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Atibaia Atibaia tem mais de 120 mil deliciosas histórias para contar Estas são algumas dessas histórias, narradas por pessoas que amam esta cidade Edgard de Oliveira Barros sua gente volume II

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Trata-se do volume dois da série. Aqui são apresentados novos personagens e personalidades que marcaram a cidade de Atibaia com a sua passagem. Gente do povo, personagens do dia-a-dia da cidade contando pedaços da história de Atibaia que um dia o poeta chamou de “paraíso quase possível aqui na terra”. O projeto gráfico também é do artista Jean Takada, ilustrador e diretor de Arte. As fotos são de Ana Maria Brejeiro, Jean Claude Latin, de Jean Takada e do arquivo pessoal dos entrevistados.

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Edgard de Oliveira Barros

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Atibaia

Atibaia tem mais de 120 mil deliciosas histórias para contar Estas são algumas dessas histórias, narradas por pessoas que amam esta cidade

Edgard de Oliveira Barros

sua gentevolumeII

Edgard de Oliveira Barros

Atibaia & sua genteUm passeio pela alma

da cidade vista

através dos olhos

de tantos de seus

filhos ilustres.

Edgard de Oliveira Barros

Fotos:

Ana Maria Brejeiro,

Jean Claude Latin

Projeto gráfico: Jean Takada

Volume II

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Edgard de Oliveira Barros

Você já parou para pensar por que é que tanta gente bebe Coca Cola ao invés de

Pepsi? E por que é que tantos preferem usar as calças Zoomp ao invés de um jeans

qualquer? Responda aí, por que viajar pela Gol ao invés da Tam, ou vice-versa? Mais

ainda, por que essa preferência pela pasta dental Colgate ou Sorriso, ao invés da

Sensodine? Quem explica o fato das mulheres sonharem tanto com uma bolsa Louis Vuitton?

Lembra quando o sujeito que possuía um relógio da marca Omega era “o cara”. E aqueles tempos

quando era distinto fumar Minister, brigar para comprar Marlboro importado. Coisas quase

inexplicáveis. Alguém já parou para pensar o que acontece nessa questão da preferência por

determinadas marcas? Loucura, não? Realmente só um louco se preocuparia em esmiuçar

o sentimento humano buscando as razões por tantas preferências, colocando o assunto em

pratos limpos. E por falar em pratos e louças, até recentemente os grandes nomes nesse seg-

mento eram as porcelanas Real ou Shmidt, lembra delas? Coisa de louco. Por falar nisso, tem

um louco, quase varrido aqui em Atibaia que ganhou nome e renome internacional no campo

do marketing e da propaganda só porque sempre se preocupou com essas questões. E se ficou

quase louco-varrido foi de tanto pensar e pesquisar esse assunto. O nome dele é Marcos Lonzi,

tem 52 anos e é filho de Antonio Lonzi e Maria Stella Lonzi. Em alguns casos, como se verá em

historinha que vai contada no decorrer da entrevista, ele é até conhecido como o “Marcos Lonzi

da Lika”. Não é louco?

Professor de PFTHCLonzi nasceu na cidade de Bragança, onde fez seus estudos básicos. Depois cursou Sociologia

na USP. Não satisfeito cursou História, fez o SEADE e por aí foi. Defendeu teses de Mestrado

Um publicitário maluco falando

dos negócios da China

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e Doutorado, tudo voltado ao comportamento de mercado, uma das coisas mais malucas e

difíceis de entender. Lonzi deu aulas na PUC, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

durante muito tempo. “Eu ganhava a vida como professor em PFTHC”, declara sem dó nem pie-

dade. PFTHC? “Calma que eu u explico”, adianta-se. “PFTHC quer dizer Problemas Filosóficos

e Teológicos do Homem Contemporâneo”. Viram como é simples? Pois é. E Lonzi continua

suas espetadas. “Sou de uma época em que não existia o tal de MBA. Freqüentei o mundo

acadêmico, pois gostava muito de estudar, ler. Nesse tempo não existia quem trabalhasse com

o processo global de comunicação. Foi quando escrevi um texto sobre “Uma visão tipológica

de consumo”, veja só que absurdo”, sorri. E faz questão de explicar direitinho o significado de

tudo isso, antes que seja internado como doido. “Eu falava da economia das trocas simbólicas e

a simbologia das trocas econômicas. Discutia como se encaixava no perfil do comportamento

da sociedade aquilo que mais tarde a gente iria chamar de griffe”. Claro que agora todo mundo

entendeu, caríssimo professor Lonzi. Ou será que estamos todos em dúvida?

A teoria na práticaApesar de todo o riso e a brincadeira com que se está tratando o assunto, a coisa é muito mais

séria do que está se pensando. E quem duvidar que pergunte para publicitários e formadores

de opinião o quanto essas teorias do Dr. Lonzi são necessárias e definitivas para se conhecer

a alma dos consumidores. Insista-se: essa é a tal pergunta que vale um milhão ou mais de

dólares. “Na época a Alpargatas vendia calças por 20 dólares, enquanto a Zoomp pegava o

mesmo brim, usava uma modelagem um pouquinho diferente (que também nem era dela...),

colocava uma etiqueta Zoomp e vendia por 90 dólares. Por que acontece isso no comporta-

mento humano? O que leva as pessoas a se comportarem assim? Como é que isso realmente

se estrutura, qual é o limite disso? Como uma calça de 20 dólares pode passar a custar 90 de

uma hora para outra? Se estamos diante da mesma materialidade, o mesmo uso, a mesma

aplicação, como é que pode acontecer isso? Como ocorre e onde ocorre? Pois era disso que eu

tratava no meu trabalho. Eu procurava estudar o comportamento humano nesse processo.

Como é que alguém pode fazer uma coisa dessas, comprar por 90 dólares uma coisa que po-

deria ser comprada por 20 dólares? A troco de que? Como se explica? Eu procurava estudar

essa estrutura do comportamento humano. Fundamentalmente eu estudava os limites de se

trabalhar economicamente com isso. Até que ponto você pode agregar valor a um produto?

Esse meu estudo tem mais de 20 anos e eu considero que ele ainda é bem atual. De qualquer

forma era o começo dessa história de grifes e nem sei mais o quê”, explica Lonzi.

Botando para vender Claro que esse trabalho incrível repercutiu e Lonzi acabou indo parar no canal certo: a pro-

paganda. “O Júlio Ribeiro, grande publicitário e pensador da propaganda me chamou e me

colocou na área. Na verdade eu já não agüentava aquela vidinha sacrificada de professor uni-

versitário, que na época, ganhava tão mal. Comecei a trabalhar no mundo corporativo. Meus

amigos brincavam: “Deixou de ser comunista e se vendeu para o capitalismo...”. O engraçado

disso tudo é que, enquanto na agência de publicidade o pessoal me chamava de comunista,

na faculdade me chamavam de burguês... Foi bem legal, assim aprendi dos dois lados. Depois

dessa fase mergulhei no mundo corporativo e fui diretor de marketing da Papaiz. Da Papaiz

fui para outra empresa até chegar numa consultoria que me trouxe até aqui, na Lafarge em

Atibaia”. Depois da Lafarge, Lonzi decidiu fazer o que realmente gostava: planejamento es-

tratégico. “Escolhi trabalhar para médias empresas. Atibaia e a região têm uma porção delas

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com enorme potencial: a Flexboat, a Tekar, aqui de Atibaia, a Arte Lassez, de Itatiba e tantas

outras. São empresas médias, mas com imenso potencial, líderes em seu mercado. Só que o

planejamento começou a exigir desdobramentos e eu tive que criar uma pequena agência de

publicidade para elaboração de folders, logotipos, textos, etc. E a pequena agência foi cres-

cendo, sempre no mesmo foco, empresas líderes de mercado e pequenos segmentos, coisas

que têm muito mais a ver comigo”.

A força da mulher“Nunca esqueço do dia em que fui visitar meu primeiro cliente aqui na região. Naquela época

eu ainda tinha aqueles vícios do mundo dos negócios: usava gravata. Visitava os clientes e

procurava mostrar o meu curriculum, dizendo que eu tinha sido isso, tinha sido aquilo, tinha

feito isso ou aquilo, formado nisso e naquilo, o maior curso de graduação pela Unicamp, não

sei o que, não sei o que e não sei o que. Claro que gastava a maior saliva para conquistar os

clientes. Pois naquele dia eu conversava com um empresário e, sem mais nem menos a mulher

dele entrou na sala onde estávamos. Ia falar qualquer coisa sobre problemas domésticos, sei lá.

Quando já ia saindo ela olhou para a minha cara e perguntou: “Você não é o marido da Lika?”,

eu digo: “Sim”. Ela olhou para o marido e disse: Trabalha com ele, hein? Eu gosto muito da

Lika...”. Percebi que a minha Lika era mais importante que todos os meus diplomas...”, conta

Lonzi, às gargalhadas. Claro que aquilo foi apenas um incidente e o profissionalismo, o co-

nhecimento técnico sempre prevaleceram. “O “empurrãozinho” feminino é quase definitivo...”,

sorri. Atento ao mundo mercadológico o Dr. Lonzi não para e vive se atualizando. “Todo

ano eu participo de feiras em tudo quanto é canto do mundo. Estou chegando de uma feira

realizada na China”, conta. As viagens de Lonzi são direcionadas e orientadas pelo interesse

de seus clientes. “Normalmente eles viajam comigo para vermos oportunidades. E o novo está

na China”, declara solenemente.

Made in Chin a“A China foi uma descoberta incrível para mim. Estive com um cliente participando da

CantonFair, uma feira que literalmente assusta a gente. Os chineses são totalmente eficien-

tes. Não existe o comunismo na china, o que existe é uma ditatura-partidária-capitalista,

nem sei como se pode chamar aquilo. Eu sei que eles fazem. Nunca vi tanta eficiência. São

práticos, dinâmicos, não criam problemas, procuram atender o cliente em tudo aquilo que o

cliente necessita. Mostram o produto, fazem as alterações que o cliente deseja, resolvem tudo

na hora. Pegam uma calculadorazinha de mão e já fazem o preço, coisas que normalmente,

em qualquer lugar do mundo demorariam semanas para serem resolvidas. Tudo é na hora,

soluções imediatas. Sabe como funciona a cobrança dos impostos? Assim, ó: no dia X vence o

seu imposto. O governo vai na sua conta bancária da empresa ou do devedor e pega o dinhei-

ro. Simples assim. Não há o que discutir, você deve, o dinheiro está na sua conta, governo vai

na sua conta e pega”, entusiasma-se “A imagem que a gente faz da China não corresponde:

quem vai lá não tem que comer escorpião, com dizem. Nada disso. Pelo menos nas quatro ou

cinco principais cidades chinesas que eu visitei tem rede de Mc. Donalds. Tem churrascarias,

restaurantes italianos. Até self-service”.

Uma “feirinha” deste tamanho A tal feira de Canton, informa Lonzi, tem um milhão e 200 mil metros quadrados. “Para se

ter uma idéia de tamanho, o Anhembi tem 72 mil metros. Então são 22 Anhembis. Mais ou

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menos, o tamanho do centro de Atibaia. Estande colado em estande. E estandes com no má-

ximo 20 metros. Eles expõem o produto e estão abertos ao negócio. A cada cinco dias tem uma

feira diferente com outro perfil de produtos, de caminhão a botão de camisa. Fora o fato de

várias cidades realizarem várias feiras. É incrível”, diz Lonzi. “Eles são tão ligados em feiras e

em promoções desse tipo que muitas dessas feiras acabam se tornando permanentes. É uma

loucura e o mundo inteiro vai lá. Sem falar nos chineses, já que eles têm um mercado interno

de mais de um bilhão e trezentos milhões de pessoas. É chinês que não acaba mais...”.

As ondas econômicasConhecedor profundo das coisas de mercado Lonzi lembra que a economia do mundo vem com

ondas. “Antigamente tudo vinha do Japão. Depois veio a Coréia e agora estamos na onda China.

Já se fala no Paquistão, na Índia. Hoje a China já está entrando na fase da oferta de produtos

de alta qualidade, alta tecnologia. Já começa a esquecer um pouco do produto de carregação.

Eu vi coisas muito boas por lá. Mesmo nesses produtos de carregação percebe-se que algumas

empresas já estão produzindo coisas de muita qualidade. O Paquistão e a Índia é que vão pegar

aquela onda de produção em massa de coisas com qualidade menor. Ondas que trazem novos

países produzindo coisas que vão sendo melhoradas, aprimoradas. Entendo que essa onda da

China deverá durar um pouco mais, afinal o país tem um mercado interno incrível e precisa

produzir para abrigar tanta mão de obra”. Um bilhão e trezentos milhões de chineses seria

um negócio da China para ser trabalhado pela mente brilhante desse sociólogo, historiador,

comunicador, professor e marido da Lika chamado Dr. Lonzi. Ou simplesmente Lonzi, para

os amigos, já que a sua humildade não permite títulos maiores a não ser “amigo”.

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Não é fácil falar de personagens como Luis Eduardo Marra. Começa que ele é

um atibaiense nascido em São Paulo, já que foi trazido para cá com seis meses

de idade. Médico formado pela Escola Paulista de Medicina, da Universidade

Federal de São Paulo está profundamente envolvido com o atendimento a ca-

rentes e dependentes da droga da droga. Ao mesmo tempo é um cronista de fina linhagem e

um contista de narrativas perturbadoras nascidas em uma realidade que viveu. Histórias que

têm tudo para se transformar em filmes. Luis Eduardo também é ator e criador de textos para

teatro, que ele utiliza no trabalho de recuperar pessoas consumidas por drogas de todas as

espécies. Pensador, meio filósofo é essencialmente preocupado com o ser humano. Como se

vê não é nada fácil falar de personagens assim tão complexos. Luis Eduardo Marra, 59 anos é

filho de Fernando Batista Marra e da professora Lúcia Margarida Barra Marra, tão conhecidos

e reconhecidos pela cidade. Ele faz parte daquele grupo de “garotos-prodígio” que ajudaram a

dar fama até nacional ao Major, escola tão tradicional de Atibaia. “A garotada do meu tempo

teve a sorte de ter sido educada por professores tão espetaculares do Major daquele tempo”,

confessa. O professor Orlando Gigliotti foi um desses professores que abriram a mente de

tantos alunos que se destacaram.

Da infância“A gente morava bem perto da Estância Lince numa casa que ficava ao lado de um brejo ou

coisa assim. Essas imagens ficaram fortes em mim. Lembro de um jipão que meu pai com-

prou quando eu tinha 5 ou 6 anos. Ele usava para ir a São Paulo. Naquele tempo a estrada era

uma porcaria. Eu gostava de fuçar no jipão e fingir que dirigia. Um dia fomos visitar meu tio

Secundino, que morava no bairro da Gardênia e meu pai parou o jipão numa ladeira. Ele entrou

para falar com meu tio e eu fiquei mexendo no carro. Desbrequei o jipão que desceu aquela

Um dos “meninos prodígio” de Atibaia

agora está cuidando das drogas

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ladeira cada vez mais rápido. Só parou depois de derrubar um muro e entrar na cozinha da

casa do meu tio. Minha tia estava fazendo o almoço e quase morreu de susto. Depois, quem

quase morreu com a bronca do meu pai fui eu...”. Tanto quanto lembra dessa cena, Luiz não

se esquece de sua avó. “Era filha de coronel do Nordeste, super-mandona. Dona Eglé era figura

de literatura, muito conhecida na cidade. Sonhava ser advogada, só que naquele tempo as

mulheres não podiam estudar. Uma pena. Morreu frustrada. Lembro também de meu avô

paterno, uma figura muito curiosa. Eu o conheci no fim da sua vida. Barba branca parecia

um patriarca bíblico. Era um contador de histórias, acho que sou herdeiro disso tudo...”.

Entrando na vidaLuis fez o curso primário e ginásio em Atibaia. Ganhou um concurso do American Field

Service, instituição que proporcionava bolsas de estudo levando jovens brasileiros para co-

nhecerem os Estados Unidos, a chamada “política da boa vizinhança”. “A seleção era muito

criteriosa. Fiz uma redação metendo o pau nos americanos e pensei que não iria passar. Ao

contrário, acho que isso até ajudou. Fomos eu e o Jurandir, um colega do colégio”. Ir para

os Estados Unidos naquela época era um feito, coisa extraordinária. Já de volta entrou no

curso de Economia da USP. Ficou oito ou nove meses e saiu. “Não era nada daquilo que eu

queria. Entrei na Escola Politécnica, a mesma coisa, larguei um ano depois e só então fui

para a Medicina, a última coisa que eu pensei em fazer na vida. Formado fiz residência de

medicina preventiva e social em postos de saúde, estágios em clínicas médicas, em pediatria,

ginecologia e obstetrícia e ganhei uma visão universal bastante atraente”, conta. O melhor

mesmo foi o estágio no Xingú. “Cheguei a conhecer o cacique Raoni. Foi incrível aquilo”, re-

lembra, contando que depois foi para a Zona Leste de São Paulo como médico generalista e

até como médico de família na área de São Miguel Paulista. “Fiquei dois anos por lá, trabalhei

inclusive no Santa Marcelina, uma espécie de Hospital das Clínicas lá da Zona Leste. Atendi

no pronto socorro, ambulatórios até que comecei a trabalhar com dependentes clínicos em

álcool e outras drogas. Me encontrei e já estou nisso há sete anos”.

Entre uma coisa e outraO dr. Luis Eduardo também se dedica às suas paixões paralelas: escrever e fazer teatro. “Fiz

o Curso Macunaíma de teatro e cheguei até ao estágio profissionalizante. Só que não dava

para compatibilizar com o meu trabalho”. De qualquer forma começou a absorver os casos

que atendia transformando-os em crônicas e em contos que renderam dois livros: “O diário

perdido do Jardim Maia” e “O coletivo aleatório”. Está recolhendo material para um terceiro

e outros livros mais. Luis Eduardo também fazia experiências de teatro e criou uma peça

que era uma alegoria sobre a saúde e a doença. “Montei essa peça na área da Nitroquímica,

em São Miguel Paulista, uma das regiões mais perigosas de São Paulo. Quem atuava era o

pessoal do posto e a população local. A gente se apresentava num prédio que ficava bem na

rua dos “nóias”, a rua do tráfico. Era um teatro terapêutico. Serviu para que eu me infiltrasse

definitivamente no meio daquele pessoal da pesada. Eles respeitavam muito, sabiam que eu

só queria ajudar. Nunca tive medo, nem me aconteceu nada a não ser o fato de terem roubado

o rádio do meu carro. Me queixei com “algumas pessoas” e no dia seguinte o rádio tinha sido

reinstalado. Não perguntei como...”.

Um anjo na noiteDeixando de trabalhar como médico de família ficou no Jardim Maia como clínico geral.

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Depois foi trabalhar na área de álcool e drogas. “Sem conhecer nada dessa área mantive

contatos com o grupo “Anjos da Noite” que atua junto a essa população crítica, prostitutas,

dependentes. Foi muito interessante. Atualmente eu estou no Centro de Apoio Psiquico-

social de Ermelindo Matarazzo, o chamado CAPS AD2, direcionado aos problemas de álcool

e drogas. Também presto serviço numa instituição em Itaim Paulista. Meu projeto é insta-

lar uma clínica aqui em Atibaia, no Jardim Cerejeiras. Já tenho tudo quase pronto”, conta.

Profundamente envolvido com o processo, Luis Eduardo diz que o problema das drogas é

critico e nem sempre tem retorno. “Quem trabalha na área deve aprender a se conformar com

algumas frustrações. Não há como se reverter tudo, completamente. Aprendi muito nessa

área. Antes pensava que o adicto, o dependente químico fosse um tipo único e isso não é

verdade. A diversidade é impressionante. Você pode pegar qualquer dependência química,

digamos o crack, que é uma droga muito perigosa, muito aditiva e não vai constatar uma

única imagem, típica. Quando se fala em dependentes de crack se pensa naquele “nóia”

zumbizando no meio da noite, magérrimo, todo sujo, com marcas de queimado nos dedos.

Esse tipo existe sim, mas as exceções são tantas que nem se imagina. Conheço dependentes

que ninguém diria que ele é”, conta o dr. Luis Eduardo.

As tribos da droga“O mundo da droga é um mundo de tribos, de guetos, culturas e sub-culturas, fatores

importantes. Os nichos culturais envolvidos com a maconha, por exemplo, têm muito a ver

com a própria droga. As pessoas se aglutinam em torno desses nichos. E passam a ter hábitos

específicos.É o caso do pessoal que curte o reggae e fuma maconha; isso é comum entre eles.

Qualquer ambiente que tenha reggae, vai ter maconha. Pessoas que trabalham nessa área,

que gostam disso, passam a ter o maneirismo, o jeito, o linguajar. É muito mais cultural do

que biológico, do que físico. São estereótipos, a propósito da crítica feita aos estereótipos. No

auge do uso da droga, o craqueiro pobre, por exemplo, que não tem como obter a droga, sai

por aí fazendo qualquer coisa para ter acesso a ela. Rouba, faz tudo pelo crack. A vida dele

vai se resumir ao crack. A recuperação dessa pessoa é muito difícil. Estatisticamente os que

conseguem se recuperar são com certeza bem menos que 50%. Isso de dizer que o individuo

chega à loucura e/ou ao crime com o crack ocorre bastante mas não é sempre o caso. Eu

conheço um paciente que não rouba e não comete nenhuma loucura pelo vício. Consciente,

um dia me disse que já não agüenta ficar trabalhando horas a mais só para sustentar seu

vício. Ele fuma duas pedras por dia”

Logo, logo ele vem “Existem dois conceitos muito importantes quando se fala em droga psicoativa, em droga

“adictiva”; um é a intoxicação e outro a dependência. São coisas muito diferentes. As drogas

que levam à adicção podem se tornar muito perigosas mais pela dependência do que pela

intoxicação, embora, às vezes, a intoxicação também possa se tornar muito séria. Quem fuma

crack corre vários riscos que dependem muito mais da adicção ou da dependência em si do

que da intoxicação em si pela cocaína. A dependência desorganiza a vida da pessoa. A pessoa

passa a viver em função da pedra. Nada mais tem valor no mundo do que a pedra de crack.

O dependente pega coisas em casa para vender, comete furtos, faz tudo pela droga. Esse

desgaste psicológico, existencial, físico, expõe a todos os riscos de violência. E ele, o adicto,

pode até ser morto pelo próprio tráfico por comprar e não pagar. Esta desorganização é uma

manifestação mórbida da dependência e expõe o dependente a uma série de riscos. Diferente

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da intoxicação em si. A intoxicação é a lesão que a droga causa no organismo. Como se vê, são

dois conceitos. Existe muita coisa no mundo que causa intoxicação, que causa dano celular

que entra no organismo; um tipo de comida, o ambiente de trabalho e tantas outras coisas.

Já a dependência nem sempre envolve intoxicação. O dependente de jogo não está sendo

intoxicado pelo jogo, por exemplo”. Como se viu, o dr. Luis Eduardo Marra tem muito o que

dizer sobre o problema. Ainda bem que muito em breve ele estará em Atibaia tentando ajudar

tanta gente a se livrar desse terrível problema que é simplesmente uma droga.

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Não adianta ficar falando que a entrevista de hoje é com o Joel Cordeiro de Souza,

pois isso não vai esclarecer nada. Nem todo o mundo conhece o Joel Cordeiro de

Souza com esse nome. Mas, se a gente disser que o entrevistado de hoje é o Joel da

Frimoni, bingo! Todo mundo vai saber de quem se trata. Claro, afinal a Frimoni

sempre foi um dos maiores nomes em matéria de sorvetes aqui na cidade. Apesar de não ser

slogan de publicidade bem que se poderia dizer: “com palito ou massa, a Frimoni dominava a

praça”. E era verdade. Se havia uma coisa que preocupava o Joel era a questão da qualidade dos

seus produtos, dos seus sorvetes. “Eu fazia e experimentava. Se não gostasse, jogava tudo fora.

Era assim mesmo, de verdade. Cansei de jogar produto fora. Eu pensava: se não está bom para

mim não poderia estar bom para os outros”. E foi baseado nessa qualidade e nesse procedimento

que a Frimoni ganhou espaço e dominou a praça por longo tempo. Seus produtos eram vendidos

aqui na cidade e em toda a região. “Com o tempo a gente conseguiu criar uma fórmula de venda

e distribuição que engrandeceu a marca”, registra Joel. E não pensem que ele está fazendo pose

ou se fazendo de arrogante, muito pelo contrário, Joel é tímido, fala pouco, mastiga as idéias

antes de falar e de expor o que pensa.

Amor antigoEssa história de amor de Joel Cardoso de Souza com Atibaia já dura quase 40 anos. E sempre

foi muito forte. Aos 72 anos Joel garante que Atibaia representou muito em sua vida. “Eu sou

caboclo do campo mesmo, meio rude até. Gosto das coisas certas e justas”, dispara. Casado com

Maria Helena de Souza há 47 anos declara para espanto geral, que o casal nunca teve uma briga.

“Vocês nunca brigaram? Nem uma briguinha?”, insiste o repórter. “Nunca”, assegura. “Pode ser

até que amanhã a gente se separe, mas nunca brigamos. Brigar para quê? Na minha opinião

a mulher é tudo na casa. Aliás, a mulher é tudo na vida. Eu respeito a minha mulher e ela me

Ele já é bisavô, mas continua

louco por sorvete

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entende e me respeita. Sempre chegamos no acordo. Vai brigar para que?”, Joel ensina com

clareza essa regra que aparentemente é tão simples. Pelo menos para ele e para ela. Pai de cinco

filhos, o Juscelei, o Edson, o Emerson, o Eduardo e o Juarez, que é o proprietário daquela lote-

ria esportiva na praça da Rodoviária, Joel também é avô de 6 netos (3 homens e 3 mulheres) e

bisavô de uma bisnetinha.

De Açaí para aquiA vida de Joel começou em Açaí, no Norte do Paraná, onde nasceu, cidadezinha situada per-

tinho de Londrina. Seu pai também era homem simples do campo e tocava uma propriedade

rural. “Até que era uma vida bem remediada”, recorda-se. Só que nem tudo é tão simples assim

e as coisas se complicaram com a morte de sua mãe. “Nós éramos seis irmãos, quatro mulheres

e dois homens. E o pior é que meu pai também faleceu logo depois. Aí sim, a vida ficou bem

difícil”, lamenta-se. “Éramos todos crianças. Ainda assim nos apegamos ao que tínhamos: a

vontade de trabalhar e enfrentar o desafio que nossos pais haviam legado. Assumimos a respon-

sabilidade e seguimos a vida”. Emocionado Joel diz que todos rezavam e pediam a proteção dos

pais mortos. “A gente sabia que eles estavam lá em cima olhando por nós”, revela emocionado

em sua simplicidade cabocla. “Essa “ajuda lá do céu” veio já na primeira lavoura e a gente teve

uma ótima colheita. Parecia que as coisas iriam se acertar, e com certeza se acertariam não

fosse aquela grande geada que aconteceu ali pelo ano de 1963. A geada acabou com tudo. O

café, milho, tudo o que a gente tinha plantado. Perdemos tudo e ficamos desorientados”, conta,

acrescentando que a vida no campo tem dessas coisas.

Virou sorvete

Mas não foi tempo perdido para quem tinha fé na vida. “Sorte que surgiu então um cunhado

nosso que acabou nos ajudando muito. É uma pessoa a quem eu devo demais. Aliás, tudo o

que eu tenho devo a ele”, conta, humilde. O cunhado de Joel trabalhava no ramo de sorvetes

e tinha uma boa sorveteria em São Paulo. “Ele estava se dando muito bem e me disse: “vamos

procurar uma cidade aqui por perto da Capital e a gente monta uma fábrica de sorvetes para

você tocar. “Eu e a minha mulher visitamos uma porção de cidades e gostamos mesmo foi de

Atibaia”, conta. Ainda assim, com todo o apoio, a coisa não foi tão fácil. “Saí de Açaí com a

mulher, três filhos pequenos, três sacos de roupa e um conto de réis emprestado”, lembra. Foi

então que Joel meteu a mão na massa e nos palitos de sorvete e começou a empreitada que se

tornaria famosa na cidade. “Eu trabalhava feito um louco. Confesso que no começo não entendia

nada, fui aprendendo na marra mesmo. Trabalhava em horário muito rígido. Começava às 4 da

manhã e ia até as dez da noite. Meus filhos eram pequenos e eu tinha que tocar tudo sozinho.

Não podia nem pensar em desistir. Desistir para ir para onde? Fui tocando e acreditando e a

coisa foi melhorando. No primeiro ano consegui pagar a metade do dinheiro que meu cunha-

do havia investido. No segundo ano paguei o resto. Graças a Deus dali para a frente as coisas

começaram a melhorar”, desabafa.

Do nome“O nome Frimoni é fantasia, eu criei e patenteei a marca. Sei que tem uma sorveteria usando o

nome Frimoni lá em Mairiporã, eu deixo porque a pessoa é minha amiga. Eu me dediquei muito

ao trabalho, precisava daquilo, ou vencia ou teria que voltar para o Paraná”. A primeira sorve-

teria montada por Joel ficava na Rua João Pires, depois ele foi para a Rua Benedito de Almeida

Bueno e depois ainda foi para a Rua José Inácio. “Eu fui para um prédio que pertencia ao Lidio

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Paulinetti. O Lídio é uma pessoa que também me ajudou além do que podia aqui na cidade.

Devo muito a ele. Lembro que ele me disse: “você está no começo e tem futuro. “A questão do

aluguel a gente resolve assim: você me paga o que puder pagar e só sai daqui quando construir

uma propriedade sua”. Foi uma maravilha, sou eternamente grato a ele. Nem fizemos contrato

nem nada. E realmente só saí de lá depois que construí este prédio onde estou até hoje. Lembro

quando a construção já estava quase no final recebi a visita do Lídio e ele disse, todo orgulhoso:

“aqui tem um pouco de mim”. Que grande amigo, grande coração. Sou eternamente grato a ele”,

conta Joel sem esconder a emoção nem as lágrimas que brotam em seus olhos.

Aprenda com ele“Fazer sorvete é a coisa mais fácil do mundo. A gente trabalha com peso e medida. É só

calibrar, seguir a receita e pronto. Só que a minha preocupação sempre foi com a qualidade.

Eu fazia questão de utilizar os melhores ingredientes possíveis. E experimentava tudo antes

de começar a vender. Como já disse, se a coisa não estivesse do meu gosto eu simplesmente

jogava tudo fora”. Apesar de ter um movimento contínuo em suas sorveterias, Joel conta que o

forte das suas vendas era para fora, ou seja, atendia o comércio em geral. “Eu vendia para bares,

padarias, mercados, tudo quanto é lugar. Cheguei a ter entre vinte e trinta vendedores. Além

disso vendia através desses carrinhos que circulam pelas ruas. Realmente, não é para me gabar,

mas o meu produto tinha muita qualidade”. Hoje Joel está aposentado e praticamente já não

faz mais nada. “Estou vivendo como gosto. De maneira bem simples com uma aposentadoria

que dá para viver razoavelmente. Minha mulher também está aposentada, moramos numa boa

casa, o que temos dá para tocar, somos felizes e não precisamos mais que isso. Para falar bem

a verdade nunca pensei em enriquecer”, completa.

Tocando em frenteOlhando para trás Joel fala do excelente movimento de fregueses na sua loja que ficava bem

na esquina do mercado. “Fiquei lá durante oito anos, até completar a construção deste prédio

onde vivo até hoje. Como eu disse, sempre tive ajuda na vida, mas também trabalhei muito.

Penso que se naquele tempo eu tivesse a experiência que tenho hoje teria feito muito mais.

Mas não me queixo. Consegui criar minha família, consegui uma casa para cada filho meu, tá

bom demais”, consola-se. Apesar de ter feito grandes amigos na cidade, Joel revela que conhecia

pouca gente em Atibaia. “Eu sempre estive muito ocupado trabalhando feito louco. Chegava a

trabalhar 16 horas por dia, imagine só...”. Sem reclamar de nada, diz que sua vida é muito boa.

“Adoro Atibaia. E digo mais: o segredo do sorvete ou de tudo o que se faça na vida é a cabeça.

Quando você quer fazer, quando você acredita no que está fazendo você faz bem feito”, filosofa.

Em 1992 Joel chegou a abandonar a sorveteria para montar a Jocal, uma loja de cimento que

tocava junto com Flávio Callegari. “Começamos aquilo sem nada. Foi uma experiência grati-

ficante. Só que eu preferia o ramo de sorvete, que é muito bom e muito lucrativo para quem

quer trabalhar com vontade”, receita.

É muito picoléO homem que chegou a fazer e vender 15 mil picolés por dia (e ainda faltava....) não esconde

o seu amor por Atibaia: “É uma cidade boa de se viver. Se tenho muitos amigos eu não sei, sei

que ganhei muito com as amizades que fiz. Uma coisa eu garanto: não tenho inimigos. Ao que

eu saiba até agora não conseguir arrumar nenhum inimigo. Adoro o sorvete porque o sorvete

é a minha vida. Eu sei que não sou muito doce, talvez porque toda a doçura que eu tinha eu

colocava no sorvete que fazia”, desabafa Joel, o homem do incrível sorvete Frimoni.

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Edgard de Oliveira Barros

“Estou aqui, agora, porque meu pai, quando ainda muito jovem, não conseguiu

arrumar dinheiro para comprar uma simples passagem de trem de Jaboticabal

para São Paulo”. Foi com esse jeito curioso e até engraçado que o Dr. João

Antonio Bastos Garreta Prats, ilustre Procurador de Justiça do Estado de São

Paulo, morador e adorador de Atibaia há mais de doze anos, iniciou esta entrevista. Aos deta-

lhes: o Dr. Garreta, como é chamado pelos amigos, conta o fato de não ter conseguido juntar

o tal dinheiro da passagem seu pai, Sylvestre Sabino Garreta Prats perdeu a oportunidade de

conseguir um bom emprego na Capital, como ilustrador no antigo jornal Folha da Manhã.

“Quando ele conseguiu o dinheiro, o emprego já era. Foi então que começou a trabalhar em

um cartório de registros, na Praça da Sé e acabou mudando o rumo de sua vida”. Sylvestre se

aposentou como cartorário. Já casado com dona Hebe Bastos Garreta Prats, fez o curso de

Direito e conseguiu encaminhar seus cinco filhos: quatro moças e o Dr. João. “Sua vida poderia

ter sido outra se tivesse ingressado no jornalismo. Talvez eu nem tivesse existido...”, conta aos

risos. A vida do Dr. Garreta é toda feita de acasos...

As surpresasNascido em São Paulo há 52 anos o Dr. Garreta decidiu cursar Direito por influência do pai.

“Ele sonhava me ver na Faculdade do Largo de São Francisco. Fazia questão que eu me tornasse

promotor... Prestei vestibular e nem acreditei quando soube que tinha sido aprovado. Meu

pai, então, quase morreu de susto”. Na sequência da vida, meio que por acaso, prestou con-

curso para a Promotoria e foi aprovado. “Meu pai já tinha morrido e eu nem consegui curti-lo

como queria. Fiquei orgulhoso por ter realizado seus maiores sonhos”. O bom de ouvir o Dr.

Garreta é que ele gosta tanto do que faz, gosta tanto de lembrar suas histórias que consegue

dizer as coisas com o coração. Emoção pura. “Por acaso ou sem acaso, meu pai tinha razão e

Os bons combates me custaram caro; mas eu

não consigo ficar longe de um bom combate

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eu me realizei em minha profissão. Da mesma forma que me realizo quando vejo meu filho,

João Antonio Gonçalves Garreta Prats, com 20 anos, já cursando o terceiro ano de Medicina.

Não é lindo isso?”

O giro da vidaPromotor desde 1984 rodou o mundo. “Passei por Santo André, São Caetano, São Roque,

Sorocaba, Mairinque, até que fui para o Vale do Ribeira, como promotor de primeira ent-

rância. Acumulava o cargo nas cidades de Juquiá e Miracatu. Depois atendi Eldorado, antiga

Xiririca da Serra (isso mesmo, Xiririca da Serra...) e Cananéia. Era, e talvez ainda seja, a região

mais pobre do estado. Distante apenas 130 quilômetros da Capital abriga uma pobreza de

fazer dó. Não dá para imaginar o quanto aquela gente sofre. Seu alimento básico é banana e

farinha de mandioca...”, conta. “Trabalhei também em Miracatu. Fiquei no meio de jagunços

em Pedro Toledo, que era, então, um distrito da cidade. Tinha que dormir no Fórum, pois

nem hotéis existiam...”.

E o que é que a gente ganha? Ainda que existissem hotéis e ainda que quisesse, com certeza o Dr. Garreta não poderia se

hospedar. “Naquela época promotor ganhava uma miséria. Tentei comprar um apartamento

pelo BNH, para pagar em 15 anos. Escolhi um simplesinho, baratinho, minha ficha foi repro-

vada. “Dr. com esse salário não vai dar...”, disse o vendedor. Os salários do Ministério Público

melhoraram a partir de 1986. O pior é que estabeleceram um teto de vencimentos muito

próximo do salário inicial. Acho que isso desestimula a carreira”, opina. “Apesar de tudo, eu

sinto uma saudade imensa. Sempre adorei ficar em contato com as pessoas, me meter nos

problemas, buscar soluções. Naquela época os promotores vivenciavam mais a comunidade.

Sempre defendi que a carreira deveria ser exatamente ao contrário; você só iria para o campo

depois de toda a experiência, depois de conhecer profundamente soluções que poderiam ser

propostas e desenvolvidas”.

Da violência“Foi no Vale do Ribeira que eu conheci a pobreza no sentido maior da palavra, não só

material como em termos de civilização. Sem escolas, sem nada. O povo era e talvez conti-

nue sendo muito arredio, distante. As pessoas viam a gente como coisas do outro planeta. O

distrito de Pedro de Toledo, Miracatu, só tinha um policial. Era um investigador meio ma-

luco, pois só um maluco poderia aceitar a função”, conta. “Grilagem era um problema sério e

a violência comia solta no campo”, acrescenta. “Lembro de um crime em Eldorado Paulista.

Um sujeito matou o outro e foi um drama para a polícia chegar e retirar o corpo. Demoraram

12 horas para atingir o local do crime. Era outro mundo, terra de ninguém. Talvez ainda

continue assim”. A dificuldade faz com que as pessoas se unam, lembra o Dr. “Já naquele

tempo o pessoal envolvido com a Justiça, juízes e promotores se encontravam para jantar e

discutir problemas. Eram e continuam sendo obrigados a se unir porque a responsabilidade

é grande”. Como naquele tempo não existia a defensoria pública os promotores atendiam o

público diretamente. Ações trabalhistas, ação de alimentos. “O Ministério Público deixou

de fazer esse trabalho e, ao meu ver perdeu muito com isso”, conta.

O crime“Eu sempre gostei de atuar no crime, adorava fazer júri”, diz o dr. Garreta, lembrando do

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caso em que atuou no júri de um banqueiro de jogo do bicho, em 88/89. “Ele tinha um sócio,

desfizeram a sociedade e um deles contratou um grupo de execução. Mataram o bicheiro

antagonista e balearam sua mulher na cabeça e no tórax. Ela ficou paraplégica. Foi a única vez

na vida em que senti algum temor, pois aquilo era uma briga perigosa. O bicheiro mandante

foi condenado e preso”, relata. O Dr. Garreta conta também o caso de um garotinho morto

a pancadas pelo padrasto. “Ele já vinha maltratando o garoto há muito tempo. Eu olhava a

foto do garoto publicada em um jornal e projetava como se o garoto fosse o meu filho. Fiquei

tomado por uma emoção incrível. Minha voz chegava a faltar durante o júri. Os jurados

também se emocionaram. As pessoas ofendidas querem alguém que promova a justiça, já

que não vão ter o ente querido de volta. O padrasto foi condenado à pena máxima: 30 anos

de cadeia. Nunca contei quantos júris fiz. Posso ter perdido algum, mas nunca deixei de me

preparar. Conhecia os meus processos de ponta a ponta. Acho que o júri tem sua sabedoria,

sabe quando a pessoa que está sendo julgada é perigosa ou não. Não sei explicar, mas o júri

sabe. Se o sujeito não for perigoso o júri absolve. Tenho esse feeling talvez pela experiência

de tantos júris que fiz e quase garanto que o júri é sempre o melhor juiz”.

PreocupaçõesO Brasil preocupa o procurador. “Estamos vivendo tempos difíceis. Hoje qualquer um

coloca um revólver na cabeça do outro, invade casas, e se não mata é por circunstância. Todos

assistem e ninguém faz nada. Falam em penas alternativas e esquecem que alguns países têm

essa prática só porque seu índice de criminalidade é pequeno. E eles têm como fiscalizar. Aqui

não se fiscaliza nada e não se tem nem cadeias suficientes. Não se constrói cadeias, ninguém

quer cadeias. Ouço dizerem que é melhor construir escolas. Eu também quero escolas, claro,

mas nem por isso se pode deixar de punir quem infringe a lei. Nossa realidade é massacrante.

É preciso punir. E, no entanto, hoje se faz de tudo para que o contraventor da lei não seja

preso. A nossa lei de execuções penais é uma piada. Todo mundo critica o Legislativo pelas

leis que faz, só que o Legislativo não é nada no Brasil. Quem manda, quem determina tudo

é o Executivo em todas as esferas. O Executivo é que faz toda a política no país. É triste dizer,

mas o Judiciário e o Legislativo influem muito pouco. O Executivo faz e desfaz porque ele é

quem tem o dinheiro. E quem tem o dinheiro manda. Mais do que nunca o Brasil depende

do Executivo”, critica.

E tem maisRevoltado com tudo o que tem visto ultimamente, o Dr. Garreta diz que em qualquer

outro país do mundo o atual governo já teria sido substituído. “Os escândalos se sucedem e

todos assistem passivamente. A bandalheira virou coisa normal. É duro falar isso, mas é real,

está incorporado no espírito do povo. Nossos impostos são os maiores do mundo. Os cínicos

dizem que os impostos da Suécia são mais altos. Só que lá o povo tem tudo, educação, saúde

da melhor qualidade, sem pagar nada. Nem pedágios. Não consigo entender como não se

reage diante de tantos escândalos. A juventude não se preocupa com a política, que é o único

caminho para se modificar tudo”, desabafa.

No combate Sempre combatendo os bons combates, depois de cumprir seu trabalho como promotor,

o Dr. Garreta foi promovido à Promotoria de Justiça. Antes ficou seis anos na Corregedoria

do Ministério Público, órgão que cuida da eventual apuração de faltas de promotores. “Fui

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assessor do corregedor geral, uma experiência muito interessante. Também tive oportunidade

de me candidatar e ser eleito para o Conselho Superior do Ministério Público. Fui eleito vice-

presidente e depois presidente da Associação dos Promotores Públicos, órgão que tem uma

história muito bonita graças ao trabalho que sempre promoveu em prol da classe. Depois me

afastei da política classista”. Hoje o Dr. Garreta trabalha dando pareceres na seção criminal

do Tribunal de Justiça.

Daqui não saioTalvez o maior sonho do procurador fosse começar de novo na carreira de promotor. Voltar

para o Vale do Ribeira, onde tudo começou. “Se eu fosse militar pediria para ser rebaixado...”,

brinca. Não esconde o seu amor por Atibaia. “Vim para cá quando minha mulher, a Dra. Arlete

Del Mastro foi nomeada promotora para a cidade e não saio mais daqui”. Durante todo esse

tempo o Dr. Garreta ficou no vai e vem para São Paulo. Justamente quando pensou que teria

mais tempo para curtir a vida ao lado da esposa, já que ultimamente trabalha mais em casa,

foi surpreendido: a Dra. Arlete foi promovida para o Fórum da Penha, na Capital. “Antes eu

viajava e ela ficava. Hoje ela viaja e eu fico...”. Mas ele não se queixa. “Deus me coloca sempre

no meio de pessoas adoráveis, meus pais, meu filho, minha mulher, meus amigos. Sou um

privilegiado”.

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Se existe uma expressão que deixa o Dr. Delsio Natal muito, mas muito preocupado

é a tal do “não tem mosquito”. Tem que ter mosquitos sim, pois os mosquitos são

a sua vida. O Dr. Delsio é literalmente maluco por mosquitos. Aliás, também lite-

ralmente, ele é Doutor em mosquitos e até defendeu tese acadêmica sobre eles. “As

pessoas acham engraçado, mas os mosquitos são realmente a minha vida. Eu trabalho com

eles há mais de 30 anos. Às vezes chego a pensar que sei mais da vida dos mosquitos do que

da minha própria vida”, sorri o Dr. Delsio, um atibaiense que sabe sim, e muito, da sua própria

vida. E tem saudade, e muita, da Atibaia onde viveu sua infância e juventude. Delsio Natal,

hoje com 60 anos, casado com Elvira Aparecida de Oliveira Natal, pai de Licia Natal Fernandes,

Bióloga, Mestra em Saúde Pública e Thais Natal, Psicóloga, exercendo suas funções no IPT,

Instituto de Pesquisas Tecnológicas, foi criança criada na natureza de um sítio que seus pais

tinham no bairro do Mato Dentro, ali no bairro do Tanque. “Depois me encantei tanto com

tudo o que aprendi no colégio Major Juvenal Alvim, especialmente nas aulas de biologia do

professor Orlando Gigliotti que resolvi ser biólogo. Eu me realizava porque vivia a prática e

aprendia a teoria”, confessa.

Um dos “garotos-prodígio”O Dr. Delsio Natal foi mais um dos “garotos-prodígio” saídos do “velho Major”, a escola

que tanto prestígio tinha outrora. “No meu tempo a escola preparava alunos para a Medicina,

Engenharia e vários cursos da USP. O pessoal passava direto, sem cursinho, sem mais nada.

Foi um bom tempo, um momento de efervescência, de motivação, um grande colégio. Hoje

a gente lastima que o ensino de primeiro e segundo graus tenha passado por essa degenera-

ção. Uma pena. Não é saudosismo não, é apenas uma constatação. Os professores não eram

só teóricos procuravam enriquecer suas aulas com demonstrações de campo. A Biologia era

Pede-se encarecidamenteque não se matem

mosquitos, pois eles precisam ser estudados

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parte forte do colégio. Como eu já tinha uma vivência com a biologia de campo, pois morava

no sítio e interagia com o meio ambiente, aquilo me entusiasmava”. Quando terminou o

colégio o Dr. Delsio cursou Biologia na USP. Prestou concurso público e passou a exercer o

cargo de técnico na Escola de Saúde Pública, também da USP. “Trabalhei com o dr. Lara, um

grande geneticista. Foi ele quem trouxe a Biologia Molecular para o Brasil. Já naquele tempo

ele trabalhava com DNA, era um laboratório de ponta. Pode parecer engraçado, mas minha

função era criar moscas para que ele pudesse estudar. Sim, eu era um criador de moscas do

tipo “hincociaras angelae”, usadas para extrair material genético, o DNA e fazer estudo dos

genes. Era um laboratório de genética bem avançado para a época, um processo primitivo se

comparado com a biologia molecular de hoje. E, no entanto, ele desenvolvia pesquisas muito

mais complexas do que se faz atualmente...”.

E entram os mosquitosEntusiasmado com tudo o que via o Dr. Delsio resolveu também fazer o curso de Botânica.

“Fui trabalhar com madeira. Como era biólogo fiquei na parte de identificação de espécies até

voltar para a Zoologia, como professor da USP. Fiz cursos de especialização em saúde pública

e de entomologia, área na qual trabalho até hoje. Depois, em 1986 concluí o Doutorado na

área de entomologia médica, que é o estudo dos insetos de interesse médico, que transmitem

e veiculam agentes patogênicos para o homem. O Brasil tem uma série de doenças ligadas

a essa área como a malária, as leichmanioses todas, febre amarela e, mais recentemente a

dengue, que é o nosso maior desafio em termos de saúde pública. Passei a trabalhar com os

vetores, faço a parte entomológica dos insetos transmissores. Toda a minha carreira, minha

produção cientifica está voltada para a área de entomologia médica dentro de um ambiente

acadêmico como professor, pesquisador, orientador”. Mas o Dr. Delsio também vai ao campo

trabalhando na linha de ecologia de vetores, de insetos transmissores. “Faço palestras sobre

isso, pesquiso sobre isso, ensino sobre isso, inclusive pesquiso o “aedes egiptie”, o vetor da

dengue”.

Coisa de malucosUm momento engraçado de sua vida ocorreu quando foi convocado para servir o Exército

em Jundiaí. “Era um quartel-prisão-política. Muitas vezes tinha que ficar vigiando os presos

enquanto eles tomavam sol, etc. Nunca vi nada de tortura física. Os presos eram bem tratados,

comiam a comida dos oficiais e não o rancho que era oferecido aos soldados. Tortura talvez

fosse ficar ouvindo todos os dias o coronel fazendo o seu discurso anticomunista: “esses são

os que ameaçam a nossa segurança, que assaltam, que matam sentinelas”. Ficava nisso. Se é

que havia, era a tortura psicológica. A época era tensa, realmente. Mas até que todos viviam

bem, o relacionamento era tranqüilo. Chegaram a realizar uma partida de futebol, oficiais

contra os presos políticos. Os soldados ficaram observando... Hoje eu fico analisando e me

pergunto: gente, que coisa maluca...”.

Na linha de Oswaldo CruzDe um jeito ou de outro, o Dr. Delsio vive atrás de mosquitos há trinta anos. “Eu vou na

linha de Oswaldo Cruz, que conseguiu erradicar a febre amarela no ambiente urbano, espe-

cialmente nas cidades litorâneas do país. De 1943 para cá nunca mais se teve febre amarela

urbana. Foi uma campanha muito bem estruturada pois se conseguiu ver os pontos fracos

dos mosquitos e idealizar um controle bem racional para a época”. O mosquito causador da

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febre amarela é o mesmo aedes egiptie da dengue. A pergunta é: se há cem anos Oswaldo

Cruz conseguiu dominar o mosquito, por que não se consegue erradicar hoje? O Dr. Delsio

diz que existem várias maneiras para explicar. “Na verdade trata-se de um mosquito muito

urbano, e as cidades cresceram muito dentro do ambiente que o homem produziu. A era do

plástico, dos pneus, desses descartáveis todos. Hoje são incontáveis os lugares onde os mos-

quitos podem procriar. É praticamente impossível nos livrarmos dos mosquitos. O mosquito

está dentro das casas, está no ambiente particular e o poder público não tem nem como agir.

Antes a estrutura era mais verticalizada, o governo dizia que iria fazer e fazia com atitudes

drásticas mesmo. Tanto é que quando Oswaldo Cruz promoveu a vacinação contra a varíola

foi tão incisivo, tão determinado que acabou até gerando uma revolta no Rio de Janeiro, a

chamada “revolta da vacina”. A história conta que o cientista Oswaldo Cruz não brincava; era

mandão, autoritário e fazia o que tinha que ser feito. Hoje a situação é outra, mais democrá-

tica, mais horizontalizada, existe uma outra lógica e a solução fica emperrada. Eu não sou

favorável à esse tipo de intervenção pela força, porém, devo reconhecer que naquela época

a coisa funcionou...”.

Onde está o mosquitoO Dr. Delsio deixa claro que não faz o controle, apenas estuda o mosquito. “Hoje o con-

trole desses vetores está a cargo das prefeituras. Elas são as responsáveis pelo combate ao

mosquito em nível local e devem ter seus centros de controle de zoonoses para realizar as

ações de combate”, explica. Ele continua dando aulas sobre mosquitos. Vive em São Paulo,

mas mantém casa em Atibaia. “Realizo pesquisas em lugares problemáticos e praticamente

já visitei o país inteiro. Eu vou onde tem mosquitos”, diz, sorrindo. Agora, por exemplo, está

pesquisando um surto de malária na Serra do Mar. “É um surto pequeno, mas tem que ser

estudado”. Muitas vezes leva seus alunos para participarem. “Fazemos a parte ecológica,

instalamos armadilhas, capturamos mosquitos para examiná-los em laboratório. É todo um

trabalho de pesquisa sobre a incidência, horários em que o mosquito aparece, horário em

que suga as pessoas, etc.”. Na verdade, como já se disse, o Dr. Delsio sabe tanto da vida dos

mosquitos como de sua própria vida... “Eu brinco dizendo que sou um fofoqueiro da vida

dos mosquitos, um destrinchador dos seus hábitos...”. E os mosquitos não são nada bobos

não. “Tem um monte deles. O mundo tem 4 mil espécies, por aí. E no Brasil existem entre

20 e 40 espécies, umas importantes, outras não. Só trabalhamos com mosquitos que tenham

interesse imediato para o homem, ou que possam complicar a vida do homem transmitindo

doenças”.

Politicamente incorretoEmpolgado com tudo o que faz o Dr. Delsio conta que o mosquito não é nada político, na

verdade é um oportunista. “Ele tem uma comunidade, só que não é um inseto social como

as abelhas, cupins que têm uma estrutura social muito complexa. A vida do mosquito é mais

simples: tem o macho, a fêmea, eles se cruzam e pronto. Não fazem ninhos. Têm duas fases,

a fase aquática e a fase alada. A fase aquática dura no máximo dez dias e a fase alada dura

por volta de quarenta dias. O perigo é a fêmea, pois ela é hematófila, sugadora de sangue.

Ela leva o sangue de pessoas infectadas para pessoas não infectadas. Em linguagem técnica,

carreiam o patógeno, o vírus da dengue, por exemplo. Por isso é que o mosquito é chamado

de vetor, ele vetoreia para outras pessoas. O que mais preocupa no Brasil é a dengue que tem

quatro sorotipos diferentes: dengue um, dois, três e quatro. Na realidade são quatro doenças

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mescladas numa só. Democrática, ataca em todos os bairros, ricos ou pobres nas metrópoles

e há casos fatais. A tendência é que no futuro a dengue acometa mais a faixa infantil, uma vez

que as pessoas mais velhas acabam adquirindo imunidade”, ensina o dr. Delsio que já publicou

uma imensidade de trabalhos científicos (mais de 50) em revistas altamente técnicas e espe-

cializadas. Uma simples consulta do seu nome no Google surpreende e mostra a importância

deste atibaiense no campo da pesquisa. Seu sonho é transmitir tudo o que aprendeu para

gerações novas. “Estou idealizando relatar meus conhecimentos de uma forma mais popular

para chegar até às crianças”, diz. Quem sabe um dia volte para cá para pesquisar com o velho

mestre Orlando Gigliotti que o incentivou nessa maravilhosa viagem pela pesquisa.

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“O Hospital Albert Sabin é o resultado concreto de um enorme desafio e

uma grande amizade”. É assim que Francisco Espinha, 58 anos, filho de

Orlando Espinha e de Norma Romano Espinha, pai do Marcelo Gomes

Espinha, formado em Turismo e da Tatiana Gomes Espinha, psicóloga,

um dos idealizadores do hospital, ao lado do Dr. Filippo Campione, define a sua obra. “Nos

meus primeiros anos de Atibaia, meus filhos estudavam na escola Monteiro Lobato com os

filhos do Filippo. Eles ficaram muito amigos e nós, os pais, ficamos mais amigos ainda. Foi

uma amizade sólida que nos levou a sonhar e a realizar esse sonho tão bonito que é o “Albert

Sabin”, orgulha-se Francisco que os amigos costumam chamar de “Chico Espinha”. Chico se

auto-define como um trabalhador incorrigível: “Minha vida sempre foi trabalho, trabalho e

trabalho. O trabalho me diverte e me engrandece”, conta o paulistano da Mooca, corinthiano

fanático, que um belo dia do ano de 1984 veio para Atibaia a passeio e não saiu mais. “Gostei

tanto que comecei a trazer minhas coisas para cá. Eu tinha uma indústria metalúrgica lá na

Capital e fabricava macacos hidráulicos. Também mexia com automóveis e autopeças.” Chico

Espinha veio, mas continuou indo e vindo pela tortuosa Fernão Dias de então. “Aquilo era um

desafio e um desespero”, proclama, lembrando que exatamente por isso acabou vendendo

todos os seus interesses em São Paulo para vir em definitivo, em 1996.

ComeçoEngraçado que sua primeira atividade em Atibaia foi uma farmácia. “Era a Droga Avenida,

que ficava na Avenida São João esquina com aquela rua da Rodoviária. Isso em 88 ou 89, nem

lembro. Você vai me perguntar: por que eu me meti nesse negócio? Porque meu sogro tinha

um grave problema de saúde e precisava de muitos medicamentos. Acabei ficando amigo e

sócio do dono farmácia. Ainda tive outras farmácias, uma delas na Avenida Dona Gertrudes.

Este entrevistado faz bem

para a saúde

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Construí um belo prédio, mas logo em seguida desisti e trouxe a Ativel, para cá. A Ativel era

uma concessionária da Gurgel, lembra daqueles carrinhos bacanas da Gurgel? Só que a Gurgel

teve problemas e foi desativada. Eu passei a trabalhar no mercado de carros usados. Também

montei uma loja de autopeças na Carvalho Pinto, em frente à Rodoviária e que depois veio

mais para baixo da Carvalho Pinto e agora está na Rua Joviano Alvim”, conta Chico.

Meio“O sonho de construir o hospital nasceu por influência do amigo e sócio, Dr. Filippo

Campione. Ele tinha um hospital em São Paulo e eu tinha comprado um terreno bem gran-

de aqui em Atibaia, bem ao lado da rodovia Fernão Dias. Ia instalar uma revendedora de

caminhões, pois tinha conseguido uma concessão da Volkswagen Caminhões. O dr. Filippo

sempre falava: “Um dia nós vamos construir um hospital nesse terreno...”. Isso foi no ano

de 1986 ou 89. Só me lembro que veio aquele famoso plano Collor e complicou tudo. Todo

mundo foi dormir rico e acordou com míseros cruzados ou sei lá que moeda era na conta.

Lembra? Pois é, todo mundo ficou sem dinheiro. Só que o sonho do hospital que o Dr.

Campione falava profeticamente continuou. Cansados do ir e vir pela Fernão Dias eu vendi

a indústria, ele vendeu o hospital de São Paulo e começamos a empreitada. A construção do

Albert Sabin começou em 1994 e nós inauguramos em 1997. De lá para cá já fizemos todas

as ampliações possíveis”. Eufórico pede que o repórter não conte, mas eles já sonham com

Bragança Paulista...

Os meios Lembrando que foi um processo altamente desgastante, Chico Espinha traça a engenharia

do sucesso. “Nossa primeira atitude foi criar a Climed, uma operadora de serviços de saúde.

A maioria dos contratos tinha carência e nós atendíamos num ambulatório que ficava na

Rua Benedito de Almeida Bueno. Os casos mais graves, as emergências, eram encaminhados

para a Santa Casa de Atibaia, onde mantínhamos dois apartamentos contratados. E também

atendíamos no Hospital Universitário de Bragança, pois a maior parte do nosso corpo clí-

nico era de médicos da Faculdade com quem tínhamos acordo operacional. O hospital foi

inaugurado justamente quando as carências começavam a vencer”, lembra. Quando o Albert

Sabin entrou em operação já tinha por volta de 8 mil clientes da Climed. Hoje a Climed já

tem 25 mil clientes. “Convém lembrar que são duas empresas distintas”, esclarece Chico, “a

Climed, que é a operadora que vende serviços de saúde e o Hospital Albert Sabin, que presta

serviços de saúde. Além dos clientes em geral, o hospital atende conveniados da Climed e

conveniados de mais 35 outros convênios”, explica. O Albert Sabin foi inaugurado quando

Atibaia tinha 80 mil vidas. Hoje a população da cidade já beira ou até passa das 150 mil.

Somando o atendimento ambulatorial e o pronto socorro, o hospital atende 25 mil consultas

por mês, quase mil pessoas por dia.

Engenharia“A Climed vende o serviço e o hospital presta o serviço. Um não vive sem o outro. Nenhuma

operadora de serviços médicos sobreviveria sem um hospital próprio que é o prestador de

serviços. Os custos são cada vez mais altos”, explica. Os planos de saúde de hoje são todos

iguais, regidos pela Agência Nacional de Saúde, lembra Chico, adiantando que o atendimento

do Albert Sabin é completo e abrangente. “Realizamos todo tipo de cirurgia, cardíaca, neuro-

lógica, bariátrica entre outras”. Desde o início das nossas atividades somos o único hospital

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da região que oferece a tal de ressonância magnética. Antes da gente, esse tipo de serviço só

existia em Campinas e São Paulo”. Ele não esconde o orgulho quando diz que: “Atibaia tem

muita sorte, afinal conta com dois hospitais de grande porte, o nosso e o Ahma, com quem

sempre mantivemos um excelente relacionamento; um serve o outro quando é possível e

necessário”.

Um caso triste“Nós temos vivido momentos importantes nesses mais de dez anos. Temos procurado

atender da melhor maneira a todos aqueles que nos procuram. Você me pergunta sobre um

momento dramático que tenhamos passado. Para nós, todos os casos são dramáticos. Já que

você insiste, um caso que nos chocou muito foi de um menino aqui da cidade que pegou a

arma do pai para brincar e acabou disparando contra ele mesmo. Foi dramático. O menino

veio para cá, passou por diversas cirurgias, todo o mundo fez o impossível, mas o garoto não

resistiu. A gente não esquece, foi um caso que comoveu a cidade”. Francisco prefere não falar

sobre o atendimento prestado pelo SUS, limita-se a dizer que “as pessoas que necessitam

desse atendimento estão bem complicadas...”.

Como funciona“Nós temos certeza de que estamos oferecendo um bom serviço. Às vezes pessoas adquirem

planos de saúde sem observar que todos eles têm carências a cumprir. Do ano 2000 para cá a

ANS, Agência Nacional da Saúde, passou a regular e fiscalizar o setor e tem colocado muitas

obrigações favorecendo aos clientes, como tratamentos da obesidade, laqueadura e uma por-

ção de itens. Tudo pode ser verificado até pelo computador, numa transparência total”, diz.

“A gente tem que lembrar, no entanto, que a ANS vem colocando obrigações para as opera-

doras de planos de saúde sem, no entanto, oferecer compensação financeira. São obrigações

sem direitos. No passado, por exemplo, autorizou aumentos de 6% nas prestações, 7% neste

ano e incluiu 200 procedimentos como direito aos associados. Neste ano colocou mais 100.

Os medicamentos chegam a custar até 100% mais, fora o alto custo dos materiais utilizados

na parte cirúrgica. O cliente recebe atendimento completo a custo zero; as normas da ANS

são muito rígidas. Antes, se uma pessoa quebrasse um braço ia para o hospital, o médico

dava uma anestesia, puxava, encaixava, gessava e pronto. Hoje se faz uma cirurgia no braço

quebrado, que custa no mínimo 6 ou 7 mil reais, só de materiais. Sabe aquela cirurgia da

mão do Ronaldo? Deve ter custado uns 20, 25 mil reais... Antes as próteses eram pagas pelo

paciente, hoje quem paga é o convênio. É difícil para o cliente pagar, mas também é difícil

para o convênio bancar”, justifica, lembrando que qualquer tipo de cirurgia utiliza materiais

caríssimos. “Um desfibrilador custa 40/50 mil reais. Só no mês passado nós tivemos três

casos de implante de marca passo a custo altíssimo.

BragançaSempre otimista Chico Espinha revela, agora abertamente, que é quase certo que Bragança,

também terá, logo, logo um Albert Sabin. Com um sorriso orgulhoso ele confirma que até já

foi comprada uma propriedade para esse fim. “É um terreno de 10 mil metros quadrados na

Norte-Sul, uma avenida importante da cidade”. Vez por outra confessa que é melhor traba-

lhar com comércio ou indústria. “Antes eu tinha hora para abrir e fechar. Aqui as portas não

fecham e a gente fica 24 horas no ar. Não têm fim de semana, férias... A última vez que viajei

foi em 2002”, desabafa contente com a última novidade do Albert Sabin: uma aparelhagem

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para explodir pedras em rins, litotripsia, cirurgia a laser para cálculos. “Trabalho para mim

é diversão”, insiste, “tanto que nos anos 1994/1995 até 2000/2001, abrimos, digo “abrimos”,

porque minha família contribuiu muito para tudo dar certo, uma casa de diversões, um bar

de nome “Tchiquila”, que funcionava todos os dias e nos finas de semana. Era uma danceteria.

Ainda hoje encontro pessoas que se uniram lá e falam com muita saudade do Tchiquila”. Esse

é o empolgado Chico. Pois continue trabalhando e se divertindo, Chico Espinha, a cidade

precisa de gente assim.

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“Somente demente sente contente dor de dente”, dizia o velho amigo dr. Segundo

Fogli, dentista, claro. Como dói a dor de dente e que alívio pode proporcio-

nar um bom dentista. Pois é de um bom dentista que se vai falar aqui, por

sinal um dos melhores que Atibaia já teve, o Dr. Sebastião Theodoro Pinto

Netto. Aos 76 anos, casado com a atibaiense Dalva Fachulli Pinto, é pai de Afonso Celso, José

Theodoro, João Theodoro, todos também dentistas, e Paulo Sérgio, engenheiro agrônomo

ambientalista. Também é avô de 8 netos. Sua história de vida é um verdadeiro passeio pela

história da cidade e da região. Ele nasceu em Porto Feliz, mas foi criado entre Atibaia e Nazaré

Paulista. “A Nazaré da minha infância era uma cidade muito pequena, diminuta mesmo. Tão

pequena que, no meu tempo, acho até que era só Nazaré, nem o Paulista tinha ainda”, brinca.

Seu pai era funcionário público estadual e comerciante afamado. “Minha mãe colaborava na

administração. Era uma mercearia que também vendia tecidos. Uma loja grande, com sete ou

oito portas. A outra grande loja de Nazaré pertencia ao sr. Eugênio Quiricci, avô do dr. João

Quiricci, um grande oftalmologista de Atibaia”, lembra o Dr. Sebastião Theodoro.

A vida é uma viagemEle lembra que a família costumava receber a visita de irmãs e irmãos de seu pai que vinham

de São Paulo, Porto Feliz e Bauru. “Quando iam embora me levavam. Eu vivia viajando desde

aquele tempo”, conta. Apesar da aparência e até do jeito de falar, o Dr. Sebastião Theodoro não

é nordestino. E sorri e justifica: “Acho que peguei esse meu jeitão no tempo que morava em

São Paulo, onde convivi com grandes amigos nordestinos”. O dr. Sebastião viaja na saudade

e conta que naquele tempo, chegar ou sair de Nazaré Paulista era uma epopéia. “Não tinha

ônibus e a gente aproveitava os caminhões que transportavam carvão. Nazaré foi um grande

produtor de carvão na época da guerra. Daí o terrível desmatamento que ocorreu na região.

Você vai ficar anestesiado com as

histórias que este grande dentista tem para contar

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Saíam caminhões e mais caminhões carregados de carvão. Esse carvão era retirado das matas e

chegava à cidade em tropas de burros. Depois passava para os caminhões. Meu pai aproveitava

as caronas para fazer compras em São Paulo. Ia na boléia, claro. Eu só viajei assim umas duas

vezes. Os caminhões iam lotados de carvão, imagine a sujeira...”, ri. Já os parentes chegavam

de táxis que partiam de Atibaia ou de Guaxinduva. “Naquele tempo Guaxinduva era uma

estação de trens do ramal de Piracaia. Ficava bem na beira da estrada”, recorda-se.

Dos professoresQuando os parentes iam embora, o Dr. Theodoro ia junto. Depois alguém trazia ou seu

pai ia buscar. “Quando mais crescidinho já viajava sozinho. Fui filho único até os 9 anos

quando nasceu meu irmão, José Marcelino”. O Dr. Sebastião guarda com carinho e mui-

ta saudade os grandes professores que teve no curso primário, em Nazaré. “Tive grandes

mestres. O professor Leonidas Zoe, a professora Antonieta, dona Luzia. Naquela época os

professores eram muito bons e os alunos muito comportados. A escola era a extensão dos

lares. Fui até o terceiro primário lá na cidade. Terceiro primário que hoje vale por uma uni-

versidade. Depois vim para a casa de meu avô, já em Atibaia. Também não esqueço da dona

Zéquinha, professora que valeu muito na minha formação. Como era de praxe, a gente se

preparava para fazer o exame de admissão com a professora Clementina, que graças a Deus

vive até hoje”. Bem preparado foi aprovado e ingressou no colégio administrado pelos freis

agostinianos em Bragança Paulista. “Fiz o primeiro e o segundo ano ginasial em sistema de

internato. Aprendi muito. A gente rezava ao inicio de cada aula. Saía um professor, entrava

outro e a gente rezava. Entrava outro e a gente rezava de novo”, conta achando muita graça.

“Aprendíamos a rezar em francês (que sei até hoje) e em Latim. O professor de inglês não

era muito chegado e dispensava a reza. A gente morria de rir com o professor Caruso, que

dava aulas de Desenho. Ele chegava e rezava rapidinho assim: “Ave Maria, cheia, Jesus”. Isso

mesmo, pulava tudo: “Ave Maria, cheia, Jesus”. Os alunos achavam muita graça. Um dia nós

combinamos e resolvemos abreviar também a segunda parte da oração que ficou assim: “Santa

Maria, Amém”. No começo ele encrencou, no fim, riu. Foi assim que, na aula dele a nossa Ave

Maria era rezada assim: “Ave Maria, cheia, Jesus. Santa Maria, Amém”. Bem sintética”. O Dr.

Sebastião não contém o riso...

Conhecem o “Marmelada”?Pois o tal professor tinha também uma forma especial de tratar os alunos arrumando

apelido para todos. “Chamava um aluno de Beiço, outro de Florzinha. Tudo na gozação, cla-

ro. Imagine só, o Florzinha... Logicamente o “Florzinha” que o professor falava não tinha o

significado que eventualmente possa ter hoje. Nada disso. Por sinal eu gostaria muito de me

encontrar com o “Florzinha”. Seria legal voltar à infância. Se encontrasse com ele chamaria de

“Florzinha”, claro. Com certeza ele nem iria ligar... Por falar nisso, acho que você deve conhecer

um grande colega que eu tive na época, é o Manoel Carlos Gonçalves. Ele mesmo, o famoso

autor dessas novelas que a Globo apresenta. O Manoel Carlos também era interno. Vinha de

São Paulo e era muito fanfarrão. Era muito engraçado, brincalhão, uma pessoa excepcional.

Sabe qual era o apelido dele? “Marmelada”. Um dia encontrei com o Manoel Carlos lá no

Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Gritei: “Ô Marmelada!” Ele me viu e veio me abraçar.

Conversamos bastante. Na época ele trabalhava na TV Tupi. Justificou-se: “Desculpe, mas

eu tenho que ir. Estou atrasado, tinha que estar na televisão há mais de meia hora...”. O meu

amigo “Marmelada” deu nesse escritor tão talentoso...”.

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Nascia o dentistaDe Bragança o Dr. Sebastião foi para São Paulo estudar no Ateneu Rui Barbosa, na Penha.

Ficou pouco por lá, pois a família voltou para Atibaia e ele veio para o Colégio Atibaiense, que

estava no começo. “Esse colégio foi fundado por César Memolo, pessoa brilhante, um visionário

que nunca recebeu o devido reconhecimento da cidade. Eu o chamava de Chateaubrianzinho

de Atibaia. Ele tinha arrojo, aquela vontade criar e de fazer que o Chateau tinha”, conta.

Concluído o ginásio voltou para São Paulo para cursar faculdade. “Meu pai queria que eu

fosse advogado, mas achei que não daria certo. Conheci um cirurgião dentista chamado

Olavo Toledo Leme, que tinha vindo para Atibaia com uma estrutura bem profissional, com

equipamentos de ponta para a época e me apaixonei pela profissão. Cheguei a trabalhar com

ele. Ele tinha uma postura diferenciada, bem trajado, tudo limpo e aquilo me entusiasmou. A

partir dali peguei a idéia e fui”. Trabalhando e estudando, o Dr. Theodoro fez o curso noturno

de Odontologia da USP. “Eu já saí de Atibaia comprometido com a Dalva, minha esposa.

Nos finais de semana vinha para cá e tinha que encarar um ônibus que demorava quase três

horas e meia para chegar. A estrada era uma porcaria. Imagine que quando voltava para São

Paulo ia de terno, gravata, camisa branquinha, mas tinha que colocar um guarda-pó, que

conservo até hoje. O guarda-pó cobria a roupa para não ser “invadida” pelo pó da estrada.

Eu chegava em São Paulo e ia direto para o trabalho. Fiquei cinco ou seis anos nesse vai e

vem. Aprendi muita coisa e foi um sofrimento gostoso. Aliás, todo sofrimento dói na hora,

depois deixa saudade”.

Ainda uma vez AtibaiaFormado veio para Atibaia já com todo o moderno equipamento que iria utilizar. Montou

seu primeiro consultório que ficava bem em frente ao cine Atibaia, vizinho ao prédio dos

Correios. “A cidade tinha uns 30 mil habitantes e havia uma meia dúzia de dentistas. O

trabalho desses profissionais evoluiu muito e as pessoas, que antes tinham pânico de ir aos

dentistas, já começavam a encarar com a maior naturalidade. Os profissionais de hoje estão

muito bem preparados, têm a sensibilidade aguçada, leveza nas mãos para amenizar a dor

alheia na hora do tratamento”, conta, lembrando que naquela época tinha como colegas

Rubens Alvim Neto, Anésia Büller Rossi, e tantos outros. “Só o Dr. Rubens tinha aparelho

de raio x por aqui. Custava uma fortuna um aparelho desses, tanto ou mais que um carro.

Comprei um e comecei a minha vida profissional. Felizmente fui bem sucedido”, alegra-se.

“Sempre procurei me atualizar freqüentando os cursos da APCD, entidade que reúne os ci-

rurgiões dentistas, em São Paulo. Fiz um curso de implante dentário com o dr. David Serson,

pioneiro nesse trabalho. Percebi, no entanto, que a cidade não era, pelo menos à época,

um campo adequado para implantes. Os implantes eram completamente diferentes dos de

hoje. Nós fazíamos implantes agulhados e laminados, um tratamento muito mais difícil e

traumático, técnica já superada. Os implantes totais, então, eram uma loucura. Evoluí no

processo, mas acabei desistindo. Hoje o meu filho Dr. José Teodoro realiza implantes muito

mais à vontade. Quando ele me disse que queria trabalhar com implantes telefonei imedia-

tamente para o dr. David Serson e o encaminhei. E ele se transformou nesse profissional que

está aí”, orgulha-se.

Uma casa portuguesaO filho Afonso Celso está em Portugal há 12 anos. “Excelente, pois temos uma casa e car-

ro à disposição para passear por lá”, brinca, orgulhoso pela performance de todos os filhos

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que marcaram a sua vida. “Tristezas? Muito poucas, graças a Deus. Coisas naturais, a gente

enfrenta e vence”, diz. “Atibaia é a minha terra por adoção. Minha vida está aqui. Claro que

o paraíso poderia ser melhor, mas se melhorar vira festa”, ironiza. O Dr. Sebastião Theodoro

já foi político, vereador em duas oportunidades, presidente da Câmara, sócio fundador do

Lions Clube de Atibaia, “fizemos uma memorável convenção em 1964”, relembra. Pertencia

à Arena em plena revolução. “Na época havia harmonia entre Executivo e Legislativo. Claro

que houve muita injustiça política naquele tempo, muitos pagaram pelo que não tinham

feito. Felizmente tudo passou, as posições políticas foram superadas, apesar de terem sido

terríveis para quem sofreu”, reconhece. Para não dizer que anda “suja”, afirma que a política

de hoje “anda muito difícil...”. “Generalizando, sem individualizar, no meu tempo isso daria

vergonha. Nunca precisei de ninguém para me “patrocinar” na política. Quando começaram

a surgir as tais “retaguardas” financeiras, o financiamento de campanhas, com os candida-

tos tornando-se reféns dos “patrocinadores”, achei melhor sair. Alguns políticos são reféns,

acabam convivendo e se dão bem com essa situação. Eu não posso aceitar isso. Não é do meu

perfil”, conclui. Atualmente o Dr. Sebastião trabalha na área de radiologia odontológica, mais

precisamente na Pan Radiologia, em companhia de seu filho o Dr. João Theodoro Pinto, es-

pecialista na matéria, prestando serviços de radiologia odontológica para colegas cirurgiões

dentistas de Atibaia e região.

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Teve um tempo em que a expressão: “Fulano tem um parafuso de menos...”. se traduzia

como uma das maiores ofensas. E não era para menos. Sujeito com um parafuso de

menos era considerado doido varrido, um maluco. Doido ou não, maluco ou não,

o fato é que o parafuso é coisa que está presente em tudo quanto se possa imaginar

na vida moderna. “É o parafuso que segura o mundo”, revela sorridente o empresário Carlos

Cusatis, mais conhecido na cidade como o “Carlinhos Parafuso”. Carlinhos sabe do que está fa-

lando, afinal já vem trabalhando no ramo de parafusos há três décadas. E se alguém parar para

pensar vai chegar à conclusão que, parafraseando o poeta, existem mais parafusos no mundo

do que pode imaginar a nossa vã filosofia. Um automóvel, por exemplo, por mais popular que

seja, consome no mínimo uns 2 mil parafusos. Se você tem dúvidas ou não acredita, desmonte

o seu carro e conte. É de dois mil parafusos para mais. Imagine então quantos parafusos tem

em um avião. Ou em um navio, um prédio, uma casa, uma geladeira e até o seu computador.

Daqui a pouco se chega à conclusão de que o mundo se sustenta em parafusos. No meio de

tantos parafusos, o Carlinhos Parafuso, um atibaiano de quatro costados e mil parafusos.

Um pioneiroA ligação de Carlinhos com Atibaia já é bem antiga. Mesmo antes de vir para ficar e implantar

a primeira fábrica de parafusos da cidade e da região, lá no Ribeirão dos Porcos, praticamente

inaugurando o chamado “pólo industrial da cidade”, Parafuso já tinha casa por aqui e gozava do

clima, do ar, e das belezas da terra. E foi exatamente por já conhecer bem a cidade que ele e um

sócio decidiram vir para cá. “Nossa primeira fábrica ficava na Via Anchieta e foi criada no ano de

1983. O ruim da coisa é que aquilo era um inferno; problemas de trânsito, de mão de obra, uma

loucura. Cansamos e resolvemos mudar. A primeira alternativa era irmos para Juquitiba, lá na

BR-116. Não deu certo e viemos para cá”, lembra. A empresa cresceu, chegou a ter 80 funcionários,

Apertos e desapertos de um industrial chamado

Carlinhos Parafuso

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e construiu novos prédios. “Ficamos lá no Ribeirão dos Porcos durante uns sete ou oito anos.

Desfiz a sociedade e montei esta nova fábrica aqui no bairro do Estoril”, conta.

Preparado para o sucessoNem sempre o parafuso foi tudo na vida de Carlos Cusatis. Garoto de família bem posta na

vida teve oportunidade de freqüentar as melhores escolas, os melhores colégios até chegar à

faculdade de Administração onde se formou. Confessa que nunca foi desses jovens confor-

mados com a mesada caseira, “Eu sempre quis mais. Lembro que quando tinha nove ou dez

anos fazia papagaio e balão para vender para a garotada lá na feira. Minha mãe ficava com

vergonha, mas eu sempre inventava moda para conseguir um dinheirinho a mais, queria ter

o meu dinheiro”, relembra. Jovem, trabalhou quatro anos em um banco enquanto continu-

ava seus estudos. Juntou dinheiro e montou uma pequena firma de plásticos junto com dois

amigos. Produziam um tipo de brinquedo inglês, muito procurado na época e ganharam um

bom dinheiro. “Fizemos sucesso com o produto, chegamos a participar da UD, do Salão da

Criança, tudo isso. No fim, coisa de jovem, torramos tudo...”, brinca. Depois de um tempo

trabalhando com contabilidade, enquanto cursava já o terceiro ano da faculdade, ingressou

no ramo da metalurgia. “Eu gerenciava tudo, desenvolvia produtos, buscava clientes, foi muito

bom. Na empresa Imparmet, uma fábrica de parafusos tirei diploma em matéria de parafusos”,

brinca.

Os parafusos do CarlinhosO salto seguinte na vida de Carlinhos foi montar a sua primeira empresa de parafusos na Via

Anchieta. E depois vir para Atibaia. Carlinhos, que já chegou a produzir mais de três milhões

de parafusos por dia, hoje fabrica a metade. Parafusos de tudo quanto é tipo, tudo quanto é

tamanho, de tudo quanto é material. Como ele diz, o mundo é feito de parafusos. Para que se

tenha uma idéia existem por volta de 600 fábricas de parafusos no Brasil. “A concorrência é

enorme, mas o mercado é bom”, explica. A única queixa é instabilidade econômica no país. “Eu

já passei por tudo quanto é plano de governo, tudo quanto é mexida econômica, tudo quanto é

aperto que um empresário passa neste país. Tomei a decisão de montar a minha empresa atual

como uma forma de aposentadoria. Não quero crescer mais, quero apenas ir levando a vida.

Não compensa tanto sacrifício”, pondera. Seus 17 funcionários da fábrica são praticamente os

mesmos que trabalhavam na fábrica da Via Anchieta. “Eu conheço todos muito bem e eles

me conhecem. Convivemos num clima de confiança, tem sido bom para mim e eu faço tudo

para que seja bom para eles também”, explica.

Um mundo de desafios Pai de quatro filhos, Carlinhos pondera que “o desafio é bom para as pessoas, é o que leva a

gente pra frente. No entanto, não dá para agüentar esses desafios todos que o governo exige da

gente. O pior é que quando se pensa que vai dar uma melhorada, que as coisas vão se acertar

aparecem as crises. Adoro trabalhar, adoro desafios, mas confesso que estou cansado, pois a

gente já tem mais desafios do que trabalho”, reclama. Extremamente crítico, já teve participa-

ção mais ativa na chamada vida econômica da cidade. Foi quando decidiu participar da ACIA,

chegando à vice-presidência da entidade durante a administração de Oswaldo Fujiki. Nunca se

sentiu tão decepcionado. “Parei. Parei porque não via e nem sentia que os associados quises-

sem realmente fazer alguma coisa séria, de prático, de útil pela entidade, ou por eles mesmos.

Alguma coisa que revertesse em benefícios para a cidade ou sua economia. Me sentia como

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síndico de um condomínio: todo mundo quer tudo mas ninguém quer fazer nada. Porque

pagavam 80 reais por mês todos se julgavam no direito de ter tudo. Eu cuidava da parte das

indústrias e quero deixar claro que a ACIA tem e desenvolve um trabalho muito sério, faz uma

porção de coisas que os sócios nem sabem. As pessoas, além de não participarem, exigem

demais. Só que, para oferecer mais, a entidade precisa de apoio dos sócios, precisa melhorar

a sua condição financeira. A colaboração sempre foi pouca em todos os sentidos. Estávamos

pregando no deserto. Era muito desgastante para todos os que se dedicaram exaustivamente

e tentaram fazer um trabalho mais profundo. Eu desisti. Deixei até de ser sócio”, lastima-se.

Mas tudo isso são as voltas que um parafuso dá na vida. No meio do caminho Carlinhos se

sente realizado e gratificado por conhecer muito bem os eventuais apertos que um parafuso

pode dar.

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“Pamonha, pamonha, pamonha; pamonha de Piracicaba...”. A voz é sempre a

mesma, o anúncio sempre igual, seja aqui seja lá na Capital. “Corra, corra,

dona Maria, traga a cesta ou a bacia”. Pamonhas, sorvetes, batatas, tomates,

sardinhas, camarões, pescados, todo mundo quer vender o seu peixe. Mas já

não se fazem mais “mascates” como antigamente, do tipo do seo Elias Georges Zoghaib, por

exemplo. Esse sim era mascate dos bons. Andava por essas terras todas de Atibaia carregando

pesadas malas, levando cortes de tecidos, agulhas, linhas, alfinetes, enfim, a parafernália toda

que as mulheres daquele tempo usavam para costurar suas saias, seus vestidos e seus ro-co-cós.

Os grandes mascates como seo Elias marcaram época. Eram indispensáveis naquele tempo

quando a moda era exclusiva, vendida porta-a-porta. Nada desses vestidinhos, blusinhas, calças

jeans já prontas à disposição de moças, moçoilas e senhoras nas boas lojas do ramo. Seo Elias

enfrentou barro, poeira e mato nos bairros mais longínquos da cidade para levar alegria e atra-

ções da moda. Malas nas mãos, nenhum conforto, nem comida, nem água, nem alto-falantes

para anunciar suas novidades. Foi desse jeito que seo Elias ganhou a vida e muitas histórias

para contar de uma Atibaia que o tempo levou e só uns poucos ainda guardam na memória.

Seo Elias hoje mascateia as histórias que conta para quem quiser ouvir.

Mostrando as mãos calejadas Libanês de nascimento morava em Nimes, pequena cidade do seu país, bem distante de

Beirute, a capital. “Lá não dava mais”, conta com aquele característico e gostoso sotaque árabe.

“Era quase impossível melhorar de vida. O nosso governo abriu as portas para quem quisesse

sair e eu vim para o Brasil”. Não foi tão fácil. Antes de tudo, seo Elias teve que provar que tra-

balhava no campo. “Só podia vir quem fosse lavrador ou carpinteiro. O pior é que eu precisava

de uma carta convite de alguém que já vivesse no Brasil”, lembra ele. “Mostrei minhas mãos

A cidade tem saudade do Elias Zoghaib,

um dos seus maiores mascates

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calejadas pela enxada e fui aprovado. Graças a Deus tinha um tio que morava aqui, em Atibaia,

Abrão Zigaib, pai do ex-prefeito Omar Zigaib. Ele mandou até passagem...”. Seo Elias veio

direto para Atibaia. “Gostei tanto que nunca mais sai”, sorri. Tinha 23 anos quando chegou,

no dia 20 de maio de 1952. Apesar de tudo o Libano do seu tempo era muito gostoso. “A gente

vivia no campo plantando trigo, cevada, azeitonas, figo, uvas, tudo para consumo da família.

Vendíamos o que sobrava. Eu tinha 5 irmãos, três homens e duas mulheres. As azeitonas

do Líbano são as melhores do mundo. E as azeitonas morenas têm mais sabor e oferecem o

melhor azeite”, orgulha-se. “Meu sonho, na época, era visitar Jerusalém. Não fui por causa

da guerra entre judeus e palestinos. O pessoal dizia: “não vá; se você escapar do exército da

Síria não vai escapar do exército dos judeus. “Jerusalém ficou no sonho”.

Desbota ou não desbota?Já em Atibaia seo Elias ficou quatro meses hospedado na casa de seu tio Abrão. Queria

ajudar na loja do tio, que ficava bem ali no Largo da Matriz, “mas eu não servia para nada,

não falava uma palavra em português”. Tempos depois mudou-se para a casa de outro liba-

nês, Abrão Palmeira, na rua José Alvim, onde hoje está o Grêmio Recreativo Atibaiense. E

começou a mascatear. Saía carregando suas malas cheias de mercadorias. “Eu era jovem e

voluntarioso e não sentia peso ou cansaço”. Corria pelos caminhos da Usina, Caetetuba, Boa

Vista. Quando sobrou um dinheirinho conseguiu comprar uma charrete e um cavalo. “Paguei

dois contos”. Valeu a pena, pois já podia ir um pouco mais longe levando sua vida de mascate.

Não falava nadinha de Português. “Eu me limitava a abrir as malas e mostrar as mercado-

rias. A comunicação era por gestos. Uma vez fui vender para uma senhora japonesa e ela se

encantou com um corte de tecido que eu levava. Ela mal falava português, e eu não falava

nada. Ela pegou o tecido e perguntou: “Será que desbota?” Eu nem sabia o que era desbotar.

Pensei rápido e achei que desbotar era bom. Respondi: “Desbota sim...”. Ela ainda repetiu

duas ou três vezes a pergunta: “Desbota?” E eu garantia: “Desbota”. Nenhum dos dois sabia

o que estava falando. O fato é que ela comprou e eu fui embora feliz. Um dia voltei e fiquei

sabendo que ela tinha lavado e o tecido não desbotou. A partir daí ela ficou minha freguesa”.

Muitos libaneses fizeram grandes fortunas e criaram grandes empresas mascateando. “Eles

sabiam fazer bons negócios. As pessoas diziam para mim: não fique só vendendo a dinheiro;

a maior parte das pessoas não tem dinheiro. Faça trocas. Troque por galinhas, por bichos ou

por alguma coisa de valor. Depois você revende mais caro... Eu não tinha onde guardar e nem

como vender galinhas. Só sabia vender tecidos...”. Seo Elias ri com as próprias histórias.

Fugindo dos turcos“As pessoas chamavam a gente de “turco”, e eu muito ficava bravo. Detestava os turcos.

Não gosto deles, de jeito nenhum. Judiaram muito de nossos avós. Os soldados turcos eram

bárbaros. Naquela época os turcos dominavam o meu país e eles é que assinavam a papelada

de quem ia sair de lá. Todos os imigrantes saiam de lá como turcos. Seus documentos diziam

que eles eram turcos. É por isso que todo mundo chamava os sírios e libaneses de turcos. Eu

não gosto dos turcos e pronto”. Mascateando pela vida afora, um dia conheceu Naili. Naili

era filha do também libanês Yunes Demétrio Sabbag e de dona Anice Cury Sabbag, “Eles

sempre visitavam a casa do sr. Abrão Palmeira, onde eu morava, acabei me apaixonando pela

Naili. Ela falava árabe desde criança e só falou português quando entrou na escola”. Antes

de casar, mas já com o apoio do futuro sogro, seo Elias abriu uma loja na rua José Lucas, 150.

“Vendia roupas, armarinhos, tudo. A Naili tinha muita prática de trabalhar em lojas, pois já

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70 delas filhas de japoneses. A gente dava aulas de catecismo, e mesmo sendo budistas os

japoneses queriam batizar os filhos para se integrar ainda mais à nova comunidade. Nós nos

dávamos muito bem com os japoneses e eles gostavam muito da gente”.

A culpa do “via...” do Armando Marques“Fora o serviço de casa, hoje não faço mais nada”, confessa. Ministro da Irmandade

Santíssima está sempre na igreja e procura ajudar no que pode. “Não sou ganancioso, não

preciso de nada. “Minha alegria é saber que todo mundo gosta de mim, pois nunca preju-

diquei ninguém”. E foi então que seo Elias começou a falar de sua outra grande paixão: “O

Corinthians. Ele entrou na minha vida porque Naili era corinthiana. Eu fiquei mais apaixona-

do do que ela pelo Timão. Fui ver o Corinthians com Rivelino, Flávio, o Ditão... Era um jogo

contra o Santos. Jogamos bem melhor, mas perdemos. Culpa do Pelé. Ele entrou na nossa

área trombou contra nosso zagueiro e aquele ”via...” do Armando Marques, que era o árbitro

da partida marcou pênalti contra nós. O Rivelino tinha sido derrubado no mesmo lugar, do

mesmo jeito que o Pelé e o “via...” do Armando Marques não marcou nada. O Flávio marcou

um gol, mas o “via...” do Armando Marques anulou. Era para ser três a dois para nós, só que o

“via...” do Armando Marques não deixou. Eu prometi: não vou mais ver esses árbitros “via....”

roubarem o Corinthians”. Que ladrões, hein, seo Elias, que ladrões...

ajudava os pais na Loja Nova, que era muito famosa na época. Pedimos licença para eles e nos

casamos. Ficamos vinte anos na loja. Com o tempo conseguimos um empréstimo na Caixa

Econômica e compramos uma casa velha na Rua Benedito de Almeida Bueno, demolimos e

fizemos uma loja com um salão na frente e uma casa nos fundos. Então a Naili disse: “Eu fico

na loja e você vai vender no sítio”. Bem, mas aí eu já tinha comprado um fusquinha e podia

ir vender mais longe. No começo ela vendia mais que eu; depois, eu passei a vender mais...”,

Elias abre um sorriso todo orgulhoso.

Ganhando da concorrênciaSeu método era infalível: “Eu ganhava na quantidade; vendia mais barato para vender mais,

entende? Todo mundo comprava de mim. Fazia fiado de uma semana, quinze dias. Fiquei

dez anos nessa vida, mascateei até 1982 e me aposentei. Hoje não dá mais para mascatear,

tem muita concorrência do comércio. Naquele tempo Atibaia tinha só umas quatro ou cinco

lojas”. Sem esconder a emoção seo Elias lembra com carinho da esposa Naili. “Ela gostava de

fazer amizades. Adorava ouvir histórias de pessoas mais antigas. Pesquisava muito, colhia

relatos sobre a cidade e um dia colocou tudo o que havia visto e ouvido num belo livro que

se chamou: “Um pouco de ti, Atibaia Querida”. Só que ali não tem nem a metade do que ela

escreveu”. Comovido, seo Elias conta que Naili tinha o que chamam de dom da premonição.

“Há trinta anos ela me dizia: “um dia os homens vão falar pelo telefone e um vai ver o outro”.

Não é o que está acontecendo com a internet?” Até hoje seo Elias guarda com carinho o piano

de Naili. “Era uma grande pianista. Dava aulas, se apresentava no Recreativo, no Clube São

João. Estudou e se formou em piano em Jundiaí”. Naili morreu em 1995. “Vivemos 39 anos

juntos, a melhor vida que eu poderia ter. Não tivemos filhos, mas batizamos 122 crianças,

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“Encha o peito de alegria, meu povo atibaiense. O rufar dos tambores anuncia

a chegada de um dos maiores orgulhos da cidade: a Fanfarra Municipal de

Atibaia, bicampeã do mundo, sim senhor!” E neste ponto solicitamos ao

ilustre e eufórico leitor que abra ao máximo a sua imaginação para ouvir

o som colorido, afinado, floreado, milimetricamente articulado da banda. Só assim poderá

sentir a plenitude deste momento quando a incrível e tão invejada FAMA passa pelas pági-

nas deste livro, contando sua história e suas glórias, conduzida pelo sensível e emocionado

maestro Rogério Wanderley Brito, que há quinze anos participa do projeto. Antes, louvando

quem bem merece, diga-se e relembre-se que a gloriosa fanfarra de Atibaia nasceu em 1990

por inspiração do então prefeito Cido Franco (José Aparecido Ferreira Franco). Coube ao

professor Sidnei Cotrim Malmegrim, à época secretário de Esportes e Turismo da cidade, à

lutadora Eliana Zimbres e ao grande maestro Reginaldo Angelo Ferreira organizarem a fan-

farra. A Prefeitura liberou a verba para compra dos instrumentos, Eliana e Reginaldo foram às

escolas para divulgar a fanfarra e convidar os alunos para se integrarem ao projeto. No começo

a fanfarra ocupou as instalações da antiga fábrica têxtil. Cido Franco era tão apaixonado pela

fanfarra que nunca deixou de apoiá-la, inclusive através de sua empresa, a Viação Atibaia, que

transportava a banda em suas excursões. A fanfarra ainda passou pelo “salão do Sinhozinho”,

pelo Balneário e pelo salão onde hoje está a Secretaria da Educação.

Do orgulhoFamosa e cheia de graça a Fanfarra Municipal de Atibaia é talvez a árvore mais frondosa que

já nasceu por aqui. “Pelo menos uns 40 garotos que surgiram na fanfarra já estão vivendo de

música”, revela o orgulhoso maestro Rogério Brito. “E tudo começou em um toque no bumbo”,

sorri. Rogério conta que o maestro de Nazaré Paulista nasceu na fanfarra. “E o maestro de

O maestro que adora o que faz e a fanfarra bicampeã do mundo

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Piracaia também, da mesma forma que os maestros de Mairiporã e Barueri. Temos músicos

no famoso Conjunto Barcarelli, na Banda Sinfônica do Estado, na Orquestra Sinfônica Jovem.

Fora a moçada que toca nos hotéis, nos casamentos, nos conjuntos de baile. Tem muito garoto

sustentando a casa e a família com sua arte”, proclama o maestro. Seu orgulho, com certeza

vem dos desafios que enfrentou pela vida. “Sempre fui um cara sonhador, que ama aquilo que

faz e sempre acreditou ser possível desenvolver um projeto como esse pela cidade. A cultura

é o caminho para se atingir a sensibilidade humana”. Rogério veio para Atibaia em 1995. “Vim

para substituir um amigo que estava com problemas de saúde e acabei ficando. Já me sinto

cidadão atibaiense”, revela. “A música, o teatro, as artes plásticas são os meus sonhos. Me

perco e me encontro neles”.

Do começoNascido no bairro de Santana, em São Paulo, Rogério já viveu 46 anos de muitas aven-

turas. “Já enfrentei e encarei de tudo; meu amor pela arte me deu forças”. Formado em

Educação Artística, bacharelado em Música, fez Composição e Regência e pós-graduação

em Psicopedagogia. Estudou na Faculdade Mozarteum, na Unesp e na UNG, Universidade

de Guarulhos. “Quando garoto acordava cedinho e ia para o Corpo Musical da Polícia Militar,

ali perto da Estação da Luz. “O coronel Antônio Domingos Sacco, que naquela época ainda

era sargento foi quem me deu as primeiras aulas. Eu tocava trompete. Rapaz, era uma du-

reza, só consegui comprar meu primeiro instrumento aos 30 anos”. A dureza a que Rogério

se refere era o fato de que seus pais não concordavam com seu estilo de vida. Queriam que o

filho levasse “uma vida normal”. “Eu era e continuo sendo um artista. Sou um sonhador que

quer ver as pessoas sonhando também, crescendo como seres humanos”. Ainda que adorasse

a música, Rogério começou a se realizar no teatro. “Meu pai “queria morrer”. Acho que ele

pensava: “agora meu filho vai ficar afeminado” e coisas assim. Preconceitos. Ele só assistiu

a um dos espetáculos onde eu trabalhei”. Rogério pouco apareceu em cena. “Eu era gago. Já

pensou num ator gago? Bem que eu tentei. Um dia, durante um espetáculo eu tinha que

dizer uma única frase. Não consegui. Fui um fracasso. Aí me especializei em montagem, na

direção musical dos espetáculos. E me dei muito bem. Com 18/19 anos ganhei dois prêmios

internacionais, no Canadá e na Venezuela. Trabalhei com o Antunes Filho, grande diretor

teatral. Participei da última montagem da peça Macunaima. Rodamos a Europa inteira, du-

rante dois anos com o espetáculo. Quando voltei, me casei com a Vanilda, Vanilda Viganô

Brito. Eu tinha 22/23 anos. Além de ser professora de curso secundário a Vanilda é quem me

suporta e me controla. Ainda bem. Até para comprar um mísero CD tenho que pedir dinheiro

para ela. Artista tem mesmo que ser governado financeiramente. Eles não tem e nem quer

ter noções de dinheiro...”, brinca.

Do desempregoSeu momento decisivo na vida foi quando sua mulher ficou grávida do primeiro filho, Roger

Sidartha Viganô Brito, hoje com 23 anos, músico premiado, que vive, trabalha e faz cursos de

música na Holanda. “Aí eu tive que me virar mesmo. Comecei a dar aulas de Educação Artística

e a música acabou ficando muito mais em mim. Dei aulas inclusive no Colégio Consolata,

onde havia estudado. Fiquei 12 anos lá, cheguei a ser coordenador de curso. Mas eu queria

mais. Eu era compositor, arranjador, regente, tinha que viver de música. Pedi a conta e acabei

ficando um ano desempregado. Dava aulas de graça. Aí vim para Atibaia para trabalhar na

fanfarra. Escrevia os arranjos para o Reginaldo, que era o maestro da fanfarra. No começo

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vinha duas vezes por semana e ia embora. Eu tinha o maior carinho pelo Reginaldo. O Felipe

Ibraim Ferreira, filho dele, hoje trabalha comigo, não é do meu feitio trabalhar sozinho. Ele

vai muito bem e a maior parte do trabalho no projeto é feita por ele. Todo o pessoal da FAMA

é ótimo, solidário”, revela. Fora o Roger, Rogério tem a Thayná Jemina Viganô Brito, sua filha

de 13 anos.

Do bumbo à Sinfônica“Apesar de não ser original, o projeto que implantamos aqui é amplo”, explica Rogério. “Tudo

começa nas 14 escolas de ensino fundamental do município. Cada escola tem a sua fanfarrinha

com aproximadamente 100 participantes; 60 tocam, 40 vão para a linha de frente. Somando

tudo, são 1500 crianças, com idade média entre 7 e 10 anos participando. Elas começam

tocando bumbo ou os instrumentos mais simples. Quando o garoto se destaca ou vai para

uma escola estadual passa para a Faminha, um estágio maior. “Com o auxílio das APMs,

Associações de Pais e Mestres, já conseguimos implantar o projeto em algumas escolas esta-

duais”, conta. E o ciclo do projeto prossegue. Tem a Faminha A e a Faminha B. A A, que conta

com 95 componentes, é para iniciantes. Neste estágio o garoto já começa a aprender música.

Depois vai para a Faminha A, que tem 140 componentes, e conta com o pessoal da linha de

frente, que não quer tocar, apenas participar da coreografia. Na Faminha A o garoto tem au-

las específicas de música com instrumentos, trompete, trombone etc. A etapa seguinte é a

escolinha da Fama, que é uma banda marcial. Lá o garoto recebe orientações de professores

específicos e aí já deixa de ser uma questão de idade do aluno e passa a ser uma questão de

talento. “Têm alunos que aparecem na Faminha B e vão direto para a Fama. Tenho que falar

de um garoto de 12 anos, muito talentoso, pobrezinho de tudo. Garanto que ele vai ser um

grande músico. Falo também de outro menino do projeto; ele já sustenta a própria família”,

emociona-se Rogério. “Sem falar de mais outro, que tocava tuba na fanfarra e já está na aca-

demia da OSESP, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Ganha uns 3 mil reais, mora

em apartamento pago pela OSESP. Para não falar do meu filho Roger, que começou aqui e

está trabalhando e estudando em Amsterdã. Ele toca na orquestra da USP”.

Das escolhasQuando um garoto chega na FAMA escolhe se vai tocar música popular ou o clássico erudito.

Além da Big Band, administrada pelo Roberto Sion, um dos maiores saxofonistas do Brasil

e o Daniel Néri, maestro da banda Primeiro Movimento, uma banda particular da cidade.

“Geralmente o instrutor da primeira fanfarrinha é um garoto que toca na Fama. Ele já tem

uma caminhada, estuda harmonia, já ganha para dar aula, já tem como continuar seus es-

tudos. Tem um garoto que estuda pedagogia e música. Todos eles voltam para dar aulas

para a criançada, esse é o compromisso que assumem. Por isso é que chamamos de “Projeto

para a Cidadania”. Alguns deles já são arrimos de família. Tocam aqui, tocam na Sinfônica

de Bragança ou em São Paulo. Começaram na fanfarra e já estão vivendo de música”, conta,

lembrando que ainda tem a Banda de Percussão. “Quando o garoto passa para a Big Band

ganha uma bolsa da prefeitura”.

Do campeonato “Deixe eu explicar uma coisa: a Fama ganhou medalha de ouro e é bicampeã mundial sim, pois

quem ganha a medalha de ouro é campeã, conforme garante a regra da disputa. Não importa

se a medalha foi ganha por dois, três ou quatro concorrentes, todos os conjuntos que atingem

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o índice técnico são campeões. O computo geral dos pontos apenas aponta o campeão da

competição. Só que, repito: pela regra quem ganha a medalha de ouro é campeão mundial.

E Atibaia foi campeã sim senhor. Em 95 nós levamos a medalha de ouro e fomos campeões

no computo geral da competição. Nosso objetivo neste ano era ganhar na nossa categoria e

nós ganhamos. Medalha de ouro, campeões do mundo. Ou, bicampeões. O resto é lenda”,

desabafa. Rogério garante que independentemente das mudanças políticas, a fanfarra sempre

teve apoio incondicional do poder público. Inclusive da iniciativa privada. “Cito, por exemplo,

o sr. Vagner Borin, do Centro Empresarial, que sempre esteve conosco”, diz. “A FAMA é o xodó

da cidade. Garanto que nunca teve ingerência política de qualquer espécie, pois o projeto

é apolítico. É por isso que as coisas acontecem”, finaliza todo orgulhoso. A grande verdade,

a grande certeza é que, mais que bicampeã do mundo, a Fanfarra Municipal de Atibaia é o

maior orgulho da cidade.

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Infelizmente nem todos se lembram das funçanatas populares musicais que Atibaia já

teve e tanto curtiu. Com certeza eram lindas e envolventes. Violão, cavaquinho, flau-

ta, pandeiro e reco-reco. Ora, dirá o leitor, que diabo de funçanata é essa? Funçanata,

saibam todos, é uma patuscada, uma pândega, um divertimento, conforme esclarece o

Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, confirmado pelo glorioso Sylvio Ramos

da Costa, membro importante das funçanatas que comiam soltas na cidade, ali pelos anos 70

do século passado. Ficaram famosos os encontros musicais da época. Os bons de ouvido hão

de se lembrar. Quem é do samba, do choro e da boa música popular conhece bem o Sylvio

Ramos da Costa, o carioca mais atibaiano ou atibaiense que se conhece, um dos fundadores

dos Chorões do Paraíso e do Pedra 90, conjunto musical aplaudidíssimo não só na cidade como

na região, no Estado e no País. E, no entanto, Sylvio era bancário. Durante muito tempo foi

gerente geral da agência do Banco do Brasil aqui em Atibaia. Claro que todos se lembram do

Sylvio, da mesma forma que se lembram dos componentes do Chorões do Paraíso, conjunto

que promovia grandes funçanatas que a cidade assistiu e que desaguou no Pedra 90.

Do Rio para cá“Como foi que vim parar aqui? Eu era economista formado, prestei concurso e entrei no

Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Morava na Ilha do Governador. Ali pelos anos 60, a situa-

ção política andava feia por lá. Tinha até desabastecimento. Sem entrar no mérito da coisa, a

verdade é que faltava leite, pão, faltava arroz, feijão, um desespero. Casado e com dez filhos,

achei que a melhor coisa seria pedir transferência para outra cidade”, revela Sylvio, hoje com

83 anos. Sylvio era casado com Myriam Monteiro da Costa e o casal teve doze filhos. “Que

loucura!”, deixa escapar o repórter... “É, loucura mesmo. Minha mulher era muito católica e

não admitia o uso de métodos anticoncepcionais. Naquela época isso era levado muito a sério.

Chorem chorões. Chorem todos aqueles

que têm saudade de um bom chôro

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Para piorar, a gente morava perto do aeroporto Tom Jobim ou Galeão, como queiram. Era

avião subindo e descendo a madrugada inteira. A gente acordava e... né? A cada ano, ano e

meio era um filho”. Sylvio, hoje viúvo, sorri emocionado quando conta. Doze filhos: Priscilla,

Paulo Sérgio, Cláudio, Jane, Marcos Élsie, Ricardo, Elder, Silvia Maria, Gil, Antônio Celso e

Mara. Vinte e três netos, dez bisnetos.

O regresso da boemiaNo sufoco do desabastecimento Sylvio e Myriam procuraram e encontraram Atibaia. “O ar

daqui era muito bom e fazia bem para ela. Ficamos”. O problema é que Sylvio, que veio para

ser sub-gerente da agência do BB na cidade, foi promovido a gerente e a vaga disponível era

na longínqua Tanabi, perto de São José do Rio Preto. “A família ficou aqui e eu lá. Só vinha

nos finais de semana”. Sambista e chorão nato começou a frequentar as rodas de samba e de

chôro da cidade. Não demorou muito o banco transferiu Sylvio para a agência de Capivari,

bem mais perto de Atibaia. Lá também ele se juntou aos boêmios. “Quando vinha para cá

encontrava um pessoal que se reunia no Bar do Carequinha, que ficava atrás da Matriz, ao

lado do antigo Cine Itá e no restaurante que tinha na feirinha. A gente tocava por tocar, nunca

houve um sentido profissional na coisa”. Surgia o Chorões do Paraíso. Participavam o João

da Mata, o Nadir do Bandolim, o Armandinho Petrucci, o Paulinho Duarte, o Valdir Pires,

Celso Duarte, o Mala e o Jóca. Garrafas na mesa, muita cerveja, tira-gosto, uma pinguinha,

pura e tome curtição. Violões, cavaquinho, surdo, pandeiro. O pessoal gostava. Muitas se-

nhoras e moças freqüentavam. “Minha mulher não ia, mas também não atrapalhava. Em 75

a turma mais assídua começou a fazer uma coisa mais elaborada, passando para o chorinho.

Foi quando surgiu o Chorões do Paraíso. Eu so entrei na roda de coro em 78”.

Chôro no fundo de quintalEm 1976 o Chorões já tinha fama e foi um dos únicos conjuntos do interior convidado a

participar de um grande festival de música em São Paulo. “Passamos a fazer os chamados

“fundo de quintal”; primeiro na casa do Armandinho, depois na casa do João da Mata, do

Valdir Pires. Ai já começávamos a cobrar algum para as despesas. As pessoas chamavam e a

gente ia tocar. Íamos onde convidavam. No máximo ganhando uns trocados. Visitamos umas

22 cidades no entorno de Atibaia. Bem no estilo do Jacob do Bandolim, o conjunto ficou até

1980. Então, uma parte começou a tocar na Estância e outra ficou no chôro. Armandinho

Petrucci, João da Mata Correia Lima, Valdir Pires, Nadir Souza e Silva, no bandolim, e entraram

meu filho Elder, que fazia o cavaquinho e o João Paulo, filho do João da Mata, completando

os Chorões do Paraíso. De 80 a 90 já fazíamos execuções mais elaboradas, ensaiávamos três

vezes por semana – terças, quintas e sábados, sempre em fundo de quintal. Entrou o Ari Gallo

no lugar do Armandinho. Era muito bom no violão”.

Já nasceu Pedra 90O Pedra 90 surgiu num restaurante famoso na época, o Flamboyant. No início, semi-

profissional. “Quem sempre puxava as coisas era o Ari do violão, se tirar o violão acaba o

conjunto. O Ari continuava nos chorões, mas ia no conjunto. Não foi fácil chegar ao nome.

Alguém sugeriu Pedra Grande, mas Pedra Grande não era um nome musical. Um dia viajei

para o Rio e minha mulher foi na casa de uma irmã que trabalhava com confecções. Vi um jogo

de camisetas onde estava escrito Pedra 90. Pensei: esse conjunto de camisetas daria certo com

calças e sapatos brancos. Comprei e quando mostrei todo mundo topou. E pegou. Quando

acabava o show o pessoal devolvia as camisetas e eu mandava lavar. Não era fácil conseguir

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camisetas iguais”. Sylvio ri. E explica: “Pedra 90, era uma gíria usada no Rio para definir o

malandro mais sossegado, mais tranqüilo. Pedra 90 servia como recomendação: “Olha, esse

cara é Pedra 90”. Significava status. Nota 10”. Sylvio vai mais longe para definir o Pedra 90:

“Ouvi dizer que essa gíria teve origem quando os espanhóis invadiram os países sulameri-

canos. Eles exploravam minas de prata e os nativos eram obrigados a trabalhar debaixo de

chicotes. Quando algum deles achava um torrão maior contendo prata mais apurada levava

para o comprador e dizia: “trago aqui uma Pedra de Prata 90”. O conjunto ganhou fama. “O

grande momento do Pedra 90 ocorreu há dois anos, quando foi convidado a se apresentar em

Marília em uma convenção da Unimed. Fomos aplaudidos delirantemente”, lembra Sylvio.

Mais recentemente o Pedra 90 foi convidado e participou da solenidade de comemoração

dos 70 anos da criação do Parque Nacional de Foz do Iguaçu, ao lado de Guilherme Arantes

e do Bar Batuque, o conjunto mais famoso de Curitiba.

Um samba refinadoAry Gallo Filho, Sylvio, Jóca, Bú e Mala, esse é o Pedra 90, 19 anos de música popular da

mais alta qualidade. “Nosso nome sempre aparece nas pesquisas, tocamos o samba de mais

qualidade melódica e harmônica, um samba mais refinado, mais bonito, mais cadenciado.

O conjunto nunca envelhece musicalmente ou artisticamente. Porém, em termos de idade

cronológica, as pessoas estão cada vez mais “refinadas”. De vez em quando a gente faz a soma

de idades e conclui que já temos mais de 350 anos na sombra... E olhem que o meu “peso” é

grande...”, orgulha-se Sylvio. Aposentado desde 1974, Sylvio morre de rir ao dizer que já viveu

mais como aposentado do que como trabalhador. Recorda-se com orgulho de ter sido um

dos fundadores do Previ, instituto de aposentadoria dos funcionários do BB e também de ter

levado uma vida totalmente integrada com a música. Faz questão de lembrar que o Pedra 90

não tem um líder: “Nós fazemos o que gostamos e é uma maravilha. Todos decidem tudo, o

que toca, o que não toca, o que faz, o que não faz”. Antes de dar o último toque no pandeiro

que gosta de tocar, Sylvio lembra: “Chorão” é aquele que curte mesmo o chôro. Quem se

apaixona pelo chôro, só gosta de chôro mesmo. O chôro é uma variação rítmica trazida da

Europa pela corte de D.João. Atibaia já teve “chorões” de carteirinha”, lembra.

Ouça bemSabe onde você pode ver e ouvir o Pedra 90? O conjunto se apresenta todos os sábados

nos dois grandes hotéis da cidade: nas feijoadas dos sábados do Bourbon (já faz cinco anos)

e nos happy hours de sábado do Village Eldorado (há 18 anos). E não cansam de tocar, per-

gunta o repórter? “Nada. A gente sai de um show, descansa um pouco e vai à luta de novo.

A vantagem é que por esses locais circulam pessoas de alto nível e a gente sempre recebe

convites para tocar em festas particulares, bodas de ouro, casamentos, convenções em São

Paulo, Campinas, tudo quanto é lugar”, esclarece Sylvio. Três horas de música e encantamento.

Para falar com o Pedra 90, disque 44126564. Quem atende é o sotaque carioquês que Sylvio

ainda não perdeu. Uns poucos privilegiados já ouviram um cd artesanal que o grupo gravou,

inclusive com a participação de Altemar Dutra Jr. Estão encantados. Guarde espaço em seu

coração, o Pedra 90 já ensaia canções para o seu próximo cd.

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Roga-se silêncio. Neste momento estamos em plena corte judicial. É uma audiên-

cia numa Vara da Justiça do Trabalho. As cenas são fortes e tão diferenciadas que

podem até sugerir um desses filmes intrigantes que se vê nas grandes séries da

televisão, como CSI, Law & Order, por exemplo. Silêncio, pois, insistimos. A sala

do Tribunal está completa. O magistrado, o pleiteante, o pleiteado, advogados do reclamante

e do reclamado e um juiz classista, visto tratar-se de uma demanda trabalhista. À época ain-

da havia a participação de representantes sindicais que funcionavam como juízes classistas.

O magistrado sabe que terá duas audiências naquela manhã de sexta-feira, uma seguida à

outra e os dois casos envolvem a mesma empresa. O juiz propõe um acordo entre as partes

(“Trata-se de uma imposição legal e eu, particularmente, entendo que a solução negociada é

sempre a melhor e mais justa, pois ambas as partes perdem e ambas as partes ganham...”, diz o

magistrado). Não houve acordo. Instruiu-se o processo. (“Esse é um dos lados bons da Justiça

do Trabalho, tudo se concentra numa só audiência...”, explica o juiz). Sem acordo, a audiência

segue. “Que se manifestem as partes...”, diz o magistrado, que passa a interrogar o reclamante

para, a seguir, interrogar a outra parte.

Aos fatosNo caso presente o empregado pleiteante alega que era registrado na empresa e ganhava o

piso salarial da sua categoria, devidamente ajustado pelo seu sindicato. No entanto reclamava

que recebia menos do que constava nos recibos que assinou. Normalmente ocorre o contrário,

sendo comum o trabalhador receber uma parte no recibo e outra complementar “por fora”,

uma forma que permite à empresa recolher menos tributos. De qualquer forma, na presente

demanda, o empregado estava registrado na empresa com o piso da categoria, que era de 220

reais mensais, mas só recebia 150 reais. Essa era a alegação. E tudo comprovado e contabilizado

A boa Justiçase faz nos

mínimos detalhes

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pela empresa que recolhia à Previdência Social, ao Imposto de Renda, Fundo de Garantia

com base nos 220 reais mensais. Só que o trabalhador alegava que recebia apenas 150 reais

mensais. O magistrado começou a ouvir a testemunha do empregado e logo notou que essa

testemunha era a reclamante da audiência seguinte, que envolvia a mesma empresa, em

casos absolutamente iguais. O magistrado sabia que estava diante daquilo que, em Direito

se chama de “testemunha interessada”. Se o advogado da parte contrária quisesse poderia

impugnar essa testemunha e o magistrado teria que acatar. O advogado não impugnou. O

magistrado pensou: “Se o advogado não impugnou, não vou fazer isso de ofício...”. E a teste-

munha confirmou: “...a gente assinava recibo no valor de 220 reais mas só recebia 150...”. O

magistrado passou então a ouvir a testemunha da empresa. Que fazia questão de garantir

que a empresa é correta: “Sou eu quem faz os pagamentos, os recolhimentos de impostos

e taxas. Os empregados assinam os recibos e garanto que a empresa paga o piso salarial...”.

O magistrado insiste e pergunta: “E quando foi o último pagamento dos funcionários?”. A

testemunha responde: “Foi ontem...”. O magistrado assentiu com a cabeça e disse: “Ótimo.

Diante disso, solicito ao sr. Juiz Classista que não deixe ninguém sair desta sala e que ninguém

aqui presente se comunique com quem quer que esteja fora daqui, através do telefone. “Por

favor que ninguém use o celular...”. Dito isso o magistrado pediu aos advogados de ambas

as partes que o acompanhassem e se dirigiu, em seu próprio carro, a um dos depósitos da

referida empresa.

“In loco”Chegando à empresa o magistrado se identificou e perguntou ao primeiro funcionário

da empresa com quem se encontrou: “Seu nome, seu RG, seu CPF. Vou lhe fazer algumas

perguntas e o sr. pode responder tranquilamente. Se o sr. receber algum tipo de punição me

procure que eu tomarei todas as providências. Então, por favor informe: quanto o sr. ganha?”

O funcionário respondeu: “Ah, doutor, eu ganho 150 reais por mês...”. E o magistrado per-

guntou: “O sr. assina recibo?” O funcionário respondeu que sim, assinava. Só que o recibo

era no valor de 220 reais. “Eles pagam 150, dão o recibo de 220 e a gente tem que assinar...”,

confirmou. O magistrado perguntou: “Há quanto tempo o sr. trabalha aqui?” A resposta foi:

“Há oito meses. E sempre foi assim...”. O magistrado seguiu adiante, sempre acompanhado

pelos dois advogados e abordou outro funcionário da empresa. De novo se identificou, re-

gistrou números de RG e CPF da pessoa e perguntou sobre o salário, o recibo, o piso salarial,

e as respostas eram idênticas. O funcionário recebia 150 reais e assinava recibo no valor de

220. Depois de ouvir e registrar o depoimento de três funcionários o magistrado regressou

à sala de audiências. Percebeu que o rosto do empresário demandado estava lívido. O ma-

gistrado fez que nem ouviu o advogado da empresa que dizia em alto e bom som: “Doutor

Juiz, eu proponho que se chegue a um bom acordo, que se encerre o assunto, que se favoreça

a demanda do funcionário...”.

Querendo justiçaPercebia-se que o magistrado estava revoltado. De qualquer forma ele permitiu que o acor-

do fosse feito entre a empresa e os dois funcionários que se sentiam lesados. Dirigindo-se ao

advogado e ao proprietário da empresa disse: “Permito o acordo sim, mas não vamos encerrar

o processo. Porque aqui, neste caso aconteceu um enorme passeio pelo Código Penal: falsi-

dade ideológica, crime contra a organização do trabalho, apropriação indébita, estelionato...

e eu garanto que vou tomar providências”. E tomou mesmo. Mandou ofício para o Ministério

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Público local (e ao Ministério Público do Trabalho) que, por sua vez instauraram inquérito

civil público. Além disso, a empresa teve que pagar corretamente, e com retroação, todos os

salários devidos aos seus funcionários e chamar todos os empregados que havia dispensado

nos últimos cinco anos pagando tudo o que lhes era devido. A história é essa, srs. leitores,

podemos voltar à nossa realidade atual.

É tudo verdade Registre-se que os fatos mencionados são absolutamente verídicos e constam dos autos

da reclamação trabalhista que tramitou perante a Vara do Trabalho de Pindamonhangaba. O

magistrado, que foi às últimas conseqüências para fazer Justiça também existe sim. Seu nome

é Dr. Wilson Pocidonio da Silva, um mineiro atibaiense ou um atibaiense mineiro, de 51 anos,

casado com a advogada Nair Taeko Otani e Silva, pai da Camila Yuri, também advogada e da

Jéssica Yumemi, estudante de Moda. O Dr. Pocidonio é filho de Divino Pocidonio da Silva e

dona Edite Ferreira Silva, pessoas muito conhecidas na cidade. Humilde, o Dr. Pocidonio,

que fez parte daquela leva de “garotos prodígio do Major”, como lembra o ilustre professor

Orlando Gigliotti, à época participante ativo do corpo de professores daquela instituição,

costuma dizer: “sou um mero especialista em Direito Trabalhista, e sempre farei tudo o que

tenha que ser feito para que a Justiça seja cumprida”. O magistrado Pocidonio estudou no

José Alvim, onde concluiu o antigo curso primário e também no Major Juvenal Alvim, onde

cursou o antigo ginasial. Formou-se em Contabilidade no antigo Colégio Técnico do professor

João. Trabalhou um bom tempo na parte administrativa do Hospital Atibaia e cursou Direito

em Bragança. “Eu tinha tudo para fazer minha vida no Hospital, mas depois de formado e

contando com o apoio da minha mulher, decidi investir na carreira de advogado trabalhista,

que eu gostava tanto e me preparei muito. O Hospital foi o meu primeiro cliente, graças à

compreensão e apoio do dr. Wada e demais diretores”, lembra.

Uma lutaNão foram fáceis os primeiros anos do advogado Pocidonio. “Minha mulher teve um peso

fundamental. No início, literalmente sustentou a casa...”, revela orgulhoso. Com o tempo

associou-se ao dr. Nelson Hossne, um dos grandes escritórios de advocacia da época na cida-

de, sempre operando no campo do Direito Trabalhista. “Deu tudo muito certo e o escritório

cresceu além da nossa expectativa. Por que entrei para a Magistratura? Porque o advogado,

apesar de ser tratado pela lei como um elo indispensável à administração da Justiça, “não faz

justiça”. Por dever de ofício, nem sempre está ao lado do cliente certo na demanda certa. Sei

que algumas vezes ganhei quando deveria perder, e até perdi quando deveria ganhar. E eu

gosto de Justiça com o J e todas as outras letras maiúsculas. Achei que tinha que mudar. Um dia

a Dra. Iara Cordeiro, então juíza do Trabalho de Bragança, hoje desembargadora aposentada

me incentivou a fazer o concurso para juiz. Tentei duas vezes e não consegui. Já estava desis-

tindo quando ela insistiu: “Não desanime”. Fui e consegui”, conta. No início o Dr. Pocidonio

preferiu trabalhar em cidades do Vale do Paraíba, sendo designado inicialmente para Taubaté.

Promovido para juiz titular foi para Birigui, “cidade muito gostosa, fizemos grandes amizades

por lá”, revela. Convidado pelo desembargador Luiz Carlos de Araújo, que havia sido eleito

vice-presidente do Tribunal (Regional) do Trabalho, com sede em Campinas, o Dr. Pocidônio

foi trabalhar na administração do Tribunal, passando a morar naquela cidade. Recentemente,

nos anos de 2006 e 2008, ainda por convocação do Desembargador Araújo exerceu a função

de juiz auxiliar da Presidência do TRT/15ª. Região. Chegou a assumir a titularidade em Porto

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Ferreira e da 1ª. Vara do Trabalho de Taubaté antes de chegar à Bragança Paulista.

Da Justiça“O trabalhador e o empresário podem e devem acreditar na justiça. Alguns dizem que a

Justiça do Trabalho é tida como a “justiça do trabalhador”, mas isso acontece porque, falando

francamente, o empregado normalmente sofre algum tipo de lesão em seus direitos. Uma hora

extra paga por fora, por exemplo, é detalhe que prejudica o empregado, considerado sim a

parte mais fraca no relacionamento. Mas a Justiça do Trabalho não é do trabalhador, ela julga

quem tem razão ou não”. Uma conversa com o Dr. Pocidonio vale como mil aulas, histórias e

mais histórias sobre direito trabalhista. Sufocado pelo trabalho que ele tanto gosta de fazer,

informa que a vara de Bragança registra média anual de 1700/1800 processos, 150 processos

por mês. “Não é pouco e neste ano, em razão da crise tivemos umas 600 ações a mais...”. Além

de Bragança, o Dr. Pocidonio atende Tuiuti, Pedra Bela, Pinhalzinho, Joanópolis, Vargem. “Se

não tivessem aberto a Vara de Atibaia estaríamos perdidos, seria inviável”, confessa. Doente

pelo que faz, inquieto, criativo e instigante, ansioso por Justiça, o Dr. Pocidonio bem que

poderia aspirar um cargo de desembargador. “Não, não, não, não quero. Minha meta agora é

me aposentar. Meu projeto agora é com minha mulher, que também já se aposentou. Só com

ela. Mais um tempo e nós vamos ver o que podemos fazer...”, tranquiliza-se o Dr. Pocidonio,

um magistrado que vai atrás da Justiça nos mínimos detalhes. Seu jeito de agir até lembra

filmes de suspense. Suspense que sempre tem um happy-end para a Justiça.

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Edgard de Oliveira Barros

Tem criança que adora brincar de médico. Tem médico que é tão criança que passa a

vida inteira, ou mais que isso, vivendo no meio de crianças e dando sua vida por elas.

Não se poderia dizer, por exemplo, que o pediatra Sérgio Azevedo, que já está quase

batendo na casa dos 60 anos de idade é uma criança, mas ele é, com toda certeza. E

gosta tanto de ser criança a ponto de entender plenamente, falar a linguagem e traduzir os sen-

timentos de cada uma delas. Não por acaso já atendeu, entendeu, olhou, auscultou, medicou,

cuidou e, brincando, brincando, fez tudo para curar, uma por uma, mais de 180 mil crianças

durante toda a sua vida. Nem sempre venceu, diga-se. “O inexorável existe...”, sentencia. E ele

se abateu profundamente a cada cliente que perdeu. E se alegra incrivelmente quando cuida

os filhos e, daqui a pouco, até netos de muitas crianças que já livrou do “inexorável”.

Fazendo contasO ilustre e ilustrado leitor que achar que esse número de atendimentos é exagerado e des-

propositado que se dê ao luxo de fazer contas. Pois vejamos: o dr. Sérgio Azevedo, 58 anos de

vida, está completando 32 anos de carreira neste ano. Ele já trabalhou no Rio de Janeiro, no

Pará, em Rondônia, no Sul e onde mais que se possa pensar deste imenso país. “Eu deveria

ter guardado todos os prontuários das crianças que atendi. Não tive nem tempo de fazer isso”,

lamenta-se. Mas, em média, o pediatra atendeu e atende pelo menos 20 pequenos pacientes

por dia. Vá lá que seja, que tenha trabalhado só 20 dias por mês, o que seria uma mentira.

“Nunca tive hora, nunca tive dia santo para descansar...”, brinca. De qualquer forma, 32 anos

correspondem a quase 1800 semanas, 36.000 dias (como ele disse, nunca descansou...), entre

10 e 20 consultas por dia e o número está fechado: por volta de 180 mil atendimentos. Ou mais

anda. Nada, nada, o dr. Sérgio Azevedo já teria examinado e atendido, por exemplo, uma Atibaia

e meia. “Tudo isso?”, pergunta ele. Tudo isso, dr. Sérgio, tudo isso...

Um pouco da história do pediatra que é

doente pelo que faz

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Depois do fim, o começoDiante de números tão fortes esta entrevista já estaria fechada, apesar de ter apenas co-

meçado. O que é que se poderia dizer a mais, sobre uma pessoa que influiu decisivamente na

vida de 180 mil crianças? Pois saibam, tem sim, muita coisa para ser dita, muita coisa mesmo.

Porque o dr. Sérgio Azevedo continua criança no meio de suas crianças doentinhas, carentes

de carinho, atenção e remédios. “Eu só sei fazer isso, só me realizo quando estou atendendo

a garotada. Dizem que eu tenho que me aposentar, que já cumpri o meu tempo e tal, mas

eu não quero parar, não vou parar. Repito, eu só sei fazer isso na vida”. O dr. Sérgio Azevedo

não vai se aposentar, não é legal, criançada? “Meu pai, o caboclo Luiz Adolpho Fonseca de

Azevedo tem 84 anos e continua ativo, cheio de planos para a vida...”, lembra. Luiz Adolpho

Fonseca de Azevedo é o seu exemplo. “Meu pai é meu ídolo. Minha mãe, Alzira Alves de

Azevedo já nos deixou. E me marcou muito”, emociona-se. Paraense, nascido e criado nas

belezas de Belém, Sérgio Azevedo cursou a Universidade Federal do seu estado. “Tenho 6

irmãos de sangue e uma irmã adotada. São pessoas maravilhosas. No próximo dia 11 (11 de

setembro de 2009) a gente vai se reunir em Belém para comemorar os 85 anos do Sr. Luiz

Adolpho. A cidade vai parar...”, brinca. Festeiro do jeito que é, é bem capaz que Belém tenha

uma semana inteira de feriados...

No vai e vem da vidaFormado, o dr. Sérgio não pegou um Ita no Norte, como diz a canção, mas veio para o Rio

morar. Veio nas asas da inesquecível Panair do Brasil. “Que saudade!”. Seus olhos lacrimejam.

Foi no Rio de Janeiro, mais especificamente no Hospital Souza Aguiar, então referência na-

cional em termos de Medicina que o pediatra fez a sua residência como cirurgião pediátrico.

“Rapaz, naquele tempo o Souza Aguiar era o máximo. Foi o Souza Aguiar que atendeu o então

presidente Figueiredo quando ele caiu do cavalo, lembra? Vinha gente do mundo inteiro

para se tratar no hospital”. Sérgio criou laços de amizade com o melhor da inteligência, do

futebol, da música, e até da “malandragem” que havia no Rio de Janeiro da época. “Repito:

que saudade”. Lembranças e mais lembranças, o dr. Sérgio é um livro ambulante, cheio de

histórias da vida, da medicina, das suas crianças. Conheceu e casou-se, ainda no Rio, com a

também médica Lyse. Teve dois filhos, Sérgio e Paula. Voou de volta para o seu estado natal

e foi cair em Tucurui, onde, à época, se construía uma das maiores hidroelétricas do mundo.

“Tucurui era e é uma cidadezinha. A construção da represa transformou aquela região em

um mundo novo. Surgiu uma cidade nova no canteiro de obras, com mais de 200 mil pes-

soas, entre trabalhadores e suas famílias. A Camargo Corrêa, empresa encarregada da obra

se viu obrigada a construir um hospital completo. E eu fui convidado a dirigir a clínica para

crianças”, conta. Não dá para resumir aqui as milhares de histórias vividas pelo pediatra.

Seria necessário um outro livro.

Às margens do rio MadeiraO fato é que a sua dedicação e competência fizeram com que ele fosse convidado a tra-

balhar em Rondonia. Descasado, Sérgio estava diante de um novo desafio de vida. “A região

é maravilhosa, mas sempre foi muito carente. Criança é criança em todo lugar, e onde tem

criança é o meu lugar. Trabalhei gostosamente e com todo o empenho, apesar da eterna falta

de recursos...”, lastima-se. Foi em Rondonia que conheceu sua segunda esposa, Ângela, com

quem teve o filho Sarkis, hoje estudante de Engenharia da Universidade Mackenzie. “Aí você

me pergunta como eu vim parar em Atibaia, não é? É que o pai da Ângela, um grande sujeito,

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jornalista de prestígio por aqui, andava muito doente e a gente resolveu vir para São Paulo.

Adoro São Paulo, mas para curtir, não para morar. Aquilo é muito doido para o meu gosto...”.

Pronto, naquele momento as crianças de Atibaia já batiam palmas, pois o dr. Sérgio tinha

chegado com seu jeitão humano, alegre, compreensivo e descompromissado. Amigo dos

amigos de 0 a mil anos de idade. E não saiu mais daqui. “E também não vou sair. Criei raízes

profundas. Meus amigos, minhas crianças, essa gente toda me entende e me proporciona uma

vida muito feliz. Sei até que não deveria e nem precisaria tanto, mas continuo trabalhando

feito um louco. Pego plantões, perco fins de semana, passo dias sem dormir, mas estou sempre

alegre”, conta. O dr. Sérgio funciona a mil por hora. “Atibaia pode ter todos os defeitos do

mundo, mas é um mundo à parte pelas pessoas que têm. Maravilhosas pessoas, maravilhosos

amigos me prendem aqui...”, resume o pediatra, hoje casado com a doce Sueli.

O efeito camaleãoSe a vida de Sérgio Azevedo daria um livro sobre o tempo que viveu em Belém do Pará, daria

um livro sobre o tempo que viveu no Rio de Janeiro, outro livro sobre o tempo que viveu em

Rondônia, outro livro sobre os tempos do Tucurui, e mais outro sobre essa vida toda, daria o

melhor dos livros sobre os casos, ou causos que viveu na profissão. Quando conta sobre a sua

vivência como médico, Sérgio faz rir e faz chorar. “Cara, eu já vi muito. Vi e vivi coisas tristes,

vi e vivi coisas alegres, vi e vivi intensamente o que poucos poderiam ter vivido igual. Nosso

país é maravilhosamente maluco. Tanto quanto eu. E talvez eu seja assim porque já vivi toda

essa loucura do povo brasileiro. Que chora, que ri, que canta, que acredita em Deus e no diabo,

com suas crenças e maldições, com suas tradições, essa cultura toda que não tem coisa igual

no mundo”. Sérgio diz que um profissional da Medicina tem que viver e sentir profundamente

o ambiente onde está. Conhecer a alma do povo do local onde atende. “Tem um mundo de

histórias contido em cada região, onde os costumes são diferentes e onde até o médico sofre

para fazer diagnósticos ou para administrar medicamentos. Não é fácil”, filosofa.

Um benzedorNo meio de tantas histórias tristes ou engraçadas, o pediatra lembra, por exemplo, um caso

muito triste de uma criança anencefala. Traduzindo, uma criança que nasceu sem cérebro.

Ele tenta descrever sua agonia diante do fato, mas o repórter não vai conseguir passar para

o papel situação tão dramática. O fato é que a criança sobreviveu por 30 dias. “A perda era

inexorável e até necessária. Nem dá para imaginar o que seria se essa criança sobrevivesse. No

entanto, eu tinha que mantê-la viva...”. O leitor deve ter reparado que o pediatra não usa a pa-

lavra morte, que sempre substitui por “inexorável”. Faz muito bem. O inexorável ocorreu para

aquela criança, depois de tanto sofrimento. Mas entre os três mil ou mais casos engraçados

vividos em sua vida profissional, o dr. Sérgio nunca esquece do garoto que foi levado até seu

consultório na vizinha Nazaré Paulista. “A mãe chegou com o filho e com a avó. Como a mãe

era muito jovem, a avó tomou a palavra e foi logo anunciando: “a criança está com o “bucho

virado”. Concordei, claro. Examinei e vi que o garotinho estava mesmo era cheio de vermes.

E põe vermes nisso! Enquanto eu fechava o meu diagnóstico, a avó falou: “doutor, eu vou

levar ele para benzer, só o benzimento cura isso”. Pensei: se eu não resolver esse problema,

daqui a pouco não vêm mais crianças para cá. Vai tudo para o “benzimento”. Falei: “A senhora

tem razão; eu também sou benzedor, pode deixar que eu vou benzer o menino. Peguei um

copo de água, coloquei o medicamento sem que elas vissem, olhava para o copo e fingia que

rezava. E levantava o copo com as duas mãos e rezava, olhando para o alto. Minutos depois

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disse: “Tá feito o “benzimento”. Ele bebe esta água benta e vai ficar bom. Ficou bom, claro.

Dali pra frente, formavam filas de mulheres com suas crianças, pedindo para eu benzer...”.

Esse é, ainda que superficialmente, o pediatra dr. Sérgio Azevedo. Com quem sempre brinco

dizendo ser o meu pediatra favorito. Não dá para escolher outro.

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Uma fossa é uma fossa, só que existem fossas, e existem fossas. Dependendo do

tipo de fossa que se trate, nem Maísa e nem Dolores Duran, fabulosas interpretes

da música brasileira, saudosas cantadoras das dores dos amores complicados

e desencontrados foram melhores que Izidio Pereira da Fonseca, 62 anos, mi-

neiro da cidade de Josenópolis. Na verdade pouquíssimas pessoas entendem tanto de fossa

quanto Izidio, que vive em Atibaia há mais de 33 anos. E é tão bom em matéria de fossa que

até é chamado de “Fossinha”, apelido mais do que merecido, afinal, Izidio, que não canta nem

entoa fossa nenhuma, vive de furar ou abrir fossas. Estamos falando das tais fossas assépticas

e negras. Como se não bastasse, além das fossas Izidio ainda fura poços em busca de água.

“Fossinha” já furou ou abriu muito mais que 200 fossas na cidade. Fora os poços. Levando-se

em conta que cada fossa tem a profundidade média de 10 metros, Izidio já deve ter furado quase

três quilômetros de terra, para que se tenha uma idéia do tamanho da fossa. Nem há tatu que

agüente furar buraco assim tão grande na vida. Não por acaso, além de “Fossinha”, Izidio, que

é marido de dona Ana e pai de quatro filhos, também é conhecido por “Tatuzão”. Merece.

Falamos do que, mesmo?Oras, dirá o perplexo leitor, a troco de que um repórter vai se meter a falar de fossas ou

poços cavados ou furados pela cidade para se obter água ou jogar o cocô fora? Simplesmente

porque se trata de um curioso modo de vida. Ao contrário do que se possa pensar e do que

propalam os nem sempre benditos políticos, nem todas as casas da cidade dispõem da água

que vem pelos canos públicos para as torneiras particulares. Muito menos têm disponíveis a

necessária tubulação, igualmente pública, que recolhe a chamada bio-massa, ou sobredito

cocô, produzido por seres humanos, recolhido às bacias ou privadas dos banheiros públicos ou

privados. Uma quantidade inimaginável de casas situadas nos baldes e arrabaldes de Atibaia

Apesar de tudoAtibaia ainda

continua na fossa

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não têm água encanada e muito menos esgotos. Se isso acontecesse só aqui não seria nada,

mas é o que se vê por esse Brasil a fora e noves fora o resto da chamada latinoamérica. Vai

daí é preciso que se fure fossas, que se abram poços de água e a figura de Izídio Pereira da

Fonseca e seus iguais cresce em importância.

É dureza, manoFurar fossa ou poço pode parece a coisa mais simples e natural do mundo, desde que qual-

quer buraquinho resolvesse. Só que não é por aí. Se quem faz não souber fazer, pode acabar

no fundo do poço ou da fossa, pois o perigo é muito e o buraco é bem mais em baixo. E lá em

baixo não tem ar, lá em baixo o ambiente é úmido e mais quente, e, às vezes, lá em baixo tem

até gás, que é mortal. Enfim, lá em baixo é um perigoso mundo escondido, conforme explica

e ensina Izidio, o “Fossinha”.

Já se viu que uma fossa pode ter até 10 metros de profundidade. Isso corresponde a um

buraco escuro e fundo da altura de um edifício de três andares. É nesse lá em baixo que Izidio

se realiza. “Gosto de trabalhar com a terra. Desde criança. Nasci na roça, pai nem chegou a

falar “vai estudar minino”, porque lá nem estudo tinha. Era de manhã até de noite na lida da

vida do campo”, lembra Izidio., que já rodou o mundão das Gerais e veio para cá fazendo de

tudo um pouco, cuidando das coisas e dos bichos, de mato, da água e do ar. “Adoro cuidar de

criação, é tudo irmão. Plantar e ver brotar e ver crescer. Já cuidei de flor, de jardim; entendo

até de cogumelo. Trabalhei com o falecido Oscar Molena, lembra dele?”. Oscar Molena foi

um dos principais incentivadores da cultura do cogumelo por aqui. Com seu trabalho, elevou

o nome de Atibaia como grande produtora de cogumelos.

Por que cair na fossa?Já se viu a cidade está cheia de ruas sem água encanada e cheia de casas nessas ruas que

não têm esgoto, aí o povo tem que cair na fossa. Igualzinho àquela história de quem não

tem cão e precisa caçar com gato, quem não tem esgoto fica na fossa mesmo. Atibaia já teve

grandes poceiros e fosseiros antes do nosso “Fossinha”. “Que eu me lembre, assim de memó-

ria rápida, tinha o “João Tartaruga”, o “Zé da Viola” e o “Lindo Poceiro”. Eram muito famosos

nas redondezas”. Quando a água começou a entrar pelos canos nas casas e a rede de esgoto

foi se espalhando pelas ruas diminuiu o trabalho deles. “Eles já estavam ficando velhos. É

um trabalho duro esse de furar poço e fossa. Quebra a pessoa”, insinua Izidio. Tem razão o

“Fossinha”. Imagine uma pessoa de 1 metro e 60 e poucos de altura ficar cavando buraco com

metro e dez de largura. Quando o buraco ainda está aqui em cima tudo bem; mas, à medida

que o buraco vai descendo, vai crescendo, qualquer movimento fica muito difícil. “Tem que

se acostumar a trabalhar encolhido, se não o corpo nem cabe no buraco”, revela ele. O fato

de ainda ter muita casa sem água e sem esgoto pode ser ruim para muita gente, mas é muito

bom para ele: “Tem muito serviço de fossa e poço, é só ter vontade de enfrentar...”.

Os perigos da fossa“Furar fossa e poço só é obra para quem tem gosto na coisa. É preciso coragem, e isso eu

tenho. Fico bem, cavando e mexendo a terra, indo lá para baixo. Tem dias que chego a furar

3 metros de poço trabalhando das 7 às 11”, conta Izídio. Ganha muito? “Ganha nada. Pelo

perigo, é pouco. 80 reais por metro...”. E põe responsabilidade nisso. A coisa consiste em

ir cavando e afundando, sendo que o difícil é tirar a terra do buraco. “Até a fundura de um

metro e meio, dois, ainda dá para jogar a terra fora usando só a pá. Daí para a frente a gente

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tem que usar um sarilho, daqueles usados para tirar água do poço. É com ele que se puxa os

baldes cheios de terra lá de baixo aqui pra cima. Quanto mais fundo, mais terra sai”, conta.

A largura média das fossas ou dos poços varia de 1,10 metro e 1,50 metro. Algumas vão a 1,66

metro. E aí o preço sobe pouquinha coisa. No caso das fossas assépticas a largura não passa

de 0,80 metro de largura. Fossa asséptica, para quem não sabe, é aquela que recolhe os ditos

“materiais sólidos”. Isso mesmo que você está pensando: material sólido é aquela massa que

sai da bacia do banheiro, ou da privada, se preferir... Já a fossa negra recebe a água, ou o caldo

que encaminhou o tal do “material sólido”. Estamos entendidos?

Antes só do que mais ou menos acompanhado

Izidio não esconde que gosta de trabalhar sozinho. “A gente acredita no parceiro, mas dá

medo. A gente fica no buraco, lá em baixo e numa hora de precisão, quando dá com o gás, a

gente precisa subir rápido, precisa de ajuda. Chama o parceiro e às vezes ele está distraído ou

foi beber um gole d´água, fazer um xixi. A gente tá morto. O gás tonteia na hora, não pode

demorar para sair do buraco. Por isso que prefiro ficar sozinho, eu e Deus, Nele eu confio”. Só

que quando a fossa ou o poço são muito fundos, tem que ter duas pessoas: uma cava, outra

puxa a terra. Além da corda do sarilho, a que puxa o balde da terra, Izidio amarra outra corda

na forquilha do sarilho, é a rota de fuga, a segurança. “Num momento de precisão me agarro

nessa corda e venho pra cima. Não preciso esperar ninguém para me salvar, só Deus...”. Detalhe

perigoso: qualquer coisa que caia lá dentro, uma pequena pedra, pode matar quem estiver lá

em baixo. Izidio arrisca dizer que isso acontece por causa do tal de peso atômico...

Furar com fé eu vouCom fé em Deus, Izidio vai preparando a aposentadoria, os papéis já estão na mão do ad-

vogado. “Só que não dá para parar. Tudo o que eu quero da vida é continuar abrindo fossas,

poços, cuidando de jardins, plantando, colhendo”. Izidio, o “Fossinha”, o “Tatuzão” precisa

mesmo é de clientes, fregueses, gente que tenha um jardim para ser cuidado, uma pequena

plantação para ser olhada, uma fossa para abrir, uma valeta, um poço. “Preciso de serviço”,

revela. Sonha construir uma casinha para ele e para a mulher. Se você precisar de uma fossa,

um poço, um trabalho chame o “Fossinha” pelo telefone 7660-1879. Quer que repita? 7660-

1879. Izidio atende até quando está em baixo da terra. Ou, se preferir, atende até quando

está na fossa.

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Edgard de Oliveira Barros

A coisa mais normal do mundo seria que o pequeno Omar seguisse os passos do

pai, Abrahão, e decidisse continuar tocando a prestigiosa loja de tecidos, calça-

dos, armarinhos em geral que ficava lá na praça Claudino Alves, na Atibaia de

antigamente. Afinal, negociar está no sangue e na tradição dos libaneses. No

entanto, contando com todo o apoio do pai, Abrahão Zigaib e da mãe Mafalda Zigaib, Omar

Zigaib percorreu caminhos outros que o brindariam com uma invejável história de vida e um

respeitável curriculo. Depois de concluir o então chamado Curso Primário, na escola José

Alvim, o garoto Omar foi para São Paulo para dar sequência aos estudos. Como era de praxe

na época, as famílias mais abastadas enviavam seus filhos para estudar em grandes colégios

da Capital. Talvez tenha sido esse o período mais angustiante da sua vida. “Eu fui para o in-

ternato do Colégio Pasteur, na Vila Mariana. Para mim, aquilo representava um verdadeiro

“campo de concentração”. A disciplina era cruel e ficar longe da família representava o pior

dos castigos”. Menos mal que, nos finais de semana Omar podia ficar com seus tios, “era o que

salvava; mas tudo foi muito difícil...”, revela. De qualquer forma, foi assim que Omar acabou

se integrando na nova e grande cidade. Depois veio para Atibaia onde fez o curso de Técnico

em Contabilidade tão logo concluiu o ginásio no bom e tradicional Major Alvim. No início de

1953, Omar voltou a São Paulo para continuar seus estudos.

O fim estava naquele começoO desejo real de Omar era se aprofundar em contabilidade, talvez em um curso de

Administração de Empresas. No entanto, a necessidade de se tornar independente o levou

a ingressar no mercado de trabalho, inicialmente como escriturário no Banco Cooperativo,

depois, no Banco Paulista. Sempre na Capital, passou a chefe de escritório de uma empre-

sa de lubrificantes até que ficou sócio de um grande empreendimento também do setor de

O garoto que deixou a loja do pai

para ser prefeito

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lubrificantes, com clientes em todo o Brasil. O sucesso da empresa fez com que Omar fosse

viver no Rio de Janeiro. No meio de tantos negócios ainda sobrou tempo para que ele conclu-

ísse o curso de Direito. A empresa continuava crescendo e cresciam também as suas ligações

comerciais com o Bradesco, cujo diretor-gerente, à época era. Laudo Natel. O relacionamento

profissional proporcionou a Omar o nascimento de uma amizade muito próxima com Natel

Que futuramente seria o governador do Estado de São Paulo. A empresa investiu em vários

segmentos, agrícolas, inclusive, mas o sucesso da empreitada não impediu a ruptura da

sociedade, “tudo aconteceu dentro da maior normalidade”, esclarece. O fim estava naquele

começo como se vai ver adiante.

Um convite assustadorOmar já militava como advogado quando soube que seu amigo Laudo havia sido indica-

do para ocupar o cargo de governador do Estado. Como se recorda, nessa época o país era

governado por militares. Tempo de exceção, não haviam eleições; os governantes eram sim-

plesmente indicados pelos comandantes militares, como aconteceu com Laudo Natel. E foi

então que um amigo comum visitou Omar dizendo que Laudo tinha urgência em conversar

com ele. Omar atendeu o convite e literalmente tremeu quando o governador anunciou:

“Eu tenho uma relação com três nomes para indicar para ser o prefeito de Atibaia, mas vou

nomear um quarto nome: você. Você vai ser o prefeito. Conheço o seu profissionalismo e sei

que você será capaz de fazer um bom governo”.

O susto que se transformou em desafioAinda uma vez é necessário explicar que naquele tempo de exceções, as cidades consideradas

estâncias turísticas também não tinham eleições e seus prefeitos eram indicados pelos go-

vernadores de Estado. “Eu mal conseguia respirar, mas respondi de pronto: agradeço a sua

confiança, mas não posso aceitar. Não sou político, governador”. Omar despediu-se e deixou

o Palácio do Governo. “Foi o maior susto que tomei na vida”, revela. Só que Laudo Natel não

se deu por vencido e voltou à carga. Novas reuniões até que Omar foi convencido e acabou

aceitando a missão. “Claro que o começo não foi nada fácil. Apesar da Arena, o nosso partido,

ter a maioria dos vereadores, criou-se um certo mal estar. No quero citar nomes, mas muitos

se opunham à decisão do governador. O importante é que o tempo superou as dificuldades,

chegamos a um bom entendimento e eu, com muito orgulho, comecei a governar a cidade”,

relembra Omar que governou Atibaia no período de 14/5/1971 a 9/7/1975. Apesar de nunca

ter se considerado um político, acabou marcando positivamente a sua administração. Se a

política é a arte do entendimento, Omar Zigaib, além de ser um bom ouvinte, sempre foi um

bom trocador de idéias.

Do que fezOmar Zigaib, que foi casado com Maysa Cherfên Zigaib, falecida em dezembro de 2003,

pai de cinco filhos, Márcia, Renato, Sandra, Lenita e Raquel, guarda até hoje o relatório ou

a Prestação de Contas que fez ao povo da cidade quando deixou o poder. Seriam necessárias

páginas e páginas para descrever tudo o que foi feito durante os quatro anos em que ele

esteve no poder. Atitudes e realizações no campo da saúde, saneamento básico, educação e

cultura, serviços urbanos, assistência social, transporte e comunicação, turismo, indústria

e comércio, esporte, equipamentos e serviços. “Estamos falando de uma cidade que tinha

40 mil habitantes, um terço do que é hoje. As prefeituras não tinham muitos dos recursos

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Edgard de Oliveira Barros

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atuais, os repasses, o IPVA, as multas de trânsito. Além do mais, hoje é tudo informatizado, o

progresso tecnológico possibilita a governabilidade e o melhor atendimento à comunidade”,

conta. Omar se orgulha, no entanto, das melhorias que proporcionou para Atibaia durante

o seu governo nas áreas de saúde e saneamento básico. “Nós construímos uma moderna es-

tação de tratamento de água; aumentamos em 500 mil litros a capacidade de estocagem de

água; instalamos 35 mil metros de rede de água, levando água para o Alvinópolis; ainda no

Alvinópolis iniciamos a instalação de quatro quilômetros da rede coletora domiciliar de esgoto

e construímos 4 quilômetros de emissário e interceptor de esgoto. Construímos 17 prédios

escolares, dotados de cozinha, galpão, sanitários na zona rural, instituímos o fornecimento

de passes escolares aos estudantes pobres da zona rural. Seria muita coisa para se falar. Já

na época nos preocupamos em implantar indústrias na cidade, visando a alocação de 4 mil

empregos”, orgulha-se Zigaib.

O hojeTranqüilo, advogando, presidindo pela terceira vez a OAB-Atibaia (Ordem dos Advogados

do Brasil), curtindo a família, o super-corinthiano Omar, que em 1979 foi candidato em uma

eleição municipal mais do que ganha, inexplicavelmente perdida nas últimas horas da cam-

panha, ainda chegou a ocupar relevantes cargos na administração municipal, mas hoje não

pensa mais em política. “Já cansaram de me indicar, de me procurar; toda hora dizem que

eu sou candidato, mas não sou não”, desabafa. Adora a cidade onde nasceu, viu e ajudou a

crescer. Discreto, diz que o último governante da cidade cumpriu satisfatoriamente os seus

8 anos de mandato. “Claro que teve os seus erros, mas. como sempre, a história é quem vai

julgar”, divaga. Omar Zigaib, o filho do libanês Abrahão Zigaib, que se recusou a assumir

uma próspera loja para um dia ser o prefeito de Atibaia pede licença e pede desculpas por

terminar a entrevista. Afinal, neste exato momento o Corinthians está entrando em campo

prometendo muita emoção. E essa hora realmente é sagrada para quem faz parte do incrível

bando de loucos...

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Edgard de Oliveira Barros

Não se pode dizer que o Cifarelli entenda de tudo, mas com certeza ele tem res-

postas para quase tudo. Fazendo questão de manter seu ostensivo jeitão caipira,

Antônio Waldir Cifarelli é todo cheio de respostas e soluções. “Não, não, não

tenho saída pra tudo, só para quase tudo”, faz questão de dizer. Para não irmos

tão longe na discussão, Antônio resolveu um problema que estava literalmente “afogando”

o Tanque. Tanque, no caso, é o bairro que fica no caminho de Bragança Paulista. “Toda vez

que chovia forte na região aquilo virava um mar. Era tanta água que ficava tudo intransitável”,

conta ele, exagerando só um pouco. O pequeno rio que corre por aquele pedaço de chão não

dava vazão para o aguaceiro que rolava lá de cima, de um lado e do outro do morro, visto que o

bairro fica numa espécie de vale. “Esse desnivelamento complicava o acesso ao bairro. Sair da

Rodovia Fernão Dias para entrar no Tanque exigia perícia extrema do motorista. O motorista

era obrigado a enfrentar um “subidão” ou um “descidão” danados, conforme fosse o caso”,

lembra. Antônio teve então a idéia luminosa: tirar a terra do morro que separava o bairro da

Fernão Dias para aterrar a parte lá de baixo por onde passava a avenida. Mais ou menos isso,

coisa simples assim, porem difícil de explicar tecnicamente. Cifarelli falou com o pessoal da

prefeitura e os encarregados pela parte técnica e de engenharia não concordaram com ele.

“Chegaram a me chamar de louco”, brinca...

Eu vou sozinho...Louco ou não, o problema continuava e as enchentes sacrificavam as pessoas. Em dias de

chuva a garotada do lugar nem conseguia chegar à escola. A não ser que atravessassem as

ruas a nado. Antônio tomou coragem e foi falar com o prefeito, na época o advogado Gilberto

Sant´Ana. O prefeito ouviu, ponderou, foi ao local, consultou seus órgãos técnicos e a idéia

voltou a ser condenada. Antônio insistiu: “Sei o que estou falando. Só preciso de uma máquina

Antonio Waldir Cifarelli, um vendedor de flores e de sonhos

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e de alguns homens.” Logicamente a primeira reação do prefeito foi: “Nem pensar. Tenho

que respeitar meus técnicos”, disse ele. Mas o prefeito sabia com quem estava lidando. Sabia

que Antônio não daria sossego enquanto não resolvesse a questão. Acabou cedendo. Antônio

executou a obra e nunca mais se ouviu falar que o Tanque tivesse enchido... Quem duvidar

que vá lá para ver. Pois esse é o Antônio Waldir Cifarelli, um criador de casos que soluciona

casos. Se deixarem, claro.

Das rosas e do arroz com feijãoResumindo a ópera é uma delícia ouvir o Antônio falar e contar suas histórias. Histórias

do Tanque, dos Matarazzos, histórias das rosas, histórias do arroz com feijão, histórias da

vida. Antônio Waldir Cifarelli, 65 anos, casado com dona Regina Conceição Cifarelli, pai

do Antônio Reginaldo, que é Contador; do Alexandre, que trabalha com flores; da Adriana,

que é psicóloga e do Adalberto que trabalha em São José do Rio Preto. Antônio, que é filho

de Francisco Cifarelli, já falecido, e de dona Adélia, beleza de fortaleza, hoje com 91 anos. É

irmão de Dona Elvira, que é sitiante, planta rosas e cultiva peixes e do Nelson, comerciante,

dono de um grande depósito de materiais de construção lá no Tanque. Não só as pessoas

daqui, da cidade como especialmente o pessoal lá, do Tanque conhecem muito bem esses

Cifarellis todos. Porque além de tudo Antônio ainda têm tios e primos que moram por lá.

E, afinal, a vida deles sempre esteve intimamente ligada ao bairro do Tanque. “Você quer

saber por que chamam o bairro de Tanque? Eu nem desconfio. Ao que eu saiba, lá não tem

e nunca teve tanque nenhum. Vai ver que é por causa do tanque que guardava água para as

locomotivas a vapor da estrada de ferro”, resmunga Antônio, provando que ele sabe de tudo,

sabe até das coisas que não sabe.

Amor pelas rosas“Você pode até nem acreditar, mas hoje em dia a rosa é a flor que menos se vende. No en-

tanto, floricultura que não tiver rosas para vender acaba fechando as portas”. Ele diz e prova

isso. Depois de ter trabalhado na roça, ter plantado, arado, colhido, sofrido, depois de ter feito

de tudo na vida, entrou no comércio. Vendeu e comprou tudo o que se possa acreditar. Foi

então que Cifarelli se transformou no maior vendedor de flores que a cidade já tinha visto.

“Cuidado para não exagerar; eu não sou o maior...”, reclama. Modéstia, se não é o maior, é dos

melhores. Vive disso há 40 anos. Acorda na hora que todo mundo vai dormir, pega o cami-

nhão e vai até o sítio da irmã, enfrentando as terríveis armadilhas das estradas municipais de

Atibaia. “São mais perigosas do que as ruas bombardeadas lá no Iraque”, brinca. E prova que

boa parte dos custos dos agricultores e produtores rurais de Atibaia se vem dos problemas

que as estradas da cidade oferecem. “É mola quebrada, é carro atolado, gasolina ou diesel que

se gasta para dar longas voltas fugindo da buraqueira impassável... É um inferno. O pessoal

que dirige a cidade manda pintar as ruas, planta florzinhas, tudo bonitinho aqui no centro,

mas se esquece de quem vive e trabalha no campo. Sabe por que? Porque a área rural não

dá votos”, critica. E vai mais longe o Antônio: “Não lembram que a economia de Atibaia gira

em função do campo, da área agrícola. É o cultivo das flores e das frutas que move Atibaia,

sabia?” Talvez nem as autoridades desconfiem disso...

Das floresJá se viu que Antônio não é de comer enrolado. “Se o pessoal que vive do plantio de flores

e frutos daqui de Atibaia resolvesse mudar de ramo a economia da cidade pararia”, afirma sem

pestanejar. “80% do dinheiro que entra em Atibaia vem da flor e dos frutos que ela produz.

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carinho. Ninguém melhor que eles para isso. Então o Tanque juntou italianos e japoneses.

Nessa miscigenação, muitos filhos de italianos se casaram com filhos de japoneses. Foi o que

aconteceu com minha irmã Elvira, por exemplo, que se casou com um filho de japoneses”,

conta Antônio num fôlego só.

PioneirismoElvira, a irmã de Antônio é uma das pioneiras. Um de seus filhos tomou gosto pela coisa e

se formou em agronomia, ficou especialista em flores. “Mas ela também cria lebisti, aqueles

peixes de aquários. Meu pai nunca teve poder aquisitivo para comprar um pedaço de terra.

Nem meu tio. Hoje os filhos deles até poderiam comprar. Meus primos têm bastante terra. Eu

e meus irmãos temos pouco. Para falar a verdade eu detesto essa política ou falta de política,

ou pior ainda, essa falta de vergonha do governo de deixar os bandidos tomarem as terras

dos outros. De nós eles não vão tomar terra nenhuma; nossa terra está toda ocupada, toda

plantada, toda cultivada”, resmunga. Antônio se lembra com carinho que seu pai gostava

de trabalhar por empreita. “E sempre plantava o seu arroz, o feijão, tinha uma criaçãozinha

de porco de galinha para o sustento da casa. A gente só via carne de vaca no Natal e no Ano

Novo, ao contrário do que acontece na cidade”, suspira.

Vivendo a vidaCifarelli faz questão de dizer que os imigrantes italianos e japoneses eram gente muito

honesta na hora de trabalhar, pagar, receber. “Ninguém iria roubar ninguém”, diz Antônio.

“Viu? O Brasil já foi honesto um dia”, brinca. “Se eu ganho dinheiro? Dá para viver. Vivo a

minha vida, pago minhas contas, sobra dinheiro para arrumar carro, caminhão... Tudo com a

E tudo deságua no nosso comércio através da mão de obra que a flor e os frutos consomem.

Milhares e milhares de pessoas estão envolvidas com isso, gente de todo o país e até do estran-

geiro. Tudo trabalhando com flor. Atibaia deveria no mínimo se preocupar com as condições

de vida de quem vive plantando e colhendo, oferecer melhores condições de trabalho para

essa gente que traz esses recursos para a cidade”, desabafa. Antônio têm fregueses em tudo

quando é canto do Estado. “Vendo flor desde que o comércio de flores ainda acontecia na

avenida Dr. Arnaldo, ali no Cemitério do Araçá, em São Paulo. O Ceasa só veio em 1973 e eu

já vendia lá desde essa época. Vendia e vendo no Largo do Arouche, vendo em tudo quanto

é canto, eu me realizo com isso.”

Um pouco de históriaGarantindo que só vende as rosas plantadas por sua irmã Elvira, Cifarelli dá uma pausa,

mergulha no tempo e vai buscar a história dos começos do bairro do Tanque. “Aquelas ter-

ras eram todas do Matarazzo. 1.200 alqueires. A fazenda começava em aqui Atibaia e ia até

Bragança. Tinha muitos imigrantes por ali. Especialmente italianos como meus avós. Eles

tinham vindo para trabalhar na lavoura. Plantavam café e cana. Faziam uma pinga de muita

fama lá nos alambiques do Matarazzo. Aí o tempo passou e um dia as terras foram compra-

das pela Cooperativa Agrícola de Cotia. Que, por sua vez, promoveu uma autêntica reforma

agrária no pedaço, trazendo centenas de famílias japonesas para cá. Todo aquele espaço foi

dividido em pequenas propriedades, 9 alqueires por família. E o destino do Tanque começou

a mudar. No princípio os japoneses se dedicaram à criação de aves, frangos, depois à produção

de ovos, até começarem com o plantio do morango. Também plantaram pêssego e chegaram

às flores. Claro que se deram muito bem. Os japoneses têm amor à terra, cultivam a terra com

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rosa”, conta. Tem pouca gente cultivando rosas em Atibaia, “uns 30% do total de pessoas que

vivem de flores em Atibaia”. “Tem muita gente insatisfeita com o governo da cidade. Ninguém

cuida das estradas municipais, essa é a realidade. Pelo menos onde eu ando. Quem duvidar

está convidado a ir comigo que eu mostro tudo o que vem prejudicando os agricultores. Tem

um vereador que saiu fotografou tudo e não conseguiu resolver nada. Faz seis meses que ele

apresentou o problema e tudo continua igual. A gente tem que andar 8 quilômetros a mais

por dia por causa de estradas interditadas. Quanto se gasta a mais?”, questiona. “Era só man-

dar uma máquina dessas da prefeitura e gastar 15 minutos. Ninguém liga. Como eu disse o

campo não dá voto”, conclui. Aviso aos navegantes ou governantes da cidade: o Antônio tem

um plano fantástico para acabar com o problema dos alagamentos de ruas na Vila Carvalho.

Será que alguém quer ouvir? Com certeza não. Para variar, o lugar voltou a ficar alagado...

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“Sabe aquele ribeirão que passa bem de baixo da Carvalho Pinto, bem ali onde

hoje fica o supermercado Compre Bem? É ali mesmo, onde tem o farol, ou

semáforo, sei lá o nome daquilo. Não lembro nem o nome do ribeirão... Pois

no meu tempo de jovem ali não tinha ponte, não tinha nada. Era tudo mato.

O ribeirão cruzava o que hoje é a avenida e era bem fundinho. Tinha um ou outro lugar mais

raso por onde a gente atravessava para conseguir chegar até na cidade. O pessoal vinha lá do

outro lado da cidade, vinha caminhando ou montado em cavalos. E era ali que se dava água

para os animais. Rapaz, quem tivesse um cavalo naquele tempo já podia ser considerado como

“bem de vida”. Charrete era coisa de gente rica.. As pessoas andavam a pé mesmo. Aquele pes-

soal que morava nos sítios e que não tinha cavalo e nem charrete costumava andar descalço

mesmo. Tudo pé no chão. Ai, quando eles chegavam no tal ribeirão, lavavam os pés e só então

calçavam aqueles sapatos ou botinões que usavam. Isso, claro, quem tinha sapato ou botina;

não era todo mundo não. E só depois de lavarem os pés é que seguiam para a cidade. Ali era o

lugar onde eles se arrumavam pra chegarem bem bonitinhos na cidade. Contando assim, hoje

em dia, ninguém acredita, mas era comum e ninguém achava graça”. O autor dessa pequena

história absolutamente verdadeira, que viveu tudo isso, é Benedito Estanislau Silveira Franco,

que os amigos chamam de Dito. Pelo sobrenome, já deu para perceber: ele é descendente de

uma das famílias mais tradicionais de Atibaia. O nome Silveira Franco está nas ruas, nas pra-

ças, nas memórias, nas histórias da cidade. A naturalidade com que Benedito conta essa e as

tantas passagens de vida que já viveu deixa o repórter boquiaberto. E não poderia ser diferente.

Afinal, quem passa hoje pela esquina da Avenida Carvalho Pinto com a rua Gaspar Camargo,

onde fica o supermercado Compre Bem, dá de cara com a modernidade e a fartura de sinais

semafóricos, inenarrável parafernália de placas de trânsito, tudo asfaltado, ruas pintadas e

sinalizadas. Difícil imaginar como seria aquele lugar num passado não tão distante.

Será o Benedito? É ele sim, é o Benedito Estanislau Silveira Franco contando histórias que

viveu na sua Atibaia

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De verdade“Mas era assim mesmo, está estranhando por quê?” Benedito implica e questiona o re-

pórter: “Você não está duvidando de mim, está?” Nem pensar, Benedito, nem pensar. E

com certeza essa mesma imagem ainda está gravada na memória de milhares de pessoas da

mesma faixa de idade que provavelmente viveram esse pedaço, ao mesmo tempo engraçado

e melancólico da cidade. Há pouco mais de cinqüenta anos a Atibaia praticamente acabava

ali naquela esquina, conforme lembram Dito e tantos antigos moradores da cidade naquela

época. Daquele pedaço para a frente e para todos os lados era mato puro em tudo quanto é

canto. Sítios, chácaras, a fazenda dos Alvim, o ribeirão passando no meio, em sua caminhada

até o rio Atibaia que sempre correu lá em baixo. E, para variar, já provocava enchentes, por

quê não? Benedito Estanislau Silveira Franco é um dos maiores contadores de causos e ca-

sos antigos e atuais da cidade. Alguns dizem que ele é um “gozador” nato. Outros garantem

que se trata de um “tirador de sarro”, como se diz por aí. O fato é que na sua imaginação, nas

suas palavras e gestos, tudo vira história, tudo vira brincadeira. Benedito, o Dito, é sempre

atração. “Esse cara é uma figura”, proclamam seus amigos. Com toda a razão. Só a história

dessa passagem,a lembrança do ribeirão onde se dava “lava-pés” da cidade já valeria um livro.

Quem sabe um filme. Mas ele tem mais, muito mais. Haja espaço para tanta história.

Como será o Benedito?“Eu nasci em Atibaia, mas não na cidade, foi num sítio que ficava lá pelos lados da Usina.

Só vim para cá quando tinha 22 anos”, dispara Benedito hoje com 74 anos muito bem vividos

e curtidos. Ele é casado com dona Vanda Petrucci Franco e tem os filhos Ana Maria, Vagner,

Edson e Elber, que já lhe deram três netos. Pessoa totalmente desligada e acima de todos os

problemas, Benedito é o cara que não liga nem para o seu telefone celular, que normalmente

só anda desligado. “Vou atender pra que? Pro sujeito do outro lado dizer que é engano? O

meu telefone celular só serve para quando eu quiser ligar. Como eu nunca ligo para nada,

ele também não serve para nada. Por isso fica desligado”, brinca e já se liga para começar a

falar dos Silveira Franco, seus antepassados. “O nome Silveira Franco é importante mesmo,

não é? Foram fundadores de algumas coisas aqui na cidade. Eles tinham fazendas cheias de

escravos. Me contaram que quando terminou a escravidão os escravos do meu bisavô nem

foram embora, preferiram ficar na fazenda dele. Diziam que o sr. Estanislau da Silveira Franco,

esse meu bisavô, era um homem bom e ficaram morando com ele. Não, eu não conheci meu

bisavô. Sei que ele tinha várias propriedades. Depois foram vendendo, vendendo, acabaram

com quase tudo. Também não me interessa saber. Pra quê? O pequeno pedaço de terra que

tenho hoje vem da herança de minha mãe”, conta Dito. Ele também não conheceu o avô,

que morreu cedo, de pneumonia. “Naquela época pneumonia matava. Já meu pai morreu

com 72 anos, com arteroesclerose. Acho que o meu bisavô era riquíssimo mesmo, tinha um

montão de propriedades em volta da cidade. Sítios com 10, 20 alqueires. E também tinha

uma porção de casas ao lado da igreja matriz e ao redor do Museu. Quase tudo ali era dele.

Até aquele miolo onde fica o comércio, as Casas Pernambucanas. Não me pergunte porquê

eu não sei onde foi parar tudo isso. O que sobrou para o meu pai foram 18 alqueires de terra

lá pelos lados da Usina”, espeta.

Das cabras no caminhoCom seu jeitão descontraído e despojado Benedito conta que o nome de Tomé da Silveira

Franco, seu tio-avô, aparece na galeria de personalidades ilustres da cidade exposta no prédio

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da Prefeitura. “Tomé da Silveira Franco era tio do meu pai e é considerado um dos benfeito-

res de Atibaia. A água que a cidade bebia vinha da propriedade dele lá na serra. Ele doava.

Importante, não? Parece que ele foi um político atuante por aí”, conta o despojado Dito.

Tudo muito bacana, mas Dito gosta mesmo é de um outro Tomé da Silveira Franco, um tio,

irmão de seu pai. “Esse não era rico, não era político, ao contrário, era uma pessoa simples.

Foi operário na fábrica de tecidos, mas era estimadíssimo na cidade. Todo mundo gostava

dele. Ele deixou a cidade foi para Jundiaí e abriu uma quitanda. Seis meses depois fui visitá-

lo e descobri que ele tinha se tornado a pessoa mais querida da região onde morava. Era um

sujeito grandão como eu, alegre, conversador, “tirador de sarro” também, gozador da vida”.

Do medo do soldadoDito nasceu e viveu no sítio do pai lá pelos lados da Usina e só veio para a cidade aos 22

anos. “Como já falei, naquele tempo não tinha estrada e nem caminho para chegar lá no sí-

tio, era tudo picada, ou era o fim da picada”, brinca. Estrada ou caminho mais ou menos só a

Estrada dos Pires, onde se criava muitas cabras. “A gente tinha que encarar 22 quilômetros do

sitio até a cidade. E quem não tinha cavalo vinha a pé. Claro que eu vinha a pé, né...”, brinca.

Apesar de ter saudade de muitas coisas, Dito reconhece que a vida no sítio não era um mar

de rosas. “Acho que faltou um pouco de tudo. Por exemplo, eu nunca fui à escola. Meu pai

queria me mandar aqui pra cidade para estudar, mas eu me apavorava só de pensar. Criado

no mato tinha medo que me pelava de soldado. Verdade. É que minha avó morava em frente

à cadeia, ali onde hoje é o Museu. Eu sempre ia na casa dela. O diabo é que, por ser cadeia e

fórum, sempre tinha soldados ali por perto. Eu, criança, tinha medo deles. Medo à toa, claro,

nunca me fizeram mal, acho que nem desconfiavam da minha existência. Mas eu tinha medo

dos fardados. Tinha um tal de Zelão e um tal de Bezerra, que eram soldados e me assustavam.

Repito, nunca me fizeram nada, nem me olhavam, mas eu tinha pavor deles...”. Fora o medo da

polícia, no resumo da ópera Benedito aprendeu a ler e escrever com sua mãe. “E depois aprendi

a fazer contas com meu pai, que era professor. E quer saber? Eu nunca erro na matemática.

Descobri um jeito de fazer contas, criei a minha própria matemática e ninguém nunca me

passou a perna. Dois e dois são quatro e não preciso dessas maquininhas...”, brinca.

Da vida no sítioAinda falando de soldados, Dito lembra que o pai do Lúcio, um rapaz que trabalha com

ele há 35 anos na sua Lavanderia Brasil (que fica na rua José Alvim, 30, no centro da cidade

e que é a melhor lavanderia da cidade, o comercial fica por conta do repórter...), o pai do

Lúcio, dizia-se era carcereiro. “Eu, mais dois irmãos e duas irmãs sempre moramos no sítio.

Comecei a trabalhar com 8 anos de idade e fiz de tudo, carpi, plantei, colhi, tirei leite... Nunca

fui vagabundo. Acordava de madrugada trabalhava até às 8, 9 horas da noite”. A família vivia

da renda do sítio. Se é que o sítio rendesse alguma coisa naquela época. De qualquer forma

tinha plantação, galinha, porco. “A gente só não tinha dinheiro...”, brincadeira séria do Dito,

pois a vida da roça é dureza... “O pessoal tem fartura de tudo, mas nunca tem dinheiro. Todo

mundo trabalhava o ano inteiro e terminava com as mãos vazias. Sem dinheiro. A gente ia

comprando fiado no armazém. Quando chegava o fim do ano, ou quando se vendia a produ-

ção ou vendia uma criação, ia ao armazém e acertava as contas. Geralmente pagando muito

mais caro. Quase sempre a gente saía devendo”.

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“Bar da Dona Maria à venda – Montado, ótima freguesia”. Este anúncio que vem

sendo publicado no jornal Atibaia Hoje tem causado enorme preocupação

junto aos apreciadores daquele belo torresminho frito na hora, daqueles

bolinhos de bacalhau angelicais, daqueles frangos a passarinho, aquelas

porções de batatas, que, fritas junto com os torresmos ou com os franguinhos levam aos de-

lírios da gula. O que será dessa gente que adora tudo isso, o que será de todas essas delícias

sempre disponíveis naquele que vem sendo considerado, por muitos, como o melhor “happy-

hour” da cidade se Dona Maria realmente vender o seu bar? O que será desses momentos tão

saborosos, regados a cervejas tão geladas nos finais de tarde tão bucólicos da pacata Atibaia?

Para quem não sabe, se é que alguém importante desta cidade ainda não saiba, o Bar da Dona

Maria fica na rua Sebastião de Morais, no Alvinópolis. E é freqüentando fundamentalmente

pelos considerados VIPs da cidade. VIPs, todo mundo sabe, as Very Important People, como

diziam outrora as grandes colunas sociais dos jornais mais importantes. Pois essa gente está

fazendo figa, mandingas e até promessas para quase todos os para que Dona Maria não consiga

vender o bar. “Mas não vai adiantar muito não, meu filho; estou cansada e decidida. Como

diria meu pai, já lambi muito selo e já corri muito atrás, está na hora de parar”, revela Dona

Maria, desanimando a vontade de seus alucinados fregueses. “E não adianta nem rogar praga,

vou vender mesmo...”, confessa entre risos. Será?

Um bonecão de carnavalDona Maria do Bar é tão querida e por tanta gente, que até vai virar personagem no Carnaval

da cidade. Isso, claro, na hipótese de Atibaia fazer carnaval nestes anos todos que as chuvas

vêm se transformando em tragédias. O pessoal que mora no pedaço próximo de onde fica o

seu bar se identifica tanto com ela que está pronto para promover essa homenagem. “Vamos

Maria, a dona do bar,que virou “Bonecão” no

carnaval da cidade

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fazer o “Bonecão” da Dona Maria”, revela Vadenize Romano Alvarenga, que todo mundo co-

nhece como “Ni”. Ela é vizinha do Bar da Dona Maria. “Já faz um tempo que a nossa família,

a família Alvarenga tem um Bloco Carnavalesco chamado de “A Turma do Funil”. São mais de

setenta pessoas e todos vão sair vestindo uma camiseta alusiva à homenagem”, conta a “Ni”. O

“Bonecão” será uma caricatura de Dona Maria, com seu tradicional avental e o chapeuzinho

com uma florzinha que ela sempre usa. O personagem vai ser apresentado com uma travessa

de torresminhos na mão. Essa figura do “Bonecão” vai ser usada também como logotipo da

camiseta do pessoal do Bloco Turma do Funil. “Eu adoro essa família. Faz uns anos eles vie-

ram de Bragança para cá e nós nos identificamos muito”, revela Dona Maria que já tem uma

longa história de vida aqui em Atibaia. “Na verdade eu nasci em um sítio em Mairiporã. Vim

para cá no ano em que morreu o presidente Kennedy, acho que foi em 1963. Ao todo somos 10

irmãos. E o meu nome não tem nada de Maria, pois fui registrada como Methuzala Siqueira

Cardoso. Estranho, né? É nome bíblico. Meu pai era muito ligado à Congregação Cristã. Ele

chegou a ser vereador em Mairiporã.” Dona Maria conta que, criança ainda trabalhava dia

e noite na olaria de seu pai ao lado de seus irmãos. “Meu pai era bem de vida. Tinha olaria,

tinha armazém, tinha bar, tinha vários caminhões”, lembra.

A cozinheira que não sabia cozinharNos embalos da vida Dona Maria se casou, mas o casamento não durou quase nada. “Não

sou de conviver muito tempo com as pessoas debaixo do mesmo teto. Briguei com o meu ex-

marido e tentei voltar pra casa, só que meu pai não aceitou. Ele disse secamente: “Filha minha

depois que casa não volta mais pra casa. Foi uma decepção muito grande. Entrei na primeira

cabeleireira que encontrei e cortei o meu cabelo bem curtinho, contrariando a vontade dele.

Eu tinha um cabelão que ia até para baixo da cintura. Me vinguei. “E foi então que vim para

Atibaia”. Claro que a vida da Dona Maria virou pelo avesso. “O primeiro emprego que tive aqui

na cidade foi de cozinheira. Justo eu, que não sabia nem botar arroz no fogo para cozinhar.

Com a ajuda da minha patroa me tornei ótima cozinheira. Aí fui trabalhando em várias casas

de família, até que fui ajudar na Lanchonete do Noel, que ficava na Lucas, lembra? Ficava em

frente à Skina da Picanha e era bem famosa. Fiquei lá até que o Noel vendeu a casa. Aprendi a

fazer lanches e virei chapeira. Depois fui para o “Beco do Galeto”, do “seo” Henrique, que era

angolano, lembra dele? O lugar era famoso, também lá na Lucas. Aprendi muito com o “seo”

Henrique. Ah! nesse tempo eu já tinha casado de novo e me separado mais uma vez. Tive um

filho, o Adilson, que é a minha paixão”, conta. Quando alguém diz brincando que ela “gosta

de separar”, Dona Maria revela: “Repito: viver junto um ano, debaixo do mesmo teto, para

mim já é mais do que suficiente. Não tenho muita paciência não. Eu gosto das pessoas, mas

detesto dividir os meus lugares por muito tempo...”, esclarece, às gargalhadas. Dona Maria

trabalhou oito anos no “Beco do Galeto”, até que cismou e pediu a conta. “Eu tinha seiscentos

reais no bolso e nada para fazer. “Resolvi montar um negócio pra mim, um barzinho muito

mixuruquinha, muito ruinzinho, uma porcaria mesmo”, conta.

A cerveja erradaDizem que o que começa mal termina mal. “Por burrice minha, quando abri o boteco pe-

guei o dinheiro que tinha e comprei tudinho em cerveja. Só que eu comprei Kaiser, a cerveja

errada. Não tenho nada contra a Kaiser, claro, mas não é todo mundo que gosta dela. Foi um

custo vender o meu estoque e recuperar o dinheiro investido. Fui sobrevivendo durante um

ano e meio, mais ou menos. Sabe quem me deu força desde quando eu abri o meu primeiro

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barzinho? O Miguel dos Automóveis, conhece? Ele não bebe nada, nunca bebeu nada, mas

sempre vinha no meu bar e trazia tudo quanto é amigo. Me ajudou muito. Por sorte este

imóvel onde estou hoje, na Sebastião de Moraes desocupou e o sr. Manoel, que é o dono,

topou alugar pra mim no ano de 2001. Vim para cá e de novo o Miguel dos Automóveis foi

o primeiro a entrar aqui para me desejar boa sorte. Ele nunca deixou de freqüentar o meu

bar. Só a presença dele dá o maior prestígio para o lugar, né? As pessoas passam e vêem o

Miguel e os amigos importantes dele no meu estabelecimento e pensam: “Pô, o bar aí é da

hora”. Isso é importante, mostra que o bar é bem freqüentado...”, orgulha-se. Só que, para

variar, no começo desse bar Dona Maria também não tinha dinheiro para comprar nada.

“Nem Kaiser eu podia comprar...”, lembra-se. “Foi quando recebi a ajuda do sr. José Garcia,

um senhor, que trabalhava com táxi aqui na pracinha e sempre vinha no bar para tomar uma

dosinha no fim do dia. Um dia ele me viu triste e perguntou: “Que é que foi, dona Maria?”Eu

disse: “não tenho nem 50 reais para comprar cerveja. O sr. não poderia me emprestar esses

50 reais?” Ele falou: “Pra você eu empresto cem reais. Espere um pouco que eu vou em casa

buscar o dinheiro...”. Fiquei pensando: imagine só que esse homem vai voltar com cem reais

para me emprestar... Pois ele voltou. Me deu o dinheiro e disse: você me paga daqui a 30 dias”.

“Comprei duas caixas de cerveja e foi aí que tudo começou”, relembra emocionada.

Mais encontros e desencontrosDona Maria ainda voltaria a se meter em novas confusões quando conheceu uma pessoa

com quem passou “uns par de anos junto...”, como ela mesma diz. “O desgraçado bebia demais.

Pior: usava drogas. Foi um Deus nos acuda. Tive que arrumar advogado e pra me livrar dele

dei um carro, dei dinheiro, fiquei cheia de dívidas. Eu era obrigada a fazer tudo sozinha, não

podia pagar ninguém para me ajudar aqui no bar. Os próprios fregueses é que ajudavam, se

serviam, arrumavam as mesas. Durante um bom tempo foi assim que aconteceu. Hoje eu me

orgulho em dizer que o bar é freqüentado pelas pessoas mais importantes da cidade. Graças

a Deus e aos amigos que eu tenho”. Dona Maria não revela a grande atração da casa. “Aqui

eu vendo de tudo. E bastante. O pessoal fala muito do torresminho, mas tem o bolinho de

bacalhau, o croquete, frango a passarinho, os peixes e os salgadinhos em geral. Nos finais

de semana eu faço o pastel de carne seca. O pessoal devora”. Como se disse, a “freguesia”

de Dona Maria é composta pela chamada “elite” da cidade. “Eu fico admirada quando vejo

essa gente tão importante comendo e se divertindo aqui no meu bar. E o bacana é que meu

nome sai toda hora no jornal e as pessoas ficam falando... De uns três anos para cá não te-

nho do que reclamar. Ah!, muito importante: faço questão de dizer que agora moro sozinha.

Gato escaldado tem medo de água fria, né?”, ri Dona Maria, que hoje é famosa na cidade,

mas não esquece seus tempos de menina de roça em Mairiporã, batendo tijolo e carregando

caminhões.

Antes que ela vendaSó para você saber, caríssimo leitor, o Bar da Dona Maria abre às 9/10 horas da manhã.

Serve porções e salgadinhos e os preços não são tão caros. O movimento fica maior acontece

na happy hour. O casal “Zé” e “Paulinha” forma a “comissão de frente” do bar. Dona Maria é

quem prepara tudo o que serve em seu bar, os bolinhos de bacalhau, os torresmos, os cro-

quetes. “O meu torresmo não é daqueles que vêm que “é so gordura”. Não, eu sirvo a panceta,

aquela parte que tem muita carne. E frito na fritadeira que é para ficar bem sequinho, uma

técnica muito especial. Dizem que é o melhor torresmo da cidade. E eu acho que é mesmo”,

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orgulha-se. O bolinho de bacalhau é a outra grande atração. Se o torresmo vem em porções,

os bolinhos são vendidos um a um. O frango à passarinho é servido com batatas fritas. “E o

meu frango passarinho é coxa e sobre coxa só. Não tem com aquelas outras partes cheias de

osso. Outra coisa, eu frito as batatas junto com o torresmo, ou com o frango e elas ganham

um sabor todo especial”, revela. O bar fica cheio de gente. E às vezes a comilança vai até 11 da

noite. Como se disse, seus freqüentadores habituais já mandaram rezar missa, já encomenda-

ram macumba e outros procedimentos legais ou ilegais tentando fazer com que Dona Maria

não consiga vender o bar. Sendo assim a história tem que terminar com a palavra Amém, que

quer dizer exatamente “Assim seja”.

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Edgard de Oliveira Barros

Finalmente chegaram. Um trazia uma maleta do tipo OO7 e o outro uma escada. Um

era bem jovem, uns dezoito anos, o outro, mais ou menos jovem também, entre 35

e 40 anos. Chegaram para atender um chamado técnico. Terminada uma pequena

reforma na casa, constatou-se a bobagem feita: a televisão não dava nem sinal do

satélite. Os dois eram a resposta ao chamado da assistência técnica. Diante do aparelho su-

postamente “doente”, curioso como qualquer vidiota, que não fica sem a televisão ousei per-

guntar ao mais velho: “Será que é grave?”, pergunta confessadamente mais do que imbecil. O

mais velho, supostamente o “técnico”, limitou-se a responder: “Não sei”. Enquanto isso o mais

jovem, que carregava a tal maleta 007, ligava e desligava fios do aparelho sintonizador. Parecia

estranho mas o mais velho só olhava o jovem, quase garoto, fuçando aqui e ali. Confesso que

estava ansioso. Enquanto o mais jovem cutucava os fios, insisti e perguntei, ao mais velho: “E?”

Respondeu: “Não sei”. Apontou para o garoto e disse: “Quem entende é ele...”.

Bela imagemPensei que o sujeito estava mangando de mim. O tempo passava, o garoto fuçava, o mais

velho olhava e a imagem não voltava. Não resisti e mandei ver o óbvio: “Nada?”. De novo

respondeu: “Quem entende é ele...”, apontando para o garoto. Foi quando eu não agüentei e

explodi: “Esperem aí” – disse - “Quem é o técnico aqui?” O mais velho apontou para o mais

novo e disse: “Ele!” E eu: “Esse garoto aí?” O outro respondeu: “Sim!” O garoto estava com

um pequeno alicate na mão, tinha apertado uma presilha que prendia o cabo que vinha lá do

telhado e, com o sintonizador nas mãos, procurava canais e a tão ansiada imagem na televi-

são. E eis que Pimba! A imagem voltou na tela. E muito melhor que antes. Olhei firme para

o garoto: “Você é o técnico?” Tímido, respondeu: “Sou.” Apontei para o outro e perguntei: “E

ele?”. “Ele é meu pai”, respondeu o garoto. Meu queixo caiu. O filho ensinando o pai, que era

A curiosa história do pai que ficou todo orgulhoso

porque aprendeu uma profissão com o filho

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Edgard de Oliveira Barros

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um simples auxiliar do filho. Os dois sorriram diante da minha surpresa.

Conhecendo o EgasÉ, foi exatamente assim que eu conheci Egas Teodoro Bueno, o garoto de 18 anos, filho de

Adriano Aparecido Silva, seu auxiliar, que ele chama, gosta, trata e respeita como pai. A mãe

do Egas é Eliana Teodoro de Oliveira e ele tem um irmão, Egon Henrique Teodoro Bueno e

uma irmã, Ellen Teodoro da Silva. Egas e Adriano são funcionários terceirizados da empresa

Brisa, representante da Sky para Atibaia e região. Instalam antenas, passam cabos, calibram,

implantam o sistema Sky de recepção de televisão via satélite e também, quando requisitados,

dão suporte técnico e atendimento aos clientes. E fazem muito bem, diga-se de passagem.

Não tem sábado, domingo ou feriado. “As pessoas chamam a empresa (no caso a Brisa), e a

gente procura atender o mais rápido possível. Menos de 24 horas depois da chamada”, contava

Egas, todo orgulhoso, depois de ter concluído o seu trabalho. “O sr. quer testar?” Eu não testo

nada. Ana Maria, minha mulher, que entende mais dessas coisas testou e disse que estava

tudo bem. “A imagem até melhorou”, sentenciou. Pensei em dar uma gorjeta para a dupla,

já que o atendimento da Brisa era gratuito, em nome da Sky. Mas parei: essa dupla dá é uma

bela história de vida. Pois esta é a história deles.

Fugindo da escola“Eu tinha 16 anos, era muito bagunceiro. Ia mal na escola, não me interessava por estudar

e resolvi procurar serviço. Meu pai brigou comigo, mas eu estava decidido. Queria ganhar

dinheiro para comprar minhas coisas, não gostava de viver à custa dos meus pais”, confessou,

todo poderoso. E foi à luta. Paulo, seu tio, que já trabalhava no setor de assistência técnica da

Brisa precisava de um auxiliar, visto que seu antigo funcionário tinha viajado. Egas aceitou o

convite e começou. “Eu disse que não sabia fazer nada, ele foi me ensinando. No começo é

ruim, a gente sofre um pouco, passar cabo, subir nos telhados, entrar nas lajes, passar fios,

tomadas, muitas conexões... Tem que ser muito responsável porque a gente tem que entrar

na casa dos clientes e tomar cuidado com tudo.” Egas foi aprendendo e passou dois anos fa-

zendo tudo. “Fiquei carregando escadas, descendo cabos, um monte de tranqueira. Às vezes

as coisas enroscam, o serviço fica difícil. Quando as casas são mais antigas a gente tem até

que limpar a tubulação. Mas enfim, tudo deu certo.”

Um começo difícilEgas faz questão de dizer que fez muita bobagem durante o aprendizado. Por sorte o tio

sempre compreendia. Com o tempo o garoto se aprimorou, e, bem precoce, freqüentou cursos

na Sky e na Brisa até se sentir um “técnico” no assunto. “Aí o dono da Brisa me perguntou se

eu queria ser técnico. Nem vacilei, agradeci logo de cara, juntei uma graninha, saí, comprei

ferramentas e fui à luta.” O melhor da festa foi quando ele precisou arrumar um auxiliar.

Isso porque uma “equipe” é composta por duas pessoas: o técnico e seu auxiliar. “Foi uma

surpresa, o Egas chegou para mim e perguntou: “ô pai, vamos trabalhar juntos? Quer ser

meu auxiliar?” Topei na hora”, conta Adriano, com os olhos mareados. Adriano mora com

toda a sua família no Clube da Montanha, bairro do Portão. “Nasci e sempre vivi lá”, revela.

Já mocinho foi contratado como caseiro de uma chácara pertencente a uma família amiga.

“Casei, fui ficando por lá. Na verdade eu aprendi o ofício de pedreiro e sempre trabalhei em

construção, morando e cuidando da chácara. Achei maravilhoso quando o Egas me convidou

e a gente formou uma equipe”, conta orgulhoso. Tem dias que a “equipe” realiza cinco ou seis

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“serviços”. E divide as atividades. “Às vezes eu subo no telhado, instalo a antena, passo os

cabos. Às vezes meu pai é quem faz essa parte”, conta Egas.

Melhorando de vidaO garoto lembra que ganhava uns 500 reais por mês quando era auxiliar. “Mas sempre

tinha as gorjetas dos clientes. Eu achava que o “técnico” deveria ficar com uma parte maior

das gorjetas, mas o meu tio “exagerava” e ficava com “quase” tudo, reclama, brincando. “A

responsabilidade do técnico é bem maior. Só que minha gorjeta era bem menor; meu tio ia

com os bolsos cheios de grana pra casa...”. Agora, como técnico, Egas ganha muito mais do

que muito adulto que trabalha em um bom emprego na cidade. Humilde diz que só precisou

ter força de vontade, se dedicar muito a partir do momento em que encontrou esse serviço

bem legal para trabalhar. Até já deu entrada para comprar uma moto e fica muito feliz em

dividir (mais ou menos...) as gorjetas com seu pai, que é o seu auxiliar. Sempre trabalhador,

Adriano, o pai, já tinha comprado terreno e construído uma casa que lhe rende algum di-

nheiro como aluguel. Além de auxiliar o filho, mantém sua equipe de pedreiros trabalhando

em obras que ele pegou. “Minha vida melhorou muito graças ao meu filho”, orgulha-se. Seu

sonho agora é imitar o Egas: continuar trabalhando na Brisa, fazer cursos de aprimoramento

técnico e também montar sua equipe. Ele até já sabe quem será sua provável e futura auxiliar,

a esposa, Eliana, claro...

O engenheiro EgasEgas já prometeu para o pai e para ele mesmo que vai voltar a estudar. “Vou prestar o

Enceja eliminar matérias e concluir o curso colegial. Já criei juízo, já sei que tudo depende

do estudo”, diz. “Quero fazer engenharia mecânica ou cursos de informática. Um dia vou

casar e quero dar uma boa vida para minha família”. O empolgado Egas namora “firme” com

a Crislane. Ele não se cansa de elogiar a empresa onde trabalha. “O pessoal lá é gente mui-

to boa, muito responsável. Já estão no mercado há mais de 20 anos, instalando antenas e

operando com a Sky. O sr. solicitou o serviço e em menos de 24 horas a gente está aqui com

tudo pronto, viu? E olhe que hoje é feriado”, alegrava-se Egas. “O fato mais engraçado que já

me aconteceu? Foi o dia em que meu tio ficou entalado no telhado. Ele subiu para colocar

uma antena, escorregou e ficou entalado. Era meio gordinho. A gente levou susto, mas no

fim todo mundo riu.” A grande bobagem que fez? “Já fiz tantas... A pior foi quando cheguei

à casa de um cliente para fazer uma instalação e ele estava trabalhando, escrevendo num

computador. Disse que era um negócio importante. O computador ficava bem ao lado da

televisão. O cliente começou a escrever mais depressa para ter tempo de atender a gente. Eu

puxei a tomada e desliguei a televisão, só que o computador estava ligado na mesma tomada.

O cliente ficou furioso. Gritou: “Que é que você fez?” Nossa, o cara queria me matar. Depois

ficou mais calmo. Essa foi minha maior bobagem. Quando terminei o trabalho, ficou tudo

direitinho o cliente sorriu feliz, serviu café e até deu uma caixinha...”. Egas e seu pai saíram

sorrindo de minha casa. Até porque a Ana Maria lhes deu uma merecida gorjeta. Afinal, o

serviço ficou bom e a história deles é ótima...

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Edgard de Oliveira Barros

Depois do sapato a bolsa é a maior paixão das mulheres, garantem os que sabem

das coisas. Esses mesmos especialistas asseguram que algumas dessas bolsas mais

procuradas do mundo, à venda nas grandes boutiques de Paris, Tóquio, Nova York,

Londres e tal, podem ser encontradas, admiradas e compradas aqui mesmo, em

Atibaia. Isso mesmo, essas bolsas tão badaladas e afamadas são produzidas logo ali, no Jardim

Imperial. Surpreso? Pois hoje você vai conhecer bem de perto a história da professora que já

tinha feito história pelo seu trabalho junto a milhares de crianças e adolescentes da cidade e

acabou ganhando fama mundial graças à verdadeira arte que desenvolveu criando bolsas e peças

artesanais que o mundo inteiro admira. Evani Ribeiro Felippe, 69 anos é casada com o também

professor Hermes Felippe, 72 anos, mãe de Fabiano Felippe e de Ana Paula Felippe, sogra de

Paulo França e avó de três netos. Apesar de não ter nascido aqui se sente atibaiense de corpo e

alma. “Eu e meu marido viemos transferidos para Atibaia há mais de 40 anos. Nos identificamos

tanto com a cidade, com a sua gente, que nunca mais saímos.” Se a fama da professora Evani

era municipal graças ao seu trabalho como professora de Educação Física, acabou se tornando

nacional e depois internacional quando deu asas à imaginação e passou a criar bolsas e um

mundo de peças artesanais que tiveram como origem as colchas de retalho. Isso mesmo, as

famosas e tão cobiçadas colchas de retalho que deram até música e desaguaram nas bolsas de

retalhos famosas no mundo inteiro.

Um hobby muito sério“Meu trabalho atual vem mesmo desse hobby de fazer emenda de tecidos, essas colchas

de retalho. Eu via aquelas senhoras fazendo esse trabalho com aquela paciência, emendando

pedaços e pedaços de sobras de tecidos e me entusiasmei com essa técnica milenar que vem

passando de geração a geração, o aproveitamento de qualquer material necessário à subsistência”,

Do Jardim Imperial direto para o maravilhoso

mundo da moda em Paris, Tóquio e adjacências...

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conta. Encantada, Evani passou a pesquisar profundamente o assunto. “Em um estágio pri-

mitivo o homem aprendeu a reaproveitar as sobras. Juntava pedaços de couro de animais para

se cobrir, transformando tudo aquilo em alguma coisa aconchegante. As colchas de retalhos

vêm da emenda de tecidos, das sobras. Sobrou, emenda-se, cria-se alguma coisa útil. Foi bem

assim”, revela a professora. “Nos tempos imperiais as roupas já gastas dos reis eram rasgadas e

jogadas fora. Os súditos pegavam aqueles trapos, aqueles pedacinhos, emendavam e diziam

que estavam vestindo roupas reais. Daquelas sobras resultava uma beleza grandiosa para eles”,

conta Evani. Esse costume ganhou um colorido especial nos Estados Unidos durante a guerra

de Secessão. “A população ficou ilhada, sem comunicação com o resto do mundo e precisava de

roupas, de vestimentas. Foi assim que surgiu a figura da mulher trabalhando e transformando

as sobras de panos em uma coisa útil. Elas começaram a usar seu tempo para emendar sobras e

criar coisas bonitas, transformando tudo em peças que pudessem ser admiradas”. Esse trabalho

ganhou o nome de “patchwork”, que se traduz como emenda de tecidos, explica a professora.

“De alguma maneira os norte-americanos sistematizaram ou organizaram essa técnica milenar.

Deram-lhe novas cores, novo status, digamos assim. Quando esse trabalho chegou ao Japão, os

japoneses perfeccionistas como sempre, adaptaram essa técnica ao seu feitio. Desenvolvendo

um patchwork com muito mais qualidade e com uma técnica invejável. Em pouco tempo o

Japão se transformou em um grande pólo de patchwork no mundo”, explica.

O patchwork por aqui“Tudo isso é muito recente ainda no Brasil. O patchwork chegou bem devagar por aqui.

Vinte anos atrás ninguém sabia o que era patchwork. Sim, eu posso concordar que a colcha de

retalhos é um exemplo típico de patchwork. As nossas avós faziam isso com agulhas nas mãos,

emendando tecidos que ficaram velhos ou emendando pedaços de tecidos que sobraram das

roupas, das camisas, das calças”, narra a professora, dizendo que o grande charme do patchwork

é o aproveitamento, a reciclagem. “O patchwork puro não é ir à loja comprar vários tipos de

tecidos para depois cortar e emendar; patchwork puro é a sobra, o aproveitamento. O Brasil

se encantou com essa técnica. As mulheres enlouqueceram no mundo inteiro transformando

os seus caminhos em verdadeiras obras de arte.” Os primeiros objetos de patchwork feitos pela

professora Evani foram almofadas e panos de prato. “Os amigos gostaram e começaram a se

interessar. Diziam: “...Faz que isso vende; faz aquilo que vende...” Fui fazendo. E fui vendendo.

As encomendas cresciam e eu fui chamando uma, depois outra costureira para me ajudar.

Fazia, fazia e sempre faltava. Tudo na garagem da minha casa. Um dia meu marido mostrou

um trabalho meu para um supermercado de luxo lá em São Paulo. Fez o maior sucesso e eu

passei a fazer embalagens para presentes de fim de ano. E o meu trabalho começou a ser vis-

to, até chegar ao pessoal da Editora Abril que gostou demais. Então desenvolvemos o projeto

“Tempo de Fazer”, em que a gente ensinava as técnicas do patchwork. Acabei visitando quase

todo o país fazendo o que eu sempre gostei de fazer: ensinar. Ensinei patchwork para o povão.

Com uma régua bem simples e sobras de pano demonstrava e trabalhava emendas de tecidos

como a avó da gente fazia. O patchwork não precisa ser elite, é coisa do povo.” Toda orgulhosa e

com toda razão, Evani garante que poderia citar pelo menos umas vinte, trinta ou muito mais

pessoas que passaram a ganhar a vida, aqui em Atibaia fazendo patchwork como ela ensinou.

“É isso o que anima a minha vida, que me gratifica”, desabafa. “Eu me orgulho em arrancar

do nosso Jardim Imperial um artigo de patchwork que é feito aqui e vai para o Japão, para os

Estados Unidos, para a França, para o mundo, enfim”, exulta.

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A filha ao ladoA professora Evani não está sozinha em seu trabalho. Um dia sua filha Ana Paula foi obri-

gada a deixar de lado seus afazeres de pesquisadora da Editora Planeta para ajudar a mãe.

“De repente percebemos que todo mundo gostava tanto do trabalho dela, das coisas que ela

produzia e aquilo estava crescendo. Vimos que a sua obra já não cabia mais em casa, tanta

gente trabalhando, tanta agitação, uma loucura quase insuportável. A ponto de meu pai e

meu irmão dizerem um dia: “Ou nós saímos da casa ou ela sai!” No mesmo dia minha mãe

arrumou uma edícula no fundo de uma casinha, perto do supermercado Big, no centro da ci-

dade e foi embora. Ela vendia tudo o que fazia. Eu e meu marido acabamos vindo para Atibaia

para profissionalizar a empresa dela”, revela Ana Paula. Afinal o hobby passou a ser um bom

negócio. “Pior é que minha mãe teve que se submeter a uma cirurgia do coração e pediu a

nossa ajuda”. Ana Paula e o marido Paulo mergulharam no trabalho até transformar o processo

em uma empresa profissional. “Durante dois anos a gente produzia de tudo. Artigos de cama,

mesa, banho, coisas de bebê, quase tudo e acabamos participando de uma feira desse setor.

Percebemos trabalhar em tantos segmentos representaria um custo enorme. A idéia da bolsa

veio quando vendemos rapidamente todas as bolsas que tínhamos levado para a feira. Os outros

produtos também foram, mas bem mais devagar. Deu o estalo: bolsa é o que vende. O público

feminino adora comprar coisas pessoais. Procuramos então aprender tudo sobre o mercado da

moda. A primeira venda oficial foi para uma loja do exterior. Aconteceu sem querer, nós nos

associamos à ABIT, Associação Brasileira da Indústria de Tecidos e através dela participamos

de várias feiras, pois o governo brasileiro incentivava as empresas a exportarem. Claro que no

começo era tudo meio rudimentar, muito simples. Fomos convidados e participamos de feiras

e encontros de negócios com vários países, mantivemos contato com importantes empresas

internacionais, inclusive com a famosa El Palacio de Hierro, na cidade do México, que comprou

nada menos que mil peças. A gente teve que aprender tudo em matéria de comercialização,

de exportação, recorrendo aos vários órgãos de apoio às pequenas empresas, como Sebrae,

Ministério do Desenvolvimento, Banco do Brasil, freqüentei tudo quanto foi curso”, conta

Ana Paula, dizendo que o governo oferece uma grande variedade de informações para os

empresários. “É uma pena que nem todos aproveitem para se profissionalizar. Foi assim que

aprendemos a exportar e a fazer parte de um mundo seleto e maior de negócios. Começamos

a participar de feiras importantes não só aqui no Brasil como no exterior. Focamos nas bolsas

e bolsas e bolsas...”.

No outro lado do mundoAna Paula conta que as famosas bolsas apareceram na “Pret-a-Porter”, uma feira que vem se

realizando há mais de 60 anos e que só admite produtos e compradores selecionados. “Digam

o que disserem, Paris continua a capital da moda. Todo o mundo importante vai a Paris para

fazer compras. Foi lá que tivemos a sorte de vermos nossas bolsas fotografadas pela maior

revista de moda que circula no mundo só para os grandes compradores . Essa revista nos le-

vou ao mercado japonês. Isso aconteceu há três anos. Hoje exportamos para 12 países. Nosso

produto está nas melhores lojas e boutiques de Nova York, de Paris, de Tóquio, na Grécia,

na Dinamarca. E, claro, em todas as capitais brasileiras de Belém do Pará a Porto Alegre. Na

rua Augusta, nos Jardins, na Oscar Freire, em São Paulo e, numa homenagem especial que

a professora Evani gosta de fazer, na loja da 1001 Retalhos Patchwok, na Rua José Inácio, 153,

centro de Atibaia”, conclui Ana Paula. O Jardim Imperial está feliz.

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Afinal, ou para começo de conversa: o nome da padaria é Lege, Lége, Legê ou Legè?

Mais de cem anos depois a dúvida continua. Da mesma forma que a cada dia dos

últimos cem anos continuaram saindo do forno os pãezinhos famosos, gostosos, com

aquele insubstituível sabor “italo-franco-atibaiense”, que já vem com um pedido de

quero mais. Assim e assado, o pãozinho agrada a todo o mundo. E assim, a Lege, Lége, Legè ou

Legê, a padaria continua sendo uma das marcas mais famosas e registradas de Atibaia. “O nome

da padaria vem da família Legè e ela foi fundada há cento e dois anos pelo italiano Basílio Pedro

Legè. Ele gravou o nome na obra que construiu”, explica a Fábio Jorge, 42 anos, casado com Patrícia

Melilli Jorge, pai do Enzo (15 anos) e da Giovana (12 anos). Fábio Jorge é proprietário da Legè há

dez anos. “Sempre fui do comércio, sempre trabalhei com comida. Tive restaurantes e rotisseries

numa região importante em São Paulo, bem próximo ao Shopping Morumbi.” A ligação de Jorge

com Atibaia começou por causa da Patrícia. “A gente namora desde criança. Eu tinha 18 e ela 14

anos. Patrícia é filha do Caetano Melilli, que até recentemente era dono da Padaria da Mamma,

outra das tradições da cidade. Foi ele quem me incentivou a ficar com a Legè”, explica Jorge.

Da mão na massaComo se vê aqui se fala de gente que realmente coloca a mão na gostosa massa de pão. Caetano

Melilli, sogro de Jorge, foi o criador da sempre lembrada Padaria da Mamma. “Naquele tempo,

uns trinta/quarenta anos atrás, a Avenida Lucas Nogueira Garcez não era a beleza que é hoje.

Era uma região de terra pura. Foi o meu sogro quem construiu o prédio da “Mamma”. Ele de-

limitou até a área da calçada, pois por lá não existia essas coisas... Caetano foi importante na

valorização daquela região. Desde que eu comecei a namorar com a Patrícia vinha sempre para

Atibaia. O pai dela sempre me tratou como um filho. Como o Caetano era pai de duas meninas,

eu me tornei o “primeiro genro”...”, brinca Jorge. A Legè é mais que um negócio para ele. “É um

Hoje se fala do pão nossode cada um dos dias dos

últimos cento e dois anos de Atibaia

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verdadeiro santuário, um lugar sagrado pela história que tem. No começo a padaria ficava na

Praça da Matriz, onde hoje está a sorveteria do Valentim. Inclusive a Diva, esposa do Zé Luiz

Passador, é sobrinha-neta do sr. Pedro Basílio, fundador da padaria”, explica Jorge.

Um plenário da cidadeÉ fato sabido por todos que a Legè é um verdadeiro “plenário” da cidade, a ponto de ser reco-

nhecida como “Senadinho”. “Eu diria que a maioria - para não dizer todas as mais importantes

discussões políticas da cidade aconteceram por aqui. Aqui se discutiu e se escolheu candidatos

a todos os cargos do município. Aqui se debateu nomes de quem entrava ou quem saía deste ou

daquele posto. Tudo era decidido no cafezinho. Tem sido assim há um século e continua assim

até hoje”, conta Jorge, lembrando os mínimos detalhes das histórias que já viu. “Curiosamente

aqui tem hora certa de cada “tribo” da cidade se reunir. Tem a hora dos advogados; tem a hora

dos políticos e tem a hora dos médicos. Todos se concentram aqui. Os advogados vêm porque

a padaria fica praticamente ao lado da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil. Os políticos

aparecem porque a padaria fica praticamente em frente à Câmara e à Prefeitura. Os médicos

vêm porque a padaria fica a um quarteirão da Santa Casa. Tudo flui para cá e aqui se discute

de tudo: Política, Direito, Medicina e até futebol. Enfim, aqui se decide os destinos da cidade”,

confessa Jorge, que se sente honrado com essa preferência.

Vejo, ouço, sinto, mas não contoQuerendo ou não, ele assiste a tudo. “Vejo, porque não sou cego, ouço, porque não sou surdo.

No entanto, sou mudo, não falo nada. Minha função é apenas oferecer o “plenário”, justifica-se.

Querendo ou não, reconhece que às vezes fica sabendo das coisas antecipadamente. “Mas não

me julgo no direito de passar informações adiante”, responde ao ser perguntado sobre “a última

do dia...”. O fato é que Fábio ouviu muito nos seus dez anos de Legè. Diz que ficou sabendo

em primeira mão todas as mexidas políticas, todas as candidaturas lançadas nos últimos anos,

quem sairia candidato a prefeito ou a vereador. “Não posso falar dos tempos antigos, claro.

Fiquei sabendo, só por “ouvir dizer”, boa parte das histórias antigas que ainda circulam por

aí...”, confessa.

Do ambiente O ambiente da Legè é ilustrado por uma imensa foto que lembra os velhos tempos da pada-

ria. “O pessoal mais antigo fica sonhando e lembrando desse tempo. Falam dos pais, dos avós,

de gente que passou por aqui, personalidades da cidade. Gostosas lembranças que detalham a

história. Todo mundo fica viajando no tempo dessa foto da padaria que retoma o ano de 1947,

mostrando a carrocinha que era utilizada para entrega do pão e leite em toda a redondeza, afinal

a cidade não era tão grande assim”, conta Fábio. “Sabia que a Legé nasceu na Praça Claudino

Alves, no Largo da Matriz?”, pergunta ele e vai logo respondendo: “Pois é, ela só veio para cá

por causa de um abalo sísmico ocorrido em Atibaia. Mario Legè, filho do Basílio Pedro, que

tocava a padaria, na época, ficou assustado com um tremor de terra que aconteceu abalou o

município e decidiu: “Vamos sair daqui e ir para bem longe, porque o centro da cidade está

muito perigoso”. O “bem longe”, era uns dez ou quinze quarteirões de distância, onde está hoje

na avenida que, não por acaso se chama “da Saudade...”.

Mantendo a tradiçãoA casa que até hoje abriga a Legè servia como moradia para a família. “Eles fizeram uma

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adaptação e a padaria começou a funcionar. O pão era vendido na sala da casa. Eu procuro

manter ao máximo essa história, essa cultura. Sinto que a minha presença aqui é apenas para

dar continuidade à história. Os Legè depois passaram a padaria para a família Teixeira, que

tocou a padaria durante uns 35/40 anos. Eu comprei a padaria da família Teixeira, que tinha o

Toninho, o Zé Luiz e o Chico. Eles vinham mantendo a tradição da Legè. É certo também que

movimentaram bem esse lado político que a padaria sempre representou e chegaram mesmo a

participar da vida política da cidade. Inclusive um dos membros da família chegou a ser verea-

dor. É uma história que também é muito bonita e eu estou pesquisando. O fato é que a família

Teixeira se cansou e resolveu parar. Na verdade eles chegaram a pensar em fechar a padaria.

Eu me lembro que foi uma luta comprar o estabelecimento. Os Teixeira só aceitariam vender

se encontrassem alguém que realmente tocasse o negócio com a mesma paixão. Quando eu

me interessei, eles disseram que não me conheciam e só venderiam para o meu sogro se ele

tivesse algum interesse. Só comprei depois que o Caetano Melilli avalizou o negócio. Você nem

imagina o drama...”, revela Jorge.

Vem mais história por aí“Ainda tenho muitos planos para a padaria”, revela Fábio Jorge explicando as razões do su-

cesso da padaria: “Reconhecidamente o pão da Legè é diferenciado. É um tipo de pão caseiro,

um pão ítalo-franco-atibaiense, como dizem. A receita é tradicional, tem cem anos, e vem

sendo conservada ao longo dos anos. Tem até gente que não gosta, pois o nosso pão é um pão

com massa mais consistente. A diferença está na receita, no maquinário, no forno à lenha,

uma sequência de coisas. Evidentemente não temos a tiragem de pão de uma padaria grande.

Vendemos muito bem, mas nos preocupamos mais com a qualidade do que a quantidade. Antes

vendíamos apenas o pão, depois começamos a oferecer atrações como café da manhã, etc., isso

tudo sem tirar a essência da padaria. Continuamos sendo o “Senadinho” da cidade. Todos os

antigos prefeitos ainda freqüentam a casa e às vezes a gente vê dois, três ex-prefeitos sentados

tomando seu cafezinho. Os políticos continuam discutindo e projetando suas ações, enfim,

tudo continua igual”, sorri. Se já houve discussões mais forte e até confusões? “Claro que sim...

Digamos discussões mais fortes. Nunca se chegou às chamadas vias de fato... Faltou pouco,

mas não aconteceram... Muitas dessas encrencas até viraram notícia nos jornais da cidade. Mas

hoje está mais calmo”, sossega Fábio Jorge.

Um ponto de referênciaA Legè tem clientes em toda a cidade, gente que vem de longe em busca do seu pão. Virou refe-

rência até de localização. O horário de funcionamento vai das 6,30 até as 20 horas, todos os dias,

inclusive sábados. Aos domingos vai das 6,30 ao meio dia. Fábio e Patrícia estão lá todos os dias. Fora

da Legè a grande paixão de Fábio são os rallies. “Ah, é mesmo, eu corro há quase vinte anos. Vou para

me divertir. Levo meus filhos, minha esposa. Eu pratico o rally de velocidade, o chamado “trecho fe-

chado”. A gente anda o dia inteiro dividido em trechos. São 30/40 carros. Quem faz o melhor tempo

nos vários trechos ganha. A equipe é composta por um piloto e um navegador. O navegador faz o

levantamento do percurso, curva a curva e vai orientando. Eu pratico esse esporte desde os 18 anos. Já

fui vice-campeão paulista e até Campeão em 1988, disputando inclusive o brasileiro. O campeonato

tem seis provas por ano. Este ano já andei em Serra Negra, Lindóia, São Luiz do Paraitinga. Falta a

prova em Rio Claro”, explica. Mesmo conhecendo as últimas fofocas da cidade Fábio se fecha e esconde

todas as dicas. “Quem sai candidato, quem não sai, quem ganha, quem perde?”, pergunta o repórter.

Fábio disfarça, oferece um cafezinho, traz um delicioso pão com manteiga e foge da entrevista...

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Hipismo, ou equitação é a arte de transpor obstáculos sobre um cavalo. É um

esporte muito antigo que vem desde os jogos olímpicos, porém, as regras e com-

petições como as de hoje surgiram em 1883, nos Estados Unidos. O hipismo foi

incluído nos Jogos Olímpicos de Verão em 1912, em Estocolmo, na Suécia. Já se

viu que se trata de um esporte nobre. O cavaleiro se apresenta formalmente, muito bem vestido,

cheio de rococós, lembra? Anote aí e pode se orgulhar, pois são poucas as pessoas que sabem

disso: um dos seis maiores cavaleiros do Brasil, conhecido e reconhecido no seleto mundo do

hipismo é daqui, é de Atibaia.

Fernando e suas irmãsO nome do nosso personagem é Fernando José de Assis Costa, 32 anos, filho de Vicente Costa

Júnior e de dona Lilian de Assis Costa. Irmão de Vivian Assis Costa e Izadora Assis Costa e tio

de Lucas Alvim Costa Aranda. Fernando é o criador e proprietário da Hípica Morumbi, que

fica na marginal da rodovia D. Pedro. “Nos três últimos anos eu passei a figurar no ranking dos

cinco ou seis melhores cavaleiros do país. Meu desempenho foi muito bom, fiquei em segun-

do na seletiva do mundial que aconteceu no ano passado e fui bicampeão do grande prêmio

2008 e 2009 do “Agromen”, que é um dos cinco maiores concursos disputados no Brasil. Fui

até convocado pela seleção brasileira para compor a nossa equipe na Copa das Nações, a única

realizada na América do Sul e que aconteceu na Argentina. Ganhamos a medalha de ouro e

com isso derrubamos os Estados Unidos, que vinha ganhando essa medalha nos últimos cinco

anos seguidos. A Copa das Nações envolve só a disputa por equipes e esse resultado foi super

importante não só para nós, mas para o hipismo brasileiro”, desabafa.

Veja como o mundo foi girando nas patas dos cavalos de Fernando

José de Assis Costa

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Muita históriaFernando fez questão de paralisar seus treinos e atividades por quase uma tarde inteira para

falar sobre o hipismo, cavalos. Sobre sua vida, sua história, seus sonhos. Em longo depoimento

explicou a importância do esporte que pratica, sobre cavalos, sobre os hábitos europeus em

torno do hipismo, do valor que dão ao esporte. Falou também como o hipismo está crescendo

no Brasil, e da garotada de Atibaia que ainda vai fazer história nesse esporte. Falou também

de suas disputas, seus sonhos, sua luta, suas vitórias. E, acredite, nada foi fácil, pois ninguém

chega ao estrelato num mundo tão competitivo como o do hipismo, assim, impunemente.

O começo“Lembro que nós éramos pequenos, morávamos em São Paulo e vínhamos toda hora para

Atibaia. Eu e minhas irmãs, Vivian e Isadora ficávamos admirando aqueles cavalos bonitos

que víamos nos haras. Pedimos para o pai da gente e ele nos colocou numa escolinha de equi-

tação em São Paulo. Até os 18 anos eu montava no Clube Hípico de Santo Amaro.” Quando

terminou o colegial ele veio completar seus estudos em Bragança. “Já estava decidido a ser um

profissional do cavalo”, confessa. Formou-se em Direito, mas se considera apenas um bacharel.

Nem prestou o exame da OAB. “Na verdade eu e a minha irmã Vivian participávamos de com-

petições desde criança, eu com 16 anos e ela com 14 anos e a coisa começou a fluir. Ganhávamos

concursos e provas importantes, participávamos de campeonatos. Sempre gostei de bichos,

sempre amei montar e o que era prazer passou a ser profissão”, conta.

Tataraneto do Major“Minha família é daqui, claro, sou tataraneto do Major Alvim, conhece?”, brinca. Aos 18 anos

ele foi montar no haras Pancari, que pertencia ao irmão do seu amigo Doda, aquele cavaleiro

famoso, que acabou se casando com Athina Onassis, personalidade mundial. “Fui convidado

então a dar aulas aqui em Atibaia. Apesar de ser um início pequeno era o que eu queria: começar

a trabalhar por aqui. Quando me dei conta, o negócio, que era pequeno, cresceu demais.” Seus

alunos começaram a ganhar prêmios e a se destacar. “Entrei no comércio de cavalos e aí a coisa

disparou de vez. Fui obrigado a comprar uma hípica e estou aqui há oito anos. “E pronto, nada

mais, a história termina aqui...”, concluiria. Nada mais uma ova, Fernando, é preciso contar que

a Hípica Morumbi se transformou num sucesso nacional. E que Fernando também ganhou

fama nacional por ter chegado ao nível de cavaleiro com grandes resultados em competições

mundiais. Enquanto isso, seus alunos também passaram a obter grandes resultados. “Bem isso

é verdade”, coloca, com humildade. “E tem também o trabalho que venho executando com o

comércio de cavalos”, acrescenta.

Eu treino aqui em AtibaiaSim, nosso cavaleiro importa cavalos da Europa, compra e vende animais de pura linhagem.

“Eu fico muito contente, afinal tenho representado o Brasil em tradicionais competições inter-

nacionais com muito sucesso e, de alguma forma venho contribuindo para melhorar o nível do

plantel eqüino brasileiro. Veja, agora mesmo estou me preparando para disputar uma seletiva

para o Mundial. Fico feliz por estar em Atibaia, se bem que nunca tive apoio para nada, nem

nunca fui lembrado pela cidade”, diz. Claro que Fernando não consegue esconder uma ponta

de mágoa. “Incrível, não é? Sempre que sou entrevistado em importantes revistas nacionais e

internacionais, emissoras de televisão, e tal, faço questão de dizer que sou daqui. Falo isso na

Europa, falo isso para meus alunos do Brasil inteiro. Por sinal eles vêm para cá, seguidamente,

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vem praticar e assistir aulas saem gostando da cidade e, no entanto, como eu disse, nunca fui

lembrado por ninguém daqui. É justo isso?”, se pergunta. Fernando é o único cavaleiro de ponta

que treina no Brasil, mais especificamente em Atibaia. “Todos os outros cavaleiros treinam

na Europa, ou em grandes clubes. Não tenho técnico, faço tudo sozinho e nem sou lembrado.

Claro que eu gostaria que falassem de mim, que comemorassem os meus feitos, afinal aqui é

meu chão, minha cidade. Um dia as coisas haverão de mudar”, conforma-se.

Por que você não salta?Cheio de pompa e circunstância, o hipismo não pode ser considerado um esporte barato.

“Mas está se popularizando cada vez mais. Eu diria que hoje em dia uma boa camada da nossa

população poderia participar e praticar o hipismo. E nem precisa de muito para começar”,

explica. Coisa para se gastar entre 150 e 300 reais por mês praticando uma ou duas vezes por

semana. “Mais ou menos por esse valor a pessoa assiste aulas, aprende o básico para montar,

direcionar o animal, parar, dar os comandos para o cavalo trotar, galopar, saltar. O aluno vai

aprender as posições de equilíbrio, como o corpo se encaixa numa sela, como se encaixa no

cavalo, como você coordena, como você faz o animal virar. Enfim, essas são as noções básicas”,

sugere Fernando. Depois, claro, o aluno vai desenvolvendo as técnicas de salto. “Cada cavalo

tem sua personalidade, tem seu jeito”, alerta o cavaleiro. “As aulas vão indicar como se portar

em cima de um cavalo, os comandos que se dá para o animal. De qualquer forma é um processo

ou um gosto que dura o resto da vida. O hipismo é um esporte de uma longevidade muito

grande. Quanto mais velho você fica, melhor cavaleiro você se torna. Não tem um tempo de

parar no hipismo. Tem medalhistas olímpicos com 60, 65 anos. No hipismo você vai até onde

o seu corpo agüentar”, especula Fernando.

Esporte para o resto da vidaO cavaleiro Fernando ensina que as noções básicas, aquelas dicas para poder saltar, com-

petir, podem ser aprendidas em seis meses a partir do inicio do aprendizado. “E até existem

competições com um nível menor de exigências, competições menos importantes, claro, nas

quais o aluno pode começar a participar já com esses seis meses de treinamento.” Procurando

animar os indecisos, Fernando explica: “Claro que a pessoa vai precisar de cinco, seis, oito ou

mais anos para se tornar um profissional. E mais: quem gosta mesmo do hipismo continua

desenvolvendo cada vez mais o seu trabalho, seus treinamentos. A coisa vai pelo resto da vida.

Eu, por exemplo, já monto há uns 23, 24 anos e a cada dia aprendo uma coisa a mais.” Fazendo

um cálculo rápido, Fernando estima que, reunindo escolas, profissionais e praticantes em

geral, podem ser encontrados pelo menos entre 5 a 10 mil pessoas praticantes ou envolvidas

com o hipismo em todo o Brasil. “Claro que o número de participantes de São Paulo é o maior.

Como em tudo, São Paulo é o grande centro do hipismo brasileiro. Tem o maior número de

cavalos e de cavaleiros; o maior número de clubes, maior número de haras. Sem querer magoar

ninguém, o hipismo brasileiro está centralizado em São Paulo.”

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Não resta a menor dúvida, a noiva estava linda. A igreja toda ornamentada, aque-

las luzes, flores. Os convidados na maior estica, mas o que chamava a atenção

mesmo era o som, aquelas músicas encantadoras cantadas por aquela voz bo-

nita de tenor de ópera. Claro que não se tratava do Pavarotti, mas encantava. E

quem estava ali soltando o seu vozeirão era o Francisco de Campos, o “Tio Chiquinho”, como é

conhecido pela garotada da igreja lá do Jardim Imperial. Sempre acompanhado pelo tecladista

Joãozinho, seu parceiro fiel, Francisco dá mais vida às cerimônias que são tão importantes

na vida de tantos casais. Ele solta prazerosamente o seu vozeirão. Aos 65 anos, casado com

Clarice Pereira de Campos há 42 anos, é pai do Wylerson Tamberlini de Campos que lhe deu

dois netos. Francisco adora participar da vida da igreja, cantar, ajudar. “Cantei durante quase

onze anos no Bel Canto, um coral maravilhoso aqui da cidade, regido pela maestrina Magda

Cristina. Atualmente canto em casamentos nas Igrejas do Rosário, São João Batista, no Cristo

Rei, na Igreja de Caetetuba e na igreja Nossa Senhora Aparecida, no Jardim Imperial, que é a

minha paróquia. Claro que não canto em todos os casamentos. Nem teria fôlego para tanto”,

justifica.

As boas impressões de um impressorO Tenor e Baixo “Tio Chiquinho” nasceu em Ribeirão Preto. Criança foi morar no Tremembé,

Zona Norte de São Paulo onde passou infância e juventude. Trabalhou durante 25 anos na

gráfica da Editora Abril e se aposentou no cargo de supervisor da área de corte e dobra. Foi

quando veio para morar em Atibaia. “Minha primeira mulher morreu dez meses depois do

nosso casamento, logo que meu filho nasceu. Três anos e meio depois me casei com a Clarice,

que eu já conhecia muito tempo antes de namorar com minha primeira esposa. Éramos amigos

desde os tempos de juventude lá no bairro onde morávamos. Ficamos noivos e casamos”, conta.

Tem gente que vai assistir casamentos só para

ver o “Tio Chiquinho” cantar

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noivos é que escolhem. Claro que fica mais em conta contratarem um solista e um tecladis-

ta, como eu e o Joãozinho, do que um coral que envolve muito mais gente. Se bem que com

os corais as cerimônias ficam muito mais bonitas.” Ele e Joãozinho se apresentam onde são

chamados. “Estou ocupado todos os finais de semana e me sinto realizado. Outra coisa que

gosto de fazer é cantar nas missas de sábado e domingo aqui na minha paróquia, onde temos

um grupo de pessoas que se envolvem com o canto”. O fato é que “Tio Chiquinho” não mede

sacrifícios para ajudar, disponibilizando até o próprio carro no transporte de doações e até

de pessoas necessitadas.

O preço do canto“Claro está, e é muito justo que o preço cobrado pelos corais para se apresentarem nos

casamentos é bem mais elevado. Um coral custa em média 600 reais, enquanto que eu e o

Joãozinho cobramos 250 reais. A música é fundamental para que o casamento fique mais

bonito. Os noivos merecem. Já aconteceu muitas vezes de pessoas mais humildes e com

menos condições nos chamarem. Nós vamos. Às vezes Joãozinho “faz” o casamento sozi-

nho. A gente tem que atender a todos...” O roteiro é quase sempre o mesmo. “Nós cantamos

entre 4 e 6 músicas. Na entrada da noiva e na entrada da daminha. Cantamos a Ave Maria

na hora da benção das alianças. Geralmente a Ave Maria de Gounod, ou de Schubert, que

as pessoas gostam muito. E são lindas mesmo. Quer saber? Tem casos que às vezes a gente

nem cobra. Esse pessoal pobre e tal. A gente fala: este aqui é o nosso presente de casamento.”

“Tio Chiquinho” fica feliz com a revelação. Diz que não tem a ambição de ganhar dinheiro,

“de alguma maneira a gente está se realizando, e nos sentimos felizes por participar daquele

momento que é tão importante para as pessoas”.

Francisco canta desde jovem, no coral da paróquia de São Pedro, no Tremembé. “Sempre fui

ligado à igreja. Fui Congregado Mariano e estive várias vezes com D. Paulo Evaristo Arns que

naquele tempo ainda era bispo. Ele sempre ia na nossa paróquia. Inclusive me convidou várias

vezes para entrar para o seminário. Eu disse que gostava da igreja mas não tinha vocação.

Naquele tempo eu já fazia o que faço aqui, procurava ajudar, correr atrás das coisas, organizar

festas, enfim, colaborava ao máximo. Eu estava onde precisassem de mim.”

Sempre ajudandoA dedicação de “Tio Chiquinho” ao seu trabalho em prol da comunidade é quase total. Ele

participa de verdade das atividades da igreja do Jardim Imperial onde reside. “Eu passo boa

parte da minha vida por lá. E já trabalhei em quase todas as igrejas da cidade. Recebi o apelido

de “Tio Chiquinho” pelo tanto que me dediquei às aulas de catecismo para a garotada. Minha

esposa também está sempre comigo ajudando e participando da Pastoral Social. A gente sai

angariando e distribuindo donativos. Somos encarregados de visitar as famílias mais neces-

sitadas conferindo a sua real situação social. Trabalhamos desde o bairro das Cerejeiras até

as Chácaras Brasil.” Francisco conta que as pessoas mais necessitadas se inscrevem junto ao

pároco da igreja, o padre Luiz Tadeu e ele, ao lado da mulher Clarice, visitam as famílias para

constatar a veracidade das informações. “A gente consegue alimentação, roupas, calçados,

tudo para atender aos mais necessitados”, orgulha-se.

Dos coraisFrancisco não se cansa de elogiar a maestrina Magda Cristina, o Coral Bel Canto e os vários

corais de Atibaia. “Tem gente muito boa cantando na cidade, inclusive nos casamentos. Os

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fãs por aí...” Ele faz questão de enaltecer o trabalho que vem sendo realizado pela professora

Vilma Guzzi, regente do Coral Pró-Arte e de um coral infantil que é uma maravilha. “Tio

Chiquinho” diz que “o trabalho que dona Vilma realiza é fantástico”, com o que o repórter e

quem conhece concordam plenamente.

Um dueto no céuAo final Francisco revela que a maior bobagem que já fez na área musical aconteceu em

Bom Jesus dos Perdões. “Era uma missa de final de ano, se não me engano e eu iria cantar com

o Coral Bel Canto quando a regente Magda me pegou de supetão e disse: “Francisco você vai

cantar e fazer o solo da Canção dos Escravos, a conhecida ária “Va Pensiero”, da ópera Nabuco,

de Verdi. Eu conhecia a música de cór e salteado. Só que na hora me deu um branco, uma

tremedeira, uma tremenda dor de cabeça. Cheguei para a Magda e disse: “Não vou conseguir”.

Ela não acreditou. “O que é isso? Você já cantou essa música e foi muito bem. Vai em frente,

não vai acontecer nada”, respondeu ela. “O diabo é que aconteceu. Ia indo bem, até que o

branco voltou, a dor de cabeça, a tremedeira tomou conta de mim e eu apaguei. Literalmente

apaguei. Sorte que o coral me envolveu e tirou de letra. Foi a maior vergonha que eu passei na

vida.”. Claro que tudo passou. “Vivo bem, nunca pedi riqueza, só paz, muita paz. E, no fim,

uma morte sem dor”, revela. O que mais pode querer um coração como o do “Tio Chiquinho?”

Cantar. Quem sabe um dia ele chegue lá no céu e faça dupla com Pavarotti cantando o “Vá

Pensiero”. “Prometo não esquecer a letra. E, se tremer, vai ser só de emoção.”.

Do Pavarotti “Você é um tenor como o Pavarotti?”, brinca o repórter. Emocionado Francisco responde:

“Quem me dera. Não chego a tanto, claro. Sempre admirei o Pavarotti e nem poderia ser di-

ferente. Modéstia à parte eu busco fazer e faço bem feito”, sorri, orgulhoso. “Tio Chiquinho”

nunca se profissionalizou. “Nós até chegamos a montar uma bandinha aqui no bairro. A

gente cantava música popular na praça do Jardim Imperial, onde hoje está o terminal rodo-

viário. Cantávamos de graça para alegrar o pessoal.” Talvez até tenha faltado oportunidade

para que ele se profissionalizasse. “Esse pessoal que anda por aí à procura de novos talentos

não costuma ir às igrejas. Como eu só cantava em igrejas provavelmente ninguém nunca

soube da minha existência”, brinca. Sempre de bem com a vida entende que não teria como

encarar a vida de artista. “Nem me sentiria bem. Minha mulher é muito caseira, imagine eu

sair toda hora para cantar, fazer shows voltar de madrugada, levar essa vida maluca. Está

bom do jeito que está”.

Dos discosFrancisco já cantou árias de óperas quando estava no Coral Bel Canto, mas gosta mesmo é

das canções da velha guarda. De Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Pixinguinha, Roberto Luna

e tantos outros cantores famosos. “Tenho quase quinhentos discos em casa. Minha direção

é sempre no caminho da igreja. Alí é que eu me sinto bem. Faço por amor e sem ambição de

nada”. Bastante conhecido na cidade por causa de sua arte, sabe que tem muita gente que

vai assistir casamentos nas igrejas só para vê-lo cantando. “Não é mentira não. Eu me sinto

muito feliz e orgulhoso quando os casamentos terminam e as pessoas vêm me cumprimentar.

Quer coisa melhor que isso?” Sem disfarçar seu orgulho, deixa escapar: “sei que tenho muitos

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Se o seu carro velho vive lhe pregando peças e você precisa de uma peça que já nem

existe mais no mercado, peça para o Gordinho. Faz 28 anos que ele vem resolvendo

tudo quanto é problema de peça que prega peça e que ninguém tem mais para ven-

der. Nem as próprias fábricas. Não existe mecânico em Atibaia que não conheça o

Gordinho. Principalmente aqueles profissionais que trabalham com carrões ou carrinhos bem

antigos. “O Gordinho é famoso mesmo. Aqui e na região”, dispara Edson José Meneghetti, 47

anos, casado com Lais Martinez Meneghetti, pai do Edson Júnior e da Tammy. Ele também é

avô do Luca, sua paixão. Na verdade Edson é o “Gordinho da hora”, já que o Gordinho, Gordinho

mesmo, era seu pai, o Gordinho saudoso e famoso, Antônio José Meneghetti, casado com dona

Orlanda de Oliveira. “Meu pai ficou sendo chamado de Gordinho porque era bem gordinho

mesmo, naquela época pesava uns 220 quilos. Aí veio o apelido que acabou dando também o

nome da firma. Eu só segui a tradição”, completa o orgulhoso Edson.

Do ABC para cáO grande Gordinho, primeiro e único na época, de quem seus amigos ainda lembram com

carinho, era um industrial de prestígio no ABC paulista. “Ele tinha uma indústria de autopeças

naquela região. Adorava Atibaia. Tanto que acabou comprando uma chácara por aqui. A gente

vinha para cá todo fim de semana. Até que esse tal de “sr. Lula”, que está por aí, começou aquela

onda de greves que assustou e complicou a vida de todo mundo e provocou tanto desemprego.

Os empresários do ABC viviam com medo de perder tudo. Na verdade quem perdeu mesmo foi

o ABC, pois muitas empresas acabaram saindo de lá indo para outros pontos do Estado e até

do país. Meu pai, por exemplo, largou tudo e veio para cá definitivamente. Nós fomos morar

na chácara”, recorda-se Edson. Naquela época Edson fazia o curso de Direito na Faculdade

de Bragança. “Eu ia e voltava todos os dias. Cansado de tanta opressão meu pai teve a idéia

Peça a peça para o Gordinho, 28 anos de

tradição em peças

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nada sem nota fiscal ou recibo. É um perigo isso. Às vezes até aparecem bons negócios, pe-

chinchas, mas sem nota ou sem recibo não dá para comprar. Para poder desmontar, aproveitar

as peças e transformar o carro em sucata, é preciso dar baixa do veículo Detran. Todo carro

precisa disso, é como se fosse um atestado de óbito de um ser humano. Só se pode enterrar

ou desmontar se tiver pago todas as multas, com baixa no Detran”, explica o Gordinho, res-

saltando que esse procedimento é absolutamente necessário. “A gente compra no leilão, paga

mais caro, mas está na lei.” Edson não deixa barato e reclama: “Não é qualquer um que compra

carros nos leilões. Dizem até que ali tem uma máfia.” Ele entende que o tempo antigo era bem

melhor que hoje para os desmanches. “As pessoas chegavam, pediam as peças, examinavam,

levavam e diziam: dia tal eu volto para pagar. E voltavam mesmo. Não precisava cheque nem

nada. O pessoal tinha brio. Hoje você vende, com cheque e tudo e não sabe se vai receber.”

Está mais difícilClaro que as peças vão rareando, mas o comércio de peças para Fusca, Brasilia, toda a

linha Volkswagen, enfim, não acaba nunca e a procura é imensa. “Antigamente Atibaia ti-

nha dois desmanches: o meu e o do Rubão. Hoje também tem o Sérgio. Já não se pode abrir

desmanches por aqui, não querem mais ferro-velho na cidade. A legislação para o setor está

cada vez mais rígida; desmanche, agora, só fora da cidade. Acho que é por causa da dengue

ou dos perigos de contaminação. E a gente sabe que a dengue ou qualquer outra doença pega

todo mundo e a gente também, né? Temos que ter essa consciência, o mosquito não sabe

quem vai picar...”. Edson explica que a maioria das pessoas só procura peças usadas quando

as novas estão difíceis de encontrar ou custam muito caro. “Nosso preço é da metade para

baixo. E aqui nós temos de tudo, Kombi, Fusca, Brasília, Fiat, Escort, Chevy, Monza. Tenho

de montar o desmanche do “Gordinho”. Lá na frente, um dia meu pai passou mal e morreu.

Faltava só um ano para eu me formar. Fui obrigado a largar o Direito a escola e assumir o

negócio. Passei a ser o “Gordinho II”, brinca.

Dos carrõesNo começo, o terreno onde até hoje funciona o desmanche, tinha quase 4 mil metros. “Com

a morte do meu pai uma parte da propriedade ficou com minha mãe e outra parte ficou com

minhas irmãs. Hoje nós temos uns 1.700 metros.” Edson foi levando a vida e não esconde: “Já

ganhei um bom dinheiro por aqui. Agora as coisas estão bem mais difíceis. Eu só vou tocando

para manter o nome. Sabe o que eu acho? Antes o poder aquisitivo das pessoas era maior. Ao

contrário do que dizem, penso que o Brasil piorou muito, especialmente para a classe média.

Pior ainda que Atibaia não é uma cidade legal para esse tipo de negócio”, desabafa. No que

fala, Edson demonstra a sua saudade dos carrões importados. “É por isso que o pessoal me

conhece bem, eu tinha muitas peças de importados como os Landaus, os Mavericks, os Dodge.

As pessoas gostavam de ter esses carrões. Tinha gente que colecionava. Hoje as peças ficaram

muito caras e com isso mudou até o perfil do negócio. Agora é Fiat, Corcel, a linha Chevrolet,

a linha Volks... Mas, é aquela história, mesmo que esteja ruim ainda está bom, não se pode

reclamar. Já temos 28 anos por aqui. 28 anos representa toda uma vida, concorda?”

Dos leilões“Esse material mais nobre, como as peças e os carrões estrangeiros a gente comprava de

particulares. Hoje se compra tudo em leilões. Porque só quem compra em leilões obtém nota

fiscal das peças. É preciso legalizar tanto os carros como as peças. Aqui a gente não compra

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sorte e pega uma peça boa, um motor legal num carrinho desses e só aí levanta o preço do

carro. “Motor do Fusca é mais caro porque é mais procurado”, ensina, acrescentando que o

custo para “fazer” ou retificar um motor como esse custa por volta de 2.400 reais. “Como

se vê, não é nada barato. E a gente vende um motor razoavelmente bom, no estado, e sem

garantia, por 800 reais. Veja bem, o motor é vendido como bom, mas, claro, não se sabe se

realmente vai durar. Por isso não se dá garantias. Dependendo do carro e até do estado geral

desse carro nem vale a pena mandar retificar e pagar um dinheirão. É melhor comprar um

motor usado e pagar menos da metade por ele. Só que é preciso ter sorte, né?” Não é fácil

encontrar peças novas para os carros velhos no mercado. “E o mercado paralelo também deixa

muito a desejar. É melhor comprar peça usada. Se achar uma embreagem nova, original, da

linha Volks, vai pagar 240 reais. A gente vende essa peça usada por 100 reais. Embreagem que

estava num carro que a gente comprou e era quase novo. Então a peça é praticamente nova,

sai mais barato, entende?”

Das lágrimas nos olhosEdson explica que antigamente as peças do mercado paralelo eram recondicionadas, hoje

são remanufaturadas. “São baratas porque a qualidade é péssima. Quem remanufatura compra

sucata igual à gente. Simplesmente dá um trato, coloca na caixa e vende.” Edson ensina que o

forte no negócio do desmanches é ficar cada vez mais longe dos grandes centros. “Um amigo

provou que se meu desmanche estivesse instalado em Belém do Pará valeria uma fortuna.

Quanto mais longe mais caras custam as peças.” No dizer de Edson, o preço da sucata também

está muito baixo. “Quando nós abrimos esta firma um quilo de ferro custava o equivalente

a um cafezinho no bar. Hoje um cafezinho bem miserável de ruim custa 70 centavos em

até Citroen, coisa que ninguém tem. Tenho peças de DKW, Gordini, Fordões antigos. Tudo

isso está guardado desde o tempo do meu pai. Quanto mais tempo passa, mais as peças se

valorizam. Quem tem esses carrões é porque gosta.”

Do aprendizadoO “Gordinho II” aprendeu tudo na prática. “De quase advogado virei um desmanchador

de carros, não é curioso isso? Nunca fui mecânico, mal sabia colocar gasolina no carro, mas

hoje entendo de tudo isso e até dou aulas. É sério, eu ensino o pessoal como é que se faz, como

se desmonta, para que serve esta ou aquela peça, como se arrepia um motor, um conjunto de

peças, ou como se desmancha ou se monta um carro inteiro”, orgulha-se. A maior parte dos

carros oferecidos em leilões é para sucata. “Os leilões acontecem aqui na cidade, na região,

no Estado inteiro. A nota fiscal discrimina que se trata de material para sucata.” Edson deixa

claro que ainda assim “tem muita gente circulando por aí em carros leiloados. Porque tem

uns que são muito bons. No entanto, isso é proibido.” Ele conta que na maioria das vezes, o

que interessa num carro é o câmbio e o motor. “Dou uma olhada e faço o motor funcionar.

Se está bom vou para o câmbio. Aí, sobra o quê? Sobram rodas, molas, amortecedores, freio,

campana, vidros, pneus. O resto vai pra sucata mesmo, e tudo é vendido por quilo. O final

de todo carro é derreter na usina...”.

Pagando o preçoUm carro desses, bem velhos, vale uns 300/400/500 reais, explica Edson. “Se estiver fun-

cionando vale um pouco mais. Normalmente a gente encontra esses carrinhos largados,

paradinhos e aí o preço vai lá pra baixo, pois tem que pagar frete e tal. Às vezes a gente dá

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qualquer lugar. E o quilo da sucata é vendido a 20 centavos. Eu ainda me dou bem por aqui

porque não pago aluguel, meus custos são muito baixos. Caso contrário nem compensaria”,

desabafa. “Faço de tudo para garantir o que vendo, pois minha palavra vale muito. É isso o que

procuro passar para o meu filho. Ele tem 25 anos e vai ser meu sucessor. Já está aprendendo

tudo. Depois, espero, ele vai passar para o meu neto e assim por diante. A não ser que lá na

frente eles decidam parar com tudo isto. Eu quero que meu filho seja melhor que eu e que

meus netos sejam melhores ainda. Se bem que, apesar de tudo, eu não consegui ser melhor

que meu pai. Para mim, ninguém seria melhor que o “velho” Gordinho”. E o “Gordinho II”

disfarça uma lágrima que insiste em sair dos olhos.

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Quando você der de cara com um grupo de pessoas correndo pelas praças, ruas,

estradas ou avenidas de Atibaia - pode correr atrás que é um grande negócio.

Muito provavelmente você vai entrar em contato com um pessoal muito bacana

que adora correr por esporte e até com algumas pessoas que praticam uma mo-

dalidade esportiva que, na verdade, vale por três: o Triatlo. Já ouviu falar nele? Triatlo, ensinam

os livros, “é palavra grega que designa um evento atlético composto por três modalidades. Hoje

em dia o nome triatlo é aplicado a uma combinação de natação, ciclismo e corrida, nessa ordem,

e sem interrupção entre as modalidades”. Pois é, o advogado, Mestre em Direito, Dr. Hélio Costa

Veiga de Carvalho, 42 anos, casado com Miriam V. Paolinetti Veiga de Carvalho, pai de Pedro e

Timóteo, atibaiense por opção, é um triatleta amador. “Sempre fui ruim no futebol, no basquete,

no handebol. Eu era horrível até na bolinha de gude, tinha que ser bom em alguma coisa, não

é?”, questiona entre risos. Hélio ficou em quarto lugar no Troféu Brasil, categoria Short, amador,

depois de disputar todas as etapas nacionais no ano passado. “Também disputei o Short Triatlon,

em Pirassununga e peguei o terceiro lugar”, orgulha-se.

Das categoriasComo sempre, no país que só valoriza o primeiro lugar, é preciso deixar claro que as disputas

de atletismo são realmente diferenciadas. Quem consegue até um décimo lugar é um vencedor

autêntico. “As competições de triatlo não são nada fáceis”, pondera Hélio. Corretíssimo, já se viu

que o triatlo exige habilidades incomuns em três esportes distintos: natação, bicicleta (bike) e

corrida. Quer ver como não é fácil? Normalmente as disputas ocorrem em quatro categorias:

Short, Olímpico, Meio Iron Man e Iron Man. Na categoria Short o atleta tem que nadar 750

metros em águas marinhas (isso mesmo, no mar...). Depois tem que percorrer 20 quilômetros

pedalando com sua bike. Finalmente tem que correr 5 quilômetros. Tudo isso na sequência, sem

O professor que passa a vida correndo, nadando, pedalando e ensinando a

Constituição do país

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Um dos pioneirosAntes que você, já cansado, desista pelo preço da bike, Hélio oferece um consolo: “Na verdade

a bike é o mínimo; a perna do atleta é que é fundamental.” Normalmente as provas são disputadas

por um só atleta, mas pode acontecer de três pessoas disputarem. Existem pelo menos 6 triatletas

ativos em Atibaia. “Trata-se de um esporte seleto, mas as corridas estão crescendo graças ao apoio

dessas marcas famosas de material esportivo, Nike, Fila, Run... Acho que o Cabral, que é dono

de uma academia de natação na cidade foi quem começou a correr o triatlo aqui em Atibaia”,

diz Hélio. Em média, no Brasil, são disputadas seis etapas por ano, uma a cada dois meses. “O

esporte vira vício. O sonho de todo triatleta é disputar um Iron Man, prova que corresponde à

Formula Um em triatlo e que é disputada uma vez por ano no Havai”, conta.

Como nasceuO curioso leitor perguntaria: por quê no Havai? “Porque o triatlo começou lá na base mili-

tar norte-americana do Havai, quando soldados disputavam quem seria o melhor atleta: um

nadador, um corredor ou um ciclista. Fizeram uma prova envolvendo atletas de cada categoria.

Pegaram a maratona da natação, com 3800 metros, a maratona da corrida, 42 quilômetros e a

maratona do ciclismo, 180 quilômetros, nasceu o triatlo”, explica Hélio. No Brasil a grande prova

é disputada uma vez por ano em Florianópolis. “Eu falo em termos amadores; existe, claro, a

disputa entre profissionais”. Nadar, pedalar, correr, falando assim parece simples, só que nadar no

mar ou em represa é complicado. “Quem tenta nadar no mar como se nada na piscina se dá mal.

Igualmente no contrário. O atleta tem que se comportar de maneira diferente. Inclusive quando

disputa a prova de ciclismo e a prova de corrida. Tem que conhecer os ângulos corretos para fazer

curvas, para seguir reta e assim por diante. Tudo é muito técnico com tempo diferente. Muda

parar, termina uma prova, começa a outra, sem descanso. Na categoria Olímpico, os números

dobram. O atleta tem que nadar 1.500 metros; tem que percorrer 40 quilômetros pedalando

e tem que correr 10 quilômetros. Cansou? Segure que tem mais. Na categoria Meio Iron Man,

o atleta tem que nadar 1.900 metros, pedalar 90 quilômetros e correr 21 quilômetros. Está de

bom tamanho? Pois você não viu nada: na categoria Iron Man, o atleta tem que nadar 3.800

metros, pedalar 180 quilômetros e correr 42 quilômetros, que é a distância de uma maratona.

E sem parar, e sem descanso...

Como tudo começouMelhor deixar o atleta e professor, Dr. Hélio correr por nós e contar sua história. Bom nadador

desde criança chegou a fazer parte de equipes de pólo-aquático, além de ter jogado tênis até os

35 anos. “Mais ou menos nessa época minha esposa começou a praticar corrida ao lado de um

grupo de amigos lá no São João Tênis Clube. Tinham até um instrutor. O grupo se reunia com

freqüência e eu entrei no meio. Depois de correr a gente comia uma bela pizza. Gastávamos

energias e recuperávamos...”, brinca Hélio. O esporte de rua unia o grupo. “Uns corriam a ma-

ratona, outros a meia maratona e tal. Vez por outra participávamos de corridas de rua, um es-

porte que está crescendo muito no Brasil. Eu mesmo cheguei a participar de uma corrida de dez

quilômetros em São Paulo. No grupo tinha um rapaz que praticava triatlo e eu pensei: eu nado

desde criança, e corro, só falta a bicicleta para o triatlo...” A bicicleta é o elemento mais caro do

esporte. Tem que ser leve, de carbono, com preço médio de dez mil reais. “É a bike que eu tenho

hoje. Mas pode se começar com uma bicicleta mais barata, uns dois mil, por aí.” Detalhe: tem

bike importada que custa até 30 mil reais...

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Edgard de Oliveira Barros

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Márcia, passavam seus finais de semana em Atibaia. Construíram casa por aqui e ficaram. A

partir daí cursei Direito em Bragança e casei com a Miriam, que vem da família Paulinetti, que

é muito querida na cidade e está aqui desde o começo do século passado. Formado voltei para

São Paulo, mas não consegui me readaptar. Voltei, abri escritório em 95, trabalhei na Prefeitura

com o então prefeito Callegari e saí para continuar advogando. Fiz mestrado e há cinco anos

dou aulas de Direito Constitucional na FAAT”, resume.

Das leis“Dar aulas é uma atividade que me realiza, faço com amor, com paixão mesmo. Se pudesse

me dedicaria por inteiro ao magistério. Só que não posso abandonar meu escritório que cami-

nha muito bem”, revela. Pai coruja, Hélio conta que seus filhos também praticam esporte e o

acompanham em suas corridas e pedaladas. “Vão de bicicleta atrás de mim”, brinca, “mas pre-

ferem o tênis e futebol. Eu era perna de pau, mas eles são bons, jogam no São João Tênis Clube”,

orgulha-se. Admite que não é fácil dar aulas de Direito Constitucional no Brasil. “Tem muita

mentira. A democracia verdadeira não existe. Nem a representação do povo. Tudo é oligopólio de

partidos políticos. Nossa Constituição é boa, moderna. Nosso Código de Defesa do Consumidor

é referência no mundo inteiro. A legislação é maravilhosa, o que estraga é a aplicação das leis.

Falta civilização, falta história para o povo, cultura, conhecimento. Sem conhecimentos, sem

educação, não se tem condições de lutar, de brigar.” Seus alunos, seus amigos, seus colegas de

corrida certamente concordam. E batem palmas para o professor e para o atleta tão campeão.

P.S.: no endereço HTTP://helioveiga.blogspot.com você encontra mais informações sobre o Triatlo

tudo, comportamento, reação, respiração. O atleta tem que ser bom em tudo, natação, ciclismo

e corrida. Não adianta ser excepcional em um só dos esportes porque não vai funcionar.”

Atibaia é ótima Se você está animado, saiba que Atibaia é um lugar excelente para se praticar o triatlo. “Descobri

na pele a questão da altitude. Por ser um lugar alto, aqui falta ar. Então, levo vantagem quando

disputo prova em Santos que tem toda a pressão atmosférica, muito ar. Então é bom treinar por

aqui, tem uma represa maravilhosa em Nazaré, tem a D. Pedro, estrada maravilhosa para pedalar.

Só não tem o mar. Mas quem treina numa altitude maior sempre tem mais vantagens do que

quem treina lá em baixo”, pondera Hélio. E tem muita gente correndo por aí. Hélio sai de sua

casa, que fica lá pelos lados do bairro Palavra da Vida e vai correndo até ao Frango Assado, na

Fernão Dias. “Subo a Lucas, vou até uma padaria que tem por lá, percorro uns l5 quilômetros ida

e volta. Às vezes vou mais longe, venho até o começo da Lucas e dá uns 20 quilômetros. Esse é o

chamado treino “longão”. No sábado faço uma corrida longa e um pedal longo, cem quilômetros,

noventa quilômetros. Vou até Itatiba, volto por Bragança.” Hélio não cansa...

A lei maiorNadando, correndo, pedalando, lá se foram churrasco e cervejinhas... “Depois de toda essa

atividade esportiva meu organismo passou a pedir comida de melhor qualidade. Rejeita carne

vermelha. No máximo consigo tomar duas latinhas de cerveja. Bebo mais água, como saladas,

coisas mais naturais. Deixando o esporte de lado, o que empolga mesmo o Dr. Hélio Costa Veiga

de Carvalho é o seu trabalho como advogado e professor e a sua família. “Estou em Atibaia há

uns vinte anos. Meu pai, Manoel Costa Veiga de Carvalho era desembargador. Ele e minha mãe,

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Se arrependimento matasse mesmo, como dizem que mata, José Luiz Passador hoje

seria um homem morto. “Depois de ver e viver quase tudo aqui em Atibaia eu fico

me lamentando pelo fato de não ter filmado, fotografado, gravado para a posteridade

os casamentos que aconteciam nos tempos antigos da cidade. Aquilo daria uma ex-

celente comédia italiana. Coisas que só poderiam acontecer num daqueles filmes de Federico

Fellini”. Sem conter as gargalhadas, José Luiz conta que a sua Sorveteria Valentim, ao lado da

Casa Rosa, ambas situadas ali no Largo da Matriz, sempre foram um “point” famoso na cidade.

“Fora toda a importância que o Valentim e a Casa Rosa tinham na época, o Valentim como bar,

sorveteria e tudo o mais e a Casa Rosa como o grande armazém da cidade. Ambos os estabe-

lecimentos serviam como uma espécie de “buffet” da época e “atendiam” os casamentos que

se realizavam na Igreja de São João Batista. E eu nem te conto o que acontecia durante esses

eventos”, insinua José Luiz, deixando a curiosidade tomar conta de tudo.

Viva os noivos!Ainda sem conter o riso, José Luiz lembra que havia uma certa disputa entre o Valentim

e a Casa Rosa para abrigar os tantos casamentos. “Tinha vezes que as noivas se trocavam na

minha casa. Era tempo em que as pessoas vinham dos sítios da redondeza para se casarem

aqui na matriz. Antes que os convidados chegassem os padrinhos dos noivos procuraram o Bar

Valentim ou a Casa Rosa, que ficavam um ao lado do outro, na praça da Matriz e combinavam

uma festa. Um desses dois lugares seriam os responsáveis pelos comes e bebes. O Valentim

tinha um mezzanino capaz de abrigar muita gente e a Casa Rosa tinha um espaço muito bom

para receber as pessoas. Era o que se podia fazer na época e tudo era muito gozado. A festa se

resumia em cortar muitos pães em fatias e colocar ao lado de pratos cheios de mortadela tam-

bém cortada. Os convidados chegavam e só tinham o trabalho de juntar o pão e a mortadela

As histórias de José Luiz Passador dariam

realmente uma bela comédia italiana

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José Luiz Passador, que é casado com Diva Zago Passador, pai de João Luiz, Luiz Henrique

e Monica e avô de 4 netos, não nasceu em Atibaia. Ele se diz “revolucionário” só porque veio

de Itatiba e chegou por aqui, com um ano de idade, no dia 9 de julho de 1933. “Vir para Atibaia

foi a melhor coisa que meu pai, Luiz Passador fez. Ele veio para levantar a Companhia Textil

Brasileira nos anos 40/50. A CTB foi extremamente importante na cidade, ao ponto de dar

emprego a pelo menos um membro de cada família daqui. Meu pai era autodidata em ma-

téria de tecidos, entendia tudo do setor. Aqui ganhou status. Entre outras coisas idealizou

e participou da construção do campo de futebol do Grêmio Esportivo Atibaiense, que, na

realidade era o Cetebê. Nem sei porque mudaram o nome do clube, uma vez que ele era da

empresa. Empresa que inclusive doou o terreno onde foi construído o estádio. “E esse estádio

foi construído pelos próprios operários que tinham permissão para sair meia hora ou até uma

hora antes do término do expediente para trabalharem na construção do estádio. O Cetebê

nasceu em 1933, ano em que meu pai veio para cá”, conta José Luiz. Ele explica que a fábrica

chegou a abrigar 800 funcionários na época da guerra. Trabalhava 24 horas por dia. Fazia e

exportava o famoso “brim aço”. Era uma companhia muito séria. Meu pai faleceu em 1959 e

daí para a frente não sei o que aconteceu”.

Na escola José Luiz concluiu seus primeiros estudos em Atibaia e cursou o ginásio no Liceu Coração

de Jesus, em São Paulo. “Uma judiação o que aconteceu com esse colégio. A região onde ele

está virou zona do crack...”, lastima-se. Queria fazer Engenharia “só que não me deixaram

entrar”, diz sorrindo. “Acabei montando uma empresa de representações porque tinha prática

no setor de exportação e importação. Casei em 1959 aqui em Atibaia e passei a viajar todos

e fazer seus sanduiches. Não tinha bolo nem nada, era pão com muita mortadela. E aquela

confusão, aquela festa, aquela bagunça que se pode imaginar. Como se fossem aquelas co-

médias do cinema italiano. Cenas que deixariam Fellini maravilhado e desejoso de filmar.

Eu mesmo deveria ter filmado...”.

Sem boloOs casamentos caboclos da época nem bolo tinham, lembra José Luiz, “era só esse pão

com mortadela mesmo. E eu acho até que havia um certo preconceito, porque só os noivos

e os padrinhos podiam tomar cerveja. O resto, os convidados, tomavam Tubaína, um refri-

gerante que é muito mais barato. Mas a felicidade era grande, acredite...”. José Luiz gargalha,

lastimando-se mais uma vez pelo fato de não ter registrado essas cenas tão curiosas para a

posteridade. “Da mesma forma que não me esqueço de um acontecimento igualmente fan-

tástico, que também poderia servir como roteiro de mais uma tragicomédia italiana. Lembro

do dia em que chegou uma senhora, já de uma certa idade, que iria se casar. Acho que ela era

viúva. A “dama de companhia” era sua neta. Imagine a cena: como era de costume e necessi-

dade da época, a mulher foi se trocar na minha casa. Lembrando que geralmente se tratava

de pessoas que vinham da roça, dos sítios da região. Então a mulher se enfeitou, se pintou,

se sentiu toda bacana e entrou na igreja, com a neta levando o buquê. Você não imagina a

alegria da vovó, aquele prazer em se vestir de noiva de novo. Isso naquele tempo em que as

mulheres se casavam virgens e de branco...”, conta José Luiz Passador. “Eu me orgulho de ter

vivido tudo isso”, emociona-se.

Da sua história

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eu sou briguento...”. Ficou quatro anos como vereador. “O povo de Atibaia entendeu que eu

não deveria voltar. Fazer o quê, né?”. No seu tempo os vereadores não ganhavam nada.

Do povo“Eu acho que os atibaianos e os brasileiros são muito acomodados. Preferem delegar ao

invés de agir, sempre procuram alguém para resolver por eles. Isso é muito ruim”. Em sua opi-

nião as leis não são cumpridas no Brasil. “Atibaia melhorou muito, cresceu, oferece maiores

oportunidades de emprego, de desenvolvimento econômico. Já temos uma faculdade como

a FAAT, que é invejada em todo o país. É certo que Atibaia perdeu aquele jeito de cidade pe-

quena, todo mundo se cumprimentando, aquela vida mais pacata e tal. Sinto saudade”, diz.

“Estão falando muito das enchentes, só que enchente não é novidade por aqui. O rio sempre

encheu. Cansei de nadar naquela região que hoje chamam de Parque das Nações, Terceiro

Centenário. Quando pensaram que as represas iriam resolver o problema das enchentes,

implantaram loteamentos naquela região. Só que ali sempre foi uma área de risco”.

A política constrangeFalar da política atual da cidade deixa José constrangido. “Sempre existe alguém que se

salva, claro, mas o pensamento político no Brasil de hoje está muito errado. As pessoas sobem,

mas não têm o espírito de trabalhar pelo povo. Acho até que deveriam mudar o significado

da palavra política nos dicionários”. José Luiz não cansa de enaltecer o governo do seu amigo

Omar Zigaib. “Muita gente diz que ele não fez nada, mas foi ele quem implantou a rede de

esgotos e levou água para o Alvinópolis, entre outras coisas. Foi ele também quem começou

o asfalto nesse bairro. Só que o Omar não gostava de fazer publicidade e isso não é bom em

os dias daqui pra São Paulo”. Seu sogro era proprietário do bar Valentim, que nasceu em 1935

e hoje é a sorveteria Valentim. “Cansado daquilo tudo, meu sogro resolveu arrendar o bar.

Cinco anos depois os arrendatários também pararam e meu sogro jurou que não voltava

mais. Cansado de viajar todos os dias resolvi me interessar pelo bar. Meu sogro até dizia:

“Nervosinho do jeito que você é isso vai terminar em pancadaria.” Não perdi o hábito de bo-

tar bêbado pra fora mas deu para segurar a onda. Em 1977 o bar virou sorveteria. Até porque

sorvete é ótimo para quem bebe. Tem açúcar e cura bebedeira num instante”, brinca.

Saindo e voltandoHouve uma época em que José Luiz deixou a sorveteria. Ficou 15 anos fora. “A pessoa que

havia comprado me ofereceu de volta e estou aqui até hoje. Agora nós temos a Valentim tra-

dicional, que é na Praça da Matriz; a Valentim da rua do calçadão e a Valentim lá da Lucas,

tocada pela minha filha. Nosso sorvete é artesanal. Quem faz é a minha esposa que se espe-

cializou no assunto. Dia destes veio um famoso engenheiro de alimentos, provou o sorvete

e disse: “É melhor que o sorvete Premium da Suiça. Pensei que ele estivesse brincando, mas

ele jurou que falava sério e profissionalmente. Dona Diva, minha mulher, ficou toda vaidosa.

Nosso sorvete não é industrializado e não leva gordura vegetal ou hidrogenada”, explica. Por

influência de seu amigo Dr. Omar Zigaib, um dia José Luiz entrou na política. “O Omar foi

indicado prefeito de Atibaia e pediu a amigos que se candidatassem a vereador para que ele

tivesse uma base política. Eu acabei cedendo e fazendo parte de um grupo de amigos como o

Nerino Soldera, Benedito Carvalho, Sebastião Theodoro, Luiz Peçanha, o Fernando Silveira

e o Tizuneu Sato”. Considerado uma pessoa moderada diz que não é bom tirá-lo do sério. “A

mentira e a hipocrisia me irritam e aí eu perco a cabeça. É por isso que as pessoas dizem que

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política. Outros levaram a fama pelo trabalho que ele desenvolveu”, conclui. Mexendo com

seus sorvetes, lembrando dos filmes italianos que “viveu” e não gravou, José Luiz sonha com

um Brasil melhor. “Só não somos primeiro mundo pela deficiência administrativa, pela cor-

rupção e pelo fato do povo não cobrar, não participar, não fazer valer os seus direitos”.

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Dia destes o professor Morgado, excelente dançarino que dá aulas de dança no

Centro de Convivência dos Idosos de Atibaia ficou todo entusiasmado com a

performance de uma aluna de nome Hertes, justamente no momento em que

ensinava o estilo “gafieira”. Ele não se conteve e disse à aluna: “Poxa, a senhora

dança muito bem...”. Pelo menos até agora, quando esta revelação está sendo feita, o professor

não sabia que a aluna Hertes é ninguém menos que a Kreolla, uma das mulatas mais boni-

tas, mais arrebatadoras e mais reverenciadas nos tempos em que o seu restaurante “Kreolla”,

localizado no bairro de Pinheiros, era manchete ou citação obrigatória em tudo quanto era

órgão de comunicação. Badalado até na celebrada revista “Play-Boy”. Era o tempo também das

cobiçadas “Mulatas do Sargentelli”. Apesar de tão famosa quanto, Hertes, a Kreolla, não era

uma das mulatas do Sargentelli. Com brilho próprio, era “apenas” dona do restaurante mais

freqüentado pela nata da sociedade e pelo mundo artístico e cultural da romântica São Paulo

dos anos 60/70. Agora o professor Morgado e Atibaia inteira vão saber um pouco mais sobre

essa “Kreolla”...

Eu vim de lá pequenininha...Dona Hertes Angela Brasil, 75 anos, mãe do publicitário Jairo, da cantora Ana Cláudia e da

economista Ana Olívia (que inclusive é dona de banca de jornais ali na Lucas), é filha de dona

Ana Vitória Brasil, grande cozinheira,falecida recentemente. E só se tornou Kreolla muitos

anos depois. “Eu vim lá de Alto Araguaia, no Mato Grosso. Durante muitos anos minha mãe

foi cozinheira de uma família muito rica e importante, na época, em São Paulo. Morávamos em

Pinheiros. Eu gostava de fazer roupinha de bonecas e minha mãe me colocou numa escola de

costura. Não parei mais”. Com o tempo Kreolla passou a ser procurada pelas melhores equipes

que trabalhavam com alta costura. “Fiquei conhecendo a Neide Carvalho que era chefe das

A história de uma Kreolla que já enlouqueceu

uma cidade chamada São Paulo

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Diante de tanta “força de convencimento”, a Kreolla ficou quase cinco anos com o bar na Rua

Pinheiros. “A casa era um corredor e cabia não mais que dezoito mesas. Minha mãe largou

tudo e foi para lá. Nosso cardápio só tinha comida caipira, tudo coisa que a minha mãe sabia

fazer, de mandioca a cará. Comida da roça, de Mato Grosso, de Minas, de Goiás. Não tinha

massa nenhuma. Aí nós pegamos outro cozinheiro e ele acrescentou outras atrações. Fiquei

ali quase cinco anos até mudar para a mesma Rua Pinheiros esquina com a Cardeal Arcoverde,

um lugar enorme.” A clientela era ótima, o pessoal do sempre famoso e seleto Clube Pinheiros,

artistas, jornalistas, gente da mais alta sociedade.

Samba tristeTalvez os problemas tenham começado aí. Apesar de tanta “paparicação pessoal”, Kreolla

se sentia sozinha. “Eu não tinha gerente, não tinha encarregado, tinha que fazer tudo. Fiquei

um monte de anos por ali, sempre com muito sucesso. Naquele tempo, feijoada em São

Paulo era na Kreolla ou no “Bolinha”. Só. Eu começava a servir feijoada na sexta-feira, à noite,

passava a madrugada toda, dobrava o sábado. Tinha dez garçons e oito garçonetes. Eu ali,

nas “relações públicas”. Conhecia todo mundo, tudo quanto é artista, o Rolando Boldrin,

o Moacir Franco, jogadores de futebol, jornalistas, o Osmar Santos, enfim, todo mundo.

Coloquei pagode aos sábados e as mulatas do Sargentelli, e o próprio “Sargento” iam lá toda

hora, era um show. Ganhei muito dinheiro. Fazia até desfiles de moda. Lancei o concurso

Miss Kreolla e a gente abria o carnaval de são Paulo, saindo às cinco da manhã com o Bloco

da Kreolla. Até os vizinhos participavam.”

O Clodovil de sempre

costureiras do Clodovil. Trabalhei com essa gente maravilhosa durante uns dez anos e me

dava otimamente com o Clodovil. Era época do prét-a-porter, da alta costura mesmo. Vivi essa

fase linda da moda paulistana e brasileira. Aquelas “briguinhas” do Clodovil com o Denner

eram só aparência, eles se davam muito bem”, garante.

O último ponto Kreolla andava feliz da vida “ganhando uma boa grana”, como conta. “Só que a Neide aca-

bou “quebrando” e o Clodovil deu um tempo na moda. Decidi trabalhar em minha casa. Eu

já morava no Jardim Paulista e montei minha própria oficina. Cheguei a ter dez costureiras.

Meu público era gente fina, freguesas de elite, da alta sociedade. Um dia a Neide me procurou

perguntando se eu não estava cansada de costurar. Eu disse que sim. Ela jogou a proposta

da gente montar um bar, e eu acabei topando”. Acharam um sobradinho na Rua Pinheiros.

“Montamos uma coisa bem diferente. Lembra do Hélio Souto, aquele artista bonitão do

cinema e do começo da televisão? Pois era ele quem morava no sobradinho. O Hélio abriu

mão da casa e nós fomos em frente. O bar ia se chamar “Turco´s Bar”, virou Kreolla porque

um designer, artista da moda, grande amigo, achou que Kreolla me homenagearia e ficaria

melhor. Nasceu o bar e nasceu a Kreolla”. O problema era que a lei e a vizinhança diziam que

não se permitia bares naquela rua. “Vinha fiscal todo dia e toda hora. Recorri a uns amigos

políticos e eles “seguraram a bomba”, conta Kreolla aos risos.

Ô mulata terrível essa Kreolla...É, não se pode esquecer que estamos diante da Kreolla. Kreolla que, à época era aquela mu-

lata cantada em prosa e verso por todos os bons poetas e músicos mais ou menos assanhados.

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aqui, gostamos e mudamos para cá”, conta.

A volta do KreollaO português da Kreolla alugou “uma casa maravilhosa na Avenida Santana. “E aí eu disse

pra ele que queria trabalhar, fazer alguma coisa. Fiquei entre costurar e abrir um bar. Procurei

e achei um “bequinho” (pequeno Beco, claro), bem legal, em frente à Pizzaria do Wilson,

lembra? Aquele “bequinho” estava para alugar. Lembrou-me o meu beco da Pinheiros. Abri

o Kreolla em Atibaia. Foi no final dos anos 80 e pegou fogo. O pessoal de São Paulo veio todo,

gente pra todo lado. Fiquei lá uns 6 anos e acabei vendendo. Minha mãe tinha me acompa-

nhado durante todo esse tempo, mas, para variar, eu me sentia muito só. O português ficou

doente e voltou para São Paulo. Ninguém para me ajudar, me administrar, sem retaguarda,

vendi o Kreolla. Fiquei costurando, fiquei sem fazer nada, ai larguei tudo de vez.

A Kreolla na TV Recentemente um jornalista da TV Cultura esteve em Atibaia para contar a vida da Kreolla.

“Isso tudo porque o Aldemir Martins, aquela maravilha de pintor tinha dado uma entrevista

para a revista Play Boy falando das suas preferências em São Paulo. E disse: “A melhor coisa

que São Paulo tem é a Kreolla”. Imagine que honra. O Aldemir ia quase todo dia ao restaurante.

Disse na revista que adorava comer costela com pirão. O repórter veio para contar a história

da Kreolla. Foi ao ar uma porção de vezes pela TV Cultura”, conta com os olhos marejados.

Kreolla nunca mais quis montar restaurante ou fazer cozinha aqui em Atibaia. “Agora só co-

zinho por encomenda. Tive uma porção de convites, mas só sei trabalhar do meu jeito. Quem

já fez tudo o que eu fiz não pode fazer coisa menor”, declara a gloriosa e guerreira Kreolla. De

“Quem me ajudava muito era o Clodovil, ele nunca me abandonou. O que me faltou foi

suporte, administração, alguém que gerenciasse. Tudo caia na minha cabeça e eu perdi as

rédeas, perdi o controle completamente. Cheguei a receber diploma de “Comendadora”,

eu era personalidade na cidade. Varias emissoras de televisão gravaram programas lá na

Kreolla. Percebi que já não dava para tocar tudo aquilo e vendi. Eu tinha tudo carros do

ano, terrenos, construí uma casa fabulosa em São Roque. Não sei, acho que fui roubada,

tungada, sei lá. Quando mudou a moeda a tragédia se concretizou. Já tinha comprado até

casa na praia e perdi tudo, tive que vender o que tinha. Ainda tentei abrir uma empresa para

fornecer marmitex, mas não era aquilo que eu queria.” Nunca esquecendo que Kreolla era

super atuante no Aristocrata Clube, freqüentado pela elite da comunidade negra paulistana.

“O Agostinho do Santos, entre outros tantos amigos. Eu tinha muita amizade com aquele

pessoal do Aristocrata, gente maravilhosa”, emociona-se.

Um português no caminhoO cantor Agostinho dos Santos era seu amigo, freqüentava sua casa. “Gostava muito dele”.

Kreolla sempre foi alvo de grandes atenções e provocou grandes paixões, grandes amores. Foi

paquerada e paparicada por pessoas importantes. Mulata bonita, faceira, grande dançarina,

muito bem articulada. “É, mas eu sempre trabalhava muito”, faz questão de enaltecer. “Um dia

conheci um português, viúvo e muito rico. E, como se diz hoje em dia, acabamos “ficando”.

Ele queria casar comigo, mas eu não quis. Ficamos. Pensei em morar na praia. Pensei em ir

para o Mato Grosso. O português iria para onde eu quisesse. Foi então que me lembrei de

uma cidadezinha perto de São Paulo, chamada Atibaia. Precisava ser perto de São Paulo, pois

minha filha estava concluindo a faculdade na capital. Viemos passar um final de semana por

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repente deu vontade e ela voltou a costurar. “Estou otimamente bem. Depois de muita briga

já consegui minha aposentadoria. Nada de alta costura aqui em Atibaia, virei costureira de

consertos e reformas. Ainda assim muita gente me procura para fazer coisas maiores. Agora

mesmo entreguei um vestido de noiva. Montei um atelier de costura na minha casa. Estou

viva, vivendo gostosamente como sempre vivi. Vou tirar o professor Morgado, lá do Centro

de Convivência dos Idosos para dançar”, resume, faceira e gloriosa.

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De mala o Mala não tem nada. Muito antes pelo contrário, o Mala é uma das pes-

soas mais queridas da cidade. Pandeirista, baterista, amigo, solidário, o Mala

carrega uma mala de histórias desta cidade que ele adora e vice-versa. “Por quê

Mala? O apelido vem dos tempos de criança. Naquela época o Cine República

aqui de Atibaia passava aqueles “filmes em série”. E o “mocinho” de uma dessas séries era

chamado de Mala. Foi quando o Jovenilson de Araújo, que também era garoto como eu viu o

cartaz do filme no cinema e disse pra todo mundo: “Pessoal, o mocinho do filme tem a cara

do Nelson. E o nome dele é Mala.” Todo mundo foi ver o filme e, a partir daí começaram a me

chamar de Mala.” Nelson de Oliveira, o Mala, já tem 71 anos. É casado há 34 anos com dona

Maria Aparecida de Oliveira, pai da protética e bem realizada Elaine Cristina de Oliveira e avô

de Nicole Cristina de Oliveira Teixeira, 8 anos, sua paixão. Será que o Mala é um mala desses

que incomodam tanta gente? “Nem brinca, não sou mala não. “Eu sou o Mala original. Não

sou desses malas genéricos, nem fui comprado no Paraguai”, sorri.

Dos porquêsPorque Mala virou apelido difícil de carregar? “Uma grande bobagem. Pois eu sei que nos

idos anos 1950/60, lá no Rio de Janeiro, músicos famosos como o Jacob do Bandolim costuma-

vam usar a expressão Mala: “Olha quem vem vindo aí, Pixinguinha, é o Dino...”. E o Pixinguinha

respondia: “O Dino? O Dino é o Mala”. Naquele tempo “Mala” significava o do cara legal, bacana.

Não sei porque virou essa coisa de cara chato, difícil de aturar. Pois eu carrego o apelido Mala

com gosto e prazer. Dificilmente, aqui, em Atibaia, alguém conhece o Nelson de Oliveira. Mas

todo mundo sabe quem é o Mala. E digo mais: quando dou um cheque tenho que carimbar

atrás: “Mala” e colocar meu telefone. Se não, ninguém vai saber de quem é o cheque. Vai ver,

nem o banco”, exagera. Mala estudou no José Alvim e no colégio João Dias, a antiga escola de

Nelson, o Mala que Atibaia carrega

no coração

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comércio. “Parei na terceira série do ginásio. Prestei concurso na prefeitura, entrei e traba-

lhei trinta anos até me aposentar. Teve um tempo que fiquei quinze anos comissionado no

Ministério do Exército.”

Da estréia triunfalMúsico desde os 14 anos Mala é fissurado em bateria. Já deu até aulas de bateria. “Meu

começo foi muito engraçado. Eu era meio criança ainda e estava à toa na vida, parado em

frente ao tal cine República, que naquela época era a grande atração da cidade. Apareceu um

sujeito distinto, falando um portuñol enrolado e veio falar comigo. Era o Miguel Olviedo,

um cantor lírico, de fama internacional. Ele estava em Atibaia e iria se apresentar naquela

noite, no palco do cine República. Estava desesperado procurando alguém que conhecesse

um baterista. Pensei que fosse brincadeira, mas era sério. O baterista dele tinha caído e que-

brado um braço. Falei: difícil. Atibaia tem dois bateristas, o Roque Túmulo e o José Otávio e

os dois estão fora tocando com seus conjuntos. O tenor ficou mais desesperado ainda. Aí eu

arrisquei e mandei ver: “é o seguinte, eu toco caixinha num grupo de música. Faço repique

e gosto muito de bateria. Se for o caso...” O espanhol ficou maluco: “Se você sabe alguma

coisa de bateria já me serve. Vamos lá.” Ele me juntou pelo braço e, quando vi, estava no

meio do palco, o cinema lotado. Tremi. Sentei na bateria e ele falou: “Faça o ritmo de samba.”

Eu respondi: “Samba, não sei”. Ele pediu rumba. E eu disse: “Também não sei.” Irritado ele

disse: “O que é que você sabe?” Aí um músico dele sugeriu: “Vamos de valsa.” E eu: “Valsa eu

sei. Tá-tá-tum; tá-tá-tum; tá-tá-tum, fui tocando. O tenor sorriu e disse “Vai dar certo”. Para

quem não tinha nada, um baterista que acompanhava valsa era um tesouro. Qualquer pau

duro mata a cobra, meu”, filosofa Mala.

O mestre foi embora

E foi assim que deu tudo certo. “Modéstia à parte me saí bem. A orquestra entrava e eu ia

atrás. Eram 12 ou 15 músicos. “Fui até elogiado pelo Miguel Olviedo.” Depois dessa o Mala

não parou mais. “Foi o meu amigo Djalma Pires Fazolai, grande baterista, quem me ensinou

a tocar bateria como se deve. Passei a ser baterista do conjunto dele. Um dia ele saiu daqui,

montou um conjunto em São Paulo, foi se apresentar na Espanha e casou com a filha do

dono do restaurante onde tocava. Nunca mais voltou. Eu toquei em muitos conjuntos, no Jo-

Meiry – Josias e Meiry e no Moritach, muito famosos na cidade, tocavam em grandes bailes.

Foi então que surgiram os “Chorões do Paraíso”, conjunto formado pelo falecido Dr. João da

Mata Correia Lima, um dos maiores violonistas que Atibaia já teve; Nadir do bandolim, que

infelizmente foi morto em um assalto; o Armandinho Petrucci, também falecido e eu. Depois

vieram o Valdir Pires, excelente contrabaixo; o Joquinha, no surdo; Licínio Carpinelli, que

era um grande cantor e o Silvio Ramos. Esse foi um dos maiores conjuntos da cidade. Nós nos

apresentamos inclusive no Teatro Municipal em São Paulo. O teatro estava lotado e fizemos

muito sucesso tocando chorinhos. Depois do “Chorões” formamos o Pedra 90, no ano de

90 e de lá pra cá estamos na estrada. Há seis anos fazemos shows todos os sábados no Hotel

Bourbon. E também cantamos há 19 anos no jantar de sábado do Hotel Village. Ano passado

estivemos no show comemorativo dos 70 anos de criação do parque de Foz do Iguaçú.”

O Mala tem malaAposentado, não se queixa da vida. “O Mala carrega uma boa mala.” Há 15 anos traba-

lha com o advogado Dr. Artur Eugênio de Souza. “Por incrível que pareça foi ele quem me

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Das graçasMala não esquece a maior maluquice que cometeu na vida. “Em 1961 e eu ganhei na loteria

com o bilhete 39410. Duzentos milhões. Não sei quanto seria hoje, sei que daria para comprar

uns 200 lotes no Alvinópolis e ainda sobraria dinheiro. Torrei tudo e não guardei nada. Eu era

jovem, 23 anos, solteiro, bonito, músico, jogador de futebol. Torrei tudo com a mulherada.

Eu pegava avião em Congonhas e ia para boates no Rio de Janeiro. Passava uma semana no

meio da bagunça. Demorei uns dois anos para torrar tudo. Quer outra coisa engraçada na

minha vida? Eu era o maior comilão aqui de Atibaia. Na hora de comer não tinha páreo para

mim. Era muito amigo do Zézico Alvim, filho do Major Alvim. O homem mandava em tudo

e a gente andava sempre junto. Um dia ele disse que estava feliz porque tinha vendido uma

casa e queria comemorar. “Vamos lá na Pastelaria do Porquinho, hoje você vai comer pastel

a valer. O Porquinho ficava na José Alvim, já faleceu também. Aí o Zezico disse: “Porquinho,

põe pastel aí que hoje o Mala vai comer até estourar”. O Porquinho colocou oito pastéis no

prato. Bati os oito. “Traz mais!” Vieram seis. Bati. E mais seis, e mais seis e aí foi. Quando

estava assim de pratinho o Zezico perguntou: “Quantos pastéis ele comeu, Porquinho?” O

Porquinho contou e falou: 38. “Então para”, gritou o Zezico. “O que passar dos 38, quem

paga é o Mala”. Parei, não agüentava mais. Grande figura o Zezico.” Conhecido do jeito que

é, tantas amizades, tanto carinho e respeito recebe das pessoas da cidade, o Mala poderia

ser eleito qualquer coisa, se quisesse. “Não, de jeito nenhum. Tenho nojo dessas coisas de

política.” Assim disse o Mala. Grande e querido Mala que Atibaia carrega com o maior prazer

e o maior carinho.

ensinou a tocar pandeiro quando deixei de ser baterista. Ele me ensinou a tocar de tal maneira

que até hoje sou considerado o melhor no gênero, aqui em Atibaia.” Enquanto conta Mala

demonstra sua habilidade com um pandeiro na mão. “Só eu faço o que faço no pandeiro”,

orgulha-se e apresenta o pandeiro que ganhou de Jorginho do Pandeiro, lá do Rio de Janeiro,

considerado o maior pandeirista do Brasil. “Ele me viu tocando e gostou tanto que me deu o

pandeiro que usava.” Ninguém consegue fazer as firulas e o malabarismo que Mala faz com

o pandeiro. Se o Jorginho é o maior do Brasil, Mala está entre os dez melhores”. Quem disse

isso foi a revista Veja, faz tempo”, proclama. Dando aulas de pandeiro garante que tem gente

boa aqui em Atibaia. “Um dos meus alunos já foi parar na Espanha”. Musicalmente falando

Atibaia desenvolveu bastante, ressalta. “Para mim está melhor. Antigamente não tinha o

Bourbon, o Village. Às sextas-feiras a gente se apresenta na Lanchonete Pernil, na Rua José

Alvim. Sempre sobra um “troco”. Ajuda...”.

Da cidade antiga“Atibaia era muito mais romântica. A gente fazia serenata, dois violões, um pandeiro um

cantor andando pelas ruas. Às vezes algum apaixonado contratava e a gente ia cantar embaixo

da janela da moça. As pessoas adoravam, abriam as janelas e ficavam admiradas. Nem os

pais da moça reclamavam. Hoje já não dá para fazer isso, se o conjunto passar cantando na

rua vem o bandido e leva tudo. Leva até a namorada...”, brinca. “Tem gente que pede, mas a

gente não se arrisca.” O que o Mala mais quer da vida é ver a netinha crescer. “É a paixão da

minha vida. Minha filha está bem, formada, mas minha netinha é tudo. Por ela faço até o

que não posso. Já tem até um pandeirinho para ela. Canta bem e tem ritmo, a danada. Coisa

de sangue”, orgulha-se.

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“Claro que eu me lembro de vovô. Vovô não era daquele tipo de pessoa ex-

pansiva e participativa com as crianças, mas era muito gentil com a gente.

Íamos quase todas as noites à casa dele. Naquele tempo as pessoas eram

mais formais, a postura familiar era outra e o relacionamento de pais, avós,

tios com suas crianças era mais distante. Adultos eram adultos e crianças eram crianças...”.

Dona Marina vai contando e o “vovô” de quem ela fala é ninguém menos que o Major Juvenal

Alvim. Ele mesmo, um dos personagens mais importantes, combativos e controvertidos da

história de Atibaia. Que deixou sua marca indelével na cidade. Afora tudo, o Major Alvim era

avô da doce Marina Alvim de Assis, 84 anos de idade, filha do não menos famoso José Pires

Alvim, o Zezico Alvim , personagem que também está na história de Atibaia. Dona Marina era

sobrinha de Joviano Alvim, outro dos filhos do Major. Joviano, farmacêutico de muita fama,

político, inclusive chegou a ser deputado estadual. Com todos esses predicados naturais, Dona

Marina é personagem importante na vida da cidade. Doce pessoa, 84 anos de idade, casada com

Jayme Assis Gonçalves, 88 anos, mãe de Paulo Flávio, Lilian, José e Marcelo, tem sete netos:

Fernando, Vivian, Pedro, Paula, Izadora, Marcelle, e Evelyn, e um bisneto, Lucas.

Do vovô, das ruas, do cinemaQuando começa a desfilar suas lembranças Dona Marina se transforma numa metralhadora

disparando em todas as épocas, em todos os sentidos, em todas as direções, costumes e vivên-

cias. Lembrando de tudo, pormenores, ainda se queixa da memória: “Às vezes eu embaralho

as coisas. Olha, até hoje eu chamo a rua José Lucas de rua Direita, pode? A rua Direita passou

a ser rua José Lucas, não é?”, pergunta. As histórias de Dona Marina são tão interessantes que

os nomes das ruas se transformam em meros detalhes. “Lembro bem do vovô. Era até meio

baixinho, meio gordinho, muito trabalhador. Tinha muitas fazendas, aqui e em outras cidades.

Histórias dos Alvins,contadas por Dona

Marina, uma neta do Major Alvim

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produzia aquele Xarope São João, que, com certeza quase todo mundo usou e todos conhe-

ciam.” Dona Marina conta: “Papai estudou no Liceu Pasteur em São Paulo, mas não concluiu

curso superior. Dedicou-se a ajudar o pai nos negócios de café. Vovô tinha duas beneficiadoras

de café, uma defronte ao local onde hoje está a rodoviária e outra em Caetetuba. Também

tinha uma fábrica de sacos de estopa, enfim, era um processo completo, a família plantava,

colhia, beneficiava e ensacava café. Em média umas 30 mil sacas por ano. Eu me lembro de

tudo isso.” Dona Marina teve um irmão e mais três irmãs. “Eu sou a mais velha”, sorri e mos-

tra fotos, exibe documentos, apresenta relíquias de família como dois quadros de Benedito

Calixto retratando a Atibaia do seu tempo. Ela fez o curso primário no José Alvim, que, por

sinal, era seu bisavô. “Estudei lá e depois fiz o ginásio e o normal em Bragança. Naquele tempo

era muito difícil estudar. Tive uma tia que aprendeu a ler e escrever com aulas particulares.

Bragança tinha colégio de padre para meninos e colégio de freiras para meninas. Isso quando

os pais podiam bancar. Eu fiquei no internato durante algum tempo. Me formei professora e

até dei aulas em Atibaia. Parei quando casei, tive um filho e não queria largá-lo”, lembra. O

marido Jayme entrou em sua vida quando ela estudava em Bragança. “Ele tinha uma fábrica

de calçados. Casamos, viemos para cá e ele começou a tomar conta da máquina de beneficiar

café de papai. Acabou se transformou no atibaiano mais fervoroso que eu já vi na vida”, sorri.

Jayme Assis Gonçalves é parente dos Leme, família de muito prestígio em Bragança Paulista.

“São meus primos”, conta. “Os Lemes tem tanto prestígio em Bragança quanto os Alvim aqui

em Atibaia. É verdade, mas agora diminuiu ou acabou, né? Aqui e lá. A fortuna mudou de

dono”, acrescenta.

Foi ele quem construiu o primeiro cinema de Atibaia, o Cine República. Foi ele quem cons-

truiu a Usina. Não, vovô não viajava muito; no máximo ia até as fazendas, até São Paulo e

Santos. Ele era produtor de café e tinha que estar atento a tudo.” De passagem, dona Marina

lembra da avó, Dona Gertrudes Pires de Camargo Alvim. “Eu gostava muito dela”. Gostosa e

respeitosa é a maneira como Dona Marina se refere aos antepassados, “Vovô”, “Vovó”, “Papai”,

“Mamãe”, “Titio”. Tudo com a maior naturalidade, sem a mínima afetação. “Vovô era muito

político; era do PRP. Vivia numa casa grande na rua Direita. Aquela que une as duas igrejas.

Repito, para mim continua sendo rua Direita. Vovô morou ali a vida inteira. Antes de falecer

mandou construir uma casa no largo da Matriz, mas não chegou a morar lá. Vovô morreu

com 72 anos”.

Das reuniões, da famíliaReuniões e mais reuniões, aquelas reuniões que aconteciam quase todas as noites no

casarão do Major Alvim também não saem da lembrança de Dona Marina. “Papai, mamãe

e nós, os filhos estávamos sempre presentes. Os homens vestiam ternos e ficavam na sala

da frente tomando um cafezinho ou um licor que os serviçais ofertavam. Sempre vinham

políticos, da cidade, de fora, da capital. Gente importante. As mulheres ficavam na sala de

jantar com as crianças. Crianças não podiam fazer algazarra. Mas era tudo muito gostoso.

Bolos e guloseimas. Me lembro bem que naquele tempo o cinema era mudo. E tinha uma

filha do major, minha tia Lucila que tocava piano durante a exibição dos filmes. Vovô Juvenal

e vovó Gertrudes tiveram oito filhos, seis mulheres e dois homens, que eram meu pai José

(Zézico) e meu tio (Joviano). Tio Joviano ficou muito tempo morando em São Paulo. Era

farmacêutico afamado, dono do laboratório Alvim & Freitas, muito tradicional até hoje,

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Perguntava: “e aí, o que é que você tem? Algum problema?” Sossegava quando a pessoa dizia

que estava todo bem. Papai era muito humano”. Parando para pensar Dona Marina diz com

toda a tranqüilidade: “Na verdade a fortuna foi por água abaixo. Ficou todo mundo remedia-

do. As escolhas foram mal feitas na hora de casar. Dividiu, dividiu, dividiu... O dinheiro não

agüenta desaforos”, filosofa. Jayme nem gosta de lembrar que o casarão da rua José Alvim

onde seu sogro morava foi tombado pelo ex-prefeito. “A troco de quê ele fez isso? Bronca

antiga. Acho que ele não gostava do meu sogro. A propriedade está lá e não se pode vender,

nem nada”, irrita-se. Dona Marina faz questão de esclarecer: “Vovô não era o ricão da história.

Ricos, no princípio, eram vovó Gertrudes e a família dela, os Pires de Camargo. Não lembro,

mas parece que vovô veio de Jarinu. Muito ativo dobrou a fortuna dos Pires de Camargo, que

eram fazendeiros também. A crise mundial do café abalou, mas vovô se reergueu com a ajuda

dos cunhados, os Pires de Camargo que tinham fazendas também. Eu me dava bem com a

filha de Florêncio Pires de Camargo, meu tio em segundo grau. Lembro que ia sempre à sua

casa. Paravam caminhões e caminhões com latas enormes de manteiga, uma fartura.” Dona

Marina mergulha em suas memórias...

Não há quem tireViajando no tempo, Dona Marina lembra de políticos que vinham de São Paulo para

visitar seu avô e seu pai. Fala dos fartos almoços, dos votos de cabresto, olha fotos, vê rostos

amarelecidos nas fotos em preto e branco dos passados e antepassados e rostos de jovens

coloridos e bonitos, do seu presente, netos, netas, todos seus orgulhos. Dona Marina encanta.

Um jornal é pouco para falar do passado e do presente, dos votos de cabresto, das congadas,

histórias de Dona Marina, do seu vovô Alvim, do seu papai Zezico, que era corinthiano roxo,

Da saudade“Sou muito saudosista. A vida de antigamente era mais gostosa”, queixa-se Dona Marina.

“A gente comprava nos armazéns, um quilo de arroz, um quilo de açúcar, uma tranqüilidade.

Nem existiam roupas prontas, tudo era feito por alfaiates e costureiras. As costureiras tinham

que fazer até soutiens, pois nem soutiens existiam para vender...”. Dona Marina se lembra que

morava numa casa que seu pai mandou construir. “Não dava para morar junto com vovô, nós

éramos quatro filhos, incomodaria muito”. Relembrando essa fase gostosa da vida, conta que

apenas as ruas principais da cidade tinham calçamento naquele tempo. Dona Marina diz

que sua mãe também deu aulas. “Lecionou contra a vontade de papai. Ele dizia: “Não, não

lecione, você não precisa disso, não deveria largar a casa”, mas ela respondia: “vou lecionar

sim, afinal meu pai se esforçou para que eu me formasse, não tenho o direito de largar”. Dona

Marina também deu aulas no José Alvim. “O meu pai era José Pires Alvim, pois levava o nome

de minha avó, Gertrudes Pires Alvim. Ele era alegre, político, muito caridoso. Gastou muito

com a política, era conhecido como “o pai dos pobres”. Ajudava mais do que podia. Para falar

a verdade, os filhos de vovô não se casaram com gente rica. Os filhos de meu pai também

não. Então, o dinheiro foi indo, foi indo... acabou. A única diferença foi minha tia Maria que

se casou com Clóvis Soares que era muito rico. Meu pai se dizia: “um remediado”.

Dos Pires de CamargoDona Marina conta que a família era muito religiosa e ia à missa. “Depois de certa idade

a gente nem precisa mais ir à igreja. Ajoelhar, levantar, ajoelhar, levantar, isso já não é mais

para mim. Sou muito comodista”, diz, e morre de rir. “Meu pai era rueiro, saia, conversava

com todo mundo, cumprimentava a todos. E ficava bravo quando alguém não correspondia.

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como ela diz e brinca para encerrar a entrevista. Fortuna para quê, dona Marina? O nome

dos Alvim está na história de Atibaia. Isso não haverá quem tire.

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Como se verá logo a seguir, Atibaia teve muita sorte pelo fato do jovem Milton

Facio ter se apaixonado pela também atibaiense Edith Florido. Milton, que nas-

ceu aqui, foi embora aos 5 anos de idade, quando seu pai levou para a cidade de

Araçatuba, no oeste do Estado, a fábrica de macarrão que tinha em Atibaia. Ele

apostava no crescimento daquela região que estava nascendo e prometia muito progresso. No

fim, a idéia não deu tão certo assim e a fábrica não vingou. De qualquer forma o pai de Milton

acabou comprando uma fazenda de café e ficou por lá. Café era um grande negócio na época e

recebia todo o apoio do governo. Até que negociar com café acabou virando pó, literalmente.

“Foi uma crise muito grande, o mundo deixou de comprar e o mesmo governo que tanto tinha

incentivado o plantio, mandava queimar tudo. Deu numa quebradeira geral”, revela Milton.

Nesse tempo, vez por outra ele visitava Atibaia e acabou conhecendo Edith, sua paixão. E foi

por causa dela que voltou para cá aos 26 anos.

Fabricando guaranáMilton Facio, que hoje já está com 92 anos (completa 93 em outubro próximo), casou-se

com a jovem Edith Florido Facio. O casal teve dois filhos, o advogado Milton Washington, e a

professora Ligia Facio. Vieram seis netos e seis bisnetos, mas ele ficou viúvo. Voltando no tem-

po Milton lembra de quando vendeu tudo o que tinha em Araçatuba e em Andradina, cidade

próxima onde também viveu antes de vir refazer sua vida por aqui. Para começar, comprou a

fábrica de refrigerantes Rosita, muito famosa, na época, e que pertencia a Arquimedes Rosa,

cuja família era proprietária da Casa Rosa, uma das tradições da Atibaia antiga. Ao contar essa

história, Milson faz questão de lembrar um pouco do tempo da “quebra do café” no Brasil.

“Foi um horror. Todo mundo perdeu o que tinha, muitos ficaram sem ter o que comer. As dez

ou doze famílias que trabalhavam na fazenda de meu pai também passaram por dificuldades

Aos 93 anos Milton Facio conta histórias dos bons

negócios desta cidade

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Dos refrigerantes para as estradasParado? Não, Milton nunca parou. Comprou um bom sítio em Jarinú e plantou uva.

“Comecei fabricar vinho e vendia muito bem. Em 56 fiquei sócio da Viação Atibaia. Era eu,

o Cido Franco, o João Valério da Silva e o José Soldera. A empresa já existia e já rodava na

região. Só que era uma “carraiada” velha, caindo aos pedaços. A gente atendia Joanópolis-

Atibaia-São Paulo-Nazaré-Guarulhos-Bragança-Piracaia. Ficamos sócios uns 18, 20 anos.

O movimento era grande, mas as estradas uma porcaria, todas de terra. Daqui para São

Paulo, daqui para Joanópolis, Piracaia, Nazaré, terra pura. Subia e descia serras, e no tempo

das águas era um sofrimento. Uma viagem daqui para São Paulo demorava muito mais que

duas horas. De Joanópolis para São Paulo quase quatro. Eu ficava na administração, o João

Valério, que a gente chamava de “João Mineiro” cuidava da oficina e o Cido Franco ficava na

parte do tráfego, organizava viagens, cuidava dos funcionários, tomava conta de motoristas,

cobradores. Era o administrador”. Milton não esconde a saudade...

Das idas e voltasA empresa mantinha quatro viagens por dia, ida e volta, daqui para São Paulo. E duas

viagens por dia para Piracaia. O ônibus para Joanópolis partia à tarde e retornava na manhã

do dia seguinte. “Atibaia era o centro; vinha tudo para cá e daqui saia para São Paulo, sempre

nos melhores carros. O ônibus urbano só servia Caetetuba, aonde chegavam os trens que

vinham de São Paulo, de Bragança ou de Jundiaí. O ônibus esperava o trem chegar e vinha

para o centro da cidade. Não lembro quantos trens vinham, mas era pouco. Um para Piracaia,

outro para Bragança, por aí.” Milton não se conforma até hoje com o fato de terem “cortado” o

trem. “Foi uma judiação. Era uma beleza e acabou abandonado... Muitos dizem que os donos

como todo mundo. Dava dó. Muitos não tinham nem o que vender para poder comer. Nós

éramos sete irmãos: cinco homens, duas mulheres. Só consegui fazer o curso primário”, desa-

bafa. “Comprei a fábrica de guaraná por trinta mil contos. Não lembro qual era a moeda. Sei

que dei vinte mil de entrada e paguei o resto depois. A fábrica tinha só a máquina de fazer o

guaraná, os vasilhames e um caminhãozinho para as entregas. Acho até que paguei até um

pouco mais do que valia”, brinca.

Experimente um RositaUm dos irmãos de Milton, que era contador, acabou como sócio no empreendimento.

“Foi então que soubemos que a fábrica estava interditada pelo pessoal da saúde, imprópria

para trabalhar. Vai ver que foi por isso que o Arquimedes vendeu...”, ironiza Milton. Naquele

tempo a fábrica ficava na Avenida São João, onde hoje está Drogaria do Povo, depois foi

para a Praça Dom Pedro. “Um local mais apropriado. Ficou tudo bonitinho e começamos

a trabalhar. Também começamos a distribuir produtos da Antártica. O guaraná Rosita era

muito bem aceito e a gente vendia aqui, em Piracaia, Nazaré, Perdões. Atibaia tinha uns 40

mil habitantes na época, Piracaia era pequenina, da mesma forma que Perdões e Nazaré. A

produção era razoável, acabamos comprando um novo local onde construímos uma fábrica

nova. Fiquei uns dez anos fazendo guaraná, xaropes, licor de cacau, anizete e sambuca, uma

bebida destilada à base de álcool, que dava um “fogo” danado...”. “Os produtos da Antártica

eram o forte de vendas e a gente também engarrafava pinga, e vinho. Fiquei dez anos nisso,

pois o negócio era bom, nem sei por que vendi. Acho até que fiz besteira, pois fiquei mais

de ano parado”.

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Carregando a saudade Sua vida é normal. Vai ao sítio, sai para fazer compras, sai em “comitivas” para Aparecida

do Norte. Ainda anda a cavalo e passeia com charrete. “A gente leva uma semana para chegar

a Aparecida. Saímos às segundas e chegamos lá aos domingos. Vamos pousando nas que-

bradas.” Viaja com os netos e bisnetos. “Um dos netos conhece bem os lugares para a gente

pousar no caminho”. Mês que vem vai sair de novo em comitiva para Aparecida. “Adoro isso.

Mas também caminho por aí, freqüento academia. Faço fisioterapia para cuidar da perna que

anda meio cansada. Vou, faço exercício e volto. Vou às compras, vou ao mercado e fico com

meus bisnetos. São todos palmeirenses como o bisavô”, sorri orgulhoso. Milton tem saudade

dos amigos “Restaram poucos. De vez em quando eu falo com o Plácido Rosa. Dá saudade da

Atibaia daquele tempo. Tinha três ou quatro automóveis. Lembro que eu tinha um carrinho

29”. Milton foi dono do primeiro posto de gasolina da cidade, aquele posto Esso da Praça da

Igreja do Rosário. “Ali era uma oficina caminhões. O Nho Quim do Posto Record e o irmão

dele trabalharam lá, comigo. Tinha poucos carros na cidade. Nem sei para quem a gente vendia

gasolina. O pessoal da Casa Rosa também tinha uma bombinha de gasolina lá na Praça da

Matriz”, recorda-se. Do alto dos seus 93 anos, bem que Milton gostaria de fazer alguma coisa

nova. “Quem toca os negócios hoje são os meus netos, eu só dou palpites”. Não se arrepende

de não ter feito mais coisas. “Acho que por não ser tão “atirado”, fiz até demais. Sou meio

acomodado...”. Alguém acredita nisso? Nem dá para imaginar se ele fosse “mais atirado”...

Sua única reclamação é a saudade. “Minha mulher faz muita falta. Vivemos juntos por mais

de 60 anos. Eu ainda tenho saudade”, revela, disfarçando e escondendo uma lágrima.

das empresas de ônibus forçaram a parada do trem. Que mentira! Foi mesmo uma judiação.

O pessoal que morava ao redor das estações, Maracanã, Campo Largo ficou perdido, sem

condução. Não tinha nem estrada para o ônibus passar”, lamenta-se.

Dividir para somarMilton ficou na empresa até o ano de 1973. “Aí ela se dividiu, eu fiquei com uma linha de

ônibus para Jundiai e outra entre Joanópolis e Bragança. O João Valério ficou com a outra

parte. O Cido ficou com algumas linhas e acabou vendendo para o Juvenal Alvim. Depois ele

comprou o Grande Hotel Atibaia que estava abandonado, reformou, deixou muito bonito.

Vendeu quando começou a funcionar. Já capitalizado comprou a Viação Atibaia de novo.

Foi bom, deu tudo certo para ele, a empresa cresceu e é essa beleza que se vê hoje. O Cido

acabou comprando a minha empresa que ia de Joanópolis para Bragança e fechou o círculo”.

Lembra Milton, que depois ficou sócio da empresa de ônibus Bandeirante. Essa empresa

atendia a região de Taboão da Serra, Campo Limpo, Embú, Itapecerica, Francisco Morato,

no entorno da Capital. “Fiquei lá uma porção de tempo até passar para o meu filho. Eu me

dava muito bem com o Cido. Uma grande pessoa. Nunca tivemos problema”. Rodeado pelos

bisnetos Gabriel, Dodô, Mateus, Léo, durante toda a entrevista, Milton diz que ultimamente

faz pouca coisa. “Andei comprando terrenos, fazendo incorporações de prédios, comprei uma

pedreira, uns negóciozinhos por aí...”, brinca. Na verdade Milton é um eterno empreendedor

e sempre esteve no meio dos bons negócios já feitos ou que ainda se faz na cidade. “Tivemos

um depósito de material de construção, construímos alguns prédios”. Milton adula um bis-

neto, brinca com outro, conta histórias, a garotada assiste, atenta. Um dos netos diz que vai

ser jornalista e contar histórias do “bisa”. Milton ri.

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Este depoimento deveria demorar pelo menos um ano. E isso seria só para começar.

“Se eu fosse contar tudo o que já vivi, os problemas, os momentos engraçados,

as emoções, seriam necessárias horas e horas, dias e dias, anos de entrevista”, diz

Nicolino de Oliveira, 83 anos. Seu depoimento foi um dos mais longos e mais

gostosos desta série. Nicolino percorre todos os horizontes, fala sobre trabalho, futebol, filo-

sofia, psicologia, economia. Atrás de sua figura franzina (ele se confessa um “baixinho”, com

pouco menos de 1,60 de altura), existe uma verdadeira e brilhante enciclopédia ambulante.

Fala um Português corretíssimo, sem vícios de linguagem; um Inglês bem razoável (escreve

muito melhor do que fala...), um Espanhol, mais para mais do que para menos e arranha um

Francês. “Acho que aprendi tudo isso porque comecei a vida como telegrafista. Naquele tempo

os telegrafistas eram obrigados a pelo menos “tatear” tudo quanto é língua”, brinca o humilde

(além da conta) Nicolino.

Ele é indispensávelQuem é ligado ao futebol da cidade conhece, ou deveria conhecer Nicolino de Oliveira,

afinal ele é a alma do futebol atibaiense. Sua entrada oficial no “campo” deu-se em 1983. “A

Liga Atibaiense de Futebol era tocada pelo repórter José Batista de Lima César, ele se cansou

e largou. Atendi ao convite de alguns esportistas e reativei a entidade”. De lá para cá Nicolino

colecionou uma verdadeira biblioteca de súmulas, relatórios, regulamentos, campeonatos,

disputas. Ele tem registrados todos os jogos oficiais já disputados na cidade por equipe e por

divisão nos últimos vinte e tantos anos. Levando-se em conta que em Atibaia se disputam

campeonatos em três divisões, fora as categorias de base e dos veteranos, dá para se imaginar o

trabalho de Nicolino. Que sabe de tudo e controla tudo. Às vezes até sem recorrer aos arquivos.

“Sou muito detalhista”, resmunga. E ninguém mexe nos “seus livros”, a não ser por absoluta

Nicolino de Oliveira prova que a vida é um

grande futebole que o futebol é a vida

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pagar impostos e suas propriedades foram apropriadas pelo Estado. Enquanto eu tomava

conta, até 1976, ninguém mexeu em nada. De lá para cá...”. Nicolino não esquece os pro-

blemas que encarou como responsável por tudo aquilo. “Resisti”, conta, orgulhoso. “O povo

é o maior depredador do mundo. Acaba com tudo. Invadiram, deu no que deu...”. Nicolino

esparrama conhecimento ao explicar que a palavra Caetetuba, que dá nome ao local ao bairro

que abrigava a estação do trem, vem do Tupi “e se traduz por folha larga, ou folha viçosa.

Tuba quer dizer grande e Caete planta bonita”. Filosofando, diz que não existe salário bom

ou ruim. “O problema da pobreza é gastar mais do que ganha”. Na época seu salário era bem

razoável. “Consegui formar meus filhos e todos eles tiveram acesso ao curso superior. Eles

também me ajudaram muito”.

Ensinando a viverNicolino têm receitas para tudo, opiniões formadas na vida, sabe o que está falando.

Autodidata, filosofo por pensar muito e ler bastante, passa o dia matutando. Queixa-se da

atual formação da juventude atual “pais e jovens não se entendem e a violência predomina.

Inclusive nas escolas, com os professores sendo agredidos. O mundo mudou muito”, dispara.

Por incrível que pareça, Nicolino não tem salários, não ganha nada da Liga. “Vez por outra,

me ajudam quando preciso”. Então, por que ele está lá? “Por gosto. Gosto de trabalhar, me

movimentar. Imagine ficar em casa o dia inteiro sem fazer nada... Não, eu venho trabalhar.”

Invariavelmente Nicolino chega à Liga entre 8 e 9 horas da manhã e fica até o final do dia.

Todos os dias. A Liga ocupa um anexo do campo do Alvinópolis, ele mora lá pelos lados do

Cemitério São João Batista, uma caminhada e tanto. “A distância não é problema; problema

é a falta de tempo para percorrer as distâncias”, filosofa.

necessidade. “Isto é um tesouro”. A história em números do futebol da cidade está ali. Esse

detalhamento, essas minúcias vêm também da sua prática como telegrafista da SPR – São

Paulo Railway, a antiga estrada de ferro que passava por aqui.

Despachando por tremNicolino ainda ocupou outras funções na estrada. Cuidou do setor de bagagens, do fatu-

ramento, foi conferente, despachante e chegou ao cargo de Chefe de Estação. “O movimento

entre Bragança e Atibaia era muito grande. Para chegar a Campo Limpo, partindo de Atibaia,

o trem percorria as estações de Caetetuba, Maracanã, Campo Largo, Iara e km. 7. Em Campo

Limpo se fazia a baldeação para Jundiaí ou para Santos. Eu ficaria um ano contando as his-

tórias da estrada”, relembra com saudade. Nicolino é viúvo, casado em segundas núpcias

com Maria Joana Maciel. Tem quatro filhos, Israel de Oliveira, hoje aposentado da CESP;

José Antônio de Oliveira, psicólogo; Carlota Joaquina de Oliveira, professora de Inglês e a

também professora Magnólia Paula de Oliveira. Ele conta que o trem transportava muito

café para o porto de Santos. E madeira. “Vagões e mais vagões, cheios de pinho para fábricas

de papel. Levava também muita pedra que vinha de Piracaia. O granito de Piracaia era dos

melhores”, garante.

Segurando tudoQuando a ferrovia foi desativada Nicolino continuou tomando conta do patrimônio da

empresa durante dez anos. “A gente fazia relatório do ferro, madeira, tudo o que havia so-

brado. Eu mesmo levei uma carga de ferro, por rodovia, para ser reciclada em Betin, Minas

Gerais. As terras por onde a estrada passava pertenciam aos ingleses. A empresa deixou de

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ninguém ensina. Tentam ensinar, mas não conseguem. Até porque futebol não se ensina. É

um dom. Quem não tem dom, não joga”, sentencia. “Futebol e samba não se aprende na es-

cola”, explica e pergunta: “Sabe o que quer dizer a palavra samba, na áfrica? Significa cultura”.

Onde Nicolino aprende tanta coisa? “Lendo, conversando. Sempre tive boa memória”.

Bola-murchaE aqui vai outra de suas revelações: “O futebol acabou porque acabaram os talentos. Poucos

sabem “matar” a bola, e esse é um dos grandes segredos do futebol. Hoje em dia o goleiro já

não sabe encaixar a bola, só sai dando murros nela. Não pode. Os técnicos querem ser gê-

nios, quando sua função é apenas corrigir e ensinar o melhor caminho, a melhor tática, não

mais que isso. O sábio escuta as criticas do inimigo e agradece. O néscio fica bravo e acaba

se tornando mais néscio ainda. Quando alguém lhe der um conselho agradeça e pense. Se

o que lhe foi aconselhado é melhor do que aquilo que você sabia, coloque em prática. Se for

pior, despreze”, ensina o filosofo Nicolino, que nunca quis ser técnico. “E nem jogador, minha

altura não permitiu. No meu tempo era a força física que prevalecia no futebol e a altura influía

muito”, confessa e acrescenta: “Pensando bem, até que a altura não seria documento. Apesar

do seu mau comportamento fora do campo o Maradona era um craque. Napoleão Bonaparte

era bem baixinho, e Pedro, o Grande, apesar do nome também era pequenino”, brinca.

Já viu tudoNicolino nem imagina o número de jogos que já viu na vida. Diz que o Brasil perdeu o

campeonato porque tinha muitos novatos. Lembra de Baltazar, o “cabecinha de ouro”, nas

jogadas tradicionais do Corinthians: “O Cláudio centrava e ele entrava de cabeça”. Fala do

Sufoco em campoNicolino tem respostas para tudo. “O futebol de Atibaia conta com 12 times na primeira

divisão, 10 na segunda e 12 na terceira. É instável, um ano tem um tanto de times, outro ano

tem outro tanto. Por mil razões os times são criados e somem”. A diretoria executiva da Liga

é praticamente a mesma há dez anos. Coisa para malucos e denodados. Já se viu que ela ofe-

rece muito mais trabalho do que vantagens e mal se mantém. Desde 1990 a Prefeitura ajuda

um pouco. Em média os times pagam 120 reais por ano. Além do campeonato municipal a

Liga organiza a Copa Atibaia e a Copa de Veteranos, fora as categorias de base e, de vez em

quando os campeonatos femininos. Tudo devidamente anotado e catalogado em súmulas

que vão diretamente para os arquivos de Nicolino. Orgulhoso, ele também guarda recortes

de notícias publicadas em jornais da cidade sobre o futebol de Atibaia nos últimos anos. Os

jogos são realizados no campo do Alvinópolis, do Grêmio, do SPR e nos campos dos vários

times filiados à Liga. Quando Nicolino começou o campo do Alvinópolis nem existia. “Jogavam

num campinho beirando a pista da rodovia.” Ele conhece a história de cada campo.

Dos bons de bola“Os bons jogadores de Atibaia? Eu me lembro do Binho e do José Teixeira, por exemplo.

Eram muito bons de bola. O grande problema no futebol é saber ouvir o técnico. Futebol é

um jogo de equipe, além de ser bom, o jogador tem que saber ouvir conselhos”, ensina, acres-

centando que a cidade já teve grandes equipes. “Tinha o São João, e até o Operário Futebol

Clube, cujo campo ficava onde hoje é o prédio da Prefeitura. O time era bom até que um

dia perdeu de 8 a 0 e desmanchou”, conta. Nicolino não esconde que anda meio aborrecido

com o futebol. “Está ruim demais. Já não sabem nem chutar direito. E sabe por quê? Porque

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Corinthians, mas é sampaulino desde que o São Paulo era “Paulistano”. Deixou de freqüentar

o Pacaembu por causa da torcida. “Não tem a mínima educação e falta ao respeito. Quem

sentava lá em cima ficava jogando urina nos que estavam sentados mais abaixo”. Esbanjando

cultura, lembra que sua mãe já morou em favela e nunca teve queixas de ninguém. “A vida

não é ter dinheiro, é saber fazer, e ter amor em fazer ou fazer com amor”, ensina. Já deixou de

ir aos campos. Antes trabalhou muito como mesário sem ganhar nada. “Mesário agora ganha

vinte reais por jogo”. O filósofo Nicolino de Oliveira é a história bem contada do futebol e

de Atibaia.

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Conta a lenda que um daqueles soberanos famosos que os livros estão cansados de

citar, um daqueles conquistadores de terras e gentes, um dia se cansou de vencer

as grandes batalhas e resolveu convocar seus súditos para que descobrissem algum

desafio novo que ele pudesse enfrentar. Uma nova batalha, uma grande disputa.

Oferecia fortuna e prestígio para quem lhe contentasse. Apareceu um rapaz que lhe apresen-

tou um desafio curioso. Era um simples tabuleiro com diferentes peças que levava o nome de

xadrez. O rapaz ensinou todas as minúcias do jogo para o soberano e depois jogou contra ele.

O prêmio solicitado pelo tal rapaz seria que ele ganhasse apenas 1 grão de trigo na primeira

casa do tabuleiro, 2 grãos no segundo, 4 no terceiro, 8 no quarto e assim sucessivamente o

número de grãos de trigo ia se multiplicando a cada casa. O grande soberano percebeu que

o tabuleiro tinha 64 casas. Faça as contas e veja: não havia no reino tantos grãos de trigo que

pagassem a quantia que o rapaz havia pedido. O mundo nunca mais foi o mesmo, o xadrez

ganhou espaços, mentes e corações e passou a intrigar as cabeças de estudiosos e estrategistas.

“Existem pelo menos umas duzentas mil maneiras de se movimentar as pedras em um jogo de

xadrez”, ensina Orlando de Souza Oliveira, que desde criança é um sujeito maluco por xadrez,

capaz de enfrentar até três adversários simultaneamente, nas chamadas “partidas cegas”, ou

seja, quando um dos jogadores, no caso ele, joga sem olhar para os tabuleiros dos seus três

adversários, como se verá mais adiante.

Uma lição de vidaO jovem Orlando, apenas 82 anos, casado com Carolina Passerini vive em Atibaia há mais

de trinta anos. É pai do economista Sergio e da especialista em marketing Marisa. Ele é avô de

Jéssica, Sonia e Daniela. Ninguém melhor que o Orlando para falar sobre o xadrez, seu vício.

A propósito, quem consulta o Google dá de cara com nada menos que 8.640.000 respostas

O rei, a rainha, bispos, torres, cavalos e peões que habitam o mundo encantado no xadrez da vida do campeão Orlando

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estava seguindo os passos de meu pai”. Peça indispensável acabou sócio da empresa. “Ensinei

o ofício para muita gente”, orgulha-se. Quando percebeu que seu tio já estava cansado e falava

em fechar a firma, começou a trabalhar com um tipo de gravura em timbrado. Essas gravu-

ras gravadas em chapas de ferro usadas para imprimir em alto-relevo. Esse tipo de trabalho

continua sendo usado pela Casa da Moeda para fazer matrizes das moedas que circulam por

aí. “As figuras, números, tudo é feito em chapas de ferro. Sou um dos poucos especialistas

desse ofício que aprendi no Senai, no curso de etiqueta e gravura para timbrado”. Orlando

criou peças marcantes em sua vida e tinha clientes importantes como o Relevo Araújo, por

exemplo, uma empresa altamente especializada no gênero.

O computador chegou, que pena“Essa arte murchou quando o computador chegou. Só ficaram aqueles que continuam

trabalhando na Casa da Moeda”, lastima-se Orlando, hoje já aposentado e tranqüilo. Mas seu

inconformismo em relação ao computador não se restringe ao fato da extinção de seu ofício.

“Eu acho que o computador acabou também com a beleza do xadrez”, queixa-se. “Triste saber

disso, pois eu sempre vivi o xadrez. O xadrez foi minha referência de vida desde criança”,

pondera. Orlando conta que jogava sem teoria, por puro prazer, até que um dia lhe caiu nãos

mãos um livro sobre xadrez. “Devorei aquilo e nunca mais larguei. A Gazeta Esportiva, um

grande jornal da época, em São Paulo, costumava organizar vários torneios de xadrez. Lembro

que juntei uns amigos e montamos um clube de xadrez no Belém, bairro onde morávamos. E

participamos de tudo quanto era campeonato. A coisa foi longe. O clube ficou famoso, durou

mais de 50 anos e nós enfrentamos excelentes adversários”. Orlando não consegue disfarçar

a emoção. Ele ainda guarda planilhas, recortes, fotos de cada campeonato, cada conquista.

sobre o tema. E se o descrente leitor pensa que o xadrez é um jogo de malucos ficará surpreso

ao saber que, muito antes pelo contrário, o xadrez é pura lucidez. Rima verdadeira. “É uma

lição de vida”, opina Orlando, com toda convicção. “O xadrez é jogo que se joga por inteiro.

Só se ganha quando se tem o todo na cabeça. Nas situações quando se consegue ver do deta-

lhe para o todo e do todo para o detalhe. O xadrez é como a vida: um detalhe pode resolver

tudo, só que, às vezes, quando a gente só se preocupa com o detalhe, acaba perdendo até a

vida”. Sábias palavras. Na verdade verdadeira Orlando é o tipo da pessoa que nasceu para ser

artista. Seu pai, um português, era joalheiro de primeira água, conhecido como “Manoel dos

Cordões”, pois criava peças requintadas que valiam muito mais do que o seu peso em ouro.

“Não o conheci, ele morreu quando eu tinha dois anos. Todos os profissionais do ramo que

encontrei pela vida elogiavam o seu trabalho. Herdei dele essa habilidade manual que fez de

mim um artesão.” Criança ainda Orlando foi levado pela mãe a uma escola técnica, um liceu

de artes e ofícios que havia no bairro do Belenzinho, onde ele vivia. Sua imaginação ganhou

asas e ele aprendeu os ofícios da pintura, marcenaria, entalhação.

Um artista da prataCriança ainda foi trabalhar como cincelador na “Casa das Pratas”, muito famosa, pela

arte em jóias que vendia. Cinzelador? Sim, cinzelador, artífice responsável por gravar letras

ou caracteres em superfícies duras. Orlando criava peças em prata, aparelhos de chá e café,

entre outras jóias, belezas que já não se vê mais por aí. Riqueza de detalhes. “Aquilo não

era trabalho, era prazer puro para mim. Modelava objetos em chapas de prata, criava jóias,

adorava fazer aquilo”. Jovem ainda, aos 16 anos foi trabalhar com o tio, artífice também no

segmento da prata. “Apesar de trabalhar com prata e ele com ouro, de alguma maneira eu

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Depois que um competidor faz quatro lances e recebe quatro respostas, o número de lances

possíveis sobe para 200 mil, por aí”, explica. Humilde, Orlando diz que não é um grande joga-

dor de xadrez, mas um “gostador” de jogar xadrez. “Perdi muitas partidas, mas aprendi muito

mais no perder. No meu conceito, ganhar é fácil, mas a grande valia de perder é aprender com

os próprios erros”. Orlando já organizou inúmeros torneios populares em praça pública, tem

centenas de entrevistas publicadas em jornais e revistas importantes, chegou a reunir mais

de 120 competidores em um torneio realizado no largo São José do Belém, em São Paulo,

por exemplo. “O grande momento do xadrez brasileiro ocorreu com o Mequinho. Pena que

ele teve poucos seguidores, se bem que hoje temos bons jogadores no país. Mas falta apoio

e a criançada não se interessa, afinal, o computador atrai muito mais a atenção”, queixa-se.

“Uma pena. O xadrez educa a pessoa, ensina a respeitar o adversário, a dar valor à vitória.

Xadrez é um jogo honesto, não tem como roubar”.

Jogando às cegasCampeão várias vezes em seu clube, em São Paulo, Orlando ainda conseguia executar

a proeza de jogar “Partidas cegas”, aquelas partidas que se disputa sem ver o tabuleiro. “Os

adversários ficam defronte ao tabuleiro e eu fico sentado bem longe, sem ver os tabuleiros

deles. Já cheguei a jogar dessa forma contra três adversários. Cada um com seu tabuleiro. Dou

lance para os tabuleiros 1, 2 e 3. Aí vem a resposta do tabuleiro 1. O adversário deu tal lance.

Então eu tenho que lembrar do lance que dei naquele tabuleiro para dar a minha resposta.

Depois vem a resposta do tabuleiro dois e do três e assim por diante. Eu vou respondendo.

Se jogar vendo o tabuleiro já é difícil, imaginem jogar sem ver. Claro que é muito difícil a

pessoa conseguir fazer isso. Tem jogadores que jogam “Partidas cegas” contra cinco, seis,

“Joguei com adversários muito fortes. Ganhei muito, perdi muito também”.

A queda da inteligênciaEm sua maneira de ver o xadrez perdeu prestígio. “Em parte porque a inteligência caiu.

E isso em nível mundial. O que era um jogo de ciência virou um jogo de competição”. Não

se pode esquecer que o xadrez já foi um jogo importantíssimo, principalmente na época

da guerra fria. “Chegou a ser obrigatório nas escolas da Rússia. É um jogo que desenvolve o

intelecto.” Ele admite que as pessoas mais velhas encontram algum tipo de dificuldade para

jogar, pois, com a idade, o cérebro fica mais lento. “Hoje eu conheço mais o xadrez do que

conhecia há algum tempo, só que tenho dificuldades em jogar com rapidez. E o tempo de

duração das partidas vem diminuindo. Nos últimos jogos regionais o tempo máximo era duas

horas. Na primeira hora os jogadores deveriam dar 23 lances e a partida deveria terminar

na segunda hora, ou pelo mate ou pelo tempo. E esse limite caiu ainda mais. Não se deve

esquecer que existem pelo menos vinte maneiras para se começar uma partida de xadrez.

São vinte maneiras diferentes de dar o primeiro lance. Imagine o resto”, protesta. Ao lado

de amigos, Orlando formou um clube de xadrez aqui em Atibaia, na rua José Bonifácio, na

Galeria Neusa Monteleone. O clube funciona todas as sextas à noite e sábados à tarde. “Por

enquanto temos poucos associados, mas a tendência é crescer”, especula.

Jogue também“Se é difícil jogar xadrez? Acho que não, jogo desde criança. Apesar de não me considerar

professor consigo passar um pouco do que sei. Na verdade eu penso que o xadrez é infinito.

Um pequeno tabuleiro que contém toda essa magia, todo esse peso, toda essa importância.

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dez adversários ao mesmo tempo. Eu só consegui enfrentar três adversários. Ganhei duas

partidas e perdi outra”, conta, orgulhoso.

O xadrez e a vidaFilósofo, além de artista, Orlando ensina que o jogador de xadrez tem que ficar atento em

todo o tabuleiro. “Uma pedra lá num canto poderá influir em tudo. O xadrez é como a vida:

às vezes se olha o detalhe sem ver o todo. Às vezes se vê o todo e não se repara no detalhe.

Tanto se pode perder porque não se observou o detalhe porque se estava vendo o todo, como

se pode perder porque se olhou o todo e não se preocupou com o detalhe”. E assim Orlando

vai vivendo os detalhes no todo do xadrez da vida, já que ele é um filósofo e um artista vivo.

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“21 de abril, 21 de abril”. Otávio Tavares do Nascimento, 83 anos, repete insis-

tentemente: “21 de abril”. Parece que ele voa no tempo. Usa seu arrastado

sotaque nordestino e conta: “Bem hoje, nesta mesma data, há 50 anos eu

estava em Brasília. Vi e vivi a festança da inauguração. Eu era um daqueles

candangos. Trabalhava como lubrificador de máquinas. Não esqueço nunca. Fiquei em cima de

um caminhão-tanque, bem na Praça dos Três Poderes. Em frente tinha o prédio do Itamarati e

tinha a catedral de Brasília. Eu me sentia todo orgulhoso de ser brasileiro naquela avenida por

onde passou o desfile que a televisão mostrou no dia 21 agora. Naquele tempo o piso da aveni-

da era de terra mesmo. A avenida só tinha a calçada. O Exército veio de Goiás para desfilar. Eu

trabalhava numa firma de engenharia e na véspera o chefe falou: “Otávio, você vai ter que “tirar

serviço” amanhã. O encarregado se chamava Arantes. Fiquei ali pra nada, só vendo, todo formo-

so”, lembra, e sorri.

Melhor que ontemO 21 de abril de 1960 pode ter sido um dia histórico dia na vida de Otávio, mas não foi o melhor

dos seus dias: “Meu melhor dia é hoje. E vai ficar melhor amanhã, porque o amanhã é sempre

melhor”, sustenta com a bravura nordestina. Otávio Tavares do Nascimento é uma dessas figuras

diferenciadas, meio místico, meio filósofo, muito popular nos lados da Caetetuba onde mora.

Todo santo dia sai cedo de casa, na estrada do Maracanã, perto da antiga estação de Caetetuba e

vai para os lados da Estrada da Usina, onde fica arranchado, como se diz no seu Nordeste. “Passo o

dia numa pequena propriedade de um amigo, o Magú. Grande homem, grande pessoa.” Plantando,

carpindo, cuidando, dormindo, brincando com seus cachorros, curte o sol, o vento, o tempo.

Conversa até com as abelhas, com a natureza e com a vida. Aos 83 anos já tem alguma dificuldade

para enxergar. “Mas me arranjo...”. Dificuldade também para andar. “Mas me arrasto...”.

Otávio, um filosofo que já foi candango,

viu Brasilia nascer e vê Atibaia crescer

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Ainda o Juscelino“Juscelino e a candangada”, Otávio se empolga. “Era um homem simpático, um homem

limpo o Juscelino. De chegar e falar com o povo. Não era desses que andasse com um batalhão

para proteger; era ele e um soldado, só. A candangada pedia e o soldado escrevia tudinho o que

pediam, no papel. Acho que alguns ganhavam sim. Teve deles, que eu ouvi, de pedir carro a ele

e ele disse: “peça um objeto menor”. Eu me lembro bem. De minha parte nunca pedi nem um

lenço a ele. Nunca fui de pedir nada a ninguém.” Otávio trabalhou seis meses em Brasília.

Nos começos“Nasci e fiquei sete anos vivendo no distrito de Brejão, perto de São João de Garanhuns,

Pernambuco. É a terra do presidente. Sei até onde o Lula morava. Passei muito na terra dele

carreando madeira para levar para São Bento do Una (carrear: conduzir carro de boi). Carreei

durante dezoito anos”. Otávio também foi vaqueiro e tocador de gado. Brincando com as palavras

diz com jeitão nordestino: “Ainda não fui cego de guia, mas já fui guia de cego”. Empolga-se, solta

o verbo e solta o verso: “O poeta diz assim: “melhor chupar um confeito do que passar fome um

dia. Melhor a banda de um ovo do que a casca inteira vazia. Melhor ser guia de cego do que ser

cego de guia”. Eu guardei esses versos na memória e um dia estava passando na rua e alguém me

chamou e suplicou: “Distinto, se chegue e, por favor, me atrevesse (sic) essa rua...”. Eu cheguei

e atrevessei, (sic). Era um cego que me pedia ajuda e eu pude atender. “Naquele dia eu fui um

guia de cego...”. O emocionado Otávio esparrama poesia e filosofia.

Idas e vindas

Tudo igualComo na música do Chico, todo dia ele faz tudo sempre igual... Vem e vai empurrando seu

carrinho de mão. “Eu já não sei se levo o carrinho ou se o carrinho é quem me leva.” Otávio carrega

sua comida e a comida dos cachorros. Leva roupa limpa. “Levo minha preguiça e a vontade de

ficar fuçando na roça...”. O carrinho volta cheio. Mandioca arrancada na hora, mexerica, laranja,

pitanga, manga e até abacaxi, que ninguém apostaria que daria por ali: “Mas eu disse que dava e

deu”. É para a casa e para os amigos. Leva milho e feijão quando colhe. “Levo roupa suja e minha

bengalinha. Eu me sustento nela e ela é o meu sustento”, filosofa. 83 anos de histórias...

Ainda Brasília Voltam as lembranças da inauguração de Brasília. “Os soldados passaram desfilando. Os

aviões faziam estripulia... Subiam e ficavam mais altos que o prédio do Itamarati. 28 anda-

res. Desenhavam as letras J e K no céu com aquela fumaça”, recorda-se. “Se eu vi o Juscelino?

Cheguei a ficar pertinho assim, dele. Ele ia na rodoviária de Brasília que estava sendo construída.

Chegava, sabe que horas? 12 horas da noite. Vinha de helicóptero. Era ele e um soldado. Homem

de coragem. Brasília estava cheia de peões que eram chamados de candangos. Tá vendo? Já fui

candango! E o helicóptero do Juscelino parava em cima daquela laje da rodoviária. A candan-

gada cercava o homem. “Dr., me dê um chão de casa”; “Dr., me dê material pra um barraco”;

“Dr. me dê isso ou aquilo”. O soldado ia escrevendo o que era pedido. E o Juscelino dizia: “Meus

candangos, tenho o maior prazer em ver tudo isso o que vocês estão fazendo. Os candangos

trabalhavam noite e dia...”.

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Consegui um pedaço de terra naquela invasão da Fepasa. Fiz um barraco e fui aumentando.

Hoje tem nove cômodos graças a Deus”. Otávio e sua mulher dona Ianê Silva do Nascimento,

falecida há dois anos, tiveram 13 filhos. Seis deles morreram ainda crianças. Ficaram 5 homens

e 2 mulheres. “A caçula, Edvânia é quem me cuida e da casa. E também trabalha fora. Os filhos

outros casaram, mudaram. Depois se enrabixaram por mulher nova e os netos ficando comi-

go. Criei nove. Gosto de trabalhar. Papel de homem eu não deixo de fazer. Não é porque estou

mais velho que deixo de ser homem”. Otávio ganha um salário da aposentadoria e faz uns bicos

usando o seu saber.

Dono de ruaHá mais de treze anos faz o vai-e-vem e se arrancha na chacrinha do amigo que fica na Rua

Luiz Otávio. Essa rua existe até no mapa. Ninguém sabe, mas foi criada por ele. Ele é o Otávio,

e o Luiz era um amigo que vivia no pedaço. Batizaram a rua assim e assim ela ficou. “Desde o

começo o combinado meu com o Magú, dono da chácara é que não ganho nada e nem quero. Eu

brinco na terra. Se me dá dinheiro às vezes é porque ele quer. Magú é meu irmão de alma.” Otávio

vai, Otávio vem com seu carrinho de mão. Todo dia todo mundo vê, conhece e reconhece. Traz o

que comer para os dois cachorros e mais ele. Fica fuçando ou olhando para o ontem. Sonhando,

lembrando, filosofando, poetando. “Vou me arrastando. Às vezes ainda tombo na rua. Bicho feio.

Vou à Santa Casa, ou procuro a Dra. Maria Cecília, ali no posto de saúde de Caetetuba. Ela cuida

bem de todos. Gosta muito de mim e me encaminha para tudo quanto é canto que eu preciso.

Também tem o Dr. Sérgio Azevedo, gente fina. Que mais eu quero da vida?” Otávio empurra

com carinho o carrinho da vida. Leva só suas histórias e sua poesia. Precisa mais?

“Quando eu tinha dez anos meu pai largou a família e eu fiquei com minha mãe e uma irmã.

Depois essa irmã também foi embora. Minha mãe era do campo, plantava e colhia mandioca,

quebrava milho, destalava fumo”, conta Otávio. Destalar fumo é tirar a folha do fumo do talo para

depois enrolar na coxa para fazer o charuto. “Só me deixaram trabalhar com 14 anos. Pagaram

dez tostões e um cruzado no meu primeiro dia de serviço. Ganhei sete mil réis numa semana.

Foi a maior benção, a maior beleza. Tirei minha mãe do serviço, ela ficou em casa até quando

faleceu e nunca mais trabalhou para ninguém”. Aos trinta anos Otávio teve que se casar. “Eu

ainda estava em Garanhuns, carreando e tirando leite. Minha mãe “encurtou” a vista e disse: “meu

filho, você só vai, você casando. “Já não vejo mais e não posso mexer com sua roupa.” Naquele

tempo se costurava os rasgos das calças e roupas, arrumava tampão para quando a calça rasgasse.

Minha mãe falou e eu casei. Mas era como se tivesse ficado solteiro porque o sapato apertou,

o dinheiro era pouco e eu andei pelo mundo trabalhando. Foi quando fui parar em Brasília,

pois diziam que era bom trabalhar lá. Minha mulher já tinha tido um filho e o segundo estava

“engarrafado” com três meses. De lá mandava um dinheirinho. Pelejei até que me avisaram que

estava na hora do filho. Voltei.”

Da famíliaA vida de Otávio poderia ter mudado quando conheceu Zé Rufino, um sargento aposentado

que estava montando uma equipe de candangos para continuar em Brasília, numa fazenda de

Juscelino. Só que a mulher e a mãe não deixaram: “Você sai e não volta mais...”, disseram. Não

foi. Trabalhou no Recife, foi marceneiro, ferreiro, sapateiro. Tomou conta de fazenda, até que

foi convidado e veio para Atibaia. “Era para ser uma coisa e foi outra, mas está bom. Fui servente

de pedreiro, trabalhei na AABB Associação Atlética Banco do Brasil e em mil chácaras por aí.

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Em primeiro lugar por quê será que chama “Bar do Contra”, se o próprio dono do

bar se diz a favor? Ou será que ele só diz que é a favor porque continua “do contra”?

“Do contra”, mas “do contra” mesmo, só o relógio do bar que gira totalmente ao

contrário. Nunca se sabe quando ele está marcando duas ou dez horas; o sentido é

parecido, mas o tempo é diferente e não necessariamente igual. No mais, o “Café do Paulão”,

tido e havido como o “Bar do Contra” é só “a favor”. A favor dos clientes, a favor de um excelente

café, de deliciosos salgadinhos, de um ambiente super-gostoso, de alegres bate-papos com

amigos e a presença do incrível Paulão, justo ele que até pouco tempo atrás era sabidamente

“do contra”. “Cansei e virei “a favor”. Sendo “do contra” eu só tomei na cabeça”, faz questão de

revelar. E não é dizer que Paulão fosse “contra tudo”, “Eu só era a favor de algumas coisas que

algumas autoridades eram contra”. Simples assim. Paulão, que sempre foi doente por vôlei,

conforme se verá mais adiante, só queria e só buscava apoio oficial para o esporte. “Eu achava,

e continuo achando que a cidade poderia investir mais no esporte, no vôlei, por exemplo. Não

mais que isso. Só que agora continuo pensando, mas não falo mais.”

De casa novaPaulão pode ser encontrado justamente no “Café do Paulão”, que há alguns meses está no

seu novo endereço, Rua José Pires, 80, menos de meia quadra do Mercadão. “Fico aqui das 7,15

às 18 horas, todos os dias, de segunda a segunda. Aos domingos, também, só que eu fecho ao

meio-dia. Aí eu vou para casa perturbar a minha mulher”, revela aos risos. O “Café do Paulão”

ficou doze anos na Rua Rio Branco, aquela que fica atrás da Igreja Matriz. “O imóvel foi desa-

propriado pela Prefeitura. Pra que? Não tenho a mínima idéia. Já ouvi dizer até que seria para

abrir uma saída de emergência para o Cine Itá. Será? Só não digo que desapropriaram para me

tirarem de lá porque seria muita pretensão da minha parte...”, Paulão ri, irônico...

O bar é “do contra”, mas será que tem alguém

a favor no “Bar do contra?”

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melhor da Rua Rio Branco, afinal, só tinha ele por lá...”, brinca. Paulão não consegue dizer três

palavras sem rir. “Dou risada de tudo. Tristeza só deixa marcas no rosto e na alma”, ensina.

Da vidaNascido em São Paulo veio para Atibaia quando tinha 6 meses. Grandão, aos 15 anos co-

meçou a jogar vôlei e se tornar campeão. Em 1979 foi jogar no Paulistano, em São Paulo. “Um

timaço que tinha o Montanaro, Xandó, Maurício e outras feras. Campeões de tudo quanto

é coisa. “Em 1985 fui para a Transbrasil que formou uma equipe de vôlei. Quase me tornei

piloto de Boeing. O Omar Fontana, dono da empresa queria ver os atletas progredirem.

Consegui o brevê para pilotar teco-teco porque logo em seguida a TransBrasil faliu. Parei de

jogar vôlei e parti para o comércio. Meu irmão Albino, que é um puta músico, era dono do

Trem Azul, um bar que ficou famoso na rua Henrique Schauman, no agito, em São Paulo.

Resolvi acompanhar meus pais que voltaram para Atibaia e montei o “Café do Paulão”, atrás

da igreja. Fiquei doze anos lá e só sai por causa da tal desapropriação. Não, não toque nesse

assunto de novo porque eu não quero comentar. Adianta?”

Das criticasUm freguês pede um café, outro um chocolate. Paulão brinca com alguém que torce para o

Santos, ou algum palmeirense. Serve pão de queijo, coxinhas, risoles e todas as suas atrações.

Alguém quer um maço de cigarros e ele alerta: “Seu cigarro aumentou de preço. Cria vergonha

e deixe de fumar...” O freguês é amigo, pega o cigarro e sai sorrindo. O bar é do contra. “Critica

é critica, não quer dizer agressão. Aqui na cidade as pessoas levam as coisas em termos pes-

soais.” Paulão promete, promete e promete mudar, mas continua falando, e do contra... “Eu

Claro está que uma afirmação como essa mereceria uma explicação. O repórter não deixa

barato: “Como é que é?” Paulão não perde a linha: “Vai ver eu falei demais. Os políticos, sejam

os locais, estaduais, nacionais ou até mundiais, não gostam de críticas. Vêem críticas como se

fossem agressões pessoais e se sentem ofendidos. Quem entra na vida pública tem que apren-

der que ninguém é perfeito e nada é pessoal. Se falei, se critiquei, nada foi pessoal. Passou,

passou, até já prometi para minha mulher que não falo mais em política, já paguei o meu

preço por essas eventuais divergências, chega. Vai daí, ninguém é mais “do contra” no “Café

do Paulão”, só o relógio. Paulão ri. Paulão vive rindo. Só fecha a cara quando o Corinthians

perde. “Paulão” é o Paulo Silva, 46 anos, casado com Sueli de Lima César, famoso por ter

sido campeão paulista, brasileiro e sulamericano de vôlei. “Pérai, nem sou tão famoso e esse

negócio “do contra” foi invenção de uns amigos malucos como o Jean Claude Latin. Eles

criaram essa fantasia.” Enquanto fala vai servindo café com bobagens para os clientes que não

param de chegar. “Tem esse movimento todos os dias e todas as horas do dia”, alegra-se.

Do Timão“Quando o Corinthians perde isto aqui vira um paraíso. O movimento aumenta uns 200%”,

explica o “Mané”, amigo e freqüentador diário da casa. Paulão chora e ri quando o Timão

apanha. Explica-se: nas derrotas do alvi-negro, uma xícara de café expresso, que normalmente

custa R$ 1,50, passa a custar R$ 5,00. “O freguês paga três vezes mais para ter o direito de

ficar tirando sarro da minha cara...”, brinca. “Se fosse preciso eu pagaria até cem dólares por

um café, só pra ver a cara do Paulão quando aquilo que ele chama de Timão apanha”, rebate

Mané. Todo mundo ao redor garante que é assim mesmo que funciona. “Além do café ser o

melhor a brincadeira é o que vale”, explicam os clientes. “Eu dizia que o “Café do Paulão” era o

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o Corinthians foi eliminado da Libertadores. Aquilo foi uma loucura, todo mundo queren-

do tirar sarro... Sofri, mas faturei legal. O vôlei de Atibaia está com a corda toda”, garante.

Orgulhoso informa que a Associação tem o apoio da Climed, do Hospital Albert Sabin, do

Hispani Atacadista e do restaurante Saborosa, que fica na rua Adolfo André. “Tudo através da

Lei de Incentivos fiscais. A Saborosa fornece comida para os nossos atletas e a Viação Atibaia

dá passes para a garotada que está começando com a gente.”

Das vitóriasPaulão fala da parte social da AEA que atende crianças, trazendo-as para o vôlei. “Nosso

trabalho já tem quase dez anos. Hoje atendemos entre cem e duzentas crianças treinando

vôlei, coisa séria. A cidade sabe, mas não liga muito”, lastima-se. “Vamos tocando. Treinamos

no Elefantão e algumas escolas oferecem quadras, nessa parceria nós entramos com o profes-

sor e as bolas para os treinos da garotada. O custo vai de dez a vinte mil reais por mês para a

equipe de competição e essa parte social. Para se ter idéia do nosso amor e até loucura pelo

vôlei, nossa sede fica no consultório dentário do Dr. Júlio Paulinetti”, orgulha-se. “Enquanto

uma dessas equipes de ponta no vôlei custa uns 5 milhões de reais por ano, a nossa verba é

cento e vinte mil reais por ano. O Climed e o Sabin já estão conosco há anos pois confiam no

nosso trabalho que é voluntário. Nossos jogadores são bons. Quatro deles saíram daqui no

ano passado e estão jogando na Europa.”

Paulão não esquece a sua época no vôlei. “Foi maravilhoso. O time base da seleção era

do paulistano: Xandó, Amauri, Montanaro, Deraldo. O técnico era o Paulo Russo que me

levou para o clube. Eu jogava como titular no infantil, titular no juvenil e reserva no adulto.”

Entra mais gente e o Paulão para a entrevista. Mexe com um, tira sarro com outro, brinca,

sempre lutei buscando apoio oficial para o esporte. Até criamos a AEA, Associação Esportiva

Atibaiense para incentivar pratica do vôlei, nós usamos o vôlei como uma ferramenta contra

o desajuste social. Temos feito um trabalho bem legal com a garotada. Meu antagonismo em

relação ao governo local, atual ou anterior, é por essa luta que o grupo vem executando pela

garotada carente. Sou o primeiro a aplaudir quando a administração toma atitudes corretas,

quando valoriza o turismo, por exemplo. Quanto mais gente visita a cidade melhor para todo

mundo. A Associação sobrevive dos recursos da Lei de Incentivo Fiscal”, conta.

Do sucessoE fique claro que o trabalho já vem dando ótimos resultados. “Nossa equipe de vôlei disputa

o campeonato paulista na divisão especial. Na associação eu estou junto com um grupo de

lutadores como o Júlio Paulinettti, que também pratica o vôlei, o Ferro, o Celso Lindemberg,

todos ajudam bastante ao lado de uma porção de abnegados. Nossa equipe foi campeã dos

jogos regionais e fizemos bonito jogando contra a equipe da Sky que veio nos enfrentar tra-

zendo os campeões olímpicos, Gustavo, Marcelinho, Rodrigão. O Geovani já veio aqui com

o pessoal do Sesi. Ganhamos do Banespa e da equipe do Sky. O apoio da prefeitura é feito,

como eu disse, através da Lei de Incentivo fiscal. Além disso a Associação sempre vai à luta

buscando recursos para manter a equipe e o projeto todo.”

Dos apoiosO “Café do Paulão” está cheio. Os fregueses conversam, tomam café e topam as brinca-

deiras do Paulão, sempre risonho. “Eu não sei se venho aqui pelo café ou pela gozação”, diz

o “Mané” de sempre. “O que vale é a curtição”, garante Fábio. “O bicho pegou no dia em que

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serve, divaga: “Se a TransBrasil não tivesse falido eu estaria voando pelo mundo.” Caindo na

real, emociona-se ao ver o ginásio do Elefantão lotado nos jogos da equipe da AEA. “Vai um

café puro aí?”, pergunta sem conseguir esconder os olhos marejados quando fala do sonho

da Associação em usar o vôlei para tirar crianças carentes das ruas. “Já tem garoto nosso jo-

gando na Europa. Não é lindo isso?” O mundo deveria ser do contra mesmo, tão “do contra”

como o Paulão...

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Ele é mais do que um personagem, um cidadão, um político, ele já ganhou o status

de lenda da cidade. Se existe alguém que ainda não o conheça precisa levar bala

mesmo. Uma balinha e um sorriso muito terno, pois é assim que ele se comunica

com as pessoas. “Oi, tudo bem? Leva uma balinha...”. Apesar de ter nascido em Jaci,

uma cidadezinha próxima de São José do Rio Preto, Pedro Maturana é atibaiense há 61 anos.

Também passou por José Bonifácio, outra cidade daquela região, mas sua vida é Atibaia. “Um

dia, um irmão que estava bem de vida me emprestou uns cobres e eu vim para cá. Montei uma

mercearia na rua Thomé Franco e vendia de tudo, vela, carretel de linha, queijo, manteiga, óleo,

pãozinho. Também vendia muita cerveja e muito vinho. Eu me juntava com os irmãos Tay, uns

sírios meus amigos, que tinham um comércio bem maior na esquina da minha rua e comprava

logo um caminhão de cerveja direto da Antártica. Eu ficava com 30% da carga. Viu como meu

comércio era grande?”, sorri. “Naquela época a fábrica CTB (Companhia Têxtil Brasileira) ainda

estava em plena operação e tinha uns mil operários trabalhando em três turnos. Cheguei a contar

mais de cem fregueses de caderneta e todo mundo pagava direitinho. O Luiz Passador, gerente

da fábrica, morava ao lado do meu comércio.” Dando uma balinha aqui, outra balinha ali, Pedro

Maturana criou sua marca registrada. “Minha família sempre participou da política. Meu pai

era presidente de partido político. Um sobrinho meu foi prefeito duas vezes e a mulher dele

também foi prefeita lá na nossa cidade. Acho que os Maturanas têm política na veia”, declara.

As moças me acham moçoSempre calmo e sereno orgulha-se de dizer que “tem Maturana em tudo quanto é lugar. Tem

Maturana até no Chile. Maturana açougueiro, jornaleiro, Maturana em várias profissões. Só

para você ficar sabendo, Maturana é o nome de uma cidade no Sul da Espanha. Tem uns 4 mil

habitantes e fica perto da divisa com a França”, esclarece. Depois de chegar por aqui “com uma

Aproveite e leve uma balinha enquanto conhece um pouco mais da história

do eterno vereador Pedro Maturana

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voltei agora”, conta. Maturana lembra que a Atibaia dos antigamentes era uma cidade muito

pequena e gostosa. “Todo mundo se conhecia, se cumprimentava. Aos sábados e domingos

fechavam a rua José Alvim para o povo fazer o footing. Todo mundo passeava por lá e pela praça

da Matriz. Os homens iam de gravata e as mulheres na maior estica. Ninguém sabia quem era

operário ou quem era coronel, uma beleza”, lembra. “Como naquele tempo não tinha ônibus,

nem condução, o pessoal vinha a pé para o centro da cidade. Os mais endinheirados vinham

com charretes ou cavalos. O povão vinha a pé mesmo. Gente do bairro da Ponte, da Ressaca,

de tudo quanto é lugar. O centro da cidade, perto do mercado ficava que era só charrete e cava-

los, era uma beleza. Aquilo ficava cheio, apinhado. Ali nasceu muito namoro, muito noivado,

muito casamento. A gente discutia muito futebol, pois naquele tempo a cidade tinha o São

João, o CTB. E tinha o Recreativo que era o clube dos ricos. O São João e o CTB tinham bons

times, as disputas eram ferrenhas, como se fosse um Corinthians e Palmeiras”, orgulha-se o

corinthianíssimo Maturana.

Onde foi parar tudo aquilo?Bem a propósito, para que se tenha uma idéia da força da Atibaia daquele tempo, até os

esquadrões do Corinthians, do Palmeiras e do São Paulo vinham jogar aqui. “O São João tinha

um campo espetacular, um tapete. O CTB também. Ficavam cheios nos dias de jogos”, lembra.

Por que acabou tudo isso? “Faltou apoio, faltou interesse... Naquele tempo os bons jogadores

ganhavam para jogar. Vinha jogador lá da capital, da zona rural, os times eram muito bons.”

Como político se sente um pouco culpado pelo fato da cidade não ter seguido em frente. “Um

pouco culpado sim. Eu e muita gente. Todo mundo foi culpado, até os próprios moradores

que não participavam, não incentivavam, não lutavam, não exigiam. As tradições foram se

mão na frente e outra atrás”, como se dizia antigamente, Pedro Maturana foi conquistando

a cidade. Eram onze irmãos Maturana. “Sou o único vivo. Do time inteiro só ficou o goleiro.

Engraçado é que eu era goleiro mesmo quando ainda jogava bola...”. Pedro é viúvo de dona

Elisabeth Maturana com quem teve as filhas Aparecida e Elisabeth e é casado há 36 anos com

dona Apparecida Pinheiro Maturana, com quem teve os filhos Pedro e Emília. É avô de 8 netos,

bisavô de 3. Fora isso, é padrinho de 168 pessoas e se sente jovem nos seus 81 anos, “as moças

dizem que eu tenho 65 anos, no máximo”. Voltando no tempo, Maturana vendeu a mercea-

ria da Thomé Franco e foi para a avenida São João, pertinho da padaria Nice onde ficou uns

quatro ou cinco anos. Depois montou uma fábrica de sorvetes bem em frente à fábrica. “Eu

tinha uma freguesia muito grande. Vendi muito pão com mortadela e fiquei por lá até 1968”,

recorda-se. “Minha primeira eleição para vereador foi em 1959 e o prefeito era o Lenicio, um

bom sujeito, que também era comerciante. Ele ganhou a eleição com a diferença de 120 votos.

Eu era do PSP (Partido Social Progressista) do Adhemar de Barros. Era contra o PRP, o partido

dos coronéis. Não conheci o Major Alvim, mas me dava muito bem com o Zézinho, filho dele.

Bom sujeito também, muito rico, caridoso, ajudava muito a Santa Casa”, lembra.

A Atibaia daquele tempoDe 1959 em diante Maturana continuou como vereador até ser eleito vice-prefeito na ges-

tão Flávio Callegari. “Depois fui prefeito. Deixei a prefeitura me candidatei de novo e perdi a

eleição para o Beto Tricoli. Eu tinha pouco dinheiro e ele era jovem, tinha vários apoios. Pior

é que meu vice, o Euripedes, era boa pessoa, mas meio fraquinho, não era político. Perdi.

Depois fui candidato a vice-prefeito na chapa do Odair Bedore e perdemos para o Beto que foi

reeleito. Foi assim que fiquei vários anos fora da política, dezesseis anos longe da Câmara e só

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Da Odete“Se eu conheço a Odete? Claro que conheço. Quem não conhece a Odete? E gosto muito

dela. Ela sempre foi desse jeito, simpática, comunicativa. Ia em tudo quanto é festa nos bairros

da cidade e sempre foi bem recebida. Até hoje a cidade inteira admira a Odete. Quando mais

moça era muito bonitona, uma simpatia. Eu costumava ir lá na Odete junto com os amigos...”.

Em sua simplicidade Maturana confessa: “A gente tomava umas cervejas e ela não cobrava.

Tudo porque éramos políticos. Achava que a gente podia ajudar numa hora de precisão, de

“quebrar os galhos”. Sim, porque às vezes chegavam os soldados e até o delegado. Coitada da

Odete. Nesses lugares sempre têm encrenca, e apesar dela não querer incomodar ninguém,

sempre tinha confusão. Uma grande mulher a Odete”. Maturana lembra que a “casa” da Odete

era freqüentada por gente importante. “Gente da melhor sociedade. Políticos e tal. Tinha

muitos shows, danças, enfim, coisa comum em qualquer cidade do mundo. De vez em quan-

do essas figuras muito bem consideradas na cidade exageravam nas doses. Como a gente era

amigo dos dois lados, da Odete e das figuras, éramos chamados às vezes em plena madrugada,

para dar um apoio. Inclusive tinha uma pessoa muito querida que quando abusava na bebida

mandava que a Odete chamasse a gente. “Eu só saio daqui se os dois Pedros me levarem...”,

dizia a tal figura. Um dos Pedros era eu. O outro não vou citar. Mas, só nós dois podíamos

entrar na casa da Odete e tirar a tal pessoa de lá. Nem polícia e nem ninguém, só nós dois.

Os caras que eu falo eram importantes demais. Importantes até para a polícia...”. Maturana

sorri. Grande Odete.

acabando e a cidade não entrou no ciclo do progresso como deveria. O campo do São João,

que era um tapete, um dos melhores gramados do Estado de São Paulo, que recebeu até as

seleções Paulista e Brasileira, virou uma piscina, acredita? Construíram uma piscina no meio

do campo. No CTB aconteceu a mesma coisa, abandonaram o campo que era uma beleza”,

lastima-se.

Atibaia boêmiaPedro Maturana fala dos tempos boêmios de Atibaia. “Ah, eu me lembro das serenatas.

Serenatas mesmo. Sujeito juntava três ou quatro amigos com violão e ia cantar nas janelas das

casas das moças. Igual se via nos filmes. Grandes serenatas. Eu não sabia tocar, não sabia cantar,

nunca participei. E nem podia, né? afinal já era casado... Ficava vendo e ouvindo quando podia.

De mais a mais eu trabalhava muito. Fechava o comércio meia noite, uma hora da madrugada

e levantava cedo. Mas todo fim de semana tinha serenata. Alguns moradores jogavam água

para espantar os cantores. Tinha gente que jogava até urina. Era uma correria e um xingamento

só...”. Maturana ri quando conta. Mais boemia? “Tinha muita gente pitoresca naquele tempo.

Bebiam e saiam fazendo “artes” pela cidade. Durante a madrugada o sujeito amarrava as portas

das casas com cordas, pelo lado de fora. No dia seguinte o morador não conseguia nem sair

de casa... Coisa de criança”, sorri. Maturana lembra que um dia deixou a porta de sua casa, na

rua Adolfo André apenas encostada em uma cadeira. “Meu comércio também ficava com uma

porta meio aberta. Um dia um parente meio distante, que gostava de beber uma cachaça entrou

no meu comércio e falou: ”Ô primo, eu passei aqui nessa madrugada, encontrei a porta meio

aberta e entrei. Peguei um maço de cigarros, uma caixa de “forfi” e bebi uma pinga. Quanto eu

devo?” O que é que eu podia falar? Atibaia era tranqüila desse jeito...”.

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Das mágoasTempo gostoso, divertido, Atibaia mudou muito. Uma das mágoas de Maturana foi ter sido

“cassado” quando era prefeito. “Foi a maior injustiça que os políticos de Atibaia poderiam ter

feito. Só que eu voltei por decisão dos tribunais. Não vou citar os nomes dos meus antagonis-

tas. Era um pessoal que formava a maioria da Câmara. Fiquei muito magoado. Só que os que

me afastaram estão fora da política,nunca mais se elegeram. Sei que a elite não gosta de mim,

nunca gostou, mas o povo gosta. Eu sempre fui eleito com votações esmagadoras. .. Continuo

a mesma pessoa: simples, modesto e corinthiano, graças a Deus”. Esse Pedro Maturana merece

um caminhão de balinhas.

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Ele é muito querido, respeitado e quase adorado pelos quase dois mil agricultores do

município. Da mesma forma que é quase odiado por muitos políticos ditos impor-

tantes da cidade. Está se falando do engenheiro Agrônomo Péricles Capello Cruz,

o filho do sr. Vicente Ignácio Cruz e de dona Maria Capello Cruz, uma vida inteira

dedicada à agricultura de Atibaia e região. “Eu me decidi por fazer Agronomia na Escola Luiz

de Queiroz, em Piracicaba, por influência de meu pai, que foi o fundador da “A Rural”, aquela

loja tão tradicional na praça Aprigio de Toledo. Aliás, eu nasci naquela casa”, conta Péricles.

Falar na A Rural e falar no sr. Ignácio é quase obrigação de quem gosta da cidade. “Meu pai era

um idealista. Trabalhou na CeTeBê, trabalhou numa fábrica de ração, em um frigorífico que

abatia frangos, trabalhou até no bar do sr. Valentim. Éramos cinco irmãos, todos estudando e

ele tinha que trabalhar muito mesmo. O filho mais velho fez Física, o segundo fez Química,

eu fiz Agronomia, meu outro irmão fez Medicina e minha irmã fez fisioterapia. Não era fácil”,

conta Péricles, que não se contém e viaja pela sua árvore genealógica: “Minha avó paterna,

dona Melchiora Vicente Sanchez, era uma espanhola muito decidida e que se tornou parteira

famosa aqui na cidade. Ao lado de Bento Escobar e do padre Feliciano Grande, ali pelos anos

de 1920/25 ela desenvolveu extenso trabalho social junto ao pessoal mais pobre da cidade. Já a

família de minha mãe era italiana. Meu avô veio para o Brasil trazendo carta de referência do

prefeito de São Sebastião do Pó, na Itália, e montou uma pensão ali perto da Casa Giraldi. Eu

ainda tenho essa carta. E tenho até documentos de filiação do meu pai no Partido Comunista

da época, além de um salvo-conduto dos tempos de guerra...”. Orgulhoso, Péricles promete que

um dia vai doar todas essas relíquias para o Museu da cidade.

Da agriculturaCasado com a conhecida e celebrada artista plástica Gersey Pinheiro Cruz, Péricles é pai da

Péricles Capello Cruz, uma vida inteira plantando idéias

na nossa agricultura

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que com os benefícios que as medidas possam oferecer para a população. A primeira pergunta

que fazem é: quantos votos isso vai render? A municipalização é um convênio entre o Estado

e a Prefeitura e no meio do caminho sempre ocorrem as interferências políticas no trabalho.

Eu, por exemplo, cansei de bater de frente com algumas autoridades da cidade queriam man-

dar sozinhas. Não deixei,claro. Até para trabalhar eu arrumei confusão. Em se tratando de

administrações públicas, quer queiram, quer não, tudo se resume em esquemas. Se está no

esquema tem apoio, senão, não tem. Como não sou de esquemas vivia brigando”.

Da desuniãoOs agricultores são desunidos e isso só agrava o problema. “Eles são individualistas, só vêem

o próprio umbigo. Até o vizinho é visto como inimigo. Esse projeto de micro-bacia seria uma

tentativa de se trabalhar coletivamente. Mas não se consegue. Família, religião, até o futebol

vira problema, nada une, tudo desagrega”, pondera. Bons tempos em que a Secretaria ainda

apoiava os pequenos. “Hoje não tem nem como atender o pessoal que planta morangos, cultura

básica de Atibaia. Sem apoio o agricultor começa a trazer variedades de fora e nós não temos

noção do que isso pode ocasionar. Antes a Secretaria produzia mudas em Campos do Jordão

sem problemas de doenças . Hoje o agricultor vai buscar na Argentina e em tudo quando

é lugar. Por mais que se tente trabalhar com defensivos a contaminação é fatal. A secretaria

praticamente sumiu. Morango é uma hortaliça e hortaliças não recebem verbas para pesquisas.

Só se pesquisa cana, soja, etanol, açúcar, café, eucalipto, culturas do agronegócio. Pesquisa é

cara e demorada. Anos e anos para ver se a variedade é igual, melhor ou pior do que a que já

se tem. O resultado pode ser negativo ou positivo ou não levar a nada. Por isso não se investe

dinheiro. Como a politicagem entrou em todas as áreas, na cabeça dos dirigentes, tudo tem

Juíza Federal Silene Minitti, que atua em Campinas, e já lhe deu uma neta, Maria Alice, e da

médica cirurgiã plástica Diana Pinheiro Cruz. Cursou Agronomia na Escola Luiz de Queiroz,

em Piracicaba. Formado, prestou concurso para o ensino agrícola. “Era uma filosofia linda, uma

escola-fazenda que no fim, nunca foi aplicada. Desiludido prestei concurso para a Secretaria

da Agricultura. Fiquei dois anos em Campinas até vir transferido para a Casa de Agricultura

de Atibaia, em 1976. Me aposentei há um ano e meio mais ou menos.” Com todo esse currí-

culo Péricles é indiscutivelmente a maior autoridade em agricultura de Atibaia, afinal viveu

longa e profundamente cada detalhe, cada pedaço, cada vitória e todos os problemas que o

setor enfrentou ao longo dos últimos trinta ou quarenta anos. “A nossa agricultura sempre

foi basicamente familiar, com pequenas propriedades. Infelizmente estão todos marginaliza-

dos, pois a Secretaria da Agricultura se distanciou dos pequenos. Antes distribuía sementes

a preços baratos, hoje só se importa com as grandes culturas, o agro negócio”, lastima-se.

Quem sempre vibrou com seu trabalho se mostra abatido quando percebe os descaminhos

da agricultura de hoje.

Falta união“Recentemente a Secretaria implantou um programa de micro-bacias para aproveitar cór-

regos e nascentes aqui no município, através do sistema da municipalização. Era para termos

no mínimo umas dez micro-bacias, apenas uma está sendo trabalhada. Falta apoio, falta

combustível, falta tudo. O governo estadual municipaliza os serviços, mas não municipaliza

a arrecadação. E o pior é que nesse sistema de municipalização tudo depende da cabeça dos

prefeitos entenderem se esse tipo de agricultura é ou não prioritário. Infelizmente a maioria dos

nossos políticos se preocupa mais com a quantidade de votos que possam ter pela proposta, do

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o conselho tinha que ter mais produtores rurais e que o presidente tinha que ser um produtor

rural. Disseram que eu estava causando problemas para a administração. Lógico que não, eu

só queria que o conselho desse mais força para os agricultores. Na verdade eu queria e quero

que os agricultores se unam e tirem a interferência direta seja do estado, seja da prefeitura que

devem participar do processo, mas sem influir nas decisões. A gente acaba desistindo porque

as cabeças dos que dirigem são políticas e não são técnicas”, conta.

Plantar onde?Péricles também se incomoda com o fato do agricultor estar sendo massacrado pelos lote-

amentos. “À medida que os grandes loteamentos vão sendo feitos, as pequenas propriedades

acabam virando chacrinhas de recreio. O agricultor ganha mais vendendo a sua propriedade

do que produzindo. A exceção é o pessoal da flor, repito, com seu mercado permanente. Daqui

a pouco vamos ter loteamentos maravilhosos, fantásticas chacrinhas para final de semana,

mas, em compensação pode ser que não tenhamos o que comer.” Outro problema grave é a

tal lei dos defensivos. “Ela não é específica, como deveria ser, é abrangente ao extremo. Nós

deveríamos trabalhar com princípios ativos e não com marcas comerciais. No entanto as au-

toridades alegam que as empresas investiram e que, por tanto, devem ter o retorno. E aí fica

tudo muito difícil. Os técnicos ficam sem saber ou sem poder aplicar o remédio seguro, pois

não existem defensivos específicos para o coentro, por exemplo. O técnico só pode colocar na

receita a marca comercial que esteja registrada para o determinado produto. A legislação sobre

o assunto é muito confusa e só enlouquece o produtor”, afirma, com a consciência tranqüila

de quem lutou e continua lutando pela terra e pelos que trabalham nela. Como se vê, Péricles

Capello Cruz tem tantas histórias quanto o seu famoso pai, o “seo” Ignácio da Rural.

que ser imediatista. Pesquisa é coisa demorada, a politicagem não quer, assim a agricultura

só é boa para os grandes”, lastima-se.

Indo para trás Atibaia já produziu muito feijão e milho, como culturas familiares. “Hoje esse tipo de cul-

tura só é viável com mecanização. Como nossas terras são inclinadas, não podem ser meca-

nizadas, nosso grande potencial são as flores, cultivadas em áreas pequenas e em ambientes

protegidos. Fora isso temos a fruticultura de caroço, como pêssego, por exemplo. Grandes

produtores como o Caji, o Donizetti, o Galo abastecem o Ceasa”, lembra Péricles, admitindo

que a cultura de morango está regredindo. “A flor se mantém graças ao mercado permanen-

te. Ela exige pequenas propriedades e trabalha-se 365 dias por ano. Mas também não recebe

nenhuma atenção da Secretaria da Agricultura. A técnica de produção é bem avançada. E a

flor paga os custos de pesquisas que o morango e a fruticultura não conseguem”.

Desengano“Não dá para colocar em prática todo o aprendizado, toda a ideologia que se aprendeu nos

bancos escolares e na vivência profissional”, lamenta-se Péricles. Com o tempo tudo foi mu-

dando e ficando difícil. “A municipalização só piorou. A eterna pergunta: quantos votos isso

rende? Dentro da filosofia da politicagem está tudo certo. Os agricultores são desunidos e não

elegem representantes. Têm força, mas vivem brigando. Não entenderam ainda que só eles

é que podem brigar por eles mesmos.” Durante o processo de municipalização em Atibaia o

Estado obrigava à formação de um Conselho Agrícola. “Quando eu vi, o conselho já tinha sete

representantes e só dois deles eram agricultores. Briguei muito contra isso porque eu dizia que

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De longe ela é uma morenaça que realmente chama a atenção. De perto essa more-

naça não só chama muito a atenção como também assusta. E, no entanto, Maria

Grivalda Borges, mais conhecida como Val, 38 anos, é um amor de moça. Fora o

rosto bonito e cativante, tem um físico que impõe respeito. Além do mais ostenta

o valorizado título de Bi-Campeã Mundial de Supino em sua categoria. Falando o português

claro, boazinha, boazinha, a Val é capaz de levantar pesos de até 100 quilos. A pergunta que

não quer calar: “Val, você já bateu em alguém?” Resposta: “Já!” É o caso de se insistir e pedir

explicações: “Bateu, mas bateu mesmo? De pancada, pra doer e machucar?” E ela: “Já. Já bati

de pancada. Primeiro eu deixei a pessoa me bater tudo o que queria. Depois quem bateu fui

eu. E bati mesmo. Ou melhor, só ensinei como é que se bate...”. Claro que os curiosos querem

saber mais: “Por que bateu? Briga de rua?” Val diz que não. “Foi por causa de ciúme mesmo.

Briga de namorado. Ele veio pra cima de mim com coisa de muito ciúme e eu disse que não

tinha acontecido nada, pois eu não tinha feito nada. O ignorante me deu um tapa. Fiquei

bem quieta e deixei que ele fizesse o que quisesse. Ele aproveitou e me encheu de porrada no

ombro, na costela, na perna. Deixei. Chegou a hora e eu disse: “Agora chega. Agora, quem vai

apanhar é você”. E bati. Desci o cacete no cara. Mas isso já faz tempo. Como eu disse, foi coisa

de ciúme. O cara pensou que eu estivesse dando confiança para outra pessoa e eu não sou nada

disso. Além de tudo sou calma e honesta. Sem querer me vangloriar, o fato de ter participado

de tantos campeonatos me transformou em uma pessoa pública. As pessoas se chegam para

me conhecer, conversar, falar de esporte, nada mais que isso. Eu nem sei quem são as pessoas.

Curiosas tanto quanto eu, chegam para conversar. O camarada não entendeu nada disso e

brigou comigo. Depois ele chegou à conclusão que estava errado. Mas já tinha apanhado muito

para largar mão de ser besta. Apanhou de bobeira. O fato de praticar um esporte violento fez

com que os tapas que ele me deu só fizessem cócegas”, conta Val com seu riso aberto.

É Val, uma mulher de muito peso

que vale quanto pesa

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trabalhado em hotel e até feito curso de governança. “Acabei arrumando emprego no Park

Hotel, com registro em carteira, bônus e um monte de coisas. Fiquei oito anos lá e a dona do

hotel gostava muito de mim. O Park Hotel era muito famoso, hospedava todos os times de

futebol de São Paulo. Infelizmente já não é mais o mesmo. Fui trabalhar então como cama-

reira no Bourbon . Fiquei lá uns dois anos e só saí porque não agüentei trabalhar à noite. Isso

porque eu saia de lá e ia direto para o Hotel Eldorado, numa segunda jornada. Minha saúde

ficou meio abalada. Saí e fui trabalhar na Pizzaria Freemont onde estou até hoje”, diz.

Os irmãos continuam em Atibaia. Nem ela sabe o porquê, o fato é que por uns tempos andou “meio ruim da cabeça”, como

costuma dizer. “Perdi um bebê de seis meses e fiquei meio fora. Foi quando resolvi praticar

esporte em uma academia. Um dia vi um desses pesos num canto e resolvi brincar de levantar.

Achei fácil demais. Alguém lá da academia viu e ficou abismada com a facilidade com que eu

levantava os pesos. Ela veio pra cima de mim e me deixou até preocupada: será que eu tinha

feito alguma coisa errada? Ao contrário, a pessoa chegou e disse: “Levante o peso de novo”.

Eu levantei e ela perguntou: “Quer entrar para a minha equipe?” Foi na hora. A academia

era a antiga academia do Sandrão e não saí nunca mais.” Levantar pesos passou a ser a sua

vida. “Só que para variar, isso não dá dinheiro. Eu sempre fui obrigada a bancar os meus

campeonatos. Alguns amigos daqui da cidade resolveram me ajudar em cada campeonato

que eu disputava. Ajudaram na compra de roupas, nas viagens. A prefeitura também ajuda

com a condução”. Val já disputou campeonatos em Votorantim, Leme, Sorocaba, Bragança,

Peruibe, Praia Grande. “Os campeonatos acontecem todos os anos. Veio muita gente de fora

e eu fui campeã paulista e mundial duas vezes, nos campeonatos disputados em Atibaia e

A mina de MinasA decidida Val nasceu em Governador Valadares, Minas Gerais e é filha de Aldemira da

Conceição Borges e de Geraldo Tomas Borges. Nos seus 38 anos de idade, confessa que teve

uma vida muito triste. “Minha mãe e meu pai gostavam muito de trabalhar em lavras, catan-

do pedras preciosas. Não sei que tipo de pedras era, sei que tinha uma pedra preta que valia

muito. E eles também catavam mica. Chegaram a ter alguma sorte, ganharam algum dinheiro,

compraram uma boa casa e se mudaram para a cidade. Aí o sucesso subiu na cabeça de meu

pai que começou a se “achar”. Andou “sassaricando” com as meninas de lá, andou pulando o

muro. Quando minha mãe soube quase matou ele. Ela também era muito forte e distribuía

pancada mesmo. Mulher decidida. Trabalhava no pesado, carpia, cortava lenha, era danada.

E muito brava. Hoje em dia já acalmou um pouco. Eu era criança mas me lembro bem, botou

meu pai pra correr e refez a vida dela. Ficou com os filhos, trabalhou muito. Arrendava terra

para plantar arroz, milho, fazia de tudo para que seus filhos nunca passassem fome. Era uma

guerreira. Hoje tem uma casa bonita e vive bem”, conta Val. Apesar de ter feito de tudo pelos

filhos, a Val, um rapaz e mais uma moça, não deu para mantê-los na escola. “A gente tinha

que trabalhar e ajudar em casa. Ia uma semana na escola e faltava o resto. Minha irmã ainda

estudou um pouco mais e eu só vim terminar o segundo grau aqui em Atibaia”, lembra.

Entrando na hotelariaVal ficou em Governador Valadares, trabalhando em casas de famílias até completar a maio-

ridade. “Aí fui trabalhar em Vitória, no Espirito Santo. Meus irmãos já estavam em Atibaia.

Tempos depois eu vim para conhecer um sobrinho, filho de minha irmã. Era para ficar 15 dias

só que não voltei mais”. Fala daqui, conversa Dalí, Val comentava com as pessoas que já tinha

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categorias variam por idade e peso das pessoas. “Por enquanto e pela minha idade, minha

categoria é até 75 quilos, só que levanto até 100 quilos. Tem uma outra brasileira na minha

categoria que já levanta 105 quilos. É uma baixinha danada de boa. Mas talvez use aqueles

suprimentos pesados, aquela química que acaba alterando o corpo. Fica com o pescoço de

homem e tal. Eu não gosto disso, prefiro ficar na minha categoria e manter o meu corpo

feminino. Minha força é 100% natural. Não tem química. Graças a Deus minha saúde não

permite isso, meu organismo nem aceita anabolizantes. Sou bombada naturalmente. Sigo a

alimentação prevista pela minha nutricionista. Só tomo aminoácidos prescritos por médicos,

dentro dos padrões e isso não prejudica.”

Com o mundo na cabeça“Meu grande sonho é ter uma moto”, conta. E mais: “Deste ano não passa. Gostaria tam-

bém de comprar uma casa. Posso sonhar, né? Dia destes um cliente lá da Freemont, pizzaria

onde eu trabalho, disse que eu poderia contar com ele quando tivesse que disputar algum

campeonato fora do Brasil. Eles começam no mês que vem e é claro que eu vou topar. Isso

desde que os meus atuais patrocinadores não se importem”, especula. “Estou treinando feito

louca para encarar esses desafios, são quatro horas por dia, todos os dias”, garante. Enquanto

a moto não vem, ela só anda de bicicleta. “Faz bem.” Fora as pancadas que deu no namorado

a única briga que se lembra de ter participado aconteceu nos tempos de escola. “Foi para

defender uma amiga. Uma menina queria bater nela e eu fui separar. Aí vieram os irmãos

dessa menina e disseram que iriam me bater. Aí eu falei: “Pois vem, que tem!”. Eles vieram

e tomaram tanta porrada que eu acho que não esqueceram até hoje.” Da mesma forma Val

não esquece que quer ser campeã fora do Brasil. Cara, essa cara é perigosa.

Peruíbe, em 2006 e 2007”. Por falta de recursos, Val acabou não competindo no campeonato

realizado em 2008 em Brasilia. “Fica muito caro competir. Afinal eu não viajo sozinha. Pelo

menos tem que ir o técnico e a equipe de apoio. Não foi possível ir. E também já perdi todos

os campeonatos disputados no exterior. Eu teria condições de disputar, o problema é que

custa muito caro”. Val foi convidada para participar na França. “Inclusive meu técnico disse

que eu teria condições de ganhar. Na pior das hipóteses traria um troféu. Viagem, hotel,

comida, custaria uns 15 mil reais no mínimo, por pessoa. Nem pensar, né?”

É um peso leveMas, afinal por que Val disputa?” - “Disputo porque é muito gostoso. Eu amo de paixão

levantar peso. E não vou para ganhar, vou para participar. Faço tudo para corresponder às

pessoas que gostam de mim, que acreditam em mim e que me patrocinam. Antes de con-

seguir os meus patrocinadores eu levantava 70 quilos no mínimo. Depois que esses amigos

depositaram tanta confiança eu me dediquei mais e mais treinei mais. Eles compraram uma

“camisa de força”, um equipamento que aumenta a possibilidade do atleta levantar ainda mais

peso. Já estou levantando até 100 quilos.” Val disputa a categoria Supino, quando o atleta fica

deitado em uma bancada e levanta os pesos. O atleta tem que pegar o peso na barra, levá-lo

até o peito e depois levantá-lo.” Tem também o Supino de terra, ou de superfície, quando

o atleta fica em pé”, explica Val .“ Eu não faço muito essa categoria de terra, pois acho que é

bem mais difícil. Tem que tirar o peso do chão, levar até a cintura e esperar o juiz dizer que

a tarefa foi concluída”, conta, acrescentando que ainda existe o levantamento em alavanca.

“Esse a gente pratica na academia só para treinar. Tem que ficar de cócoras, levantar até a

cintura e depois levantar acima da cabeça. Não é fácil”, diz a campeã. Ela esclarece que as

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Ele é o tipo da pessoa que, quando não está trabalhando está pensando no trabalho.

Ou seja, ele é só trabalho porque trabalha até quando descansa. “Sempre fui assim,

trabalho muito desde criança. Sou o que chamam de workaholic, um viciado em

trabalho”. Essa é a maneira que Wagner Silva encontrou para se definir na vida.

Professor, auditor, contabilista, administrador de empresas, ele já foi vereador e até presidente

da Câmara Municipal de Atibaia, “nesse ponto eu cansei e estou dando um tempo na política,

apesar de ser presidente do PPS atibaiense”, esclarece. Nascido no tradicional bairro da Mooca,

em São Paulo fez seus cursos básicos em escolas públicas até chegar à Universidade São Judas,

ainda na Mooca, onde cursou Administração de Empresas e Ciências Contábeis. “Dou aula des-

de jovem, para não dizer desde criança”, brinca. “Até que entrei na Price Waterhouse, uma das

maiores empresas de auditoria em nível mundial. Saí de lá como Auditor Sênior para a América

Latina e vim dar aulas em Bragança Paulista. Só que preferi ficar morando em Atibaia”.

Do começoFilho de Alfredo Silva e de dona Lúcia Issa Silva, recentemente falecida, pai de Wagner

Silva Filho, de 8 anos, Wagner está em Atibaia desde 1992. “Foi quando comprei o escritório

de contabilidade do Mauricio Petrucci, uma empresa pequena com 5 ou 7 funcionários.

Hoje, a Contábil Alvinópolis está com 55 funcionários em Atibaia e 20 funcionários na nossa

filial do Jardim Anália Franco, em São Paulo”. Nunca parou de estudar. Com Mestrado em

Administração Estratégica, fez duas pós-graduações e tem mais de 150 certificados referentes

à conclusão de cursos extra-curriculares e palestras que freqüentou ou realizou no Mercosul

inteiro. “Recebo muitos convites para assistir ou proferir palestras especialmente no Uruguai,

Argentina e Paraguai. Eu falo sobre o sistema tributário no Brasil para estudantes daqueles

países”, revela. “Graças à minha participação em Rotary Clube e por fazer parte da comitiva do

Ele veio para Atibaia para vencer na vida fazendo muita força

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objetiva. Se fosse assim daria melhores resultados práticos. Pode parecer absurdo, mas nós

temos mais de 70 tributos. Poderiam ser no máximo 10. São tributos municipais, estaduais,

federais, de importação, de exportação, imposto de renda, contribuição social, PIS, COFINS,

ICMS, ISS, e tal e coisa, vai longe. A legislação norte-americana prevê não mais que 12 tipos

de impostos. Você chega numa loja, compra e os impostos já estão embutidos. Na Europa

se paga o IVA e acabou. Claro que existem outros tipos de tributação em nível de produção,

mas é tudo muito mais simples”, revela.

Criam sem saber o quê e nem porquê “Não, não vou dizer que no Brasil se criam dificuldades para se vender facilidades; eu

diria que se cria sem saber porque está se criando. É diferente, entende? Isso fica muito claro

quando se pega uma lei de trânsito. Tem situações nas nossas cidades em que, para chegar

a um ponto na rua de trás, se for seguir as placas o motorista tem que andar pelo menos

uns dez quarteirões. Verdade. Então, eu digo que as leis no Brasil são mais ou menos assim.

Uma lei sobre a outra, bitributação adoidada, quando tudo poderia ser mais simples: vendeu

paga tanto de imposto; comprou paga tanto...”. Wagner não consegue explicar os porquês.

“Diria que é histórico. Alguns culpam a colonização portuguesa. Conhecendo Portugal como

conheço, diria que não é assim. Acho que o brasileiro gosta de complicar para mostrar que

é inteligente...”

Muito por poucoPara sair desse circulo vicioso só a cultura, a educação, o estudo, diz. “Entendo que temos

evoluído bastante. O Brasil nunca teve tantos estudantes como agora. Não digo em termos de

Grão-Mestre da Maçonaria recebo muitos convites”, orgulha-se.

PresidenteE por falar em Rotary, Wagner Silva é o atual presidente da entidade para o biênio 2009/2010.

“Entrei para o Rotary de Atibaia em 1999 graças ao Rubens Carvalho, da Total Fiat, que foi

o meu padrinho. Hoje o nosso Rotary conta com 43 associados, companheiros que são em-

presários ou profissionais liberais bem sucedidos da região. É um número aceitável. Para se

ter uma idéia, a média de associados em clubes de Rotary é de 30. Em Madrid e Barcelona,

na Espanha, que visitei recentemente, a média é de 18 associados por clube. No Paraguai

a média é de 15/17 associados e no Uruguai, 20 associados por clube. A média na região de

Campinas é de 30. Nós temos 43 companheiros porque conseguimos fazer um clube forte,

idôneo, bem coeso. Somos um dos 73 clubes que mais trabalha na região campineira”, explica.

“O rotariano vive para servir. Dar de si antes de pensar em si é a nossa filosofia. Quando você

ajuda ao próximo acaba se ajudando, certo?”

Muito tributo para nadaFora toda a sua atividade como contabilista, Wagner continua com suas aulas. “Já dei aulas

na antiga faculdade de Economia de Atibaia, que precedeu à nossa FAAT, na Universidade São

Francisco, na Universidade Santana, em São Paulo e há seis anos dou aulas na Universidade de

Guarulhos, além de dar aulas de MBA há um ano, sempre na linha de administração e contá-

beis.” Para atender clientes de seu escritório e passar tanta informação assim aos seus alunos,

Wagner Silva tem que estar sempre atualizado em matéria de leis. “Eu acho que a legislação

brasileira é boa, só que muito complexa, precisaria ser mais simplificada, mais clara e mais

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paradas. Essa ajuda vem do pós-guerra e servia para ajudar pessoas que enfrentavam sérias

dificuldades mesmo. Só que essa “doação” representa um terço do PIB (Produto Interno Bruto)

alemão. Os Estados Unidos também ajudam às pessoas desamparadas, aplicando um quinto

do seu PIB. Não sei quanto o Brasil aplica em suas diversas bolsas de ajuda, mas pelo menos

32 milhões de pessoas são ajudadas pelo governo federal nos tais “vale alguma coisa...”. É um

absurdo. Claro que há honrosas exceções, mas as pessoas ganham sem trabalhar. Por vezes

fica mal até para quem recebe. Isso, claro, quando têm vergonha na cara”, aponta Wagner.

Trabalhar para quê?O professor lembrou que a reportagem do referido jornal apontava o fato de trabalhadores

nordestinos não quererem ter seus empregos registrados na carteira profissional. “Isso para

não perder a ajuda do governo. O cidadão que tem cinco filhos, todos na escola, recebe o vale

gás, o vale alimentação, o vale transporte, sei lá quantos outros vales e acaba ganhando mais

do que se trabalhasse como porteiro, por exemplo. Então é melhor ter filhos e não trabalhar,

como está acontecendo no nordeste, que está se transformando em reduto eleitoral do atual

governo”, critica. “O próximo governo no mínimo vai ter que diminuir isso, antes que o país

estoure...”.

Explicar o quê, mesmo?Como explicar toda essa confusão da política ou até do sistema tributário brasileiro para

os alunos? “É muito complicado. Tento fazer isso da melhor maneira, sem envolver as minhas

idéias, colocando sempre o que poderia ser feito em termos políticos. Quando falo sobre o

problema tributário procuro ponderar que o profissional da área tem que agir dentro das leis.

qualidade, mas de quantidade. É mais fácil encontrar a qualidade quando se tem quantidade

maior. A principio, quando alguém freqüenta a universidade sempre acaba aprendendo algu-

ma coisa. É melhor do que ficar em casa ou num bar. O processo é bem demorado, coisa para

umas tantas gerações. Mas temos que tentar”, explica. Pelo sim, pelo não, o professor Wagner

confessa seu constrangimento no seu ofício de professor. “Tenho dificuldade em entender

como um aluno pode sair de um semi-analfabetismo para uma faculdade em apenas três anos.

Isso constrange o professor universitário. Mesmo sem culpa, a maior parte dos alunos chega

semi-analfabeta ao curso superior. Faz o supletivo em um ano e já pula para a faculdade; dois

anos depois ele se forma em uma faculdade de tecnologia e, formado faz uma pós-graduação.

Resumindo, em três anos o aluno sai do semi-analfabetismo para pós-graduação e pode até

sair por aí dando aulas, ensinando. Seria muito bonito, mas com raríssimas exceções, isso

é muito grave. Eu tenho alunos (e são vários...) que mal sabem ler, mal sabem raciocinar. E

são universitários. Muito complicado. Chega a ser revoltante. No entanto é melhor ter esse

aluno na escola do que ele estar sabe-se lá onde...”, lastima-se.

Das bondades com o dinheiro alheioPor falar em preocupação, Wagner Silva não vê com bons olhos o excesso “de bondade” do

governo na utilização de programas sociais que acabam criando currais eleitorais. “Dia destes

vi num importante jornal da capital que os tribunais da Alemanha julgaram inconstitucional

o fato do governo alemão dar 357 euros por mês para pessoas que estão vivendo com alguma

dificuldade no país. Salvo engano isso dá algo em torno de 800 e poucos reais. O nome pode

ser outro, mas isso corresponde ao nosso “bolsa família”. O governo alemão quer parar com

essa ação pois acredita que estaria criando uma leva de vagabundos, entre aspas, pessoas

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Deixo que eles julguem como tudo deveria ser e sempre evito opinar em termos pessoais.

As pessoas devem formar seu próprio juízo. Eles procuram entender o que, às vezes nem os

próprios fiscais da receita federal, do ICMS, ou do ISS das prefeituras entendem na nossa

longa, extensa, complicada legislação, que muda mensalmente. Às vezes semanalmente.

De quem é a culpa? De novo eu diria: a culpa é histórica”, pondera o professor, que finaliza

pintando de azul o horizonte brasileiro. “O Brasil é um país extremamente promissor no

mercado internacional. Estamos subindo enquanto as grandes potencias estão caindo. E as-

sim as nossas diferenças vão se equilibrando. Todo o mundo está adorando o Brasil. Temos a

natureza a nosso favor. Ela está nos jogando na cena internacional independente de fórmulas

ou pessoas”, orgulha-se.

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O sertanejo é antes de tudo um forte, dizia Euclides da Cunha. E olhem que,

com certeza ele não conheceu João Araújo Lima, um sertanejo de Josenópolis,

cidadezinha que fica no norte do Estado de Minas Gerais, já quase na Bahia, na

bacia do rio Jequitinhonha. Para quem não se lembra o Vale do Jequitinhonha

ainda é visto e maltratado como uma das regiões mais pobres do Brasil. Pois foi ali que nas-

ceu, foi ali que cresceu e ali vivia João Araújo Lima, que se casou com Sebastiana Cardoso de

Souza e teve nove filhos: José, Maria, Ilda, Luiz, Marisa, Santa, Geni, Antônio e Zenaide. Ali já

tinham vivido avós, bisavós e tataravôs da família, pois Josenópolis existe desde 1909, quando

era chamada de Barreiras. Na verdade era um lugar comum formado por duas fazendas enor-

mes, como começam todos os lugares comuns abandonados por esse Brasil de Deus. As duas

fazendas não se ligavam a nada naquele tempo. Contam que os antigos moradores do lugar

iam buscar seus mantimentos num lugarejo chamado Grão Mogol, antigo Arraial da Serra,

que era a sede do pedaço. Pois era um ir e vir tão grande que quem ia demorava 5 dias para

cumprir sua tarefa.

Um lugar perdido no mundoContam também que a primeira estrada razoavelmente transitável, pelo menos muito usada

por carroças foi construída no peito e na raça, feita à mão mesmo. Foi um grupo de denodados

moradores do lugar que se incumbiu da obra. Até recentemente a iluminação da cidade era

feita através de geradores movimentados por motores a diesel. A Josenópolis do de hoje tem

área total de 537,4 km.2, e conta com menos de 5 mil habitantes, ou exatos 4.156 conforme

indica o IBGE, com uma densidade demográfica de 7,73 habitantes por km.2, tanta terra para

tão pouca gente. Viram como o sertanejo é realmente forte? Pois o sr. João Araújo Lima tinha

uma pequena propriedade de quase 10 alqueires de terreno muito acidentado. Pior que isso,

Zenaide e seus irmãosuma história de gente

trabalhadora

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Atibaia e uma vida melhorFaz pouco mais de dez anos que Zenaide chegou em Atibaia. Talvez não tenha sido tão

difícil como era em Josenópolis, mas ainda assim sua vida não foi tão fácil aqui na cidade.

Hoje se sente bem e gosta do seu ofício de manicure e cabeleireira no salão Master, na rua

Avelino Antonio de Campos, 23, Caetetuba. Ela fala de seu pai, sua mãe, seus irmãos (quatro

dos quais também vivem em Atibaia) e das durezas da vida de quem é sertanejo, antes de tudo

um forte. “Essa empreitada de levar água para a propriedade foi memorável e ficou famosa

na cidade. Apesar de criança, nunca esqueci o que me contavam. Com água ele plantava de

tudo. Minha mãe e meus irmãos mais velhos ajudavam, mas eram muitas bocas para pouca

comida. Sem saída, meu irmão Luiz foi o primeiro a vir para cá. Casou e veio. Depois veio

o meu irmão José. Depois veio a Geni e finalmente viemos eu e minha mãe. Eu tinha uns 15

anos quando cheguei aqui. Meses depois minha mãe faleceu. Foi um baque para a família”.

Uma herança de respeito e carinhoAmor aos filhos, amor à família, respeito, carinho, irmandade, união na adversidade, era

tudo o que João Araújo e dona Sebastiana tinham para ensinar e os filhos aprenderam muito

bem a lição. Tirando tudo do nada, trabalhando muito e apertando nos gastos, aos poucos

todos foram se aprumando. Sempre um ajudando o outro, sempre um escorando o outro.

Cada um conseguiu comprar seu terreninho no Jardim Imperial, do outro lado da cidade. “O

José, o Luiz e o Antônio tinham habilidades de pedreiro. Aprenderam com meu pai. Com o

tempo se especializaram na função e enquanto davam conta de suas empreitadas, ajudavam

os outros na construção de suas casinhas. Minhas irmãs Maria, Ilda, Marisa e Santa se casaram

lá em Josenópolis mesmo e constituíram família. Todo mundo foi se ajeitando. Para falar a

sem água. Não tinha e nem tem ribeirões, riachos e muito menos rios perenes. Abrir poço?

Como? Ninguém nem sabia e nem tinha a prática, porque ninguém nunca tinha feito. Uma

luta. Engenhoso e criativo, o lutador João Araújo teve que dar um jeito para sobreviver com

a família.

O milagre da canalização da água“Eu me lembro, por ouvir dizer que meu pai conseguiu fazer um milagre: colocou água

no quintal da minha casa. Lá a gente chamava de um “rego d´água”. A água vinha de muito

longe, mas muito longe mesmo. Não existiam canos e nem existia dinheiro para comprar ca-

nos. Ainda assim meu pai construiu uma verdadeira obra de engenharia. Ele pegava daqueles

coqueiros que tem por lá, bem mais grossos, cortava o coqueiro no meio e fazia uma bica. Aí

ele pegava madeira e fazia uma estrutura que servia de escora para os coqueiros. Juntando

coqueiro com coqueiro, bica com bica, ele conseguiu fazer o que chamam de “aqueduto”,

não é? Tudo com madeira e coqueiro. Repito que o riacho onde ele ia buscar água ficava a

um quilômetro ou mais do sítio. Era um serviço muito louco”, conta Zenaide, a filha caçula

do sertanejo João Araújo. “Dia destes eu estava conversando com meu irmão mais velho e

ele tentou explicar como aquilo foi feito. Tudo na mão. Quando ele e meu pai terminaram o

trabalho o pessoal nem acreditava. Ia gente de tudo quando é lugar só para ver aquela obra.

Tudo feito no braço...”, orgulha-se Zenaide . “Meu pai queria ter uma plantação no quintal

e foi buscar a água que precisava...”. Tudo isso foi feito antes de Zenaide nascer, “mas eu me

lembro daquela estrutura toda. Meu pai morreu muito cedo e eu convivi muito pouco com

ele. Mas me orgulho muito da obra dele, do caráter dele, dos ensinamentos que deixou para

os filhos”.

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e cabeleireiro. Atibaia foi boa para todo mundo. Não, nunca passei fome? Quando meu pai

morreu meus irmãos já trabalhavam e se sacrificaram para que os mais novos sofressem

menos. Como sou a caçula, tinha oito irmãos para cuidar de mim. Todos se espelhavam no

meu pai. Praticamente eu não tive pai e minha mãe foi mãe e pai para mim. Posso garantir

que todos somos muito alegres, muito felizes. Sempre fomos muito unidos, até nas horas

tristes. Nunca fomos de brigar e ficar sem falar um com o outro”, orgulha-se Zenaide, cujo

sonho é terminar sua casinha e, quem sabe lá na frente até montar um salão de cabeleireiros

só para ela. “Posso sonhar, não posso?”, sorri, informando que está noiva de um professor de

Educação Física, efetivo do Estado. Zenaide e seus irmãos, uma história de luta nesta Atibaia

que eles gostam tanto.

verdade eu nem lembro que fim levou a nossa propriedade lá. Sei que minha mãe vendeu

algumas das coisas que tinha e comprou um terreno aqui em Atibaia, bem ao lado dos meus

irmãos. Como sempre, todos se juntaram para construir a casinha para ela. Coitada, teve

pouco tempo para curtir a casa e morreu”, Zenaide se emociona.

As irmãs que ficaramEla e Antonio ficaram na casinha que era da mãe. “Antônio se casou e eu fiquei lá com ele.

Todos os irmãos que moram aqui em Atibaia têm sua casa. São casinhas simples mas todo

mundo ajudou todo mundo. E todos moram no Jardim Imperial. Minha irmã Geni ficou viúva,

estava sozinha e ficou perto da gente. A gente sempre se ajuda. Agora eu e meu noivo estamos

construindo nossa casa. Sempre com a ajuda de meus irmãos. Quem ficou em Josenópolis

também comprou uma terrinha. Plantam e colhem para sobreviver. É difícil emprego por lá.

Meus cunhados tem que sair para trabalhar no Sul de Minas. São bóias frias. Trabalham nas

roças, na colheita de café, corte de cana. Minhas irmãs ficam sozinhas pelo menos a metade

do ano. O pior é que lá o tempo castiga muito as pessoas, todo mundo envelhece mais de-

pressa. Ouvi dizer que Josenópolis começou a ter algum progresso. Já tem algumas firmas, e

até trabalho na cidade. Mas eu e meus irmãos que estão aqui já nos sentimos atibaienses”.

Pai herói“Atibaia influiu muito na minha vida e na vida de meus irmãos. Nada é fácil, mas estamos

bem. Não sei o que seria da minha vida se tivesse ficado lá. Acho que não teria estudado

talvez até ficasse trabalhando na roça, embora trabalhar na roça também seja um trabalho

digno. Meu pai ensinou isso para a gente. Mas gosto do que faço aqui. Fiz curso de manicure

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As histórias e a verdadeira história

do gigante chamado Andrézinho Atibaia é mesmo cidade de grandes personalidades. Só que, literalmente falando,

ninguém está à altura do ilustre Andrézinho, que todos do lugar conhecem.

Para começar, Andrézinho é gaúcho nascido em Minas Gerais, numa cidade tão

distante que chega a fazer divisa com o Japão. Como se não bastasse ele ainda

carrega nas veias o sangue africano dos pigmeus, um povo guerreiro onde os homens adultos

não ultrapassam o metro e meio de altura. Isso mesmo, têm a altura de cinco réguas daque-

las de 30 centímetros. Isso explica, por exemplo, a origem de sua valentia. Apesar do corpo

miúdo, Andrézinho também é famoso pela coragem de quem já botou muito marmanjo para

correr. Inclusive o diabo. Sim, o diabo. E foi o diabo...

Sua grande paixão é o trabalho. Basta que se observe o seu currículo. Andrézinho conta

que já fez de tudo na vida. Começou trabalhando em roça de café, plantou milho, colheu

batatas, frutas e flores. Já foi peão, motorista de viatura da polícia, funcionário público

registrado e tudo. Já foi ajudante de churrascaria, recolhedor de papelão, cobrador no

banheiro do mercado municipal. Garante bem garantido que tem até licença para dirigir

avião. Segundo o cabeleireiro, amigo e fã Di, ele pode até provar. Atualmente vende bi-

lhetes da loteria federal. Adotou esse trabalho porque só assim pode continuar batendo

perna por aí, na cidade toda, visitando clientes e amigos. Diga-se de passagem, bater perna

é a outra grande paixão do Andrézinho, “Ando mais do que vento!”, disse, em entrevista

exclusiva que concedeu a este repórter no Bar do Neves, localizado no Alvinópolis. E

considerando o conhecimento que tem do mundo, fará uma tremenda besteira aquele

que quiser convencê-lo de que a terra é redonda. Segundo Fausto, da Selaria Mundial,

Andrézinho afirma que o mundo é plano e ponto final!

Boa parte da sua fama se deve ao seu visual exclusivo. Do tamanho de 120 centímetros de

altura, um metro e vinte, se preferirem, jamais foi visto fora do seu chapéu de cangaceiro,

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cidade instalado bem naquele terreno onde hoje está a concessionária Chevrolet. O Bartolo

ficou encantado quando viu o Andrézinho. Foi logo oferecendo emprego de verdade para ele.

“Quero te dar casa, salário bom e você ainda vai conhecer o mundo todo!”, disse o dono do

circo. “Quando o homem disse que era para o Andrézinho trabalhar no circo ele virou uma

fera. Achou que se tratava de mais um engraçadinho gozador. Saiu atrás dele xingando alto

e fingindo que iria sacar uma faca. O homem virou um pó!”, contou José Mario Neves, aos

risos. José Mário é dono do Bar do Neves, no Alvinópolis. O Andrézinho frequenta o lugar há

mais de 26 anos. “Ele chega aqui pontualmente às onze e meia da manhã. Bate papo, toma

um aperitivo ou um copinho de cerveja, divide a marmita comigo, tira uma soneca sentado

na mesa e segue seu rumo”, conta Neves.

Andrézinho é celebridadeGraças à sua peculiaridade, Andrézinho foi personagem em um filme dos irmãos Spacek

(Tinha a gata Gioconda, no Youtube). No filme, Andrézinho é um super-herói que faz parte

da L.D.S.L. (Liga dos Defensores da Singularidade da Simplicidade) e é o defensor dos aposta-

dores da loteria federal. Divide com a Toniquinha, Elvis de Atibaia e o Lorenço Pipoca o dever

de manter a ordem na cidade. Além do filme, Andrézinho também foi homenageado pelo

professor Edson Beleza e virou bonecão de carnaval, um dos grandes destaques turísticos da

cidade. No entanto, mesmo com toda essa fama, o único registro oficial de Andrézinho como

personalidade ilustre de Atibaia é o livro AR (Anônimos Revelados) do fotógrafo atibaiense

Vitor Carvalho. O livro traz personalidades de Atibaia que fizeram e fazem parte da história

e faturou o XI Prêmio Funarte de Fotografia. “Andrézinho é o último elo perdido da Atibaia

antiga. A cidade está perdendo sua particularidade de cidade do interior e ele é o único que

suas galochas de borracha e sua bolsa à tira colo, aquelas bolsas que atravessam a alça no

peito. Acostumado com doações de amigos, a quem pergunta o número das suas botas vai

logo respondendo: “calço 31!” Há quem diga que ele já nasceu com esse “look” porque nem os

mais antigos da cidade se lembram de tê-lo visto sem esses seus três paramentos. Andrézinho

nunca usa roupa preta ou vermelha. “São as cores do diabo.”

Onde quer que se pergunte pelo Andrézinho, sempre vai haver alguém informando uma

pista de onde ele pode ser encontrado. Mas tudo depende da hora. Seu apreço pelo relógio

e pela pontualidade é o mesmo dos ingleses. Nada e nem ninguém consegue tirá-lo de suas

rotas e horários. Andrézinho frequenta os mesmos lugares sempre nas mesmas horas. Nunca

perde, por exemplo, a missa das oito da manhã do domingo no Cristo Rei. Vai lá há uns 40

anos, desde que a igreja era uma simples capelinha. Acorda às quatro da manhã, todos os

dias, e está dormindo às seis e meia da tarde. Quando o dia amanhece ele já está em frente

à Lotérica Ricão, que fica atrás da rodoviária, esperando a amiga Sônia para lhe pegar seus

bilhetes. Daí para a frente sai pela cidade visitando clientes e amigos. José Antonio Tavares,

o Di do Salão do Di é um deles. E há muito tempo. “O Andrézinho é pessoa muito educada.

Não tem esse negócio que muita gente fala que ele xinga e corre atrás não!”, defende Di.

A verdade é que se o Andrézinho não for com as fuças do sujeito ou se a abordagem for

sem educação ele se irrita sim. Não se pode chegar e chamá-lo de anãozinho, impunemente.

Pior ainda é chegar e dizer que vai tirar foto dele para mandar para o circo. Quem fizesse

isso há uns anos tinha que falar e sair correndo. Na cabeça de Andrézinho circo é lugar de

palhaço! E tem mais: ele garante que não é anão, apenas deixou de crescer. E isso aconteceu

porque, quando ainda era criança carregou muitas latas de água na cabeça. Teve uma vez que

Andrézinho chegou a colocar o dono do famoso circo Bartolo para correr. O circo estava na

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Florenço da Rocha. Depois de passar por fazendas em Joanópolis e Bragança Paulista, a família

arrumou um bom emprego na cidade de Atibaia. Para o pequeno André o nome era estranho

e os novos patrões mais ainda. Eram uma gente de olhos puxados e um idioma que ninguém

entendia nada. O irmão explicou: “Esse povo ai é ‘japoneis’ André”. Eram os Yanos. Recém

chegados ao país e à cidade, os Yanos plantavam batata e falavam quase nada em português.

Os irmãos de André foram se casando e mudando para outros sítios de japoneses. E foi então

que todas as dúvidas se desfizeram: para Andrézinho Atibaia era o Japão. Quando se aven-

turava na roça de batata voltava sempre machucado. As pesadas mangueiras de irrigação

eram cruéis para com seu corpo. Ele queria ajudar os irmãos, mas não conseguia. Resolveu

procurar emprego em outro lugar.

Seu Julio adoeceu e morreu. Não demorou muito e dona Benedita também começou a

sofrer os castigos da idade. Antes de morrer passou a guarda do pequeno Andrézinho para

sua filha mais velha, a Luiza. A mesma Luiza que, antes de se ir para sempre também passou

a responsabilidade para a filha que passou para a filha e assim Andrézinho foi vivendo, mu-

dando e vendo a família diminuir. A cada morte ele tinha que trocar de casa. No ano em que

o repórter começou este trabalho Andrézinho morava em um casebre na Vila São José, com a

filha de uma sobrinha. Hoje ele está morando no Jardim Imperial, com outra sobrinha, filha

de uma das irmãs, que também já faleceu. Se para o leitor é difícil de entender, imagine o

sofrimento de Andrézinho. Hoje, apenas o irmão Rafael está vivo, mas acometido pela idade

e por uma doença já não consegue conversar com o irmão.

Andrézinho e os muitos empregosAndrézinho já era famoso em 1980 graças à suas características únicas. Foi quando o diretor

ainda guarda essa característica”, afirmou o fotógrafo. Isso não impediu que alguns fãs de

Andrézinho o colocassem na internet. Possui três comunidades no Orkut e em uma delas

conta com 1.773 seguidores. Lá o criador da comunidade provoca uma enquete: O Andrézinho

merece uma estátua na cidade? 100% dos seguidores disseram que sim.

A verdadeira história de AndrézinhoNa verdade, e de verdade, André Florenço da Rocha nasceu no dia 30 de novembro de 1939.

É o quinto dos sete filhos de Benedita Euflásia da Rocha e Julio Florenço da Rocha. O casal

criou com muito trabalho e sacrifício os filhos Juvenal, Miguel, Bastião, Rafael, André, Luiza

e Maria. Euflásia e Júlio casaram em Itapeva onde tiveram quatro filhos. André, Luiza e Maria

nasceram em Camanducaia. Apesar da tranquilidade do lugar a vida era corrida para a família.

Enquanto dona Benedita e as meninas ficavam em casa para os afazeres domésticos, Julio e

seus filhos mais velhos davam duro na roça de café. André era miudinho e atuava nas duas

frentes. Em casa ajudava a mãe carregando latas de água na cabeça, na roça era responsável

pela entrega das marmitas e amolava as ferramentas. Aos sete anos André percebeu que era

bem menor do que todos os outros irmãos, inclusive a Maria, irmã caçula. Um dia resolveu

perguntar para a mãe se ele não iria crescer mais. Benedita, que tinha um xodó imenso com

o filho não sabia como explicar essas coisas de “ananismo primordial”. Ela era benzedeira e

mantinha um oratório com várias imagens de santos em casa. E diante deles disse: “André,

meu filho, você é o meu São Benedito. Por isso é pequenino assim”, e mostrou o santinho

negro ao filho. Andrézinho ficou tão feliz que nunca mais repetiu a pergunta.

O tempo passou e as coisas que já não iam bem para os patrões da família acabaram por

piorar. O café não dava mais nada e a crise que durava anos custou o emprego e a casa dos

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vende não mais do que cinco bilhetes por dia, todos cuidadosamente fechados e dobrados

como um origami . É um jogo “às escuras”, como Andrézinho costuma dizer. Ele garante que

se o apostador desfizer a dobra para ver os números antes do dia do sorteio o jogo não vai dar

sorte nenhuma. Até hoje, não se tem notícia de que algum apostador mais sortudo tenha

ficado rico pelas mãos do Andrézinho. Mas isso não tem a menor importância, pois André

Florenço da Rocha, por si só, já é uma baita fortuna para Atibaia & Sua Gente. E comprova

nessa reportagem que tudo o que se diz por aí sobre ele não passa da mais pura verdade.

do SAAE, o então jovem advogado Sérgio Marcos Roque, lhe presenteou com um cargo de

mensageiro. Foi a primeira vez que Andrézinho teve um registro em carteira. “Contratei o

André porque ele mostrou muita competência para exercer a função”, revelou o Dr. Sérgio

Roque para o repórter. O exame médico de admissão foi assinado pelos doutores Olavo

Malheiros e Kenji Kawakami, futuros fundadores do AMHA. Em 1982 o Dr. Sérgio Roque

deixou a direção do SAAE. Algum tempo depois se tornou delegado. Como a vaga ocupada

por Andrézinho era um cargo comissionado ele foi dispensado por Shigueo Tada, o novo

diretor do serviço de saneamento. Andrézinho não se abalou e voltou a viver de pequenos

biscates. O que pintasse de trabalho para ganhar um dinheirinho ele topava. O ruim é que na

vida pessoal as coisas não corriam tão bem. Andrézinho precisava de um lugar onde morar

porque estava vivendo muito longe da cidade. Mais uma vez contou com a ajuda de amigos.

Foi então que Orlando Soldera, famoso fabricante de carrocerias para caminhões, cuja em-

presa fica no Recreio Estoril, transformou uma antiga carroceria em um trailer e ofereceu para

Andrézinho morar. Na mesma época Andrézinho passou a ajudar na churrascaria Recanto do

Gaúcho, que também fica no Recreio Estoril. Com os gaúchos Andrézinho faturava comida e

uns trocados. Eram tão bons esses gaúchos, tão amigos, tratavam tão bem o Andrézinho que

ele não teve dúvidas: passou a dizer que também era gaúcho, só que nascido em Minas, claro.

Andrézinho fazia parcerias de toda a sorte. Em uma delas, por exemplo, passou a ser cobrador

do banheiro do Mercado Municipal. Ele atendia ao convite do amigo Zé Wilson, de quem se

tornou “sócio”. Enquanto Zé limpava tudo e deixava o banheiro cheiroso, Andrézinho ficava

com a lata da caixinha na porta pedindo moedas para quem entrava. No fim do dia os dois

dividiam a bolada. Por fora, e já sem sociedade, Andrézinho vendia bilhetes de loteria. Esse

ofício de vendedor de bilhetes só engrenaria uns tempos depois, e dura até hoje. Andrézinho

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O Divino já esteve na moda em Atibaia. Hoje

você tem um encontro marcado com o Divino “Ai, ai, que vida ingrata o alfaiate tem, quando ele erra, estraga o pano todo,

quando ele acerta, a roupa não convém.” Era assim que Luiz Gonzaga can-

tava, homenageando os quase sempre injustiçados alfaiates de primeiro,

segundo e últimos anos. Claro que Divino Pocidônio da Silva conhece essa

música. Geminiano, romântico e sonhador, Divino era um dos cinco maiores alfaiates que

Atibaia já teve. Fã de Luiz Gonzaga e de seu filho, Gonzaguinha, nunca estragou pano, ao

contrário, Divino ditava a moda em calças, coletes e paletós bem cortados que os bem ves-

tidos exibiam pela cidade. Será que tem alguém da velha ou da “média” guarda que não se

lembre do Divino? Difícil. As várias oficinas de trabalho que teve, em vários locais da cidade,

eram verdadeiros pontos de encontro das pessoas que realmente contavam e importavam

em Atibaia. Políticos, artistas, trabalhadores, ricos, ocupados e até os mais desocupados fre-

qüentavam as oficinas onde Divino estava. Bate-papo, cantoria, jogo de cartas, fofocas mil,

muita amizade, muita camaradagem. O Divino era o cara o Divino.

Da vinda do Divino Mineiro de Governador Valadares, criou muito calo nas mãos trabalhando com foice,

enxada, machado, cuidando da roça, dos bichos numa fazenda que pertencia à sua irmã. “Se

eu contar minha vida ninguém acredita. Trabalhei oito anos para a minha irmã e para o ma-

rido dela, que se chamava Emidio de Morais. Já morreu. Minha irmã mora aqui em Atibaia”,

conta. Divino brinca: “Acho que eles acreditavam muito no meu nome, então ficavam sem

fazer nada e eu ia pro pasto pra cortar cana e cuidar do gado. Depois eu colocava dois cavalos

no moinho pra moer cana e fazer melado e rapadura”, sorri. Acho que eu tinha uns 18 anos

naquela época. “Tive uma porção de irmãos, hoje tem sete vivos, inclusive a Zita, que era a

dona da tal fazenda”, conta.

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para aprender a costurar. Além de alfaiate o Zé ainda tinha uma vaquinha e exigia que todo

dia eu fosse tirar leite da vaca e trazer para ele. Com o tempo, ele começou a me pagar dois

cruzeiros (naquele tempo a moeda era Cruzeiro) por calça. Daí pra frente ele só chegava na

alfaiataria, marcava quatro ou cinco serviços para que eu fizesse e sumia. Só voltava no fim

do dia. Eu fazia tudo que conseguia lembrar. Às vezes eu esquecia. E ele ainda achava ruim

comigo, o danado...

Quando chegou em Atibaia Divino foi trabalhar com o Alcides, um profissional muito

conhecido na cidade. Tanto que chegou a ser eleito vice-prefeito. “Dizer que ganhei muito

dinheiro trabalhando como alfaiate seria exagero, Deu para formar minha família toda. Eram

sete filhos. Todo mundo estudou. Nem lembro quanto trabalhei com o Alcides, um montão

de tempo. Um dia eu pensei: não vou ficar aqui a vida inteira trabalhando para os outros.

Passei a trabalhar sozinho. Dava mais certo. Minha alfaiataria tinha uma vitrine enorme cheia

de tecidos para os fregueses escolherem sua roupa. Era costume na época. Pano de baixo pra

cima. Ficava na avenida São João, perto da Rodoviária. O dono do prédio era um “turquinho”

muito bom, muito amigo. Ele não gostava de ser chamado de “turquinho”. Dizia: “Eu sou

libanês. Eu gostava dessa gente. Gente boa.”

Os amigos do DivinoComunicativo, sempre alegre, Divino conseguiu muitos amigos por aqui. “O que mais se

fazia era calça. Se bem que tivesse muita gente que gostava de andar bem vestido, de terno e

gravata. Com o tempo o pessoal começou a abandonar o paletó. As pessoas começaram a ir

à igreja só de manga de camisa...”

Divino nunca comprou nenhuma confecção, sempre fez suas calças, camisas e paletós.

Divino lembra que seu pai “trabalhava de ameia”, como se dizia na época. “A gente lá do

mato não tinha recurso pra procurar coisa melhor. Quem me encaminhou para mudar de

vida foi minha mãe. Só fiz o curso primário só. Não tive tempo de estudar. Meu pai morreu

e eu cuidava de minha mãe e de meus irmãos”, lembra. Divino não esconde que o grande

momento de sua vida foi quando conheceu Edite Ferreira da Silva, com quem se casaria e

teria sete filhos, José Geraldo, Itamar, Luiz Carlos, Wilson, Eduardo, Edson e Ana Maria.

A mulher que mudou sua vida“Conheci a Edite por acaso. Como era antigamente, a gente ficava dando voltas na praça,

se cruzava, se olhava e um dia começava a conversar. Aí, com o tempo namorava. O pai dela

era muito bravo, mas no fim acabou gostando de mim e deixou a gente se casar. Edite, jus-

tiça seja feita, também trabalhou muito. Quando se casou tinha apenas formação primária.

Depois, quando o casal veio para Atibaia, com os filhos todos no ginásio ela resolveu voltar

a estudar. Cuidava da casa, cozinhava, lavava roupa como fazem as grandes mulheres e, à

noite ia estudar. Frequentou o ginásio junto com os filhos. Formou-se professora, lecionou

durante muitos anos até se aposentar, coisa que hoje garante ao casal uma vida digna, já que

o marido recebe apenas a aposentadoria de um salário mínimo.

E lá foi Divino cortando o panoMesmo ainda trabalhando na roça em Governador Valadares, Divino conseguiu apren-

der o ofício de alfaiate que carregaria para o resto de sua vida. Mas não foi fácil aprender a

costurar. Aprendi com o José Martins, um profissional que morava na cidade de Conceição

de Tronqueira. Paguei caro por isso. Tive que costurar 80 calças pra ele. Esse foi o preço

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A Atibaia daquele tempo era bem diferente. Uma cidade calma, tranqüila, todo mundo

se conhecia. Não existiam muitas ruas calçadas ou asfaltadas. O Alvinópolis, por exemplo,

praticamente nem existia. Era quase tudo mato. E barro puro. Não era fácil para o Divino ir

da sua casa, que ficava na avenida dos Bandeirantes, no Lago do Major, para a sua oficina,

que ficava na avenida São João. “E eu ia almoçar em casa todos os dias. Ia e vinha a pé. Subia

e descia morro. Um Divino também cansa”, brinca.

A moda sem Divino“Quer saber? Nem lembro quando parei de trabalhar. Sei que fiquei pra mais de 50 anos

nesse ofício. Todo dia e o dia todo sentado, cruza a perna, descruza a perna, a bunda doendo.

Ficar com a cabeça abaixada costurando na máquina, nossa, minhas costas e meu pescoço

parece que têm até marcas”, desabafa.

O mercado foi dominado pelas confecções. Mas tem muita gente que não dispensa o

alfaiate. Pessoas de bom gosto que querem uma roupa exclusiva, bem cortada, bem traba-

lhada, bem costurada. Tem muita gente. Os bons alfaiates continuam ganhando e vivendo

muito bem. “No meu tempo a cidade tinha uns quatro ou cinco alfaiates muito bons. E todo

mundo tinha muito serviço, muito trabalho. Dava para ficar bem na vida. Até hoje as pessoas

me procuram para fazer um serviço aqui, outro serviço ali. Mas eu não posso atender. Não

dá mais. Bem que gostaria, mas não dá mais. Logicamente Divino nunca usou uma calça ou

paletó comprados feitos. “Pra que? Eu mesmo é que fazia.”

Divino ainda lembra os tempos quando saia de Atibaia e ia comprar tecido na 25 de Março.

“Já naquele tempo o comércio daquele lugar fervia de gente. Divino tem uma resposta óti-

ma para quem lhe pergunta se era melhor viver naqueles tempos ou agora? “Agora é muito

No começo os filhos tentavam ajudar, mas nenhum teve sucesso. Divino fez questão que

eles estudassem. Hoje são todos formados. Ganhou toda a sua vida costurando. Comprou

um terreno, fez sua casa, e comprou seu carrinho. “Meu primeiro carro foi um fusquinha”,

lembra”. Mas vendeu e comprou um Maverick. Depois, um Aero Willys. “Naquele tempo um

bom alfaiate ganhava bem”, explica.

“Consegui fazer grandes amizades por aqui. As pessoas iam na minha alfaiataria e ficavam

lá o dia inteiro, batendo papo, falando bobagens. O Zézico Alvim, por exemplo, não saia de

lá. Era todo dia. Ficava sentado, falando e eu trabalhando. Uma porção de gente importante

ia lá e ficava conversando. Minha alfaiataria virou um ponto de encontro. Algumas pessoas

tinham cadeira cativa, como o “Fanico”, o professor Cármine, o Chefe da estação de trem. Todo

mundo chamava ele de Chefe, por isso eu nem lembro o nome dele. Ia também o Oscar do 2º

Cartório, o Fininho e muitos outros. A gente ficava batendo papo e, no fim do dia partia pro

jogo de baralho. Eu terminava o serviço e a gente se enrolava nas cartas. “As vezes eu chegava

em casa à meia noite e a minha mulher perguntava: “que é que você estava fazendo?”, e eu

respondia: estava trabalhando. Tava nada. Estava jogando carta...”

Divino é de confiança...Amigos, amigos, baralho à parte, um dia Divino fiou realmente trabalhando durante toda a ma-

drugada, pois tinha um serviço urgente para entregar. “Mas eu estava trabalhando mesmo. Só que

a minha mulher ficou desconfiada. E, logo na manhã do dia seguinte bateram na porta. Quando

fui abrir era minha mulher. Fiquei assustado e perguntei: “Que é que você veio fazer aqui?” Ela

respondeu: “Eu vim ver se tinha mulher por aqui”... Ela entrou, examinou tudo, olhou tudo, cada

canto, cada pedaço. Não tinha nada, claro, eu tinha mesmo passado a noite trabalhando...”

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melhor, pois eu não faço nada. Agora eu trabalho na prefeitura, fico andando e medindo

rua”, disfarça, brincando.

Como já se viu, Divino e Edite tiveram sete filhos. O mais velho é músico. Um é enge-

nheiro mecânico, outro é técnico em publicidade, outro juiz federal do trabalho, outro con-

tador, outro advogado e a filha mais nova é matemática e superintendente da Nossa Caixa

Desenvolvimento, banco de fomento paulista. Tem 20 netos e dois bisnetos. Nada mal para

um Divino que já foi até candidato a vereador em Atibaia. Os céus não ajudaram o Divino

que fez apenas a metade dos votos necessários. Sorte dele.

P.S. E não é que o Divino foi embora? Duas semanas depois de ter contado sua

história o sr. Divino Pocidonio da Silva nos deixou. Coisas do coração. Com certeza

Divino foi lançar moda lá no céu. Pena que nos tenha deixado tão tristes...