica que Benjamim aponta como
constituinte da arte de narrar, sintetizada na sentença: “A experiência que passa de pessoa a
pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores” (BENJAMIN, 1985, p. 198). Com a
declaração, o personagem assinala a um só tempo que contar a história da família é uma
prática de seus indivíduos – a narração dos velhos para os jovens, dos pais para os filhos – e
que ele também dará curso a essa prática.
Assim, os seus ouvintes sabem que são partes tanto da história em si, como do
processo de sua transmissão, são elos de uma corrente, são partes de uma tradição, uma
tradição de recordar e contar, afinal de contas, “A reminiscência funda a cadeia da tradição,
que transmite os acontecimentos de geração em geração” (Idem, p. 211). Tradição que de fato
os filhos aprenderam e deram seguimento, como fica claro nas palavras de Pérsio, no início do
capítulo em destaque: “dei um jeito de remendar pedaços de conversas que ouvi durante a
minha infância. O resultado é o que vocês lerão a seguir” (p. 37). O que o personagem conta é
o seu somatório particular dos fragmentos de conversas e histórias assimiladas por ele
enquanto criança; agora, é ele quem dá continuidade à prática social de narrar, aprendida no
seio de sua família, como declara objetivamente em outro lugar, ao interromper a narração
que nos chega pela voz de seu avô: “Duvido muito que meu pai ou meu tio entendessem o que
o pai deles dizia. De qualquer maneira, foi assim que me venderam esta história” (p. 41). Tal
como o pai deles transmitiu- lhes a história da família, Theodoro e Thibaldo a transmitiram a
Pérsio, e este, nos transmite. Sobre o conceito de narração em À mão esquerda, podemos dizer
que o romance acontece sob a chancela da mesma tradição narrativa que Benjamin denunciara
como em decadência. A ideia de “narrativa verdadeira”, ao gosto benjaminiano, sombreia o
romance não apenas como um horizonte utópico, mas como algo concreto, realizado e
espontâneo.
Atrelado à esse aspecto, identificamos um outro, relacionado aos valores culturais que
entram na formação do código de ética familiar. Tais valores, por sua vez, remetem ao
ambiente sócio-cultural do qual os Traurigzeit são oriundos, formado pelo credo religioso de
origem judaico-cristã, por uma moral patriarcal e mais um punhado de valores que o
indivíduo deve apreender, com destaque para os homens, tais como, a honra, a verdade, a
coragem, a vergonha. Esses valores vêm se juntar àquelas outras características tratadas
anteriormente e que formam uma imagem idealizada de masculinidade. Para as mulheres, são
reservadas outras características comportamentais esperadas. Vejamos rapidamente.
No capítulo, Almira: 1944, esta tia de Pérsio fala um pouco sobre o lugar onde
morava, a colônia alemã de Esperança, uma “comunidade religiosa, tacanha, preconceituosa
onde uns vigiavam os outros, como continuam vigiando até hoje.” (p. 72). Com boa dose de
raiva, ela denuncia a opressão que a comunidade exerce nos indivíduos, inclusive, instaurando
regras e punições explícitas para o que considera desvios de conduta: “Em Esperança, a
virgindade é fundamental e controlada pela comunidade. A sociedade pune com trinta mil réis
a noiva que é desonesta e casa com véu e grinalda para dar à luz depois de sete meses a partir
do dia do casamento.” (p. 73). Vigiar e punir, lembrando a expressão de Michel Foucault, é a
prática social dessa comunidade, dominada por uma mentalidade extremamente conservadora
e puritana.
Mas o nosso foco são os valores que se destinam à formação da masculinidade. Os
exemplos destacados obedecem à ordem da geração familiar, de pai para filho, em
consonância com o aspecto anterior. No décimo capítulo, Theodoro: 1924, conta como ele e
seu irmão viveram com o pai, após anos morando com o tio Armindo. Em certo ponto, o
narrador retrata uma conversa, na qual o pai declara: “— O dia que eu bater em vocês é
porque vocês já são homens, fizeram alguma coisa de muito errado, e quem erra tem de pagar.
Eu, por minha vez, prometo que nunca vou mentir pra vocês porque homem não mente. — E
repetiu: — Homem que é homem não mente” (p. 45). As palavras simples desse pai de pouco
estudo e jeito bronco expressam aquilo que ele acredita ser a maneira correta de um homem
proceder, de acordo com essa maneira, mentir não condiz com a postura de um verdadeiro
homem. O narrador não esquece de ressaltar a ênfase dada pelo pai, repetindo o que havia
dito. No tocante ao processo de educação, o castigo físico está colocado como possibilidade,
porém, atrelado a dois pressupostos: os filhos estarem prontos para isso e terem cometido uma
falta grave.
Algumas páginas à frente, vemos o personagem João colocar em prática o credo moral
em que acredita. Seus dois filhos haviam fugido de casa para combaterem junto às tropas da
Coluna Prestes. Ao se apresentarem diante do líder do movimento, Luís Carlos Prestes
explicou à Thibaldo e Theodoro que eles não poderiam participar por não terem dezoito anos,
e manda-os de volta para casa. Ao chegarem à praça central da cidade de Santo Ângelo,
encontram com o pai que lhes diz:
— Theodoro e Thibaldo, meus filhos, alguma vez bati em vocês? Alguma vez disse uma mentira a vocês? Alguma vez escondi alguma coisa de vocês? — Não, pai. — Pensei que nós fôssemos amigos e que vocês me amassem como amo vocês. Mas vocês fugiram no meio da noite como dois ladrões, pensando que já eram homens. Homem não sai por aí roubando cavalos e matando gente que nunca conheceu. Homem cumpre suas responsabilidade, e vocês não cumpriram. De modo que vamos fazer o seguinte. Thibaldo pode escolher. Ou briga comigo como homem na munheca, aqui no meio da praça, ou leva dez relhadas sem chiar (p. 69).
A repreensão do personagem mostra que, além do repúdio à mentira, a prática do
roubo é algo inaceitável, porque é desonroso para um homem que se quer reconhecido como
tal, portanto, podemos acrescentar, homem que é homem não rouba. Seu João também cobra
dos filhos a responsabilidade com a palavra dada, pois haviam acordado que não mentiriam
para si. O que se seguiu foi um pai castigando em praça pública os seus dois filhos que
fizeram alguma coisa de muito errado, e para aquele pai, quem erra tem de pagar. Chama a
atenção como seu João conduz todo o caso e como o Narrador, que é quem conta o episódio,
designa sua atuação: “Com a tranquilidade de senhor feudal, João von Traurigzeit aproximou-
se do filho mais velho e aplicou-lhe dez chicotadas nas costas” (p. 69).
As duas opções de castigo dadas aos filhos têm em comum o fato de envolver
coragem, força e valentia para suportá- las – são também valores incentivados para um
homem. A referência ao sistema feudal traduz o rigor em matéria de princípios ou normas de
vida em que o personagem acreditava como os modelares para um homem. Também remonta
ao passado familiar, cujas raízes, sabemos, se encontram na Idade Média, sinalizando que um
substrato de cultura daquele tempo parece perdurar. A título de exemplo, lembramos que seu
João “gostava de fazer negócios dando um fio do seu bigodão como garantia”, pois, “para um
homem de vergonha na cara, isso era mais que suficiente” (p. 37-38). Isso é do tempo em que
a palavra de um homem responsável e respeitado valia alguma coisa dentro de sua
comunidade.
As palavras de João von Traurigzeit fincaram raízes no íntimo de seus filhos, que
interiorizaram aquele preceito individual como uma norma para vida deles. Thibaldo
comprova isso quando afirma: “embora criado do jeito que fui, nunca roubei um tostão de
ninguém e nunca levei desaforo pra casa. Mentir eu também não minto” (p. 21). A maneira
direta com que são postos esses valores expressa o modo simples como que encaram a vida:
nunca roubar, mentir, nem aceitar desaforo. Esta terceira norma é típica de muitos Traurigzeit,
como uma característica que atravessa as gerações, expressão do caráter aguerrido e
tempestuoso de muitos deles. Theodoro, por sua vez, também passou adiante os ensinamentos
do pai. Vejamos essa conversa que ele tem com Pérsio, em 1946, quando este contava cinco
anos apenas:
— […] Escuta aqui, meu filho, vou te dar um conselho porque também já fui menino sozinho que nem você. Tem duas coisas que homem não faz e quero que você me prometa agora mesmo que não vai fazer nenhuma das duas. — Quais são? — Roubar e dar a bunda. — O que é isso? — Você tem tico, não tem? — Tenho. — Pois então, os outros guris também têm e podem querer botar o tico deles dentro da tua bunda. — E por que é que eles iam querer fazer isso? — Não importa, mas se fizerem isso você vai ser pior que ladrão, que mentiroso, que bêbado. Vão te chamar de mulherinha, passar a mão na tua bunda, cair na tua pele. — Pode ficar sossegado, pai. Se alguém quiser passar a mão na minha bunda, grito, taco pedra, mato um. Eu sou homem, pô! (p. 104).
As palavras do personagem ressoam as palavras de seu pai: um homem não deve
roubar, não deve mentir e não deve abdicar de sua masculinidade. Não é à-toa que ao chegar
para conversar com o filho, Theodoro assuma de forma mais flagrante a seriedade que a
situação requer, convocando para isso não apenas a autoridade de pai, mas também daquele
que já passou pelo que o filho está passando, e fazendo de suas palavras mais do que um
aviso, um conselho que traz uma norma de vida.
À mão esquerda é um texto com muitas passagens simbólicas, como a que se segue.
Quase trinta anos depois, quando Pérsio morava na Europa e veio ao Brasil para fazer um
filme, Theodoro conversa com o filho, que lhe declara em certo momento de efusiva emoção:
“— Pai, eu estou muito contente de você ser meu pai. Você, aliás, também devia estar
contente, pois teve três filhos homens e não saiu nenhum puto e nenhum ladrão” (p. 345). O
capítulo do qual esta citação faz parte é narrado pelo próprio Theodoro, que realiza uma
espécie de exame do que foi sua vida, relembrando a vinda do filho ao Brasil, ocasião que
proporcionou momentos de maior intimidade entre os dois. Não precisariam ser colocadas
juntas ao panorama destacado aqui, para as palavras de Pérsio serem vistas como uma singela
coroação ao pai, pelo trabalho de educar quatro filhos, sempre com pouquíssimo dinheiro e
muita dificuldade. Mais ainda, segundo Pérsio, o pai tem motivos para se contentar, pois
nenhum dos filhos se tornou ladrão ou homossexual; atitudes que para aquele velho pai
seriam motivos de vergonha e decepção.
Um último exemplo, encontrado no vigésimo nono capítulo, Breno: 1995. Este
personagem-narrador é filho de Bárbara, esposa de Pérsio há quartoze anos, os três moram
num apartamento na Avenida Atlântica. Breno faz o seu relato sobre Pérsio e de como é a
vida com ele, que foi morar com a sua mãe quando ele tinha cinco anos de idade. Esse
narrador chama atenção por ser jovem – tem dezenove anos em 1995, ano do qual narra – de
classe média alta, morador da zona sul do Rio de Janeiro, não trabalha, não estuda, tem carro
e dinheiro para se divertir, enfim, é mais um jovem cuja vida até então não trouxe grandes
problemas. Mas tudo isso não impede que seu discurso, no tocante à sua relação com o
protagonista, apresente algumas características ligadas à mesma ideia desenvolvida até agora.
Embora a convivência seja difícil e os dois acabem não se falando mais, percebemos um certo
fascínio que Breno sente por Pérsio, tanto isso é verdade que a situação em que se desenvolve
o discurso de Breno, trata-se de uma conversa por telefone com um amigo qualquer, a quem o
personagem fala a respeito do protagonista. Em meio às reclamações típicas de enteados,
Breno conta positivamente um caso ocorrido com o “gigante”, uma menção à alta estatura do
personagem:
Mas eu tenho que dizer um troço a favor do gigante, cara. Ele também caga e anda pro mundo. Para te dar uma ideia de como o cara é maluco, só vou dizer o seguinte: quando mudamos aqui para a Avenida Atlântica, tinha mil lugares para ele ir beber. Sabe qual foi o que ele escolheu? O Marajá do Mar, um pé sujo onde só tem ladrão,
assassino, vagabundo, cachaceiro e traficante. […] no primeiro dia ele arranjou uma briga com o xerife local, um mulato forte, de seus trinta anos de quem todo mundo se caga de medo. Só levou um corte no tornozelo porque se apoiou com o pé no balcão de vidro do bar. Teve que ir ao hospital para dar uns pontos, mas não perdeu a luta. Hoje, esse Cafuringa, o apelido do mulato, come na mão do gigante. É “dr. Pérsio para cá e dr. Pérsio para lá” (p. 151-152).
O caso impressionou o então garoto. Não apenas o caso em si, a briga, mas antes
disso, a postura de Pérsio frente às situações colocadas pela vida. Uma postura pautada por
descaso e altivez diante das vicissitudes, um “não ligar-se” excessivamente para os problemas
e para as regras do mundo, para as suas convenções que limitam a liberdade do sujeito. Aqui,
não temos um pai, mas algo como um padrasto em quem o enteado pode contemplar um
pouco aquilo que o próprio Pérsio experimentou quando criança, na figura de seu pai, alto,
forte, valente e contador de histórias. Breno pergunta se ele não teve medo, Pérsio responde:
“ Estava me borrando de medo. […] O importante é não correr da raia. […] Se você, quer
dizer, se eu levar um tiro, também é uma morte boa porque morrer, vamos todos morrer um
dia. Levar desaforo, porém, pelo menos para mim, é pior que levar um tiro” (p. 152). Breno
pergunta porque ele brigou justamente com o “xerife” local e ele responde: “ Por que é
melhor você brigar logo com o mais valente, que assim evita brigar com todos os outros. […]
Hoje eu sou vip, ali no Marajá, Very important person, sacou? Tua mãe pode passar por lá,
tua vó, a Janete, todas podem passar por lá que vagabundo não folga.” (Idem).
Toda essa explicação sobre um fato tão mesquinho guarda um significado maior se
colocado na esteira da tradição que apontamos em À mão esquerda. Pérsio sempre se
impressionou com as histórias do pai e do tio, desde muito novo se interessava pelas histórias
de aventura, com bandidos e mocinhos, atos corajosos e audazes, além de corroborar a
opinião de seu tio Thibaldo, que também não aceitava levar desaforo para casa. Suas
palavras são coerentes com o que ele aprendeu na infância e na adolescência, e que agora
transmite ao filho de sua esposa como manual de conduta e experiência acumulada. Não
entrando no mérito de ser certo ou errado, é de se ressaltar o tom professoral com que o
protagonista explica o seu ato, o que ele fala não é algo distante, em que somente acredita
teoricamente, mas algo que traz consigo e o põe em pratica. Também vale a pena lembrar: o
que conhecemos vem pela boca do próprio Breno, que a despeito do desprezo que sente por
Pérsio e do fato de os dois já não mais se falarem, conta toda essa história para o amigo ao
telefone. Portanto, ele transmite em detalhe o caso e as palavras de Pérsio, fazendo assim sua
narração do evento e comprovando como a história da briga e o ensinamento do protagonista
lhe marcaram. Em sua narrativa, Fausto Wolff alimenta um clima de heroísmo por meio da
valentia e da coragem masculinas. Tudo isso se encontra na história dos Traurigzeit como
“herança de família”, já que os pais sempre alimentaram esses valores nos filhos exatamente
por meio de histórias de briga. Toda essa questão apontada tem por base uma comunidade de
valores formada pelo valor da experiência e da prática concreta de sua transmissão, remetendo
ao valor que a palavra e a voz possuem dentro daquela cultura pouco letrada e daquele
imaginário, que cultiva uma imagem de masculinidade cujos aspectos essenciais são a
responsabilidade diante da palavra empenhada, a valentia, a coragem, o orgulho e a altivez
diante dos desafios.
A vida à esquerda de Percival von Traurigzeit Em À mão esquerda, devido à estrutura fragmentada e dos diversos pontos de vista, a
imagem de Pérsio como personagem principal vai sendo delineada lentamente. Nos dois
primeiros parágrafos do romance, Ulisses diz: “Meu irmão Pérsio é jornalista desde garoto.”
(p. 11). No segundo capítulo, é o próprio herói que conta eventos de quando tinha três anos de
idade. No terceiro, Otávio diz: “Meu irmão mais moço se chama Percival, que todo o mundo
chama de Pérsio. Já perguntei mil vezes por que batizaram o Alemão de Percival, se era para
chamar de Pérsio.” (p. 16). Ele destaca a forma como o irmão será conhecido por todos a
despeito de seu nome real. Depois, mais à frente, no sexto capítulo, o Narrador faz uma
declaração que foge do usual em termos literários por expor abertamente o que em outras
narrativas é compreendido pelo leitor à medida que conhece a história narrada: “Se Percival, o
personagem central desta história, tivesse se dado ao trabalho de prestar mais atenção às
discussões entre o velho ranzinza (Hermano) e o velho gozador (João), não teria de preencher
com ficção as lacunas deixadas pela realidade.” (p. 27). Desmascarando-se, a narrativa expõe
suas características ficcionais, instigando o leitor a refletir a respeito desse posicionamento da
obra frente a si mesma.
Pérsio tem sua vida narrada da infância aos cinquenta e cinco anos, contados em 1995,
o limite de tempo abrangido pela narrativa. Sua trajetória repleta de idas e vindas, altos e
baixos, muitos prazeres e problemas variados, encanta e faz o leitor “viajar” com suas
peripécias pelo mundo. Em um boteco ou em casa, acompanhado de uma mulher ou de
amigos, está sempre com um sorriso no rosto, por uma alegria ou para esconder uma tristeza.
Por trás do lado humorado, encantador e aventureiro de sua trajetória, vislumbramos, porém,
uma jornada e uma busca. Não em direção a algum lugar, nem em busca de algo material, em
termos filosóficos, é antes a jornada de um espírito desejoso à procura de um objetivo que
possa preencher uma existência sem rumo certo e aplacar o conflito do sujeito que sente
dificuldades em manter um amor duradouro, encontrar um pouso definitivo, fincar raízes,
enfim, que não enxerga um lugar para si.
Ainda na primeira infância, o personagem já vivia um certo desconcerto em relação ao
mundo, devido à sua alta estatura. Quando não era mais que um bebê, isso já lhe trazia
prejuízos; sua mãe conta um caso envolvendo seu primo, Gottfried, alguns meses mais velhos:
“Eu deixava os dois na cama e quando voltava a cama estava toda cagada. É claro que tinha
sido o Pérsio que, embora mais moço, era bem maior que o primo. Eu dava uns tapinhas na
bunda dele para ver se ele parava de fazer cocô na cama”. O filho não era o responsável, sua
mãe então confessa para as pessoas com quem conversa: “para dizer a verdade, de todos os
meus filhos foi o único que nunca fez pipi nem cocô na cama.” (p. 37). Importante é
considerarmos que a sua falsa disfunção fisiológica relaciona-se ironicamente com as escolhas
desastradas de seus antepassados.
A questão da altura exagerada é retomada outras vezes. Diz um de seus irmãos: “o
problema do Alemão é que ele é muito grande para a idade dele e a gente esquece que ele
recém fez cinco anos.” (p. 88). Ulisses relata os tapas que o menino levava dos pais quando a
irmã, Ruth, de apenas dois anos, quebrava seus brinquedos e ele, em retaliação, quebrava os
dela. O apelido “alemão” foi dado pelos irmãos porque ele era muito branco e porque em vez
de português, falava mais a língua alemã. Em outra passagem, é o próprio Pérsio quem narra a
situação nova em que vivia, depois que a família se mudou para o Montserrat, um bairro
pobre:
eu tenho brincado com a gurizada da vizinhança no pátio. Não tem nenhum alemão. São uns meninos e meninas mirradinhos, a pele parece de papel, menos os negros que não dá para ver a cor da pele, mas eles também são magrinhos e tristes. Vivem machucados, cheios de feridas e com o nariz escorrendo. Outro dia uma vizinha veio reclamar para a mãe que eu machuco as outras crianças. Ela disse:
A senhora não devia deixar o seu filho desse tamanhão ficar brincando com as crianças.
A mãe ainda tentou explicar no seu português todo arrevesado: Mas ele só tem cinco anos. A mulher não quis ouvir. Saiu arrastando a criançada. Já que eu não podia
brincar com as crianças da minha idade, fui brincar com os garotos do meu tamanho. Mas eles falavam de bucetas, de tomar no cu, cois as que eu não entendia.[…] Vi que isso não ia dar certo (p. 103).
Em passagens como essa, em que o narrador-personagem conta eventos de sua
infância, o discurso é modulado para representar a condição do personagem à época, a voz
então adquire um tom pueril, meio patético, típico de uma criança. As observações do
narrador coincidem com a visão ingênua da criança que fora. Os termos e expressões
utilizados para descrever o quadro social em que vivia, condizem com a forma espontânea
com que as crianças em geral se expressam. Com os novos vizinhos, Pérsio toma
conhecimento da diferença. Nota que nenhuma das crianças tem a mesma origem étnica que a
dele; depois, referente ao aspecto físico, espanta-se com a aparência subnutrida delas,
castigadas com feridas e machucados. Pelos olhos da criança, o autor mostra a realidade pobre
e abandonada de milhões de pequenos brasileiros, amontoados em barracos à beira de
córregos, rios e valas, ou em morros e áreas de risco. Para se ter uma ideia da discrepância
com que se deparou o menino, o Narrador chama a atenção do leitor para o fato de que, no
bairro onde a família morava, eles eram os mais pobres; já no novo bairro, eles são vistos
como os mais ricos.
A situação relatada marca a inadequação do personagem em relação ao mundo que o
rodeia. Pérsio está alijado da companhia de outras crianças, tanto das que regulam em idade
com ele, como das que regulam em tamanho. Destas, em particular, Theodoro teme que
possam abusar sexualmente do filho, sendo ele mais ingênuo do que os demais. A
problemática em torno do pequeno Pérsio é tratada com muita seriedade dentro do romance.
Vejam o que diz o Narrador, ao interromper a narração do protagonista:
Pérsio aprendeu que era um gigante estrangeiro rodeado de crianças ou raquíticas ou mais velhas que ele; era louro rodeado de morenos, mulatos e negros; se chamava von Traurigzeit num lugar onde só havia Silvas, Oliveiras, Santos, Rodrigues e Pereiras. Enfim, não cabia dentro do universo no qual fora despejado. (p. 104-103).
Ele faz uma síntese da situação social vivida por Pérsio, geradora do sentimento de
estranhamento que se abateu sobre ele, sentimento de ser estrangeiro na terra em que nasceu.
Para a criança, tal sensação vem pela percepção daquilo que é mais imediato, o aspecto físico,
a cor da pele, o sobrenome. Antes, porém, o Narrador já havia antecipado essa problemática
ao informar das descobertas do personagem: “Pérsio fez algumas descobertas fundamentais
que o marcaram para sempre: descobriu que seria definitivamente estrange iro – no Brasil ou
no estrangeiro. Descobriu que era um gigante. Descobriu uma bruxa e um fantasma. E
descobriu o que não queria ser na vida.” (p. 100). Tais descobertas o marcaram para sempre,
repercutindo no seu modo de vida. Além disso, o Narrador define o estigma que acompanhará
o protagonista: o sentir-se estrangeiro onde quer que esteja. A sensação primeiramente sentida
no contato com as outras crianças tem a sua força multiplicada ao longo do tempo, marcando
e moldando o espírito do sujeito. Outro aspecto da índole do protagonista criança, com
reflexos no adulto, é o gosto que sempre demonstrou pela leitura e por ouvir histórias. Quando
nem sabia ler, insistia para que os irmãos lessem para ele. Assim que aprendeu, se encantou
com o universo da literatura e passou a “ler o mundo”. É isso que responde quando Mabel lhe
pergunta se não tinha medo de ser descoberto no quarto dela à noite:
Já vi o diabo de perto e não tive medo. Agora que aprendi a ler é que não tenho mais medo de nada mesmo. Por quê? Porque agora sei tudo. Vejo umas letrinhas numa tabuleta e leio ônibus, vejo outras e leio bonde. Leio tudo, ninguém pode me enganar. Não tenho mais que chatear meus irmãos para lerem para mim. Não tem troço melhor no mundo do que ler. (p. 93).
A leitura dá coragem, traz conhecimento e sabedoria contra as artimanhas da vida.
Mais à frente, no mesmo capítulo, Mabel: 1945, ele contempla as paredes do quarto da
menina, todas pintadas com personagens de histórias, e comenta com ela:
— Conheço todas as histórias desenhadas no teu quarto – e apontou para as paredes onde meu pai mandou pintar personagens de contos de fada. Aqueles são Hanzel e Gretchen e a bruxa, ali os três porquinhos e o lobo mau, lá naquele canto a Bela Adormecida e o Príncipe, ali Branca de Neve, aqui atrás Cinderela e a abóbora, Pequeno Polegar, Mata Sete… (p. 95).
Aos cinco anos, o menino já estava familiarizado com as histórias de fada mais
conhecidas. Mabel, apesar de ter apenas doze anos, percebe que pode tirar proveito do gosto
de Pérsio pelos livros e propõe descaradamente: “ Todas as vezes que você vier deitar
comigo pode levar um livro” (p. 96). Ele aceita o acordo e escolhe o primeiro: As viagens de
Guliver. A narradora registra a reação do personagem: “Olhos brilhando de emoção com a
perspectiva de ganhar pelo menos um livro por semana, lá se foi o meu pequeno homem.”
(Idem). A partir daí, Pérsio tornou-se um leitor voraz e um amante atento aos desejos da
amiga. Com Mabel, ele unia o útil e o prazeroso; o ato de ler oferecia- lhe um mundo de
aventuras fantásticas, protagonizadas por heróis inteligentes e destemidos, que descortinam
para o pequeno leitor um mundo novo, diferente da acanhada província em que vivia. Sendo a
família muito pobre e os pais de pouca escolaridade, não havia muitos livros em sua casa, de
sorte que quando lhe caía um exemplar nas mãos, o personagem se deliciava com a história.
Já quando tinha dez anos de idade era do seguinte modo que o menino se arranjava para
exercitar o seu prazer pela leitura:
Às terças e quintas pegava livros emprestados da biblioteca da Praça Pinheiro Machado, perto de casa. Às quartas, era dia de pegá-los emprestados da biblioteca da escola. […] Já havia viajado com o barão de Münchhausen, combatera a hidra de Lerna com Hércules, lutara ao lado de D’Artagnan contra os guardas do cardeal Richelieu, descobrira a identidade do Máscara de Ferro, pescara no Mississippi com Tom Sawyer e Huckleberry Finn, torcera por Moby Dick contra o capitão Ahab e ainda tinha tempo para procurar nos gibis algum herói que fosse holandês ou polaco (p. 136).
Além de ser leitor apaixonado, Pérsio sempre manteve uma relação profunda com as
histórias da família contadas pelo pai e pelo tio, que, sem cerimônias, exageravam no tom,
deixando o destinatário fascinado:
Sempre dei um desconto para as histórias, as gauchadas, as valentias do pai e do tio Thibaldo. O Pérsio, que é um guri de onze anos e ainda não desmamou, embora já tenha quase a minha altura, ele, não. Sempre acredita em tudo que o velho diz. Fica fascinado e pede mais: “Conta aquela da tua briga com os irmãos Rodrigues” ou “Como foi que vocês fecharam o 28 uma noite?” O velho, que gosta duma prosa, vai contando até a hora de a mãe intervir e mandar o piá para a cama. O pai é um bom contador de casos e para narrar uma briga é melhor que filme de mocinho. Dá gosto ver ele falar. Por is so a barbearia vive cheia (p. 53).
A família Traurigzeit é dona de uma veia narrativa, pois todos os seus integrantes são
bons contadores de história, no caso acima, isso é inclusive colocado como atrativo para os
fregueses do barbeiro. Quanto à Pérsio, gostar ou acreditar nas histórias do pai casava-se com
sua avidez pelas histórias dos livros, são consequências de sua índole curiosa, sonhadora e
imaginativa. Ele, que “Vivia tão dentro do seu próprio mundo” e sempre fora “Impressionado
com as histórias do pai e do tio Thibaldo, que nunca perderam uma briga na vida, ele também
se achava invencível” (p. 118).
A condição de leitor apaixonado o levará ao jornalismo e à literatura. Além do que,
como adulto, o personagem apresentará um modo de vida parecido aos dos personagens que
lia, pois será um aventureiro pelo mundo a fora, viajando de um país para outro, conhecendo
inúmeras pessoas, principalmente, mulheres; fugindo da polícia dinamarquesa ou da ditadura
militar brasileira; vindo ao Brasil para comprar pedras preciosas; atuando como professor
universitário na Europa ou como correspondente de guerra no Vietnã. O protagonista se
caracteriza pela errância, vivendo aqui e ali, experimentando bons e maus momentos,
conhecendo diversas culturas. O espírito aventureiro de Pérsio despertava a atenção da
família, que tinha prazer em ouvi- lo. Harry, o sobrinho, lembra com carinho do tio, sempre
amigo e atencioso, que demonstrava a cada visita a alegria de encontrá- los, para conversar e
ajudar no que fosse preciso:
todos os sobrinhos gostam muito dele. Sempre gostamos dele, não porque viajasse pelo mundo ou porque contassem histórias fabulosas sobre ele, nem porque ele trazia presentes, mas porque sempre falou conosco como se fôssemos gente grande. Escutava os nossos problemas, dava palpites, comentava sobre tudo e dava a impressão de que era um piá como a gente. Uma vez, quase dez anos atrás, soubemos que estivera no Líbano. Quando apareceu em casa para uma visita, a gurizada toda se juntou em volta dele querendo saber o que acontecera. (p. 421-422).
Em um desses retornos, o tio contou a experiência vivida em 31 de dezembro de 1981,
às vésperas do aniversário da revolução palestina, em que se viu espremido entre palestinos
eufóricos e armados, tendo como companheiros Moacir Werneck de Castro e Fernando
Morais. O capítulo, LVII Harry: 1995, é bem extenso, e a maior parte dele é formado de
pequenos casos ocorridos dentro da família, envolvendo o tio jornalista. Para dar conta dos
fatos acontecidos, a narração se alterna entre Harry e Pérsio, ambos demonstram grande
desenvoltura ao transmitir as experiências vividas. Do ponto de vista ideológico, Pérsio é um
sujeito revoltado contra as injustiças sociais e defensor do comunismo. Tal informação é feita
por Ulisses, de modo direto e objetivo: “Meu irmão mais moço vai ser mais revoltado ainda.
Vai dar a volta ao mundo algumas vezes, testemunhar guerras, escrever livros, mudar de
mulher como quem muda de camisa” (p. 30). O narrador faz uma pequena síntese da trajetória
do irmão, atrelando sua revolta à maneira como ele conduziu sua vida, ou melhor, como
deixou a vida o conduzir. Embora colocada de forma objetiva, a questão é esclarecida aos
poucos, sendo discutida dentro do romance nas falas dos diversos familiares, dos conhecidos
de Pérsio e do Narrador. Em uma conversa da mãe do personagem com um grupo de
estudantes, ela replica:
Vocês dizem que o Pérsio é revoltado por causa da política do Brasil. Pode ser, ele mudou muito, comigo principalmente, depois que voltou da Europa onde ficou uns dez anos por causa dos milicos […]. Talvez vocês que são jovens, estudam na universidade, tenham razão sobre os motivos da revolta dele. Se alguma coisa o feriu, porém, tenho certeza que não foi enquanto viveu conosco. Verdade é que meu velho batia muito nele, de cinturão e tudo, mas apanhar nunca fez mal a criança alguma. (p. 36).
A interlocutora abre um leque de causas que vão da descrença na política brasileira aos
castigos paternos. A questão da mudança do comportamento de Pérsio em relação à mãe
deve-se ao rancor que ele carrega contra ela, devido ao temor que ela sempre cultivou nos
filhos, sobre a possibilidade de sua morte. Já a questão dos castigos físicos, eles também tem
um peso no sentimento que o personagem ainda nutre sobre a mãe, que tem grande
responsabilidade nas surras que o pai infringia ao filho. Na verdade, o protagonista teve uma
vida penosa, tendo começado a trabalhar cedo demais, desde os seis anos, exercendo
diferentes atividades, de vendedor de jornais e garrafas a auxiliar de escritório. O prazer pela
escrita levava-o a escrever poesias para a mãe, chegando ao jornalismo e ao teatro. Dedicado
e generoso, o menino não media esforços para fazer o que julgava certo e primava em agradar
aos pais. Precoce, conviveu com pessoas mais velhas do que ele e para não ser alijado dos
círculos sociais, como era quando criança, se passava por mais velho, enganando amigos,
mulheres, patrões, esquecendo-se da própria idade algumas vezes. A primeira vez que
recorreu à mentira foi aos doze anos de idade, com a intenção de namorar uma prima da sua
futura cunhada. Confessa ele: “Foi quando comecei a aumentar a idade. Todos eram
naturalmente felizes, menos eu que queria muito ser feliz.” (p. 77). A busca permanente por
uma felicidade real e concreta é o motor que o impulsiona a viajar e a procurar novos
relacionamentos.
Em meio às recordações do tempo em que conviveu com a grega Milena, Pérsio conta
a história da maior mentira da sua vida, contrariando o ensinamento “homem que é homem
não mente”, repetido pelo pai e pelo avô : “Velho charlatão, nessa época estava tão
acostumado a mentir a idade que vivia e me comportava, com todos os ridículos tropeços que
qualquer mentira ocasiona, como um homem de quarenta e dois anos.” (p. 240). Ele conta em
detalhes quando e por quê mentiu a idade, aumentando-a sempre, mostrando-se como um
impostor atrapalhado, disposto a se dar bem, apesar das consequências. Pérsio vai até à
infância de menino triste e com problemas de relacionamento, onde localiza a motivação
inicial da atitude desonesta. Depois passou a mentir para conseguir um emprego e para
conquistar as mulheres, sempre mais velhas do que ele. Desse jeito se tornou “uma espécie de
contínuo e auxiliar de repórter policial no Diário de Notícias, órgão dos Diários Associados,
em Porto Alegre”, pois temia, diz ele, levar “um pé na bunda se descobrissem que eu tinha
apenas catorze anos”. O mesmo se deu quando veio para o Rio de Janeiro e conseguiu
emprego na rede de televisão Manchete: “Tinha medo que me despedissem se dissesse que só
tinha dezoito anos”. Ao conhecer aquela que se tornaria a sua primeira esposa, Pérsio
informa: “aumentei a idade por temor que não me deixassem casar com ela se soubessem que
só tinha vinte anos”.
Por trás da imagem de mentiroso habilidoso, com ares de malandro, se escondia um
sujeito marcado pelo medo. O medo de fracassar, de ser excluído e não ter companhia, o
medo de amargar derrotas na vida. Sigmund Freud, o pai da psicanálise, já afirmara: buscar o
prazer e fugir da dor são os dois instintos básicos da psicologia humana. Pérsio, querendo
vencer na vida, mas ao mesmo tempo com medo dela, manifestava do seu jeito o ensinamento
de Freud. Dessa forma, usava a mentira como válvula de escape para possíveis decepções
amorosas e profissionais, mas o que era malandragem no início tornou-se modus operandi,
pois ele resolveu adulterar seus documentos quando conheceu Marjorie, que possuía doze
anos a mais que ele: “Dessa vez enlouqueci definitivamente, consegui falsificar meu título de
eleitor e, a partir dele, os outros documentos. Passei a ter nascido no dia 8 de julho de 1928
em vez de em 8 de julho de 1940” (p. 241). Pérsio compara seu modo de vida a uma farsa,
como se fosse um ator interpretando um papel, assinalando que o mundo é um grande teatro
onde as pessoas não são o que mostram ser, pois se escondem atrás de máscaras e disfarces.
Por fim, com tom de tristeza, o personagem acusa a má consequência de seu artifício:
ver morrer a geração na qual ele se incluiu por jogada, não por legítimo pertencimento e o
ganho que poderia ter em pensar que está vivo apesar dos demais é revertido em perda para si:
“Naturalmente, desde os quartoze anos, meus amigos em sua quase totalidade, tinham, no
mínimo, dez anos a mais do que eu. Por isso a minha geração vai morrendo e eu continuo
vivo, apesar do modo cruel como sempre tratei o meu fígado.” (p. 241). A “máscara” de
Pérsio Traurig, apesar de oportunista e cínica, revela as decisões e escolhas apressadas que
fez, explicando as “cagadas” ao longo da vida. Viver, para ele, é somar poucos acertos e
muitos erros, incluindo o de beber sem preocupar-se com a própria saúde. Vale relembrar as
palavras de Ulisses ao falar do irmão aos cinquenta anos: “Teme que a vida se resuma em
culpa, angústia e álcool”. Nesse ponto, Pérsio decide reavaliar sua caminhada, numa atitude
afinada com a indagação que ele mesmo fizera ao irmão, quando não era mais que uma
criança: “Queria que você me dissesse uma coisa: para onde vão os passos que ficaram para
trás?” (p. 33). Corajoso, Pérsio decide passar sua trajetória a limpo, incluindo na tarefa o
dilema de rever seus erros e suas culpas, à semelhança do personagem do filme Morangos
Silvestres, de Ingmar Bergman, que passa em revista os erros da vida. Como o professor do
filme, Pérsio realiza uma “viagem” para dentro de si, buscando na memória o tempo passado,
lembrando dos erros e expondo-os num pau-a-pau em que não há lugar para as máscaras:
“Como o homem, consciente ou inconscientemente, insiste em ser algo que não é, acaba
sendo cobrado pela vida a cada instante, e se a conta não lhe for apresentada hoje, certamente,
será apresentada amanhã. E será sempre alta.” (p. 208).
Proferida pelo Narrador, a reflexão é a respeito dos pensamentos do protagonista,
“naquela noite subtropical e úmida de Kathmandu enquanto enchia a cara de vodka e fumava
haxixe com seus amigos Knut, Boris, James e Tobozo” (p. 208). Valendo-se de sua
onisciência, ele dá a perceber que lembrar o passado significa fazer uma escolha, eleger certos
acontecimentos que orientarão o sujeito no sentido de alcançar a sua verdade. O Narrador
detém um poder de atuação sem igual na obra, cabendo a ele não por poucas vezes a tarefa de
esclarecer um fato, terminar alguma história, antecipar informações ao leitor, contradizer um
personagem ou o Autor, enfim, ele é o dono da última palavra. Dessa forma, o que Pérsio
pensa tem o aval de verdade do Narrador, que referenda seus pensamentos através de um
discurso dissertativo, racional e com o status de voz privilegiada do romance.
A reflexão do personagem mexe com temas como verdade, realidade, liberdade, medo.
O protagonista enxerga o mundo de forma consciente, para ele, há uma realidade e há uma
verdade, diferentes, inconciliáveis, opostas até. O que vivemos e chamamos de realidade sem
nenhum atrito com a ideia de verdade, pelo contrário, tomamos uma pela outra, não passa de
uma mentira bem organizada e acreditada, com regras definidas, contratos firmados e a
certeza de que será transmitida às gerações futuras. Pérsio acredita na ideia de que o mundo
em que vive, a realidade, é uma construção arbitrária, imposta e impostora, na medida em que
não tem legitimidade, existe mas não deveria existir. Considera que quando o homem decide
se integrar à realidade, “jogar o jogo errado” da vida humana para agradar o mundo do qual
anseia fazer parte, ele “deixa de ser um fim em si mesmo para se tornar um objeto do medo e
desse modo afasta-se a cada minuto que passa do seu eu intrínseco” (p. 207). Esse legítimo
representante dos Traurigzeit confessa que agia da forma como agia como um meio de
adaptar-se às condições adversas da sociedade, resguardando-se de sofrimentos maiores e
para não ser derrotado:
“Mas não adianta saber que as regras do jogo estão erradas – raciocinava, ouvindo as gargalhadas dos amigos, que pareciam vir de muito longe – se você não tem condições de mudá-las. Eu, por exemplo, para me acomodar no mundo com o mínimo de sofrimento, inventei (ou alguém o fez por mim?) o charlatão. Vesti a charlatanice e venho tentando aperfeiçoá-la desde que nasci.” (p. 208).
Ele confessa que fez o que fez para se acomodar no mundo com menos sofrimento,
mesmo com a certeza de que não agia corretamente e que esse mesmo mundo é uma
falsificação barata do que a vida deveria ser. Se a realidade se impunha de modo avassalador,
o esperto impostor assumia uma postura falsa, fazendo da sua vida um eterno jogo de cena,
uma peça teatral onde ele atuava vinte quatro horas por dia, daí definir-se como um ator em
tempo integral. Sua postura face ao mundo é ambígua, pois se quedou à realidade que ele
mesmo julga errada e falsa, deixando de ser o que é e assumindo um papel. Esclarece o
Narrador: “O problema do nosso herói-anti-herói era, em verdade, um só: há muitos anos
criara um personagem para interpretar e não podia desistir dele. Esse personagem, por sua
vez, não conseguia integrar as experiências vividas ao seu espírito.” (p. 214). Ao criar
artifícios para si próprio, Pérsio se perde de si mesmo, esquecendo da própria identidade. O
Narrador exemplifica o drama existencial do personagem que se torna incapaz de sentir e
viver em profundidade as experiências: quando “estivera em Veneza olhara invejoso para os
turistas que pareciam prestes a ter um orgasmo. Ele, entretanto, apesar de tudo que julgara ter
aprendido com Marco Pólo, Giordano Bruno, Shakespeare, Casanova, não conseguira fundir a
visão à estonteante beleza do objeto visto.” (Idem). O fingimento usado como estratégia de
vida minou a capacidade de viver verdadeiramente os sentimentos e as sensações,
principalmente, a beleza em sua forma mais pura.
Quanto à classificação de “herói-anti-herói”, dada ao personagem, propicia alguns
comentários. Georg Lukács, em A teoria do romance, afirma que “a intenção fundamental
determinante da forma do romance objetiva-se como psicologia dos heróis romanescos: eles
buscam algo.” (2000, p. 60). Essa busca é um fim em si mesma e caracteriza a vida do herói
como um ser problemático, que vive “uma vida verdadeira, mas não a título de posse ou
fundamento de vida, senão como algo a ser buscado” (Idem, p. 79). De acordo com esse
pensamento, o indivíduo problemático, com seus dilemas e angústias, está sempre à procura
de afirmação num mundo hostil, tendo a vida permeada por tensões e embates.
Ao longo do tempo, consolidou-se o conceito de anti-herói, em virtude de personagens
que apresentavam um conjunto de características físicas, psicológicas e sociais, que não se
coadunavam com a imagem do herói clássico, sempre sob uma aura de positividade, sendo
fortes, valorosos e corajosos. Em geral, o anti-herói tanto pode ser o indivíduo que se
contrapõe a esta imagem de positividade, sendo, em termos psicológicos, um indivíduo fraco,
de caráter dobrável, frágil, conformista; quanto o indivíduo “em ruptura com os padrões
morais ou éticos-sociais predominantes de uma época”, que “não se adequa aos padrões
vigentes na sociedade, vistos por ele como injustos ou hipócritas e, por isso, repousa à
margem desta” (ARANTES, 2008, p. 27). Em oposição ao herói, o anti-herói carrega consigo
uma aura de negatividade e excentricidade, retribuindo na mesma moeda o olhar suspeitoso
com que a sociedade o olha. Não é difícil enxergarmos uma semelhança entre o conceito de
Lukács e o conceito de anti-herói, ambos são sujeitos conflituosos, têm seus dilemas e tensões
com a sociedade que os cerca. Longe de expressarem um embate, cremos que a segunda
concepção só veio consolidar uma imagem que se tornou bem sólida na literatura em geral,
conferindo uma acepção restrita, mais específica, à ideia de caráter geral desenvolvida pelo
filósofo húngaro.
Pelo que vimos, Pérsio encarna a problematização essencial a que se refere Lukács,
trazendo consigo uma cisão interior que se projeta na inadequação entre o ser e a realidade
que o rodeia, fazendo de sua vida uma infinda jornada ao encontro de si mesmo. Ao
comparar-se com os amigos que se divertiam com ele naquela noite de Kathmandu, reflete:
“‘Porra, todo mundo é parte de alguma coisa, menos eu. Por que, comigo, as coisas não
continuam? Por que não posso integrar-me a elas? Qualquer camponês do Nepal tem mais
certezas que eu. O que é que há de errado comigo, meu Deus?’” (p. 213-214). Como sujeito
problemático, desajustado, um ant i-herói, o protagonista mantém uma relação ao mesmo
tempo atrativa e opositiva com o mundo, sentindo-se timbrado pela marca da desventura e do
desacerto.
A despeito disso, o Narrador investe sua ironia contra o personagem, ao designá- lo de
“herói-anti-herói, para expressar a ambiguidade particular de Pérsio, compreendendo uma
postura sem contorno definido, um “estar-no-mundo” muito particular, distinto da maioria das
pessoas, mais preocupadas em “vencer na vida”. Ao mesmo tempo, a designação também é,
ela própria, ambígua, porque ironiza o drama do personagem. No fundo, o Narrador manifesta
um certo desdém para aquilo que ele mesmo nos apresenta, vendo tudo como um espetáculo
ridículo: “Nem mesmo um narrador imparcial pode ficar insensível a esse monte de bobagens.
O cavaleiro da ridícula figura deve ter misturado realmente muita vodka com canabis sativa.”
(p. 215). Mais uma designação irônica: “cavaleiro da ridícula figura” remete ao personagem
de Miguel de Cervantes (1547-1616) em O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha,
que apresenta um “cavaleiro” às avessas, um velho fidalgo, pobre, magro, que influenciado
pelas leituras dos romances de cavalaria em voga à época do autor, sai em “aventuras”, na
verdade, situações cômicas e grotescas, buscando imitar os heróis cavaleirescos. A obra é uma
paródia daquele tipo de romance e o personagem, também designado de “cavaleiro da triste
figura”, é uma ridicularização dos heróis desses romances.
A menção contribui para minar a seriedade da condição do protagonista de À mão
esquerda, com isso, também o romance parece adotar uma postura ambígua, que confere
importância e densidade ao drama, ao mesmo tempo em que enxerga tudo como um monte de
bobagens. A questão, assim nos parece, está apoiada no princípio da liberdade dos narradores,
com destaque para o Narrador, que coloca seu ponto de vista em relação à criação do Autor,
podendo discordar, rebater, criticar ou mesmo ridicularizar aquele que foi escolhido como
personagem principal. Na verdade, Pérsio é um indivíduo angustiado e triste, debatendo-se
internamente pelas escolhas tomadas, embora esteja sempre acompanhado por amigos e
mulheres, é um sujeito solitário que tenta vislumbrar o que poderia lhe trazer o porto de
chegada e o repouso espiritual de quem está cansado de vagar pelo mundo. Ao relembrar o
período vivido em Roma, no início de 1970, ao lado de Milena, a quem pôde enfim contar a
verdadeira idade, o personagem sublinha que a felicidade parecia ter finalmente chegado:
Milena dizia que me amava, eu tinha trinta anos e tudo para ser feliz. Mas, puta que pariu, não era.
Hoje, ao olhar vinte e cinco anos para trás, compreendo que é quase impossível ter amor e felicidade ao mesmo tempo. Milena se dizia feliz e nada exigia de mim. Ela, porém, tinha um propósito bem delineado na vida, que acabou se realizando. […]. Toda minha vida andei sobre uma frágil ponte feita de medo, falta de dinheiro, culpa e busca do amor. Quando tudo vai indo muito bem, faz-se uma cagada. Eu me sentia culpado por não amar Milena […]. Tenho certeza de que se eu tivesse dado uma chance ao amor ele acabaria vindo de modo discreto, sereno, elegante como um analgésico na veia, e não como uma overdose de heroína, que acaba sempre confundindo o amor com desejo de morte. Quem tem medo, quem tem culpa faz cagada. Entrei numa sucessão delas. (p. 243-244).
Pérsio coloca as duas coisas que almejava: amor e felicidade. O olhar rememorativo
não esconde o pessimismo de quem apanhou bastante em matéria de relacionamento amoroso.
A infelicidade lhe acompanhava a despeito da nova situação em que vive. As razões para isso
são três: o sentimento de culpa por não amar quem lhe amava, o sentimento de não pertencer
a lugar algum e o medo advindo de sua situação profissional como professor universitário,
emprego conseguido por intermédio da embaixada brasileira, graças a ignorância do governo
do Brasil, que não sabia que Percival von Traurigzeit era, na verdade, o jornalista Pérsio
Traurig, opositor do regime militar. Ao resumir sua situação, o personagem lança a imagem
do indivíduo que caminha sobre uma ponte prestes a desabar, o que significa encontrar-se
suspenso, pois o que tem abaixo dos pés está também em suspensão. É a mesma imagem
projetada pelo título do primeiro romance de Fausto Wolff, O acrobata pede desculpas e cai,
do qual, inclusive, Pérsio surge como autor.
As afinidades entre o protagonista deste romance e Pérsio são de fácil identificação.
Em O acrobata, o personagem também sofre com a falta de dinheiro, tem um emprego que
não lhe rende estabilidade e está em constante embate com a sociedade que lhe rodeia. É
casado, mas tem um relacionamento difícil e distante com a esposa. Como o acrobata que se
equilibra numa corda bamba, Pérsio encontra-se sempre “em suspensão”, sem estabilidade
financeira, amorosa e social; a ponte ou corda na qual está se agarrando, isto é, a realidade, é
frágil e perigosa. Ao contrário de Milena, ele não tem um propósito na vida, um rumo certo
que lhe dirija os passos e lhe proporcione a felicidade de realizar algo. Em vez de uma
perspectiva que o faça olhar para frente, vive somente com o medo da queda iminente. Trazer
essa imagem para descrever a vida de Pérsio indica que o autor trabalha um mesmo
imaginário, comparecendo em mais de uma obra e estabelecendo um diálogo entre elas
através de situações semelhantes.
À essa ideia remetem igualmente as palavras da personagem-narradora Assunta, com
que Pérsio também se envolveu na década de 70: “Era um rapaz deslocado, um outsider, uma
espécie do bobo do Tarot que caminha sem ver o precipício à frente.” (p. 221). Mais velha do
que ele, Assunta conseguiu enxergar o indivíduo triste e sozinho por trás do jornalista
engraçado e falante, viu se tratar de alguém cuja vida era pautada pela inadequação e pelo
descolamento e traduz isso por duas imagens que apontam para individualidades dissonantes
em relação ao mundo. Segundo o entendimento do personagem, a culpa por não amar Milena
se manifestava na impotência sexual quando buscava se relacionar com ela, ao passo que com
outras mulheres não tinha problemas. Isso é retomado em outro momento, LVI Narrador:
1980, com relação à outra mulher com quem Pérsio morava neste ano:
Não se pode viver com uma mulher que não se ama. Como aconteceu com Milena, depois de algum tempo a culpa o visitava e sentava-se sobre o seu pau impedindo-o de se levantar. Pensou: “Se um homem não remover a causa dos seus erros, continuará cometendo sempre os mesmos erros. […] No seu caso, o jornalista conseguia integrar-se à realidade, senti-la, denunciá-la, mas o homem estava alheio, estrangeiro em qualquer lugar onde estivesse NÃO estando” (p. 407-408) (grifos do autor).
O personagem tem consciência de sua situação problemática, sabe que fez de sua vida
um acúmulo de erros, sabe a causa deles e que deve removê- la para poder dar chance à
felicidade. Ele busca uma espécie de redenção para a sua vida, algo que o liberte da deriva em
que há muito vivia, uma sensação constante de alheamento, sentindo-se um estrangeiro onde
quer que fosse, com toda carga de negatividade que tal condição pode ter. De maneira
paradoxal ele define essa condição como estar no lugar não estando. O destaque textual da
definição só vem assinalar o que já foi dito outras vezes e de outras maneiras. Enquanto que
com seus antepassados essa problemática vem colocada sob uma ótica menos intimista e com
consequências em escala mais ampla, com Pérsio a sensação se dá exclusivamente no fórum
de sua intimidade, frustrando também quem o acompanha. É em sua consciência e em seu
espírito que o desastre maior acontece, daí a oposição estabelecida entre o jornalista e o
homem, aquele é um disfarce, um papel, o segundo guarda o ser de existência espiritual e a
essência de sua natureza. Eventualmente, Pérsio experimenta sensações de tranquilidade para
o seu espírito, vislumbres de uma situação almejada, fragilmente conquistada, mas que nunca
conseguiu adquirir de vez. Quando voltou a Santo Ângelo, como convidado para dar
entrevistas e participar de alguns eventos, aproveitou para visitar a sua família. Márcia, casada
com Ulisses, juntamente com os filhos, foi buscar o cunhado no aeroporto; enquanto
conversavam, Pérsio sente uma pontada de felicidade:
Nisso a mãe tinha razão: um homem tem de ser parte de alguma coisa, e para ela essa coisa se chama família. Conversando trivialidades com eles na mesa do bar do aeroporto onde tomamos umas cervejas, lembro-me do poema de John Donne que diz que nenhum homem é uma ilha; que todos somos parte do continente; uma parte do todo. Sim, aqui, entre a família, posso me despojar de elmos, armas, couraças, atitudes e frases feitas. Embora ainda não tenha me livrado do sobretudo que minha mãe costurou à minha pele num passado longínquo, aqui me sinto protegido. (p. 76-77).
A situação é simples e talvez por isso mesmo marca o personagem a ponto de guardá-
la na memória. O seio familiar surge como sinônimo de proteção, de porto seguro para um
viajante cansado; ali Pérsio pode deixar de lado o papel de indivíduo altamente capacitado,
que sabe se apresentar e agradar aos outros; ali não há competição e todos o amam. Aquela
sensação de alheamento referida antes, aqui toma corpo pela referência ao poema que aborda
a problemática do personagem. Ele a entende e sabe qual o antídoto, na verdade, quando da
situação relatada, Pérsio pelos menos já possuía um lar e uma esposa, Bárbara. É significativo
que tal declaração venha justamente de um indivíduo que escolheu para si um modo de vida
em tudo oposto, tendo saído muito cedo da casa paterna. Seu ponto de vista é privilegiado, ele
fala com a autoridade de quem viveu um sem-número de experiências as mais díspares
possíveis, desde a solidão numa pensão de quinta categoria no Rio, até ao convívio com
milionários em suas mansões e festas suntuosas no exterior. O sujeito que se prende desde
sempre à família e à comunidade, com frequência tem o mesmo pensamento do personagem,
contudo, o adquiriu por via diferente, por outra ordem de experiência.
Quanto ao sentimento amoroso, Pérsio por fim se viu enredado em suas malhas, e tudo
se deu exatamente da forma como ele descreveu anteriormente: “se eu tivesse dado uma
chance ao amor ele acabaria vindo de modo discreto, sereno, elegante como um analgésico na
veia”. O amor lhe chegou ao lado de Bárbara, ele narra pausadamente esse encontro no
penúltimo capítulo, Percival: 1980. Ela enviara uma carta ao Pasquim, do qual o personagem
era colunista, solicitando um encontro com ele. Depois de idas e vindas, passaram a se
encontrar com frequência, ora no apartamento de um, ora no de outro; o caso durou um ano,
até que numa noite, Pérsio a desperta e confessa que a ama, pedindo que não transe com mais
ninguém além dele e se comprometendo no mesmo sentido. Com ironia, conclui: “E foi
assim, quase por encanto, que a bela princesa transformou o lobo feroz num poodle de divã.”
(p. 456). No que diz respeito a esse aspecto de sua vida, o lobo solitário e errante encontrou
um pouso e uma companheira para compartilhar o final de sua vida.
No entanto, a inquietação de seu espírito não desapareceu, dentro dele mantém-se um
pensamento que preserva a sua relação antitética com o mundo. Nesse sentido, não é mera
coincidência que o capítulo final, Narrador: 1995, surja como o responsável por trazer um
punhado de informações e comentários simbólicos sobre algumas questões. Quanto ao drama
do personagem, suas palavras nesse capítulo fazem com que ganhe novas nuanças, tendo
relação com as mudanças sociais contemporâneas. O protagonista tinha viajado à Dinamarca e
encontrava-se na companhia do casal de amigos, Nikolay e Kirsten, que, notando a
preocupação do brasileiro, lhe indagam o porquê e ele responde: “ A verdade é que eu
estava feliz por ter um neto dinamarquês; poderia ser o cidadão livre de um mundo livre. A
Dinamarca que encontrei é tão ignorante, preconceituosa, viciada em modelos made in USA
como qualquer país da América do Sul.” (p. 467). O personagem está desapontado com o país
que conhecera muitos anos antes e que, à época, mantinha uma relação íntima com a cultura, a
arte e o pensamento livre. Em outro lugar, diz: “Bastou o governo permitir a entrada de canais
particulares de televisão” que “Todo o lixo de Los Angeles parece ter desabado sobre
Copenhague. A população emburreceu, a droga corre solta e a juventude só fala em Rambo,
Schwarzeneger, Comando para Matar e outras merdas” (p. 451).
Se o mundo já era visto pelo personagem como hostil e em desacordo com a natureza
humana, agora tudo parece bem pior, tanto pelo teor das mudanças, quanto pela abrangência
delas. Quanto ao Brasil especificamente, o personagem lamenta as consequências da
passagem pelo poder dos governos ditatoriais, que abalaram a cultura brasileira em seu
extrato mais popular, interrompendo a transmissão de seu legado: “Quando, porém, essa
tradição é interrompida violentamente pelo poder e seus meios de comunicação; […] o
homem se transforma numa coisa que aceita qualquer modismo passivamente, pois não tem
condições de se expressar culturalmente; cortaram a sua tradição” (p. 473). Por trás desses
comentários, insinua-se a ideia de alienação cultural, o sujeito coletivo como expropriado de
seus bens simbólicos e receptivo aos padrões impostos por um grupo de interesses.
A angústia de Pérsio é a angústia do intelectual, no sentido amplo da palavra, que vê
criticamente a emergência de novos conceitos e práticas, seja no campo dos costumes ou no
campo da arte: “ Pois a verdade é que estou com medo. Estou com medo de viver num
mundo onde eu seja obrigado a comer hambúrgeres todos os dias, escutar os mesmos ruídos
que chamam de música todos os dias, ver os mesmos medíocres imitando Matisse, Van Gogh
[…] todos os dias” (p. 474). Ao ser rebatido pelo amigo, que argumentou que tudo não
passava de mais uma fase da história da humanidade, Pérsio contra-argumentou: “ Não é
verdade, isto não é uma fase transitória. É um pesadelo permanente porque não é casual. O
poder quer as coisas como estão. O poder precisa da mediocridade para sobreviver.” (p. 475).
É o mundo da globalização, da comunicação de massa, do consumismo, do poder midiático e
da “sociedade do espetáculo”, na expressão de Guy Debord, que o personagem contempla
com horror, um mundo onde “a própria noção de estética, a própria noção de talento, a noção
de crítica foram distorcidas. Não importa o que é arte. O que importa é o que o mercado
aceita, e o mercado só aceita aquilo que lhe for imposto pelos meios de comunicação.”
(Idem). Pérsio é um inconformado com esse estado de coisas, cujas referências ele expõe em
abundância, compondo um painel histórico do nosso tempo em algumas páginas e em diálogo
com o amigo.
Todo esse discurso crítico sobre a contemporaneidade parece culminar numa
proposição irônica que, aliada ao que conhecemos sobre o personagem, coloca de modo
paradoxal a visão que ele tem de si mesmo em relação ao mundo. Faltando pouco para o final
da obra, ele declara enigmaticamente aos amigos: “ Quando é que vocês vão aprender que o
meu reino não é deste mundo?” (p. 480). Longe de significar uma referência a um outro
mundo como uma outra vida, a declaração liga-se à proposição de um outro mundo possível,
visto como horizonte a ser trilhado e objetivo a ser conquistado. Remetendo à ideia de
reinado, em comunhão com a nobreza que seu nome carrega, Pérsio assinala seu repúdio ao
mundo corrompido, sem ideais, sem os valores que engrandecem o homem. Por isso, ele, o
herói problemático que, exatamente por esse motivo expõe a deploração do mundo ao não se
integrar a ele, não enxerga um lugar onde possa estabelecer seu “reino”, assumindo, de uma
vez por todas, a incompatibilidade entre o seu espírito e um mundo sem espírito. Dessa forma,
a narração sobre sua vida, e com ela o romance, se encerra de forma emblemática, pois o
personagem some pelo mundo. A recusa à total resignação se concretiza na imagem do sujeito
errante, cuja história não está escrita e o fim é retardado ao máximo.
O drama de Pérsio pode ser entendido como uma crise de identidade, mas não no
sentido e na feição que a expressão se liga à corrente dos Estudos Culturais. Não são poucas
as narrativas que trazem um sujeito em conflito consigo, indagando-se quem é, buscando
conhecer a si mesmo, em dúvida quanto a sua sexualidade ou quanto a sua origem étnica, por
exemplo. A imagem do duplo surge para exemplificar essa posição indecisa e ambígua, a
dupla personalidade e nenhuma personalidade. A crise do protagonista de À mão esquerda
tem feições diferentes, tem mais a ver com a sociologia e a filosofia existencial do que com a
antropologia ou a psicologia, propriamente ditas.
É uma inadequação “desde sempre”, a rigor, desde a infância, está na origem do
menino triste que queria se integrar à turma, passando pelo adolescente que convivia com
jovens e o jovem que se metia em situações de adulto. Mesmo criado sob regras claras de
conduta, fez da vida uma mentira a despeito do ensinamento do pai e do avô de que “homem
que é homem não mente”; daí, o personagem viver o dilema ético de quem a própria
consciência é a sua acusadora, trazendo consigo o sentimento de culpa, que o indivíduo se
encarrega de sobrepujar ao se envolver de maneira não-verdadeira em situações ou com
pessoas, como o caso com Milena. Como sujeito cindido e ambíguo, inconformado com o
mundo e consigo mesmo, Pérsio é a imagem do espírito altivo e nobre, porém, problemático,
fazendo de sua vida um caminhar à esquerda do mundo e de si mesmo.
III – LITERATURA E MEMÓRIA Alicerçado na elaboração do passado, seja o passado íntimo de um personagem, seja o
passado sócio-político do Brasil e da Europa, o olhar em retrospectiva é o que impulsiona o
romance. Em seus discursos, os personagens-narradores enveredam pelas sendas do próprio
tempo anterior, falando de sua história de vida, enfocando um dado ou outro, detendo-se
naquilo que lhes marcou profundamente e é digno de ser trazido à tona. Nessa tarefa, a
memória individual constitui o elemento principal na qua l os personagens-narradores se
apoiam para contar uma lembrança, o que requer a rememoração, num procedimento feito
obedecendo a uma motivação ou até a um propósito específico, que, por sua vez, conferem
um sentido maior à lembrança.
O romance À mão esquerda acompanha a onda de revalorização da memória, ocorrida
de meados do século XX até hoje, quando todo um pensamento voltado para o resgate do
passado viu na memória um foco privilegiado de atuação e debate. As questões em torno do
tema tornaram-se não apenas objetos de reflexão teórica e modalidade de escrita, mas práticas
sociais vinculadas aos modos de ser das sociedades, incluídas nesse bojo, as práticas
relacionadas à produção, veiculação e consumo de mercadorias. Analisando a relação que o
mundo contemporâneo mantém com o passado, Beatriz Sarlo em seu livro apropriadamente
chamado Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva, esclarece:
As últimas décadas deram a impressão de que o império do passado se enfraquecia diante do “instante” (os lugares -comuns sobre a pós-modernidade, com suas operações de “apagamento”, repicam o luto ou celebram a dissolução do passado); no entanto, também foram as décadas da museificação, da heritage, do passado-espetáculo, das aldeias Potemkin e dos theme-parks históricos; daquilo que Ralph Samuel chamou de “mania preservacionista”; do surpreendente renascer do romance histórico, dos best-sellers e filmes que visitam desde Tróia até o século XIX, das histórias da vida privada, por vezes indiferenciáveis do costumbrismo, da reciclagem de estilos, tudo isso que Nietzsche chamou, irritado, de história dos antiquários (SARLO, 2007, p. 11).
Em suma, a contemporaneidade não despreza o tempo precedente, mas a ele consagra
uma atenção nunca antes dada; nele vai buscar elementos para compor sua identidade; é ele
utilizado como artifício, como decoração; nele busca matéria-prima para suas criações
artísticas ou não. Este último exemplo é ressaltado pela autora quando afirma, “histórias do
passado mais recente, apoiadas quase que apenas em operações da memória, atingem uma
circulação extradisciplinar que se estende à esfera pública comunicacional, à política e,
ocasionalmente, recebem o impulso do Estado” (Idem, p. 12). A autora refere-se à outras
formas de elaboração do passado que começaram a ocupar o privilégio antes reservado às
formas tradicionais de lidar com a história. A historiografia, por exemplo, abandonou
preconceitos arcaicos e passou a considerar como válidas para o conhecimento do passado,
fontes pautadas, não pela tão almejada objetividade, mas pela subjetividade.
Desencadeado principalmente pela Segunda Guerra Mundial e o extermínio em massa
propagado pelo nazismo, surgiu o “dever de memória” na Europa. Para não deixar que os
fatos se perdessem no tempo, provocado pelo esquecimento, foi produzida uma gama de
material sobre a época, baseado primordialmente nas operações da memória. No continente
americano, a motivação foi devida às ditaduras que assolaram vários países do continente, na
década de 1960 em diante. Passado alguns anos da vivência direta do terror e do sofrimento
causados pelos regimes autoritários, impôs-se uma vontade de não esquecer nada do que
aconteceu, ou mesmo um temor de que o esquecimento ou descaso acarretasse más
consequências. Os testemunhos daqueles que padeceram os sofrimentos da repressão foram
utilizados como forma de conhecimento daquele período, servindo, inclusive, como base para
inquéritos e ações judiciais. Trata-se de um contexto cultural que fez ressurgir os direitos da
primeira pessoa do discurso, uma mudança chamada por Sarlo de “guinada subjetiva”, tendo o
testemunho como uma de suas formas narrativas de destaque, que recoloca em perspectiva a
característica original da narração da experiência, a saber, de ser ancorada na presença do
corpo e da voz; característica que redunda em maior legitimação e prestígio. Tudo isso a
despeito da famosa constatação de Benjamin de que “as ações da experiência estão em baixa”,
bem como a possibilidade de sua transmissão.
Formas testemunhais em À mão esquerda Afinados com a reviravolta subjetiva, os discursos dos narradores do romance de
Fausto Wolff se desenrolam à maneira de um testemunho. Nas últimas décadas, este termo
ganhou novos usos e passou a contar com uma teoria própria, o que proporcionou a
emergência de um novo gênero de escrita, chamada literatura de testemunho, conceito
surgido para classificar as narrativas literárias produzidas nos países de língua espanhola da
América Latina, a partir dos anos 1960, e que nasceram sob as condições históricas da
repressão dos governos ditatoriais. Elas são frutos do espírito de rebeldia e das aspirações
revolucionárias da época, numa conjunção explícita entre política e literatura.
Tal conceito não pode ser aplicado ao romance de Fausto Wolff, escrito em meados
dos anos 1990, depois da queda do Muro de Berlim e quando o país experimentava o estado
de direito democrático, ainda por pouco tempo, certamente. Ao empregarmos o termo, nos
referimos ao caráter de depoimento pessoal que as falas possuem, são relatos francos e diretos
que um indivíduo faz de sua vida, então, é mais útil falarmos em teor testemunhal dos
discursos, com isso remetendo ao aspecto testemunhal que a literatura de um modo geral
apresenta, isto é, como “atividade que pode ser encontrada em vários gêneros”
(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 34). Esse aspecto fica mais saliente em certos casos, como
explica o crítico: “A literatura expressa o seu teor testemunhal de modo mais evidente ao
tratar de temas- limite, de situações que marcam e ‘deformam’ tanto a nossa percepção como
também nossa capacidade de expressão” (Idem, p. 40). A experiência traumática por parte do
indivíduo, portanto, catalisa o que a literatura já apresenta no seu bojo. Quanto ao termo
testemunho, usaremos aqui na mesma acepção de relato e depoimento subjetivo, sem maiores
implicações. São diversas as formas discursivas de que o autor fez uso ao colocar os
narradores contando a história dos Traurigzeit, mas todas têm em comum o crivo da
subjetividade. Ao destacá- las, apontaremos os aspectos que os discursos apresentam, e,
concomitantemente, teceremos comentários relativos aos seus conteúdos.
Uma primeira manifestação do teor testemunhal dos discursos reside no fato de que
alguns narradores se apresentam ao leitor. No capítulo XXXI Mei Mei: 1974, depois de
contar a situação em que conheceu Pérsio, a narradora diz: “Meu nome é Mei Mei
Chanivesse, nasci em Saigon, tenho vinte anos, sou prostituta e passo informações para o
vietcongue.” (p. 168). Às vezes, o procedimento é adotado logo no início da narração, como
no vigésimo quarto capítulo, Dona Candinha: 1948, professora primária de Pérsio: “Sou uma
mulher de 55 anos e tenho mais tempo de magistério do que gosto de lembrar.” (p. 120). Em
outro capítulo, Otávio: 1943: “Meu nome é Otávio von Traurigzeit, fiz doze anos no dia 1º de
abril, mas como é dia dos bobos digo sempre que nasci no dia 2” (p. 16).
Por vezes também, logo no início são colocadas informações mais profundas sobre os
indivíduos, em LIV Marjorie: 1980, lemos: “Nasci em 1929 num Rio de Janeiro diferente.
Dona Zizi, minha mãe, era de uma família paulista de quatrocentos anos. Meu pai, doutor
Carlos, de uma tradicional família carioca. […] Fui educada para me casar, ter filhos e ocupar
o meu lugar na sociedade.” (p. 385). Num relato de si é até esperado que o enunciador comece
por identificar-se a quem lhe ouve, numa atitude deliberada de mostrar-se ao outro, em À mão
esquerda essa atitude serve para fixar, de uma vez e de maneira sólida, a imagem desses
mesmos narradores, já que os discursos são fragmentados e vêm de indivíduos cuja vida, em
alguns casos, não será retomada novamente.
A maioria das falas surgem como testemunhos espontâneos, eles simplesmente se
lançam à tarefa de contar algum fato ou falar de um personagem. Além disso, sempre falam
para um interlocutor, seja alguém que com eles divide o mesmo espaço-tempo, seja o leitor
virtual; mesmo nos textos em que não há a presença de uma marcação ou alusão direta a um
ouvinte, o tom das falas é de quem se dirige a outrem, de quem conversa conosco. Talvez o
caso mais extremo, e até certo ponto humorado, seja o que encontramos no capítulo trinta e
oito, Vô João: 1953. O narrador inicia sua fala dizendo: “Olhem que passo dez anos sem ver
o Hermano […]” (p. 227), dando a entender que se dirige conscientemente aos leitores.
Porém, mais à frente, lemos: “Com quem é que eu estava falando, mesmo? Estava falando
comigo mesmo, é claro. Velho tem pouca gente para falar e quando fala ninguém presta
atenção. Velho quando pensa, pensa em voz alta para poder escutar a própria voz” (p. 229).
Pobre narrador sem público, a não ser a própria consciência. A imagem denuncia o descaso
com que a sociedade em geral trata os seus idosos; sabedor disso, o autor aproveitou a
oportunidade e fez seu personagem se dirigir a si mesmo, numa situação enunciativa inusitada
e diferente das demais.
Outros discursos apresentam uma configuração textual própria ou surgem dentro de
uma situação de enunciação específica, moldando as falas dos personagens pela presença de
certos marcadores textuais. O oitavo capítulo, Mãe: 1995, traz dona Yolanda, mãe do
protagonista, dentro de uma situação de conversa com interlocutores que foram encontrar-se
com ela, na casa de sua filha, Ruth, onde mora: “Vocês fiquem à vontade e não reparem na
bagunça porque ainda não acabei de arrumar a casa e o almoço está no fogo. Casa de pobre
vocês sabem como é. Então vocês querem saber do Pérsio, não? É meu filho famoso.” (p. 33).
Suas primeiras palavras retratam a recepção dos convidados e, juntamente com estes, nos
lançam ao ambiente doméstico em que a situação se processará, tratando-se, na verdade, de
uma entrevista concedida por ela a um grupo de estudantes, a respeito de seu filho famoso,
escritor de muitos livros: “Rutinha me disse que vocês estão escrevendo uma tese de mestrado
sobre ele, não é mesmo? Não, não sei o que é isso, mas deve ser coisa boa e se é bom para o
meu filho é bom para mim. […] Esperem aí que eu vou apanhar o café na cozinha.” (p. 33-
34).
Como recurso utilizado para efetivar a situação, as palavras da personagem deixam
subentendido que uma pergunta foi feita pelos estudantes. Quanto ao objetivo destes, é uma
apropriação da prática acadêmica por parte da ficção, objeto de estudo dessa prática. Se
pensarmos que, à época de escrita e publicação do romance, Fausto Wolff encontrava-se
distante das preocupações dos críticos e estudiosos de literatura, para dizer o mínimo, o
episódio se reveste de uma humorada ironia. Como também é irônico o fato de os estudantes
entrevistarem justamente a mãe do escritor, que confessa: “não entendo quase nada do que ele
diz” (p. 33); além disso, não vê com bons olhos o ofício de escrever: “Depois que se meteu
nesse negócio de escrever, nunca mais teve de suar o couro para ganhar o dinheiro dele. […]
A não ser que vocês considerem que escrever é trabalho.” (p. 34).
Aos estudantes, porém, importa não apenas o escritor, mas também o homem, e sobre
este a mãe pode dizer alguma coisa. No tocante ao conteúdo de rememoração, esse assunto é
o que “salva” o capítulo de ser menos importante face aos demais, pois não apresenta em sua
totalidade um conteúdo profundo e significativo, ocupando-se sobremaneira em tratar da
situação presente da narradora e de seus filhos vivos. Yolanda introduz o assunto
mencionando o sentimento de revolta que Pérsio traz consigo e observando que ele já não
mantém com ela, a mesma relação da infância e da adolescência, momento em que fala sobre
essa fase do filho. O que a personagem diz, é verdade somente para a sua própria consciência,
pois, no fundo, é índice de algo que saberemos por outros narradores, seus filhos, que expõem
a motivação da mudança de Pérsio em relação à mãe.
O discurso da personagem é meio caótico, ela fala de muitos assuntos sem conexão
entre si, misturando tudo numa dicção prolixa em que a própria personagem tem consciência
disso: “Começo falando um assunto, entra outro na minha cabeça, desvio e, quando quero
voltar, já esqueci.” (p. 34). A consequência imediata é que a narração perde o ordenamento
lógico-causal de quem conta um caso ou episódio, para ganhar a feição característica de
conversa sobre amenidades, sobre o cotidiano caseiro e a situação de um ou outro membro da
família: “Faço todo o serviço de casa, além de cozinhar e cuidar da horta, e eles nem me
pagam salário mínimo. Quando reclamam, eles põem empregada” (Idem). Por outro lado,
mostra um procedimento afinado com a constituição da personagem, uma senhora já avançada
em anos, que, como muitos idosos, parece não mais controlar ou ordenar os próprios
pensamentos e a fala. Seu discurso é então expressão de sua condição, indicando a
preocupação do autor em conciliar harmonicamente o conteúdo narrado, a enunciação e o
enunciador. A construção da situação de entrevista fica prejudicada pela utilização somente
do discurso da entrevistada; logo aí, em que o esquema de perguntas e respostas é a base do
processo, o autor não fez uso do diálogo direto nem por um momento, substituindo-o por
expressões que apenas o denotam.
Outro capítulo configurado como uma conversa é o trigésimo sétimo, Assunta: 1985.
Ela é uma romana riquíssima, herdeira de uma cadeia de hotéis e de uma indústria de
cosméticos, foi amante de Pérsio, no início da década de 1970. Ela se dirige à mãe, que se
encontra doente, deitada numa cama, com poucas reações, muitas dores e impossibilitada de
falar, impedindo um diálogo real com a filha. Como no capítulo destacado acima, aqui
também subentendemos os passos do diálogo pelas perguntas e afirmações feitas pela
narradora. Ela conta como conheceu o protagonista e o fascínio que o jornalista despertou
nela, que é a imagem da mulher rica, casada, triste e sonhadora: “Eu, porém, nunca o amei, e
uma mulher tem direito de amar uma vez na vida, não é mesmo? Embora soubesse que quase
todas as minhas amigas tinham amantes, eu era uma mulher ingênua. Estava à espera do meu
príncipe encantado.” (p. 219).
No aspecto subjetivo de sua fala, percebemos que o capítulo perde força nesse quesito,
primeiro porque boa parte dele é composta por diálogos ent re ela e Pérsio, nos quais, quando
não falam de trivialidades, o personagem fala bastante de si, não escondendo a intenção de
impressionar a mulher. Em segundo, porque Assunta se dedica a contar situações e diálogos
em que Pérsio é o centro dos comentários, mas estes são meio fúteis, desprovidos de uma
carga significativa que os faça sair da vala rasa das fofocas de mulheres, cujo tema são os
homens com quem se relacionam. A narradora cede à outra mulher, o lugar de voz
privilegiada, relembrando o que uma amiga sua dissera sobre Pérsio, à época em que tudo
aconteceu. O procedimento é demasiado longo e o que é falado também não tem grande
importância, até mesmo como conhecimento sobre o personagem principal.
Toda tensão possível parece ser neutralizada pelo ambiente e as histórias envolvendo a
classe rica romana. Felizmente, alguns comentários escapam por mostrar-nos o lado
decadente e vergonhoso daqueles que vivem em meio ao luxo e à ostentação. Assunta
relembra o que sua mãe fizera com Pérsio, para prejudicar o casal, quando ela estava ausente
por causa de uma viagem: “A senhora aproveitou para convidá- lo para a nossa casa de praia
em Fregene. Deu- lhe um porre, fez ele jogar pôquer com seus amigos e perder alguns milhões
de liras. Ele teve de pedir dinheiro emprestado para cobrir os cheques que assinou.” (p. 226).
A atitude evidencia a falta de escrúpulos com que os ricos agem na tentativa de alcançar seus
objetivos também inescrupulosos, no caso, expulsar um estranho de seu meio. A mãe de
Assunta não mediu esforços para afastar de sua filha o então professor da Universidade de
Nápoles. Nisso, aquela senhora é uma legítima representante de sua classe, sempre receosa de
que algo macule o seu status: “Quando voltei, a senhora ameaçou me deserdar se eu
continuasse com ele. Lembra o que me disse? ‘Se você precisa tanto de sexo, minha filha,
arranje um gigolô, mas arranje um profissional discreto que sai muito mais barato’” (Idem).
Isso é a imagem da classe dominante de qualquer país, com sua moral que coloca o status
social e os interesses financeiros acima da ética e da felicidade individual, ignorando
solenemente o mar de lama sobre o qual assentam suas vidas: “O que, mamãe? Fale mais alto,
sua vaca, ou acha que eu não sei que a senhora traía papai com titio, sua santarrona, que
trepou até com o mordomo.” (Idem).
Em outro momento, o despudor toma conta com o uso da temática sexual para agredir
e também porque são palavras ditas por uma filha amargurada à mãe: “A senhora nunca foi
sodomizada, mamãe? Nunca felaciou ninguém? Claro que sim. Eu também. Já fui para a cama
com negros, com mulheres, com prostitutos e prostitutas”. O ódio que sente pela mãe parece
neutralizar até mesmo seu sentimento materno: “Aliás, meu filho, seu neto Anibale, é um
homossexual incansável, conhecido em todas as saunas da cidade. Certamente, vai morrer de
Aids, sabia?” (p. 219). Manifestando a mais pura indiferença, Assunta almeja mortificar sua
genitora mais do que ela já se encontra mortificada pela doença, em estado terminal. Esse tipo
de anotação é feito pela narradora motivada pelo escárnio que ela sente pela mãe; o ponto alto
de seu relato está nas palavras que abordam o seu drama individual, no início do capítulo:
Pronto, já está sorrindo, não é mamãe? É a morfina. Está viciada, não é mesmo? Eu sei que é bom. Já experimentei, sabia? Só que a senhora está morrendo e eu, não. Estou morta, mas não como a senhora. Quem morreu dentro de mim foi a moça que queria ser feliz e a senhora matou. […] Estou com cinquenta e cinco anos, mamãe, e a senhora está morrendo com quase oitenta. Mas não podia deixá -la morrer sem saber quanto a odeio. A senhora, provavelmente, não lembra, mas tive uma oportunidade de ser feliz muitos anos atrás. Ele era professor e comunista. (p. 218).
De todos os relatos encontrados no romance, o de Assunta talvez seja o que mais
impressiona, devido à motivação que a põe diante de sua mãe, contando o período de sua vida
em que enxergou uma possibilidade de ser feliz ao lado de Pérsio e à intensidade do
aviltamento de suas palavras: “Eu amava aquele homem, mamãe. Foi o sentimento mais
bonito que já tive por alguém e a senhora acabou com ele para me transformar no que sou:
uma puta rica.” (p. 226). Com toda a franqueza, ela coloca o que está guardado há muito
dentro dela: o ódio sentido pela mulher que a gerou e a “matou”; o desejo de expressar à mãe
esse sentimento antes que ela morra é o que dá origem ao seu testemunho, que ganha a forma
de uma vingança.
O capítulo quinze, Almira: 1944, traz uma outra modalidade de expressão do eu, mas
só a conhecemos efetivamente quando o relato já está além de sua metade: “Se algum dia
alguém ler este meu diário, talvez se espante com o fato de uma colona se expressar tão bem
em português.” (p. 74). O diário íntimo é, portanto, a configuração textual desse capítulo, que
comentaremos com o auxílio de Philippe Lejeune, fazendo uma leitura a dois. Antes da
informação acima, só é fornecida a indicação encontrada no início: “Hoje é dia 12 de julho de
1944. Faz quatro anos que minha mãe morreu de câncer ou de krebs, como se diz em
alemão.” (p. 71). Como é característica de tal modalidade de escrita, cuja base é a data
(LEJEUNE, 2008, p. 260), a narradora sincroniza o seu relato com o dia de sua feitura, que
por sua vez, é uma data muito importante para ela: a data marcada pela morte da mãe, ligando
a memória que tem da perda ao ato de sua expressão, pois “um diário serve sempre, no
mínimo, para construir ou exercer a memória de seu autor (grupo ou indivíduo).” (Idem, p.
261). Como sintoma de seu apreço e influência materna, Almira fala um pouco sobre a mulher
que a gerou e transformou seu pai, antes um colono resignado com o que a vida lhe deu até
então, num homem com alguma ambição. A abordagem dessa temática é insignificante diante
do que o leitor encontrará nesse espaço de escrita de si, onde o sujeito se projeta e se olha,
como fica manifesto nas palavras da personagem abaixo:
Acordei mais cedo e depois de tomar banho, em vez de me vestir, descer e dar as ordens do dia aos empregados, me surpreendi olhando meu corpo nu no espelho. Nos meus trinta e seis anos de vida nunca vi outra mulher nua, nem a minha mãe ou minhas irmãs mais moças, Yolanda, Amália e Ofélia. O que vi no espelho não me desagradou. Tenho um rosto simpático, seios firmes, cabelos e olhos negros e um sorriso que raramente aparece em meu rosto, mas que quando aparece todos elogiam. Sou mulher honesta e virgem. Tenho um defeito grave: meço um metro e oitenta e dois e sou mais alta que a grande maioria dos homens que conheço (Idem).
Nessa escrita do presente, Almira registra o dia que começou diferente dos demais, em
que ela se sentiu diferente dos dias anteriores e não fez o que sempre fazia, ainda por cima,
fez algo que, a julgar pelo modo como descreveu (me surpreendi olhando, o olhar por trás do
olhar), nunca havia feito daquela forma: olhou-se nua em frente ao espelho. Consciente ou
não, Fausto Wolff coloca a personagem experimentando uma situação que dialoga com o tipo
de texto que ela produz, pois “O papel é espelho. Uma vez projetados no papel, podemos nos
olhar com distanciamento” (LEJEUNE, 2008, p. 263). Do reflexo no vidro, ela passa para a
“imagem” no papel, onde, por fim, dá forma concreta ao balancete feito sobre si, no qual pôde
constatar e se alegrar com suas qualidades. Nesse aspecto, o diário também exerce um papel
importante, já que “só é possível viver com alguma auto-estima, e o diário será, como a
autobiografia, o espaço de construção dessa imagem positiva” (Idem).
Quanto à afirmação de honestidade e virgindade, nada de mais até chegarmos ao
fechamento do capítulo, quando ela confessa: “Menti. Faz uma semana que não sou mais
virgem.” (p. 76). Enquanto escreve, o diarista se constrói e reconstrói, portanto, está sujeito às
mudanças de opinião e de humor durante o corpo-a-corpo com a escrita do texto. Conforme
salienta o estudioso: “No diário, o auto-retrato nada tem de definitivo, e a atenção dada a si
está sempre sujeita a desmentidos futuros.” (LEJEUNE, 2008, p. 263). A mentira encontra-se
no início do relato e a posterior confissão (com a autocrítica menti) exatamente no seu
desfecho, o que indica um despojamento de alguma amarra da narradora, redundando em sua
abertura para a sinceridade depois de fazer sua “viagem de exploração” (Idem). O
procedimento é simples e parece até infantil, mas ele imprime o aspecto mutável do ser
humano e, conseqüentemente, do seu texto, além de mostrar a atenção e a sensibilidade do
autor na construção desse diário ficcional.
A narradora também aponta o que lhe traz sofrimento, por ser mais alta do que muitos
homens, ela não é desejada por nenhum; como se não bastasse, adquiriu uma corcunda com o
trabalho na roça e por adotar uma postura curva com intuito de parecer mais baixa. Sobre
quando alguém lhe perguntava porque andava do jeito que andava, ela confessa: “Minha
vontade é responder: ‘Por causa da estupidez dos homens que têm vergonha de andar ao lado
de uma mulher mais alta do que eles. Porque quero me rebaixar à altura deles. Ser apenas uma
mulherzinha que precisa de amor e de ternura como todas’.” (p. 71). Em seu diário, “espaço
onde o eu escapa momentaneamente à pressão social, se refugia protegido em uma bolha onde
pode se abrir sem risco” (LEJEUNE, 2008, p. 262), Almira pode exteriorizar a sua vontade,
dizer o que ficava preso na garganta, por ser um tanto embaraçoso ou até vergonhoso. Na
intimidade da escrita, ela pode desabafar sem medo.
Este fragmento de diário traz um conteúdo que extrapola os limites do eu para
focalizar a comunidade da qual a autora é originada, a colônia de Esperança, com seus
costumes, sua cultura e suas rígidas regras de conduta social, onde a esfera individual
encontra-se reduzida pelas explícitas coerções coletivas. Apontamos isso quando tratamos dos
valores morais dos Traurigzeit. Aqui, queremos assinalar que essa visada tópica amplia
sobremaneira o campo de trabalho do diarista íntimo, por abarcar uma realidade social:
Para se casar, um rapaz precisa ter pelo menos 480 mil metros quadrados de terra, que recebe do pai ou que vai pagando a ele aos poucos. As filhas, quando se casam, ganham de presente da família um cavalo de montaria, utensílios de cozinha […]. Se o rapaz é pobre, o casal se estabelece em terras devolutas. Irmãos e cunhados solteiros ajudam na preparação da terra e na construção da casa. Logo após o casamento, o casal inicia a vida de colono e procura ter o maior número de filhos.
Os homens são mais bem-vindos por causa da força física […]. Em Esperança, a virgindade é fundamental e controlada pela comunidade. (p. 72-73).
O lugar originalmente destinado à expressão subjetiva e marcado pela rubrica da
escrita contemporânea – o registro do dia, daí o nome, diário íntimo – cede lugar a uma escrita
que vai apreender o geral, o coletivo e aquilo que atravessa as gerações, os valores passados
dos pais para os filhos. Para além da liberdade que o diarista tem, acreditamos que essa
abertura seja sintoma da busca do romance em abarcar um panorama amplo, sempre focando
uma realidade histórica por trás da história individual. Talvez seja isso ou algo próximo disso
o que o crítico francês quis dizer numa citação mais acima, em que afirma que o diário serve
para construir a memória do autor, seja este um grupo ou um indivíduo. Almira deslocou o
foco de si, para falar da sua comunidade, aquele grande grupo de indivíduos, em cuja direção
ela lança um olhar distanciado e amargurado, feliz por ter saído de lá.
Dois capítulos à frente, XVII Ofélia: 1945, o relato chega em forma de texto epistolar,
uma carta dessa tia de Pérsio à irmã Yolanda. O capítulo está entre os mais curtos de todo o
romance, talvez porque o autor tenha considerado que uma carta não devesse ser tão longa.
Esta carta ficcional é iniciada com a usual indicação de tempo e de espaço, em itálico, acima
do texto propriamente dito: “Porto Alegre, 25 de janeiro de 1945.” (p. 82), afinal de contas,
“Na escrita das cartas, lugar e data são fatores preponderantes que, uma vez obedecidos, têm a
vantagem de situar no tempo e no espaço a feitura e o conteúdo da mensagem. A data,
especialmente, delimita e capta o momento em sua fugacidade.” (SANTOS, 1998, p. 22). Os
dois fatores obedecidos pelo autor já indicam que a história retratada dois capítulos atrás, terá
agora sua continuidade através de outra narradora e avançada quase um ano no tempo. Ofélia
se mudou de Esperança para Porto Alegre por convite de Almira e conforme esta dissera no
capítulo tratado acima, de fato levou a irmã para morar com ela na casa em que trabalhava, do
dr. Hopke, um médico bem-sucedido que tratara de sua mãe.
A “carta” começa como muitas outras, inclusive, remetendo à imagem do missivista
na solidão redigindo o seu texto: “Querida Landa, hoje pego na pena para contar e perguntar
por novidades. São onze horas da noite e todos já estão dormindo.” (p. 82). A intenção
também é das mais triviais, dar e solicitar informações ao destinatário, talvez a motivação da
grande maioria das correspondências particulares. Consoante à intenção, o discurso corre
célere, encadeando informação após informação, de maneira direta e contínua:
Quase não faço mais serviço doméstico, embora ajude a Almira, a cozinheira e a copeira sempre que há necessidade. A maior parte do tempo me ocupo tomando conta da Mabel […]. Estou quase acabando o ginásio num curso noturno e logo, logo espero estar trabalhando num escritório. […] Vir para Porto Alegre, porém, foi a decisão mais acertada da minha vida. Nunca vi tanta gente junta. Tem até bonde e aeroporto. Outro dia, um rapaz que faz o ginasial comigo à noite me convidou para ir com ele ao Cinema Colombo, que é pertinho da casa do dr. Hopke, mas Almira não deixou. Segundo ela, que tem sido uma mãe para mim, é fácil para uma moça honesta se perder na cidade grande. (Idem).
No relatório da situação, a fala subjetiva entra para contar os progressos e as
expectativas positivas na nova vida, apontando que a mudança foi benéfica e não se furtando
a mostrar o deslumbramento sentido com o súbito conhecimento de uma realidade com que
nunca teve contato. Com isso, expõe de um jeito simples, a tensão originada da aproximação
de uma mentalidade provinciana com o mundo da cidade grande; lugar de descobertas e
também de risco, daí o temor da irmã mais velha, que, estando há mais tempo no lugar, já tem
dele uma experiência que pode transmitir à irmã. O texto epistolar se presta à finalidades de
toda ordem, entre elas, à exortação e ao aconselhamento, nesse sentido, por exemplo, são
emblemáticas as epístolas bíblicas, sempre “contendo exaltação à fé cristã, reflexões,
conselhos, recomendações, admoestações e até direitos e obrigações que deveriam ser
preservados pelos cidadãos em Cristo.” (SANTOS, 1998, p. 28). Também a carta da
personagem apresenta um conteúdo destinado a exortar e aconselhar deliberadamente à irmã :
Sei que Theodoro anda mais bem-comportado e a Almira disse que tens de parar com teus ciúmes absurdos; que o Theodoro trabalha o dia inteiro na barbearia e quando volta para casa tu o infernizas querendo saber se alguma mulher passou por lá. Além disso, mandas o Ulisses vigiá-lo para ver se encontra com alguma dona. Por favor, minha irmã querida, não faça mais isso. Procura esquecer o que se passou em Esperança […]. O que passou, passou e, afinal de contas, não casaste com ele? Vocês não têm quatro filhos? O melhor é deixar o passado para trás. (p. 83).
Trazendo a fa la de Almira para deixar claro que não fala sozinha, mas que as duas
compartilham da mesma opinião, Ofélia se dirige à Yolanda primeiramente escancarando o
procedimento da irmã, apontando seus ciúmes absurdos, a “infernização” praticada e o
monitoramento do marido por meio de Ulisses, envolvendo assim toda a família em seu
sentimento passional. Depois, a narradora admoesta francamente a irmã, pedindo-a que
abandone sua atitude, esqueça a traição do marido, ocorrida há alguns anos, e se prenda ao
fato de que ele está bem-comportado. Destacamos que Almira e Ofélia não são casadas,
sequer possuem um namorado do qual possam ter ciúmes, mas isso não é impedimento para
que elas falem, pelo contrário, possibilita que se posicionem racionalmente, pois não estão
“cegas” pela insegurança e pelo medo de perder um cônjuge.
Mais à frente, Ofélia oferece a Yolanda alguns conselhos práticos: “Querida irmã, sei
que sou mais jovem que você e não deveria te dar conselhos, mas estes anos em Porto Alegre
me ensinaram muita coisa.” (Idem). Ela aborda problemas relacionados ao trabalho
doméstico: limpeza, arrumação e organização de uma casa, por saber que, a despeito do
trabalho diário, a casa da irmã permanecia desarrumada. Ofélia, que ajuda no trabalho da casa
do médico, que tem mais de vinte cômodos, se enxerga como ponto de vista referendado por
essa experiência cotidiana. As palavras da personagem tocam nas questões da experiência e
da autoridade, esta, condicionada à idade e tempo de vida do indivíduo, a primeira, pauta-se
pela lida rotineira com a situação. Ofélia aconselha a irmã apoiando-se na experiência obtida
que, por sua vez, tornou-se conhecimento prático do trabalho doméstico, superior em
dificuldade ao trabalho na casa da irmã, que era muito menor do que a casa do dr. Hopke.
Na carta da personagem, o autor também aproveita para tocar em questões de classe e
de cunho histórico. Falando a respeito do círculo social do médico, Ofélia informa: “Devo te
confessar, porém, que os amigos e as amigas dele são uns alemães tão metidos a besta que
parecem ter rei na barriga”. Quanto às mulheres em específico: “todas com o nariz empinado
como se, com perdão da palavra, tivessem merda debaixo dele.” (Idem). A despeito da mesma
origem étnica, ou ainda pior, ignorando o fato de que todos são descendentes de imigrantes e
nasceram em colônias, o fator classe social surge para moldar o comportamento dos
indivíduos, projetando no plano do relacionamento com o próximo a diferença existente no
plano econômico.
Já no final do texto, Ofélia explica: “Escrevo esta carta em português porque faz
pouco que a guerra na Europa acabou e há muita animosidade contra quem é apanhado
falando alemão.” (p. 84). Os brasileiros não-descendentes de alemães alimentavam um
preconceito e um sentimento de menosprezo pelos colonos desde a chegada deles, no início
do século dezenove; com a guerra contra o nazismo, esse sentimento ganhou novo impulso.
Eis o que declara o personagem Otávio : “Eu lembro, toda a vez que eu ia com a mãe para
Santo Ângelo, lá por 1943, 1944, a gente ficava de bico calado com medo de ir para a cadeia”
(p. 60). Pairava sobre os colonos um verdadeiro temor, para muitos deles, a pronúncia da
língua portuguesa era uma dificuldade e o sotaque alemão um motivo para as autoridades
hostilizarem os colonos. As palavras dos personagens marcam a forma como os conflitos
bélicos do outro lado do Atlântico eram percebidos no Brasil e influenciavam a vida das
pessoas.
Neste capítulo, a matéria de memória está ausente, a narradora não rememora nada, e
nisso está coerente com a finalidade de sua carta, contar e perguntar por novidades; não que
tal procedimento seja algo alheio ao texto epistolar, mas essa apreensão do tempo presente, da
condição e das circunstâncias atuais de seus agentes, talvez seja o objetivo mais comum de
alguém que se disponha a enviar uma carta. Em compensação, o texto se projeta em outras
direções e até mesmo quando tem por alvo um assunto ordinário, trabalha com questões sérias
e, principalmente, cumpre do seu jeito particular o objetivo de contar a história dos
Traurigzeit.
Para além da memória O romance apresenta um conjunto de características e aspectos relacionados à
configuração dos personagens e à atividade narrativa, que serão tratados em conjunto nesse
momento porque se relacionam entre si, a saber, a onisciência dos narradores, a utilização de
narradores mortos e o tratamento dado às categorias de tempo e espaço. O fato de os abordar
nessa parte destinada à memória é porque eles interferem na elaboração do passado e nos
discursos testemunhais dos narradores, conferindo uma dinâmica própria a essas questões.
Conforme dissemos no início, as datas que compõem os títulos dos capítulos são
referências temporais para os personagens-narradores e para o leitor que, desde o começo do
capítulo, sabe qual período de tempo será abordado pelo narrador. As datas são marcos que
usamos para ordenar a nossa vida em geral e, especificamente, para apreender os fatos
ocorridos: “Para contá-los, isto é, narrá- los, é preciso também contá-los, isto é, enumerá- los.
Contar é narrar e contar é numerar. Contar o que aconteceu exige que se digam o ano, o mês,
o dia, a hora em que o fato se deu. O ato de narrar paga tributo ao deus Chronos.” (BOSI,
1992, p. 20) Felizmente, em À mão esquerda, elas apenas instauram uma perspectiva, os
narradores, sem exceção, falam de um algum episódio ocorrido no desenrolar do ano
estabelecido, porém, com frequência estendem o olhar a eventos anteriores e posteriores às
datas, um procedimento que Bosi descreve com uma imagem: “As datas são pontas de
icebergs” (Idem, p. 19). Como sabemos, os imensos blocos de gelo ficam com a maior parte
de seu tamanho submersa na água, uma fração menor (algo em torno de vinte por cento)
aponta acima da água, funcionando como referências para os navegantes.
As datas no romance funcionam dessa forma, são referências dentro do mar da
memória e da história dos personagens. Como exemplo, destacamos os capítulos narrados por
Nikolay, um sujeito que Pérsio conheceu na década de 1970 e que se tornou um dos maiores
amigos seus. Ele assume uma grande importância somente da segunda metade do romance em
diante, sendo responsável pela narração de quatro capítulos. Todos são extensos, três
compreendem nove, dez páginas cada, enquanto que o último se estende por vinte e uma
páginas. Neste, LVIII Nikolay: 1995, o narrador inicia nos informando: “Estou em minha
casa em Olevano, uma cidade medieval na montanha, a uns cem quilômetros de Roma.” (p.
430). Mas o relato é sobre as peripécias do amigo, há vinte e três anos: “Pérsio e Lucille me
deixaram bêbado à meia-noite do dia 7 de julho de 1972 na Stazione Termine, em Roma, e
foram a Mykonos.” (Idem, p. 431). Há exemplos na direção contrária, do passado para o
futuro, tomando-se, é claro, a data como marco temporal. No segundo capítulo, Percival:
1943, o protagonista narra eventos ocorridos quando ele contava três anos de idade, mas, de
repente, aproveitando a referência à lua, fala de si muitos anos mais velho:
Ulisses carregava Rutinha, e Otávio ia à frente abrindo o caminho no milharal espesso. Eles não davam bola para mim. A diferença de idade era grande: nove anos para um e sete para o outro. Eram meus heróis. Sabiam tudo do mundo. Eu caminhava olhando para a lua que iluminava os pés de milho e o mato mais adiante. Ainda não tinha medo de olhar para ela. Muitos anos mais tarde, velho, barrigudo, artrítico e com seis dentes a menos na boca, evitaria – raramente com êxito – tomar porre em noite de lua cheia. (p. 13).
Pérsio relembra a admiração que nutria pelos irmãos, mais tarde, voltada para o pai e
para os personagens heróicos das histórias em quadrinhos e narrativas em geral, indicando
que sempre se fascinou com as personalidades e histórias alheias e que as experiências obtidas
ainda na infância repercutem de alguma maneira no homem adulto, que traz no corpo as
marcas da passagem do tempo. Fragmentos como esses nos fazem pensar na voz que narra.
Sabemos quem é, mas o modo como a narração acontece problematiza o estatuto dessa voz.
No excerto, obviamente, não é a criança de três que está narrando, mas sim o personagem
adulto, falando de um tempo não especificado, mas que, para o leitor, só pode ser o tempo de
escrita da obra, o ano de 1995. Contudo, o texto oferece passagens que a criança irrompe ao
primeiro plano e a sua imagem fica nítida:
Um dia o pai teve uma briga com a mãe, montou no cavalo, foi para o baile e dançou com uma china a noite inteira e depois fez com ela umas coisas que a mãe tentou me explicar, mas não entendi. Só sei que ela chorava e dizia que, por ela, o diabo podia levar todas as chinas para o inferno. Eu não gostava das chinas porque elas faziam a minha mãe chorar tanto. (p. 15).
Na configuração de seus personagens-narradores, o autor utiliza um registro variado,
com falares próprios ao contexto em que se insere o personagem: se este está sendo retratado
como criança, suas palavras terão o tom infantil apropriado, como acontece acima, onde a voz
do narrador é modulada para se adequar ao tom ajustado à experiência infeliz vivida na
infância e a criança, assumindo o lugar do narrador adulto pela colocação de sua visão de
mundo ainda ingênua, fala de modo pungente, o aspecto lúdico comum a toda narrativa, cede
lugar à fala emocionada.
Ainda dentro desse tópico, vemos que as categorias de tempo e espaço rompem com
os limites geográfico-temporais convencionais. Uma passagem contida no capítulo VII,
Ulisses: 1944, ilustra muito bem essa característica. O narrador fala da família, das
dificuldades que passaram, das constantes mudanças e do personagem principal. Por todo o
capítulo, o presente, o passado e o futuro são embaralhados pelo narrador, que, num momento
diz: “Nossa família se mudou muito. Nunca estávamos no lugar onde queríamos estar.” (p.
30), relembrando o passado de deslocamento de uma cidade para outra. Em outro momento,
antecipa o futuro: “Meu irmão mais moço vai ser mais revoltado ainda” (Idem), sintetizando o
que foi a vida errante e cheia de aventuras do irmão e adiantando ao leitor o que ele conhecerá
detalhadamente. Num terceiro momento, diz: “Hoje faz um mês que nos mudamos para Santo
Ângelo” (p. 31). Com esta frase, Ulisses, e com ele, sua narração, se temporalizam em 1944
para contar a nova situação vivida pela família, ao mesmo tempo, também é fixado uma noção
de espaço, pois sabemos que ele se encontra nessa nova cidade.
Quase ao final do capítulo, ele está falando da relação da família com a língua
portuguesa, quando pára, pois é interrompido por Pérsio, quando tinha apenas quatro anos de
idade e ele, Ulisses, doze anos. O narrador informa: “Aí vem ele com o livro do Robinson
Crusoe na mão” (p. 32). A narração de Ulisses dá lugar a um diálogo entre ele e Pérsio,
ocorrido no ano informado no título. Nesse trecho, a reconstrução do passado passa pela sua
exposição in loco, isto é, no momento e no lugar do acontecido, confundindo tempo e espaço,
mas deixando entrever uma característica do herói que, desde pequeno, parece não prestar
atenção às imposições que lhe são feitas e buscar prazer no que interessa.
As passagens destacadas acima também já colocam à mostra a onisciência dos
narradores, posto que conhecem o passado e o futuro e os mostram com a mesma
desenvoltura. No capítulo quarenta e um, Balduíno: 1965, este amigo de Pérsio faz uma
longa narração sobre o tempo de adolescência deles, contando várias histórias envolvendo os
dois. O narrador relata o caso ocorrido em que, injustamente, ficou com má fama no lugar
onde morava. Mesmo tendo explicado tudo, diz ele, “Mas o mal já estava feito e a vergonha e
medo que senti permanecerão dentro de mim até um dia de abril de 1994, quando serei
assassinado por um traficante negro que julgou que eu não o havia defendido devidamente no
tribunal.” (p. 262). O foco de seu discurso são os eventos do ano de 1965, no entanto,
manifestando sua onisciência, fala do que acontecerá com ele, inclusive, de sua morte; fala do
estrago em seu ser causado pela situação humilhante pela qual passou e a posterior zombaria e
preconceito da sociedade. Como muitos, este narrador traz consigo uma experiência
traumática, repercutindo ao longo de sua existência.
No capítulo vinte e quatro, Dona Candinha: 1948 inicia seu relato falando de seu
amor à profissão e aos alunos; em seguida, envereda pelo assunto esperado: seu aluno mais
“estranho”, desengonçado, brincalhão, que gostava de se exibir e posar de poeta. Como não
poderia deixar de ser, conta episódios desse período: “Outro dia uma professora mandou-o
sair do banheiro feminino, pois havia seguido a menina até lá dentro.” (p. 121). A expressão
de tempo com que inicia a declaração deixa claro que o caso aconteceu há poucos dias atrás,
em relação ao seu testemunho. Dessa forma, deixando próximos temporalmente enunciado e
enunciação, todo o capítulo prossegue, até o final, quando a professora declara: “Vou vê- lo
novamente daqui a alguns anos já na pele de repórter do jornal mais importante da cidade.”
(p. 126). Fala de Pérsio no início de carreira e no futuro, demonstrando conhecimento quanto
aos fatos e referindo-se à dor que o jornalista carregava consigo e que ela havia identificado
no menino de oito anos.
No capítulo seguinte, XXV Olavo: 1949, o primo de Pérsio fala sobre sua própria
mãe: “É uma boa mulher. […]. É boa costureira, doceira e dona de casa. Vai acabar a vida
daqui a muitos anos vendendo um creme contra rugas que inventou. E o mais engraçado é que
aos oitenta anos vai vender a porra desses cremes como se estivesse começando a vida” (p.
127). Também onisciente quanto ao futuro da mãe, ele a descreve aos oitenta anos. Os
narradores em geral têm a perspectiva que Olavo expressa aqui, ao falar dela de uma maneira
que a contemple enquanto ser humano que é, buscando sintetiza r em poucas palavras a sua
personalidade e a trajetória de uma vida. É aquela mesma perspectiva expressa por Ulisses
quando falou de Pérsio, deixando entrever que se tratava de um sujeito sem paradeiro fixo,
que fazia da sua vida uma sucessão de peripécias.
Alguns narradores já estão mortos no momento de sua enunciação. Essa característica
também tem lá sua relação com a ideia de tempo, antes de tudo, porque para nós mortais, a
passagem do tempo é fatal; segundo porque a morte, no imaginário de muitas culturas, é a
porta pela qual o indivíduo entra no tempo da eternidade, onde exatamente a passagem dos
anos não importa. No romance, além de ser tratada como tema, a morte entra como elemento
constituinte de sete personagens.
Ao final do primeiro capítulo, o leitor se surpreende com uma declaração de Ulisses:
“Mas não posso. Eu mesmo morri alguns meses atrás.” (p. 13). Falando temporalmente do
ano de 1995, este narrador se refere à impossibilidade de aconselhar o irmão Pérsio, que a
despeito da idade avançada, vivia metido em encrencas. Em outro capítulo, Ulisses: 1944,
após um diálogo com o irmão caçula, que o havia interpelado, deixando-o sem palavras, o
narrador declara: “Só agora, depois de morto entendo o que ele queria dizer. Assim era o meu
irmão Pérsio em 1944, […]. Ih, o pai vem chegando e, se a mãe contar para ele que levei duas
horas para vir com as compras da venda, ele me tira o couro.” (p. 33). Novamente, as noções
de tempo e espaço são manipuladas ao bel-prazer da criatividade e da vontade do autor em ver
sua narrativa não se prender às esquemas narrativos estreitos. De qual tempo fala Ulisses
quando usa o advérbio agora? Do tempo além da vida humana, o importante é pensar o
rendimento dessa condição para o ato narrativo. No trecho acima, até aos colchetes, a fala do
narrador nos faz imaginá- lo num tempo-lugar só acessível quando se morre; já na segunda
metade da declaração, o narrador situa-se instantaneamente em 1944, correndo para casa.
O ficcionista tem uma grande liberdade de criação, podendo constituir seus
personagens à revelia dos limites de tempo da vida humana. Na literatura brasileira, Machado
de Assis traz como protagonista de seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas, um
defunto que é autor e narrador de sua narrativa. Brás Cubas “vive” na eternidade, um lugar e
um tempo além da total compreensão humana, essa existência sobrenatural lhe confere uma
condição e um foco de visão sui generis. Essas criações podem ser encaradas como uma
“variação imaginativa sobre o tempo”, segundo a teorização do filósofo Paul Ricoeur (1997,
p. 217), para quem as narrativas ficcionais criam suas próprias “experiências ficcionais do
tempo”, como “solução das aporias da temporalidade tais como elas são reveladas pela
fenomenologia”. Pelo fato de a ficção não estar presa aos limites do tempo cronológico, “a
experiência temporal de tal herói não precisa ser referida ao único sistema de datação e ao
único quadro de todas as datas possíveis, cujo mapa é constituído pelo calendário” (Idem, p.
218). Dentro dessa perspectiva, os temas da eternidade e da morte surgem como exemplos de
variação imaginativa sobre a questão mais ampla do tempo, gerando experiências variadas em
torno da temática. As convenções instauradas por Fausto Wolff – e toda obra literária tem as
suas – permitem uma maior mobilidade de seus narradores no espaço, mas principalmente, no
tempo. Em outra passagem, o mesmo recurso e jogo de palavras são usados para confundir o
leitor. O capítulo LIV Marjorie: 1980, traz como narradora uma mulher da classe alta
carioca, que conta o longo caso de amor com Pérsio, no começo de 1963, quando o
protagonista tinha apenas vinte e três anos. Ao final do relato, ela declara:
Amei muito esse homem. Tanto que estou aqui, agora, em Marbella tomando uísque com a minha ex-cunhada, irmã do diplomata. Ela foi ao banheiro. Quando voltar à sala me encontrará morta. Crise de asma seguida de colapso cardíaco. Amanhã alguém ligará para a redação do Pasquim, no Rio de Janeiro, e dirá ao Pérsio: “Sua mulher morreu.”. (p. 398).
Onisciente, Marjorie informa a sua morte, ocorrida minutos depois de anunciar que
morreria, diferente de Ulisses e de outros, que anunciam com antecedência de dias, meses ou
anos, como Thibaldo e o velho Hermano Malokinsky que falam do ano de 1944: “Só vou
morrer daqui uns trinta e cinco anos em Porto Alegre.” (p. 23), diz o primeiro. Já o velho
avisa: “Vou morrer em 1970 com noventa anos.” (p. 24). Otávio, em 1943 declara: “Eu, por
exemplo, só morri em 1978, num hospital em Porto Alegre” (p. 19). Isso indica a preocupação
do autor em trabalhar o recurso variando a sua apresentação. A situação relatada por Marjorie
tenta sincronizar o ato de morrer e a narração desse ato, a narradora leva o leitor até o
momento em que ele se deu, para acompanhá- lo de perto, passo-a-passo. A rigor, a narradora
faz seu relato viva, como fazem questão de mostrar as expressões adverbiais que a
presentificam na cena; mas o relato prossegue com mais um parágrafo onde ela descreve seu
funeral, entre outras coisas, entrando assim na condição de narradora morta.
Também somente no final descobrimos, sem margem para erro, que o narrador do
capítulo cinquenta e quatro, Glênio: 1995, é um narrador morto. Mas isso é pouco, ele é um
“verdadeiro” fantasma nos moldes imaginados pelo senso comum e que a indústria
cinematográfica tornou célebre com filmes em que pessoas mortas surgem na vida dos vivos,
sem que estes possam notá-los. No começo do capítulo lemos: “agora estou sentado numa
poltrona do estúdio do Pérsio, lendo o último livro do Rubem Fonseca, enquanto a mulher
dele, Bárbara, tenta acionar a Internet” (p. 285). Logo após, Pérsio e sua mulher conversam
sobre Glênio como se ele não estivesse por perto, prendendo ainda mais a nossa atenção e
fazendo a nossa imaginação trabalhar mais. Ao fim de sua narração, descobrimos o que ele é:
Passei ontem pela casa dele, […] Nem ele, nem a sua mulher me viram, pois morri de cirrose há seis anos e, enquanto não receber as minhas asas, tenho que visitar os que resistem. […] O que fazer se só os cães, os gatos, os bebês e os loucos podem nos ouvir? Os vivos, como estão mortos, não respondem. (p. 294).
O narrador, um grande amigo de Pérsio desde os seus primeiros passos no jornalismo,
está acompanhando o protagonista, zelando por ele como um anjo da guarda sem asas. Como
podemos ver, o autor se delicia variando e incrementando um mesmo recurso, recorrendo até
a essa imagem do ser invisível a certos olhos. Sua atuação, visitar os que resistem à morte e
seu desejo de aconselhar e confortar ao amigo, são decorrências da “mudança de lado” pela
qual passou. Ulisses, como vimos, tem a mesma vontade. No tempo pós-vida, o sujeito acha-
se numa condição privilegiada. Otávio coloca a questão com franqueza: “Agora que eu estou
morto, posso dizer algumas coisas, pois os mortos podem não saber de tudo, mas sabem mais
do que os vivos.” (p. 374). A morte surge como um veículo que traz certas qualidades
ausentes do indivíduo quando vivo, no caso, traz pelo menos um pouco mais de
conhecimento. Essas palavras também remetem ao Brás Cubas machadiano, que se sabe
despojado das pressões e normas de conduta dos vivos, experimentando uma liberação do
olhar e da voz, por isso fala de si e dos outros com desdém e cinismo.
Os narradores mortos deixam transparecer a visão altaneira e distanciada que têm
sobre a vida humana, eles encaram as suas vidas e a dos outros como se as vissem em sua
totalidade. Diferentemente de Brás Cubas, em À mão esquerda, o autor preferiu dotar de
melancolia o olhar desses narradores. Diz Ulisses em relação ao irmão: “me dói ver um guri
tão inteligente sofrer tanto e se meter em tantas encrencas com mais de cinquenta anos nas
costas” (p. 13). Atentemos para o modo com que se refere ao homem adulto, guri, o olhar de
irmão mais velho se intensifica com a condição do narrador-morto. Glênio também expõe a
situação privilegiada em que “vive”, o foco de suas palavras era dirigido a Pérsio, mas
amplia-se ao trabalhar com a ideia de humanidade, lamentando a ignorância do homem em
não saber “que a confissão do erro dói o tempo de uma picada de injeção e que seus efeitos
benéficos são bem mais duradouros, muitos crimes teriam sido evitados! Por outro lado, só
posso dizer estas coisas com tanta calma agora porque estou numa situação especial.” (p.
287).
Esse olhar melancólico também se manifesta na rememoração de Theodoro, outro
narrador morto, sobre o tratamento que dava ao seu filho mais novo, o que mais apanhou dele:
“Hoje sei que não batia nele, mas na vida desgraçada que sempre levei, mas agora é tarde.”. A
morte é lugar/tempo de reflexão sobre si e oportunidade de esclarecimento e compreensão:
“Hoje compreendo que o Pérsio não queria ser criança, não se dava bem como criança” (p.
339). Sem declarar diretamente, o narrador deixa clara a impotência dessa revisão diante do
poder avassalador da morte, com isso, é colocado indiretamente ao leitor, que reflita e veja
com cuidado os passos que dá em vida.
O aspecto dialógico dos discursos de À mão esquerda é exacerbado em alguns casos.
O quarto capítulo, Thibaldo: 1944, traz o tio do protagonista rememorando o período em que
ele e seu irmão, Theodoro, viveram na casa de um tio materno. Irmão de mais oito, o
personagem perdeu a mãe quando tinha apenas nove anos. O pai, João, sem condições de
cuidar dos nove filhos, os distribuiu aos parentes. Thibaldo e Theodoro foram parar com o tio
Armindo. Experiência conhecida por muitos, que não raro também compartilham da mesma
opinião do narrador: “não tem coisa mais triste, mais desgraçada, mais doída do que viver de
favor em casa de parente.” (p. 20). Vivendo com o tio, “Era só trabalho e surra, trabalho e
surra, trabalho e surra.” (Idem). O trabalho era na roça, das cinco da manhã até o sol se pôr,
com uma pausa ao meio dia para comer. As surras vinham do tio que batia neles porque
Thibaldo batera em seu filho que, por sua vez, havia batido em Theodoro.
Suas palavras prenhes de significados e aspectos nos fazem querer citar todo o
capítulo, a fim de dar a conhecer ao leitor esse discurso embalado pela emoção e por um
pouco de bebida alcoólica, já que seu enunciador se encontra num bar, bebendo com outras
pessoas que escutam sua história; incluindo aí o leitor. Na fala de Thibaldo, a narrativa nos
joga em seu mundo, somos ouvintes e expectadores de suas histórias: “Vou dizer uma coisa
para vocês que estão aqui bebendo comigo neste fim de mundo” (Idem). À mão esquerda
parece fazer força para nos presentificar no mundo criado para seus personagens : vocês, aqui,
neste fim de mundo, são expressões que denotam o esforço para que o leitor entre na história,
sente-se ao lado do personagem, beba com ele e lhe escute. Mais à frente, ele diz: “Tô
chorando sim, e daí? Alguém tem alguma coisa com isso? […] Eu tô aqui contando uma
história que me parte o coração e o sacana começa a rir!” (p. 22). “Concretizando” a situação
enunciativa, alguém do público que assistia à narração do personagem, ri de sua história,
provocando a ira de Thibaldo, sempre disposto a brigar. No tocante ao registro coloquial,
Fausto Wolff condiciona o modo de falar de seus personagens com a condição deles,
reforçando a verossimilhança do relato. O período na casa do tio durou uns cinco anos e teve
momentos em que a intensidade da comoção é levada ao máximo, tanto do personagem,
quanto do leitor:
Uma noite de inverno em que o minuano parecia querer cortar as orelhas da gente de tanto frio, ele, que devia ter então uns sete anos, levantou os olhinhos pra mim e perguntou, vozinha triste: “Por que é que isto está acontecendo com a gente?” Rapaz, me deu uma agonia por dentro, como se tivesse vidro quebrado no estômago. Me senti burro, infeliz, miserável e triste. Eu não sabia por que aquilo estava acontecendo com a gente! […] Que Deus ruim é esse que faz uma moça bonita como a minha mãe se casar com um homem bonito como o meu pai, ter noves filhos, para depois matá-la? Por que faz nascer uma criança com o nome de Querido
de Deus para depois deixar ele apanhar toda noite, sem um beijo, sem um carinho, sem uma lágrima morna de mulher para confortar a cabecinha dele? (p. 21-22).
O narrador está em 1944, com cerca de trinta e cinco anos, mas o tempo não apagou
de sua memória os eventos ocorridos na infância. A cena é evocada com precisão, destacando
o detalhe dos olhos que se levantam, provavelmente, de debaixo de um cobertor. Some-se a
este, o detalhe da voz triste de uma criança maltratada e carente, na verdade, nem uma voz,
mas sim, uma vozinha, um lamúrio. A passagem está envolta numa palpável atmosfera de
comoção. Para além dos sentimentos de agonia, infelicidade e tristeza, da sensação de burrice
e da condição miserável, deve ser destacada a ânsia por compreensão dessa condição. No
processo, o personagem projeta a si a seu irmão como peças largadas e desamparadas, no
meio de um cosmos controlado por um Deus, o responsável pelo caos de suas vidas.
Demonstrando nenhum temor religioso, Thibaldo atribui a ele a morte contingente de sua mãe
e a ironia amarga que o nome de seu irmão sustenta diante da situação em que viviam.
No capítulo seguinte, Vô Hermano: 1944, o narrador também se dirige ao leitor, e no
caso, a palavra leitor é totalmente apropriada: “Embora vocês estejam lendo o que digo em
português, estou mesmo falando em alemão da Pomerânia, que é de onde vieram meu avô,
minha avó e meu pai.” (p. 24). O avô do protagonista tem consciência de que sua narração
está no papel e que nós estamos lendo-a; ao mesmo tempo, deixa claro que está falando e não
escrevendo, tornando a situação de elocução ainda mais embaralhada. À frente, ele indaga e
responde: “Se sou feliz? Não, não sou. Sou um homem triste, de mãos calosas e alma vazia.”
(p. 25). As palavras indicam que ele dialoga com um outro, que depois de ouvir boa parte de
seu relato, indaga a respeito de sua felicidade.
Diante do que ele contou, a indagação é bem colocada. Hermano fala da imigração
europeia para o Brasil, ocorrida no século dezenove, da qual seu avô e seu pai fizeram parte,
para fugir da decadência da família na Europa, aceitando o desafio de desbravar as terras
brasileiras, numa aventura que resultou em grande decepção para os colonos. A rememoração
em À mão esquerda se presta ainda à tarefa de trazer a história dos pais e avós, marcada por
acontecimentos sócio-políticos. Na maioria das vezes, são pequenos comentários críticos
sobre um dado contexto histórico, outras, como é caso citado, a exposição é mais abrangente,
formando um panorama da questão. Nesse ponto, a problemática dos imigrantes, através da
memória e do testemunho de seus componentes, comparece com mais força. Quem primeiro
fala do assunto é Rogério, tio do protagonista, em conversa com Otávio:
Os Malokinsky chegaram ao Rio Grande do Sul pouco depois dos von Traurigzeit, há quase cem anos. Os von Traurigzeit vieram da Holanda por razões que desconheço, mas os Malokinsky vieram de uma região da Alemanha próxima à fronteira com a Polônia, lugar pobre. Já saíram de lá camponeses broncos e viajaram para cá porque o imperador prometeu mundos e fundos para os colonos que viessem desbravar essas terras do Rio Grande. Só que não cumpriu a promessa. Deixou a alemoada com uma mão na frente e outra atrás, tendo de brigar com índios para conquistar um pedacinho de chão. Sem ajuda do governo, se isolaram em pequenas vilas e fundaram suas próprias comunidades, própria igreja, própria escola. (p. 18).
Rogério sintetiza o problema pelo qual passaram os imigrantes, seu relato é direto, não
dá muita brecha para que a subjetividade entre, ocupando-se em passar informações objetivas
e preciosas. Seus antepassados vieram para cá atraídos pelas promessas do governo brasileiro
da época, que efetivamente instaurou uma política de imigração, enviando agentes à Europa
para cooptar famílias a fim de formar um contingente humano para colonizar a região Sul do
país. Rogério também denuncia o descaso governamental para com os imigrantes, gente
pobre, ávida de ajuda, para quem promessas de mundos e fundos soam como a oportunidade
de sair da pobreza e conquistar a felicidade. Se na Europa enfrentaram disputas religiosas e
políticas, pegando inclusive em armas e indo à guerra, na nova terra os colonos também se
lançaram na luta pela terra contra os indígenas, igualmente vítimas históricas do processo
colonizador que marcou a história do Brasil. O avô paterno de Pérsio, João von Traurigzeit,
relembrando a vinda de seus antepassados para o país, em 1824, fornece outros detalhes desse
processo:
Nessa época, mais ou menos, apareceu em Amsterdã um funcionário do recém-criado Império do Brasil querendo colonos para desbravar o Rio Grande do Sul […]. Dizia o homem que o Império do Brasil doava a cada imigrante um lote de setenta hectares, além de fornecer ferramentas agrícolas, sementes e subsídio em dinheiro. (p. 39).
Tais informações indicam que Fausto Wolff empenhou-se em recuperar, por meio de
sua ficção, os eventos que compõem parte da história política do Brasil. De fato, o ano de
1824 assinalou o início de uma imigração em massa de alemães para a região sul do país, a
fim de ocupar as terras vazias da região. Como o país havia se tornado independente de
Portugal, os portugueses não eram opção do governo, que optou por imigrantes de origem
germânica. Colonos foram recrutados e daquele ano em diante, milhares de europeus
desembarcaram nos portos brasileiros com o desejo de construírem uma nova vida em terras
brasileiras. Com Hermano teremos contato mais perto com essa história, pois a fala deste
narrador se reveste de uma atmosfera emotiva que sensibiliza o ouvinte, convidando-o a
escutar suas palavras com atenção:
Meu nome é Hermano Malokinsky e não é verdade o que vocês ouviram dizer que somos broncos e estúpidos. Somos lavradores e caímos numa armadilha. Por causa do nome polonês já éramos considerados estrangeiros na Alemanha, onde a família viveu séculos. Graças à sanha dos príncipes, às guerras entre eles, aos impostos escorchantes, ficamos cada vez mais pobres. Perdemos tantas terras que o dote recebido por uma tia que ficou na Europa foi uma única árvore frutífera. (p. 24).
Manifestando a liberdade e a autonomia características dos narradores, o velho
lavrador inicia contradizendo de maneira explícita o que seu genro, Rogério, disse no capítulo
anterior. Sublinhamos o uso da primeira pessoa do plural, indicando que ele se insere
diretamente nos eventos que conta, ele faz parte da odisseia da família, mesmo que não tenha
participado da viagem de seus familiares pelo Atlântico e não tenha vivido os primeiros anos
após a chegada, ocorrida na década de 1850, quando não era nascido. Ele aponta a causa da
pobreza progressiva da família, vítima da vontade de poder daqueles que governavam os
lugares onde eles moravam. A história dessa família é a história dos habitantes dos ducados e
principados como o de Traurigzeit, pessoas sem direitos e sem opinião, sofrendo as
consequências das ações de seus governantes. O passo errado dado por um, traz dor e
sofrimento para muitos que, quando não perdem a vida guerreando a mando de seus líderes,
perdem o pouco que possuem para os impostos que financiam a guerra e o luxo dos monarcas.
No caso dos Malokinsky, o nome já lhes trazia um prejuízo social, o estigma social do
estrangeiro, fazendo com que os demais habitantes da antiga terra os vissem como invasores,
mesmo vivendo há tempos no lugar. Como os Traurigzeit, os Malokinsky também entraram
em decadência econômica, eis o resultado:
Para não ser obrigado a ir trabalhar quatorze, dezesseis horas por dia numa fábrica, meu avô vendeu o que restava das terras em 1850. Fez o que dizia a canção que os emigrantes cantavam no navio que atravessava o Atlântico em direção ao paraíso: “Procurar novas paragens onde há ouro como areia. Um lugar chamado Brasil”. Quando minha família chegou aqui, onde estavam as terras prometidas? Onde as escolas? Onde os armazéns? Havia índios, peste, miséria e conosco vieram também marginais, bandidos, prostitutas, bêbados, presidiários, gente já estigmatizada na Europa. As terras pelas quais pagamos já estavam em outras mãos. Sem falar a língua, fomos vítimas de doutores vigaristas. Vi meu avô e meu pai morrerem no cabo da enxada, viajando de um lugar para outro, cada vez mais no meio do mato. […] Fiz casa para mim e para meu seis filhos, mas não posso dizer que estou satisfeito, pois a cultura que meu avô transmitiu ao meu pai e a que meu pai transmitiu para mim não consegui transmitir aos meus filhos. (p. 24-25).
É feita menção também à realidade histórica que a Revolução Industrial impôs, com o
surgimento de fábricas onde as pessoas se amontoavam para trabalhar num ambiente
degradante por boa parte do dia. Como camponeses que eram, tal realidade talvez fosse ainda
mais absurda para os antepassados de Hermano, e, sem a terra de que precisavam para viver,
fica fácil entender a decisão de aventurar-se numa nova terra. Nesse ponto, um dado novo nos
é acrescentado pelo narrador: a imagem do Brasil como terra prometida, como paraíso a ser
conquistado, embolava os sonhos de prosperidade daquela gente carente. O Brasil visto como
paraíso não foi invenção da época, que apenas reacendeu uma imagem de longa data no
imaginário europeu, pois desde a Carta de Pero Vaz de Caminha o país era retratado como um
Éden perdido, a terra prometida em que se plantando tudo dá. O fato é que esse imaginário foi
mobilizado para encher os olhos dos europeus, fazendo-os sonhar com dias melhores, em que
se viam como donos de vastas extensões de uma terra fértil. A música mencionada pelo
narrador fazia parte da estratégia propagandista da empresa migratória daquele então, que se
valia principalmente de publicações nos jornais para arregimentar indivíduos para o trabalho
em solo brasileiro.
Com um patente tom melancólico encontrado somente nas próprias vítimas, Hermano,
relata a decepção de seus familiares ao constatarem que haviam caído numa armadilha. As
indagações dirigidas aos leitores são marcas textuais do rancor deixado por essa decepção,
somada à humilhação de ter vindo junto com pessoas cuja moral não se coadunavam com a
deles, possivelmente também sendo alvos do preconceito dirigidos a essas pessoas. Por mais
que o testemunho seja fortemente emotivo e resuma em poucas linhas o drama vivido pelos
colonos alemães, é impossível para nós leitores que nunca passamos por tal situação, ter a
ideia exata do que é ser estrangeiro, não dominar a língua do novo país, não possuir a terra
pela qual pagou, não ter emprego e nem dinheiro.
O jeito foi fazer a única coisa que sabiam: trabalhar, lançar-se com a força e a
determinação do povo milenar, guerreiro e viajante, do qual são descendentes. Como saída
para superar as dificuldades advindas do descaso governamental e a hostilidade dos que aqui
residiam, os colonos se embrenharam mato à dentro, fundaram cidades e construíram suas
residências, bem como as igrejas e as escolas que esperavam encontrar. Por fim, há ainda uma
última mágoa dentro do coração do velho lavrador: não ter conseguido transmitir aos filhos a
cultura herdada de seu pai e de seu avô, ver definhar uma tradição da qual é parte. Essa
questão é importante, sobretudo para os povos de origem europeia, tanto é verdade que, em
muitas cidades brasileiras colonizadas por imigrantes do Velho Continente, podem ser
encontrados centros e casas onde a cultura de origem ganha um espaço próprio, além dos
ensinamentos intrafamiliares e das datas e festejos comemorativos. As consequências do
choque cultural se manifestam ainda de outra maneira: “Fomos hostilizados pelos alemães
que chegaram aqui primeiro, pelos portugueses que já estavam aqui, mas nunca vi meu pai se
queixar.” (p. 25). De certo, as circunstâncias atrozes em que todos viviam alimentava um
sentimento de desconfiança constante e temor pela própria sobrevivência.
Somente na velhice, Hermano teve o prazer de ter a posse da terra na qual morava, que
significava muito mais do que um pedaço de chão para chamar de seu: “Só agora posso dizer
que transformei em realidade o sonho de meu pai e do meu avô: ter terras onde plantar. A
terra é a pátria do camponês. Aqui neste Brasil tem tanta terra, mas parece que toda ela tem
dono. Pois agora sou dono com papel e tudo.” (Idem). Ainda hoje a questão agrária origina
conflitos e gera mortes no país; ainda hoje o Brasil não trata seus habitantes com o respeito
merecido. Uns, à semelhança de Hermano, somente no fim da vida alcançam a estabilidade
almejada; outros morrem sonhando como pai e o avô do personagem; e ainda há outros, aos
quais não é dado nem o prazer do sonho. O velho lavrador também não esconde o que nutre
pelo país: “Sou brasileiro e queria tanto amar este país. Queria tanto que este país me amasse
que cheguei a pensar em dar o nome de Iracema a uma das minhas filhas por causa da
tradução alemã de um romance bonito de José de Alencar. É anagrama de América.” (Idem).
Ele queria amar sem amarguras, mas o sentimento de não ser aceito era muito forte. As
referências a José de Alencar e ao seu romance não são gratuitas, pois este também trata do
relacionamento entre o estrangeiro e o autóctone.
O que ambos os personagens contam, muito mais evidente na narração de Hermano,
vem da memória, não dos fatos em si, pois não foram testemunhas oculares, mas da narração
sobre os fatos que a eles foi feita. Este narrador mesmo sublinha que recebeu de seu pai e de
seu avô a herança cultural europeia, em mais uma referência à cadeia de transmissão cultural
já apontada aqui. Vemos a importância da narração para a formação da memória que, em
tempos antigos, era a responsável por guardar as histórias dos antepassados, transmitidas
oralmente de geração para geração: “Eu me lembro do que não vi porque me contaram. Ao
lembrar, re-atualizo o passado, vejo, ‘historío’ o que outros viram e me testemunharam”
(BOSI, 1992, p. 28).
Refletindo sobre a questão temporal, Alfredo Bosi sublinha com clareza o poder que a
memória possui ao ensejar a reversibilidade do tempo passado através de formas variadas, tais
como, o culto aos mortos, os rituais religiosos ou, no campo artístico, a reapropriação de
estéticas passadas. Tudo isso passando pela capacidade da linguagem de produzir
significados, de evocar o “outro” e trazê- lo para perto daquele que rememora. Remetendo à
raiz indo-europeia comum das palavras visão, ideia e história, o crítico também assinala a
aproximação entre a memória, a história e o testemunho, de maneira radical: podemos lembrar
daquilo que não fomos testemunhas oculares porque o fato nos foi contado, a narração do
outro permite acessar o passado. Dessa forma, através do relato subjetivo e rememorativo, o
romance recupera questões históricas que fazem parte do passado político do país e envolvem
dramas coletivos, conferindo ao testemunho também o estatuto de discurso histórico. Quanto
às questões apontadas referentes à narração e aos narradores, são procedimentos que
intensificam a capacidade narrativa dos personagens, ampliando o horizonte que podem
abordar. Sendo oniscientes, o futuro está ao alcance deles, podendo subitamente ligá- lo ao
passado e vice-versa e na condição de mortos, paira sobre suas falas uma dimensão sobre-
humana, atemporal. São procedimentos que ressaltam ainda mais o gesto narrativo e ampliam
o horizonte de visão dos testemunhos.
IV – A PERFORMANCE DA ESCRITA EM À MÃO ESQUERDA A metalinguagem é expediente recorrente na literatura de Fausto Wolff, mostrando a
imagem de um autor que se delicia em ver a obra literária falar de si mesma. Nesse romance,
contudo, o recurso foi utilizado de maneira ostensiva, configurando um enredo paralelo à
história dos Traurigzeit. O termo performance é empregado aqui na acepção de atuação,
desempenho, para designar a verdadeira exaltação do gesto de escrita que é empreendida
dentro do romance. Consoante a isso, olhamos a atuação do Narrador como o responsável de
ordenar a construção da história dos personagens. Já a longa exposição autorreferencial,
tratamos em termos de uma história sobre a construção da narrativa, englobando os momentos
do Autor em seu trabalho de criação da obra.
O Narrador coringa de À mão esquerda Duas figuras ocupam todo o cenário autorrepresentativo : o Narrador e o Autor. São
duas instâncias pertencentes ao processo de criação literária trazidas para dentro do universo
ficcional de À mão esquerda: o Autor é de fato o criador da história que conhecemos, é o
escritor em seu trabalho de construção literária, enquanto o Narrador é a voz criada por ele
para ordenar e apresentar a história.
Como o rumor de alguns dramas históricos de Shakespeare, como o coringa de certas peças de Brecht ou o diretor de cena de Nossa Cidade, de Thornton Wilder, sou o narrador. Sou produto da falta de talento do autor que não sabe colocar na boca de seus personagens camponeses, histórias de reis, príncipes e duques mortos na memória dos seus descendentes. Entrarei nesta história sempre que algum acontecimento – fato ou ficção – tiver de ser narrado imparcialmente, insensível a risos ou lágrimas. (p. 26).
A passagem acima, situada no sexto capítulo, Narrador: 1995, é a aparição inicial
desse personagem. Fica aí sublinhada a intenção do romance de recuperar o passado histórico
dos personagens situados no século XX, e mais adiante, que tal recuperação se dará pelas vias
da memória deles, deixando subentendido que esse viés não é suficiente para a concretização
da tarefa, daí a presença de um narrador onisciente, que se faz visível e todo-poderoso e ao
mesmo tempo, é um personagem. Sua importância dentro da construção do romance tem
grandes proporções e ele narra dez capítulos, a mesma quantidade que Pérsio, cabendo a ele a
tarefa de encerrar a narração sobre a trajetória do protagonista, não sem antes “falar de
amenidades”, como é de seu feitio, retardando o final.
No excerto, ele fala de si e fornece elementos para tecermos alguns comentários sobre
o que ele é, pois sua gênese metalinguística é tal que ele mesmo nos dá pistas para isso, por
meio das analogias que evoca e que devem ser comentadas. O “rumor” é um personagem
presente em alguns dos chamados “dramas históricos”, de William Shakespeare, nos quais, o
autor aborda a história da monarquia inglesa desde o rei Juan até Henrique VIII. Esse
personagem é o apresentador do drama, tendo a função primordial de introduzir a história; são
dele as primeiras palavras da peça. Quanto ao “diretor de cena”, é um personagem da peça
teatral Nossa cidade, do dramaturgo norte-americano Thornton Wilder (1897-1975). Escrita
em 1938, a obra retrata o dia-a-dia de uma pequena cidade no dealbar do século XX, por meio
da narração de um dos seus moradores, exatamente o diretor de cena, que conta a vida dos
seus habitantes, valendo-se da onisciência que lhe é atributo.
Já o “coringa” a que se refere é um experimento teatral de Augusto Boal (1931-2009),
criado a partir da proposta estética do Teatro Épico, de Bertolt Brecht (1898-1956). Tendo
outros procedimentos como semelhantes na história do teatro, o “sistema-coringa”, como é
chamado pelo dramaturgo, foi instaurado com o objetivo de apresentar e analisar a matéria
encenada. Em Teatro do oprimido e outras poéticas políticas, Boal esclarece:
O primeiro problema a ser resolvido consiste em apresentar, dentro do próprio espetáculo, a peça e sua análise.[…]
A necessidade de analisar o texto e revelar essa análise à plateia; de enfocar a ação segundo uma determinada e preestabelecida perspectiva e só dessa; de mostrar o ponto de vista do autor ou o dos recriadores – essa necessidade sempre existiu e sempre foi respondida diversamente.
O monólogo, em geral, serve para oferecer à plateia um pris ma através do qual possa entender a totalidade dos conflitos do texto. (BOAL, 2008, p. 266).
Estas são algumas metas que o dramaturgo definiu para a sua criação. O coringa é uma
voz privilegiada dentro da prática teatral, pois conhece a história e detém a responsabilidade
de falar sobre ela, questão que o dramaturgo coloca como necessidade. Ele monologa com o
objetivo de fornecer ao leitor um ponto de vista sobre a história, a fim de que este a entenda
melhor e visando a conscientização do público. Este procedimento está na base da criação do
Narrador, cuja atuação bate com as metas do coringa teatral, daí o chamarmos de Narrador-
coringa. No romance, a “paternidade” do coringa é atribuída a Brecht, no entanto, a
designação foi dada pelo dramaturgo brasileiro; talvez Fausto Wolff tenha apenas se valido da
designação dada por um, para referir-se à ideia do outro, haja vista a afinidade entre as ideias,
pois Fausto Wolff sempre teve uma relação íntima com o teatro, tendo sido ator, roteirista,
tradutor e crítico. As três figuras mantém uma explícita afinidade de atuação, são vozes
inseridas no texto, podendo narrar, comentar, explicar e avaliar a história que se desenrola.
As analogias também deixam no horizonte de expectativa que a utilização de um
personagem em comunhão com elas é um procedimento encenativo, dentro do que o próprio
Narrador designa em certo momento como “teatro forçado”, em alusão ao processo criador da
obra, particularmente, à faculdade de escolher os personagens e determinar suas falas. Com
isso, não queremos dizer que se trata de mero jogo de cena, puro espetáculo desprovido de
significado ou, no jargão contemporâneo, mais uma simulação, porém, que sua presença é
resultado da vontade do seu criador.
O Narrador de À mão esquerda tem sua existência consagrada a um pressuposto: ele é
a voz por excelência incumbida de “cuidar” da matéria narrada e da narração. De forma
irônica e desabusada, ele se apresenta como produto da falta de talento do autor para criar
personagens mais consistentes e capazes de falarem com autonomia. Ele existe então para
suprir essa falta e em função do processo de condução da narrativa, tratando esta como se
fosse obra sua, o que em parte é verdade. Uma vez que os narradores em geral existem para
cumprir essa tarefa, o que distingue o narrador wolffiano é a explicitação e a exacerbação de
tal tarefa: “Entrarei nesta história”, diz ele na citação, “sempre que algum acontecimento –
fato ou ficção – tiver de ser narrado imparcialmente, insensível a risos ou lágrimas”. Ele
marca com clareza seu momento de aparecer no texto, quando a narração exigir seriedade e
convida o leitor a permanecer no nível de uma linguagem mais objetiva. Contudo, colocada
como um termo de conduta, esse tipo de declaração deve ser posta em suspeita por um leitor
experiente, justamente por se apresentar desse jeito e por vir de uma voz cuja existência
contraria o estatuto tradicional do narrador.
Ela dá margem à desconfiança, pois vem de uma voz irônica. A respeito do advérbio
imparcialmente, por exemplo, utilizado para descrever sua atuação, tudo leva a crer que está
envolto numa fina ironia. A ideia de imparcialidade é uma questão muito cara aos jornalistas,
que, em geral, se declaram imparciais no exercício profissional. Na contra-mão dessa atitude,
o autor resolveu a questão de outro modo, afinando seu trabalho como jornalista no diapasão
de sua ideologia de esquerda. No texto “Minha bela profissão!”, que abre o seu livro de
crônicas A imprensa livre de Fausto Wolff, lemos logo no segundo parágrafo: “Houve um
tempo em que o jornalismo foi parcialmente do povo. Enquanto o poder brigava podia-se
dizer a verdade.” (2004, p. 11). A nostalgia é visível, o autor lamenta o abandono da prática
profissional, que se colocava do lado da maioria da população, e discorre sobre um quadro
histórico de mudanças de opiniões e atitudes por parte de pessoas, que, antes, eram críticas do
poder constituído, e, com o passar do tempo, se tornaram cúmplices desse mesmo poder. “Isso
tudo – diz ele – em nome de uma […] maior elegância, de uma maior eqüidistância, de uma
falsa imparcialidade. Digo falsa porque ninguém pode ser imparcial entre um banqueiro
ladrão e um bancário explorado” (Idem, p. 12). Ao final do texto, reivindicando um
jornalismo de fato combativo, Wolff declara: “Não é difícil como parece. Basta que os
jornalistas deixem de ser ‘imparciais ’ e passem a tratar os leitores como adultos e não como
moleques sem opinião.” (Idem, p. 13). A “imparcialidade” é, assim, uma máscara de
apresentação, no fundo, serve a interesses escusos.
Ao fazer o Narrador declarar-se imparcial, o autor está brincando ironicamente com a
questão, algo como uma pista falsa para incrementar a imagem de bufão que seu personagem
possui. Sobre essa índole brincalhona, a passagem que abre o quadragésimo capítulo,
intitulado Fante: 610,85, é emblemática. Ele reivindica em termos discursivos a sua
independência, como dono de um discurso apelativo, provocador e incisivo, como é de seu
costume quando ocupa o centro da cena:
Não comecem a implicar com a data deste capítulo. Quem é do ramo, sabe que Gogol usou este expediente para demonstrar ao leitor que o seu ele-personagem estava ficando maluco. O número que está no lugar do ano aí em cima é a prestação que a mulher do autor terá que pagar mensalmente por um novo carro que pretende comprar, e o Fante sou eu, o velho narrador, que me rebelei com a não definição do meu caráter. Como ontem estivemos relendo rapidamente algumas páginas de Ask the Dust, do John Fante, um autor de quem ambos gostamos porque consegue transmitir suas pequenas alegrias e sofrimentos de modo a fazer com que acreditemos, sugeri que me batizasse de Fante a fim de que a cada dois, três capítulos o leitor não tivesse que se defrontar com a palavra Narrador que faz eu me sentir tão clean como um banheiro de senhoras em restaurante de luxo. […] o Fante pode ser aquele ambicioso que não vê a hora de tomar o lugar do autor, ou seja, a criatura que se rebela contra o criador, Prometeu desafiando os deuses, sendo desafiado pelos homens e tendo o seu fígado arruinado por doses gigantescas de batida de maracujá, por exemplo. Pode também ser El Fante del Castilho, que na Inglaterra acabou virando o bairro de Elephant Castle. De modo que, recapitulando, lá em cima, onde se lê 610,85 leia -se 1995 e quem quiser pode ler Narrador em vez de Fante. Por quê? Por quê? Por quê? Esse é um dos grandes males do mundo e da sua pobre literatura. Todos exigem um por quê? e assim que se dão por satisfeitos esquecem logo do porquê (p. 245).
O tom é de confronto deliberado e suas intromissões funcionam como um recurso
técnico de uma prosa espirituosa, sempre à procura de efeitos imediatos, deixando entrever as
marcas de um autor também espirituoso, que não se roga em mostrar as grandes linhas
literárias que compõem o seu texto. A intenção do Narrador é mostrar sua superioridade,
sendo inseparável do risível; essa passagem com gracinhas, provocações, explicitações e
cacoetes de dicção, constitui uma característica da escrita de Fausto Wolff e é matéria
explorada ao longo do romance. Tomar a prestação do possível novo carro da esposa para
constituir o título do capítulo é fruto desse humor, que desdém do convencional e se vale da
comparação com o escritor russo de origem ucraniana Nikolai Gogol, para se defender de
possíveis críticas e exemplificar seu argumento de autoridade, iniciado por Quem é do ramo.
O desdém se volta até mesmo contra a convenção instituída internamente, referente à
datação temporal dos capítulos, que desde o início do romance recebem uma data anual.
Portanto, trata-se de uma regra de composição da obra obedecida até o trigésimo nono
capítulo e transgredida no quadragésimo. A despreocupação do Narrador ao comentar a
substituição da data pela prestação do carro, deixa o leitor livre para considerar a designação
que mais lhe aprouver: quem quiser pode ler Narrador em vez de Fante. Isto é mais um
exemplo de que a representação flui de acordo com a vontade desse Narrador tão
voluntarioso, piadista e disposto a causar infrações literárias a fim de despertar
constantemente a curiosidade e a atenção do leitor. Entretanto, o desdém vai um pouco além,
tocando indiretamente na crítica literária, pois a esta cabe a tarefa de falar sobre a produção
literária, sendo ela quem principalmente indaga Por quê?, exigindo explicações sobre esse ou
aquele procedimento, censurando, com ou sem razão, autores e obras, e talvez até
contribuindo, paradoxalmente, para a produção de uma pobre literatura. Em suma, as
palavras do Narrador são uma crítica à postura, por vezes, impertinente da crítica
especializada e podem ser encaradas como uma defesa em favor da liberdade de estilo.
Sua postura irreverente, afinada e adequada ao espírito humorístico do romance, se
volta para falar de si e da sua definição enquanto narrador autônomo e inoportuno que não se
satisfaz com o papel que lhe é conferido pelo estatuto ficcional. Ele, de fato, quer escapar ao
seu autor. É evidente que nessa discussão, há a estratégia de Fausto Wolff para discutir o
desenrolar do próprio livro, num esgarçamento dos limites entre vida e ficção que é recorrente
na sua obra. O Narrador fala pelo Autor e com isso o romance se povoa de personagens-
autores e autores-personagens, mas, estranhamente, ele sabe de tudo o que acontece no livro e
se recusa a ir embora, discutindo o rumo da trama, com sua habitual irreverência e
superioridade intelectual, tal como diz mais à frente: “Quanto ao romance, acho que estou
tentando apenas botar um pouco de ordem na casa a fim de que vocês não fiquem mais
confusos do que eu.” (p. 246). Manifestando-se diretamente e proclamando sua independência
em relação à figura do Autor, esse Narrador personagem se concebe como um foco
privilegiado que mira, comenta, aproxima, realça, expõe e descreve, intensificando o caráter
ficcional de sua presença em À mão esquerda. Tendo a metalinguagem como princípio, a
tarefa de narrar é exposta de maneira franca e tem os seus limites de atuação ampliados.
Tomando o termo história com o significado de narração, o Narrador surge como o agente da
história, na medida em que ele existe para a escrita da narrativa, para a construção da história
de Pérsio e de sua família. Fazendo o que anunciara no começo do sexto capítulo, o Narrador
começa a contar a história dos Traur igzeit, partindo de informações sobre o lugar que leva o
mesmo nome da família. Depois, menciona em ordem de sucessão, os duques que governaram
a cidade. No último parágrafo desse capítulo, volta ao discurso puramente autorreferencial,
falando de três assuntos:
Sucedeu-o Henrique Julius, sobre o qual um novo personagem, o Bobo, mais familiarizado com assuntos da corte, falará num próximo capítulo. Eu, por minha vez, terei violentas discussões com o autor na tentativa de me tornar personagem e evitar que ele se destrua. Mas ainda é cedo para falar disso. Agora é tempo de ver o que acontece em Santo Ângelo com o neobarbeiro Theodoro von Traurigzeit, de trinta e três anos, sua mulher, seus filhos, e a luta deles para, mantendo a dignidade, galgar os íngremes degraus que levam à respeitabilidade pequeno-burguesa. (p. 30).
Primeiramente, informa o sucessor do duque Julius, exatamente seu filho, Henrique
Julius, e o narrador responsável por contar a história dele. Ele assegura ao leitor que tanto a
dinastia, como a narração sobre ela, terão continuidade, antecipando os passos tomados para
se construir o romance. Em segundo lugar, deparamos-nos mais uma vez com uma declaração
inusitada do Narrador em relação ao Autor. Como personagens de estatuto diferenciado dos
demais personagens porque pertencentes ao plano metalinguístico do romance, a declaração
remete a aspectos que envolvem a construção da história retratada nele. Aqui, vemos o desejo
do Narrador de se tornar personagem, valendo-se, para isso, de discussões com seu criador,
colocado como autodestrutivo por algum motivo que ele prefere não dizer nesse momento e
com quem ele se preocupa, tanto que tentará evitar que ele se destrua.
Os quiproquós entre Narrador e Autor exemplificam a liberdade com que o primeiro
atua dentro do romance, considerando-se em posição exclusiva, entrando e saindo de cena
com uma determinação que estampa o narcisismo de querer dominar a cena, a despeito de
estar subordinado à vontade do segundo, mas ainda assim, compondo a imagem de uma
relação dialética entre os dois. Já o desejo do Narrador projeta de forma criativa uma das
questões que todo escritor tem de lidar ao escolher o foco narrativo que determinará o rumo
da história. O Narrador, tal como está apresentado, é uma voz que fala de maneira distanciada
do universo diegético, não participando deste; seu desejo é exatamente participar, entrar na
história narrada. A menção à família de Theodoro faz parte do processo de condução da
história por parte do Narrador, pois efetivamente, no capítulo seguinte, Ulisses, irmão de
Pérsio, é quem surge contando eventos ocorridos em 1944, quando a família acabara de se
mudar para uma nova cidade. As palavras do Narrador dão conta ao leitor de como essa
narrativa se constrói por saltos no tempo e no espaço. No caso acima, de eventos ocorridos na
Europa, durante a época medieval e começo da era moderna, passam-se a eventos
pertencentes a meados do século XX, no sul do Brasil, mudando-se também a voz
encarregada da narração.
Do que o Narrador fala sobre aquele núcleo familiar, merece destaque sua referência
irônica à ideia de família burguesa, ao comentar a trajetória da família em direção ao seu
estabelecimento social dentro dos limites de classe em que se encontra, tendo o trabalho como
obrigação, a dignidade como princípio e o respeito social como meta. Esse objetivo não vem
de graça, nem facilmente, ele é fruto do trabalho duro e da determinação, e isso está
sintetizado num substantivo empregado pelo Narrador: luta. Algo que o casal conhecerá de
perto. Pobres de nascença, sem educação escolarizada e oriundos do meio rural, Theodoro e
sua esposa Yolanda querem criar seus quatro filhos, educá-los e prepará- los para enfrentar a
vida, dentro do rígido código moral que lhes foi passado, pautado pela dignidade e pela
honestidade.
A trindade romanesca e a história da escrita de uma história Muitas obras literárias trazem no seu interior textos autorreferenciais, mas poucos
autores fazem da maneira como encontramos em À mão esquerda, já que não raro,
introduzem pequenas referências ou comentários, quase sempre compreendendo algumas
linhas ou um parágrafo. Na direção contrária ao desejo parnasiano do poeta Olavo Bilac, para
quem a obra poética não deve “lembrar os andaimes do edifício”, Fausto Wolff expõe o
processo de construção literária em toda a sua crueza de concepção e de forma maciça,
prolongada. Vejamos como isso é feito a partir do capítulo vinte um, Narrador: 1995 –
Percival: 1946:
O autor deveria se concentrar mais no romance em vez de ficar recortando notícias de jornais sobre os assassinatos praticados pelo Mão Esquerda de Deus. […] Graças à sua desatenção debatemos longamente, eu e o autor, sobre quem deveria narrar o presente capítulo: o menino Pérsio ou eu. Argumentei que ao ver uma criança faminta ele ja mais poderia descrevê-la como uma criança esquálida, pois seu vocabulário é naturalmente muito limitado, ao passo que eu, o narrador, poderia botar milhares de vocábulos numa balança e escolher aquele que tivesse sonoridade,
peso e colorido para cada ocasião. O autor contra-argumentou que onde faltassem palavras para o menino ele poderia usar metáforas. Por exemplo: ao ver uma criança esquálida, Pérsio poderia dizer: “A pele dela parece ser feita de papel, tão amarelinha que é”. Como Pérsio, o autor e eu somos uma santíssima trindade, ou seja, três em um, pedimos a opinião de Bárbara, mulher do autor, que […] deu a solução com a simplicidade de Virgem Maria: “Deixe o narrador arrumar o cenário, dar as instruções entre parênteses, e coloque o menino no palco”. Assim foi feito. Eu começo no parágrafo abaixo . (p. 100-101).
Em À mão esquerda, a escrita da obra é exposta em sua debilidade, mostrando que a
dúvida percorre o trabalho do escritor, marcado por um horizonte de possibilidades, de onde
deverá sair uma escolha. A discussão referida pelo Narrador, entre ele e o Autor, tem lances
que colocam à vista do leitor as questões que envolvem a configuração da situação narrativa e
do personagem. Cada um deles ofereceu uma solução à questão colocada, interessante é notar
que as soluções propostas estão relacionadas às respectivas competências dos agentes: o
primeiro argumenta com base em seu poder de atuação, sendo ele um narrador onisciente e
muito experiente; o Autor, por sua vez, ao dizer que supriria a carência de vocabulário do
personagem pelo uso de metáforas, contra-argumenta com base em sua criatividade.
A permanência do impasse fez o trabalho descambar para uma operação dialógica
envolvendo, não apenas os sujeitos diretamente ligados a ele, mas também a esposa do Autor,
Bárbara, que deu a solução posta em prática, uma divisão de tarefas já indicada no título do
capítulo, o único com dois nomes e duas datas. A comparação com a Virgem Maria fecha a
referência ao imaginário cristão estabelecida pela concepção de santíssima trindade, aplicada
aos três personagens. O procedimento de abertura para uma contribuição externa deixa a
imagem de um trabalho dialético, por abranger um campo vasto de influências, aberto às
muitas possibilidades literárias, borrando aquela visão de um autor único e supremo, portador
exclusivo do poder de confecção da obra.
No início, apontamos que a narrativa insinua uma identidade entre Pérsio e o
personagem Mão Esquerda de Deus; nesse momento, vemos que o Autor deixa de lado o seu
trabalho para se ocupar com a atuação do “serial killer”, recortando notícias de jornal sobre
ele. Trata-se de um interesse real, explicitado outras vezes. As menções do Narrador e do
Autor ao personagem criminoso fazem com que este transite de um plano representativo para
o outro: ele está presente na história contada no romance, sendo referido por vários
personagens; ao mesmo tempo, está presente no mundo do Autor. Numa passagem em
especial, em meio às discussões com o Narrador sobre o fazer literário, o Autor fornece algo
que talvez seja a explicação do seu interesse: “— A verdade é que os grandes romances ainda
não foram escritos. Ninguém se realiza com romances. Esse sujeito, o Mão Esquerda de
Deus, está fazendo mais pela literatura universal do que todos os escritores do mundo
reunidos.” (p. 308).
A declaração, como muitas feitas pelos personagens ou pelo próprio Fausto Wolff, é
sugestiva e aponta em mais de uma direção, não diz nada objetivamente e nisso reside sua
riqueza. Dizer que os grandes romances ainda não foram escritos, quando ele mesmo admira
alguns escritores e livros que considera grandes na literatura mundial, é de uma ironia
exigente e especular. Afirmar que ninguém se realiza com romances soa como uma crítica à
uma insuficiência do gênero para o autor alcançar certo objetivo individual; na verdade, é
outra ironia, visto que ele está escrevendo um romance. Qual é a intenção do Autor ao dizer
essas palavras? As proposições são fortes e pautam-se por um pensamento pragmático que
questiona o papel da literatura e da arte em geral, na sociedade, em outras palavras, indaga
qual a contribuição direta e concreta do artista, num mundo injusto e desigual, onde os bens
artísticos ainda estão distantes de muitos.
Ao colocar em paralelo a atuação do Mão Esquerda e o trabalho do escritor, o Autor
parece apontar para a ideia de escrita da história. O assassino estaria “escrevendo” do seu jeito
a história da humanidade, como diz o crítico Marcelo Backes (2007, p. 487), “Os assassinatos
do Mão Esquerda […] eliminam na mais prática das atitudes o vício da política brasileira,
aquele mesmo que Fausto condena na teoria”. Seria uma investida contra a realidade social,
buscando uma ação direta pela morte das pessoas que considera responsáveis pela degradação
da sociedade e da vida humana. Embora o personagem inspire fascínio, sua atividade é
essencialmente antiética, moldando sua imagem de justiceiro ou de bom bandido de modo
inapelável, indicando que na contemporaneidade, qualquer feição de heroísmo é timbrada pela
ambivalência e pela problematização, não há imagem harmônica possíve l em mundo
multifacetado.
A questão mais importante trazida pela passagem é a relação que une Narrador, Autor
e Pérsio. Os três personificam um mesmo ser: Autor = Narrador = Pérsio, formando um trio
literário. Isso é repetido quase ao final da narrativa: “Eu conheço Pérsio von Traurigzeit, esse
brigante. Afinal, somos uma trindade: eu, o autor e ele” (p. 479). O romance se apropria da
imagem criada pelo postulado do Cristianismo, de que Deus, o Espírito Santo e Jesus Cristo,
três entidades em uma só, formam uma santíssima trindade. É uma reflexão que coloca em
evidencia o jogo intrincado de representação da relação da ficção com a vida do escritor e faz
parte da índole iconoclasta e profana de Fausto Wolff.
Em alguns momentos, os três personagens se defrontam como num jogo de espelhos,
em que a imagem de um gera as demais e todas se superpõe reciprocamente. O jogo lúdico
estabelecido a partir dessas entidades é ampliado e tornado ainda mais ambíguo porque a
narrativa opera uma aproximação entre o Autor e Pérsio, que logo na primeira página da obra
é colocado como escritor exercendo o seu trabalho de construção literária. “Outro dia meu
irmão sonhou comigo e decidiu escrever a obra-prima do romance brasileiro” (p. 11). A fala
de Ulisses se posiciona temporalmente em 1995, ano em que Pérsio inicia a escrita da obra;
dessa forma, desde o início da leitura, ficamos com a imagem do personagem em trabalho de
criação. Isso é reforçado outras vezes ao longo do romance. No sexto capítulo, Narrador:
1995, lemos: “Se Percival, o personagem central desta história, tivesse se dado o trabalho de
prestar mais atenção às discussões entre o velho ranzinza (Hermano) e o velho gozador
(João), não teria de preencher com ficção as lacunas deixadas pela realidade” (p. 27). Pérsio,
para escrever sua narrativa, se valerá de recursos ficcionais, já que pretende contar a história
familiar, mas não detém conhecimentos suficientes para tanto.
No nono capítulo, Percival: 1995, o narrador declara: “dei um jeito de emendar
pedaços de conversas que ouvi durante a minha infância. O resultado é o que vocês lerão a
seguir” (p. 37). O protagonista então conta algumas histórias envolvendo o seu pai, seu tio e
o pai deles, dando a entender aos leitores que está escrevendo a narrativa que eles estão lendo.
Em, XXVIII Ruth: 1995, a irmã de Pérsio fala sobre ele: “Bárbara me disse agorinha mesmo
que ele está mais calmo porque, finalmente, começou a escrever um outro romance, que ela
está adorando.” (p. 145). Bárbara é a esposa do protagonista e também a esposa do Autor,
como fica colocado na citação que abre esta parte; dá-se aí uma confluência de imagens,
reforçando a ideia da santíssima trindade. No capítulo XLVI Narrador: 1995, este diz:
“sempre que está escrevendo e tem de criticar o personagem central com o qual, afinal de
contas, se identifica, arranja uma desculpa qualquer e desce até o Marajá do Mar, e fica
discutindo futebol com meia dúzia de vagabundos” (p. 305). Agindo como denunciante, o
Narrador expõe que a relação entre o criador e a sua criatura é de identificação, o Autor se vê
em sua criação; por isso a dificuldade em criticar o personagem, pois significa fazer
autocrítica, daí a evasão do trabalho.
Logo no começo do último capítulo, LX Narrador: 1995, este relata: “Pérsio não está
nada bem. Sua calma é doentia. Mais não posso dizer, caso contrário ele me expulsa do livro.
Pois me meti a criticar minimamente a construção da história, e foi o que bastou para ele me
deixar no banco por nove capítulos!” (p. 464). Aqui é colocada exp licitamente a autoria de
Pérsio através de sua identificação com o Autor, que, no quadragésimo sexto capítulo havia
dito para o Narrador: “Pode entrar em cena, mas entra sabendo que vou te deixar no banco por
um bom tempo. Você não é mais confiável.” (p. 308). Assim ocorreu, o Narrador só
reapareceu no quinquagésimo sexto capítulo; a sua ausência se deu porque ele criticou a
construção da história, não minimamente, mas de maneira contundente, quase tomando o
lugar do Autor, daí a desconfiança deste.
Como fechamento emblemático desse jogo de espelhos e numa atitude extrema de
autorrepresentação, no final da narrativa encontramos um trecho do romance que Pérsio
terminara de escrever. Em novembro de 1995, ele encontra-se em um distrito de Roma, na
companhia do casal de amigos, Nikolay e Kirsten. Pérsio entrega ao filósofo o manuscrito do
romance que escreveu durante o ano: “ Nikolay, estes são os originais do meu último
romance, já traduzido para o inglês. Quero que você me prometa que vai lê- los hoje à noite
nem que tenha de varar a madrugada. Amanhã vou embora” (p. 480). Ele se despede do casal
e parte para o hotel que alugou no centro do vilarejo. Conforme solicitado, Nikolay passa a
madrugada lendo o manuscrito de mais de quinhentas laudas (uma narrativa extensa como À
mão esquerda). Ele se empolga com a leitura porque a narrativa relata exatamente estes
últimos momentos de Pérsio na companhia deles.
A relação é bem construída e faz o leitor pensar porque não é exposta objetivamente,
mas trabalha com sugestões e aproximações até chegar na identificação Autor = Pérsio e vice-
versa, no último capítulo. A relação é sugerida por outro modo também, mais sut il, podendo
passar despercebido; tem a ver com a matéria escolhida pelo Autor para construir sua obra.
Há algumas indicações apontando para o fato de que, ao contar a história de Pérsio e de sua
família, o Autor está se valendo de sua própria experiência de vida, gerando uma narrativa
que não é uma autobiografia, posto que escolheu a via ficcional, mas que apenas contém
traços autobiográficos, sendo uma ficção nascida da experiência pessoal do Autor, que
instituiu um personagem que é uma projeção ficcional de si. Essa questão aparece no
quadragésimo e no quadragésimo sexto capítulos. No primeiro, o Narrador discorre sobre o
cotidiano do Autor, a questão da conclusão da história e sobre a angústia que o abate por
desejar se realizar como escritor, encontrando dificuldades no trabalho de criação:
Neste ponto adormeceu e sonhou com uma solução para o seu romance. Era tudo tão simples. Bastava aconselhar-se com o fazedor dos sonhos. Aquele que matava, destruía, fazia nascer, compunha, voava, morria, ressuscitava, mentia dentro da mentira e a transformava em verdade para subvertê-la novamente. Em seu sonho – pelo que lembra –, o fazedor de sonhos – que era eu, quem sabe? – lhe dizia: “Deixa de frescuras, rapaz. Ninguém te obriga a escrever uma autobiografia. Diariamente milhões de árvores são destruídas para satisfazer o ego e a sede de ganhar dinheiro de milhões de escritores de merda que estão tão próximos da verdade quanto a Terra de Antares, que é sessenta mil vezes maior que o Sol e, entretanto, não pode ser vista a olho nu. Ninguém quer saber se o que você está escrevendo é verdade ou não. As
pessoas querem é showtime , entertainment, a porra do teu umbigo não existe no Universo”. (p. 247).
O episódio narra o encontro do Narrador com o “eu” do Autor, oferecendo a ocasião
para descrever pensamentos e sentimentos cont raditórios desse “outro” que, normalmente, se
faz invisível e silencioso. O Narrador o invoca, levando o leitor a se defrontar com os anseios
e inquietações do escritor; travestido de “fazedor de sonhos”, o Narrador é o interlocutor
lúcido que fornece alguma estabilidade ao fragilizado Autor. Aparentemente separados, os
dois se presentificam para conversar sobre as pressões que sofrem os artistas e os desafios que
precisam enfrentar na tarefa de criação. A questão inquietante para o Autor diz respeito à
escrita autobiográfica. Pelas palavras do “fazedor de sonhos”, podemos entender que escrever
uma obra autobiográfica ou uma obra que versa com a autobiografia é desejo seu.
No entanto, isso não está resolvido, a questão está em aberto e o atormenta, porque
além do desejo de contar a sua vida, ele sente a necessidade de escrever uma obra cuja
orientação seja, antes de tudo, agradar ao público pelo oferecimento de uma narrativa
divertida, de entretenimento fácil, superficial e voltada para o puro espetáculo –
características relacionadas ao vocábulo entertainment. Essa segunda opção, convenhamos, é
tentadora; traz reconhecimento rápido para o autor – e todos possuem um ego que gosta de ser
reconhecido; traz também um retorno financeiro mais satisfatório – e todos têm dívidas e
anseios a serem supridos. Esta segunda motivação é inclusive posta pelo Narrador. Ocupar-se
de um eu, em primeira pessoa, desperta a atenção e atende ao voyeurismo do leitor, curioso de
vidas alheias, uma tendência muito forte nos dias de ho je, daí o surgimento de obras artísticas
e produtos ligados à indústria cultural que usam lances da vida real de pessoas conhecidas ou
famosas para criar personagens ficcionais, um verdadeiro chamariz mercadológico.
Em outro momento, a relação Autor = Pérsio é colocada novamente, de uma maneira
mais enviesada, pois lida com duas passagens: um novo diálogo entre o Narrador e o Autor, e
a posterior explicação do primeiro sobre a conversa:
Tive certeza de que alguma coisa não andava bem com ele ontem, quando parou de escrever e deu um berro:
— Porra, este meu livro está ficando bem-comportado demais. — Mentira – disse eu –, você está indo muito bem. Acontece que você se
meteu por um caminho muito dolorido e está com medo de continuar. (p. 248). O Narrador denuncia o que de fato atormenta o Autor, relacionado com a situação
vivida por Pérsio e narrada pelo próprio no capítulo anterior, em que o protagonista relembra
o tempo com Milena. Fazendo uma narração comovente, o protagonista aborda algumas
alegrias mas, principalmente, fala da angústia e da culpa que sentia por não amar a mulher
que o amava, fazendo com que desejasse ser punido por ela. Na página seguinte, o Narrador
esclarece a tal punição do personagem e o motivo da inquietação do Autor:
Achava que estava sendo punido e estava mesmo. A própria Milena se encarregara disso. Algumas semanas atrás lhe informara que fizera um aborto. E era disso que ele não queria falar, daí essa besteira de apelar para o fazedor de sonhos, voltar ao romance subjetivo, lixar-se para o leitor e outras sandices. Mas, que diabo, se um sujeito decide escrever um livro, o mínimo que se pode esperar dele é que se aproxime da verdade. (p. 249).
O caminho muito dolorido percorrido pelo Autor é o trauma do personagem Pérsio, a
lembrança deste é o travamento daquele. Por que lhe dói a experiência do personagem
ficcional? Porque é a sua experiência que está sendo narrada, pois ele a transpôs para o seu
personagem, fazendo de sua memória, a memória de Pérsio. Para criar a narrativa, o Autor
estar rememorando aquele período de sua vida, dessa forma, trazendo para si a amargura
daquela situação. As palavras do Narrador unificam os dois de modo direto, usando o
pronome ele para se referir genericamente, não fazendo distinção. Como se não bastasse, o
Narrador ainda faz uma apologia da “verdade” do escritor, que deve se esforçar em colocar no
papel algo de pessoal, algo verdadeiramente relacionado a si, o que nada mais é do que uma
outra forma de colocar a mesma questão.
No capítulo quarenta e seis, Autor e Narrador discutem novamente sobre a condução
da história, o primeiro responde muito irritado: “— Não fode, já te disse mil vezes que
quando eu acabar de escrevê-lo vou mudar o nome de todos os personagens para que ninguém
se sinta ofendido. Estou fazendo um troço comercial pacas.” (p. 307). A obra visa atender a
expectativa das editoras e do grande público pelo oferecimento de um “produto comercial”, e
assim, proporcionar ao Autor a satisfação de ver a sua obra vendida, trazendo- lhe um retorno
financeiro. O Autor denuncia o procedimento que tomará ao término da escritura: mudar o
nome dos personagens. É outra forma de apontar para uma escrita ficcional de si, em que os
personagens criados têm relação com pessoas conhecidas do Autor, pertencentes ao seu
mundo social. Se há a possibilidade de que tais pessoas se sintam ofendidas, é porque as
histórias que ele constrói foram tiradas do passado de convívio com elas. Como um recurso
utilizado para facilitar o trabalho de criação e evitar confusões, o Autor escreve usando os
nomes “verdadeiros” dessas pessoas, para depois operar a mudança dos nomes.
Algumas linhas à frente, ao ser criticado pelo Narrador, que o acusava de transformar
o protagonista num “monumento à auto-piedade”, o Autor responde: “— E eu com isso?
Quantas vezes preciso te dizer que eu não sou o personagem central e que isto é um livro de
ficção pura? Se o sacana quer ter pena dele mesmo, deixa ele ter, que merda!” (Idem). A
nosso ver, a resposta traz uma sutil ambiguidade, apontando em duas direções: indica
verdadeiramente o “produto final” do trabalho do Autor e, ao mesmo tempo, coloca à sua
maneira a identificação deste com Pérsio. A negação categórica nos parece mais uma
denegação, algo que o Autor sabe, mas não quer admitir cruamente; se a matéria relativa ao
personagem lhe traz dor, é compreensível que ele dê um tratamento “especial” à sua criação.
A discussão entre os dois agentes da história prossegue como duas vozes autônomas
em que se busca estabelecer a relação do sujeito de escrita com seu objeto. O diálogo é denso
de significações: o autor se expõe, interpreta a si mesmo, enquanto autoconsciência; todos os
movimentos de alma realizados pelo Narrador estão penetrados pela história de vida do Autor.
Importantes questões referentes à configuração da narrativa são discutidas. O Narrador chama
a atenção do interlocutor para que se preocupe com o leitor e ele responde:
— Fodam-se os leitores. — Outra mentira. Você sabe que tem de escrever um romance direito, com princípio, meio e fim. Você já se embananou o suficiente com este negócio de botar muita gente contando a mesma história. Este troço é complicado, pois, se as versões dos demais personagens não conflitarem com a tua versão, todo mundo vai entender o farsante que você é. (p. 248).
Não obstante a grosseria do Autor, a ironia permeia esses diálogos fazendo com que
sejam índices de proposições escamoteadas e que devem ser lidos na contra-mão do que
dizem, enquanto o seu principal agente, o Narrador, surge para embaralhar as coisas. A
expressão romance direito só pode ser uma piada que brinca com a narrativa desde o seu
título, que já sinaliza para algo à esquerda, ou que se processa de um “jeito esquerdo”. O que
remete ao restante da frase que acompanha a expressão, outra grande ironia já que a narrativa
em nada lembra o esquema tradicional de construção de histórias, com limites bem
demarcados e de fácil identificação. Podemos dizer que À mão esquerda não tem um começo
com as funções que se espera de um início de narrativa (apresentação, localização, explicação
de certos dados do enredo), ele simplesmente começa por um ponto que poderia ser outro
qualquer. Da mesma forma não possui um meio, pois a história que se propôs contar está toda
embaralhada ao longo do romance; dados que, colocados numa linha temporal cronológica,
pertencem ao início ou meio da narração, são contados na terça ou quarta parte do livro, por
exemplo. A história também não tem um fim, algo como uma conclusão na qual os desenlaces
desembocam e cessam; o que há é um marco de tempo estipulado e alcançado, que continua a
correr, pois a história de Pérsio não finda ao término do romance.
O Narrador fala também da estrutura fragmentada e polifônica adotada para o
romance, apontando sabiamente a problemática em torno do procedimento. A mesma história
a que ele se refere é a história dos Traurigzeit e a história de Pérsio; ora os variados
personagens-narradores abordam algo relacionado à família como um todo, ora abordam algo
relacionado à vida aventureira do protagonista. Esse procedimento de fato cria versões que se
interpenetram e se complementam, e também cria a possibilidade de essas versões se
coadunarem com a versão do Autor, representado pelo personagem Pérsio, o que também
coloca, mais uma vez, a referida identificação. Ele fala em prol de um grau mínimo e
necessário de conflito entre os diferentes pontos de vista, o que renderia uma maior
legitimidade às falas subjetivas dos narradores, afinal de contas, quem conta um conto
aumento um ponto. Linhas à frente, o Autor ainda se debate internamente e expõe o desejo de
escrever sem o peso de ter que agradar aos leitores, retomando a discussão em torno da
realização profissional e do atendimento às exigências do mercado editorial. Quanto à essa
questão, as palavras do Narrador são dúbias, refletindo a inquietação do Autor:
— E a grana, rapaz? Não se esqueça que você está fazendo isso pela grana. Você tem que pagar o dentista, já está com cinqüenta e cinco anos, e a tendência é caminhar para uma morte medíocre.
— Toda a morte é medíocre. Além disso, para o morto pouco importa como foi a morte dele.
É impossível discutir com um sujeito que não quer ouvir a razão. A verdade é que quer que todo o mundo diga que ele é do caralho, o grande escritor maldito que conseguiu vencer a maldição, o que é compreensível em alguém com vinte e poucos anos, mas não num tipo que pode morrer a qualquer momento e, em vez de se apressar em escrever suas memórias, fica colecionando recortes de jornais sobre o Mão Esquerda de Deus. (p. 248-249).
O Narrador lembra do interesse financeiro em jogo com a publicação e a venda da
obra, a discussão é ampliada pela problemática da possível morte do escritor antes do término
da escrita, dessa forma remetendo à questão da realização do artista enquanto tal. De novo
surge a menção à escrita de teor autobiográfico, através das operações da memória. Devido à
idade do Autor e o tratamento de choque que ele dá ao seu fígado pelo uso em grande escala
de bebida alcoólica, a morte surge como um motivo a mais para que ele se dedique com vigor
à escrita de suas memórias, transpondo para o papel suas experiências de vida. Todavia, a
despeito dessas declarações e considerações, a narrativa não é uma autobiografia. O que
destacamos tem o mérito de introduzir, no horizonte de leitura da narrativa, a questão de que o
trabalho de criação do Autor está baseado na apropriação ficcional de sua própria história e
memória. Sua narrativa se torna uma obra de ficção, até porque, fazendo o que disse que fará
quanto aos nomes dos personagens e afirmando indubitavelmente se tratar de ficção pura – o
que podemos comparar à designação “romance” posta ao lado dos títulos de tais obras,
estabelecendo o que Lejeune define como pacto romanesco – não há o que se duvidar.
A última passagem em que a construção do romance é abordada está no capítulo
XLVI Narrador: 1995. Aqui encontramos em larga escala e de maneira aprofundada
aspectos e circunstâncias relacionados diretamente à vida do Autor. São questões pessoais
trazidas para a exposição da construção narrativa, que preocupam ao Narrador e não nos
deixam esquecer o homem por trás do escritor. Outras questões levantadas neste capítulo
foram destacadas no decorrer dessa parte, agora, teceremos comentários pontuais. Um
primeiro aspecto está relacionado à saúde mental e física dele, que “anda bebendo demais e já
não agüenta o tranco como antigamente”:
De repente começa a sentir dores no estômago, e elas só param com injeções de Buscopan na veia. Já fez mil exames e radiografias, já lhe enfiaram tubos pela goela e pelo ânus sem descobrir nada. […] Pode ser psicossomático, coisa que duvido, mas ele, imbecil, acredita, e várias vezes interrompeu seu almoço semanal com alguns amigos para voltar correndo para casa e tomar injeção. (p. 305).
Como é sugerido, todo esse mal-estar biológico pode ser consequência da pressão e da
angústia sentidas pelo escritor, seria o corpo sofrendo do seu jeito o que espírito sofre do dele.
Curiosa é a opinião do Narrador, o outro do Autor, para quem a hipótese de doença
psicossomática não passa de uma bobeira, é o outro lado do indivíduo que não quer aceitar a
própria fragilidade. O Narrador aponta outra forma de não-aceitação das próprias limitações,
por parte do Autor, quando “Reclama em voz alta para quem estiver por perto: ‘Porra, as
ideias geniais só aparecem na minha cabeça quando estou de porre’”, rechaça o Narrador:
“Mentira, todas as vezes em que escreveu de porre nada se aproveita.” (p. 306). A relação
entre artistas e entorpecentes é velha conhecida, não são poucos os que fizeram uso de drogas
para sentirem-se inspirados e criarem suas obras. No caso do Autor, a ingestão de bebidas
alcoólicas em altas doses é um hábito de longa data, não está associado ao seu trabalho
criativo. Jornalista de profissão, ele também busca realizar seus sonhos nessa área: “Outro
troço que está dando batidinhas cada vez mais dolorosas na sua psique é que já tem um ano
que vem tentando fazer uma revista carioca para cem mil leitores que acredita ainda existam
no país” (Idem). A revista seria expressão da sua visão romântica de jornalismo, seria voltada
para um público crítico, em busca da informação não veiculada pela grande mídia. Um
projeto caro, arriscado, que requer investimento e pode trazer muitos problemas. Isso concorre
com o trabalho de escrita do romance, é uma preocupação a mais a dar batidinhas na psique,
por esse motivo mesmo é trazida pelo Narrador. A questão do jornalismo na vida do Autor é
aprofundada pelo cotejo feito com a questão da liberdade humana :
Se ele não conseguir acabar este livro, temo pelo que possa vir a acontecer. A verdade verdadeira – porque, como ele diz, existem aquelas forjadas pela realidade – é que pode-se agüentar um sujeito que quer ser livre por algum tempo, mas quando não se consegue quebrar esta maldita sede de liberdade que insiste em se impor mesmo contra a vontade de quem ela possui, o único modo de acabar com ele é tirar-lhe a profissão, enlouquecê-lo. (p. 306-307).
A reflexão sobre a liberdade do homem, surgida nesse contexto de discussão sobre o
Autor e seu trabalho como jornalista e escritor, alarga o horizonte das proposições expostas
até aqui, pois é feito um paralelismo, não muito explícito, entre esses dois ofícios e o tema da
liberdade. Para o Autor, aqueles são duas formas de saciar a sede de liberdade que pulsa
dentro dele à sua revelia. O Narrador enxerga a obra literária como um ponto de apoio para o
indivíduo em crise, como capaz de trazer um alívio e acabar com angústia. “Produzir é um
alívio extraordinário. E publicar também. Um livro que se publica é sua vida ou parte de sua
vida que se torna exterior a você, que não lhe pertence mais, que parou de atormentá- lo”
(CIORAN, 2000, p. 127).
As partes destacadas dão conta ao leitor do processo de construção da história que ele
lê; são discursos e diálogos que acabam por esmiuçar uma série de questões que percorrem o
trabalho do escritor. Embora revestida de humor, essa exposição do trabalho em À mão
esquerda denota seriedade pela forma como é construída, com passagens longas, blocos de
discursos que se projetam para além de comentários, como é mais usual quando se usa a
metalinguagem. Esses textos mostram os percalços, os impasses, as paradas, a dúvida quanto
a determinado assunto ou procedimento, as hesitações do escritor. O mundo da criação
literária é aberto diante dos nossos olhos, tanto numa perspectiva interna, quanto numa visão
externa, por meio das referências ao cotidiano, aos problemas externos e as trivialidades da
vida do escritor. O aspecto prosaico em torno do processo é trazido ao primeiro plano de
observação, o que via de regra é quase um mistério e desperta curiosidade. Retratar esse
processo é historicizar a feitura da narrativa, é ver o trabalho de construção em sua história.
V - LITERATURA E HISTÓRIA Através da história dos von Traurigzeit o romance tematiza diversas questões que
percorrem a história das sociedades, entendida como sucessão de eventos e acontecimentos ao
longo da existência humana, ligados a uma comunidade ou a um país, sempre envolvendo
política, poder, religião, entre outras. Trata-se de um investimento de ordem material, uma
matéria a mais além da narração subjetiva, voltada para a vida dos personagens. Esse
incremento material converte-se em um ganho qualitativo para o romance, que tem seu
conjunto temático ampliado, problematizando o seu próprio estatuto. Nesse sentido,
destacamos, principalmente, as contribuições do Bobo e do Narrador, motivo pelo qual
falaremos do primeiro antes de tratarmos das referidas questões.
O Bobo da corte e do romance Conforme disse o Narrador, a maior parte da narração do histórico familiar
relacionado à nobreza europeia fica a cargo do Bobo, um narrador de destaque no romance,
pois narra cinco capítulos. No início do seu relato, no vigésimo segundo capítulo, O Bobo:
1594, ele se apresenta: “Dizem que sou espanhol e, se eu lhes contar minha idade, vocês não
acreditarão. Meu nome é Juan Ruiz Alarcón de Extremadura Buontempo, mas todos me
chamam de Bobo. Sou filho bastardo de um marquês que me repeliu por ter nascido
corcunda.” (p.109). Temos aqui dados significativos: o narrador é um bastardo, já nasceu sob
o signo da exclusão; foi rejeitado por um sujeito que ostentava um título de nobreza, deixando
patente que tais nomeações não levam em conta o caráter de quem os recebe; por último,
possui uma forma grotesca, que o marca e o distingue do restante da sociedade. Esta
característica também sinaliza para um aspecto metafórico de sua figura, pois além de
corcunda, ele também é anão.
O Bobo remete a uma antiga imagem de anões corcundas com características
especiais, como grande inteligência, a onisciência sobre o futuro e a imortalidade. No
quinquagésimo capítulo, O Bobo: 1689, afirma: “eu, que tenho a capacidade de ver o futuro,
mas não de interferir nele” (p. 350). O personagem-narrador é efetivamente um “bobo da
corte”, o indivíduo que em algumas cortes europeias tinha o trabalho de divertir a família real
e seus convidados. A referência à sua idade é devido ao que dissemos em momento anterior, o
Bobo é eterno, como ele mesmo atesta: “Eu sobreviverei, pois os corcundinhas são eternos
como o tempo, que não precisa de vida para correr ou permanecer estático.” (p. 277).
Esta declaração coloca a questão do tempo, que não à-toa é representado exatamente
como um anão corcunda: “Tinha que tentar diminuir a corcundinha do anão chamado
Tempo.” (p. 254). As palavras referem-se a Pérsio, que levava uma vida atribulada, sem
paradeiro e sem estabilidade financeira, acumulando problemas e preocupações que lhe
pesavam no espírito e na consciência, daí a imagem da corcunda, algo que fica sobre o
indivíduo, sobrecarregando-o. Em outro momento, o Narrador qualifica o tempo como “um
bobo que não passa, mas deixa que vivos e mortos passem por ele” (p. 70). O comentário
guarda uma semelhança de sentido em relação à epígrafe de autoria do próprio Fausto Wolff
ao romance Olympia, em que lemos: “O Tempo não envelhece, não se cansa e não se entedia,
pois é um eterno espectador: os palhaços somos nós.” (2007, p. 7). A declaração também se
aplica ao Bobo, pois ele mesmo se coloca como observador das ações humanas.
Essas palavras apresentam o tempo sob uma visão específica, que conforme Paul
Ricoeur, possui “duas faces antitéticas”, uma negativa, outra positiva : “Há o tempo
destruidor; e há ‘o artista, o Tempo’. Ambos agem: um trabalha às pressas, outro ‘trabalha
muito lentamente’” (1997, p. 232). No romance, o tempo surge dentro da perspectiva
negativa, não como construtor paciente ou artesão das coisas, mas como um destruidor
iminente, como aquilo que traz prejuízo para o indivíduo, além de espectador impassível do
espetáculo humano, sempre trágico e fatal. No âmago dessas palavras está a ideia que liga
tempo e morte, já que a passagem do primeiro significa a inevitável chegada da morte para os
vivos e do esquecimento para os mortos, uma espécie de “segunda morte”. Além disso, o
tempo está corporificado dentro do romance precisamente na figura do Bobo como ser eterno,
que também pode ser entendido como uma “variação imaginativa sobre o tempo”, à
semelhança dos narradores mortos de À mão esquerda e Brás Cubas de Machado de Assis. O
filósofo complementa a reflexão:
sob estas duas aparições, o tempo sempre tem a necessidade de um corpo para se exteriorizar, para se tornar visível. […] Tudo se passa como se a ficção pudesse, à custa de uma materialização, próxima das personificações do tempo nas prosopopeias antigas, conferir ao tempo a visibilidade que a fenomenologia não pode, sem falir, reconhecer-lhe. Ao mesmo tempo que o tempo encontra corpos ‘para sobre eles mostrar sua lanterna mágica’ […], as encarnações assumem a dimensão fantasmagórica de seres emblemáticos. (Idem, p. 232-233) (grifos do autor).
O personagem surge como uma encarnação do tempo, numa apropriação figurativa de
um expediente já usado em narrativas antigas, e, a julgar pela sua forma – um ser que reúne
em si o grotesco da forma anã e corcunda – ele é uma metáfora que sinaliza para a imagem do
tempo como algo disforme, monstruoso, que deforma a sua matéria que são os homens, pois
estes passam, não o tempo. Contudo, pela sua atuação dentro da história dos Traurigzeit, o
“Bobo-tempo” destoa dessa visão negativa, pois como veremos adiante, ele se coloca ao lado
dos homens da família, seguindo-os e ajudando-os sempre que necessário e possível.
O Bobo também traz consigo uma certa dimensão fantasmagórica em virtude de suas
não explicadas aparições em qualquer lugar, fazendo dele um ser emblemático, conforme
salientado por Ricoeur. Ele percorre os anos sempre acompanhando um Traurigzeit: Diz-nos:
“Sigo a família Traurigzeit, pois esta é a minha função.” (p. 405). Do final do século XVI,
passa para o final do século seguinte, quando fala sobre a Guerra dos Trinta Anos, suas
consequências para o ducado e diz: “hoje, dia em que registro essas minhas impressões (20 de
abril de 1689)” (p. 347). Em outro capítulo, já está no início do século dezenove como
companheiro do duque Antônio von Traurigzeit, que, juntamente com cerca de cem colonos,
se prepara para embarcar num navio no cais de Amsterdã, rumo ao Brasil.
No início do romance, porém, dá-se sua primeira aparição, ainda incógnito e apenas de
relance, no segundo capítulo, Percival: 1943. Neste ano, o protagonista está com apenas três
anos de idade e acompanha os irmãos ao encontro dos pais, que estão num baile, na cidade.
Do lado de fora, Pérsio vê o anão corcunda: “Quando chegamos vi um corcundinha que devia
ter uns mil anos e era pouca coisa mais alto que eu. Sua cara feia resplandecia à luz do luar.
Estava parado perto de uns cavalos, mas ao ver eu me aproximar fugiu para dentro do mato.”
(p. 15). O surgimento do Bobo aqui e o modo como ele se deu são frutos da maneira como
Fausto Wolff constrói sua narrativa. Por toda a obra, o autor espalha pistas que têm relação
com algo que ainda virá. No caso acima, o Bobo aparece para o protagonista do romance,
ainda criança e sem entendimento do mundo. Ele continua cumprindo sua missão secular:
acompanhar um membro da família Traurigzeit. Nos séculos passados seus cuidados recaíam
sobre algum príncipe, agora recaem sobre Percival. O Bobo de fato acompanha o protagonista
na sua errância pelo mundo. Em 1978, Pérsio estava na Dinamarca, sem trabalho, sem
dinheiro e sem a mulher da qual gostava, ainda por cima, era procurado pela polícia do país
como suspeito de um assassinato que não praticara. Nessas circunstâncias, ele aceita a
proposta feita por um sujeito, de voltar ao Brasil com um passaporte de outra pessoa, a fim de
não ser identificado. No avião, espremido na poltrona da classe econômica, também em
virtude dos seus quase dois metros de altura, Pérsio recebe uma ajuda inesperada:
Naquele momento, antes de o avião decolar, um corcundinha elegante, de gravata de seda e terno de tropical inglês, caminhou pelo corredor até onde ele estava e disse-lhe em português:
— Eu estou vendo que o senhor está mal acomodado. Se quiser pode trocar de poltrona comigo. A minha é na primeira fila e tem espaço para o senhor estirar as suas pernas. Por razões óbvias, espaço é o que não me faz falta.
Pérsio agradeceu e trocou de lugar com o anão. (p. 412). Bem vestido, adaptado à situação e demonstrando educação, o Bobo intervém na hora
certa. Sua ajuda foi muito além da oferta de conforto; devido à troca, o policial que
inspecionava o avião não viu o personagem, pois já havia passado pelas primeiras filas. O fiel
escudeiro dos Traurigzeit, com inteligência, livrou Pérsio da polícia, contrariando sua postura
de mero observador. Em 1993, o Bobo se apresenta como morador de uma fazenda no Mato
Grosso, na qual Pérsio se faz acompanhado pela esposa e pelo amigo Nikolay, o narrador do
capítulo, que diz “Está na hora de Ranulfo aparecer. Ranulfo é um corcunda, mulato de mais
de cem anos.” (p. 328). Num outro capítulo, também narrado por Nikolay, Ranulfo diz ao
amigo de Pérsio: “Já lutei na revolução Farroupilha ao lado do duque Antônio” (p. 379). O
que é verdade, pois como conta João von Traurigzeit aos dois filhos, seu bisavô “Morreu
peleando em 1840, atravessado por uma lança imperial. Ao lado estava o seu secretário, um
corcundinha muito velho […]. O fiel corcunda enterrou o velho duque numa cova que
ninguém sabe onde está – e botou o pé no mundo.” (p. 40-41). Ao final da narrativa, ele surge
novamente, estava à procura de Pérsio, que se encontrava em um pequeno distrito de Roma,
num quarto de hotel. Numa manhã, quando Nikolay e Kirsten foram ao hotel à procura do
amigo, o porteiro os informou:
— Vocês não são os primeiros a perguntarem pelo brasileiro. Ainda há pouco um corcundinha muito elegante quis saber dele. Quando eu disse que ele ainda dormia, ficou de passar mais tarde. — Como era o nome do corcundinha? – quis saber Nikolay. — Está aqui – disse o porteiro passando um pedaço de papel para Nikolay. – Tomei nota porque achei interessante. – Leu pausadamente em voz alta: “Juan Ruíz Alarcón de Extremadura Buontempo”. (p. 481).
É uma forma simbólica de fechar a narração sobre a história do protagonista e de sua
família, ligando o presente representado por Pérsio, ao passado histórico dos Traurigzeit. No
imaginário das pessoas, o tempo assume uma variedade de significados, é o agente da
mudança, a cura para uma dor na alma, o amigo que tranquiliza o espírito, o portador da
justiça a reparar um mal, o conselheiro sábio, entre outras visões. Este último papel, o de
conselheiro, também é exercido pelo Bobo. No capítulo, L O Bobo: 1689, ele se ocupa da
história de Augusto, o jovem, que reinou de 1644 a 1666. Em certa ocasião, o duque recebe a
visita de Cristina, rainha da Suécia, vinda para conhecer a famosa biblioteca de Traurigzeit,
aliás, administrada pelo Bobo. Augusto se apaixona por ela, uma mulher cujos rumores falam
de uma tendência à masculinidade desde criança, fala várias línguas, gosta de discutir
filosofia, de beber cerveja e é excelente atiradora. O duque a pede em casamento e conversa
sobre isso com seu bobo, que lhe diz com a onisciência característica:
Meu senhor, esqueça essa jovem. Ela nasceu antes do seu tempo, é uma mulher sofredora e não é normal. Dentro de três anos abdicará do trono sueco para passá-lo ao seu primo, abraçará o catolicismo, viajará para Roma, onde protegerá artistas, judeus e protestantes, tentará conquistar para ela, com certa simpatia sem sucesso do papa, os tronos de Nápoles e da Polônia, mas não irá para a cama nem com o senhor nem com ninguém. (p. 354).
Conhecedor do porvir, o narrador expõe o futuro tortuoso da rainha, com o objetivo de
convencer o duque a desistir de unir-se a ela. Ele o aconselha com a franqueza e a honestidade
de um amigo que teme pelo futuro daquele a quem quer bem, não como um simples
funcionário da corte, muitas vezes seguindo aspirações escusas. Mas o duque, apaixonado por
Cristina, se enfurece com as palavras de seu anão corcunda, que ainda assim lhe diz
objetivamente: “— Entendo, mas um lorde com mais de cinquenta anos não tem o direito de
se comportar como um adolescente idiota e espinhento. Não tem o direito de tratar a sua
consciência como me tratou.” (p. 354). Logo à frente, o Bobo expõe o que pode ser
considerado como o verdadeiro desejo por trás do desejo: “— Você já esteve na cama com
dezenas de mulheres mais bonitas do que ela, Augusto. O que você quer é estar na cama com
o poder.” (p. 355). Embora servo de Augusto, o narrador não se abstém de dizer o que pensa,
antes, em bom português, joga na cara de seu senhor o que, no fundo de seu psicológico,
movimenta o seu desejo: sentir-se mais poderoso do que já é pela possessão sexual da rainha,
que encarna o poder. Ele repreende o senhor do ducado como um pai repreende o filho que
errou, chamando-o à responsabilidade e apontando a sua falta de consciência. O Bobo, mais
do que um ser humano comum, encarna de modo privilegiado a figura do conselheiro sábio,
aquele cuja visão das coisas está além da visão mundana e imediata.
Na página seguinte, quase encerrando a narração sobre Augusto e sua pretendente, o
narrador lança uma última reflexão que diz respeito não apenas a ele, mas se projeta sobre a
humanidade, numa perspectiva de quem os vê de cima, à distância e com certo rancor. Mais
ainda, nas suas palavras transparece uma raiva envolta numa camada de altivez sóbria, raiva
proveniente das perturbações que os homens lhe imputam, a ele, o tempo: “Os seres humanos
são relógios que se quebram à toa e os reis e rainhas se quebram ainda mais facilmente porque
trazem com eles, do berço, uma doença chamada poder. Melhor matá- los que ter pena deles,
pois perturbam o sono do tempo.” (p. 356).
No quinto e último capítulo narrado por ele, LV: O Bobo: 1824, comenta a morte de
seu amigo Lord Byron, a quem enviara uma carta pedindo-lhe que não fosse para a guerra,
pois “poderia esperar o pior se insistisse na loucura”. O Bobo lamenta a ignorância das
pessoas em não ver “que o destino coloca diariamente à frente delas um punhado de opções.
Todas conduzem à morte, naturalmente, mas há entre elas não só vidas como mortes melhores
do que outras. Quem prestar atenção nos sinais saberá escolher o melhor caminho.” (p. 398).
Aqui, diferentemente da citação anterior, o tom é menos agressivo, mas não menos altivo.
Sendo ele o próprio tempo, é como uma encarnação da sabedoria, que sabemos, vem com o
passar dos anos. Não é à toa que em muitas culturas, principalmente, as que preservam
valores muito antigos, a pessoa avançada em anos é portadora de sabedoria e a encarregada de
transmitir os ensinamentos da vida aos mais jovens.
As duas últimas citações guardam uma afinidade temática: elas falam de morte, o final
de todos os seres humanos. E é exatamente isso que esse narrador eterno não quer que
esqueçamos, que lenta ou rápida a morte chegará para todos. Para ele, nossa consciência da
morte deveria ser convertida numa plena consciência sobre a vida, um viver consciente que
explorasse o que há de melhor naquela, por meio de escolhas positivas para nós mesmos. Ao
contrário do tempo propriamente dito, o “Bobo-tempo” está do lado dos homens, sua
eternidade e onisciência lhe proporcionam uma visão altaneira sobre a vida humana, ele
assiste a tudo como se fosse um espetáculo conhecido e quer “ensinar” aos homens a viver de
uma forma que aproveitem o melhor de sua existência, sem que sejam atingidos pelas
desventuras ocasionadas por escolhas precipitadas e equivocadas.
Além de conselheiro sábio, o Bobo assume o papel de comentarista especial da
história que apresenta ao leitor, os destina tários de seus comentários denunciadores. Duas
passagens ilustram de maneira emblemática essa tarefa e tratam da presença do dramaturgo
inglês William Shakespeare, como hóspede do duque Henrique Julius, que enviara seu
secretário anão para averiguar a presença de um grupo de pessoas acampadas em suas terras,
uma troupe de artistas sob a liderança do dramaturgo, a caminho da Dinamarca com o
trabalho de encenar peças e divertir a festa de casamento da rainha Elizabeth, com quem o
duque se casaria. O Bobo passa alguns momentos com o autor, tem dele uma ótima impressão
e tanto um como o outro ficam surpresos com a erudição recíproca. Antes de se recolherem,
Shakespeare dá ao Bobo uma comédia de sua autoria, chamada A Domação da Megera, mais
conhecida por nós como A Megera Domada. O narrador passa a noite lendo-a e conclui: “O
homem é genial. Jamais li nada tão divertido e inteligente em minha vida.” (p. 112). Na
manhã seguinte, manda prender o autor e seus artistas para levá-los até a presença do duque,
não sem antes ordenar que todos tomassem banho no rio e estivessem isentos de piolhos.
No castelo, Shakespeare oferta ao duque um drama sobre Ricardo III, o rei corcunda.
Henrique Julius retribui com O Triunfo de Henrique, o Leão, um drama escrito por ele quando
tinha vinte e um anos de idade. O comentário do Bobo sobre essa troca é o que nos interessa:
“Creio que se meu senhor já houvesse lido, como eu, A Domação da Megera, teria pensado
duas vezes antes de entregar seu texto ao bardo inglês.” (p. 113). Ele sabe que o texto de seu
senhor é fraco, não tem a qualidade da comédia do outro, e nos coloca isso com toda a
franqueza. Tal problema é retomado de maneira mais aprofundada e com comentários ainda
mais perspicazes, no segundo capítulo narrado pelo Bobo. O duque e o autor inglês tecem
elogios para as obras alheias; este bajula Henrique Julius afirmando que sua comédia está
abaixo das qualidades da obra do outro. Por sua vez, o senhor de Traurigzeit sai pela tangente
ao afirmar que se ateve tão somente aos fatos históricos, enquanto Shakespeare se valeu da
imaginação. O Bobo interrompe a narração do episódio para fazer sua digressão particular:
Conheço este brigante desde que nasceu. Só eu polemizo melhor que ele. Shakespeare fez o que se esperava dele: lisonjeou o príncipe. Este, por sua vez, não pode dizer que a peça do bardo é melhor que a dele e nem o contrário. […]. Shakespeare sabe bem que o drama do meu príncipe não passa de uma série de fatos alinhavados sobre as lutas de um bando de príncipes rufiões que se põem ora ao lado de Lutero, ora ao lado do eventual imperador do Sacro Império Romano, que, afinal, não é sacro, nem império e nem romano. […]. Neste momento, por exe mplo, aqui no meu canto e também com um olho fechado, observo o diálogo teatral entre o príncipe e o ator inglês. Ambos têm seus papéis decorados. O príncipe sabe que a comédia de Shakespeare, que se passa na Itália, é bem melhor que o seu drama histórico. Sabe também que não escreve em versos, não porque a prosa seja mais natural, mas porque não tem talento suficiente. Shakespeare, por sua vez, sabe que está lidando com um amador das artes cênicas, mas não pode dizê-lo por ser um plebeu, hóspede de um príncipe que poderá abrir-lhe o caminho para inúmeras cortes no norte da Europa. (p. 186-187).
O narrador aborda o episódio de forma analítica, esclarecendo aos leitores o que de
fato se passa mas não fica expresso pelas palavras, encobridoras da verdade, pois seus
enunciadores estão sendo dissimulados, cada qual pelos seus motivos: o duque, pela
arrogância e pelo despeito típicos dos poderosos e ricos; já os motivos de William são de
outra ordem e não têm nada a ver com constrangimento. A sua origem plebeia o faz figurar
degraus abaixo da escala social, impedindo-o de falar de igual para igual como o nobre, além
disso, na época, os artistas e pensadores em geral estavam subordinados aos mecenas, que
financiavam suas atividades e podiam lhes proporcionar ascensão e reconhecimento. O
personagem, desejoso de ascender em seu ofício, vislumbra essa possibilidade com o duque, o
lisonjeia e se abstém de dizer a verdade dos fatos.
Um dos pontos altos da passagem reside nos comentários do Bobo, que, passo a passo,
desnuda o que a dissimulação encobre, o que o príncipe sabe, mas não quer reconhecer (a
própria falta de talento para escrever em versos e a superioridade do outro em matéria de
escrita); bem como aquilo que o ator sabe, mas não pode dizê-lo. Ao mesmo tempo, seus
comentários nos mostram que ele é um sujeito de amplo conhecimento e também de veia
crítica, como fica exemplificado pelas palavras dirigidas ao Sacro Império Romano. A
perspectiva pela qual ele enxerga a cena está afinada com o tema da conversa: tudo não passa
de um teatro no qual os atores interpretam seus papéis. E ele, distanciado no seu canto de
observação, está atento ao que se passa no palco da realeza e olha tudo com um olho aberto e
o outro fechado – também ele se vale de certa parcela de dissimulação.
A postura do narrador afina-se com o que ele é, um bobo da corte. O sujeito que
atuava como tal tinha uma liberdade que outras pessoas não possuíam, a de falar certas
“verdades” que vindas da boca de qualquer outro indivíduo seriam consideradas
desrespeitosas. Valendo-se do riso e da graça, o bobo podia dizer o que desagradava aos seus
senhores sem que isso implicasse uma punição severa. Aqui, ao dirigir-se aos leitores, o Bobo
faz o que é próprio da sua função, diz aquilo que os outros não querem ou não podem dizer
publicamente, daí chamarmos de o bobo do romance, porque faz para nós, leitores, o que um
bobo da corte faz para os seus senhores. Com a passagem, o romance toca numa verdadeira
questão histórica, que é a relação da arte com o poder. De forma muito criativa, denuncia a
subserviência a que os artistas e pensadores estavam submetidos, como eram dependentes
daqueles que detinham o poder político-econômico. Através do Bobo, isso é apontado outras
vezes, o que faz com ele tenha um papel preponderante dentro da temática histórica presente
no romance. Disto, nos ocuparemos agora.
Ler a história do mundo Com uma abordagem lúcida e irônica que busca investigar a dinâmica dos eventos
históricos, expondo suas causas e consequências, Fausto Wolff aborda questões que
percorrem a história das sociedades ao longo do tempo, tanto no Brasil, quanto na Europa. Por
vezes, isso é feito de modo direto, outras vezes de maneira sutil, com um comentário ou
mesmo uma palavra carregada de ironia, que, por sua vez, parece ser a forma por excelência
com que a história é visada em À mão esquerda, tratando-a ironicamente e vendo as ironias
que lança ao destino humano. Continuando pelo assunto tratado acima, o Bobo conta ainda a
passagem pelo ducado de dois outros personagens históricos: Wilhelm Leibniz e Efraim
Lessing. Suas inserções na narrativa não foram feitas como a de William Shakespeare. Este
teve uma participação longa, profunda e bem elaborada dentro da narrativa, que não se ateve a
contar sua biografia, mas o inseriu com uma história fictícia acabada, com episódios e eventos
de peso, tal como foi antecipado pelo Narrador quando disse que ele teria “papel destacado
nesta saga poética”. Do primeiro, o narrador fala pouco, porém, muito bem, tendo em vista a
sua obra:
de todos os visitantes, o que mais me impressionou foi um vagabundo errante que lutou toda a vida contra a miséria e ainda assim morreu pobre. Um dos três homens realmente grandes que passaram por Traurigzeit. Seu nome era Gottfried Wilhelm Freiherr von Leibniz, e o duque o empregou como bibliotecário, ao qual tive a honra de secretariar enquanto escrevia o seu Système Noveau , que trata de um fenômeno que sempre me interessou: a relação entre a alma e o corpo. Sofria muito de gota. Quando tinha um folga, eu ia visitá-lo em seu quartinho. Esse que foi uma das maiores mentes do seu tempo, e a cujos pés os monarcas deveriam se ajoelhar, morreu pobre, infeliz e sozinho, em 1716. (p. 401).
O Bobo não economiza palavras para engrandecer o “vagabundo errante”; esta
designação diz mais do que a condição miserável do indivíduo, informando sobre o jeito que
Leibniz era visto naquela sociedade que não lhe dava oportunidade alguma, por isso o
narrador diz que ele lutou toda a vida para fugir dessa condição. O comentário final adquire
uma projeção maior quando o correlacionamos às ideias do filósofo, que defendia algo como
um princípio de harmonia natural e universal entre os seres, entre os homens e tudo à sua
volta. Em sentido amplo, a declaração do Bobo aponta o desacerto do mundo, onde os mais
brilhantes e capazes não têm vez nem voz, não participam das decisões da sociedade, regida
por leis voltadas para manter uma ordem social baseada na desigualdade entre os homens,
gerando o oposto da ideia de Leibniz, a desarmonia. Sem dizer objetivamente, a narrativa
aponta a ironia atroz vivida pelo pensador, mas, principalmente, deixa subentendido que isso
não é uma exceção, pelo contrário, é o modo como o mundo se realiza.
Sobre o filósofo, poeta, dramaturgo e crítico de arte Ephraim Lessing, o Bobo fala
mais detidamente – quase duas páginas e meio – e ainda há a presença de um breve diálogo. O
narrador só o identifica para nós depois de contar boa parte de sua biografia, fazendo coincidir
seu relato retrospectivo com seu próprio desconhecimento na época sobre o rapaz maltrapilho
que se apresentava diante dele, dizendo-se intelectual e pleiteando o cargo de bibliotecário do
ducado – função de fato exercida pelo Lessing real, assim como por Leibniz.
Com pequenos comentários irônicos, coloca proposições instigantes: “Tinha, porém,
quatro defeitos que podem ser perigosos: bebia como uma esponja, era pobre, jogador e dizia
o que pensava.” (p. 403). Os hábitos de beber e jogar inserem Lessing no rol de artistas que se
entregaram com vigor a esses e outros comportamentos viciosos e cuja vida foi marcada por
problemas trazidos por eles: “Cheios de dívidas de jogo, se refugia em Berlim”, “A estréia em
Frankfurt foi um sucesso, mas não o suficiente para pagar suas dívidas nas tavernas”. (Idem).
Sua condição social também é velha conhecida daqueles que se dedicam à arte e ao
pensamento, pois à maioria deles, as sociedades não proporcionam um amplo espaço de
inserção, não reconhecendo, muitas vezes, o valor substancial de seus trabalhos.
A exclusão se torna evidente quando o indivíduo age como o dramaturgo em questão,
não se importando em dizer ou fazer o que desagrada àqueles que detém o poder: “Durante
todos os anos que viveu em Berlim foi atacado pelos jornais por combater o teatro francês,
muito amaneirado, que considerava um corpo estranho no teatro alemão” (p. 403-404). Buscar
refúgio, preocupar-se com as suas dívidas, evadir-se de perseguições, foram situações que
permearam a vida de Lessing e de muitos outros artistas, principalmente aqueles que, como
este, estão atentos à necessidade de mudança no cenário intelectual de sua época, mas não
encontram correspondência nos seus contemporâneos: “Advogava um drama nacional, no
qual a voz do povo se fizesse ouvir e que se baseasse na fidelidade à natureza e à realidade.”
(p. 404). Em vez de um teatro voltado para agradar a aristocracia, versando sobre o seu
mundo “fechado”, o artista buscava exprimir as questões em torno da ascendente classe
burguesa e da camada social mais pobre. Mais à frente, dialogando com o Bobo, o
personagem expõe sua poética dramática:
Mas, afinal, Efraim, que tipo de teatro você pretende? E ele, em frente às penas de pavão que trocava sempre que a tinta secava: Ainda não consegui fazer o teatro que quero. Eu quero um teatro verdadeiro que inspire lágrimas e temor, desespero, riso e catarse. Quero que o es pectador, depois de ver as minhas peças, saia do teatro um ser humano engrandecido e moralmente elevado. (p. 404-405).
A conversa sobre teatro faz parte do gosto e do entendimento de Fausto Wolff. A
resposta do personagem nos remete à tradição horaciana que conferia “à literatura, quase sem
exceção, ou uma finalidade hedonista ou uma finalidade pedagógico-moralística” (SILVA,
1976, p. 82). No caso, a visão de teatro daquele estaria atrelada à segunda finalidade,
enxergando o seu fazer artístico dentro de uma perspectiva pedagógica. Além disso, a poética
trágica advogada pelo personagem cita a catarse como efeito do fluir artístico. O termo é de
Aristóteles, que tomou o vocábulo da linguagem médica e o aplicou à arte para designar “um
processo purificador de natureza psicológico- intelectual”, em que a “poesia trágica, concebida
como uma espécie de mediadora entre a sensibilidade e o logos, instaura uma disciplina
iluminante, impedindo a desmesura da agitação passional.” (Idem, p. 113).
As palavras dos personagens batem com a teoria defendida pelo autor real, que se
volta “contra as regras abstratas e rígidas e ressalta o papel da catarse. Para isso, ele precisará
reinterpretar Aristóteles, de modo que não coincida com o das regras; isso será feito por meio
de um reexame das duas noções basilares da teoria da catarse, os termos temor e compaixão”
(WERLE, 2000, s. p.). A poética de Lessing estava atrelada a uma estética do efeito,
manifestada exatamente nessa elevação moral do espectador, que seria sensibilizado pelos
dramas representados no palco. Precisamente nesse ponto é que reside toda a ironia da história
e o motivo para a presença desse personagem histórico no romance, pois logo Lessing, que
postulava uma arte de engrandecimento moral do ser humano, foi vítima da mesquinharia, do
despotismo e da intolerância que combatia. Logo ele, que pôs sua arte a favor do Bem e do
Belo, sofreu com a maldade proveniente de uma sociedade injusta.
As histórias desses três personagens – Shakespeare, Leibniz e Lessing – têm a ver com
a ideia encontrada numa declaração do personagem Pérsio, quando comenta a relação de troca
de experiências que ele teve com Marjorie: “Eu lhe ensinava a maldição do artista durante os
séculos e ela me ensinava a diferença entre o talher de peixe e o de carne” (p. 222). A
declaração não é acompanha de nenhum prolongamento ou explicação posterior, nem é
desenvolvida em outro momento, mas, pelo exposto, não é difícil correlacioná- la a esse
apontamento que a narrativa faz em direção à relação do artista com o mundo. Com os
exemplos, o romance aborda o drama ou a maldição dos artistas e dos intelectuais em geral
através dos tempos, sempre caminhando numa corda bamba, seja em virtude de condutas
particulares que lhe trazem problemas, uma vida pautada pela transgressão, seja por questões
externas, como o não reconhecimento ou a desvalorização de seu trabalho, a dependência de
patrocinadores, a exclusão ou mesmo perseguição por parte do poder constituído. Ao fechar a
narração sobre Lessing, o Bobo faz uma última homenagem aos três personagens,
reconhecendo- lhes a grandeza: “com exceção de Henrique Julius e Augusto, o jovem, as
maiores personalidades que passaram pelo ducado foram três artistas: William Shakespeare,
Wilhelm Leibniz e Efraim Lessing.” (p. 405).
O começo da dinastia dos Traurigzeit já traz algumas problemáticas que serão
retomadas em outros momentos. Contando o início conturbado que levou à consolidação
político-administrativa do principado, envolvendo trocas de poder e conflitos armados, o
Narrador informa: “Dois séculos de guerras entre príncipes, nas quais morreram,
naturalmente, milhares de camponeses, fez com que Traurigzeit passasse por várias mãos até
ser entregue a Henrique, o Velho” (p. 27-28). Embora não passe de um comentário, como
dissemos, fica exposto o modus operandi com que os conflitos se realizam na prática: a massa
pobre é que vai para o campo de batalha, enquanto aqueles que criaram a guerra discutem seu
rumo de dentro de seus gabinetes. A ironia fica por conta do advérbio empregado,
naturalmente, apontando o que é regra nesses casos.
Em outro momento, sobre outro conflito armado, só que no Brasil da década de 1920,
o personagem-narrador Herbert Muller relembra o que seu pai lhe disse quando ele quis se
juntar às tropas de Luís Carlos Prestes: “‘Tu te aquieta aí, bagual, porque eu já estive em
miles de guerra e só aprendi uma coisa: guerra é para quem tem plata. O papel de gente pobre
como nosotros é morrer’” (p. 58). Velho cansado de guerra, na sua língua oriunda de mistura
étnica, o dono de bodega, convocando a autoridade de quem já viveu, transmite ao filho a
mesma ideia que as palavras do Narrador encerram. Destacamos o termo usado por aquele pai
para se referir ao modo de participação das pessoas pobres nos conflitos: papel, tudo se
desenvolve como uma peça teatral, onde cada participante desempenha uma função
preestabelecida. A questão é retomada com mais profundidade pelo Bobo, quando relata a
Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que foi uma série de conflitos que envolveram quase
toda a Europa, deixando principalmente a Alemanha, onde fica o princ ipado de Traurigzeit,
arrasada:
Os que mais sofreram com essas guerras foram os principados alemães, ou pior, os pobres dos principados alemães. Os mercenários que raramente recebiam seus soldos em dia, para compensar essa situação, pilhavam cidades por onde passavam, deixando atrás de si miséria, desolação, cadáveres e ex-donzelas grávidas. […] À custa da morte de centenas de milhares de camponeses, principalmente, se estabelecera, afinal, a estrutura de uma Europa moderna, formada por uma comunidade de estados soberanos. (p. 347).
A retificação do Bobo expressa a sua consciência dessa problemática histórica, na qual
os pobres sempre levaram a pior, além de serem vitimados na batalha em si, sofrem as
consequências do abandono em suas cidades e casas, nem mesmo os inocentes são poupados.
Com ironia, o narrador aponta o “saldo” ao final das guerras, sem deixar de ressaltar o
massacre consumado até atingi- lo. A declaração do Bobo nos faz pensar no conjunto de textos
“Sobre o conceito de História”, de Walter Benjamin. Em sua nona tese, o filósofo reflete
sobre a ideia do “anjo da história”, partindo do quadro Angelus Novus de Paul Klee, que nos
apresenta a figura de um anjo com suas asas abertas, seus olhos escancarados e parecendo
olhar fixamente para algo. Diz o filósofo: “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto
está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.”
(BENJAMIN, 1985, p. 226). À semelhança desse “anjo”, o Bobo contemplou toda a guerra,
viu o que dela foi estabelecido, mas não se abstém de pensar nas “ruínas” deixadas pelo
conflito, isto é, a miséria, a morte em grande escala e a desolação de principados inteiros.
Depois das disputas por terras, outra motivação dos confrontos é a religião. Após o
movimento que ficou conhecido como Reforma Protestante (1517), os embates entre os
católicos e os defensores da nova doutrina movimentavam a nobreza, dividida entre as duas
correntes do cristianismo. As disputas religiosas daquele tempo estavam subordinadas ao
desejo de expansão dos dois credos, aliada à repressão recíproca. Expandir os domínios e
aniquilar a concorrência são objetivos que, no fundo, estão vinculados ao desejo de poder
político. O duque Henrique, o jovem, que reinou em Traurigzeit entre 1514 e 1568, se
envolveu guerras dessa natureza: “Derrotou todos os inimigos, entre eles o próprio Martinho
Lutero que o chamou de ‘assassino, incendiário e filho do diabo’. A Liga Schmaldica,
formada por estados protestantes, perdeu algumas batalhas contra a Liga Católica, mas
ganhou outras.” (p. 28).
Mas isso não é tudo, a história do nobre traz outros desdobramentos dentro dessa
problemática. Henrique era casado, mas mantinha uma amante, a esposa descobriu a traição e
expulsou a amante da Corte. Em sua partida, foi armado um plano no qual a amante foi dada
como morta e um corpo de madeira foi enterrado em seu lugar, com direito à missa celebrada
por padres católicos. No entanto, “Essa farsa acabou em tragédia, pois, sabedores dela, os
príncipes dos estados defensores da nova fé protestante deram início a uma nova guerra contra
todos os príncipes católicos.” (Idem). Aqui, vemos a mulher como estopim de problemas para
os homens da família, algo que se repete ao longo da trajetória dos Traurigzeit.
Novamente o imaginário e o jargão do mundo do teatro são utilizados para descrever a
forma como os eventos acontecem, mas não se trata apenas de uma descrição, pois os
vocábulos expressam a visão do Narrador sobre esses eventos. Por meio deles, é apontado
como as decisões e atitudes equivocadas visando o interesse particular podem se converter em
problemas gigantescos, verdadeiras tragédias coletivas; também denuncia a insensatez dos
homens, que se lançam à guerra por motivos fúteis ou mesmo por bodes expiatórios. Seis anos
mais tarde, o duque se envolveu no “mais trágico confronte da guerra entre protestantes e
católicos”, pois os “protestantes massacraram os papistas e dois filhos do duque foram
mortos. Aproveitando-se da ausência dele, os protestantes invadiram seu castelo, assassinaram
a duquesa Maria e depois jogaram o corpo aos porcos.” (Idem).
Aqui fica atestada a gravidade desses confrontos que marcaram o início da dinastia
dos von Traurigzeit e influenciaram sua história posterior, ge rando um conflito intrafamiliar.
Fica claro também que a religião em si em nada conta para aplacar os desentendimentos e
controlar o furor de seus crentes, que a despeito do que sabem e do que os ensinamentos
religiosos têm de positivo, são capazes de fazer as maiores atrocidades. Mais à frente, o
Narrador sentencia: “Os protestantes de Martinho Lutero combatiam ferozmente a corrupção
do clero católico, mas eram bastante benevolentes quando se tratava de fazer as vontades de
um velho duque, cujo filho se tornara protestante.” (p. 29). No fundo, o interesse fala mais
alto do que as antigas desavenças e os inimigos mortais tornam-se aliados; a declaração
também vai na contra-mão do pensamento generalizado de que os protestantes são os arautos
da verdade e da justiça, pois surgiram da indignação contra os abusos e mentiras da Igreja
Católica. Aqui, fugindo-se do senso comum e das imagens cristalizadas, eles são encarados a
partir do que os iguala aos seus adversários, enxergando-os nem como piores, tampouco como
melhores, porém, apenas mais uma facção religiosa com as mesmas ambições e ações da
rival, apenas com uma bandeira e um título diferente.
A mudança de uma para outra, por parte de algum indivíduo, é uma das causas dos
conflitos, que não se restringiram ao começo da dinastia, mas continuaram pelos séculos
seguintes, como aconteceu em 1824, quando o duque Antônio decidiu se converter ao
catolicismo. Falamos brevemente desse episódio quando tratamos do estigma da
autodestruição que os homens da família carregam consigo. O episódio denuncia a livre
manipulação da crença religiosa como mero objeto a serviço da troca de vantagens ; de um
lado, a Igreja Católica, do outro, o duque, este levaria o dinheiro, segundo ele, “Com o
dinheiro papista meu povo deixará de mendigar pelas ruas como faz hoje” (p. 399), aquela,
ganharia uma legião de novos católicos, pois, a população do ducado, obrigatoriamente, muda
de religião juntamente com seu governante. Tudo não passa de uma verdadeira transação
mercadológica, diz o chefe dos Traurigzeit: “Eu só recebo o dinheiro após anunciar a minha
conversão” (Idem), é a seriedade da religião cedendo lugar à seriedade da negociata.
Como sabemos, Antônio se converteu, mas o papa com quem fez o acordo, faleceu
antes de repassar o dinheiro, expondo a insensatez do duque, que não ouviu o aviso do Bobo,
exatamente lhe alertando para essa possibilidade e indicando que tudo na vida humana é
transitório. O papa que assumiu desfez o trato, dando esta justificativa: “Esses principezinhos
alemães mudam de religião sempre que lhes parece conveniente. O que me garante que
amanhã ele não faça um acordo com os Habsburgos e volte a ser protestante?” (p. 400).
Embora visando o interesse próprio, suas palavras denunciam uma verdade aplicada a ambos
os lados, pois todos agem conforme a conveniência particular, ignorando as consequências
das decisões para aquela que deveria ser o alvo das preocupações: a população, que no caso
de Traurigzeit, “recebeu a notícia [da conversão] friamente, mas pegou em armas um mês
depois” (p. 399). Eis a primeira consequência da decisão gananciosa e equivocada do duque, a
outra foi a partida dele para a Holanda, depois para o Brasil. O Bobo conclui toda essa
lambança em “nome de Deus” apontando a falsidade dos que apregoam a fé verdadeira: “As
opções erradas são as que prometem a verdadeira fé. Seja ela qual for, não é nunca
verdadeira.” (Idem).
No Brasil, os Traurigzeit encontraram novos problemas a mexer com a vida deles,
novos no sentido de mais problemas, porque no fundo, são do mesmo tipo que encaravam na
Europa. Quem relata esse outro capítulo da história familiar é João von Traurigzeit, que
conforme dissemos quando tratamos a respeito do conceito de narração no romance, conta aos
filhos Theodoro e Thibaldo o motivo de eles serem pobres, diferentemente de seus parentes de
São Leopoldo, que eram ricos. Agora, é pela narração de João que as questões históricas são
tocadas. Sintetiza o narrador os pontos nodais da questão: “ Pois dá-se que estamos na
merda em que estamos por causa de religião, guerra e mulher.” (p. 39). É flagrante que
estamos em terreno conhecido, pois as três causas apontadas pelo narrador já são do nosso
conhecimento. Sem recontar a história, pontuaremos os momentos de maior relevância.
A primeira causa, a religião, acabamos de ver, trata-se da decisão tomada pelo duque.
A segunda, guerra, se deu quando o duque e os colonos já estavam no Brasil há alguns anos.
O governo parara de pagar os subsídios que prometera, os imigrantes haviam fincado raízes e
o duque Antônio se prepara para retornar à Alemanha, quando “estourou a Guerra dos
Farrapos, em 1835. O duque que tinha boas razões para não gostar do Império Central, ficou
ao lado de Bento Gonçalves para quem deu o resto dos florins que guardara. Morreu peleando
em 1840, atravessado por uma lança imperial. ” (p. 40). Dez anos depois de fugirem de uma
guerra, a família e os imigrantes se defrontam com outra, para a qual vai o dinheiro que
restava dos Traurigzeit. A terceira causa, na verdade, ocorreu antes da segunda, nosso
narrador é que ignorou a ordem cronológica talvez para deixar a história mais apetitosa para
os filhos. Diz respeito ao avô de João, Julius, filho mais velho do duque e que era padre, o que
não impediu que engravidasse uma moça ainda na viagem de navio da Holanda para cá. Ao
tomar conhecimento, o duque e ele se desentenderam seriamente e o pai deserdou o filho, que
revoltado, converteu-se ao protestantismo; motivo pelo qual, João, os dois filhos e
posteriormente, a família de Pérsio, são protestantes.
Essas são as explicações para a decadência da família ao longo dos séculos, vindas da
narração de João, homem sem estudo, mas detentor da sabedoria advinda da experiência, que
aponta com precisão os degraus tortos da escada pela qual sua família desceu, e por trás dela,
os menos favorecidos. É a história dando voltas sobre a cabeça dessa gente, num verdadeiro
espetáculo dramático, por vezes trágico, que se repete à revelia de seus atores. A problemática
da guerra, por exemplo, está presente no século vinte, mexendo com a vida de dois membros
da família, Thibaldo e Theodoro, cujas histórias pessoais cruzam-se com a história política do
Brasil, possibilitando que o romance dirija um olhar crítico sobre esta. Podemos dizer que
esses personagens “funcionam” como o elo de ligação entre o passado familiar pertencente ao
século XIX e a continuação da família no século seguinte. Eles são os elos escolhidos pelo
autor para dar continuidade à saga dos von Traurigzeit no mundo. Os dois nasceram neste
século, contudo, é em virtude deles que conhecemos a história do pai, João, do avô, José e do
bisavô, Julius, filho do duque Antônio. Por fim, Theodoro formará sua família e é o pai de
Pérsio.
Cem anos depois da fuga dos Traurigzeit da Alemanha para a Holanda, os dois rapazes
da família fogem da casa do pai com o objetivo de participar da revolta militar liderada por
Luís Carlos Prestes e outros. No final do décimo capítulo, Theodoro: 1924, este narrador diz:
“Na madrugada do dia doze de novembro de 1924 (eu já tinha meus quinze anos, mas todo
mundo me dava mais de vinte), Thibaldo me acordou: Acorda, piá, que nós vamos para a
guerra.” (p. 48). Assim se deu, sem conhecimento de seu João, eles partiram ao encontro dos
revoltosos, numa atitude semelhante às “cagadas” que caracterizam a história familiar. Nesse
ponto, tem início uma empreitada peculiar do romance, que se volta para nos mostrar o “pano
de fundo histórico” por trás da história desses personagens. O capítulo seguinte, XI
Narrador: 1995, se destina exclusivamente a abordar os acontecimentos políticos ocorridos
na década de 1920. Há uma preocupação em recuperar os eventos deste período, superando o
objetivo de mostrar o cenário onde a trama transcorre:
O narrador garante que os irmãos Thibaldo e Theodoro Traurigzeit, que em 1924 caminhavam pelas ruas barrentas de Santo Ângelo para irem ao encontro de Luís Carlos Prestes, nada sabiam do Brasil ou do que se passava no Brasil. Sabiam apenas que uma guerra dos bons contra os maus, dos pobres contra os ricos havia
começado e que eles estavam do lado dos bons e dos pobres. Isso, pelo menos, fora o que Thibaldo contara a Theodoro para convencê-lo a fugir de casa com ele. Vamos deixá -los por alguns instantes para estudar o cenário onde se passou essa tragicomédia na qual os dois irmãos são personagens de importância ainda menor que a dos marginais que acompanhavam na rabeira, sujos, famintos, maltrapilhos, as tropas dos reis revoltosos dos dramas históricos de Shakespeare que – como vocês verão mais adiante – tem papel destacado nesta saga poética (p. 48-49).
Manifestando seu caráter de narrador-coringa, que interrompe a história para prestar
esclarecimentos de várias ordens, o Narrador começa apontando a ignorância dos personagens
em relação tanto à situação do Brasil, quanto do movimento do qual os personagens queriam
fazer parte. Coerente com essa condição, ele afiança que os irmãos tinham do confronto um
pensamento maniqueísta, baseado em código de valores opostos – bons versus maus, ricos
versus pobres – redundando num engajamento sem consciência das circunstâncias históricas,
pautado apenas por uma identificação reducionista e, no fundo, idealizada. Usando a forma
verbal no plural, o Narrador nos conduz à tarefa a que se propõe e é a finalidade da abertura
desse novo capítulo: ele quer estudar o cenário. Ele sente a necessidade de explicar para o
leitor todo o contexto sócio-político em torno das ações dos personagens, classificadas como
tragicomédia, que juntamente com a comparação com os personagens marginais de
Shakespeare, ridiculariza essa adesão romântica à revolta, que faz dois meninos, pobres, sem
estudo, sem perspectivas e garantias, marcharem por ruas barrentas. O Narrador começa então
a falar da história do Brasil, primeiramente em termos gerais, fazendo referência à época do
achamento desta terra por parte dos portugueses, depois salta para o século XX, entrando pela
situação política do país nas primeiras décadas do século, com destaque para as revoltas
despontadas de norte a sul do país, entre 1920 e 1923:
Com o fim da I Guerra Mundial, o déficit brasileiro chegou a um milhão de contos de réis, menos de 1% do que devemo s hoje. As velhas oligarquias agrícolas não souberam lidar com as primeiras greves operárias e o descontentamento da classe média urbana. Por isso mesmo aceitaram o paraibano Epitácio Pessoa na presidência. Civilista, um dos primeiros atos do novo chefe do Executivo foi nomear dois civis para os ministérios da Guerra e da Marinha. Depois de dizer que civis em pastas militares não satisfaziam as aspirações do Exército, altas patentes fardadas levaram ao Congresso um pedido de aumento de soldo, pois, afinal de contas, era disso que a coisa toda se tratava. Iniciou-se uma revolução na Bahia em 1920, tão maluca que teve o apoio de um liberal como Rui Barbosa e dos coronéis do Nordeste, que armaram os jagunços para lutar contra o governo. Graças a um pedido de intervenção federal, seis mil soldados saíram do Rio para esmagar a revolta. (p. 49).
Valendo-se de uma linguagem irônica, a leitura do Narrador pauta-se em identificar os
elementos constituintes do contexto histórico, começando por apontar a atuação nefasta das
oligarquias brasileiras na política do país, pois se trata da apropriação do Estado por grupos de
famílias e indivíduos visando a manutenção de seus privilégios de classe. No caso, é
denunciada a manobra política operada pelas oligarquias para contornar o descontentamento
dos operários e da classe média, como donas do poder, elas aceitaram Epitácio Pessoa. Os
militares, por sua vez, entram na história também para defender seus próprios interesses: o
aumento do soldo, esta é a causa pelo qual eles lutavam, não tinha nada a ver com uma causa
maior, sublime, voltada para a sociedade como um todo. Com estupefação, o Narrador aponta
o verdadeiro disparate que foi o movimento despontado na Bahia, congregando sob uma
mesma “bandeira” – as aspas são imprescindíveis – liberais, coronéis e jagunços, não à-toa é
chamado ironicamente de revolução tão maluca, que de revolução propriamente dita não
tinha nada. A investida do Narrador vai no sentido de nos mostrar o absurdo que era todo
aquele contexto político-social que culminou nas revoltas tenentistas, com cada grupo
defendendo somente seus interesses.
Depois disso, o Narrador conta em detalhes o levante militar que ficou conhecido
como a Revolta do Forte de Copacabana ou Revolta dos 18 do Forte, informando a data e até
mesmo a hora: uma hora e vinte minutos do dia 5 de julho de 1922. O passo-a-passo da
resistência é abordado: a quantidade de soldados, as decisões e atos do comandante do levante
– Hermes da Fonseca –, a desistência da maioria dos soldados, a luta em plena Avenida
Atlântica dos vinte e oito soldados que restaram, a adesão de um civil ao grupo revoltoso e a
inevitável derrota do levante, restando vivos apenas Siqueira Campos e Eduardo Gomes.
Sobre estes dois, o Narrador ainda se preocupa em dizer: “O primeiro morreu alguns anos
depois e o segundo viveu para ser brigadeiro e candidato duas vezes à presidência da
República sempre pela direita” (p. 50). Recontar o evento em detalhe mostra o quanto a
empreitada tem importância para o romance, pois deixa evidente que não se trata de uma
abordagem panorâmica da história, que fala dos assuntos apenas de relance, por alto, pelo
contrário, é notório o esforço no sentido de reconstruir o evento em sua integridade, a despeito
da viabilidade ou não da intenção. De novo, num comentário rápido que parece somente
informativo, o Narrador faz sua crítica ao apontar que o líder da revolta, anos após o evento,
se tornou brigadeiro – o mais alto posto militar da Aeronáutica –, e por duas vezes se
candidatou pela direita à presidência da República, indicando o caráter circunstancial da
revolta, que não possuía nenhum ideal de justiça social.
O Narrador dá prosseguimento ao seu relato, contando os quiproquós da política
nacional em 1923. Fala da disputa entre Arthur Bernardes e Nilo Peçanha para a presidência
do país, saindo vitorioso o primeiro, que decretou intervenção federal no Rio de Janeiro e na
Bahia, como retaliação às oligarquias descontentes com seu governo. Depois, aborda a disputa
política no Rio Grande do Sul entre Borges de Medeiros e Assis Brasil, para a presidente da
província. Com muita controvérsia, o primeiro saiu vitorioso do processo, os descontentes
com o resultado empreenderam o movimento armado conhecido como Revolução
Libertadora, liderada entre outros por Leonel Rocha e Honório de Lemes. Essas informações e
outras fornecidas por ele têm o objetivo de compor o panorama em que os verdadeiros
eventos de seu interesse se desenrolam: as revoltas no Sul do país, mais exatamente, a revolta
liderada por Prestes, em 1924.
Durante o relato, ele aponta as características típicas da política brasileira. Nilo
Peçanha era apoiado por esses “barões latifundiários, aliados aos cafeicultores que viviam
brigando entre si, mandavam no país e nomeavam seus representantes políticos” (p. 52). Eles
brigavam circunstancialmente, pois quando convinha, uniam-se. A cooptação de eleitores, um
mal que perdura até hoje, é apontada: “Em troca de favores, como o aumento salarial do
funcionalismo, os políticos tentavam cooptá- las [as classes médias] para uma ou outra facção
oligárquica” (Idem). Com humor e ironia, comenta que Arthur Bernardes era “considerado na
época um dos homens mais elegantes do mundo”, para depois dizer que ele “tirou do poder os
barões descontentes decretando intervenção federal no Rio de Janeiro e na Bahia. Além de
censurar a imprensa incipiente e amadorística, deu início a um sem-número de prisões
políticas.” (Idem). De modo geral, em se tratando de política principalmente, a pose e a
imagem externa em nada diz do indivíduo em si. Sobre o conflito de 1923, na região sul do
país, diz: “Enquanto os ricos não se entendiam, morriam muitos pobres de ambos os lados.
Mas, como sempre, os ricos acabaram se entendendo” (p. 53). Isso é comum em toda situação
que envolve pessoas abastadas e poderosas, pois fazem de tudo para manterem seus
privilégios.
A narração sobre a marcha de Prestes é feita pelo dono de bodega, Herbert Müller de
La Cruz: 1951, no capítulo treze, que conta a Otávio como conheceu o pai e tio dele. De
saída, destacamos o fato de que, em vez de se ocupar diretamente do episódio em que
Thibaldo e Theodoro entraram em sua bodega, de passagem, o narrador expõe ao seu
interlocutor os eventos políticos de 1924: “a tenentada que já tentara derrubar Epitácio Pessoa
decidiu expulsar Arthur Bernardes do Palácio do Catete” (p. 57); “Como o Rio estava muito
vigiado, a lambança começou em São Paulo no dia 5 de julho de 1924” (p. 58); “no dia 29 de
outubro o troço finalmente explodiu” (Idem). Os termos usados, “lambança”, “troço”, e para
designar em outro lugar os revoltosos, “rapazolas”, contribuem para formar a imagem de um
movimento imaturo, sem planejamento, sem organização, quer dizer, é um jeito de referir a
ele que parece denunciar uma feição de simples revolta, mas não de revolução. Mais à frente,
o narrador informa:
Acontece que a coragem do tenente Prestes ao botar na cadeia tudo que era autoridade do governo despertou a admiração do povo de Santo Ângela. Não teve vagabundo, aventureiro, desocupado, cachaceiro e até alguns filhos de boa família que não decidissem acompanhá-lo para São Luís. Alguns por farra pura, outros porque achavam que iam poder comer de graça todo dia e uns últimos para pelear mesmo porque Arthur Bernardes era um tiranaço como se fazem poucos hoje em dia. Para te dar ideia, uma cinquenta mulheres seguiram a tropa. É claro que deu merda e muita dor de cabeça pro tenente porque a colonada em vez de brigar com as tropas do governo brigavam entre si por causa de mulher. O que eu vi correr de sangue aqui nesta tapera não dá para acreditar. (p. 59).
O que poderia ser tomado como positivo, acaba sendo algo negativo. Falamos da
admiração despertada por Prestes na população, porque é sentimento e sensação, atuando no
espírito em vez de influenciar a consciência, isto sim seria mais proveitoso para consolidar um
movimento que se quer revolucionário. Quanto à tropa, se não era especialista em combate,
pelo menos era diversificada; o tipo de gente que decidiu ingressar nela é a menos indicada
para o serviço que, ao lermos isso, nos faz pensar mais numa aventura tresloucada do que
numa guerra para valer. Dividindo em três as motivações desses participantes de última hora,
o narrador sublinha que apenas uns últimos é que estavam ali para guerrear, os demais,
queriam farra e comida! Como se não bastasse, os integrantes se entretinham com as mulheres
que aderiram, brigando uns contra os outros em vez de estarem focados na guerra, sobre a
qual, aliás, não faziam ideia do que se tratava, tal como os dois irmãos. Em outro lugar,
lemos: “Theodoro e Thibaldo e mais algumas dezenas de jovens ignorantes e desgarrados que
pretendem seguir a Coluna Prestes participam de um concurso de mijada à distância numa
barranqueira entre Santo Ângelo e São Luís.” (p. 51). Esta informação é referente a um grupo
de jovens alemães que se juntaram e foram ao encontro de Prestes.
A narração de Herbert Müller termina sem que ele conte a Otávio o desfecho da
participação do tio e do pai na guerra, quem se encarrega da tarefa é o narrador-coringa, que
surge logo no décimo quarto capítulo, Narrador: 1995, para cumprir não apenas essa tarefa,
porém, outra, de natureza igual àquela processada no capítulo onze. Nesse ponto, uma nova
digressão é feita, por “necessidade”, pelo Narrador:
Uma questão de ordem, como se dizia antigamente. A rigor, o presente capítulo não precisaria existir. Ocorre que o autor deixou-se cair numa armadilha literária ao colocar o bolicheiro Herbert Muller de la Cruz contando os acontecimentos daquele dia 4 de novembro de 1924. Ao fazê-lo dialogar com o jovem vendedor Otávio von
Traurigzeit, meteu-o numa camisa-de-força, pois não é preciso ser nenhum Edmund Wilson ou Álvaro Lins para entender que nesse teatro forçado ele não poderia parar a fala para comentar sobre a bodega, a situação política, filosófica e econômica do país, já que não teria conhecimentos suficientes, tampouco introduzir novos personagens. Caso insistisse nessa loucura, o estilo certamente sairia prejudicado, mais para realismo mágico que para ficção histórica introspectiva. Para evitar essa salada de mau gosto seria necessária a presença de um narrador invisível que pudesse interromper a ação para comentá-la e, assim, facilitar a compreensão dos leitores. Mas não fui chamado à cena e quando o autor percebeu já era tarde. Daí a razão deste capítulo complementar. Vou parar o tempo e congelar Otávio, o bodegueiro […]. Nesse meio tempo, em verdade neste não-tempo, deixem-me contar-lhes algumas cositas (p. 64-5).
O trabalho é feito com tamanha mestria que quase nos convence de que o que lemos
não se trata de um “teatro forçado”, na definição dele mesmo. A expressão “questão de
ordem”, utilizada nas sessões políticas do legislativo para interromper um discurso qualquer a
fim de que seja introduzido um comentário ou esclarecimento, tem essa mesma função na
narrativa, pois ela interrompe a história que se desenrolava para que um novo capítulo seja
construído. Com liberdade para criticar ao Autor e expor sua ingenuidade, pois deixou-se cair
numa armadilha literária, esse personagem se coloca na posição que Flaubert aconselhava ao
artista: “estar na obra como um Deus na criação, invisível e todo poderoso, que seja sentido
em toda parte, mas que não seja visto” (PIMENTEL, 1978, p. 241). Mas temos de observar
que ele é invisível somente no plano do enunciado, para os personagens da história dos
Traurigzeit, porque no plano da enunciação, o que ele quer mesmo é ocupar a cena
inteiramente, se esforçando ao máximo para ser visto pelos leitores, em postura semelhante a
do coringa de Boal, para quem a “consciência do ator-coringa deve ser a de autor ou
adaptador que se supõe acima e além, no espaço e no tempo, da dos personagens.” (BOAL,
2008, p. 277). Para tanto, “é necessário o seu afastamento dos demais personagens; é
necessária a sua aproximação dos expectadores.” (Idem, p. 267). A postura do Narrador ao
colocar a situação de que o novo capítulo não precisaria existir, é a de quem lamenta ter que
trabalhar por causa da falta ou erro de outro.
Além de reivindicar uma certa lógica imaginativa e rigor na abordagem da “verdade
ficcional”, o Narrador se impõe como uma presença necessária e imprescindível não só para
evitar essa salada de mau gosto, como também para facilitar a compreensão dos leitores.
Nesse momento, convém lembrar suas palavras quando de seu surgimento: “sou produto da
falta de talento do autor”. Para suprir essa suposta falta de talento, fez-se necessária uma voz
onisciente, falando pelas bordas da história narrada. A declaração tenta escamotear que essa
voz é produto do Autor, no fundo, não importa se o Autor tem ou não o talento referido pelo
Narrador, sendo este uma criatura dele, importa é que ele teve engenhosidade em sua criação
e construção, conferido- lhe inclusive a liberdade de se apresentar de modo independente.
Assim, o que é apresentado como falha ou erro do escritor pode ser entendido como
mais uma jogada narrativa para que seu duplo, o Narrador, possa surgir e fazer seu papel de
narrador-coringa. Tanto é assim que, ao afirmar que Herbert Müller não poderia interromper
sua narração para tecer comentários variados sobre o país, pois ele não teria conhecimentos
suficientes para isso, o Narrador deixa subentendido que tal procedimento é uma das metas,
por assim dizer, para o romance. Abordar o período histórico em termos políticos, filosóficos
e econômicos faz parte da empreitada destinada ao romance. Os comentários e interrupções
do enunciado são, geralmente, mais do que uma pausa na narrativa, pois provocam uma
mudança de foco com a finalidade de revisar criticamente a história política do Brasil.
Tudo isso colocado com doses de humor, tem o grande mérito de problematizar tanto
o romance em si, como a escritura de uma narrativa. O Narrador aponta, senão um erro, pelo
menos um procedimento mal feito no romance, borrando aquela imagem do artefato literário
bem acabado, na qual todas as peças se encaixam em harmonia, tendo por trás dela o escritor
conduzindo sobriamente sua construção. Preocupado com a possibilidade de o estilo da obra
ser prejudicado pela desatenção do Autor, fazendo com que descambe para o que qualifica de
“realismo mágico”, o Narrador acaba por classificar o romance como “ficção histórica
introspectiva”, decerto por congregar personalidades e eventos históricos, personagens de
ficção, his tória e imaginação, em discursos subjetivos e introspectivos. Comentaremos mais
detidamente essa classificação ao final do trabalho. Um pouco à frente, o Narrador de novo
remete à ideia de que os eventos se apresentam como uma projeção cinematográfica que pode
ser interrompida com um apertar de botão, parando o tempo do enunciado e “congelando”
seus personagens para enveredar pelos caminhos da enunciação, que ele designa
primeiramente como “meio tempo”, depois, “não-tempo”.
Vejamos agora as “cositas” que o Narrador tem para contar. Primeiramente, ele
menciona a intenção do caudilho Leonel Rocha, de explicar a Theodoro e Thibaldo, algumas
questões políticas. Dirigindo-se ao leitor, ele não faz cerimônia na hora de querer passar o seu
recado. Aqui, debaixo do advérbio “talvez”, consta uma afronta direta ao leitor, um “puxão de
orelha” no sentido de nos ensinar a ver o mundo além das aparências: “O que vocês talvez não
tenham notado, pois é próprio da natureza humana prestar atenção na realidade que encobre a
verdade, é que o velho caudilho não fez menção à questão social ou aos fundamentos
econômicos do domínio oligárquico.” (p. 65).
No pensamento de recusar a realidade aparente, ele se esforça em se fazer entender:
“Os tenentes revolucionários eram filhos da classe média ascendente, tanto é verdade que com
exceção de Prestes e dos que morreram em ação, os demais acabaram ricos e reacionários”.
Sabedor das disputas políticas dos anos pós-marcha, o Narrador aponta o destino dos
revolucionários, que acabaram deflagrando a Revolução de 1930 e, bem mais tarde, o golpe
de 1964. Muito antes ele já havia passado o “relatório” da situação dos militares, em termos
de origem social: “os generais e marechais eram filhos dos ricos, os tenentes formados pelas
escolas militares, que compunham mais de 65% da oficialidade,vinham das classes médias.
Os sargentos, cabos e soldados eram o povo e não piavam.” (p. 52). Afinado com esta
opinião, agora ele diz: “O povo, por mais simpatia que tivesse pelos revolucionários que
queriam derrubar o poder central, estava na mesma situação em que está hoje. Há muito não
era mais protagonista da História, mas mero observador” (p. 65).
A histórica desigualdade social do Brasil marca também o movimento e a condição de
classe não deixa que seja eliminada a distância entre os líderes da revolta e as pessoas
comuns. Some-se a isso, a já apontada problemática do interesse da categoria, que o Narrador
nos faz relembrar: “Os tenentes se insurgiram contra um governo que colocava a farda a
serviço das lutas interoligárquicas. Com raras exceções, entretanto, a reação tenentista foi
corporativa. Tinha mais a ver com aumento de soldo do que com aumento de justiça social”.
Tudo porque a classe dominante não se entendia e brigava entre si, principalmente depois da
crise pela qual passavam os Estados Unidos, tendo reflexos no Brasil, com “a queda das
cotações do café devido à recessão no país que era o nosso maior comprador e explorador”.
As medidas internas tomadas geraram protestos e inflação, “Isso prejudicava os interesses das
oligarquias não exportadoras, que em luta com as oligarquias exportadoras desequilibraram as
frágeis estruturas políticas do país”, pois o governo se prestava a interesses de classe.
Foi feita uma verdadeira revisão crítica desse período da história brasileira. À maneira
do narrador-coringa de Augusto Boal, o Narrador de À mão esquerda também sente a
necessidade de analisar, não apenas o texto, como o caso da armadilha literária, mas os fatos
históricos por trás das ações dos personagens, revelando essa análise à plateia, isto é, ao
leitor. Segundo o criador do “sistema coringa”, o agente deve enfocar a ação segundo uma
determinada e preestabelecida perspectiva, no romance, a perspectiva é sempre crítica e
irônica, expondo os motivos e as intenções por trás dos acontecimentos e a debilidade dos
movimentos revolucionários brasileiros, capengas em todos os aspectos, do ideológico ao
prático.
A utilização de dados da realidade histórica por parte de uma narrativa ficcional
problematiza a sua configuração de narrativa apoiada exclusivamente na operação do
imaginário. Para Paul Ricoeur (1997, p. 220), na construção do mundo ficcional, a utilização
de personagens históricos, acontecimentos datados ou datáveis e lugares reais, não faz aquele
figurar dentro dos limites históricos verificáveis:
Dá-se o contrário. Do simples fato de que o narrador e seus heróis são fictícios, todas as referências a acontecimentos históricos reais são despojadas de sua função de representância relativamente ao passado histórico e obedecem ao estatuto irreal dos outros acontecimentos. Mais precisamente, a referência ao passado, bem como a própria função de representância, são conservadas, mas de um modo neutralizado […] os acontecimentos históricos já não são denotados, mas simplesmente mencionados.
Ao figurar na trama ficcional, o objeto histórico teria neutralizada sua capacidade de
remeter diretamente ao passado, já não podendo mais ser tomado como representante do
passado histórico, nem como um rastro, restando a ele, apenas, um simples trabalho de
citação; por rastro, entende-se o vestígio deixado pelo passado, cuja existência é
testemunhada exatamente pelo rastro. Em “Contracenando com a História”, Therezinha
Barbieri também reflete sobre a interação desses dois planos e esclarece:
Quase sempre, no trânsito entre História e ficção, o resultado é que acontecimentos fictícios ganham plausibilidade histórica e o fato histórico se irrealiza nas teias da ficção. A História não é centro axial irradiador de sentido, nem a ficção uma idealidade estética criada do nada. Na verdade, a narrativa histórica comporta elementos e procedimentos da elaboração ficcional, assim como a ficção reelabora componentes derivados de fontes históricas. Em vez de confrontes polarizadores e vértices excludentes, tento me situar no terreno híbrido das confluências. (BARBIERI, 2003, p. 99) (grifos nossos).
Pensando também no papel da disciplina histórica, a ensaísta aponta para uma
hibridização recíproca, com cada um dos pólos trabalhando o outro à sua maneira e o título do
ensaio por si só já remete a ideia de uma atuação em dupla, um diálogo em vez de um
monólogo. Poderíamos nos estender com considerações de outros teóricos, porém, o que
temos é suficiente para lançarmos luzes sobre o procedimento de Fausto Wolff. Num primeiro
golpe de pensamento, consideramos que as palavras de Barbieri dão conta do processo
empreendido pelo autor, enquanto que o “resultado” obtido é aquele afirmado por Paul
Ricoeur. Todavia, nos parece que esse “resultado” não contempla satisfatoriamente o
tratamento que o romance de Wolff dá aos elementos históricos, que são trazidos para o
romance pelo menos de duas maneiras diferentes: primeiramente, como peças do jogo
ficcional, sendo incorporados ao enredo propriamente dito.
Dessa apropriação é exemplo o tratamento dado aos três artistas, com destaque para
Shakespeare, cujos momentos com o duque Henrique Julius prestam-se para Wolff tematizar
a nebulosa história em torno da criação da famosa tragédia Hamlet. Sobre a escrita desta obra
paira uma dúvida envolvendo outros textos e outras histórias que talvez tenham inspirado o
bardo inglês. Uma dessas histórias é do século XIII, chama-se A Vida de Amleto, do Saxo
Grammaticus (cerca de 1150-1220). Um outro texto, chamado Ur-Hamlet, provavelmente
escrito por Thomas Kyd (1558-1594), foi encenado pela primeira vez em 1589 e pode ter
servido de fonte de inspiração para o dramaturgo, mas não há nenhuma cópia dele, apenas
referências a ele e à sua encenação. A dúvida nasce das simetrias que há entre as histórias,
entretanto, ao que parece, os estudiosos não podem afirmar que Shakespeare tenha se
inspirado em alguma. Importa-nos ressaltar que Fausto Wolff, apreciador da obra
shakespeariana, conhecia a problemática em torno da tragédia e a colocou dentro da narrativa,
pegando os dados duvidosos e inconclusos, mas ainda assim dados históricos levantados por
especialistas – portanto, rastros deixados na história – e os fez figurar na sua ficção, dando
uma “versão ficcional” para a gestação do Hamlet. Quem nunca tenha ouvido falar dessa
problemática, tomará ciência dela por essa via, e, se for curioso, constatará que há nisso tudo
um “lastro de verdade”, tal como as palavras do personagem Lessing, ditas de maneira ligeira,
é verdade, mas bem próximas da estética teatral do autor real.
Outra forma de comparecimento do extrato histórico no romance é a que acabamos de
ver, sobre os acontecimentos da década de 1920. Nesse caso, há episódios apenas
mencionados, como a Semana de 22, a fundação do Partido Comunista Brasileiro e a Revolta
do Forte de Copacabana. Porém, até aí percebemos um corpo-a-corpo mais intenso com a
história, pois a referida revolta é relatada em detalhes, extrapolando a mera menção. Quanto
aos demais acontecimentos, a relação é ainda mais visceral. É dada uma pausa na história dos
personagens para falar sobre o pano de fundo político, social e econômico, daí o Narrador
dizer que irá estudar o cenário, em outro momento, vai expor a questão social e os
fundamentos econômicos do domínio oligárquico. Não é apenas menção, mas uma meta que
aproxima o discurso literário do discurso historiográfico, não se trata de uma equivalência,
apenas de uma aproximação que por si só já extrapola divisas antes bem demarcadas. Tudo
isso converte-se em um rico e complexo diálogo com a história, fazendo do romance mais do
que uma idealidade estética criada do nada, mas também uma via de conhecimento
historiográfico, pela reelaboração de componentes derivados de fontes históricas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao chegarmos na etapa final do trabalho, é hora de debruçarmos sobre o começo do
romance, que é precisamente seu título, enigmático e, por isso mesmo, instigante. Havíamos
dito somente se tratar de uma locução adverbial, agora completamos, de lugar e de modo.
Focando no protagonista, a primeira circunstância dá conta de sua vida, isto é, de sua
trajetória pelo mundo, com o personagem enxergando a si mesmo como um ser sem-lugar no
mundo em que vive, e no final, como pertencente a um lugar utópico, que se define não como
posse, mas como busca indefinível. O aspecto ambíguo do personagem central ganha outra
dimensão quando olhamos para relação mantida com o personagem Mão Esquerda de Deus.
Embora o romance mantenha o mistério até o final, a forte aproximação e a possibilidade de
que Pérsio seja o assassino parecem borrar ainda mais a imagem deste, pelo reforço indireto à
sua configuração de herói problemático.
Quanto à segunda circunstância, refere-se ao modo como o romance é construído,
passando pelos elementos que entram em sua construção, comentaremos esse aspecto por
meio do próprio romance, pois À mão esquerda é uma obra que lê e interpreta a si mesma por
meio de referências e procedimentos que a iluminam em termos de estruturação, classificação
e idealização. Além da exposição do mundo ficcional criado, Fausto Wolff se compraz em
fazer com que sua narrativa fale de si mesma, deixando para o leitor pistas que apontam para
a ideia por traz do ato. No que diz respeito à estrutura do romance, com capítulos datados
temporalmente, contando a mesma história, mas abordando-a por partes, a “explicação” pode
ser encontrada no penúltimo capítulo, LIX Percival: 1980. Ele inicia tratando de episódios
desta década, depois, extrapola esse limite e situa o protagonista em sua casa, escrevendo o
seu romance e tendo um rápido diálogo com Bárbara, sua esposa, quando ele diz:
Ela traz o uísque, volta para a cama e me deixa prisioneiro do tempo estático. Creio que sou um dos últimos fervorosos admiradores do astrônomo inglês Fred Hoyle, criador da teoria do tempo estático, ou seja, não há passado nem futuro, apenas um eterno presente. Isto significa que neste momento estou nascendo em algum lugar, matando em outro e morrendo num terceiro, e que essas minhas ações se repetem ad infinitum. Por exemplo, ontem – já não em 1981, quando conheci Bárbara, nem em 1984, quando estive com ela em Traurigzeit, mas em 1990, em Curitiba, na casa da minha irmã Ruth, no quarto do seu filho mais velho, Lélio, de 17 anos –, completamente por acaso, descobri boa parte do porquê da culpa que acompanha os Traurigzeit desde que me conheço por gente. (p. 458).
A declaração é profundamente significativa, tanto pelo que coloca, como pelo fato de
surgir quase ao final e vir justamente do protagonista, que, como vimos, completa a trindade
especular do romance. Primeiro, faz-se o trabalho, mostra-o, depois insere nele sua lógica
constitutiva. Em meados do século, o astrônomo Fred Hoyle (1915-2001), em discordância da
teoria científica de que uma grande explosão – o Big Bang – dera início ao Universo, elaborou
uma explicação alternativa, a que chamou “Teoria do Estado Estacionário”, que postula um
estado estático para o Universo. Na concepção do cientista, tanto na perspectiva temporal,
quanto na espacial, ele permanece o mesmo, nunca tendo havido uma criação ou começo,
entrando pela ideia de eternidade, logo, o Universo também não tem fim.
Dessa concepção de homogeneidade ao longo do tempo, passa-se para a
homogeneidade do próprio tempo, contudo, não se trata de um único momento que seja eterno
e sim que todos os momentos são eternos em sua singularidade, implodindo a visão de
sucessão temporal e instaurando a de simultaneidade. Numa tentativa de aplicar tal noção em
uma narrativa literária, o romance é então estruturalmente construído com base na ideia de
acontecimentos simultâneos. A história é “estilhaçada” em inúmeros fragmentos que são, em
primeiro lugar, os sessenta capítulos datados sem uma ordem pré-estabelecida e a
fragmentação se evidencia também no interior dos próprios capítulos, pois cada um aborda
um emaranhado de assuntos “menores”, mais particulares, segundo a motivação de cada
narrador, assuntos que extrapolam a perspectiva de tempo instaurada pela data.
Pode-se argumentar que a maneira como invariavelmente empreendemos a leitura de
qualquer obra – a saber, começando sempre pelo início do livro até chegar ao seu final –
poderia significar a nulidade da intenção e do procedimento empregado em À mão esquerda.
No entanto, a questão da simultaneidade, do tempo estático, sem passado nem futuro, somente
“presentes”, se evidencia no fato de o romance possibilitar que o leiamos de qualquer ponto
sem prejuízo para a inteligibilidade por parte do leitor. A rigor, ser lermos o vigésimo quinto
capítulo antes do primeiro, não ficaremos mais confusos ou “perdidos” quando lemos na
ordem de surgimento, o efeito é o mesmo, o leitor é que não sabe disso quando inicia a leitura.
Todo e qualquer capítulo acaba tendo o mesmo valor de seus pares, todo ponto pode ser ponto
de partida, pois neste romance, à semelhança de Vidas Secas de Graciliano Ramos, os
capítulos são independentes entre si e todos trazem, igualmente, parcelas de uma única
história, instantâneos de um acontecimento.
Outra forma de como a obra interpreta a si mesma, encontramos na autoclassificação
atribuída no capítulo vinte e quatro: “ficção histórica introspectiva”. No início desse capítulo,
preocupado com a possibilidade de o estilo da obra ser prejudicado pela desatenção do Autor,
fazendo com que ela descambe para o que qualifica de “realismo mágico”, o Narrador acaba
por conferir essa designação ao romance. Depois do percurso empreendido aqui, e por isso
mesmo deixamos para tratar da questão agora, não é difícil concordamos com o Narrador.
Ora, desde a primeira página da narrativa é colocado para o leitor que um romance é o que ele
está lendo, portanto, uma prosa de ficção. Em segundo lugar, é uma narrativa histórica porque
se presta a contar a saga da família von Traurigzeit, desde quando sustentava o título de
dinastia, passando pela condição de colonos no Brasil, chegando ao século vinte com o núcleo
familiar que é o retrato da classe pobre brasileira e culminando na história de vida do
Traurigzeit de destaque no romance.
Além disso, a história social e política em torno dos personagens desta saga é enfocada
criticamente com vistas a denunciar as aporias e problemáticas da sociedade. Essa investida se
destina a nos lembrar que por trás do indivíduo tem sempre uma sociedade com regras, com
classes, com governantes e seus jogos de poder, e que tudo isso influencia a vida dos sujeitos
individual e coletivo. Para tanto, o romance se vale de quase três dezenas de narradores, que
aos dois assuntos acima, juntam o relato de suas histórias particulares, seus dramas, traumas,
amarguras, desejos, enveredando por uma narração introspectiva, apoiada principalmente pela
rememoração. A narração coletiva imprime ao romance um alto nível de fabulação, com isso
queremos dizer que Fausto Wolff se lança com vigor na criação de histórias, casos, situações,
episódios os mais variados, fatos históricos são misturados a eventos inteiramente
imaginados, fazendo da narrativa uma profusão de eventos.
Por último, a maneira mais complexa pela qual o romance fala de si mesmo está nos
discursos autorreferenciais, no trabalho do personagem Autor, que, no fundo, é o trabalho do
autor empírico transposto para dentro da obra. Como apontado, as passagens expõem aos
olhos do leitor o processo de construção do romance, levantando questões que percorrem o
trabalho de criação, assim, o leitor pode, mais do que nunca, pensar a narrativa que lê
enquanto objeto em elaboração. A questão se aprofunda quando olhamos para a obra do ponto
de vista de sua idealização, isto é, partindo do que lhe dá origem, e não falamos aqui de
imaginação. Na parte destinada a examinar essas passagens, vimos que a escrita
memorialística e autobiográfica estão no horizonte do Autor enquanto vontade, ao mesmo
tempo, ele tem a necessidade de escrever uma narrativa que atenda às exigências do mercado
e do público e lhe traga um retorno financeiro satisfatório, um “troço comercial pacas”,
segundo ele mesmo.
Nesse embate entre vontade e necessidade, o Autor escreve de fato um romance, só
que apoiado em sua própria história e experiência de vida, inclusive, denunciando um
verdadeiro recurso de ficcionalização: mudar os nomes dos personagens. Fausto Wolff, por
sua vez, conforme vimos quando tratamos da questão autobiográfica, igualmente nutriu a sua
obra de elementos retirados de sua própria trajetória de vida, bem como da história de sua
família. Colocando em paralelo, o autor empírico reproduziu dentro do romance a ideia e o
procedimento que usou em sua elaboração, a vontade do Autor é a vontade de Fausto, que
desejando contar as suas experiências particulares de vida, usou a forma romanesca para não
recorrer ao gênero autobiografia, o que limitaria sobremaneira o conteúdo a ser trabalhado.
Já a prosa de ficção, com destaque para o romance, forma “aberta” por excelência, se
presta à comunhão entre diversas maneiras de expressão e conteúdos. No que diz respeito à
memória e à autobiografia, por exemplo, em À mão esquerda estão presentes os grandes
assuntos recorrentes nessas modalidades de escrita, tais como a elaboração da ancestralidade,
o tema da infância com as descobertas em geral, como a descoberta da sexualidade e da
realidade atroz do mundo, os “fantasmas” da memória, ou seja, os traumas e as angústias que
o indivíduo carrega consigo, seus deslocamentos pelo mundo, as atividades e os empregos que
teve e os relacionamentos amorosos mais duradouros. Tudo isso são apenas dados
autobiográficos trazidos sob a égide da ficção, passando a figurar como verdades ficcionais,
mas que um conhecedor da literatura e da vida de Wolff sabe reconhecer como oriundos de
outra fonte, a vida e a memória do autor.
Com os comentários acima, tocamos no que podemos chamar de os quatro pilares do
romance: a ficção, a autobiografia, a história e a memória. São pilares porque estão na
constituição fundamental da obra, enformando-a do começo ao fim e assegurando uma certa
“visão de totalidade”, por mais problemático que isso seja nos dias atuais, principalmente em
se tratando de uma obra marcada pela fragmentação em termos de estrutura e de conteúdo.
Aqui, apoiamos-nos nas ideias de Lukács, para quem “O romance é a epopéia de uma era para
a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a
imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a
totalidade” (LUKÁCS, 2000, p. 55); mais à frente, ele reforça a mesma ideia: “A epopéia dá
forma a uma totalidade de vida fechada a partir de si mesma, o romance busca descobrir e
construir, pela forma, a totalidade oculta da vida.” (Idem, p. 60).
Tudo se dá enquanto busca, enquanto intenção de descobrir e construir o que na
epopéia já estava pronto a priori, o sentido da vida; no romance, a apreensão do “objeto”
passa pela sua paulatina e abstrata descoberta e construção. À mão esquerda empreende essa
busca a seu modo, construindo, ao final, uma visão de totalidade, pois o resultado não se dá de
modo acabado e completo, mas enquanto projeto idealizado, enquanto pura visão, isto é,
projeção, não como um dado concreto e objetivo, alcançável e alcançado, com carimbo de
reconhecimento e certificado de garantia. Fausto Wolff se empenha em buscar/construir essa
visão de totalidade através justamente dos pilares referidos e da fragmentação da obra, o que
significa dizer, casando conteúdo e forma na tentativa de alcançar esse objetivo.
A biografia, que é a “forma exterior do romance”, nas palavras de Lukács, e que no
caso de À mão esquerda “relampeja” como autobiografia, confere a este romance, na figura
do protagonista, um centro de gravitação em torno do qual os narradores-personagens fazem
seus discursos girar. Concomitantemente, o romance se vale da memória para colocar que
todos somos sujeitos de memória e que essa é a maneira primordial pela qual nos construímos
e nos identificamos, ou seja, pela reconstrução de nosso passado, de nossa história particular.
Em outro plano, o romance nos lembra que somos sujeitos sociais e vivemos dentro da
história de nosso tempo, que a influenciamos e somos por ela influenciados.
Dessa forma, o autor intenta abordar o sujeito tanto de um ponto de vista exterior
quanto interior, tanto em sua constituição subjetiva quanto em sua inserção histórica, numa
disposição bem próxima da ideia defendida em entrevista, de que “sem o homem não há
literatura, assim como não há texto sem contexto”. A fragmentação, por seu lado, em vez de
ser elemento de liquefação, contrário à busca de projetar uma ideia de totalidade, surge como
um modo coerente e adequado à constatação de que o sentido da vida não é mais evidente,
nem pode mais ser apreendido em sua totalidade. Esse recurso formal se apresenta, então, de
maneira ambivalente: é uma via possível, talvez única, de se chegar perto de tal ideia, de
realizá-la enquanto busca, porém, ao mesmo tempo, traz estampado em sua face o
reconhecimento tácito da impossibilidade da empreitada.
REFERÊNCIAS
1. Obras do autor: BROOKNER, Anita; WOLFF, Fausto. O sorriso distante. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. WOLFF, Fausto. ABC do Fausto Wolff. Porto Alegre: L&PM, 1988. ______. A imprensa livre de Fausto Wolff. Porto Alegre: L&PM, 2004. ______. À mão esquerda. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007. ______. A milésima segunda noite. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. ______. Carta (com pretensão de conto) de um autor aos estudantes. São Paulo: Editora Nacional, 2002. ______. Cem poemas de amor e uma canção despreocupada. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. ______. Gaiteiro velho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. ______. Matem o cantor e chamem o garçom. Rio de Janeiro: Codecri, 1978. ______. O acrobata pede desculpas e cai. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. ______. O campo de batalha sou eu. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007. ______. O dia em que comeram o ministro. Rio de Janeiro: Codecri, 1982. ______. O homem e seu algoz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. ______. O lobo atrás do espelho: (o romance do século). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. ______. Olympia: um romance. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007. ______. O nome de Deus. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. ______. O ogre e o passarinho. São Paulo: Ática, 2002. ______. O pacto de Wolffenbüttel e a recriação do homem. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. ______. Os palestinos: judeus da 3ª guerra mundial. São Paulo: Alfa-Omega, 1986. ______. Sandra na Terra do Antes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
______. Tristana: a maior gota d´agua do mundo. São Paulo: Companhia Editoa Nacional, 1984. ______. Venderam a mãe gentil. Rio de Janeiro: Codecri, 1984. 2. Sobre o autor: BACKES, Marcelo. “Posfácio: Realidade e ficção no olimpo artístico de Fausto Wolff”. In.: WOLFF, Fausto. À mão esquerda. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007. ESTEVES, Eunice. “Uma nova teogonia: o olimpo de Fausto Wolff”. In.: WOLFF, Fausto. Olympia: um romance. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007. FAZENDO MÉDIA [homepage online]. Entrevista. [concedida em 15 de fevereiro de 2006]. Disponível em: <http://www.fazendomedia.com/novas/entrevista150206.htm>. Acesso em: 11 agos. 2008. SOARES, Fábio. Forma literária e forma social: fragmentação e totalidade em À mão esquerda, de Fausto Wolff. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005. Disponível em: <http//www.tede.ufsc.br/teses/PLIT0196.pdf>. Acesso em: 18 agos. 2008. 3. Bibliografia geral ANJOS, Augustos dos. O amanuense Belmiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1966. AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. ______. Profanações. Tradução e apresentação de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. ARANTES, Aldinéia Cardoso. O estatuto do anti-herói: estudo da origem e representação, em análise crítica do Satyricon, de Petrônio e Dom Quixote, de Cervantes. Dissertação (Mestrado) Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2008. Disponível em: <http://www.ple.uem.br/defesas/pdf/acarantes.pdf>. Acesso em: 05 fev. 2010. AUERBACH, Erich. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1987. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiésvki; tradução Paulo Bezerra. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. BARBIERI, Therezinha. “Contracenando com a História”. In.: ______. Ficção impura: prosa brasileira dos anos 70, 80, e 90. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. pp. 77-106.
BARTHES, Roland. “A morte do autor”; “Da obra ao texto”. In.: ______. O rumor da língua. Prefácio Leyla Perrone-Moisés; tradução Mario Laranjeira; revisão de tradução Andréa Stahel M. da Silva. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. respectivamente, p. 57-64, 65-75. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas I. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet, pref. Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985. BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. BOSI, Alfredo. “O tempo e os tempos”. In.: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 19-32. CIORAN, Emile M. Exercícios de admiração: ensaios e perfis. Prefácio e tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto: Prolegômenos e teoria da narrativa. vol. 1, São Paulo: Ática, 1995. EAGLETON, Terry. “Verdade, virtude e objetividade”. In: ______. Depois da teoria: um olhar sobre os Estudos Culturais e o pós-modernismo; tradução de Maria Lucia Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 145-189. FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. Trad. Antonio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro; Pref. José A. Bragança de Miranda e Antonio Fernando Cascais. 3a ed. Passagens/Vega, 1992. FRANCO, Renato. “Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70”. In.: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória e literatura: o testemunho na era das catástrofes. São Paulo: Unicamp, 2003. pp. 351-369. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2007. ______. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. ______. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1997. KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica: Bernardo Carvalho, Fernando Vallejo, Washington Cucurto, João Gilberto Noll, César Aira, Silviano Santiago. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Organização: Jovita Maria Gerheim Noronha; tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. LIMA, Luiz Costa. A aguarrás do tempo: estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
______. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução, posfácio e notas de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. MENDILOW, A. A. O tempo e o romance. Traduzido por Flávio Wolf. Porto Alegre: Editora Globo, 1972. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988. PIMENTEL, A. F. “Graciliano Ramos e Machado de Assis”. In.: BRAYNER, Sônia. (org.). Graciliano Ramos: seleção de textos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. pg. 238-243. REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. RIBEIRO, Manoel Pinto. Gramática aplicada da língua portuguesa. Revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Metáfora Ed., 2003. RICOEUR, Paul. “Segunda Seção: Poética da narrativa: história, ficção, tempo”. In:______. Tempo e narrativa. Tradução Roberto Leal Ferreira; revisão técnica Maria da Penha Villela-Petit. Campinas, SP: Papirus, 1997. Tomo III. p. 173-469. SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. SANTOS, Matildes Demétrio dos. Ao sol carta é farol: a correspondência de Mário de Andrade e outros missivistas. São Paulo: Annablume, 1998. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Apresentação da questão: a literatura do trauma”; “O testemunho: entre a ficção e o ‘real’”. In.: _____. (org.). História, memória e literatura: o testemunho na era das catástrofes. São Paulo: Unicamp, 2003. p. 45-58, 371-385, respectivamente. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar. Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1976. SONTAG, Susan. Questão de ênfase. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. WERLE, Marco Aurélio. Winckelmann, Lessing e Herder: estéticas do efeito?. Trans/Form/Ação [online]. Vol. 23, no.1, 2000. p. 19-50. ISSN 0101-3173. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732000000100002>. Acesso em: 10 fev. 2010. WOLFF, Fausto. Diário de uma barata. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 fev. 2008. Caderno B, p. B2.