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sociologia das instituiçõesTRANSCRIPT
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Introdução
Os modernos Estados constitucionais podemser visualizados como um conjunto de órgãos ins-tituídos para a criação, aplicação e cumprimentodas leis. Com a despersonalização do poder doEstado, este passa a fundar sua legitimidade nãomais no carisma ou na tradição, mas em uma ra-cionalidade legal, isto é, a crença na legalidade deordenações regularmente estatuídas e nos direitosde mando dos chamados por essas ordenações a
exercerem a autoridade (Weber, 1996, p. 172).
Nesse tipo de Estado, a legitimidade deriva de asnormas terem sido produzidas de modo formal-mente válido, e da pretensão de que sejam respei-tadas por todos aqueles situados no âmbito de po-der desse Estado.1
Entre as principais características desse tipode Estado está o controle centralizado dos meiosde coerção. O Estado moderno apresenta-se, as-sim, como um complexo institucional artificial-mente planejado e deliberadamente erigido, quetem como característica estrutural mais destacadao monopólio da violência legítima, garantido pelo
que Weber chama de um quadro coativo (Weber,1996, p. 28). O controle centralizado dos meios decoerção é fortalecido pela legitimidade que lheconfere a racionalidade jurídica, tornando a coer-ção mais tecnicamente sofisticada e exercida porum setor especializado do Estado. Esta caracterís-tica constitui-se em um marco do que Elias deno-mina processo civilizador, com a adoção de for-
JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS Uma abordagem sociológicasobre a informalizaçãoda justiça penal no Brasil *
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
* O presente artigo é um resumo do material empíri-co pesquisado e das conclusões da dissertação demestrado, intitulada Informalização da justiça e
controle social: estudo sociológico da implantação
dos Juizados Especiais Criminais em Porto Alegre ,apresentada ao Programa de Pós-Graduação em So-ciologia da UFRGS, em abril de 1999, tendo comoorientador o prof. Dr. José Vicente Tavares dos San-tos, e publicada pelo Instituto Brasileiro de CiênciasCriminais.
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mas mais racionais e previsíveis de instauração deprocessos e de punição pela prática de atos legale previamente previstos como crimes.2
Correspondendo, como paradigma teórico,
aos modernos Estados liberais, a doutrina do direi-to como conjunto orgânico e universalmente váli-do de normas institucionalmente reconhecidas éprogressivamente minada, na época contemporâ-nea, por tentativas de adequar a regulamentaçãolegal e a sua implementação pelas instâncias judi-ciais a um contexto de onde emergem discursosnormativos rivais e se exige do Estado a execuçãode funções crescentemente político-administrativas.
A concentração de poder no Estado, a com-plexificação da sociedade e a regulamentação le-gal de setores cada vez mais amplos da vida so-cial culmina, nas sociedades urbano-industriais dofinal do século XX, com a crise de legitimidade deuma ordem baseada em um discurso jurídico es-
vaziado, paralela e simultaneamente à crise fiscaldo Estado-Providência. Começam a aparecer asfissuras neste aparato que ainda sustenta sua legi-timidade em uma legalidade abstrata, constituídade acordo com normas gerais e apropriadamentepromulgadas. Isso ocorre porque algumas premis-sas da racionalidade legal começam a ser minadasou desgastadas (a divisão de poderes, a suprema-
cia e generalidade da lei etc.) ante a concentraçãode expectativas no âmbito do poder executivo edos recursos limitados de que dispõe para garan-tir a estabilidade social e a acumulação de capital.
Além disso, na medida em que se desgasta acrença na naturalidade das hierarquias de poderou de distribuição de riqueza, a atividade gover-namental (inclusive a judicial) passa a dependercada vez mais de suas conseqüências em termosda satisfação de interesses fracionários. A linha di-
visória entre Estado e sociedade civil começa a setornar mais difusa,3 aumentando a influência e a
pressão sobre as políticas governamentais e as de-cisões judiciais por parte das forças sociais (desdeas camadas subprivilegiadas até as grandes em-presas multinacionais) que se rebelam contra a es-trita observância de normas processuais e legais.
Busca-se, então, a renovação das fontes delegitimidade do Estado na sua capacidade em pro-mover o desenvolvimento industrial e o cresci-
mento econômico, vistos como padrão necessárioe suficiente para o desempenho de cada Estado, ena garantia da efetividade dos mecanismos for-mais de controle social para a manutenção da or-
dem, justificando com isso deslocamentos na li-nha Estado/sociedade civil (Poggi, 1981, p. 140).
A busca de prosperidade interna, como um fimem si mesmo, e a manutenção da ordem públicatornam-se as principais justificativas para a exis-tência do Estado e a sua fonte de legitimidade, so-brepondo-se à mera racionalidade jurídico-legal.
No âmbito do sistema formal de controle so-cial, ou seja, o sistema penal, as reformas institu-cionais que daí decorrem são apresentadas comotentativas de dar conta do aumento das taxas decriminalidade violenta, do crescimento geométri-co da criminalidade organizada e do sentimentode insegurança que se verifica nos grandes aglo-merados urbanos. A pressão da opinião pública,amplificada pelos meios de comunicação de mas-sa, aponta no sentido de uma ampliação do âmbi-to de incidência do controle penal, tendo comoparadigma preferencial a chamada política de “to-lerância zero”, adotada pela prefeitura de Nova
York no início dos anos 90 e defendida por dife-rentes setores do espectro político. O pressupostodessa política de segurança pública é a perda de
eficácia das estratégias brandas ou informais decontrole social.4
O problema é que as mudanças sociais ocor-ridas durante o século XX foram gradualmenteenfraquecendo os mecanismos de controle comu-nitário sobre os comportamentos, exacerbandodeterminados focos de conflito antes abafados porhierarquias tradicionais de poder. Com o debilita-mento dos controles sociais informais, o crescen-te sentimento social de desordem ampliou a de-manda para que o Estado restaurasse a ordemmesmo em domínios familiares e de vizinhança.
Para assegurar a consistência das expectativasnormativas existentes na sociedade, o sistema pe-nal passa a ter de responder a uma demanda cres-cente por resolução de conflitos privados.
Em sociedades com alto grau de complexi-dade, no entanto, se expressam muito mais ex-pectativas normativas do que podem ser efetiva-mente institucionalizadas. Para assegurar a consis-
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tência das expectativas normativas criadas pelo di-reito, o mecanismo eleito é a pena ou sanção,principalmente pelo seu papel simbólico, e nãopor sua real incidência sobre os autores de deli-
tos. Enquanto nas décadas de 60 e 70 a explosãode litigiosidade se deu sobretudo no domínio dajustiça civil, no período mais recente (anos 80 e90) a justiça penal assume o papel de protagonis-ta, que além de dar conta da “velha” criminalida-de individual, passa a ter de responder a umanova demanda, já que desde a proteção ao meioambiente até as regras de trânsito são ancoradasno poder de punir do Estado. Isto somado à cres-cente demanda social pelo fim da impunidade doscrimes de corrupção (“colarinho branco”) e ao au-mento da criminalidade urbana violenta coloca ostribunais no centro de um complexo problema decontrole social.
Diante da crise fiscal do Estado e do aumen-to da demanda por controle penal, as novas estra-tégias de controle vão incorporar a contribuiçãodos estudos sociológicos e antropológicos quetiveram por objeto o sistema jurídico. Paralela-mente aos mecanismos convencionais de adminis-tração da justiça, surgem novos mecanismos deresolução de conflitos através de instituições maiságeis, relativa ou totalmente desprofissionalizadas
e menos onerosas, de modo a maximizar o aces-so aos serviços, diminuir a morosidade judicial eequacionar os conflitos por meio da mediação.
Na esfera penal, essas reformas operam me-diante movimentos de despenalização e de infor-malização, na busca de alternativas de controlemais eficazes e menos dispendiosas do que as ofe-recidas pelo sistema penal tradicional. Quer sefundamentem em razões de legitimidade, quer pri-
vilegiem uma perspectiva de eficácia, as reformas,no sentido da informalização, assumem caracterís-ticas diversas. No âmbito do direito material, pode
ser adotada a forma direta de descriminalização,pela revogação da norma incriminatória, ou ser in-corporados princípios gerais de aplicação da pena,excluindo de sua incidência os chamados delitosde bagatela. No âmbito do direito processual, asmudanças têm visado o alargamento do princípiode oportunidade da ação penal, conferindo aoacusado uma gama de alternativas (transação, sus-
pensão condicional do processo) nos chamadosdelitos de menor potencial ofensivo, e incorporan-do a participação da vítima para o encaminhamen-to da questão. No âmbito processual, as alternati-
vas de informalização apontam para a redução dacompetência do sistema penal tradicional em rela-ção ao controle de condutas que permanecemsendo consideradas socialmente indesejáveis. Sãoas chamadas soluções conciliatórias, que visampromover a interação face a face entre vítima eacusado como forma de superar o conflito queestá na origem do delito. As soluções de concilia-ção constituem uma das manifestações mais ex-pressivas do movimento de “deslegalização” ou“informalização” da justiça.
Nas heterogêneas comunidades urbanascontemporâneas, os programas de mediação e in-formalização da justiça penal obtêm uma rápidaadesão graças à insatisfação com as sanções pe-nais tradicionais para a solução de disputas e con-flitos interpessoais, e apelam para as estruturasexistentes na comunidade, embora muitas vezesnão passem de um apêndice do sistema legal for-mal. De qualquer forma, correspondem à buscade alternativas de controle mais eficazes e menosonerosas do que as oferecidas pelo sistema penaltradicional, que permitam um tratamento indivi-
dualizado, particularista, de cada caso concreto,em vez da orientação pela generalidade e univer-salidade das normas jurídicas.
Pesquisas sobre os modelos de informaliza-ção adotados em diversos Estados norte-america-nos identificaram uma importante diferenciação,embora determinadas características fossem recor-rentes.5 Em alguns casos, enfatiza-se a mediaçãocomo processo terapêutico e a pressão da comuni-dade é o meio para alcançar soluções voluntaria-mente acordadas entre as partes, no interior dascortes tradicionais. Em outros casos, os modelos
apresentam-se como uma alternativa ao sistemaformal, por exemplo, as chamadas community
courts , que tem jurisdição exclusiva sobre certasofensas. A corte comunitária tem funções concilia-tórias e adjudicatórias, e os mediadores são eleitospela comunidade onde residem e recebem um trei-namento formal mínimo. Esse modelo aproxima-seda chamada democracia participativa, com o envol-
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vimento maior da comunidade em questões antesrestritas e resolvidas pelo aparato estatal.
Em que pese a existência de modelos dife-renciados, os elementos conceituais que configu-
ram um tipo ideal de informalização da justiça nosEstados contemporâneos são: estrutura menos bu-rocrática e relativamente mais próxima do meiosocial em que atua; aposta na capacidade dos dis-putantes de promover sua própria defesa, dimi-nuindo a necessidade de profissionais e o uso dalinguagem legal formal; preferência por normassubstantivas e procedimentais mais flexíveis, par-ticularistas, ad hoc; mediação e conciliação entreas partes mais do que a adjudicação de culpa; par-ticipação de não juristas como mediadores; preo-cupação com uma grande variedade de assuntose evidências, rompendo com a máxima de que “oque não está no processo não está no mundo”; fa-cilitação do acesso aos serviços judiciais para pes-soas com recursos limitados para assegurar auxí-lio legal profissional; ambiente mais humano ecuidadoso, com uma justiça resolutiva rápida, eênfase em uma maior imparcialidade, durabilida-de e mútua concordância no resultado; geraçãode um senso de comunidade e estabelecimentode um controle local através da resolução judicialde conflitos; maior relevância em sanções não
coercitivas para se obter acatamento.
A Lei 9.0999/95 e a informalização da jus-tiça penal no Brasil
No Brasil, a incorporação dessas inovaçõesno sistema judicial teve impulso a partir dos anos80, em especial após a promulgação da Constitui-ção de 1988. Uma série de novos mecanismospara a solução de litígios foi criada com vistas àagilização dos trâmites processuais, entre os quais
têm um significado relevante os Juizados Espe-ciais Cíveis e Criminais, voltados para as chama-das pequenas causas e para os delitos de menorpotencial ofensivo, previstos no ordenamentoconstitucional e regulamentados pela Lei Federaln. 9.099, de setembro de 1995.
A implantação dos Juizados Especiais Crimi-nais (JEC) integra uma lógica de informalização
entendida não como a renúncia do Estado ao con-trole de condutas e no alargamento das margensde tolerância, mas como a procura de alternativasde controle mais eficazes e menos onerosas (Dias
e Andrade, 1992, p. 403). Para esses Juizados vãoconfluir determinados tipos de delitos (com penamáxima em abstrato até um ano) e de acusados(não reincidentes). Com a sua implantação, espe-ra-se que as antigas varas criminais possam atuarcom maior prioridade sobre os crimes de maiorpotencial ofensivo.
Promulgada a Lei 9.099/95, o rito processualnela previsto passou a ser imediatamente aplica-do, pelas Varas Criminais comuns, para os delitosde menor potencial ofensivo, especialmente asuspensão condicional do processo e as novas al-ternativas de conciliação entre vítima e autor dofato e de transação entre Ministério Público e au-tor do fato.
Porto Alegre foi uma das primeiras comarcasde grande porte a criar os Juizados Especiais Cri-minais, que passaram a ter competência exclusivapara o processamento dos delitos previstos na lei9.099/95, com a edição da Lei Estadual n. 10.675,em 2 de janeiro de 1996, que criou o Sistema dos
Juizados Especiais Cíveis e Criminais no Estado doRio Grande do Sul.
Pelo pioneirismo de sua implantação,6
os Jui-zados Especiais Criminais de Porto Alegre consti-tuem-se em um importante laboratório para a ve-rificação da aplicabilidade dos dispositivos da Lei9.099/95, das mudanças no movimento processualefetivamente ocorridas, assim como das dificulda-des estruturais existentes na máquina burocráticado poder judiciário no sentido de oferecer umaprestação de justiça mais ágil e voltada para a de-fesa dos interesses e a resolução dos dilemas daclientela do sistema penal (vítimas e acusados).
A Lei 9.099/95 deu aos Juizados Especiais
Criminais a competência para a conciliação e ojulgamento das infrações penais de menor poten-cial ofensivo, que compreendem as contravençõespenais (Decreto-Lei n. 3.688, de 03.10.1941) e oscrimes cuja lei penal comine pena máxima nãosuperior a um ano de detenção ou reclusão, exce-tuados os delitos para os quais está previsto umprocedimento especial.
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Até a edição dessa Lei, as contravenções pe-nais e os delitos punidos com pena de detençãoeram processados pelo rito processual previsto noCapítulo V, Título II, do Livro II (art. 531 a 540) do
Código de Processo Penal, denominado ProcessoSumário. Pouca diferença havia entre este tipo deprocedimento e o Processo Ordinário, aplicadoaos delitos apenados com reclusão. A lei previaapenas a redução de alguns prazos e o abrevia-mento de determinados momentos processuais,mas a estrutura do processo era basicamente amesma: inquérito policial, denúncia do MinistérioPúblico, interrogatório do réu, defesa prévia, au-diência de instrução, debates orais, julgamento.Não havia a possibilidade de reparação civil dosdanos sofridos pela vítima no próprio processopenal, relegando-a ao papel de mero informanteda justiça penal. Nem tinha o réu qualquer inte-resse em reconhecer o fato que lhe era imputado,com a negociação em torno da pena.
De acordo com o que estabelece a legislaçãono art. 62 da Lei 9.099/95, o processo perante os
Juizados Especiais Criminais deve ser orientadopelos critérios de oralidade, informalidade, econo-mia processual e celeridade, objetivando, sempreque possível, a reparação dos danos sofridos pela
vítima e a aplicação de pena não privativa de li-
berdade. Dispensando a realização do inquéritopolicial, a Lei 9.099/95 determina que a autorida-de policial, ao tomar conhecimento do fato deli-tuoso, deve imediatamente lavrar um termocircunstanciado do ocorrido e encaminhá-lo ao
Juizado, se possível com o autor do fato e a víti-ma, providenciando a requisição dos examespericiais necessários para a comprovação da ma-terialidade do fato (art. 69).
Não sendo possível o comparecimento ime-diato de qualquer dos envolvidos ao Juizado, aSecretaria do Juizado deverá providenciar a inti-
mação da vítima e do autor do fato, por corres-pondência com aviso de recebimento, para quecompareçam à audiência preliminar (art. 71). Nes-ta, presentes o representante do Ministério Públi-co, o autor do fato e a vítima, acompanhados deadvogado, o juiz esclarecerá sobre a possibilidadede composição dos danos, assim como sobre asconseqüências da aceitação da proposta de apli-
cação imediata de pena não privativa de liberda-de ao autor do fato (art. 72).
Nos crimes de ação penal privada e de açãopenal pública condicionada à representação, o
acordo para a composição dos danos extingue apunibilidade. Não obtido o acordo, o juiz dá ime-diatamente à vítima a oportunidade de exercer odireito de oferecer queixa-crime ou representação
verbal (art. 75). Havendo queixa-crime ou repre-sentação ou sendo o crime de ação penal públicaincondicionada, o Ministério Público poderá pro-por ao autor do fato a transação penal, com a apli-cação imediata de pena restritiva de direitos oumulta, a não ser no caso de o acusado ser reinci-dente ou de “não indicarem os antecedentes, aconduta social e a personalidade do agente, bemcomo os motivos e as circunstâncias, ser necessá-ria e suficiente a adoção da medida” (art. 76). Nãoaceita a proposta, o representante do MinistérioPúblico oferecerá ao juiz, de imediato, uma de-núncia oral, e o processo seguirá o rito sumaríssi-mo, previsto na Lei. Oferecida a denúncia, pode-rá ainda o representante do Ministério Públicopropor a suspensão do processo por dois a qua-tro anos, desde que o denunciado não esteja sen-do processado ou não tenha sido condenado poroutro crime. A suspensão será revogada se, no
curso do prazo, o denunciado for processado poroutro crime ou descumprir qualquer outra condi-ção imposta. Expirado o prazo sem revogação, ojuiz declarará extinta a punibilidade.
Caso não seja possível a suspensão do pro-cesso, o juiz deverá intimar as partes para a au-diência de instrução e julgamento, que se iniciacom a resposta oral da defesa à acusação formu-lada na denúncia ou queixa-crime. Aceita a argu-mentação da defesa, o juiz não recebe a denúnciaou queixa e encerra o processo. Recebida a de-núncia ou queixa, são ouvidas a vítima e as teste-
munhas de acusação e de defesa, o acusado é in-terrogado e realizam-se os debates orais entre adefesa e a acusação. Em seguida, o juiz profere asentença final condenatória ou absolutória.
Os recursos previstos pela Lei 9.099/95 – aapelação (em caso de sentença condenatória ouabsolutória ou da decisão de rejeição da denúnciaou queixa) e os embargos de declaração (em caso
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de obscuridade, contradição, omissão ou dúvidana sentença) – são encaminhados a uma TurmaRecursal composta de três juízes em exercício noprimeiro grau de jurisdição.
A implantação dos Juizados Especiais Cri-minais em Porto Alegre
Para dar conta da análise do período de im-plantação dos Juizados Especiais Criminais na Co-marca de Porto Alegre, a partir de uma perspecti-
va sociológica, foi adotado o método do estudode caso, reunindo dados a partir de diferentes téc-nicas de pesquisa, para abarcar o conjunto dequestões que deveriam ser enfrentadas.
Como se sabe, as instâncias judiciais singula-rizam-se, entre as demais instâncias de controlesocial, por serem as mais opacas e resistentes à“devassa” da investigação sociológica. Tal situaçãoé compreensível, uma vez que, de todas as insti-tuições, são os tribunais judiciais aqueles cuja le-gitimidade depende em maior medida da integri-dade de uma imagem decantada e hipostasiadaem séculos de teorização política e jurídica (Diase Andrade, 1992, pp. 527-528).
A análise de um objeto com este grau de
complexidade compreende uma série de passosfundamentais na investigação: a construção doobjeto científico; a relação entre o investigador eo investigado; o questionamento dos métodos etécnicas de investigação; a perspectiva da descon-tinuidade do pensamento sociológico no momen-to da elaboração interpretativa. É a perspectiva dacomplexidade, “mediante a qual o conhecimentoé definido como um processo multidimensional,marcado pela diversidade, pela multiplicidade epela multidimensionalidade” (Tavares dos Santos,1995, p. 74). O reconhecimento dos limites de
toda técnica e da própria relação entre sujeito-in- vestigador e sujeito-investigado leva a um pluralis-mo teórico-metodológico.
Em um primeiro momento, buscou-se obteros dados estatísticos disponíveis para o períodopesquisado. Coletados e tabulados pela Correge-doria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça doRio Grande do Sul, com o auxílio da Procergs, os
dados obtidos dizem respeito ao movimento pro-cessual penal na comarca de Porto Alegre, no pe-ríodo imediatamente anterior (1994 e 1995) e pos-terior (1996 e 1997) à implantação dos Juizados.
Também estavam disponíveis as decisões termina-tivas adotadas nos Juizados Especiais Criminais dePorto Alegre, cuja fonte eram os mapas de movi-mento processual fornecidos mensalmente pelassecretarias dos Juizados à Corregedoria Geral de
Justiça. Por fim, obteve-se também o gráfico com-parativo de morosidade judicial entre os Juizadose as Varas Criminais, para os processos concluídosno primeiro semestre de 1998.
A partir do levantamento de dados estatísti-cos acima citados, e levando em consideração acarência de dados quanto a uma série de elemen-tos essenciais para a compreensão de como a lei
vem sendo aplicada na prática (tipos de delito,dados sobre as partes, tipos de conflito etc.), par-tiu-se para a etapa de observação sistemática deaudiências nesses Juizados, nos meses de junho aoutubro de 1998.
Quando da realização das observações, jáhavia entrado em vigor o novo Código Nacionalde Trânsito, retirando dos Juizados Especiais Cri-minais a competência para julgar a maioria dosdelitos de trânsito. Embora no primeiro semestre
ainda estivessem em funcionamento os três Juiza-dos especializados neste tipo de delito, extintosem agosto de 1998, optamos por restringir a ob-servação aos JEC comuns, que passaram a julgartambém os poucos delitos de trânsito que manti-
veram a pena máxima até um ano (por exemplo,direção sem habilitação), para que a análise pu-desse contemplar essa nova situação.
Ingressando nas salas de audiência comoqualquer estagiário de direito, realizamos o traba-lho de observação sistemática de um total de ses-senta audiências, sendo 28 delas nos Fóruns Re-
gionais e 32 no Fórum Central. A verificação doque efetivamente ocorre no momento de intera-ção face a face entre os operadores jurídicos dosistema e a sua clientela permitiu verificar a exis-tência de uma série de padrões de judicializaçãode conflitos nos Juizados Especiais Criminais. Fo-ram constatados alguns tipos de delito predomi-nantes, vinculados a determinadas formas de
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conflitualidade social. Em relação às partes envol- vidas, foi possível verificar como se distribuem ví-timas e autores do fato a partir da variável de gê-nero. Também foi possível identificar como tem
sido alcançada a conciliação ou a transação pe-nal, ou seja, qual o conteúdo concreto deste tipode solução nos casos observados, bem como asdiversas situações em que o juiz é colocado dian-te de limitações estruturais para o exato cumpri-mento de que dispõe a legislação (ausência dedefensor para as partes, ausência do MinistérioPúblico etc.).
Após a tabulação dos dados estatísticos e aobservação das audiências nos Juizados de Porto
Alegre, partimos para as entrevistas com juízesque atuavam ou haviam atuado nesses Juizados, jáque a observação das audiências indicava que,entre os operadores jurídicos, cabia aos juízes umpapel preponderante na dinâmica de funciona-mento dos novos Juizados, conferindo maior oumenor eficácia dos instrumentos processuais pre-
vistos pela Lei 9.099/95. Foram entrevistados seisjuízes criminais, contemplando a diversidade deexperiências, fruto do maior ou menor tempo deatuação nos Juizados, bem como pela atuação emdiferentes Fóruns Regionais. Entre os entrevista-dos, encontramos juízes que atuavam nos Juiza-
dos Criminais desde sua implantação, em 1996, eoutros que estavam substituindo o titular haviaapenas um mês. Também encontramos profissio-nais que já haviam atuado em outros Juizados,como os de trânsito, e agora tinham sido realoca-dos para um Juizado comum, além de juízes que
vinham de experiências em Juizados Especiais nointerior do Estado. Quanto à diversidade territo-rial, as entrevistas contemplaram juízes com pas-sagem por dois Juizados do Fórum Central, pelos
Juizados Regionais de Sarandi, Alto Petrópolis ePartenon.
Com a implantação dos Juizados Especiais,havia a expectativa de uma significativa reduçãodo movimento processual nas Varas Criminais Co-muns, que poderiam, assim, concentrar a atençãonos delitos mais graves. A análise do movimentoprocessual verificado na Comarca de Porto Alegrenos dois anos anteriores e posteriores à implanta-ção não confirma essa expectativa.
Tomando por base os dados fornecidos pelosmapas de andamento processual da CorregedoriaGeral de Justiça do Tribunal de Justiça do RioGrande do Sul referentes à Comarca de Porto Ale-
gre para o período considerado, o que se verificaé que, enquanto nos anos de 1994 e 1995 foramdistribuídos para as Varas Criminais Comuns emtorno de 6.000 processos por ano, em 1996 o nú-mero de processos distribuídos salta para 54.687,baixando para 37.608 processos no ano de 1997.
Apesar da significativa redução percentual, o volume de processos distribuídos nas antigas Va-ras Criminais se mantém praticamente inalterado.
Como essas Varas foram reduzidas de 18 para 14a partir da criação dos Juizados, há de fato um au-mento do número de processos para as Varas Cri-minais Comuns. A conclusão é que, em vez de as-sumir uma parcela dos processos criminais das
Varas Comuns, os Juizados Especiais Criminaispassaram a dar conta de um tipo de delituosidadeque não chegava até as Varas Judiciais, sendo re-solvido através de processos informais de “media-ção” nas Delegacias de Polícia ou pelo puro esimples “engavetamento”. Com a entrada em vi-gor da Lei 9.099/95, as ocorrências policiais deste
tipo de crime, que se encontravam nas Delega-cias, aguardando a realização de inquérito poli-cial, e que normalmente resultavam em arquiva-mento pela própria Polícia Civil, foram remetidaspara os Juizados Especiais.
Quanto ao tempo médio de tramitação dosprocessos criminais, constata-se que o rito proces-sual adotado pelos Juizados Especiais é efetiva-
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mente mais rápido do que nas Varas Criminais. Osdados disponíveis quanto à morosidade judicialdizem respeito ao tempo médio de tramitação dosprocessos criminais encerrados no primeiro se-
mestre do ano de 1998 em Porto Alegre. Enquan-to nas Varas Criminais o tempo médio de tramita-ção foi de 520 dias, nos Juizados Especiais Crimi-nais a média foi de 130 dias de tramitação.
Uma das principais evidências obtidas a par-
tir da análise dos mapas de andamento processualda Corregedoria Geral de Justiça é quanto ao altonúmero de processos cujo término se deveu aoarquivamento, situação em que não chega a serrealizada nenhuma audiência durante o processo.
Como se pode verificar pelas entrevistas rea-lizadas e em contato com os próprios funcionáriosdos cartórios, isto ocorreu em grande parte por-que um dos dispositivos da Lei 9.099/95 não foirespeitado pelas Delegacias de Polícia, muito me-nos pelas secretarias de muitos dos Juizados Espe-ciais, nesse período de implantação: a intimação
das partes para a audiência de conciliação (art. 71da Lei 9.099/95).
Indo até a Delegacia para registrar a ocorrên-cia, a vítima permanecia aguardando o encaminha-mento judicial da questão. Não sendo intimadapara a audiência de conciliação, e nem avisada deque o registro na polícia não era considerado umarepresentação, passados seis meses o processo era
arquivado por decadência do direito de represen-tação (art. 103 do Código Penal), resultando emuma situação de impunidade e na manutenção dadescrença da população quanto à possibilidade de
judicialização desse tipo de delito. Outra causa co-mum de arquivamento é o não encaminhamento,pela Polícia Judiciária, dos exames de corpo de de-lito, necessários para a comprovação da materiali-dade do fato.
Entre os mais de cem delitos consideradospela Lei 9.099/95 de menor potencial ofensivo, por
terem pena de prisão até um ano, tanto a observa-ção das audiências quanto as entrevistas com osjuízes que atuam nos Juizados Especiais Criminaisde Porto Alegre confirmaram uma ampla predomi-nância de dois tipos penais: os delitos de ameaçae de lesões corporais leves, que juntos correspon-deram a 76% das audiências observadas.
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A observação das audiências permitiu tam-bém verificar quais os conflitos sociais que estãopor trás dos delitos tipificados pela lei penal. Nes-se sentido, constatou-se que a maioria dos delitos
de menor potencial ofensivo é originária de situa-ções de conflito entre vizinhos (41%), entre côn-juges (17%), entre parentes (10%), ou em relacio-namentos entre consumidor e comerciante (10%).
Além destes, foram também encontrados conflitosna relação entre patrão e empregado (8%), brigaseventuais em locais públicos entre desconhecidos(5%), e ainda alguns conflitos de trânsito (5%),embora a grande maioria dos delitos de trânsitotenha retornado às Varas Criminais, com a eleva-ção das penas previstas pelo novo Código Nacio-
nal de Trânsito.
Deparando-se com um tipo de conflitualida-de social que poucas vezes chegava até a sala deaudiências, e tendo de conduzir um processo deconciliação entre os envolvidos, os juízes que pas-sam a atuar nos Juizados Especiais Criminaisenfrentam dificuldades para assumir este novo pa-
pel. Entre os entrevistados, foi freqüente o reco-nhecimento de que se trata de uma mudançasignificativa:
Eu diria que a mudança é fundamental, porqueenquanto a figura do julgador na justiça tradicio-nal adota uma postura bastante rígida, com rela-ção ao fato de presidir um processo criminal, na
justiça consensual, e aqui nos juizados especiaiscriminais, a figura do juiz se transmuda, o juizpassa a ser uma espécie de conciliador, uma es-pécie de aconselhador até mesmo das partes.
Muitas vezes se pacificam os ânimos das pessoas,e aí um dos desejos do legislador, ao editar a lei9.099, que é justamente o de restabelecer a har-monia nas relações.
O reconhecimento de que se trata de umanova função, voltada para a recomposição dos la-ços de sociabilidade, que passa a ser exigida dosjuízes, em vez de uma simples decisão punitiva ouabsolutória de uma figura neutra e alheia ao am-biente social, começa a aparecer no discurso dealguns magistrados:
Eu acho que o juiz passa a ter uma função muitomais ativa. Antigamente a função do juiz era pra-ticamente ouvir as partes, ouvir, antes o juiz eraum grande ouvido, digamos assim. E ao final, de-pois de tanto ouvir, prolatava uma sentença. Ago-ra, eu acho muito interessante essa disposição doart. 72, que diz que competirá ao magistrado ex-plicar os objetivos da audiência, e eu acho queessa explicação, se feita de um maneira bem ade-quada ao caso concreto, produz resultados, emníveis pedagógicos, fantásticos. Então eu achoque o juiz passa a ser um agente de pacificação
social, dependendo da postura dele nessa audiên-cia inicial.
Com uma visão mais reticente a respeito danova sistemática processual, um dos entrevistadosmanifestou opinião diversa, no sentido de que opapel que agora se exige do juiz já deveria serpraticado na sistemática anterior:
O julgador virou mais um conciliador, ele temagora a lei a favor dele, embora eu me lembreque na prática muitas vezes eu tentava, antes da
Lei 9.099, fazer certas conciliações, dentro do pos-sível. Por exemplo, essas lesões corporais causa-das por marido na mulher, eu acho até que eramais eficiente o sistema, porque a gente julgava edava o sursis, com uma condição para o maridocumprir. Normalmente essas lesões eram decor-rentes de alcoolismo do marido, então se coloca- va no sursis a obrigatoriedade dele se submeter atratamento, acompanhamento dos alcoólicos anô-
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nimos. Então a impressão que se tinha é que nãogerava tanta impunidade. E a impressão que eutenho é que em relação às mulheres vítimas de violência doméstica essa lei acaba gerando uma
certa impunidade, porque a mulher não cheganem a representar. Se ao menos houvesse umamedida, pagasse uma multa, prestasse serviços àcomunidade, mas o marido simplesmente olhapara a mulher na hora, o juiz pergunta: a senho-ra quer representar contra o seu marido, e peloolhar dele ela acaba não tendo coragem de repre-sentar, enquanto que antes, quando não era con-dicionada a representação e o promotor é queoferecia a denúncia, podia a vítima mentir, masela era advertida que não deveria mentir. Na ver-dade, se aplicava uma pena mínima, curta, sedava o sursis, e depois, quando entrou em vigor
a nova parte geral de 84, se podia aplicar presta-ção de serviços a comunidade, multa, quer dizer,penas alternativas. Eu acho que nesse tocante alei não foi muito feliz, agora as pesquisas, as es-tatísticas é que vão mostrar.
Quanto à existência de iniciativas institucio-nais para a conscientização e o preparo dos ope-radores jurídicos sobre as funções que lhes foramdelegadas nos Juizados Especiais Criminais, cons-tatou-se que muito pouco tem sido feito. A maio-ria dos atuais juízes teve formação acadêmica que
não contemplou a possibilidade de informalizaçãoprocessual. Nessa fase de implantação da Lei9.099/95, a busca de resultados positivos tem de-pendido do empenho daqueles juízes que assumi-ram a nova legislação como um avanço, seja naperspectiva da conciliação, do desafogamento dojudiciário, seja de fim da impunidade para os pe-quenos delitos:
Eu não sei se está havendo uma preocupação, porexemplo, dentro da Escola da Magistratura, quan-do dos cursos de preparação para o concurso, emenfatizar essa questão. Também não sei se dentroda Corregedoria está havendo essa preocupação. Acho que hoje em dia a coisa se resolve mais de-pendendo da forma como o juiz encara a lei 9.099,e como o próprio juiz encara o seu papel e comoo juiz pode se adaptar a esse novo papel. Elepode se adaptar ou não. Então eu posso estar er-rada, mas imagino que ainda não estamos na faseda formação dos juízes, de largada. Acho que os
magistrados que já estavam na judicância antes doadvento da lei estão se adaptando, e acredito queesses magistrados é que vão passar essa experiên-cia para os novos magistrados.
Uma das entrevistadas lamentou essa falta depreocupação institucional mais efetiva para a for-mação dos juízes que vão atuar nos Juizados Es-peciais Criminais, pela compreensão de que de-pende em grande medida da conduta dos juízes aconfiguração dessas novas instâncias judiciais in-formalizadas:
Uma outra sugestão é que se se promovesse maisuma reflexão sobre o papel dos operadores jurí-dicos no JEC, porque se os operadores que esti-
verem naquela audiência não tiverem um posicio-namento, uma visão do JEC como algo de umaeficácia social muito grande, nós vamos perder achance de poder fazer um bom trabalho em ter-mos de pacificação e de luta contra a impunida-de. Então eu acho que essa reflexão seria impor-tante, não sei se através de cursos específicos, doestímulo dos magistrados a fazerem publicações,sobre esse assunto especificamente: qual a impor-tância do operador jurídico no JEC enquantoatuação na comunidade.
Conclusão: as antinomias da informaliza-ção da justiça penal
Boaventura de Sousa Santos, no início dosanos 80, em um trabalho exploratório que visavaa construção de novas hipóteses de trabalho e oalargamento do campo analítico da sociologia ju-rídica para o estudo do fenômeno informalista, re-conhecia a carência de uma sólida base empíricaque desse sustentação às suas proposições, massugeria que a novidade nos programas de infor-malização e comunitarização da justiça era que, se
até aquele momento as classes oprimidas foramdesorganizadas individualmente – enquanto cida-dão, eleitor ou beneficiário da previdência –, nofuturo passaria a sê-lo em nível societal ou comu-nitário – como moradores de um bairro, trabalha-dores de uma fábrica, consumidores de um pro-duto. A hipótese formulada à época era de que aorganização comunitária tutelada pelo Estado se-
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ria uma forma de desorganização das classes tra-balhadoras no capitalismo tardio (Sousa Santos,1985, pp. 92-93).
Na medida em que o Estado consegue, pela
via da informalização, articular ao mesmo tempouma resposta à crise fiscal e o controle sobreações e reações sociais dificilmente reguláveis porprocessos jurídicos formais, ele está de fato a ex-pandir-se por sobre a sociedade civil. A dicotomiaEstado/sociedade civil, tão cara ao pensamento damodernidade, deixa de ter sentido teórico, e ocontrole social pode ser executado na forma departicipação social, a violência na forma de con-senso, a dominação de classe, na forma de açãocomunitária.
Assim, como o próprio projeto da moderni-dade encontra-se permanentemente tensionadoentre o aumento da regulação e a demanda poremancipação, Sousa Santos já visualizava, na épo-ca, a presença de um elemento emancipador nasreformas informalizantes: sua associação ideológi-ca a símbolos emancipatórios com forte implanta-ção no imaginário social (participação, auto-ges-tão etc.). Nesse sentido, embora aprisionados poruma estratégia global de controle social, estes sím-bolos apresentariam um potencial utópico outranscendente, que faria com que a justiça infor-
mal não pudesse “manipular” sem oferecer algumpedaço genuíno de conteúdo ao público que vaiser manipulado (Sousa Santos, 1985, pp. 97-98).
No caso dos Juizados Especiais Criminaisbrasileiros, embora a Lei 9.099/95 tenha previsto autilização de conciliadores escolhidos fora dosquadros da justiça criminal, até hoje essa disposi-ção legal não foi implementada, e os juízes queatuam nos Juizados são os mesmos que atuam nas
Varas Criminais, valendo-se mais de uma relaçãode poder hierárquica e intimidatória sobre as par-tes para encaminhar uma solução do caso do que
de uma proximidade advinda de vínculos socie-tais comunitários.
Em vez de permitir um acesso mais fácil agrupos excluídos do sistema judicial, compensan-do suas limitações, Lance e Bohn concluem que,no caso norte-americano, os centros de justiça in-formal funcionam mais como saída do que comoentrada no sistema de justiça formal, sendo mais
bem-sucedidos em remover do sistema casos con-siderados inúteis ou menores, que em sua grandemaioria envolvem mulheres, negros e pessoas denível socioeconômico baixo, do que em fornecer
uma forma mais acessível de justiça.Nesse ponto, constatou-se que, no caso dos
Juizados Especiais Criminais brasileiros, há umasituação bastante diferenciada. Em vez de retirardo sistema formal os casos considerados de me-nor potencial ofensivo, a Lei 9.099/95 incluiuesses casos no sistema, através de mecanismos in-formalizantes para o seu ingresso e processamen-to. A dispensa da realização do inquérito policialpara os delitos de competência dos Juizados Espe-ciais Criminais retirou da autoridade policial aprerrogativa que tinha de selecionar os casos con-siderados mais “relevantes”, que resultava no ar-quivamento da grande maioria dos pequenos de-litos. O problema é que a estrutura judiciária nãofoi adequada para o recebimento dessa nova de-manda, que passou a representar quase 90% domovimento processual penal.
A especificidade do caso brasileiro é que ainformalização da justiça penal na verdade nãoampliou o controle social formal do Estado sobrenovas condutas, uma vez que esse controle eraexercido pelas delegacias de polícia. Na prática,
as delegacias acabavam cumprindo informalmen-te uma função de filtro para a descriminalizaçãode certas condutas, como as ameaças e lesõesleves no ambiente doméstico, consideradas demenor importância para ingressar no sistema ju-dicial. A Lei 9.099/95 permitiu a incorporaçãodesses delitos ao sistema judicial, numa espéciede recriminalização, substituindo o delegado pelojuiz no exercício da função de mediação. En-quanto a mediação policial, informal e arbitráriaera freqüentemente combinada com mecanismosde intimidação da vítima (sobrevitimização) e do
acusado, a mediação judicial tende a ampliar oespaço para a explicitação do conflito e a adoçãode uma solução de consenso entre as partes, re-duzindo a impunidade.
É preciso reconhecer, portanto, os aspectosemancipatórios que fazem parte do processo deinformalização da justiça no caso brasileiro. Noentanto, são justamente essas características as
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mais facilmente relegadas quando da implementa-ção prática das medidas informalizantes. A manu-tenção do sentido emancipatório do informalismodepende de níveis de entusiasmo moral, consen-
so e convencimento por parte dos operadores ju-rídicos, especialmente os juízes/conciliadores, afim de evitar que procurem reforçar seu status eautoridade adotando toda a pompa formalista: tra-jes e discursos, procedimentos etc.
Além disso, é preciso destacar que tendên-cias históricas e atuais apontam para a mesmaconclusão: formalidades criam barreiras, mas tam-bém proporcionam um espaço no qual é possívelproteger os setores socialmente desfavorecidos,enquanto que procedimentos informais são maisfacilmente manipuláveis. Isto sugere que a efeti-
vação de direitos através de procedimentos infor-mais somente pode ser bem-sucedida se forem ul-trapassadas as limitações inerentes à falta deapoio jurídico àqueles que pretendem exercer es-tes direitos. Portanto, um extraordinário esforçoserá necessário para conduzir o movimento de in-formalização procedimental da justiça em uma di-reção favorável. Os resultados deste esforço vãoter um significativo impacto sobre a vida cotidia-na das pessoas comuns.
No Brasil, o processo de abertura e informa-
lização da prestação estatal de justiça ocorre emuma situação na qual ainda não há de fato um Es-tado de Direito funcionando plenamente sob cri-térios racionais-legais de legitimação. O Estadobrasileiro ainda não rompeu com relações tradi-cionais de poder, que pouco espaço concedempara a representação dos interesses e reivindica-ções populares no quadro institucional. Particular-mente, o poder judiciário, pelo distanciamentoque lhe confere um discurso especializado e so-mente acessível aos estudiosos do direito, perma-nece hermético ao senso comum e seletivo em
suas decisões, além de disputar espaço com mé-todos informais de resolução de conflitos, que vãodesde formas comunitárias de mediação até aatuação do próprio sistema policial, que em mui-tas situações cria a sua própria legalidade.
A seletividade do sistema judicial opera emduas vias: enquanto no âmbito civil a promoçãode demandas depende da capacidade da parte em
identificar seus direitos lesados e arcar com ascustas do processo, no âmbito penal somente che-gam ao judiciário os inquéritos policiais dos cri-mes dolosos contra a vida e contra a propriedade,
ficando sob o arbítrio policial os delitos relaciona-dos com a conflitualidade interpessoal nas favelase cortiços, das relações domésticas e de vizinhan-ça, das relações entre vendedor e consumidor, depatrão e empregado. Em todos esses contextos, a
violência interpessoal emerge como um mecanis-mo de excesso de poder,7 em que a parte maisforte impõe a sua vontade através da humilhaçãodo outro, em relacionamentos sociais freqüente-mente duradouros.
Para tirar as lições da implantação da Lei9.099/95 no âmbito criminal, na comparação comas demais experiências de informalização da justi-ça penal, é preciso compreender essa especificida-de do Estado brasileiro, em que se delegou à po-lícia o relacionamento com a maioria da popula-ção para a intermediação dos seus conflitos, e assalas de audiência nas Varas Criminais foram reser-
vadas à punição pública de ladrões e homicidas.8
Os Juizados Especiais Criminais, tendosurgido sob a ideologia da conciliação e da dis-persão para desafogar o judiciário, acabaramabrindo as portas da justiça penal a uma confli-
tualidade antes abafada nas delegacias, e para aqual o Estado é chamado a exercer um papel demediador, mais do que punitivo. Com a promes-sa de resolver disputas por meio da comunicaçãoe do entendimento, e permitindo uma interven-ção menos coercitiva e mais dialógica, em um es-paço estrutural (a domesticidade, os relaciona-mentos interpessoais) que antes ficava à margemda prestação estatal de justiça, a informalizaçãoda justiça penal pode ser um caminho para o res-tabelecimento do diálogo, contribuindo para re-
verter a tendência de dissolução dos laços de so-
ciabilidade no mundo contemporâneo.
NOTAS
1 Sobre as formas de legitimidade em Max Weber, ver Economia y sociedade , pp. 170 ss., em que Weber, aoestabelecer uma tipologia da dominação, começa de-
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finindo as formas de legitimidade, vista esta últimacomo fundamento de toda dominação duradoura.
2 Sobre este tema, ver o vol. 2 da obra O processo ci-
vilizador , de Norbert Elias, sobre a formação do Es-
tado, em especial o capítulo II, “Sobre a sociogêne-se do Estado”, pp. 87-190.
3 Sobre a dicotomia Estado/sociedade civil, ver a obrade Bobbio e Bovero (1986), em que é traçado umparalelo entre o modelo hegeliano e o modelo mar-xista de distinção entre sociedade civil e Estado, etambém, no âmbito da sociologia, o artigo de Boa- ventura de Souza Santos (1986), “Para uma sociolo-gia da distinção Estado/sociedade civil”, publicadoem obra coletiva organizada por Doreodó AraújoLyra em homenagem a Roberto Lyra Filho, intitula-da Desordem e processo.
4 Sobre “tolerância zero”, ver Loïc Wacquant (2001).
5 Para se ter uma amostra das pesquisas empíricas so-bre a informalização da justiça norte-americana, veros artigos de Lance Selva e Robert Bohm (1987);Stella Hughes e Anne Schnider (1989); Dennis Pa-lumbo e Michael Musheno (1994); ver também atese de Luis Roberto Cardoso de Oliveira (1989), emque analisa as sessões de mediação de pequenascausas cíveis de um ponto de vista antropológico.
6 Para se ter uma idéia, no Estado de São Paulo, osprimeiro Juizados Especiais Criminais somente fo-ram criados no ano de 1998.
7 Sobre a noção de violência como um mecanismo deexcesso de poder, ver o artigo de José Vicente Ta-
vares dos Santos (1995, pp. 290-291): “Em seu con-junto, poderíamos considerar a violência como umdispositivo de poder, no qual se exerce uma relaçãoespecífica com o outro, mediante o uso da força eda coerção: isto significa estarmos diante de umamodalidade de prática disciplinar, um dispositivo,que produz um dano social, ou seja, uma relaçãoque atinge o outro com algum tipo de dano. [...] a violência compõe-se por linhas de força, consisteem um ato de excesso presente nas relações de po-der. Os processos de violência efetivam-se em umespaço-tempo múltiplo, recluso ou aberto, instau-rando-se com justificativas racionais, desde a pres-crição de estigmas até a exclusão, simbólica ou físi-
ca. Porém, no dispositivo da violência, aparecemtambém linhas de fratura, o que possibilitaria a pas-sagem a outros dispositivos, a outras formas de pos-sibilidade; a emergência de lutas sociais contra a violência poderia representar uma dessas linhas defratura no dispositivo da violência.”
8 Sobre este tema, ver o artigo de Roberto Kant deLima (1996, pp. 165-177).
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JUIZADOS ESPECIAIS CRIMI-NAIS: UMA ABORDAGEM SO-CIOLÓGICA SOBRE A INFOR-MALIZAÇÃO DA JUSTIÇA PE-
NAL NO BRASIL
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Palavras-Chave
Controle penal; Administração dajustiça penal; Informalização; Juiza-dos Especiais Criminais; Conflito so-cial e mediação.
Por meio do estudo de caso da im-plantação dos Juizados EspeciaisCriminais na cidade de Porto Alegre,
confrontando as previsões legaiscom a realidade empírica de umnovo modelo de justiça penal, bus-cou-se compreender no presentetrabalho o sentido e os limites da in-formalização da prestação estatal dejustiça penal no Brasil, desde a pro-mulgação da Lei 9.099/95. Ao retirardo domínio da polícia o exercícioda seletividade e ao oferecer à víti-ma a possibilidade de participaçãono processo, o sistema penal infor-
malizado abre novas perspectivas,substituindo a punição pela media-ção e a violência pelo diálogo. Po-rém esbarra na dinâmica burocrati-zante e autoritária dos mecanismosde vigilância e controle social insti-tucionalizados.
SPECIAL CRIMINAL COURTS: A SOCIOLOGICAL APPROACHON THE INFORMALIZATIONOF THE PENAL JUSTICE IN
BRAZIL
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Keywords
Penal Control, Administration of Pe-nal Justice, Informalization, SpecialCriminal Courts, Social Conflict andMediation.
Through a case study of the implan-tation of the Juizados Especiais Cri-
minais (Special Criminal Courts) in
the city of Porto Alegre , confrontinglegal previews with empirical reality of a new model of criminal justice,this article aims to understand themeaning and the limits of the infor-malization of the criminal justice inBrazil, since the enactment of the9.099/95 law. By taking away fromthe police the exercise of selectivity,and giving to the victim the possibi-lity of participating in the process,the informalized criminal system
opens up new possibilities, chan-ging punishment by mediation and violence by dialog, even though itcollides with the bureaucratic andauthoritarian dynamics of the insti-tutionalized vigilance and socialcontrol mechanisms.
TRIBUNAUX PÉNAUX SPÉ-CIAUX: UN ABORDAGE SO-CIOLOGIQUE À PROPOS DU CARACTÈRE INFORMEL DE LA
JUSTICE PÉNALE AU BRÉSIL
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Mots-clés
Contrôle pénal; Administration de lajustice pénale; Caractère informel;Tribunaux Pénaux Spéciaux; Conflitsocial et médiation.
L’auteur a cherché, par l’étude del’implantation des Tribunaux PénauxSpéciaux dans la ville de Porto Ale-
gre, à comprendre le sens et les limi-tes du caractère informel de la pres-tation étatique de la justice pénaleau Brésil, depuis la promulgation dela Loi 9.099/95. Dans ce travail, ilconfronte les prévisions légales avecla réalité empirique d’un nouveaumodèle de justice pénale. En sous-trayant à la police l’exercice de la sé-lectivité et en offrant à la victime lapossibilité de participation au pro-cès, le système pénal informatisé ou-
vre de nouvelles perspectives, subs-tituant la punition par la médiationet la violence par le dialogue. Néan-moins, il se heurte à la dynamiquebureaucratisante et autoritaire desmécanismes de vigilance et de con-trôle social institutionnalisés.
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