assédio moral e responsabilidade das organizações com os direito fundamentais dos trabalhadores

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XIX ENCONTRO • Direitos humanos e o trabalho • Direito do Trabalho e discriminação • Execução trabalhista: eficácia CONCURSO DE MONOGRAFIAS • Assédio moral e responsabilidade das organizações com os direitos fundamentais dos trabalhadores • Desconsideração da personalidade jurídica frente ao novo Código Civil Ano IV - Nº 10 - Dezembro de 2003

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Direito do Trabalho

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Page 1: Assédio Moral e Responsabilidade Das Organizações Com Os Direito Fundamentais Dos Trabalhadores

XIX ENCONTRO

• Direitos humanos e o trabalho

• Direito do Trabalho e discriminação

• Execução trabalhista: eficácia

CONCURSO DE MONOGRAFIAS

• Assédio moral e responsabilidadedas organizações com os direitosfundamentais dos trabalhadores

• Desconsideração da personalidadejurídica frente ao novo Código Civil

Ano IV - Nº 10 - Dezembro de 2003

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EDITORIAL ........................................................... 5

XIX ENCONTRO................................................... 6Direitos humanose o trabalhoFlávia Piovesan

XIX ENCONTRO................................................. 18Direito do Trabalhoe discriminaçãoEstevão Mallet

XIX ENCONTRO................................................. 29Execução trabalhista: eficáciaRonaldo José Lopes Leal

CONCURSO DE MONOGRAFIAS....................... 34Assédio moral e responsabilidadedas organizações com os direitosfundamentais dos trabalhadoresMárcia Novaes Guedes

CONCURSO DE MONOGRAFIAS....................... 51Desconsideração da personalidade jurídicafrente ao novo Código CivilLídice da Costa Medeiros

Diretoria Executiva(Biênio 2002/2004)

PresidenteOlívia Pedro RodriguezVice-presidenteAntero Arantes MartinsDiretor CulturalMarcos Neves FavaDiretora SecretáriaSueli ToméDiretora SocialLuciana Carla Corrêa BertoccoDiretor TesoureiroJonas Santana de BritoDiretores Adjuntos- Magda Kersul de Brito (Informática)- Maria Alexandra Kowalski Motta

(Aposentados)- Soraya Galassi Lambert (Substitutos)- Eliane Aparecida da Silva Pedroso

(ABC)- Moisés dos Santos Heitor

(Baixada Santista)- Maria Elizabeth Mostardo Nunes

(Barueri)- Ana Maria Moraes Barbosa

(Guarulhos)

Conselho EditorialCynthia Gomes RosaHomero Batista Mateus da SilvaLuciana Carla Corrêa BertoccoMarcos Neves FavaOlívia Pedro RodriguezSalvador Franco de Lima LaurinoSérgio Alli

EditorSérgio Alli – Mtb. 18.988Redação e RevisãoThais Sauaya PereiraAssessoria EditorialBaleia Comunicação Ltda.Tel. (11) 5082-3535Projeto GráficoCarlos Alberto MartinsPaginação e FotolitosAmeruso Artes GráficasTels.: (11) 6215-3596/6591-3999ImpressãoAtiva/M (11) 6602-3344A Revista da Amatra II é uma publicaçãotrimestral, com circulação nacional. As opiniõesemitidas nos artigos publicados são de respon-sabilidade de seus autores, não expressando,necessariamente, posições da Associação.

Amatra IIAssociação dosMagistrados daJustiça do Trabalhoda 2a Região -Grande São Pauloe Baixada Santista

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Sede: Av. Rio Branco, 285 - 11o andarCEP 01205-000 - São Paulo - SP

Tel: (11) 222-7899 / Fax: 222-1272Site: www.amatra2.org.br

E-mail: [email protected]

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Direitos fundamentaisA última edição da Revista da Amatra II em 2003 vem marcada, nuclearmente,

pelos direitos fundamentais. Reunimos cinco artigos, as duas monografias vencedo-ras do III Concurso de Monografias da Amatra II, e três artigos extraídos de palestrasproferidas no XIX Encontro Anual dos Magistrados do Trabalho da 2ª Região, havidoem Campos do Jordão, no último mês de setembro.

O III Concurso de Monografias, que visa incentivar a produção científica dos Juízese Procuradores do Trabalho, propôs temas vinculados ao novo Código Civil Brasileiro.A primeira colocada, Juíza Márcia Guedes Novaes, aborda a responsabilidade dasorganizações em razão do assédio moral praticado contra trabalhadores. Cuida, por-tanto, da garantia ao trabalho digno, direito fundamental do homem. A segundacolocada, Juíza Lídice da Costa Medeiros, trata do problema da desconsideração dapersonalidade jurídica, apresentando, como pano de fundo, a preocupação com aeficácia do processo, na proteção dos direitos do homem.

Em nosso XIX Encontro pudemos exercitar o congraçamento com os colegas, denossa e de outras regiões, e aprofundar nossas reflexões sobre o Direito e a judica-tura. Maurício Godinho Delgado, José Affonso Dallegrave Neto, Jorge SoutoMaior, Flávia Cristina Piovesan, Estêvão Mallet e Ronaldo Leal provocaram os es-píritos dos presentes, convocando-os à reflexão crítica e os estimulando à busca deuma Justiça eficaz.

Neste número, reunimos artigos do professor Estêvão Mallet, que adaptou suapalestra sobre discriminação no trabalho, gizando o caráter fundamental dos direitosda personalidade na construção e na execução do contrato de trabalho. Reproduzi-mos também a rica intervenção da professora Flávia Cristina Piovesan, que nos pro-pôs vigorosa leitura eficaz dos direitos fundamentais contidos na Carta Maior, com ointuito de torná-los concretos na entrega da prestação jurisdicional. O Ministro Ronal-do Leal, Corregedor-Geral da Justiça do Trabalho, expôs suas preocupações e desafi-os ao redor da execução eficaz, indicando caminhos de solução e insistindo na ne-cessidade do bom exaurimento da prestação jurisdicional.

Cada qual por sua vertente e sob diversa motivação, todos apontaram suas con-clusões para a franca necessidade de considerar o Direito do Trabalho como direitofundamental da pessoa humana, protegido de maneira especial e revestido de cons-tante e progressiva efetividade. Que os textos aqui veiculados prestem-se ao incre-mento do debate, à disseminação de idéias instigantes e ao estímulo à reflexão, é oque desejam os membros do Conselho Editorial desta publicação, que, ao ensejo,endereçam a todos votos sinceros de Feliz Natal e Próspero Ano de 2004!

Juiz Marcos Neves FavaDiretor Cultural da Amatra II

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FLÁVIA PIOVESAN*

Direitos humanos e o trabalho1

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1. Introdução

O objetivo deste artigo é propor uma reflexão a res-peito da relação entre os direitos humanos e o traba-lho, sob a perspectiva dos direitos econômicos, sociaise culturais.

Inicialmente, será avaliada a relação entre o pro-cesso de construção dos direitos humanos e os direitoseconômicos, sociais e culturais. Vale dizer, será anali-sado o modo pelo qual esses direitos passaram a inte-grar a chamada “concepção contemporânea de direi-tos humanos”, enunciada pela Declaração Universalde 1948 e reiterada pela Declaração de Viena de 1993.

Em um segundo momento, serão enfocados os ins-trumentos internacionais voltados especificamente àproteção dos direitos econômicos, sociais e culturais,com destaque ao direito ao trabalho nos sistemas in-ternacional e interamericano de direitos humanos. Se-rão, assim, estudados o Pacto Internacional dos Direi-tos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adi-cional à Convenção Americana em matéria de direitoseconômicos, sociais e culturais (“Protocolo de San Sal-vador”). A essa análise será somada a análise da pro-teção constitucional conferida aos direitos econômi-

cos, sociais e culturais à luz da Constituição Brasileirade 1988.

Por fim, serão desenvolvidas reflexões a respeito dosprincipais desafios e perspectivas para a proteção dosdireitos econômicos, sociais e culturais no contexto daglobalização econômica.

2. A construção dos direitos humanos2. e os direitos econômicos, sociais2. e culturais

Enquanto reivindicações morais, os direitos huma-nos nascem quando devem e podem nascer. Comorealça Norberto Bobbio, os direitos humanos não nas-cem todos de uma vez e nem de uma vez por todas.2

Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são umdado, mas um construído, uma invenção humana, emconstante processo de construção e reconstrução3.Considerando a historicidade desses direitos, pode-seafirmar que a definição de direitos humanos aponta auma pluralidade de significados. Tendo em vista talpluralidade, destaca-se a chamada concepção con-temporânea de direitos humanos, que veio a ser intro-duzida com o advento da Declaração Universal de

* Flávia Piovesan é Professora Doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da PUC/SP, Professora de Direitos Humanos do Programade Pós Graduação da PUC/SP e da PUC/PR, Procuradora do Estado de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos daPessoa Humana.

1 Texto elaborado com base em palestra proferida no XIX Encontro Anual dos Magistrados do Trabalho da 2ª Região, em Campos doJordão, em 25 de setembro de 2003.

2 NORBERTO BOBBIO, Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Campus, 1988.3 HANNAH ARENDT, As Origens do Totalitarismo, trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro, 1979. A respeito, ver também CELSO

LAFER, A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, São Paulo: Cia das Letras, 1988,p.134. No mesmo sentido, afirma Ignacy Sachs: “Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, queos direitos são conquistados, às vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do qual as necessidades e as aspiraçõesse articulam em reivindicações e em estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos” (IGNACY SACHS, “Desenvolvimento,Direitos Humanos e Cidadania”, in: Direitos Humanos no Século XXI, 1998, p.156). Para Allan Rosas: “O conceito de direitos humanosé sempre progressivo. (…) O debate a respeito do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa história, de nossopassado e de nosso presente” (ALLAN ROSAS, “So-Called Rights of the Third Generation”, in: ASBJORN EIDE, CATARINA KRAUSE eALLAN ROSAS, Economic, Social and Cultural Rights, Dordrecht, Boston e Londres: Martinus Nijhoff Publishers, 1995, p. 243).

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1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Huma-nos de Viena de 1993.

Essa concepção é fruto do movimento de interna-cionalização dos direitos humanos, que constitui ummovimento extremamente recente na história, surgin-do, a partir do pós-guerra, como resposta às atrocida-des e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apre-sentando o Estado como o grande violador de direitoshumanos, a era Hitler foi marcada pela lógica da des-truição e da descartabilidade da pessoa humana, queresultou no envio de 18 milhões de pessoas a camposde concentração, com a morte de 11 milhões, sendo 6milhões de judeus, além de comunistas, homossexu-ais, ciganos… O legado do nazismo foi condicionar atitularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeitode direitos, à pertinência a determinada raça – a raçapura ariana. No dizer de Ignacy Sachs, o Século XX foimarcado por duas guerras mundiais e pelo horror ab-soluto do genocídio concebido como projeto político eindustrial.4

É nesse cenário que se desenha o esforço de re-construção dos direitos humanos, como paradigma ereferencial ético a orientar a ordem internacional con-temporânea. Se a 2a Guerra significou a ruptura comos direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar asua reconstrução.

Nesse sentido, em 10 de dezembro de 1948, é apro-vada a Declaração Universal dos Direitos Humanoscomo marco maior do processo de reconstrução dosdireitos humanos. Introduz ela a concepção contem-porânea de direitos humanos, caracterizada pela uni-versalidade e indivisibilidade desses direitos. Universa-lidade porque clama pela extensão universal dos direi-tos humanos, sob a crença de que a condição de pes-soa é o requisito único para a titularidade de direitos,considerando o ser humano como um ser essencial-mente moral, dotado de unicidade existencial e digni-dade. Indivisibilidade porque a garantia dos direitoscivis e políticos é condição para a observância dos di-reitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa.Quando um deles é violado, os demais também o são.Os direitos humanos compõem, assim, uma unidadeindivisível, interdependente e inter-relacionada, capazde conjugar o catálogo de direitos civis e políticos aocatálogo de direitos sociais, econômicos e culturais.Consagra-se, desse modo, a visão integral dos direitoshumanos.

Ao examinar a indivisibilidade e a interdependênciados direitos humanos, leciona Hector Gros Espiell: “Sóo reconhecimento integral de todos estes direitos podeassegurar a existência real de cada um deles, já que,sem a efetividade de gozo dos direitos econômicos,sociais e culturais, os direitos civis e políticos se redu-zem a meras categorias formais. Inversamente, sem arealidade dos direitos civis e políticos, sem a efetivida-de da liberdade entendida em seu mais amplo senti-do, os direitos econômicos, sociais e culturais carecem,por sua vez, de verdadeira significação. Esta idéia danecessária integralidade, interdependência e indivisi-bilidade quanto ao conceito e à realidade do conteú-do dos direitos humanos, que de certa forma está im-plícita na Carta das Nações Unidas, se compila, seamplia e se sistematiza em 1948, na Declaração Uni-versal de Direitos Humanos, e se reafirma definitiva-mente nos Pactos Universais de Direitos Humanos,aprovados pela Assembléia Geral em 1966, e em vi-gência desde 1976, na Proclamação de Teerã de 1968e na Resolução da Assembléia Geral, adotada em 16de dezembro de 1977, sobre os critérios e meios paramelhorar o gozo efetivo dos direitos e das liberdadesfundamentais (Resolução nº 32/130)”.5

A Declaração Universal de 1948, na qualidade demarco maior do movimento de internacionalização dosdireitos humanos, fomentou a conversão desses direi-tos em tema de legítimo interesse da comunidade in-ternacional. Como observa Kathryn Sikkink: “O Direi-to Internacional dos Direitos Humanos pressupõe comolegítima e necessária a preocupação de atores esta-tais e não estatais a respeito do modo pelo qual oshabitantes de outros Estados são tratados. A rede deproteção dos direitos humanos internacionais buscaredefinir o que é matéria de exclusiva jurisdição do-méstica dos Estados”.6

Fortalece-se, assim, a idéia de que a proteção dosdireitos humanos não deve se reduzir ao domínio re-servado do Estado, isto é, não deve se restringir à com-petência nacional exclusiva ou à jurisdição domésticaexclusiva, porque revela tema de legítimo interesseinternacional. Por sua vez, esta concepção inovadoraaponta a duas importantes conseqüências:

1a) a revisão da noção tradicional de soberania ab-soluta do Estado, que passa a sofrer um processo derelativização, na medida em que são admitidas inter-

4 IGNACY SACHS, “O Desenvolvimento enquanto apropriação dos direitos humanos”, in Estudos Avançados 12 (33), 1998, p.149.5 HECTOR GROS ESPIELL, Los derechos económicos, sociales y culturales en el sistema interamericano, San José: Libro Libre, 1986, p. 16-17.6 KATHRYN SIKKINK, “Human Rights, Principled issue-networks, and Sovereignty in Latin America”, in: International Organizations,

Massachusetts: IO Foundation e Massachusetts Institute of Technology, 1993, p. 413. Acrescenta a mesma autora: “Os direitos indivi-duais básicos não são do domínio exclusivo do Estado, mas constituem uma legítima preocupação da comunidade internacional” (op. cit. p.441).

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venções no plano nacional em prol da proteção dosdireitos humanos; isto é, transita-se de uma concep-ção “hobbesiana” de soberania centrada no Estadopara uma concepção “kantiana” de soberania centra-da na cidadania universal.7

2a) a cristalização da idéia de que o indivíduo deveter direitos protegidos na esfera internacional, na con-dição de sujeito de Direito.

Prenuncia-se, desse modo, o fim da era em que aforma pela qual o Estado tratava seus nacionais eraconcebida como um problema de jurisdição domésti-ca, decorrência de sua soberania.

O processo de universalização dos direitos humanospermitiu, por sua vez, a formação de um sistema nor-mativo internacional de proteção desses direitos. Nalição de André Gonçalves Pereira e Fausto de Qua-dros: “Em termos de Ciência Política, tratou-se apenasde transpor e adaptar ao Direito Internacional a evolu-ção que no Direito Interno já se dera, no início do sé-culo, do Estado-Polícia para o Estado-Providência. Masfoi o suficiente para o Direito Internacional abandonara fase clássica, como o Direito da Paz e da Guerra,para passar à era nova ou moderna da sua evolução,como Direito Internacional da Cooperação e da Soli-dariedade”.8

A partir da aprovação da Declaração Universal de1948 e a partir da concepção contemporânea de direi-tos humanos por ela introduzida, começa a se desen-volver o Direito Internacional dos Direitos Humanos,mediante a adoção de inúmeros tratados internacio-nais voltados à proteção de direitos fundamentais. ADeclaração de 1948 confere lastro axiológico e unida-de valorativa a este campo do Direito, com ênfase nauniversalidade, indivisibilidade e interdependência dosdireitos humanos. Como afirma Norberto Bobbio, osdireitos humanos nascem como direitos naturais uni-versais, desenvolvem-se como direitos positivos parti-culares (quando cada Constituição incorpora Declara-ções de Direito), para finalmente encontrarem sua ple-na realização como direitos positivos universais.9

O processo de universalização dos direitos humanospermitiu a formação de um sistema internacional deproteção destes direitos. Este sistema é integrado portratados internacionais de proteção que refletem, so-bretudo, a consciência ética contemporânea compar-tilhada pelos Estados, na medida em que invocam oconsenso internacional acerca de parâmetros proteti-vos mínimos relativos aos direitos humanos (o “míni-mo ético irredutível”). Nesse sentido, cabe destacarque, até agosto de 2002, o Pacto Internacional dosDireitos Civis e Políticos contava com 148 Estados-par-tes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,Sociais e Culturais contava com 145 Estados-partes; aConvenção contra a Tortura contava com 130 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discrimi-nação Racial contava com 162 Estados-partes; a Con-venção sobre a Eliminação da Discriminação contra aMulher contava com 170 Estados-partes e a Conven-ção sobre os Direitos da Criança apresentava a maisampla adesão, com 191 Estados-partes.10

Ao lado do sistema normativo global, surgem os sis-temas regionais de proteção, que buscam internacio-nalizar os direitos humanos nos planos regionais, parti-cularmente na Europa, América e África. Adicional-mente, há um incipiente sistema árabe e a propostade criação de um sistema regional asiático. Consolida-se, assim, a convivência do sistema global da ONUcom instrumentos do sistema regional, por sua vez,integrado pelo sistema americano, europeu e africanode proteção aos direitos humanos.

Os sistemas global e regional não são dicotômicos,mas complementares. Inspirados pelos valores e prin-cípios da Declaração Universal, compõem o universoinstrumental de proteção dos direitos humanos, no pla-no internacional. Nessa ótica, os diversos sistemas deproteção de direitos humanos interagem em benefíciodos indivíduos protegidos. O propósito da coexistênciade distintos instrumentos jurídicos – garantindo osmesmos direitos – é, pois, no sentido de ampliar efortalecer a proteção dos direitos humanos. O que im-

7 Para Celso Lafer, de uma visão ex parte príncipe, fundada nos deveres dos súditos com relação ao Estado passa-se a uma visão ex partepopuli, fundada na promoção da noção de direitos do cidadão (Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: reflexões sobre umaexperiência diplomática, São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 145).

8 ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO QUADROS, Manual de Direito Internacional Público, 3ª edição, Coimbra: LivrariaAlmedina, 1993, p.661. Acrescentam os autores: “As novas matérias que o Direito Internacional tem vindo a absorver, nas condições referidas,são de índole variada: política, econômica, social, cultural, científica, técnica, etc. Mas dentre elas o livro mostrou que há que se destacar três: aproteção e a garantia dos Direitos do Homem, o desenvolvimento e a integração econômica e política” (op. cit. p.661). Na visão de Hector Fix-Zamudio: “(...) o estabelecimento de organismos internacionais de tutela dos direitos humanos, que o destacado tratadista italiano MauroCappelleti tem qualificado como jurisdição constitucional transnacional, enquanto controle judicial da constitucionalidade das disposições legisla-tivas e de atos concretos de autoridade, tem alcançado o Direito interno, particularmente a esfera dos direitos humanos e tem se projetado no âmbitointernacional e inclusive comunitário” (Proteccion Juridica de los Derechos Humanos, México: Comision Nacional de Derechos Huma-nos, 1991, p. 184)

9 NORBERTO BOBBIO, Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 30.1 0 A respeito, consultar Human Development Report 2002, UNDP, New York/Oxford: Oxford University Press, 2002.

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porta é o grau de eficácia da proteção, e, por isso,deve ser aplicada a norma que, no caso concreto,melhor proteja a vítima. Ao adotar o valor da primaziada pessoa humana, esses sistemas se complementam,interagindo com o sistema nacional de proteção, a fimde proporcionar a maior efetividade possível na tutelae promoção de direitos fundamentais. Essa é inclusivea lógica e a principiologia próprias do Direito Interna-cional dos Direitos Humanos, todo ele fundado no prin-cípio maior da dignidade humana.

A concepção contemporânea de direitos humanoscaracteriza-se pelos processos de universalização e in-ternacionalização desses direitos, compreendidos sobo prisma de sua indivisibilidade11. Ressalte-se que aDeclaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993,reitera a concepção da Declaração de 1948, quando,em seu parágrafo 5º, afirma: “Todos os direitos huma-nos são universais, interdependentes e inter-relaciona-dos. A comunidade internacional deve tratar os direi-tos humanos globalmente de forma justa e eqüitativa,em pé de igualdade e com a mesma ênfase”.

Logo, a Declaração de Viena de 1993, subscrita por171 Estados, endossa a universalidade e a indivisibili-dade dos direitos humanos, revigorando o lastro delegitimidade da chamada concepção contemporâneade direitos humanos, introduzida pela Declaração de1948. Note-se que, enquanto consenso do “pós Guer-ra”, a Declaração de 1948 foi adotada por 48 Estados,com 8 abstenções. Assim, a Declaração de Viena de1993 estende, renova e amplia o consenso sobre auniversalidade e indivisibilidade dos direitos humanos.A Declaração de Viena afirma ainda a interdependên-cia entre os valores dos Direitos Humanos, Democra-cia e Desenvolvimento.

Não há direitos humanos sem democracia e nemtampouco democracia sem direitos humanos. Vale di-zer, o regime mais compatível com a proteção dos di-reitos humanos é o regime democrático. Atualmente,140 Estados, dos quase 200 Estados que integram aordem internacional, realizam eleições periódicas.Contudo, apenas 82 Estados (o que representa 57%da população mundial) são considerados plenamentedemocráticos. Em 1985, esse percentual era de 38%,compreendendo 44 Estados.12 O pleno exercício dos

direitos políticos pode implicar o “empoderamento”das populações mais vulneráveis, o aumento de suacapacidade de pressão, articulação e mobilização po-líticas. Para Amartya Sen, os direitos políticos (incluin-do a liberdade de expressão e de discussão) são nãoapenas fundamentais para demandar respostas políti-cas às necessidades econômicas, mas centrais para aprópria formulação dessas necessidades econômicas.13

Além disso, em face da indivisibilidade dos direitoshumanos, há de ser definitivamente afastada a equi-vocada noção de que uma classe de direitos (a dosdireitos civis e políticos) merece inteiro reconhecimen-to e respeito, enquanto outra classe de direitos (a dosdireitos sociais, econômicos e culturais), ao revés, nãomerece qualquer observância. Sob a ótica normativainternacional, está definitivamente superada a concep-ção de que os direitos sociais, econômicos e culturaisnão são direitos legais. A idéia da não-acionabilidadedos direitos sociais é meramente ideológica e não ci-entífica. São eles autênticos e verdadeiros direitos fun-damentais, acionáveis, exigíveis e demandam séria eresponsável observância. Por isso, devem ser reivindi-cados como direitos e não como caridade, generosida-de ou compaixão.

Como aludem Asbjorn Eide e Allan Rosas: “Levar osdireitos econômicos, sociais e culturais a sério implica,ao mesmo tempo, um compromisso com a integraçãosocial, a solidariedade e a igualdade, incluindo a ques-tão da distribuição de renda. Os direitos sociais, eco-nômicos e culturais incluem como preocupação cen-tral a proteção aos grupos vulneráveis. (…) As necessi-dades fundamentais não devem ficar condicionadas àcaridade de programas e políticas estatais, mas de-vem ser definidas como direitos”.14

A compreensão dos direitos econômicos, sociais eculturais demanda ainda que se recorra ao direito aodesenvolvimento. Para desvendar o alcance do direitoao desenvolvimento, importa realçar, como afirmaCelso Lafer, que, no campo dos valores, em matériade direitos humanos, a conseqüência de um sistemainternacional de polaridades definidas – Leste/Oeste,Norte/Sul – foi a batalha ideológica entre os direitoscivis e políticos (herança liberal patrocinada pelos EUA)e os direitos econômicos, sociais e culturais (herança

1 1 Note-se que a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Eliminação daDiscriminação contra a Mulher e a Convenção sobre os Direitos da Criança contemplam não apenas direitos civis e políticos, mastambém direitos sociais, econômicos e culturais, o que vem a endossar a idéia da indivisibilidade dos direitos humanos.

1 2 Consultar Human Development Report 2002: Deepening democracy in a fragmented world, UNDP, New York/Oxford: Oxford UniversityPress, 2002.

13 AMARTYA SEN, Foreword ao livro Pathologies of Power, PAUL FARMER, Berkeley: University of California Press, 2003.14 ASBJORN EIDE e ALLA ROSAS, “Economic, Social and Cultural Rights: A Universal Challenge”, in: ASBJORN EIDE, CATARINA

KRAUSE e ALLAN ROSAS, Economic, Social and Cultural Rights, Dordrecht, Boston e Londres: Martinus Nijhoff Publishers, 1995,p. 17-18.

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social patrocinada pela então URSS). Nesse cenáriosurge o “empenho do Terceiro Mundo de elaborar umaidentidade cultural própria, propondo direitos de iden-tidade cultural coletiva, como o direito ao desenvolvi-mento”. 15

É, assim, adotada pela ONU a Declaração sobre oDireito ao Desenvolvimento, em 1986, por 146 Esta-dos, com um voto contrário (EUA) e 8 abstenções. ParaAllan Rosas: “A respeito do conteúdo do direito aodesenvolvimento, três aspectos devem ser menciona-dos. Em primeiro lugar, a Declaração de 1986 endossaa importância da participação. (…) Em segundo lugar,a Declaração deve ser concebida no contexto das ne-cessidades básicas de justiça social. (…) Em terceirolugar, a Declaração enfatiza tanto a necessidade deadoção de programas e políticas nacionais, como dacooperação internacional. (…)”.16

O artigo 2o da Declaração sobre o Direito ao De-senvolvimento de 1986 consagra que: “A pessoa hu-mana é o sujeito central do desenvolvimento e deveser ativa participante e beneficiária do direito ao de-senvolvimento.” Adiciona o artigo 4o da Declaraçãoque os Estados têm o dever de adotar medidas, indi-vidualmente ou coletivamente, voltadas a formularpolíticas de desenvolvimento internacional, com vis-tas a facilitar a plena realização de direitos, acres-centando que a efetiva cooperação internacional éessencial para prover aos países em desenvolvimentomeios que encorajem o direito ao desenvolvimento.

O direito ao desenvolvimento demanda uma glo-

balização ética e solidária. No entender de Moham-med Bedjaqui: “Na realidade, a dimensão internacio-nal do direito ao desenvolvimento é nada mais que odireito a uma repartição eqüitativa concernente aobem estar social e econômico mundial. Reflete umademanda crucial de nosso tempo, na medida em queos quatro quintos da população mundial não maisaceitam o fato de um quinto da população mundialcontinuar a construir sua riqueza com base em suapobreza”.17 As assimetrias globais revelam que a ren-da dos 1% mais ricos supera a renda dos 57% maispobres na esfera mundial.18

Como atenta Joseph E. Stiglitz: “The actualnumber of people living in poverty has actuallyincreased by almost 100 million. This occurred at thesame time that total world income increased by anaverage of 2.5 percent annually”.19 Para a WorldHealth Organization: “poverty is the world’s greatestkiller. Poverty wields its destructive influence at everystage of human life, from the moment of conceptionto the grave. It conspires with the most deadly andpainful diseases to bring a wretched existence to allthose who suffer from it”.20

O desenvolvimento, por sua vez, há de ser con-cebido como um processo de expansão das liberda-des reais que as pessoas podem usufruir, para ado-tar a concepção de Amartya Sem.21 Acrescente-seainda que a Declaração de Viena de 1993 enfatizaser o direito ao desenvolvimento um direito univer-sal e inalienável, parte integral dos direitos huma-

1 5 CELSO LAFER, Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática, São Paulo: Paz e Terra,1999.

1 6 ALLAN ROSAS, “The Right to Development”, in: ASBJORN EIDE, CATARINA KRAUSE e ALLAN ROSAS, Economic, Social andCultural Rights, Dordrecht, Boston e Londres: Martinus Nijhoff Publishers, 1995, p. 254-255.

1 7 MOHAMMED BEDJAQUI, “The Right to Development”, in: M. BEDJAOUI ed., International Law: Achievements and Prospects, 1991,p. 1182.

1 8 A respeito, consultar Human Development Report 2002, UNDP, New York/Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 19.19 JOSEPH E. STIGLITZ, Globalization and its Discontents, New York/London: WW Norton Company, 2003, p. 06. Acrescenta o autor:

“Development is about transforming societies, improving the lives of the poor, enabling everyone to have a chance at success and access to health careand education” (op. cit., p. 252).

2 0 PAUL FARMER, Pathologies of Power, Berkeley: University of California Press, 2003, p. 50. De acordo com dados do relatório SinaisVitais, do Worldwatch Institute (2003), a desigualdade de renda se reflete nos indicadores de saúde: a mortalidade infantil nos paísespobres é 13 vezes maior do que nos países ricos; a mortalidade materna é 150 vezes maior nos países de menor desenvolvimento comrelação aos países industrializados. A falta de água limpa e saneamento básico mata 1,7 milhão de pessoas por ano (90% crianças), aopasso que 1,6 milhão de pessoas morrem de doenças decorrentes da utilização de combustíveis fósseis para aquecimento e preparo dealimentos. O relatório ainda atenta para o fato de que a quase totalidade dos conflitos armados se concentrar no mundo em desenvol-vimento, que produziu 86% de refugiados na última década.

2 1 Ao conceber o desenvolvimento como liberdade, sustenta Amartya Sen: “Neste sentido, a expansão das liberdades é vista concomitantementecomo 1) uma finalidade em si mesma e 2) o principal significado do desenvolvimento. Tais finalidades podem ser chamadas, respectivamente, comoa função constitutiva e a função instrumental da liberdade em relação ao desenvolvimento. A função constitutiva da liberdade relaciona-se com aimportância da liberdade substantiva para o engrandecimento da vida humana. As liberdades substantivas incluem as capacidades elementares,como a de evitar privações como a fome, a subnutrição, a mortalidade evitável, a mortalidade prematura, bem como as liberdades associadas coma educação, a participação política, a proibição da censura. Nesta perspectiva constitutiva, o desenvolvimento envolve a expansão destas e de outrasliberdades fundamentais. Desenvolvimento, nesta visão, é o processo de expansão das liberdades humanas” (AMARTYA SEN, op. cit., p. 35-36e p. 297). Sobre o direito ao desenvolvimento, ver também KAREL VASAK, For Third Generation of Human Rights: The Rights foSolidarity, International Institute of Human Rights, 1979.

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nos fundamentais. Reitere-se que a Declaração deViena reconhece a relação de interdependênciaentre a democracia, o desenvolvimento e os direi-tos humanos.

Feitas essas considerações a respeito da concepçãocontemporânea de direitos humanos e o modo peloqual se relaciona com os direitos econômicos, sociaise culturais, transita-se à análise da proteção interna-cional a esses direitos, com ênfase no Pacto Interna-cional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais eno Protocolo Adicional à Convenção Americana emmatéria de direitos econômicos, sociais e culturais(“Protocolo de San Salvador”). Também será enfoca-da a proteção constitucional a esses direitos, à luz daCarta de 1988.

3. Proteção dos direitos econômicos,3. sociais e culturais no plano3. internacional e interno

Preliminarmente, faz-se necessário ressaltar que aDeclaração Universal de 1948, ao introduzir a concep-ção contemporânea de direitos humanos, foi o marcode criação do chamado “Direito Internacional dos Di-reitos Humanos”, que é um sistema jurídico normativode alcance internacional, com o objetivo de protegeros direitos humanos.

Após a sua adoção, em 1948, instaurou-se umalarga discussão sobre qual seria a maneira mais efi-caz em assegurar a observância universal dos direi-tos nela previstos. Prevaleceu o entendimento deque a Declaração deveria ser “juridicizada” sob aforma de tratado internacional, que fosse juridica-mente obrigatório e vinculante no âmbito do DireitoInternacional.

Esse processo de “juridicização” da Declaração co-meçou em 1949 e foi concluído apenas em 1966, coma elaboração de dois distintos tratados internacionaisno âmbito das Nações Unidas – o Pacto Internacionaldos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacionaldos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – que pas-savam a incorporar, com maior precisão e detalhamen-to, os direitos constantes da Declaração Universal, soba forma de preceitos juridicamente obrigatórios e vin-culantes.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, So-ciais e Culturais (Pidesc), que atualmente contemplaa adesão de 145 Estados-partes, enuncia um extensocatálogo de direitos, que inclui o direito ao trabalhoe à justa remuneração, o direito a formar e a filiar-sea sindicatos, o direito a um nível de vida adequado,o direito à moradia, o direito à educação, à previ-dência social, à saúde, etc. Na esfera trabalhista oPidesc, em seus artigos 6, 7 e 8, estabelece em de-talhamento o direito a condições de trabalho justase favoráveis, compreendendo: a) remuneração quepermita uma vida digna; b) condições de trabalhoseguras e higiênicas; c) igual oportunidade no traba-lho; d) descanso, lazer e férias, bem como direitossindicais.

Note-se que a própria Declaração Universal de1948, em seu art. XXIII, já enunciava que “toda pes-soa tem direito ao trabalho, à livre escolha de empre-go, a condições justas e favoráveis de trabalho e àproteção contra o desemprego”; “direito a igual re-muneração por igual trabalho”; “direito a uma remu-neração justa e satisfatória, que lhe assegure umaexistência digna”; direitos sindicais (direito de organi-zar sindicatos e a neles ingressar para a proteção deseus interesses).

Importa observar que, no cenário internacional,antes mesmo da Declaração de 1948 e do Pidescde 1966, nascia a OIT, após a 1ª Guerra Mundial,com o objetivo de promover parâmetros internacio-nais referentes às condições de trabalho e bem es-tar. Desse modo, a efetivação dos direitos econô-micos, sociais e culturais não é apenas uma obriga-ção moral dos Estados, mas uma obrigação jurídi-ca, que tem por fundamento os tratados internacio-nais de proteção dos direitos humanos, em especialo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, So-ciais e Culturais.22

Se os direitos civis e políticos devem ser assegura-dos de plano pelo Estado, sem escusa ou demora –têm a chamada auto-aplicabilidade –, os direitos so-ciais, econômicos e culturais, por sua vez, nos ter-mos em que estão concebidos pelo Pacto, apresen-tam realização progressiva. Vale dizer, são direitosque estão condicionados à atuação do Estado, quedeve adotar todas as medidas, tanto por esforço pró-prio como pela assistência e cooperação internacio-

2 2 A respeito do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ver HENRY J. STEINER e PHILIP ALSTON,International Human Rights in Context – Law, Politics and Morals, second edition, Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 261-267;p.305-322; MATTHEW C.R. CRAVEN, The International Covenant on Economic, Social, and Cultural Rights – A Perspective on itsDevelopment, Oxford: Claredon Press, 1995; PHILIP ALSTON e GERALD QUINN, The nature and scope of States Parties’s obligationsunder the ICESC, 9 Hum. Rts Q.156, 1987, p. 186; ASBJORN EIDE, CATARINA KRAUSE e ALLAN ROSAS, Economic, Social andCultural Rights, Dordrecht, Boston e Londres: Martinus Nijhoff Publishers, 1995.

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nais23, principalmente nos planos econômicos e téc-nicos, até o máximo de seus recursos disponíveis,com vistas a alcançar progressivamente a comple-ta realização desses direitos (artigo 2º, parágrafo1º do Pacto).24

No entanto, cabe realçar que tanto os direitos so-ciais, como os direitos civis e políticos demandam doEstado prestações positivas e negativas, sendo equivo-cada e simplista a visão de que os direitos sociais sódemandariam prestações positivas, enquanto que osdireitos civis e políticos demandariam prestações ne-gativas, ou a mera abstenção estatal. A título deexemplo, cabe indagar qual o custo do aparato de se-gurança, mediante o qual se assegura direitos civisclássicos, como os direitos à liberdade e à proprieda-de, ou ainda qual o custo do aparato eleitoral, queviabiliza os direitos políticos, ou, do aparato de justiça,que garante o direito ao acesso ao Judiciário. Isto é, osdireitos civis e políticos não se restringem a demandara mera omissão estatal, já que a sua implementaçãorequer políticas públicas direcionadas, que contem-plam também um custo.

Além da avaliação crítica acerca do “custo” dosdireitos sociais (que, como visto, também impõe-sequanto aos direitos civis e políticos), é também es-sencial refletir sobre a chamada “aplicação progres-siva” dos direitos econômicos, sociais e culturais, deforma a extrair seus efeitos. Cabe reafirmar que oPacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturaisestabelece a obrigação dos Estados em reconhecer eprogressivamente implementar os direitos nele enun-ciados, utilizando o máximo dos recursos disponíveis.Como afirma David Trubek: “Os direitos sociais, en-

quanto social welfare rights implicam na visão de queo Governo tem a obrigação de garantir adequada-mente tais condições para todos os indivíduos. A idéiade que o welfare é uma construção social e de que ascondições de welfare são em parte uma responsabili-dade governamental, repousa nos direitos enumera-dos pelos diversos instrumentos internacionais, em es-pecial pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômi-cos, Sociais e Culturais. Ela também expressa o que éuniversal nesse campo, na medida em que se trata deuma idéia acolhida por quase todas as nações do mun-do, ainda que exista uma grande discórdia acerca doescopo apropriado da ação e responsabilidade gover-namental, e da forma pela qual o social welfare podeser alcançado em específicos sistemas econômicos epolíticos”.25

Da aplicação progressiva dos econômicos, sociais eculturais resulta a cláusula de proibição do retrocessosocial em matéria de direitos sociais. Para J.J. GomesCanotilho: “O princípio da proibição do retrocesso so-cial pode formular-se assim: o núcleo essencial dos di-reitos sociais já realizado e efetivado através de medi-das legislativas deve considerar-se constitucionalmen-te garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medi-das que, sem a criação de esquemas alternativos oucompensatórios, se traduzam na prática em uma anu-lação, revogação ou aniquilação pura e simples dessenúcleo essencial. A liberdade do legislador tem comolimite o núcleo essencial já realizado”.26

Logo, em face do Pacto Internacional dos DireitosEconômicos, Sociais e Culturais, que os Estados-partes(dentre eles o Brasil), no livre e pleno exercício de suasoberania ratificaram, há que se observar o princípio

2 3 “O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais consagra três previsões que podem ser interpretadas no sentido de sustentar umaobrigação por parte dos Estados-partes ricos de prover assistência aos Estados-partes pobres, não dotados de recursos para satisfazer as obrigaçõesdecorrentes do Pacto. O artigo 2 (1) contempla a frase “individualmente ou através de assistência internacional e cooperação, especialmenteeconômica e técnica. A segunda é a previsão do artigo 11 (1), de acordo com a qual os Estados-partes concordam em adotar medidas apropriadaspara assegurar a plena realização do direito à adequada condição de vida, reconhecendo para este efeito a importância da cooperação internacionalbaseada no livre consenso. Similarmente, no artigo 11 (2) os Estados-partes concordam em adotar “individualmente ou por meio de cooperaçãointernacional medidas relevantes para assegurar o direito de estar livre da fome” (PHILIP ALSTON e GERARD QUINN, The Nature andScope of Staties Parties’ obligations under the ICESCR, 9 Human Rights Quartley 156, 1987, p. 186, apud HENRY STEINER e PHILIPALSTON, International Human Rights in Context: Law, Politics and Morals, second edition, Oxford: Oxford University Press, 2000, p.1.327).

2 4 A expressão “aplicação progressiva” tem sido frequentemente mal interpretada. Em seu “General Comment n.03” (1990), a respeito danatureza das obrigações estatais concernentes ao artigo 2º, parágrafo 1º, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturaisafirmou que, se a expressão “realização progressiva” constitui um reconhecimento do fato de que a plena realização dos direitos sociais,econômicos e culturais não pode ser alcançada em um curto período de tempo, esta expressão deve ser interpretada à luz de seu objetivocentral, que é estabelecer claras obrigações aos Estados-partes, no sentido de adotarem medidas, tão rapidamente quanto possível, paraa realização destes direitos. (General Comment n.3, UN doc. E/1991/23).

2 5 DAVID TRUBEK, “Economic, social and cultural rights in the third world: human rights law and human needs programs”, in: MERON,Theodor (editor). Human rights in international law: legal and policy issues. Oxford: Claredon Press, 1984. p. 207. A respeito, aindaafirma David Trubek: “Eu acredito que o Direito Internacional está se orientando no sentido de criar obrigações que exijam dos Estados a adoçãode programas capazes de garantir um mínimo nível de bem-estar econômico, social e cultural para todos os cidadãos do planeta, de forma aprogressivamente melhorar este bem-estar” (op. cit., p. 207).

26 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Livraria Almedina, 1998.

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da aplicação progressiva dos direitos sociais, o que,por si só, implica no princípio da proibição do retroces-so social.

Além do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais eCulturais, há que se mencionar o Protocolo de SanSalvador, em matéria de direitos econômicos, sociaise culturais, que entrou em vigor em novembro de1999. Tal como o Pacto dos Direitos Econômicos, So-ciais e Culturais, este tratado da OEA reforça os de-veres jurídicos dos Estados-partes no tocante aos di-reitos sociais, que devem ser aplicados progressi-vamente, sem recuos e retrocessos, para que se al-cance sua plena efetividade. O Protocolo de SanSalvador estabelece um amplo rol de direitos eco-nômicos, sociais e culturais, compreendendo o di-reito ao trabalho, direitos sindicais, direito à saú-de, direito à previdência social, direito à educação,direito à cultura, etc. Em seu art.6o, o Protocolo deSan Salvador endossa os direitos acolhidos peloPidesc e inclui o direito à estabilidade, prevendo quenos casos de demissão injustificada o trabalhador terádireito a uma indenização ou a readmissão no em-prego ou a quaisquer outras prestações previstas pelalegislação nacional.

Esse Protocolo acolhe (tal como o Pacto dos DireitosEconômicos, Sociais e Culturais) a concepção de quecabe aos Estados investir o máximo dos recursos dis-poníveis para alcançar, progressivamente, a plena efe-tividade dos direitos econômicos, sociais e culturais. OProtocolo permite o recurso ao direito de petição ainstâncias internacionais para a defesa de dois dos di-reitos nele previstos – o direito à educação e os direi-tos sindicais.

Aos tratados de proteção dos direitos humanos, so-mam-se os parâmetros protetivos adotados pela OIT.Há que se frisar que, em 1995, a OIT destacou quatroprincípios, como de fundamental importância: a) abo-lição do trabalho forçado; b) erradicação do trabalhoinfantil; c) eliminação da discriminação no empregoe na ocupação e d) liberdade de associação e prote-ção do direito à negociação coletiva. Em 1998, foiadotada a Declaração sobre os Princípios e DireitosFundamentais do Trabalho, que conclama os Estadosa promover a aplicação universal destes quatro prin-cípios. Observe-se que tais princípios revelam signifi-cativa ênfase aos direitos civis da esfera do trabalho.Isto é, a ótica é mais orientada a evitar e impedirformas degradantes de trabalho (como o trabalho for-çado, infantil e discriminatório), que propriamentedemandar prestações positivas acerca do lastro éticode dignidade a orientar as relações de trabalho. Esselastro consta dos tratados de direitos humanos já apon-tados, compreendendo: a) remuneração que permitauma vida digna; b) condições de trabalho seguras ehigiênicas; c) igual oportunidade no trabalho; d) des-

canso, lazer e férias, dentre outros direitos.À proteção internacional dos direitos sociais so-

mam-se os mecanismos de proteção nacional dessesdireitos.

Com o processo de democratização na região, amaioria dos países latino-americanos adotou novasConstituições, que pudessem servir como marco jurídi-co da transição democrática e da institucionalizaçãodos direitos humanos.

A título de exemplo, cite-se a Constituição Brasilei-ra de 1988, que está em absoluta consonância com aconcepção contemporânea de direitos humanos. ACarta de 1988 empresta aos direitos e garantias ênfa-se extraordinária, situando-se como o documento maisavançado, abrangente e pormenorizado sobre a ma-téria, na história constitucional do país.

O valor da dignidade humana impõe-se como nú-cleo básico e informador do ordenamento jurídicobrasileiro, como critério e parâmetro de valoração aorientar a interpretação e compreensão do sistemaconstitucional instaurado em 1988. A dignidade hu-mana e os direitos fundamentais vêm constituir osprincípios constitucionais que incorporam as exigên-cias de justiça e dos valores éticos, conferindo su-porte axiológico a todo sistema jurídico brasileiro.Na ordem de 1988 esses valores passam a ser do-tados de uma especial força expansiva, projetan-do-se por todo o universo constitucional e servindocomo critério interpretativo de todas as normas doordenamento jurídico nacional. A Constituição de1988 acolhe a idéia da universalidade dos direitoshumanos, na medida em que consagra o valor dadignidade humana como princípio fundamental doconstitucionalismo inaugurado em 1988. O textoconstitucional ainda realça que os direitos humanossão tema de legítimo interesse da comunidade in-ternacional, ao ineditamente prever, dentre os prin-cípios a reger o Brasil nas relações internacionais, oprincípio da prevalência dos direitos humanos. Tra-ta-se, ademais, da primeira Constituição Brasileira aincluir os direitos internacionais no elenco dos direi-tos constitucionalmente garantidos. Ao fim da ex-tensa Declaração de Direitos enunciada pelo artigo5º, a Carta de 1988 estabelece que os direitos e ga-rantias expressos na Constituição “não excluem ou-tros decorrentes do regime e dos princípios por elaadotados, ou dos tratados internacionais em que aRepública Federativa do Brasil seja parte”. A Consti-tuição de 1988 inova, assim, ao incluir, dentre os di-reitos constitucionalmente protegidos, os direitosenunciados nos tratados internacionais de que o Bra-sil seja signatário. Ao efetuar tal incorporação, a Car-ta está a atribuir aos direitos internacionais uma hie-rarquia especial e diferenciada: a hierarquia constitu-cional.

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Logo, outra conclusão não resta senão a aceitaçãopelo texto constitucional do alcance universal dos di-reitos humanos.

Quanto à indivisibilidade dos direitos humanos,há que se enfatizar que a Carta de 1988 é a pri-meira Constituição que integra ao elenco dos di-reitos fundamentais, os direitos sociais, que nasCartas anteriores restavam pulverizados no capí-tulo pertinente à ordem econômica e social. Ob-serve-se que, no Direito brasileiro, desde 1934, asConstituições passaram a incorporar os direitoseconômicos, sociais e culturais. Contudo, a Cons-tituição de 1988 é a primeira a afirmar que os di-reitos sociais são direitos fundamentais, sendo poisinconcebível separar os valores da liberdade (di-reitos civis e políticos) e da igualdade (direitos so-ciais, econômicos e culturais).

Nesse passo, a Constituição de 1988, além de es-tabelecer no artigo 6º que são direitos sociais a edu-cação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a se-gurança, a previdência social, a proteção à materni-dade e à infância, a assistência aos desamparados,ainda apresenta uma ordem social com um amplouniverso de normas que enunciam programas, tare-fas, diretrizes e fins a serem perseguidos pelo Estadoe pela sociedade. A título de exemplo, destacam-sedeterminados dispositivos constitucionais constantesda ordem social, que fixam, dentre os deveres do Es-tado e direitos do cidadão, a saúde (artigo 196), aeducação (artigo 205), a cultura (artigo 215), as práti-cas desportivas (artigo 217), a ciência e a tecnologia(artigo 218), dentre outros. A ordem constitucional de1988 acabou por alargar as tarefas do Estado, incor-porando fins econômico-sociais positivamente vincu-lantes das instâncias de regulação jurídica. A políticadeixa de ser concebida como um domínio juridicamen-te livre e constitucionalmente desvinculado. Os domí-nios da política passam a sofrer limites, mas tambémimposições, por meio de um projeto material vincula-tivo. Surge verdadeira configuração normativa da ati-vidade política. Como afirma J.J.Gomes Canotilho: “AConstituição tem sempre como tarefa a realidade:juridificar constitucionalmente esta tarefa ou aban-doná-la à política, é o grande desafio. Todas as Cons-tituições pretendem, implícita ou explicitamente, con-formar o político”.27

Cabe ainda mencionar que a Carta de 1988, nointuito de proteger maximamente os direitos funda-mentais, consagra dentre as cláusulas pétreas, a cláu-

sula “direitos e garantias individuais”. Considerando auniversalidade e a indivisibilidade dos direitos huma-nos, a cláusula de proibição do retrocesso social, ovalor da dignidade humana e demais princípios funda-mentais da Carta de 1988, conclui-se que esta cláusu-la alcança os direitos sociais. No dizer de Paulo Bona-vides: “os direitos sociais não são apenas justiciáveis,mas são providos no ordenamento constitucional dagarantia da suprema rigidez do parágrafo 4o doart.60”.28 São, portanto, direitos intangíveis, direitosirredutíveis, de forma que tanto a lei ordinária, como aemenda à Constituição que afetarem, abolirem ousuprimirem os direitos sociais, padecerão do vício deinconstitucionalidade.

Assim como a Carta de 1988, a maioria das Consti-tuições latino-americanas endossam a gramática dauniversalidade e da indivisibilidade dos direitos huma-nos, atribuindo ampla proteção constitucional aos di-reitos sociais, concebidos como verdadeiros direitosfundamentais e direitos públicos subjetivos, a deman-dar séria observância.

Por fim, à luz desse contexto, transita-se à reflexãoacerca do impacto da globalização econômica no to-cante à efetivação dos direitos sociais, com destaqueàs tendências de flexibilização e desconstitucionaliza-ção desses direitos.

4. O impacto da globalização4. econômica no processo de4. efetivação dos direitos sociais

Se ao longo das últimas décadas os grandes desa-fios da América Latina foram a abertura política, aestabilização econômica e a reforma social, hoje aagenda dos países latino-americanos passou a incluircomo preocupação central a inserção na economiaglobalizada.

O processo de globalização econômica, inspirado naagenda do chamado “Consenso de Washington”, pas-sou a ser sinônimo das medidas econômicas neolibe-rais voltadas para a reforma e a estabilização das de-nominadas “economias emergentes”. Tem por plata-forma o neoliberalismo, a redução das despesas públi-cas, a privatização, a flexibilização das relações detrabalho, a disciplina fiscal para a eliminação do défi-cit público, a reforma tributária e a abertura do merca-do ao comércio exterior. Há a crescente internaciona-lização da produção e a criação de mercados mundi-

27 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Livraria Almedina, 1998.28 PAULO BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Ed. Malheiros, 2000.

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ais integrados.29 No dizer de Jurgen Habermas: “Hojesão antes os Estados que se acham incorporados aosmercados, e não a economia política às fronteiras es-tatais”.30

Todavia, a globalização econômica tem agravadoainda mais as desigualdades sociais, aprofundando-seas marcas da pobreza absoluta e da exclusão social.Os mercados têm se mostrado incompletos, falhos eimperfeitos. De acordo com o relatório sobre o Desen-volvimento Humano de 1999, elaborado pelo Progra-ma das Nações Unidas para o Desenvolvimento(Pnud), a integração econômica mundial tem contri-buído para aumentar a desigualdade. A diferença derenda entre os 20% mais ricos da população mundiale os 20% mais pobres, medida pela renda nacionalmédia, aumentou de 30 para 1 em 1960 para 74 em1997. Adiciona o relatório que, em face da globaliza-ção assimétrica, a parcela de 20% da população mun-dial que vive nos países de renda mais elevada con-centra 86% do PIB mundial, 82% das exportaçõesmundiais, 68% do investimento direto estrangeiro e74% das linhas telefônicas. Já a parcela dos 20% maispobres concentra 1% do PIB mundial, 1% das expor-tações mundiais, 1% do investimento direto estran-geiro e 1,5% das linhas telefônicas.31 Acrescente-seque o próprio Banco Mundial reconheceu, em relató-rio recente, que a pobreza tem crescido em virtude daglobalização econômica. De acordo com o relatóriodo BIRD, no período de maior adesão ao neoliberalis-mo aumentaram a pobreza e o protecionismo em es-cala internacional.32

O forte padrão de exclusão sócio-econômica cons-titui grave comprometimento à noção de indivisibilida-de dos direitos humanos. O caráter indivisível destesdireitos tem sido mitigado pelo esvaziamento dos di-reitos sociais fundamentais, especialmente em virtudeda tendência de flexibilização de direitos sociais bási-cos, que integram o conteúdo de direitos humanos fun-damentais. A garantia dos direitos sociais básicos

(como o direito ao trabalho, à saúde e à educação),que integram o conteúdo dos direitos humanos, temsido apontada como um entrave ao funcionamento domercado e um obstáculo à livre circulação do capital eà competitividade internacional. A flexibilização dasrelações de trabalho não tem sido capaz de gerar no-vos empregos (elevando o grau de contratação), mastem sim implicado em uma fragilização das relaçõestrabalhistas e na precariedade das condições de traba-lho, o que se agrava em um cenário de recessão egrave desemprego (ex: o Brasil apesar de representara 5a população economicamente ativa do mundo, em1999 apresentou a 3a maior quantidade de desempre-gados em 141 países pesquisados).

A educação, a saúde e a previdência, de direitossociais básicos transformam-se em mercadoria, objetode contratos privados de compra e venda – em ummercado marcadamente desigual, no qual grande par-cela populacional não dispõe de poder de consumo.Como acentua José Eduardo Faria: “(…) os serviçospúblicos essenciais nos campos da educação, saúde,moradia, transporte ou até mesmo de segurança, con-vertidos em objeto de ambiciosos programas de priva-tização, passam a ser comercializados como uma mer-cadoria qualquer, formalizados por contratos de caráterestritamente mercantil e apropriados por organizaçõesempresariais exclusivamente voltadas ao lucro”.33 Nomesmo sentido, salienta Marilena Chauí: “A reformado Estado retirou educação e saúde do campo dos di-reitos sociais e as incluiu no dos serviços não exclusivosdo Estado. Essa pequena alteração terminológica –passar do direito ao serviço – não só as transferiu paraa rede do mercado, como também legitimou seu trata-mento como uma mercadoria qualquer, sujeita aosmecanismos contratuais que regem as ações mercantise que identificam o cidadão com o consumidor”.34

Em razão da indivisibilidade dos direitos humanos, aviolação aos direitos econômicos, sociais e culturaispropicia a violação aos direitos civis e políticos, eis que

29 Para Hesse: “Globalização da economia significa que as fronteiras entre países perdem importância, quando se trata de decisões sobre investimentos,produção, oferta, procura e financiamentos. As conseqüências são uma rede cada vez mais densa de entrelaçamentos das economias nacionais, umacrescente internacionalização da produção, no sentido de que os diferentes componentes de um produto final passam a ser manufaturados emdiferentes países, e a criação de mercados mundiais integrados para inúmeros bens, serviços e produtos financeiros” (HELMUT HESSE,“Globalização, Dicionário de Ética Econômica”, organizado por GEORGES ENDERLE, 1997, p. 305 apud CELSO A. MELLO, “ASoberania através da História”, in: Anuário Direito e Globalização – A Soberania, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 21).

3 0 JURGEN HABERMAS, “Nos Limites do Estado”, Folha de S.Paulo, Caderno Mais!, p. 5, 18 de julho de 1999.3 1 A respeito do Brasil, o relatório do Pnud afirma que 15,8% da população brasileira (26 milhões de pessoas) não tem acesso às condições

mínimas de educação, saúde e serviços básicos, 24% da população não tem acesso a água potável e 30% estão privados de esgoto. Esterelatório, que avalia o grau de desenvolvimento humano de 174 países, situa o Brasil na 79ª posição do ranking e atesta que o Brasilcontinua o primeiro país em concentração de renda – o PIB dos 20% mais ricos é 32 vezes maior que o dos 20% mais pobres.

3 2 Pobreza cresce, diz Banco Mundial, in: Folha de S.Paulo, 16.09.1999.3 3 A respeito, ver JOSÉ EDUARDO FARIA, “O Futuro dos Direitos Humanos após a Globalização Econômica”, in: O Cinquentenário da

Declaração Universal dos Direitos do Homem, São Paulo: Edusp, 1999, p. 56.3 4 MARILENA CHAUÍ, “Nova barbárie: aluno inadimplente”, in: Folha de S.Paulo, 12.12.1999.

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a vulnerabilidade econômico-social leva à vulnerabili-dade dos direitos civis e políticos.35 No dizer de AmartyaSen: “A negação da liberdade econômica, sob a formada pobreza extrema, torna a pessoa vulnerável a viola-ções de outras formas de liberdade.(…) A negação daliberdade econômica implica na negação da liberdadesocial e política”.36 Acrescente-se ainda que esse pro-cesso de violação dos direitos humanos alcança priori-tariamente os grupos sociais vulneráveis, como asmulheres e a população negra (daí os fenômenos da“feminização” e “etnicização” da pobreza).

Lembre-se que o Brasil figura como o 4o país commaior concentração de renda do mundo, apenas per-dendo para Serra Leoa, República Centro Africana eSuazilândia. A renda média dos 10% mais ricos é 30vezes maior que a dos 40% mais pobres. A desigualda-de tem crescido sistematicamente no Brasil, sendo hojebem mais elevada do que na primeira metade da dé-cada de 80. Os padrões brasileiros de desigualdadevariam muito em relação às diferenças regionais, sendosistemática a disparidade observada entre os padrõesde renda no Nordeste – onde 45% das pessoas vivemem situação de pobreza – e demais regiões do país.

Além das disparidades regionais, observa-se queos critérios gênero e raça atravessam os diferentes ní-veis de reprodução da desigualdade e exclusão social.A pobreza e a desigualdade econômico-social afetamde forma desproporcional as mulheres, as populaçõesafro-descendentes e indígenas no Brasil. A incidênciada pobreza é claramente mais acentuada entre as mu-lheres negras e as que vivem nas áreas rurais. O IDH dapopulação afro-brasileira varia entre 0,575 e 0,607, si-tuando-se muito abaixo da média nacional que é de0,73. O IDH da população afro-descendente ocupa a109a posição no ranking geral, que envolve 173 paí-ses, enquanto que o Brasil ocupa a 73a posição.

No âmbito do trabalho, os homens recebem em

média um salário 42% superior ao das mulheres. Háuma forte segmentação ocupacional no mercado detrabalho, na medida em que os homens concentram-se nos postos de trabalho dos setores melhor remune-rados – as ocupações dos setores industriais e produti-vos – enquanto as mulheres desempenham as ativida-des relacionadas aos serviços pessoais e sociais, asso-ciadas aos menores salários.

Negros e pardos no Brasil ganham, em média, 40 a50% a menos do que os brancos. Os homens brancosrecebem os melhores salários/rendimentos, seguidospelas mulheres brancas e homens negros, ficando asmulheres negras na base dessa pirâmide, com rendi-mentos significativamente menores.

Retornando à globalização econômica, ressalte-seque os próprios formuladores do Consenso de Wa-shington, dentre eles Joseph Stiglitz, Vice-Presidentedo Banco Mundial, hoje assumem a necessidade do“Pós-Consenso de Washington”, capaz de incluir te-mas relativos ao desenvolvimento humano, à educa-ção, à tecnologia e ao meio ambiente – enfim, enten-de-se fundamental apontar às funções que o Estadodeve assumir para assegurar um desenvolvimento sus-tentável e democrático.37 Há que se destacar, ainda,que o então diretor-gerente do FMI, Michel Camdes-sus, em seu último discurso oficial, afirmou que “des-mantelar sistematicamente o Estado não é o caminhopara responder aos problemas das economias moder-nas. (…) A pobreza é a ameaça sistêmica fundamen-tal à estabilidade em um mundo que se globaliza”.38

Além disso, há que se fortalecer a democratiza-ção, a transparência e a accountability das agênciasfinanceiras internacionais. Note-se que 48% do po-der de voto no FMI concentra-se nas mãos de seteEstados (US, Japão, França, Inglaterra, Arábia Saudi-ta, China e Rússia), enquanto que no Banco Mundial46% do poder de voto concentra-se nas mãos tam-

2 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro. Te35 Para José Eduardo Faria: “Com a globalização econômica os excluí-dos dos mercados de trabalho e consumo perdem progressivamente as condições materiais para exercer em toda a sua plenitude os direitos humanosde primeira geração e para exigir o cumprimento dos direitos humanos de segunda e terceira geração” (op. cit., p. 68-69).

3 6 AMARTYA SEN, Development as Freedom, New York: Alfred A. Knopf, 1999, p. 08.3 7 Em 30 de setembro de 1999, o então diretor-gerente do FMI, Michel Camdessus, ao reconhecer explicitamente a insuficiência das

receitas liberais, defendeu a humanização da globalização (“FMI questiona Consenso de Washigton”, in: Folha de S.Paulo, 30.09.1999).A respeito, ainda merece menção o ocorrido na conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle, em dezembrode 1999, em que fortes protestos e críticas foram feitas por inúmeros manifestantes e organizações não-governamentais em relação aoimpacto excludente da globalização econômica. Os protestos acenavam para a importância da proteção da democracia, meio ambiente,direitos humanos, direitos sociais dos trabalhadores no âmbito da globalização. Sobre o assunto, ver “The non-governmental order – WillNGOs democratise, or merely disrupt, global governance?”, in: The Economist, 11 de dezembro de 1999, p. 20-21. Na avaliação de MarilenaChauí: “A guerra de Seatle, tanto dentro como fora da OMC, indica que a contradição entre interesses nacionais é uma contradição de poder e entrepoderes locais, regionais e nacionais. Indica, portanto, contradição entre a internacionalização da economia e as formas assumidas pela luta de classesno plano nacional e internacional. É notável ver que a luta entre excluídos e incluídos, que parecia acontecer apenas no campo social nacional,ressurja com máxima força em Seatle, como se viu na divisão espacial das salas dos grupos de discussão, na questão dos subsídios e das tarifasprotecionistas e nas cláusulas trabalhistas” (“Fantasias da Terceira Via”, Folha de S.Paulo, 19.12.1999).

3 8 “Camdessus crítica desmonte do Estado”, Folha de S.Paulo, 14.02.2000.

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bém destes mesmos Estados.39 Na percepção críticade Joseph E. Stiglitz: “(...) we have a system thatmight be called global governance without globalgovernment, one in which a few institutions – theWorld Bank, the IMF, the WTO – and a few players –the finance, commerce, and trade ministries, closelylinked to certain financial and commercial interests –dominate the scene, but in which many of thoseaffected by their decisions are left almost voiceless.It’s time to change some of the rules governing theinternational economic order (...)”.40

Como leciona Jack Donelly, se os direitos humanosé o que civiliza a democracia, o Estado de Bem EstarSocial é o que civiliza os mercados; se os direitos civise políticos mantêm a democracia dentro de limites ra-zoáveis, os direitos econômicos e sociais estabelecem

39 A respeito, consultar Human Development Report 2002, UNDP, New York/Oxford: Oxford University Press, 2002.40 JOSEPH E. STIGLITZ, op.cit., p. 21-22.

os limites adequados aos mercados.(…) Mercados eeleições, por si só, não são suficientes para assegurardireitos humanos para todos. Como acentua CelsoLafer “é da convergência entre as liberdades clássicase os direitos de crédito que depende a viabilidade dademocracia no mundo contemporâneo”.

Diante destes desafios, resta concluir pela crençana implementação dos direitos humanos, como a úni-ca plataforma emancipatória de nosso tempo, como anossa racionalidade de resistência.

Hoje, mais do que nunca, há que se inventar umanova ordem, mais democrática e igualitária, capaz decelebrar a interdependência entre democracia, desen-volvimento e direitos humanos e que, sobretudo, te-nha a sua centralidade no valor da absoluta prevalên-cia da dignidade humana.

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ESTEVÃO MALLET*

Direito do Trabalhoe discriminação1

O tema sobre o qual deveremos refletir agora – dis-criminação, especialmente a discriminação no Direitodo Trabalho – é bastante delicado e difícil.

Ressalto, logo de saída, a profunda ligação existen-te entre a idéia de justiça e a idéia de igualdade. Éverdade que o conceito de igualdade pode variar mui-to. Vários são os conceitos mencionados. Podemospensar em igualdade formal ou em igualdade mate-rial, bem como em igualdade absoluta ou igualdaderelativa. Há, contudo, um dado que é inolvidável: senão há igualdade, algum tipo de igualdade pelo me-nos, seguramente não há justiça. A idéia de justiçaestá profundamente associada a alguma forma deigualdade. Tal constatação extravasa mesmo o merocomportamento do ser humano. Digo isso por contade recente pesquisa, realizada em torno do tratamen-to desigual dispensado a animais, cujos resultados di-vulgaram-se na semana passada. Pareceu-me profun-damente significativo o que se observou. Para umamesma tarefa, os pesquisadores gratificaram de mododesigual um grupo de macacos, oferecendo alimentosde diferentes qualidades e gostos. Isso provocou vio-lenta reação naqueles que se sentiam prejudicados,os quais rejeitavam o alimento de menor qualidadeque lhes era oferecido. Demonstrou-se que a desigual-dade de tratamento gera até mesmo nos animais umforte sentimento de injustiça e de revolta.

Pois bem, o que é a discriminação senão a desi-gualdade arbitrária, inaceitável e injustificável? Nadamais do que isso. A idéia de discriminação supõe uma

desigualdade. Não qualquer desigualdade, mas a de-sigualdade arbitrária, desarrazoada, inaceitável dian-te das circunstâncias. Por isso que, no fundo, se a jus-tiça se relaciona com a igualdade e a igualdade repe-le a discriminação, a discriminação é também a nega-ção da justiça. Eis uma constatação muito importantede se fazer logo de início.

Em seguida, parece-me significativo notar que aevolução da humanidade se processa no sentido deredução das desigualdades. Dá-se tal evolução, por-tanto, no sentido de eliminação das discriminações. Éevidente que isso ocorre com alguns sobressaltos, commarchas e contramarchas. Mas a direção é claramen-te nesse sentido.

Primeiramente, havia a divisão entre senhores eescravos; entre os que eram pessoas e os que nempessoas eram, recebendo o tratamento de objeto dedireito2. O passar do tempo fez com que o elementohumano preponderasse e todos fossem reconhecidoscomo sujeitos de direito. Permaneceram, todavia, al-gumas distinções, como, por exemplo, a estabelecidaentre nobres e servos, os primeiros com mais direitos,os últimos com menos direitos3. Já foi uma evolução.Mas representou, ainda, apenas uma etapa na cami-nhada.

Com as revoluções liberais do século XVIII e do sé-culo XIX o elemento humano, o traço comum, ocupoutodo o espaço e as distinções desapareceram. Foi aconsagração da igualdade formal; a abolição de qual-quer discriminação em face da lei. Expressiva, a pro-

* Estevão Mallet é advogado, mestre, doutor e livre docente pela Faculdade de Direito da USP, onde é professor de Direito do Trabalho.1 Texto elaborado com base na palestra apresentada no XIX Congresso dos Magistrados do Trabalho da 2ª Região, em Campos do Jordão,

em 26 de setembro de 2003. Conservou-se o seu estilo original, marcado pela linguagem oral, adicionando-se apenas algumas notas,consideradas mais relevantes.

2 Por todos, JHERING, L´esprit du droit romain, Paris: Marescq, 1886, tome deuxième, p. 101 e segs.3 A propósito, RENÉ FOIGNET, Manuel élémentaire d´histoire du droit français, Paris: Rousseau, 1932, p. 158 e segs.

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pósito, a referência contida no artigo 1o da Declaraçãodos Direitos do Homem e do Cidadão: “Os homensnascem e permanecem livres e iguais em direitos”.Como se vê, todos são homens, são seres humanosou, diríamos melhor, são pessoas, e não há mais dis-tinções aceitáveis em face da lei.

Segue-se a evolução apontada com a consolidaçãoda democracia, que acentuou essa caminhada no sen-tido da igualdade e da eliminação da discriminação4.Para cada pessoa, um voto, independentemente daorigem, do nascimento, do patrimônio, do conheci-mento ou da cultura. Todos são pessoas e todos têmdireito a um voto, em perfeita igualdade de condições.Daí que a democracia favorece, de modo significati-vo, a igualdade, ampliando sua importância. E nãome parece que dizer isso seja uma superfetação, umaredundância, mesmo nos dias de hoje. Pelo contrário,de tempos em tempos, quando se aproxima o períodoeleitoral, deparamo-nos com pessoas que resistem emaceitar a idêntica participação de todos na escolha dosdirigentes do país, supondo que alguns, seja por paga-rem muito mais impostos, seja por terem maior capa-citação técnica ou melhor formação cultural, deveriampoder influir de modo mais significativo nessa esco-lha5. Não há nenhum fundamento, todavia, para essadiscriminação e a democracia a repele firmemente.

Aqui não é, porém, o momento adequado e nem olocal apropriado para tratarmos dessa caminhada nosentido da maior igualdade, no sentido da eliminaçãoda discriminação em todos os campos do direito. É umuniverso muito vasto e muito interessante. O mais im-portante é consideramos como isso se processou nocampo do Direito do Trabalho, o objeto da nossa preo-cupação comum.

O preceito que, em primeiro lugar, chama a aten-ção, e do qual podemos inicialmente tirar algumasconsiderações muito ricas e muito interessantes, é oartigo 5o da Consolidação das Leis do Trabalho, intro-duzido na parte geral, para ressaltar a importância daregra editada pelo legislador. Por trás dessa regra háalgo de muito significativo, que desejo sublinhar. Diz o

preceito: “Para trabalho de igual valor corresponderáigual salário, sem distinção de sexo”. Eis o dispositivoque, antes de outros, proscreve a discriminação noDireito do Trabalho. O que há de tão expressivo nessedispositivo? Há pelo menos dois pontos.

De um lado, deve-se sublinhar a referência do legis-lador à igualdade apenas do ponto de vista remunera-tório. O importante é a igualdade de remuneração. Osoutros aspectos são postos de lado. Se o trabalho tiverigual valor, a remuneração deverá ser a mesma. Deoutra parte, e aí está o segundo ponto a notar, há areferência apenas à discriminação fundada em motivode sexo, como se essa fosse a única causa de discrimi-nação.

O que mostram as duas referências do legislador?Mostram, em primeiro lugar, a concepção claramentepatrimonialista da Consolidação das Leis do Trabalhoe do nosso Direito do Trabalho. Quando Sérgio Buar-que de Holanda escreveu sobre as origens do Brasil efez referências à formação patrimonialista da nossasociedade6, não tinha em vista o Direito do Trabalho ea Consolidação das Leis do Trabalho. Se tivesse, afir-maria ainda com mais ênfase a sua conclusão. O nos-so Direito do Trabalho é essencialmente patrimonialis-ta. Leva quase sempre em conta, apenas e tão so-mente, o aspecto pecuniário da relação de trabalho,como se esse fosse o seu único aspecto ou, pelo me-nos, o seu aspecto decisivo. A rescisão do contratopode se operar imotivadamente, desde que o empre-gador indenize o empregado, pouco importando osprejuízos extra-patrimoniais que dessa rescisão resul-tem: abalo na vida familiar, na vida pessoal do empre-gado. Nada disso importa. O artigo 469 refere-se àtransferência e a admite muitas vezes de forma unila-teral, em caráter provisório, no interesse exclusivo doempregador, novamente desde que se indenize o pre-juízo ocasionado ao empregado. Mas e a vida familiarque se desestrutura? Os laços de parentesco que sãocomprometidos? Tenha-se em conta, ainda, o artigo195 e os demais dispositivos que tratam da insalubri-dade e da periculosidade. Compra-se, com o dinheiro,

4 Veja-se, sobre o tema, PONTES DE MIRANDA, Democracia, Liberdade, Igualdade (os três caminhos), São Paulo: Saraiva, 1979, p.409 e segs.

5 Vale lembrar, a propósito, que o princípio do “one person, one vote somente se estabeleceu nos Estados Unidos da América, sempre referidoscomo exemplo de democracia, com as decisões proferidas nos chamados reapportionment cases, no início dos anos sessenta. Em 1962 a SupremaCorte, em Baker v. Carr (369 U.S. 186), declarou a inconstitucionalidade da legislação de 1901, do Estado do Tennessee, que distribuía as vagasna assembléia de modo desigual entre os eleitores. Dois anos depois, em 1964, enfrentando problema semelhante surgido no Estado do Alabama,a mesma Suprema Corte, novamente declarando a inconstitucionalidade de critérios de distribuições de votos de forma desigual entre eleitores,registrou, na célebre expressão do juiz Warren: “Legislators represent people, not trees or acres. Legislators are elected by voters, not farms or cities oreconomic interests” (Reynolds v. Sims – 377 U.S. 533). Sobre o tema, mais amplamente, consulte-se o livro de ARCHIBALD COX (TheCourt and the Constitution, Boston: Houghton Mifflin, 1987, p. 289 e segs.), que, como Solicitor General of the United States,participou diretamente nos “reapportionment cases”. Consulte-se igualmente, para se ter outra perpectiva dos casos, RAOUL BERGER,Gouvernment by Judiciary – The transformation of the Fourteenth Amendment, Cambridge: Harvard University Press, 1977, p. 69 e segs.

6 Raízes do Brasil, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1963, passim.

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a saúde que se tira do empregado. Os exemplos dadosevidenciam como o Direito do Trabalho no Brasil enfa-tiza apenas o aspecto patrimonial ou econômico darelação de trabalho. Também no artigo 5o da CLT, notratamento dispensado à discriminação, a mesma rea-lidade se manifesta.

É preciso colocar, no entanto, uma vírgula nesseraciocínio, porque a apontada concepção patrimonia-lista vem sendo gradativamente abalada pelas trans-formações recentes do Direito do Trabalho, especial-mente após a Constituição de 1988. Descobriu-se umveio riquíssimo, que é o do reconhecimento de umaesfera moral de interesses do empregado, que mereceproteção. Como sempre acontece quando um veiomuito rico é descoberto, o oportunismo também semanifesta. Passamos de um extremo – em que tudoera apenas patrimônio – para o extremo oposto – emque qualquer deslize, por menor que seja, talvez mes-mo um simples cumprimento menos enfático do em-pregador, pode dar margem a um pedido de indeniza-ção por dano moral. Mas isso não deve causar perple-xidade nem pode desmerecer a descoberta. A evolu-ção cultural se processa segundo um movimento pen-dular. É natural. Saímos de um extremo e passamospara o outro. Com o tempo, porém, encontraremos oponto de equilíbrio. Seguramente esse ponto de equi-líbrio está no reconhecimento da importância do as-pecto não-patrimonial da relação de trabalho, até por-que estamos falando de uma relação em que um dossujeitos é sempre e necessariamente pessoa física, al-guém que tem, portanto, direitos da personalidade quedevem e precisam ser protegidos.

Já o segundo aspecto emergente do artigo 5o – aproibição da discriminação por motivo de sexo – po-deria até ser aqui deixado de lado. Falar em discrimi-nação por motivo de sexo em um Congresso da Asso-ciação dos Magistrados do Trabalho parece perfeita-mente ocioso e dispensável. Se há um setor da nossasociedade em que a discriminação por motivo de sexoé inexistente, esse setor será certamente o da magis-tratura do Trabalho. As provas são numerosas. A pre-sidente da Associação dos Magistrados do Trabalhoda 2ª Região é a Juíza Olívia Pedro Rodriguez. Já foipresidente da Associação Nacional dos Magistradosdo Trabalho a Juíza Beatriz de Lima Pereira. O Tribu-nal Superior do Trabalho foi o primeiro Tribunal Supe-rior do país a ter uma ministra no cargo, conquantoseja tal fato freqüentemente esquecido e negligenci-ado, fazendo-se referência, no mais das vezes, ao

Superior Tribunal de Justiça. Todos se esquecem, po-rém, de que a primazia está com a Ministra CnéaMoreira, nomeada no início dos anos 90. Aliás, noâmbito da magistratura do Trabalho não há nenhumaforma de discriminação. A razão é muito simples: ocritério de escolha é exclusivamente objetivo, o queafasta a discriminação. Estamos falando, todavia, deuma situação que se restringe a um setor da vida so-cial – a magistratura do Trabalho – sem levar em contaoutros setores ou mesmo os antecedentes registradosno próprio campo jurídico. Repito: não podemos nosesquecer da longa trajetória que foi preciso percorrerpara se chegar ao ponto em que nos encontramosnesse setor. E essa trajetória se inicia, aliás, com al-gumas passagens muito significativas e muito expres-sivas, demonstrando claramente como a discrimina-ção estava entranhada na nossa sociedade. Permi-tam-me traçar, ainda que rapidamente, algumaslinhas dessa trajetória.

Gostaria de fazer referência, de início, a um tre-cho de voto de um juiz da Suprema Corte norte-ame-ricana. Peço que observem que não estou falando,por mais que possamos divergir da forma como seconduz a política dos Estados Unidos da América, deum país que negligencia ou ignora direitos fundamen-tais do cidadão. Pois bem, em 1873, o juiz Bradley,ao julgar caso envolvendo lei do Estado de Illinois,que proibia a mulher de exercer a advocacia, dissetextualmente o seguinte, e estou seguro de que to-dos vão ficar chocados com o teor do julgado, quereproduzo, para preservar absoluta fidelidade com aspalavras empregadas: “A lei civil, assim como a leida natureza, sempre reconheceu uma larga diferen-ça nas respectivas esferas entre homem e mulher. Osupremo destino e a missão da mulher são os de pre-encher a nobre e benigna missão de mulher e mãe. Asregras da sociedade civil devem se adaptar à geralconstituição das coisas”7. Com tais fundamentos, con-siderou-se que a lei do Estado de Illinóis, que proibia amulher de advogar, era perfeitamente constitucional enão ofendia as garantias conferidas aos cidadãos ame-ricanos.

Passados 80 anos, o assunto voltou à Suprema Cor-te, em 1948. Discutiu-se a validade de lei que proibiao trabalho de mulheres em bares. Questionou-se aconstitucionalidade dessa proibição e, mais uma vez,a Suprema Corte, por seis votos contra três, concluiuque a lei era constitucional, porque bar não era lugarpara que uma mulher exercesse a sua atividade8.

7 Bradwell v. State of Illinois, 83 US 130.8 Goesaert v. Cleary, 335 U.S. 464. Ficaram vencidos os juízes Rutledge, Douglas e Murph. Coube ao juiz Frankfurter redigir a decisão

tomada pela maioria.

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Há mais. Em 1961 – as datas são muito significati-vas para percebermos como a discriminação estavaentranhada na cultura norte-americana – outra vez sereconheceu a legitimidade do tratamento discrimina-tório em face da mulher. Tratava-se de lei do Estadoda Flórida que excluía a participação das mulheres dacomposição dos júris, instituição que, como todos sa-bem, tem papel importantíssimo no processo penal etambém no processo civil norte-americano. Pois bem,a Corte Suprema concluiu que o tratamento diferenci-ado imposto a homens e a mulheres no que toca aoserviço no júri não era inconstitucional9. Gostaria dechamar especial atenção para as datas, porque oitoanos antes do julgamento envolvendo a lei do Estadoda Flórida, ou seja, em 1953, a mesma Suprema Cor-te havia destruído, em grande medida, os pilares jurí-dicos da discriminação racial, com o famoso julgamen-to proferido no caso Brown v. Board of Education, queeliminou a segregação racial nos colégios10. Como sevê, enquanto a segregação racial foi legalmente eli-minada em 1953, ainda em 1961 a discriminação con-tra a mulher se mantinha.

Em outros países, talvez mais próximos da nossacultura e da nossa realidade, o quadro não é comple-tamente diferente. Tenho em mente o que se deu naItália, após a Constituição democrática e social de1947, exemplo especialmente significativo por contada influência cultural exercida por esse país entre nós,sobretudo em São Paulo. A Constituição italiana é ca-tegórica: não pode haver discriminação entre homeme mulher11. Em 1961, porém, a Corte Constitucionalteve de se defrontar com um caso muito interessante.O artigo 559 do Código Penal italiano pune o adulté-rio. Mas apenas o adultério da mulher. O texto diz oseguinte: “a mulher adúltera é punida com reclusão

de até 1 ano”. Não há dúvida quanto ao significadoda norma. A punição é dirigida apenas à mulher, nãoao homem. Discutiu-se, em conseqüência, a consti-tucionalidade da punição unicamente do adultério fe-minino. Em 1961 a Corte Constitucional, na sentençan. 64, chegou à conclusão de que a diferença de tra-tamento refletiria legítima valoração estabelecidapelo legislador, insuscetível de controle pela jurisdi-ção constitucional.12. Rejeitou-se, assim, a alegação deinconstitucionalidade e manteve-se o tratamento dis-criminatório.

Antes de prosseguir, gostaria de fazer um parênte-se. O caso narrado deu-se na Itália e felizmente naItália, porque, se tivesse ocorrido no Brasil, teríamosum problema de graves proporções por conta do trata-mento que o nosso legislador constitucional atribuiu àdeclaração de constitucionalidade ou de inconstitucio-nalidade da lei, especialmente após a criação da açãodeclaratória de constitucionalidade13. Por que digoisso? Digo-o porque, segundo a lei que regulamenta oprocesso de julgamento da constitucionalidade das leisou dos atos normativos, a decisão que afirma a consti-tucionalidade da lei é imutável14. Não é suscetível deação rescisória e nem mesmo de revisão pelo Supre-mo Tribunal Federal. Assim, afirmação da constitucio-nalidade do artigo 559 do Código Penal italiano, setivesse ocorrido no âmbito do ordenamento jurídicobrasileiro, não poderia ser revista. Esse é o resultado aque leva o deficiente sistema de controle de constitu-cionalidade vigente entre nós. Mas, felizmente, noDireito italiano a situação é completamente diversa. Adeclaração de constitucionalidade não vincula a CorteConstitucional15, por uma razão muito simples. A in-terpretação constitucional é necessariamente evoluti-va. A Constituição não é um texto apenas jurídico,

9 Hoyt v. Florida (368 U.S. 57). Assinalou a Corte, em decisão redigida pelo Juiz Harlan: “Woman is still regarded as the center of home andfamily life”, o que permitiria legitimamente dispensa legal de servir em tribunal do júri, “unless she herself determines that such service isconsistent with her own special responsabilities”. Sobre essa decisão, cf. DAVID P. CURRIE, The Constitution in the Supreme Court – TheSecond Century 1888-1986, Chicago: The University of Chicago Press, 1990, p. 385.

1 0 347 U.S. 483.1 1 O art. 3, da Constituição italiana dispõe: “Tutti i cittadini hanno pari dignità sociale e sono eguali davanti alla legge, senza distinzione di sesso,

di razza, di lingua, di religione, di opinioni politiche, di condizioni personali e sociali”.1 2 A sentença tem a seguinte ementa: “Il principio di eguaglianza di cui all’art. 3 della Costituzione, diretto ad impedire che a danno dei cittadini

siano dalle leggi disposte discriminazioni arbitrarie, non può significare che il legislatore sia obbligato a disporre per tutti una identica disciplina,mentre, al contrario, deve essergli consentito di adeguare le norme giuridiche ai vari aspetti della vita sociale, dettando norme diverse per situazionidiverse. Pertanto con l’art. 559 c.p. che punisce soltanto l’adulterio della moglie e non pone condizioni alla punibilità della relazione adulterinadella moglie, non è stata creata a carico di questa una posizione di inferiorità, ma soltanto è stata diversamente disciplinata una situazione che illegislatore ha ritenuta diversa. Spetta al legislatore, non alla Corte Costituzionale, lo stabilire se la norma in questione risponda alla attualevalutazione sociale dei rapporti fra i coniugi e se i meriti oppure no di essere modificata”.

1 3 Art. 102, inciso I, letra “a”, de acordo com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 3.1 4 Nos termos do art. 26, da Lei n. 9.868, “A decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em

ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo, igualmente, ser objeto de açãorescisória”.

1 5 VEZIO CRISAFULLI, Lezioni di diritto constituzioanale, Padova: CEDAM, 1974, II, 2, p. 151. A mesma solução prevalece no direitoportuguês, como mostra JORGE MIRANDA (Manual de Direito Constitucional, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, tomo II, p. 483).

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mas também um texto político. O significado dado ànorma em certa altura poderá não ser o mesmo passa-do algum tempo16.

Do que acabo de assinalar pode-se tirar importan-te lição propiciada pelo Direito italiano. É que a cons-titucionalidade do artigo 559, do Código Penal, vol-tou a ser debatida perante a Corte Constitucional seteanos depois, em 1968. Agora, já em um ambientenovo, em um ambiente diferente, sob a presidênciade um dos maiores administrativistas italianos, AldoSandulli, afirmou a Corte, com sua sentença n. 126,a inconstitucionalidade da norma penal questionada,porque discriminatória a distinção por ela estabeleci-da17. O artigo 559, do Código Penal italiano, deixou,em conseqüência, de viger.

Em síntese, se hoje há setores em que a discrimi-nação contra a mulher não existe, não devemos per-der de vista que no passado era muito diferente. Re-pito que a magistratura do Trabalho nesse particularé um setor privilegiado18. Basta comparar com a ma-gistratura estadual. Quantas são as mulheres que com-põem o Tribunal de Justiça de São Paulo! Poucas, umaou duas, se não estou equivocado. Não mais do quetrês, seguramente. Quadro completamente diferenteencontra-se no Tribunal Regional do Trabalho da 2ªRegião. E não vai muito longe o tempo em que nãopodiam as mulheres nem mesmo se inscrever no con-curso para a magistratura estadual. Não estamos fa-lando de século XIX. Estamos falando já de segundametade do século XX. E a discriminação ainda tinhalugar! Portanto, a evolução que se processou nessecampo, particularmente no Direito do Trabalho, foiextremamente significativa e expressiva. E a tal pon-to significativa e expressiva que hoje a norma geralcontra a discriminação foi inserida, na legislação or-dinária, exatamente no Capítulo da Consolidação quetrata do trabalho da mulher. Refiro-me ao artigo 373-A da CLT, decorrente da Lei n. 9.799, que, emborainserido no capítulo relativo ao trabalho da mulher,enuncia regra geral contrária à discriminação, abran-gendo não apenas a discriminação por motivo de sexo

como, igualmente, por vários outros motivos.Ainda no campo da discriminação, referência es-

pecial deve ser feita àquela discriminação fundadaem motivo de raça ou de cor. Há uma idéia generali-zada de que no Brasil a discriminação racial é muitomenos intensa e muito menos acentuada do que aque se encontra em outros países. Isso se deveria,segundo a conhecida concepção de Giberto Freyre, àcolonização portuguesa, que seria menos segrega-cionista no tratamento dispensado aos escravos, per-mitindo mais facilmente a miscigenação. Afirmou eleque a escravidão portuguesa não seria a escravidãoviolenta que existiu, por exemplo, nos Estados Uni-dos, mas uma escravidão adaptada aos trópicos, fa-zendo com que a discriminação racial fosse muitomenos intensa19, o que gerou o mito da democraciaracial. Eu, de minha parte, penso que esse julgamen-to não é de modo nenhum correto.

Em primeiro lugar, não podemos nos esquecer deque o Brasil foi um dos últimos países do mundo aeliminar a escravidão. São quase 400 anos de escra-vidão. E tão largo período de escravidão não se apa-ga, de nenhuma forma, do dia para noite. Portanto,existe sim, e muito, a discriminação racial no Brasil.Claro que não existe aquela discriminação explícitaque encontramos, por exemplo, nos Estados Unidosda América, em que ainda há segregação clara entrebairros, entre moradores de um mesmo apartamen-to, por exemplo. Vou apresentar um relato que mefoi passado por um norte-americano que hoje vive noBrasil. Conversando com ele sobre a discriminação,ouvi que um tio seu, dono de um posto de gasolinano Estado do Texas – sabidamente um dos mais ra-cistas do país – não admitia que negros abasteces-sem seus veículos. Os que insistiam em fazê-lo eramrepelidos com tiros disparados para o alto. Perguntei-lhe, espantando, se isso ocorria apenas no início doséculo XX, e obtive como resposta o esclarecimentode que tais fatos se davam nos anos 60 e ainda ocor-riam nos anos 70! Em alguma medida ainda se man-têm mesmo hoje. Claro que não de modo tão gritan-

1 6 Nas palavras de Girgio Berti: “l´interpretazione si denota per la continuità e l´adattabilità all´evoluzione della vita sociale e dei rapporti giuridicie non c´è mai una definività assoluta, una forza di giudicato dell´atto interpretativo che non consenta di rivederne i pressupposti, quando questimutino” (Interpretazione costituzionale, Padova: CEDAM, 1990, p. 619).

1 7 ‘A sentença tem a seguinte ementa: “Per l’unità familiare costituisce indubbiamente un pericolo sia l’adulterio del marito sia quello della moglie;ma quando la legge faccia un differente trattamento, questo pericolo assume proporzioni più gravi, sia per i riflessi sul comportamento di entrambii coniugi, sia per le conseguenze psicologiche sui soggetti. Pertanto, i commi primo e secondo dell’art. 559 del codice penale sono viziati di illegittimitàcostituzionale in riferimento agli artt. 3 e 29 della Costituzione, in quanto sanciscono una deroga al principio di eguaglianza dei coniugi nonessenziale per la garanzia dell’unita’ familiare, ma risolventesi, piuttosto, per il marito, in un privilegio; e questo, come tutti i privilegi, viola ilprincipio di parità”.

1 8 Pesquisa realizada entre as 500 maiores empresas do Brasil identificou participação gradativamente desigual das mulheres nas posições demaior hierarquia. Enquanto a participação geral das mulheres nos postos de trabalho é de 35%, nos cargos de chefia cai para 28%,reduzindo-se a 18% nos cargos de gerência e a 9 % nos cargos de direção (Folha de S.Paulo, 30 de novembro de 2003, caderno B-2).

1 9 Casa-Grande & Senzala, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1963, passim.

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te. Mas não há dúvida de que a discriminação nosEstados Unidos é muito mais ostensiva do que emoutros países. A diferença entre nós está em que adiscriminação é dissimulada, oculta, disfarçada. Issoa faz ainda pior, porque é mais difícil de identificar,mais difícil de combater e mais difícil de transformare de eliminar. É por isso que temos de levar sempreem conta esse aspecto e, especialmente, deixar delado a idéia de que o racismo no Brasil é algo supera-do. Não é. É algo que até hoje ainda está presenteem nossa cultura e em nossa sociedade20.

De toda forma, além da discriminação por motivode sexo ou da discriminação racial, existem muitasoutras formas de discriminação e várias delas são men-cionadas em diferentes dispositivos da Constituição,da Consolidação das Leis do Trabalho ou de outrasleis esparsas. Há, por exemplo, no artigo 7o, incisoXXX, da Constituição, a referência à discriminaçãopor motivo de idade e por motivo de estado civil, notocante a salário, exercício de função e critério deadmissão.

A discriminação por motivo de idade adquiriu al-guma atualidade por conta de recente julgamento doTribunal Superior do Trabalho, proferido no âmbitoda quinta Turma, de que foi relator o Juiz ConvocadoAndré Luis Moraes de Oliveira, do Tribunal do MatoGrosso do Sul. O caso envolvia empresa que dispen-sava sistematicamente trabalhadores com mais de 60anos. O Tribunal Superior do Trabalho reconheceu quea hipótese era de discriminação e acolheu o pedidode reintegração do trabalhador no emprego21.

Sem embargo das hipóteses mencionadas, o cer-to é que esse artigo 7o, inciso XXX, da Constituição,traça apenas parâmetros exemplificativos. A Consti-tuição, pode-se claramente inferir isso do seu siste-ma, proíbe genericamente qualquer forma de discri-minação. Outras formas de discriminação acham-semencionadas em dispositivos diversos, mas que temtoda a pertinência no campo do Direito do Trabalho.Considere-se, por exemplo, que o artigo 7o, incisoXXX, não se refere à discriminação por motivo decrença religiosa. Mas o artigo 5o, inciso VIII, da mes-ma Constituição, faz alusão à proibição de discrimi-nação por esse motivo. Idêntica proibição se esten-de, sem dúvida nenhuma, ao campo do Direito doTrabalho. O mesmo se pode dizer a propósito da si-tuação familiar, que é mencionada no artigo 373 daCLT. A filiação, como causa de discriminação, é com-pletamente repudiada. Não se pode, porque o tra-balhador é filho de pessoa que praticou determina-do ato, que tem determinada crença ou que perten-ceu a certo partido político, discriminá-lo. Outro tan-to se deve afirmar a propósito da discriminação porconvicção filosófica ou política ou, cumpre dizê-lo,de outras hipóteses de discriminação, raramentemencionadas, mas igualmente relevantes, como asfundadas em origem geográfica da pessoa. Esta úl-tima é uma forma de discriminação de que o legisla-dor não se ocupa, mas que é largamente praticadaentre nós. Os que são provenientes de determinadosEstados da Federação costumam ter tratamentomenos favorecido ou menos acolhedor. Não estou

2 0 De rigor a referência, no particular, ao recente texto de Edward Telles, Racismo à Brasileira – Uma nova perspectiva sociológica, Rio deJaneiro, Relume, 2003, passim. Entre as numerosas informações mencionadas na obra é especialmente eloqüente a observação de que aposição do Brasil no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), critério utilizado para medição das condições de vidas do povo,correspondente, no ano de 1999, ao 69º lugar entre 174 países, passa ao 43º lugar quando considerada apenas a população branca e ao108º lugar quando excluída essa população (Racismo à Brasileira, cit., p. 216). Daí a sua conclusão: “A desigualdade social é maior que nosEstados Unidos, pois o Brasil tem uma estrutura sócio-econômica mais desigual e os negros brasileiros têm menos chance de chegar no seu ponto maisalto”(Racismo à Brasileira, cit., p. 216).

2 1 O acórdão tem a seguinte ementa: “Recurso de revista. Dispensa discriminatória por idade. Nulidade. Abuso de direito. Reintegração. Se daspremissas fáticas emergiu que a empresa se utiliza da prática de dispensar seus funcionários quando estes completam 60 anos, imperioso se impõe aojulgador coibir tais procedimentos irregulares, efetivados sob o manto do “poder potestativo”, para que as dispensas não se efetivem sob a pechadiscriminatória da maior idade. Embora o caso vertente não tivesse à época de sua ocorrência previsão legal especial (a Lei 9.029 que trata daproibição de práticas discriminatórias foi editada em 13.04.1995 e a dispensa do reclamante ocorreu anteriormente), cabe ao prolator da decisãoo dever de valer-se dos princípios gerais do direito, da analogia e dos costumes, para solucionar os conflitos a ele impostos, sendo esse, aliás, oentendimento consagrado pelo art. 8º, da CLT, que admite que a aplicação da norma jurídica em cada caso concreto, não desenvolve apenas odispositivo imediatamente específico para o caso, ou o vazio de que se ressente, mas sim, todo o universo de normas vigentes, os precedentes, a evoluçãoda sociedade, os princípios, ainda que não haja omissão na norma. Se a realidade do ordenamento jurídico trabalhista contempla o direitopotestativo da resilição unilateral do contrato de trabalho, é verdade que o exercício deste direito guarda parâmetros éticos e sociais como forma depreservar a dignidade do cidadão trabalhador. A despedida levada a efeito pela reclamada, embora cunhada no seu direito potestativo de resiliçãocontratual, estava prenhe de mácula pelo seu conteúdo discriminatório, sendo nula de pleno direito, em face da expressa disposição do art. 9º da CLT,não gerando qualquer efeito, tendo como conseqüência jurídica a continuidade da relação de emprego, que se efetiva através da reintegração.Efetivamente, é a aplicação da regra do § 1º do art. 5º da Constituição Federal, que impõe a aplicação imediata das normas definidoras dos direitose garantias fundamentais, pois, como apontando pelo v. acórdão, a prática da dispensa discriminatória por idade confrontou o princípio daigualdade contemplado no “caput” do art. 5º da Constituição Federal. Inocorrência de vulneração ao princípio da legalidade e não configuradadivergência jurisprudencial. Recurso de Revista não conhecido relativamente ao tema” (TST – 5ª T., RR n. 462.888, Rel. Juiz Convocado AndréLuís Moraes de Oliveira, julg. em 10.09.03 in DJU de 26.09.03).

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me referindo apenas a rivalidades regionais. Issoexiste no mundo inteiro. Sempre teremos que convi-ver com a rivalidade entre paulistas e cariocas. Asituação que realmente tem relevância é, no entan-to, outra e diferente.

Há mais formas de discriminação ainda a mencio-nar, como a discriminação fundada em nacionalidadeou a discriminação fundada em opção sexual, as quaistampouco se podem admitir, mas que muitas vezessão praticadas, sempre de modo camuflado, de modosub-reptício e de modo indireto.

Na presente altura, depois de tudo o que se disse,há uma observação que é preciso fazer. A proibiçãode discriminação, que, como procurei mostrar, é mui-to ampla, é muito extensa, não significa imposiçãode igualdade absoluta entre as pessoas. Seria evi-dentemente um erro compreender a proibição de dis-criminação desse modo. O que se proíbe, o que to-dos esses dispositivos legais proíbem, o que a evolu-ção da sociedade proscreve é a discriminação desar-razoada ou descabida. Em resumo, diante da cono-tação que a palavra adquiriu, pode-se afirmar queproibida é, tão somente, a discriminação e não amera diferenciação, que é algo diverso e que se podeadmitir.

Aqui eu gostaria, até para não correr o risco de sercriticado por fazer referência tão seguidamente ape-nas ao direito norte-americano e aos precedentes daCorte Suprema americana, de atravessar o OceanoAtlântico e passar a Portugal. Faço-o tendo em contaespecialmente que esse país acaba de editar um novoCódigo do Trabalho. A aprovação se deu no dia 28de julho deste ano, para que passe a vigorar a partirde 1o de dezembro de 2003. Trata-se de um textomuito rico, contendo quase 700 artigos, com disposi-ções bastante inovadoras, que mostram o avanço daciência jurídica portuguesa, especialmente – como láse usa dizer – no campo laboral. No novo Código doTrabalho de Portugal há todo um capítulo dedicadoao problema da discriminação. E o legislador portu-guês foi extremamente feliz ao tratar do assunto,porque foi muito mais abrangente do que a limitadaregra do artigo 373 A da CLT. Diz o artigo 23 do Có-digo do Trabalho de Portugal, que trata da proibiçãoda discriminação: “o empregador não pode praticarqualquer discriminação: direta ou indireta baseadanomeadamente – e aí fica evidente, digo eu, o cará-ter exemplificativo da relação que se segue – na as-cendência, idade, sexo, orientação sexual, estado ci-vil, situação familiar, patrimônio genético, capacida-de de trabalho reduzida, deficiência ou doença crôni-ca, nacionalidade, origem étnica, religião, convicçõespolíticas ou ideológicas e filiação sindical.” Embora orol seja exemplificativo, o legislador procurou dar amáxima abrangência ao enunciado, mostrando que

qualquer forma de discriminação desarrazoada estáafastada do ponto de vista legal.

Mas – eis a importância da referência a esse dis-positivo –discriminação ou proibição de discrimina-ção não é sinônimo de proibição de diferenciação.Certas diferenças precisam ser estabelecidas. E olegislador português tinha isso muito claro em men-te quando, logo na alínea n. 2, do mesmo art. 23,dispôs: “não constitui discriminação o comportamen-to baseado num dos fatores indicados no númeroanterior – o que acabei de ler – sempre que, emvirtude da natureza das atividades profissionais emcausa ou do contexto de sua execução, esse fator –o fator de diferenciação – constitua um requisito jus-tificável e determinante para o exercício da ativida-de profissional, devendo o objetivo ser legítimo e orequisito proporcional.” Retoma-se a idéia que apre-sentei acima. O que se proscreve é simplesmente adiscriminação abusiva, que não tem causa justa, ouseja, a diferenciação arbitrária. Não toda e qualquerdiferenciação.

É claro que o problema, assim colocado, não setorna mais simples. A dificuldade toda está exata-mente em determinar aquilo que é justificável ounão no campo da diferenciação. Para a SupremaCorte americana, em 1873, o sexo era, no exercí-cio da advocacia, um elemento de diferenciaçãojustificável, razoável, aceitável, como se infere doexemplo que dei anteriormente. O passar do tem-po deixou patente o erro da conclusão. Aliás, sabe-mos que no direito as linhas nem sempre são níti-das, nem sempre cortam com precisão. Há zonascinzentas, onde as soluções se mostram mais difí-ceis. Basta pensar no caso, que não é hipotético –pelo contrário, já foi colocado perante os tribunaisitalianos -, da discriminação por motivo de crençareligiosa. Se levantada a dúvida sobre a legitimida-de de se condicionar o acesso ou ao emprego ou apermanência nele ao fato de o trabalhador profes-sar determinada religião o impulso inicial é clara-mente no sentido de repelir-se o critério, conside-rando-o inaceitável. Mas, aproximemo-nos dessazona cinzenta a que me referi, dessa zona onde asdistinções se tornam mais tênues. Caso o empre-gador seja, por exemplo – e estou sempre tirandoa hipótese do que se passou no direito italiano –,uma escola confessional, vinculando todo o seuensino a determinada religião, mantém-se o cará-ter inaceitável do critério? Continuará sendo arbi-trária a exclusão da admissão daqueles trabalhado-res que não professam essa mesma religião? A juris-prudência italiana deu a essa questão resposta ne-gativa. Concluiu que o critério é legítimo, entendendoque o elemento da religião, em escola confessional,pode validamente constituir critério determinante

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para a admissão do trabalhador22. Eu, de minha par-te, tenho sérias dúvidas para aceitar, ainda mesmonessa situação extrema, o critério de distinção. Odecisivo, quer me parecer, é o conhecimento que setem para o exercício do trabalho, não importandonecessariamente a adesão a uma ou a outra reli-gião23. Como disse, porém, aproximamo-nos cadavez mais de uma zona cinzenta, onde se torna maisdifícil definir a arbitrariedade ou não do critério ado-tado. E, como procurei mostrar, esse é o núcleo detodo o problema da discriminação.

Deixemos agora de lado a distinção entre discrimi-nação e mera diferenciação. A discriminação, comovisto, está claramente proibida e não será tolerada.Isso já é assim no nosso sistema jurídico. Há, todavia,um ponto a considerar. A realidade é condizente comessa previsão normativa? A discriminação está proibi-da na lei, é certo. Desapareceu ela, porém, na práti-ca? Aqui a distância entre o dever ser – a norma legal– e o ser – aquilo que se passa no mundo dos fatos – éenorme. É colossal. Por isso mesmo é que fica eviden-te como não basta proscrever, por meio da lei, a discri-minação. É preciso eliminá-la da realidade. Eis o gran-de problema dos dias de hoje. A ilegalidade da discri-minação já não está mais em causa. Não é aceita peloordenamento jurídico. Não é tolerada. O problema éque ela continua a ocorrer na prática. Como eliminá-la? Como fazer com que essa igualdade que está nalei se transforme cada vez mais em realidade? Eis aquestão hoje mais importante. Nesse campo há trêsaspectos fundamentais.

O primeiro envolve as chamadas ações afirmativas,caracterizadas pelo tratamento desigual imposto pelalei para compensar a desigualdade existente na reali-dade. O tema da ação afirmativa está atualmente embastante evidência – já esteve mais há 2 ou 3 meses,mas continua em evidência – por conta de alteração

legislativa ocorrida no Estado do Rio de Janeiro, con-sistente na criação de cotas para ingresso, na Universi-dade, de estudantes vinculados a grupos minoritáriosou desfavorecidos. Houve enorme polêmica, abran-gendo até mesmo discussão em torno da constitucio-nalidade dessa reserva de cotas. O Supremo TribunalFederal ainda não se pronunciou sobre o assunto, masterá de fazê-lo logo mais. O que se alega, em oposi-ção à ação afirmativa, é que essa política no fundoviola a regra de tratamento igual de todos perante alei. Afinal, se não pode haver discriminação, comoprivilegiar certa minoria ou certo grupo – nem sempreminoria – com cotas reservadas, fazendo, por exem-plo, com que aqueles que obtenham uma nota inferiorpossam ser admitidos na Universidade em detrimentode outros, que não pertencem ao grupo e obtiveramnotas superiores? Prontamente vem à tona e vem aodebate um julgamento da Suprema Corte americanaque envolveu, mais uma vez, o problema da discrimi-nação racial. A Universidade da Califórnia estabele-ceu cotas reservadas para negros, hispânicos e outrosgrupos desfavorecidos na sociedade norte-americana.Questionou-se a legitimidade da providência e a Su-prema Corte, em 1978, afirmou que as cotas eraminconstitucionais24. Invoca-se esse precedente para jus-tificar a mesma solução no direito brasileiro. A formacomo se conduz o debate é, a meu juízo, prova decomo a discriminação racial encontra-se ainda muitoentranhada no Brasil. Basta considerar que, quandooutras cotas foram criadas, não houve a mesma resis-tência. Menciono, como exemplo, a cota para defici-entes da Lei n. 8213. Nunca vi discussão em torno dainconstitucionalidade dessa garantia ou desse trata-mento privilegiado. No momento em que se pretendeinstituir a figura das cotas para os negros a inconstitu-cionalidade já é logo levantada. Mais grave ainda éque se menciona o precedente da Suprema Corte

2 2 Trata-se da Sentença n. 195, da Corte Constitucional Italiana, proferida em 1972, na qual se afirma: “La libertà della scuola intesa comeattuazione del principio del pluralismo scolastico ai sensi dell’art. 33 Cost., si estende indubbiamente alle università, per cui è ammissibile lacreazione di università libere, che possono essere confessionali o comunque ideologicamente caratterizzate, e ne deriva necessariamente che la libertàdi insegnamento da parte di singoli docenti che sono liberi di aderire all’indirizzo della scuola come di recedere dal relativo rapporto, incontra nelparticolare ordinamento di siffatte università i limiti necessari a realizzarne le finalità. Ciò vale in particolare per l’Università cattolica la cui pretesanatura di persona giuridica pubblica non ne attenuerebbe comunque l’originaria destinazione finalistica e la caratterizzazione confessionale.Negando ad una libera università ideologicamente qualificata il potere di scegliere i suoi docenti in base ad una valutazione della loro personalitàe negandosi alla stessa il potere di recedere dal rapporto ove gli indirizzi religiosi o ideologici del docente siano divenuti contrastanti con quelli checaratterizzano la scuola, si mortificherebbe e rinnegherebbe la libertà di questa, inconcepibile senza la titolarità di quei poteri, e pertanto l’art. 38del Concordato non contrasta con l’art. 33 Cost., che subordina al nulla osta della S. Sede la nomina dei professori dell’Università cattolica del SacroCuore. La legittima esistenza di libere università caratterizzate dalla finalità di diffondere un credo religioso è uno strumento di libertà, e la libertàreligiosa dei cattolici sarebbe gravemente compromessa ove l’Università cattolica non potesse recedere dal rapporto con un docente che più non necondivida le fondamentali e caratterizzanti finalità. È pertanto infondata la questione di legittimità costituzionale dell’art. 38 del Concordato chesubordina la nomina e la permanenza dei professori dell’Università cattolica al nulla osta della S. Sede, sollevata in relazione all’art. 19 Cost”.

2 3 A decisão da Corte Constitucional italiana, referida na nota anterior, não levou em conta que a liberdade individual do empregador nãose pode sobrepor ao interesse público de que não haja discriminação por motivo religioso.

2 4 Regents of Univ. of Cal. v. Bakke (438 U. S. 265).

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americana de 1978 sem considerar, contudo, que re-centemente, em junho de 2003, a mesma Corte reviua sua posição, reconsiderando, em parte, o julgamen-to anterior25. É claro que não se afirmou, com todas asletras, que o precedente estava superado. Como o pre-cedente tem enorme importância no sistema jurídiconorte-americano26, não é possível colocá-lo de ladosem abalar as próprias estruturas do sistema legal. Daíporque o que se costuma dizer é apenas que o prece-dente está sendo reinterpretado e readaptado. Sejacomo for, afirmou-se, agora em relação ao sistema decotas instituído pela Universidade de Michigan, queele era legítimo, desde que o critério racial não fosseo único e convivesse com outros critérios. O resultado,de todo modo, é que, com o critério adotado, ingres-sarão na Universidade integrantes de grupos desfavo-recidos, mesmo que tenham obtido nota inferior à exi-gida de outros alunos. Como se vê, a Suprema Cortevalidou, em grande medida, a ação afirmativa. Res-salto, a propósito, ser particularmente expressivo o fatode a decisão haver sido tomada em 2003. Desde 1973não se viam julgamentos progressistas na SupremaCorte. Os principais julgamentos que se deram depoisdo célebre caso Roe v. Wade, em 197327, foram muitomais conservadores e restritivos de direitos do queavançados e progressistas. Paradigmático o que sepassa hoje com os presos que estão em Guantánamo,sem nenhum direito ao devido processo legal. A Su-prema Corte silencia, como se isso não violasse asgarantias fundamentais estabelecidas na Constituiçãonorte-americana. É por isso que considero o julgamen-to sobre cotas, de 2003, tomado em um tribunal muitomais conservador, como é hoje a Suprema Corte ame-ricana, extremamente expressivo. Não vejo, pois,nenhuma razão para que o sistema de cotas seja con-siderado inconstitucional no direito brasileiro. Aliás,gostaria de invocar, no particular, um dos dispositivosmais elegantes da Constituição italiana de 1947. Oartigo terceiro, a norma que estabelece a regra geralde igualdade, dispõe: “Todos os cidadãos tem igualdignidade social e são iguais perante a lei, sem distin-ção de sexo, raça, língua, religião, opinião política,condição pessoal ou social”. Esse é o enunciado geralque, tal como na Constituição italiana, aparece emmuitas outras constituições. Mas o preceito verdadei-ramente belo e importante é o parágrafo único, que

estabelece o seguinte: “É dever da República removeros obstáculos de ordem econômica e social que, limi-tando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos,impedem o pleno desenvolvimento da pessoa huma-na e a efetiva participação de todos os trabalhadoresna organização política, econômica e social”. Daí serlícito afirmar que as ações afirmativas estão plena-mente amparadas na idéia de igualdade substancial,até porque só se remove a desigualdade com uma de-sigualdade compensatória, com o tratamento favore-cido, que possa reequilibrar a desigualdade de fato.

A conclusão enunciada também já foi feita – nãode modo tão explícito, evidentemente – pela própriaSuprema Corte norte-americana, quando se defrontoucom o problema da aposentadoria com prazos dife-renciados para homens e mulheres, cuja legitimidadese questionou, em face do princípio constitucional daigualdade. Por que o tratamento discriminatório? ASuprema Corte, em julgamento que não teve tantarepercussão como outros, disse o seguinte: “é precisocompensar um tratamento historicamente desigualcom uma diferenciação legal. Do contrário a desigual-dade será mantida e se perpetuará”28. A afirmação ad-quire especial significado no campo das cotas nas Uni-versidades. É preciso ter em conta que a discriminaçãoexistente para o ingresso nas Universidades decorre jáde uma deficiência no ensino. Os grupos desfavoreci-dos têm um ensino de menor qualidade. Com isso, nãoingressam em Universidades de melhor qualidade. Emconseqüência, exercerão atividades ou funções commenor remuneração, fazendo com que a desigualda-de se perpetue e na verdade se multiplique. Portanto,as ações afirmativas são mesmo indispensáveis se pre-tendemos eliminar de fato a discriminação.

Outra providência impostergável para a eliminaçãoda discriminação está relacionada com o direito pro-cessual. Na verdade, já temos as normas legais subs-tanciais que são necessárias para condenar a discrimi-nação. Não precisamos de outras. No entanto, põe-sea questão: quantos são os processos judiciais em quese discute a discriminação? Poucos, seguramente. Es-taria aí a prova de que não há discriminação entrenós? De modo nenhum. Está aí a prova de que é mui-to difícil ou mesmo impossível discutir judicialmente oproblema da discriminação. Por quê? Ora, por ummotivo muito simples, que já foi aqui aventado, ainda

2 5 Grutter v. Bollinger (000 U.S. 02-241).2 6 Para algumas considerações sobre o tema, cf. JOHN CHIPMAN GRAY, The nature and sources of the law, Gloucester: Peter Smith,

1972, p. 198 e segs. Consulte-se, igualmente, JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI, Perspectiva histórica do precedente judicial comofonte do direito, São Paulo, s. e. p., tese, 2003, p. 147 e segs.

2 7 410 U.S. 113.2 8 Califano v. Webster (430 U.S. 313). De idêntico modo, na dissenting opinion apresentada no já citado caso Regents of Univ. of Cal. v.

Bakke (438 U. S. 265), o juiz Harry Blackmun assentou: “in order to treat some people equally we must first treat them differently”.

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que rapidamente. A discriminação nunca se dá demodo ostensivo, declarado, manifesto. Ela é sempredissimulada, disfarçada. Isso se torna ainda mais deli-cado no campo do Direito do Trabalho, em que os atosmuitas vezes se fundam em um direito potestativo. Adispensa, por exemplo, não precisa ser motivada. Nãoestá o empregador obrigado a declinar o motivo paraa rescisão do contrato de trabalho. Daí que, se preten-de dispensar por motivo discriminatório, como age?Simplesmente silencia. Não indica o motivo. O mesmovale para a admissão do trabalhador. Ninguém dirá quenão admite o trabalhador porque quer discriminá-lo oupor conta de sua raça ou por um fator discriminatóriode outra natureza. O máximo que se faz – e que já éuma grande ousadia – é a referência sub-reptícia nosanúncios para ofertas de vagas, que todos conhecem, àfamosa exigência de boa aparência. Essa divulgação játem sido combatida. Mas o problema daqueles quediscriminam se resolve facilmente. Elimina-se a alusãoa boa aparência, recebem-se todos os candidatos àvaga e admitem-se apenas aqueles que satisfazem orequisito abusivamente imposto. A final, a discrimina-ção continua a ser praticada. Pois bem, como issopode ser resolvido? Só vejo uma forma, que envolve osegundo aspecto do combate à discriminação.

Mais uma vez devemos cumprimentar o legisladorportuguês. No mesmo artigo 23, do Código do Traba-lho, já mencionado, há uma terceira alínea, em quese lê o seguinte: “cabe a quem alegar discriminaçãofundamentá-la, indicando o trabalhador ou trabalha-dores em relação aos quais se consideram discrimina-dos.” Em conseqüência de tal preceito, aquele que seconsidera discriminado por conta de sua raça, religiãoou convicção ou outra circunstância, deve apenasapontar outros trabalhadores que tiveram um trata-mento diferenciado. Aí termina o seu encargo. Prosse-gue o mesmo dispositivo estabelecendo que incumbe“ao empregador provar que as diferenças de condi-ções de trabalho não assentam em nenhum dos fato-res indicados no n.1”. Essa regra mostra que, se que-remos realmente tratar de casos de discriminação noJudiciário, é impostergável que se inverta o ônus daprova. Quem estabelece a diferenciação é que estáobrigado a demonstrar a razoabilidade do critério dedistinção. Deverá demonstrar que isso se justifica porconta da natureza da atividade. Tomemos um exem-plo. Não admite a empresa – vamos imaginar – pes-soas com mais de 60 anos de idade, para utilizar exa-tamente o caso recentemente julgado pelo TribunalSuperior do Trabalho, a que fiz menção anteriormen-

te. Ora, se se trata de contratação para atividade queexija alta capacidade física, o critério distintivo nãoserá arbitrário. É legítimo. Mas – e esse é o pontoimportante – será ainda assim sempre ônus de quemdiscrimina ou de quem diferencia demonstrar a razoa-bilidade da diferenciação. A inversão do ônus da pro-va é, portanto, um elemento essencial para o comba-te à discriminação.

Finalmente – prometo que já estou encerrando,diante do adiantado da hora – há um último aspectoque devemos considerar. As práticas discriminatórias,que continuam existindo entre nós, nunca serão com-batidas apenas com ações afirmativas e com proces-sos individuais em que haja a reparação da lesão. Épreciso pensar cada vez mais – isso não vale apenaspara discriminação, mas vale para todos os atos ilícitosno campo do Direito do Trabalho e mesmo em outrosdomínios – na possibilidade de imposição de sançõeseconômicas para desestimular as práticas contrárias aodireito. Não tenho em mente apenas o campo em queisso se dá com alguma largueza, ou seja, o campo dodano moral, em que há indenização muitas vezes de-ferida com fundamento punitivo e não apenas repara-tório e compensatório29. Esse é um assunto que inclu-sive foi debatido no último Congresso dos Magistra-dos, que teve lugar no Guarujá. A reflexão feita apósminha exposição pelo Dr. Lúcio Munhoz permaneceuem meu espírito e a venho considerando desde então.Tenho em conta, porém, aplicação mais ampla de san-ções pecuniárias, algo que para o juiz do trabalho é deenorme importância. Pensem na situação em que ojuiz condena uma vez a empresa por certa prática ile-gal. Condena-a novamente, duas, três, quatro, trinta,cinqüenta, cem, trezentas, quinhentas vezes, e a em-presa continua sempre descumprindo a lei. Por que ofaz? Porque algumas vezes o descumprimento da lei éeconomicamente vantajoso. Deixa o empregador depagar a hora extra efetivamente trabalhada uma vezque existe a possibilidade de prescrever o direito. Senão houver a prescrição, fica a possibilidade de o tra-balhador não ir a juízo, receoso de sofrer uma formade discriminação – sua não contratação por outrasempresas, em decorrência do ajuizamento do proces-so – tema de que tanto falamos aqui. Se o trabalhadorfor a juízo, superadas as duas dificuldades menciona-das, pode ser que não consiga provar o trabalho exce-dente. Estará o empregador inadimplente, então, ain-da em vantagem. Provadas as horas extras, pode-seainda fazer um acordo por 30% ou 40% do créditototal, após algum tempo, novamente lucrando. Se

2 9 O leading case em matéria de punitive damages no direito norte-americano é o julgamento de 1996 proferido pela Suprema Corte dosEstados Unidos em BMW of North America, Inc. v. Gore (517 U. S. 559).

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nada disso acontecer, após 5, 6, 7 anos, pagará oempregador exatamente as mesmas horas extras, quedeveria ter quitado no passado, com encargos poucossignificativos. Ora, em tal cenário, o descumprimentoda lei é estimulado economicamente. Daí termos depensar na possibilidade de indenização que não sejaapenas reparatória, mas que seja também punitiva,para desestimular a conduta indesejável, inclusive aconduta discriminatória. Do contrário, continuarão to-dos julgando inúmeros processos repetitivos, em quepráticas ilegais são constatadas.

Já é mais do que altura de encerrar. Desejo apenasretomar observação que fiz no início, em torno do pro-blema da discriminação. A democracia, sem dúvidanenhuma, é um passo que se dá no campo da elimi-nação da discriminação, porque todos são iguais noplano da participação política. Mas, há o reverso damedalha, que nem sempre é considerado. As socieda-des divididas em castas, em grupos, em que há discri-minação, são menos propensas a soluções democráti-cas e são mais inclinadas a soluções autoritárias. Daíporque, se a democracia contribui para uma maior

igualdade, a maior igualdade também fortalece enor-memente a democracia. Por isso, no fundo, o comba-te à discriminação não é uma questão limitada. Équestão muito mais ampla, que permite recuperar eatualizar os ideais que, no já distante ano de em 1789,levaram à Revolução Francesa. É preciso pensar naliberdade não mais como aquela mera liberdade deexercer determinada atividade ou como mera liberda-de econômica, como se vê hoje, considerando-se ape-nas o livre mercado. A liberdade é muito mais do queisso. É a liberdade que se funda na efetiva possibilidadede exercício de direitos. A igualdade, o segundo postu-lado da Revolução Francesa, é a igualdade de oportuni-dades e de chances. Diferenças sempre haverá na so-ciedade. O que não pode haver é uma desigualdade deoportunidades. As diferenças devem resultar da diversi-dade de aptidão de cada um e não da diversidade defortuna, de nascimento ou de outros aspectos aciden-tais. Com tudo isso talvez consigamos atingir o tercei-ro postulado da Revolução Francesa, o mais importan-te de todos, que é aquele que está mais ausente danossa sociedade nos dias de hoje: a fraternidade.

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MINISTRO RONALDO JOSÉ LOPES LEAL*

Execução trabalhista: eficácia1

Vou falar sobre execução, mas não quero falar so-bre execução imediatamente. Em primeiro lugar, que-ro dar uma notícia: eu já deveria estar aqui anteon-tem, mas fiquei em Brasília para que pudesse ser rela-tor de um Incidente de Uniformização Jurisprudencial(IUJ) a respeito de um Enunciado do TST que a todosincomodou durante muito tempo: o Enunciado 310.

Esse Enunciado, que restringe a sucessão proces-sual, afirma que o artigo 8o. Inciso III da Constituiçãonão configura substituição processual. Há 30 anos,mais ou menos, comecei a escrever sobre substituiçãoprocessual. Tenho, sobre o tema, vários artigos de dou-trina. Sou um obcecado por determinados temas e memantive dentro dessa linha de obsessão durante esses30 anos. A última vez que escrevi alguma coisa a res-peito foi para um evento recente, no Rio Grande doSul. A Fiergs (Federação das Indústrias do Estado doRio Grande do Sul) me convidou para fazer uma pales-tra e estava em pauta precisamente o Enunciado 310.Aconteceu que fui, de certo modo, constrangido peloapresentador do evento a me pronunciar pela manu-tenção desse Enunciado. Os representantes das indús-trias do Rio Grande do Sul não queriam que se mexes-se no Enunciado. O apresentador fez a defesa doEnunciado 310, antes de me dar a palavra, sabendodo que eu iria falar sobre o tal verbete. Comecei mi-nha palestra dizendo que o que eu ia dizer sobre oEnunciado 310 colidiria frontalmente com aquilo queo apresentador estava pregando a respeito dessetema. Considerei aquela manifestação no mínimo des-cortês com o palestrante. Achei, portanto, que aqueleconstrangimento era um desrespeito à livre enuncia-ção das idéias. Ainda assim, expus tudo que pensavaa respeito do Enunciado 310.

Pois bem, ontem, depois de 30 anos de tanto escre-ver, estava em minhas mãos acabar com o Enunciado

310. A penúltima vez que tratei do tema foi num livrode homenagem a Valentim Carrion, chamado “OsNovos Paradigmas do Direito do Trabalho”, no qualescrevi um capítulo sobre direitos individuais homogê-neos, o Enunciado 310 e o art.8o, inciso III da Constitui-ção, um tema recorrente para mim e que sempre meseduziu. E ontem, finalmente, o Enunciado 310 foicancelado. Graças a Deus, ele já não constrange maisninguém. E o curioso é que quando dei essa notícia aalgumas pessoas, elas se sentiram inseguras. Alguémveio me dizer: – “E agora? Que fazemos?”. Na verda-de, o Enunciado 310 foi uma espécie de legislação.Não foi a resultante de uma jurisprudência reiteradado Tribunal Superior do Trabalho. Ele incomodava oTribunal Superior do Trabalho porque se discutia mui-to. Primeiro, se o artigo 8º, Inciso III trata ou não desubstituição processual. Segundo, se se precisava derol ou não, enfim, uma série de questões.

Dito isso, quero dizer algumas palavras. Temos ou-vido algumas colocações sobre o TST que tratam deum Tribunal que não existe mais. O antigo TST já mor-reu. E morreu nas nossas mãos. Tanto que, há um mês,mais ou menos, nós nos reunimos – e isso é uma coisaabsolutamente inédita na história do Tribunal – paraavaliar o que estávamos fazendo no nosso dia-a-dia.Levantamos a cabeça para olhar aquilo que estáva-mos aplicando no quotidiano. Dessa maneira, pude-mos perceber um conjunto de mudanças. Eu presidi aComissão que tratou dos anteprojetos que queríamosenviar ao Congresso, alterando pontos de estrangula-mento do processo do trabalho. Em segundo lugar,revimos todos os Enunciados, sem exceção. Para al-guns, polêmicos, ficaram os golpes mais duros. Foi ocaso do Enunciado 310, em que foi preciso dar umgolpe duríssimo e acabar de vez com ele.

Também fizemos uma reformulação total e absolu-

* Ronaldo José Lopes Leal é Ministro Togado do Tribunal Superior do Trabalho e Corregedor-Geral da Justiça do Trabalho desde abril de 2002.1 Este texto foi elaborado com base em palestra proferida no XIX Encontro Anual dos Magistrados do Trabalho da 2a. Região, em Campos

do Jordão, em 27 de setembro de 2003. Conservou-se o estilo original, marcado pela linguagem oral.

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ta daquilo que até há pouco tempo constituía a súmu-la da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho.Fizemos, então, uma pequena revolução dentro da-quele Tribunal. Por que precisamos fazer isso? Porqueo Tribunal Superior do Trabalho não é um Tribunal dejustiça às partes. O Tribunal Superior do Trabalho é umtribunal de uniformização da jurisprudência, da inter-pretação da lei trabalhista brasileira e da lei trabalhis-ta constitucional. É claro que o Supremo está acimade nós e já nos desautorizou não sei quantas vezes.Mas, então, como é um Tribunal de uniformização ecomo encontramos prontos aqueles Enunciados, nósos aplicamos dizendo: “ressalvado o meu ponto de vis-ta”. Fica o Enunciado da Casa, ressalvado o ponto devista de cada um.

Eu mesmo fiquei irritadíssimo em determinadas cir-cunstâncias. Por exemplo: as viúvas da Petrobrás. Logoque cheguei no Tribunal dizia-se: a prescrição para asviúvas de trabalhador falecido da Petrobrás reivindica-rem direitos que estejam previstos estatutariamente éde dois anos. Ocorre que as viúvas não têm obrigaçãoalguma de conhecer regimentos ou estatutos de Pe-trobrás. Viúva é viúva! E se presumia a ciência dasviúvas, porque a prescrição só pode correr a partir domomento em que a pessoa tem conhecimento do di-reito para exercê-lo e não o exerce. Pois bem, semque as viúvas da Petrobrás soubessem de nada, consu-mava-se contra elas a prescrição em dois anos. E eume insurgia e tentava mudar. Eu me lembro que oMinistro Vantuil Abdalla achava graça e ria. Por quê?Porque eu estava demonstrando apenas que era umneófito no Tribunal Superior do Trabalho e que me in-surgia contra uma jurisprudência estratificada da Casa.

Essa foi uma situação com a qual nunca convivi mui-to bem. Sempre foi para mim extremamente desconfor-tável. Mas, depois de algum tempo, a gente vai assimi-lando o papel – não digo a ideologia, não – que se temque exercer dentro de um Tribunal de uniformização.

Agora, outra coisa que eu quero dizer é que nóstemos um Tribunal que está tentando mudar tudo queaconteceu, tentando fazer com que a Justiça do Tra-balho seja muito mais adequada a esse sofrido povobrasileiro do que tem sido.

Eu mesmo, como Corregedor, estou inovando, emuito, nas práticas correicionais. Era mais do que nor-mal que ao Corregedor satisfizesse o exame de dadosestatísticos, prazos, etc., coisa que poderia até mes-mo ser feita via Internet. Eu, como Corregedor, ouçotodos os que estão ligados à prestação jurisdicional.Mas ouço principalmente a população. Tento chamara população para que ela, que é usuária do sistema,especialmente os trabalhadores, digam onde estão osproblemas que afligem os credores de justiça faceàquele Tribunal Regional e face às Varas do Trabalho.

Aliás, devo dizer, num parênteses, que a grande

decepção que experimentei até agora, em matéria deaudiência pública, foi em São Paulo. Embora tivésse-mos divulgado, e bastante, a possibilidade de os tra-balhadores virem falar com o Corregedor, apenas setetrabalhadores se apresentaram. Sabe quantos se apre-sentaram na Bahia? Mais de mil trabalhadores. Sabequantos se apresentaram no Rio Grande do Sul? Du-zentos e cinqüenta trabalhadores. Em São Paulo,apresentaram-se apenas sete trabalhadores para falarcom o Corregedor. A amostragem foi boa, mas porpura sorte. Normalmente, ouço cerca de vinte e cincotrabalhadores nesse tipo de audiência pública. Porém,apesar da participação reduzida, pude tirar boas con-clusões a respeito da prestação jurisdicional do Tribu-nal da 2ª Região e a respeito da prestação jurisdicionaldas Varas do Trabalho.

O que quero dizer é que estamos tentando abrir aJustiça do Trabalho ao povo. Na Bahia, eu os recebiem grupos de 140 na sala do Pleno. E aí explicava aeles que não poderia falar com todos. Como isso seriaimpossível, a preferência seria dada às gestantes, aosdoentes, aos idosos. Dei prioridade a essas categoriashumanas.

Eu lhes dizia: – “Vocês estão dentro de suas pró-prias casas. Isto aqui é de vocês! Não tem o menorsentido a existência dessas coisas sem vocês. Compu-tadores, servidores, juízes, togas, títulos, tudo isso exis-te em função de vocês”.

E eu não estava simplesmente preocupado em apa-ziguar os trabalhadores que eu não receberia. Não!Eu estava dizendo isso com plena e absoluta convic-ção. Com a convicção que tenho a respeito daquiloque se deve fazer e pensar em relação ao nosso juris-dicionado, especialmente o jurisdicionado trabalhador.

Então, entendo que o Tribunal Superior do Trabalhonão é mais aquele de antigamente. E mais: não temverossimilhança a afirmação de que convocamos juízespara o Tribunal pela sua ortodoxia em relação aos nos-sos entendimentos. Ninguém sabe se o juiz tal ou qualdecidiu contra as Orientações Jurisprudenciais ou deci-diu contra Enunciados de Súmula. Não se sabe disso.A convocação não tem seguido a critérios pré-estabe-lecidos. Portanto, estaremos enxergando – se enxer-garmos assim – aquilo que realmente não existe,numa visão paranóica. Posso dizer isso a vocês comtoda franqueza.

Bem, mas estou aqui para falar sobre a execução.Introduzo algumas palavras sobre execução através daenunciação de um princípio genérico que, para mim,é fundamental. Qual é? É o princípio da desigualdadedas partes no processo. Por favor, não se escandali-zem. Eu vivo escandalizando juízes do Trabalho. Oprincípio da desigualdade das partes no processo nãose confunde com a falta de imparcialidade do juiz. Porfavor, não confundam!

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O juiz do Trabalho é absolutamente imparcial edeve continuar sendo imparcial. O que digo é que aspartes no processo são desiguais. Não são desiguais sóno direito material, não! Elas são desiguais no proces-so também. Por quê? O trabalhador que é hipossufi-ciente: econômico, social e jurídico, não deixa de serhipossuficiente quando ele se senta numa sala de au-diência ou quando ele vai ser julgado por um Tribunal.Sua hipossuficiência vai junto com ele. Ele é, muitasvezes, tão temeroso daquele ambiente, que no tempoem que eu era Presidente de Junta era comum o tra-balhador permanecer no saguão quando era chamadopara a sala de audiências. Ele não se atrevia a entrar.Esperava que alguém pegasse na mão dele e dissesse:– “Vem cá! Entra aqui!”.

O trabalhador continua hipossuficiente e, portanto,o processo precisa tratá-lo desigualmente para equili-brar – fazer também o equilíbrio processual entre em-pregador e empregado.

Agora imaginemos o campo da execução. Nessecaso, o trabalhador já ganhou a causa e nossa tarefa éentregar-lhe o dinheiro. Na execução, o juiz consorcia-se ao trabalhador, podendo agir, inclusive, de ofício.

Vou dar alguns dados sobre execuções no Brasil. Noprimeiro trimestre deste ano estavam em curso1.802.495 execuções no país. O saldo no segundo tri-mestre deste ano era 1.698.140.

Hoje de manhã, eu estava ouvindo os dados apre-sentados neste Encontro a respeito da mão-de-obra decarteira assinada. Estão aqui os dados, que anotei: 23milhões de trabalhadores com carteira assinada. Des-ses 23 milhões, temos litigando na Justiça do Trabalhoao redor de 10%. Sempre foi assim: ao redor de 10%de trabalhadores procuram a Justiça do Trabalho acada ano.

E, desses, nós estamos encontrando mais ou menos2/3 com seus processos ganhos e sem poder executá-los. Isto é, a execução é uma fraude contra o trabalha-dor. Daí porque eu tenho uma outra obsessão, alémde ter aquela obsessão sobre a substituição processuale sobre os interesses individuais homogêneos durantetanto tempo.

Agora eu tenho uma outra obsessão: é sobre a exe-cução dos julgados trabalhistas. E essa nova obsessãoeu adquiri fazendo correições, especialmente fazendocorreição na Bahia. Doeu-me verificar que estamoscriando novos excluídos: os excluídos da Justiça do Tra-balho. É realmente um quadro que me faz lutar, namedida das minhas forças, inclusive declarando queprecisamos ser truculentos.

Recentemente foi publicado um livrinho sobre penhoraon line, que se opõe a todos os nossos esforços. Doisautores, nesse livro, o Amauri Mascaro Nascimento e oLuiz Carlos Amorim Robortella dizem que é tão grandea força e o poder do juiz na execução que esse extraor-

dinário poder há de ser exercido sem arbitrariedade, semtruculência. Recado mandado ao Corregedor-Geral. Eunão tenho dúvida. E mais, observem o título do livro:“Penhora eletrônica na Justiça do Trabalho e suas con-seqüências negativas para as empresas”.

Mas, felizmente, temos agora dois tipos de autoressobre execução no país. O juiz Francisco Antônio deOliveira escreveu um livro sobre execução absoluta-mente clássico, calcado no Processo Civil. Cito tam-bém como expoente de uma nova corrente sobre exe-cução a advogada Delaíde Alves Miranda Arantes, deGoiás, que escreveu com o juiz do Trabalho RadsonRangel Ferreira Duarte o livro: “Execução trabalhista,célere e efetiva - um sonho possível”. Nós estamostratando aqui com sonhadores. Hoje, é o dia dos so-nhadores. Eu também sou. Chegaremos lá.

Então, para que a execução se torne efetiva e paraque essa truculência toda tenha uma expressão maisconcreta, preconizei, num encontro promovido neste anopela Amatra II, em São Paulo, além da penhora on line,também a prisão civil do devedor trabalhista. Nesse even-to, que reuniu representantes da Justiça do Trabalho edo Poder Legislativo, falei rapidamente sobre a compa-tibilidade do dispositivo constitucional que proíbe a pri-são civil, exceto por dívida de natureza alimentícia –mais ou menos isso diz a Constituição – e a definiçãoconstitucional dos salários e direitos trabalhistas comodívida de natureza alimentícia, em decorrência do arti-go 100 da Constituição. Não podemos ter conceitos di-ferentes na mesma Constituição – os conceitos são osmesmos – foi o que eu disse nesse encontro.

Em decorrência dessa menção à truculência, saiuno Suplemento da LTr um artigo de doutrina assinadopor Manoel Carlos Toledo Filho e Jorge Luiz SoutoMaior. O nome do artigo é “Prisão civil por dívida tra-balhista de natureza alimentar”. Então, essa é umaforma de truculência com a qual simpatizo muito.

Eu estava falando para juízes do Trabalho em Sergi-pe. Aí, um deles me disse: – “Muito bem, o senhorpreconizou a prisão por dívida alimentícia trabalhista.Há um artigo que diz isso”. Eu disse: – “Agora o próxi-mo passo é seu! Mande prender!”.

O pessoal do TRT está se preparando para o hábeascorpus. Mas só tenho certeza de uma coisa: se não der-mos seqüência a uma luta clara no sentido de tornar aexecução efetiva, podemos mandar os trabalhadoresaguardar eternamente, porque estaremos mantendo essavergonha expressa nos números que mencionei.

É muito comum que o juiz do Trabalho dê o seguin-te despacho: “Diga o exeqüente, em 5 dias ou 10 dias,onde estão bens penhoráveis. Seu silêncio importarána extinção do processo de execução”.

Como Corregedor, vi isso diversas vezes. Não é no-vidade. Numa audiência pública, chegou o cidadão: –“Olha! Eu perdi!”. – “Mas como perdeu”? – “Perdi!

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Tinha ganho o processo, mas aí perdi”. Eu disse: –“Vamos olhar o processo”. Lá estava o despacho dojuiz do Trabalho. E aí tinha transcorrido o prazo. Agra-vo de petição, jamais. Tinha transcorrido também oprazo para uma rescisória.

Na execução, São Paulo também não aparece bem.No primeiro trimestre de 2003, foram arquivados pro-visoriamente na 2a. Região 13.518 processos. No se-gundo trimestre, 12.915 processos.

A 4a. Região se notabilizou nisso me fez ficar muitotriste. Em 103.000 processos de execução, 61.988 fo-ram arquivados provisoriamente. Eu também já fizuma crítica ao juiz de trabalho paulista, no encontroque mencionei. A crítica foi que o juiz do Trabalho deSão Paulo tem medo de fazer um levantamento dedinheiro. Expedir um alvará. E acho que isso é um de-feito grave. E existe juiz que chega em casa e diz parasua mulher: – “Assinei um alvará hoje”, como se ti-vesse assinado a sentença da própria morte.

Se o trabalhador tem toda essa dificuldade para re-ceber e se o juiz não quer liberar o incontroverso deli-mitado (às vezes o incontroverso não está bem delimi-tado), cria-se uma situação muito esquisita.

Então, os números de São Paulo sobre processosem execução arquivados provisoriamente não são denos entusiasmar nem um pouquinho. E nos fazem crernas nossas convicções sobre a necessidade de umamaior truculência na execução.

Quero expor uma idéia do Ministro Vantuil Abdalla:o juro trabalhista, todos sabemos, é 1%. Ora, se o jurotrabalhista é 1%, é melhor ficar devendo para o traba-lhador, porque dever para o fisco, cujos juros são equi-valentes à taxa Selic, é péssimo negócio Então, se souum capitalista, vou escolher muito bem a dívida quenão vou pagar. Se tenho que escalonar dívidas, voupagar aquilo que é mais gravoso. Então, vou pagarprimeiro a dívida fiscal porque o juro é taxa Selic. Nósestamos dentro do sistema capitalista. Temos que li-dar dentro dele.

A propósito de substituição processual, observei queesses 10% que vão à Justiça vêm-se mantendo ao lon-go de 30 anos. É excelente negócio não pagar o tra-balhador, porque só 10% vão à Justiça. Os outros 90%não cobram nada. Não existe negócio melhor no mun-do! Dentro de tal contexto, a substituição processualseria um instrumento maravilhoso para fazer com queas dívidas trabalhistas fossem efetivamente pagas.

A penhora on line é um instrumento realmente muitoimportante, muito valioso, de que podemos nos valer.Mas é preciso reconhecer que ela apresenta defeitos. Edefeitos muitos graves. Vamos, primeiro, dar alguns nú-meros sobre penhora on line que nos animam. QuandoSão Paulo começou, em julho de 2002, a fazer penhoraon line, foram 9.946 ordens de bloqueio. Hoje, o BancoCentral nos dá o seguinte dado: na 2a. Região, em 2003,

já foram 43.195 ordens de bloqueio. Ou seja, São Pauloresponde muito adequadamente. A 15a. Região, comsede em Campinas, registra 25.473 ordens de bloqueioem 2003. Agora, na 4a. Região foram emitidas apenas4.848 ordens de bloqueio. Por que falo da 4a. Região?Porque sou originário de lá.

Alguns princípios sobre execução que tínhamoscomo assentes e tranqüilos, hoje estamos reformulan-do. Por exemplo: o princípio da menor gravosidadepara o devedor. Esse princípio se aplica ao processo doTrabalho? Digo que não. O artigo 620 do CPC não seaplica ao processo do Trabalho. Por que não se apli-ca? Quando um dispositivo do processo civil se aplicaao processo do Trabalho ele normalmente é expressa-mente mencionado, pois temos regras específicas.Está aqui no artigo 872: “o executado que não pagara importância reclamada, poderá garantir a execuçãomediante depósito da mesma, atualizada e acrescidade despesas processuais, ou nomeando bens à penho-ra, observada a ordem de preferência estabelecido noartigo 655 do Código de Processo Civil.” Aí, não temcomo fugir. Se falou na ordem preferencial do Códigodo Processo Civil, temos que aplicar.

Agora, num processo – e aí eu volto ao princípio dadesigualdade das partes no processo – em que temosde um lado, um trabalhador com título judicial transi-tado e julgado, obtido a duras penas nas instâncias daJustiça do Trabalho, muitas vezes passando pelo Tribu-nal Superior do Trabalho, esperando quatro anos, nãocabe esperar mais tempo.

Não podemos ser muito drásticos com o emprega-dor porque o artigo 620 protege o devedor. Mas nãoestá protegendo devedor de dívida alimentar traba-lhista. Dirige-se a outros devedores. Então, o processodo Trabalho há de ter outros princípios, outras regrasque hão de incidir sobre a execução. Por exemplo, oprincípio da satisfação do credor. Este, sim, princípiotem que ser aplicado no processo do Trabalho.

Esse livro que mencionei, contra a penhora on line,foi todo escrito em torno do artigo 620 do Código doProcesso Civil. São dois pareceres: um do ex-MinistroAlmir Pazzianotto Pinto e outro dos advogados AmauriMascaro Nascimento e Luiz Carlos Amorim Robortela.

Rodrigues Pinto já escreveu, há muito tempo, queesse artigo não se aplica à execução trabalhista. Sa-bemos que à execução trabalhista se aplicam os trâ-mites dos executivos fiscais, a Lei 6.830. Mas a ques-tão é como vai se aplicar o Código de Processo Civil,uma vez que própria Lei de Execuções Fiscais faz re-missão ao Código de Processo Civil. Temos que ter umimenso cuidado ao aplicar todas essas regras, que sãoregras de procedimento.

Quero terminar dizendo que, à parte todas essasregras, eu tenho um sonho. Isso disse Martin LutherKing, quando os direitos civis não eram respeitados.

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Sabe qual é o meu sonho? Que não haja procedimen-to de execução trabalhista. Nenhum! Nenhuma regra!Que, uma vez transitada e julgada, quantificada a de-cisão, o empregador pague! Como se faz na Ale-manha. É esse o meu sonho. Sou também um sonha-dor. Acho que é preciso sonhar, porque é sonhandoque chegamos às realidades. Vim a este encontro na

esperança de obter forças, mais uma vez, de São Pau-lo, porque acho que os juízes trabalhistas de São Pau-lo têm um vigor extraordinário, que não se encontraem parte alguma mais. E recebi aqui um incentivopara lutar um pouco mais. Não estou aqui para in-fluenciar ninguém, mas para dizer, como MartinLuther King, que eu tenho um sonho.

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MÁRCIA NOVAES GUEDES *

Assédio moral eresponsabilidade dasorganizações com os

direitos fundamentaisdos trabalhadores1

“Se quisermos um humanismo para o século XXI, acredito que temos dois caminhos: repensar e reinventar

a democracia e aplicar os direitos humanos”. José Saramago

1. Introdução

O grande tema proposto – Responsabilidade Civil eContrato de Trabalho no Novo Código Civil – é ummundo, vasto mundo, que, se explorado em toda asua plenitude, dificilmente se conteria nos estreitos li-mites de uma breve monografia. Essa rica vastidãotem o mérito de facilitar o trabalho do pesquisador, jáque é possível abarcar o tema tocando levemente na-queles episódios capazes de gerar dano e a conse-qüente ação de reparação, durante a execução docontrato de trabalho.

Exemplificativamente poderíamos citar o elenco dedoenças ocupacionais e os acidentes de trabalho,quando verificado o dolo ou culpa do empregador (C.Federal, art.7o, XXIX). Além dessas hipóteses poder-

se-ia explorar o assédio sexual e a responsabilidadecivil do empregador; a acusação leviana de justa cau-sa; anotações desabonadoras na carteira de trabalhosão outras tantas hipóteses capazes de abrir as portasdos tribunais para o empregado requerer ressarcimen-to por dano moral.

Soma-se à dificuldade de conter todo o tema den-tro das estreitas margens de uma monografia o fatode que pouco ou nada acrescentaríamos a uma abor-dagem dessa natureza, de vez que já existem no mer-cado editorial diversas e excelentes obras2 cuidandoda matéria, as quais, certamente, serão enriquecidaspor seus autores com novas análises em face da entra-da em vigor do Novo Código Civil.

Bem pesados esses elementos e a nossa vontade detrazer à apreciação uma abordagem, se não inédita

* Márcia Novaes Guedes é Juíza Substituta da 5ª Região.1 Texto classificado em 1º lugar no 3º Concurso de Monografias da Amatra II.2 Vejam-se a respeito: JOSÉ LUIZ DIAS CAMPOS e ADELINA BITELLI D. CAMPOS, in “Acidente do Trabalho” (LTr, 1991);

FRANCISCO FERREIRA JORGE NETO e JOUBERTO DE QUADROS PESSOA CAVALCANTE, in “Responsabilidade e asRelações do Trabalho” (LTr, 1998); LUIZ ANTONIO SCAVONE JR., in “Assédio Sexual - Responsabilidade Civil” (editora Juarez deOliveira); RODOLFO PAMPLONA, Dano Moral na Relação de Emprego - Ltr, 2ª edição; do mesmo autor, “Responsabilidade Civilnas Relações de Trabalho e o Novo Código Civil Brasileiro”, in Revista LTr, ano 67 - maio/2003 - págs. 556-564; e PAULO EDUARDOV. OLIVEIRA, in “Dano Pessoal no Direito do Trabalho” - LTr - agosto de 2002.

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no conteúdo, pelo menos na forma, é que preferimoso atalho. Partimos, então, para o exame de um fattis-pecie – assédio moral – também conhecido como“mobbing” ou terror psicológico, que tem sérias impli-cações no que concerne à responsabilidade de empre-sas e organizações para com os direitos fundamentaisdo trabalhador.

Pretendemos enfocar o fenômeno assédio moral notrabalho sob o ângulo da responsabilidade civil a partirdo novo estatuto de direito privado (Lei 10.406 de 10/01/02), mas discutindo os seguintes aspectos: o fenô-meno crescente do poder privado e a proximidade doterror psicológico com o genocídio; a insuficiência dasnormas civis para tutelar os direitos individuais e do cri-tério da autonomia privada para aferir a ilicitude dosatos; e a importância da teoria da Drittwirkung ou Efi-cácia Horizontal dos Direitos Fundamentais. Por fim, de-vemos evidenciar a possível relação entre a constitucio-nalização do direito privado e o modo pelo qual as pes-soas jurídicas de direito privado estão se posicionandodiante do desafiante tema dos direitos humanos e asimplicações disso para as relações de trabalho.

2. Assédio moral no trabalho

2.1. Conceito. CaracterizaçãoMobbing3, assédio moral ou terror psicológico4 é

uma perseguição continuada, cruel, humilhante e de-sencadeada, normalmente, por um sujeito perverso,destinada a afastar a vítima do trabalho com gravesdanos para a sua saúde física e mental. Esse fenôme-no não é recente, pois existe desde que a humanidadecomeçou a se organizar em sociedade; a novidade estános estudos médicos e jurídicos. A partir da década deoitenta é que foram publicados os resultados das in-vestigações científicas relacionando o mobbing adoenças no trabalho, cabendo a primazia desses estu-dos ao médico psiquiatra alemão, radicado na Suécia,Heinz Leymann, que denominou o fenômeno depsicoterror.

O terror psicológico não se confunde com o exces-so, nem a redução de trabalho, a ordem de transfe-rência, a mudança do local de trabalho, a exigênciano cumprimento de metas e horários rígidos, a falta

de segurança e obrigação de trabalhar em situação derisco, pouco confortável ou ergonomicamente desa-conselhável. O mobbing não é a agressão isolada, adescompostura estúpida, o xingamento ou a humilha-ção ocasional, fruto do estresse ou do destemperoemocional momentâneo, seguido de arrependimentoe pedido de desculpa.5 Cada uma dessas atitudes podeser empregada pelo agressor para assediar moralmen-te uma pessoa, mas o que caracteriza o terror psicoló-gico é a freqüência e repetição das humilhações den-tro de um certo lapso de tempo.

Muito se discute acerca das causas do mobbing, oporquê do aparecimento de sujeitos perversos dentrodas organizações, inclusive naquelas inteiramente vol-tadas para ações sociais e fraternas.6 Muito emboranão se despreze o fator psicológico, a maioria dos au-tores prefere evidenciar nos fatores de natureza sociale organizativa as verdadeiras causas dessa violência.O inadequado exercício do poder diretivo é pressupos-to para o desenvolvimento de conflitos e hostilidades;em face da incapacidade dos gestores de tratar ade-quadamente o conflito, este acaba por se espraiar ese enraizar na organização, facilitando a ação perver-sa e o aparecimento de bodes expiatórios.

O sujeito perverso emprega vários expedientes paraaterrorizar e imobilizar a vítima. Das hostilidades vela-das – muxoxos, dar de ombros, olhar de desprezo – seavança para a recusa da comunicação – a indiferençado perverso impede que a vítima exija uma explicaçãoplausível para aquele comportamento. Pouco a pou-co, o perverso vai dominando a vítima e os atos deviolência se tornam explícitos com a desqualificaçãodo trabalho e da pessoa. O trabalho da vítima é desva-lorizado com críticas ácidas, reprovações, gritos e xin-gamentos e sua opinião e comentários têm a indife-rença ou a derrisão como respostas.

Critica-se a performance profissional da vítima comalusões malévolas sobre a sua qualificação técnica,habilidades e sua honestidade profissional. Ataca-se avida privada com brincadeiras de mau gosto, insinua-ções, constrangimentos, divulgação de calúnias ementiras, espalhando-se murmúrios e fofocas peloambiente de trabalho. Fala-se da vítima pelas costas,deixando-a sem defesa. Por fim, a vítima é isolada do

3 O mobbing existe também entre certos grupos de animais. O termo provém do verbo inglês tomo b, que, dentre outras coisas, significaassediar, atacar e foi empregado pela primeira vez pelo etologista Konrad Lorenz para definir o comportamento de certos animais. Lorenzganhou o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1973 por ter criado, com outros cientistas, uma nova ciência, a Etologia, que faz oestudo comparado do comportamento dos animais.

4 No curso dessa monografia utilizaremos indistintamente os três termos.5 Segundo Leymann para que a violência se caracterize como mobbing é necessário que os ataques se repitam pelo menos uma vez na

semana, durante seis meses ou, no mínimo, três meses, exemplo do “quick mobbing”.6 Ainda hoje hitoriadores mostram-se perplexos com o fenômeno Hitler e buscam explicações para o absurdo nazista — veja-se o livro “Para

Entender Hitler” de RON ROSEMBAUM — tradução de Eduardo Francisco Alves, Record, 2003.

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convívio dos demais colegas. Vexada e constrangida,asilada dentro do seu ambiente de trabalho, a vítimaperde a espontaneidade, não se agüenta dentro de sie se tortura dia e noite, buscando em si mesma ascausas daquela situação.

2.2. Tipologia. EfeitosO terror psicológico no trabalho é uma violência

multifacetada que, além da modalidade vertical (em-pregadores e chefes contra subordinados), pode severificar na modalidade horizontal (colegas de traba-lho do mesmo grau hierárquico), como também demodo ascendente – é o mobbing de baixo para cima(subordinados que se amotinam e aterrorizam um su-perior, normalmente utilizando atos de sabotagem dotrabalho deste). Não obstante a raridade dessas mo-dalidades, elas são tão cruéis quanto a vertical e pro-duzem danos à integridade física, psíquica e moral dasvítimas igualmente graves.

Atualmente vários estudiosos direcionam suas pes-quisas para reconhecer doenças ocupacionais causa-das pelo terror psicológico.7 Temos notícia de que naItália principia-se por admitir a existência de doençaprofissional resultante do assédio moral, denominadade “síndroma da mobbing”. Muito embora referidadoença ainda não se encontre tabelada no quadrogeral da legislação de infortunística italiana – o queexige a prova do nexo de causalidade entre o ambien-te de trabalho e a doença encontrada, bem como daincapacidade para o trabalho – já se tem notícia depleitos nesse sentido junto ao Inail (Instituto Nacionalde Seguridade dos Infortúnios do Trabalho)8 daquelepaís. Na França, o Tribunal de Questões de Segurançade Epinal, no departamento do Vosges, classificou deacidente no trabalho a tentativa de suicídio da faxinei-ra Chantal Rousseau, em virtude de assédio moral pra-ticado pelo chefe de serviço de um Colégio.9

A conceituação do mobbing como patologia profis-sional significa admitir que há uma incapacidade parao trabalho. Ora, no assédio moral a incapacidade estáestreitamente relacionada com o estado psicológicoda vítima particularmente quanto aos relacionamen-tos interpessoais; disso decorre a dificuldade de provaro nexo etiológico entre a conduta torturante da qualderiva a patologia reconhecida e indenizável e a inca-pacidade laborativa. Por outro lado, toda a legislaçãorelativa à incapacidade temporária obriga a empresaa propiciar a reabilitação do trabalhador e o conse-qüente retorno à normalidade. A pergunta é: seria

conveniente obrigar a vítima a retornar ao local ondefoi torturada? Voltar a conviver com as mesmas pes-soas que a torturaram ou que assistiram passivamentea seu sofrimento?

Cremos que a solução dessa questão passa pelaadoção do critério da razoabilidade. Assim, o Institutode Previdência Social deverá orientar suas decisões nosentido de admitir pura e simplesmente a indenizaçãodiante da prova inequívoca de um caso de assédiomoral com incapacitação temporária para o trabalho.

3. Assédio moral e totalitarismo

3.1. A ruptura do paradigmaAo refazer o percurso da tradição que culminou com

a construção dos direitos humanos, Celso Lafer noslembra que o totalitarismo rompe com a tradição –construída ao longo dos séculos, pelo princípio éticode tomar o ser humano como valor-fonte da experiên-cia jurídica. A pessoa humana é a fonte de todos osvalores – proclamaram os patriarcas dos tempos bíbli-cos; Adão e Eva guardam e transmitem às futuras ge-rações o sopro divino; Deus criou o homem à sua ima-gem e semelhança – segundo o livro do Gênese; ohomem é o ser supremo sobre a terra, e quem supri-me uma existência – afirma o Talmud dos judeus – écomo se destruísse o mundo na sua inteireza.

Através do estoicismo, os gregos afirmaram a con-dição cosmopolita do homem – o mundo é a únicamorada, da qual todos devem partilhar com fraterni-dade e igual condições. Dessa comunidade universaldo gênero humano deriva um direito igualmente uni-versal – precedente da lei eterna e natural dos cristãose fonte dos direitos fundamentais. No cristianismo te-mos a consolidação desses ensinamentos judaico egrego pela evangelização, pela reafirmação do valorabsoluto da pessoa humana, pois Jesus Cristo chamoua todos para a salvação – toda a raça humana. O ho-mem é o princípio e o fim de todas as coisas e valores.

Outra dimensão destacável na reconstrução da tradi-ção, ainda segundo Lafer, é o individualismo, derivadodo subjetivismo, presente na contemplação platônica, emais tarde o iluminismo vai propiciar as premissas danoção de direito subjetivo. A lei e não Deus ou os costu-mes passa a ser fonte de direitos. A estabilidade preten-dida, no entanto, com a positivação dos direitos do ho-mem nos textos constitucionais, a partir do século XVIII,não se tornou realidade, precisamente porque estes di-reitos vivem imersos em uma realidade sócio-política

7 Vejam-se o trabalho de LIDIA RAMIREZ GUEVARA, jurista cubana, publicado no site www.mobbing.ud.8 MÁRCIA NOVAES GUEDES, Terror Psicológico no Trabalho, pág. 124.9 Idem ibdem, pág. 133.

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cambiante. À primeira geração dos direitos humanos foicomplementada pelo legado socialista, que abriu espa-ço para os direitos de segunda geração, consubstancia-dos no welfare state e traduzidos como direitos de cré-dito dos “desprivilegiados” em relação aos bens coleti-vamente produzidos, os bens sociais.

A força das contradições históricas entre liberalismoe socialismo provou que as liberdades de pensamentoe de associação eram mais abrangentes do que a li-berdade econômica e de propriedade, por exemplo.Essa relativização dos direitos evidenciou a crise noparadigma da Filosofia do Direito à fundamentaçãojusnaturalista dos direitos do homem, baseado no con-ceito de natureza humana; em substituição, construiu-se um fundamento mais historicista, transferindo-se oparadigma para o princípio da razoabilidade dos direi-tos do homem na história.10

Dentre os pressupostos examinados por HannahArendt, na sua busca para explicar o nazismo, desta-ca-se o fato de que a 1a Guerra criou um grande nú-mero de refugiados, de apátridas. Grandes massashumanas passaram a perambular pela Europa sem umlugar no mundo – são os “displaced persons”. Trata-sede uma forma moderna de expulsão da humanidadecujas conseqüências são muito mais radicais que ocostume antigo e medieval da proscrição. Esses novosrefugiados não eram perseguidos por algo que tives-sem feito ou pensado, mas sim pelo fato de serem oque eram (no caso dos judeus, haviam nascido na raça“errada”), assinala a autora. O refugiado é umdespossuído de cidadania (um ser sem direito a terdireitos), por isso sua liberdade, se acaso existe, é inú-til, pois nada do que pensa ou faz tem importância. 11

Analisando essa realidade dos displaced persons, aexperiência nazista e as Declarações de Direitos francesae americana, Hannah Arendt definiu a “cidadania comoo direito de ter direitos, pois a igualdade em dignidadee direitos dos seres humanos não é um dado, é um cons-truído da convivência coletiva, que requer acesso aoespaço público de um mundo comum através do proces-so de asserção dos direitos humanos”. Daí sua acertadaconclusão: “os homens não nascem livres e iguais, nemsão igualmente criados por obra da natureza – a igualda-de é um construído convencional”.12

O totalitarismo, segundo a lição arendtiana, consti-tuiu-se numa ruptura, num hiato entre o passado e ofuturo, porque demoliu os paradigmas da civilização

ocidental, civilização que se construiu na crença de quea pessoa humana é o valor-fonte da experiência ético-jurídica. Enquanto projeto de organização social voltadopara a dominação total e absoluta dos indivíduos, o to-talitarismo produziu o genocídio. O genocídio não foiapenas um crime contra os judeus, mas um crime per-petrado contra a humanidade. O paradigma jurídico ins-pirado na lógica do razoável, porém, não foi suficientepara lidar com tão cruel falta de bom senso.

O nazismo – uma das piores formas de totalitarismo– se empenhou em eliminar, de maneira historicamen-te inédita, a espontaneidade – a mais genérica e ele-mentar manifestação da liberdade humana (CelsoLafer). Para tanto isolou e segregou seres humanos,privando-os do desenvolvimento normal de suas per-sonalidades na vida pública. A liberdade de expres-são, a livre explicação da personalidade somente épossível na ação e na interação com os demais mem-bros da comunidade, com o entorno social. Do isola-mento nasce a desolação, que destrói a intimidade. Atentativa de eliminar a espontaneidade se dá pela se-gregação no campo de concentração, instituição fun-damental do regime e laboratório onde se experimen-ta a teoria do “tudo é possível”, que descartou sereshumanos através do genocídio.13

Na versão de Celso Lafer, a definição arendtiana dogenocídio como crime contra a humanidade se funda-menta no fato de que se constituiu num ataque à diver-sidade humana enquanto tal, ou seja, foram atacadasprecisamente as características do “status humano”, semo qual as exatas expressões gênero humano ou humani-dade ficariam sem sentido. O ineditismo do delito devi-do ao “Milagre negro” proveniente da ruptura com atradição, não permitiu a sua tipificação em lei, daí quese tornou um imperativo de justiça o não-cumprimentodo princípio nullum crimen, nulla poena sine lege.14

Em A Condição Humana – obra antropológica –Hannah Arendt, ainda segundo Lafer, elege a natali-dade como a categoria central da política, explicativae constitutiva da liberdade: “o fato de o homem sercapaz de agir significa que podemos esperar dele oinesperado, ele é capaz de realizar o infinitamenteimprovável. E isto, por sua vez, só é possível porquecada homem é singular, de sorte que, a cada nasci-mento, vem ao mundo algo singularmente novo”.15

Assim, da natalidade advêm a pluralidade, a diversi-dade e a esperança humanas.

1 0 Conforme CELSO LAFER, obra citada.1 1 HANNAH ARENDT, “As Perplexidades dos Direitos do Homem”, in: As Origens do Totalitarismo.1 2 Resumido por CELSO LAFER, pág. 125.1 3 CELSO LAFER, A Reconstrução dos Direitos Humanos, pág. 117.1 4 Ob. Citada, pág. 180-1.1 5 Idem ibdem.

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3.2. Semelhanças entremobbing e totalitarismo

O mobbing visa dominar e destruir psicologicamentea vítima, afastando-a do mundo do trabalho. Nesse sen-tido é um projeto individual de destruição microscópica,mas que guarda profunda semelhança com o genocí-dio. Quando um sujeito perverso está decidido a destruira vítima, retira-lhe o direito de conviver com os demaiscolegas. A vítima é afastada do local onde normalmen-te desempenhava suas funções, colocada para traba-lhar em outro local em condição inferior e obrigada adesempenhar tarefas sem importância, incompatíveiscom sua qualificação técnica profissional, ou é conde-nada à mais humilhante ociosidade. À semelhança donazismo, o mobbing ataca a espontaneidade.

Cortar as relações sociais, segregar e isolar a vítimasão medidas de grande eficácia para os atos de terroris-mo que se vão desencadear em seguida. A proximidadeentre a conduta do perverso e as práticas verificadas nosregimes totalitários se estreita ainda mais a partir dessafase. Isolada e impedida de se comunicar com os cole-gas, a vítima se debate em vão, sem chance de ver seuspedidos de socorro serem atendidos. O psiquiatra alemãoHeinz Leymann, durante o tratamento de vítimas domobbing, percebeu a eficácia de práticas utilizadas nacura de vítimas de guerras, torturas em prisões e camposde concentração, isso porque tanto umas quanto as ou-tras apresentavam os mesmos sintomas de PTSD – De-sordem Pós-traumática por Estresse.16

No terror psicológico no trabalho distinguem-se trêsespécies de sujeito: o agressor, a vítima e os especta-dores. Conforme explicamos precedentemente, oagressor pode ocultar-se nos atos da diretoria da em-presa, na hipótese do mobbing estratégico. Quanto àvítima, tudo é feito para que ela se sinta culpada eassim seja julgada pelos espectadores. O fato foi iden-tificado pela Corte de Los Jusgados Sociales de SantaCruz de Tenerife na ação conhecida como “Museu doMobbing”. Cuida-se da denúncia de violação de direi-tos fundamentais de um diretor do museu, tendo-semanifestado a juíza Maria Pia Casajuana Palet assim:

“Quanto ao fundo da questão controvertida, deve-mos ter em conta, primeiramente, que não procedeentrar em considerações neste processo se a possívelconduta de assédio moral poderia estar justificada –

pelo suposto plágio cometido pelo autor, pela altera-ção estatística, ou por outras causas – já que apreciarassim, ditos motivos poderiam unicamente constituiruma causa válida para a adoção de medidas legaisque poderiam corresponder à destituição do seu cargode diretor, como já se realizou, à imposição de umasanção, à extinção do seu contrato como técnico emHistória, convocando ao correspondente concurso parao cargo, ou incluir a denúncia penal, se assim coubes-se, porém nunca o ataque a sua dignidade aqui ajui-zada. Em qualquer caso, a conduta a analisar nessalide é a dos demandados e não a do autor.”

Procedimento nº. 0000623/2002. NIG: 380383442002000419.Materia: Tutela de Los Derechos Fundamentales. SENTEN-CIA En Santa Cruz de Tenerife, a 24 de fevereiro de 2003).

Na medida em que o perverso logra afastar a vítimado convívio dos colegas, os ataques se amiúdam, redu-zindo-se as chances de a vítima escapar. A pessoa ofen-dida é isolada, seja porque os colegas se aliam ao agres-sor e a evitam, seja porque o agressor consegue isolarfisicamente a vítima, obrigando-a a trabalhar em outrolocal em condições inferiores e humilhantes A essa altu-ra, o perverso, que a princípio agia discretamente, ganhamaior liberdade de ação frente à assistência passiva dosespectadores. A passividade destes se explica, por umlado pelo caráter sedutor da perversão, e mais uma vezvamos flagrar estreitas semelhanças entre o assédio morale o totalitarismo.17

Por outro lado, a passividade daqueles que assistemaos ataques do sujeito perverso se explica pelo queChristopher Dejours denominou de “banalização dainjustiça social”. Segundo esse autor, a sociedadeatual, dominada pela competitividade desenfreada,pelo desemprego e precarização das relações sociais,vive mergulhada numa profunda crise ética. As pes-soas, diante da inexorabilidade do desemprego, teme-rosas da exclusão social, suspendem o pensamento edesenvolvem a “tolerância à injustiça” escusando-sede reagir diante da perpetração do mal e, muitas ve-zes, colaborando com o “trabalho sujo” nos processosde enxugamento das empresas. Para Dejours, o pro-cesso de banalização da injustiça social é o mesmotanto no neoliberalismo quanto foi a banalização domal no nazismo.18

A teoria da banalização da injustiça social tem ori-gens na análise de Hannah Arendt sobre a personali-

1 6 MÁRCIA NOVAES GUEDES, Terror Psicológico no Trabalho, pág. 44.1 7 “É muito perturbador o fato de o regime totalitário, malgrado o seu caráter evidentemente criminoso, contar com o apoio das massas. Embora

muitos especialistas se neguem a aceitar essa situação, preferindo ver nela o resultado da força da máquina de propaganda e de lavagem cerebral, apublicação, em 1965, dos relatórios, orginalmente sigilosos, das pesquisas de opinão pública alemã dos anos 1939-1944, realizadas então pelosserviços secretos da SS (...), demonstra que a população alemã estava notavelmente bem informada sobre o que acontecia com os judeus ou sobre apreparação do ataque contra a Rússia, sem que com isso se reduzisse o apoio dado ao regime” (HANNAH ARENDT, Prefácio à Parte III deTotalitarismo, nota de rodapé, pág. 339).

1 8 Ver A Banalização da Injustiça Social, 3° edição, editora Fundação Getúlio Vargas.

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dade de Adolf Eichmann. Desconcertantemente o car-rasco nazista não passava de um funcionário media-no, medíocre, incapaz de refletir sobre seus atos, ape-gado aos clichês da burocracia e sem qualquer imagi-nação. Com arguta lucidez, Hannah identificou nesse“coração das trevas”, o risco para as sociedades de-mocráticas, porque a suspensão da faculdade de pen-sar oportuniza a “ banalidade do mal”, e foi precisa-mente isso que se verificou na Alemanha durante onazismo, onde as pessoas cumpriam sem qualquerquestionamento as ordens do “Führer” – afinal, o“Fürher” tinha sempre razão, conforme o depoimentode Rudolf Hess, diretor nazista no campo de extermí-nio de Auschwitz.

4. Assédio moral, responsabilidade e onovo Código Civil

A idéia de reparação é uma das mais velhas idéiasmorais da humanidade.

George Ripert

4.1. Origem e evolução daresponsabilidade civil

Não vamos aqui tentar conceituar responsabilidadecivil, tarefa em que grandiosos e renomados juristas fa-lharam. Lembramos apenas que das muitas tentativasde conceituação emerge a idéia dual de um “sentimen-to social e humano”.19 Como sentimento social temosque o ordenamento jurídico não aceita que uma pessoacause mal a outra, por isso concebeu um número demedidas jurídicas destinadas a punir o malfeitor.

Atendendo às exigências de equilíbrio social,imbricadas no ordenamento jurídico, dessa necessida-de de satisfação social surge a responsabilidade crimi-nal. Por outro lado, como sentimento humano, a or-dem jurídica repudia a hipótese de que o agente cau-sador do dano reste impune, pois para a vítima nãobasta apenas a punição social do ofensor, é necessáriauma reparação; assim, na responsabilidade civil estápresentes tanto a finalidade punitiva quanto pedagó-gica, aliando-se também a idéia de garantia e solida-riedade social para com o ofendido.20

Muito embora as origens históricas da responsabili-dade civil horizontal se encontrem no direito romano noplebiscito proposto pelo tribuno Aquilio – daí o termoresponsabilidade aquiliana –, a responsabilidade civil daspessoas jurídicas de direito privado é construção doutri-

nária recente e foi pacificada somente no século passa-do. A grande dificuldade, porém, para estabelecer osprincípios da responsabilidade civil das pessoas jurídicasde direito privado, encontrava-se precisamente na ca-racterização da natureza jurídica da entidade. Assim,durante muito tempo prevaleceu a teoria da ficção jurídi-ca. Ora, sendo uma ficção, o ente privado não possuivontade e, assim sendo, não pode ser responsabilizadopelos atos dos seus representantes.

Custou, mas, finalmente, a teoria da ficção cedeulugar à da realidade. Ergue-se uma nova teoria parajustificar a natureza jurídica da pessoa jurídica a partirda tese do “realismo organicista” (Saleiles). Sendo umarealidade, a pessoa jurídica age por seus órgãos e repre-sentantes e responde pelos atos destes. Elabora-se ateoria da responsabilidade civil culposa ou extracontra-tual das pessoas jurídicas de direito privado por assimi-lação do procedimento adotado para as pessoas físicas.Assim, passam elas a responder pelos danos praticadospor seus órgãos, por seus empregados e prepostos epelo fato das coisas, desde que provada a culpa.

4.2. Responsabilidade pelofato de terceiro

“A reparação dos danos que a atividade dos ho-mens causa aos outros homens constitui o problemacentral do direito contemporâneo”.21 A sentença deStarck é de 1947 e, a nosso ver, prova a preocupaçãodos juristas com o avanço desenfreado da atividadeindustrial e as constantes violações dos direitos do ho-mem em face do emprego de técnicas e procedimen-tos que implicam risco para a saúde ambiental, daspessoas e dos trabalhadores diretamente envolvidosna produção desse modelo civilizacional. O reconheci-mento, portanto, de que a atividade dos homens cau-sa danos a outros homens independentemente de cul-pa, empurrou juristas e legisladores para a adoção dateoria do risco, o que se deu de modo integral quantoà responsabilidade do Estado (art. 107 da EmendaConstitucional 1 de 1969).

No assédio moral tanto temos a responsabilidadecivil por fato próprio (CC, arts. 186 e 187), ação volun-tária do empregador (dolo e abuso de direito no“mobbing estratégico”), quanto temos a responsabili-dade civil pelo fato de outrem (CC art 932, III) verificá-vel no mobbing vertical, horizontal e ascendente. Tra-ta-se da responsabilidade do empregador pelos atosdos empregados, serviçais e prepostos quando agem

1 9 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, pág. 11.2 0 Idem, ibdem.21 Citado por CAIO MARIO, op. Citada.

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no exercício do trabalho que lhes competir ou por oca-sião dele.

O Código Civil de 1916 assentou na culpa concor-rente ou in vigilando a responsabilidade do emprega-dor – CC, art. 1.523, retirando com uma mão o quedeu com a outra, ao impor à vítima o ônus de provar odano, a relação entre este e a conduta ilícita e a culpaconcorrente ou falta de vigilância do empregador. Gra-ças à jurisprudência progressista dos tribunais, ampa-rada na lição de Clóvis Beviláqua, se construiu a teoriada “presunção de culpa” – livrando a vítima da provada culpa concorrente ou in vigilando do empregador.Assim, provado o dano e o nexo de causalidade entreeste e o fato do agente, a pessoa jurídica é obrigada àreparação. Mais tarde uniformizou-se a jurisprudênciapelo Enunciado do STF, verbete 341: “É presumida aculpa do patrão ou comitente pelo ato culposo doempregado ou preposto”.

O novo Código Civil (art. 933) cumpriu a célebreprevisão de Caio Mario, adotando a teoria objetivapara essa espécie de ilícito. Assim, na ocorrência dedano praticado por empregados ou prepostos no exer-cício do trabalho que lhes competir ou por ocasiãodeste, o empregador responde independentemente deculpa. Basta que reste provado o ato ilícito – ofensa auma norma preexistente ou erro de conduta –, o danoe a relação de causalidade.

Abriu também o novo Código a possibilidade do di-reito de regresso daquele que ressarciu o dano causa-do por outrem. Assim, ao empregador preservou-se odireito de ajuizar ação de regresso para se reembolsardo prejuízo que pagou por danos praticados por seusempregados e prepostos (Novo C. Civil, art. 934). Ainovação, se é que assim podemos defini-la, abre apossibilidade da denunciação à lide na Justiça do Tra-balho. Isso, claro, nas hipóteses em que se admita acompetência da Justiça do Trabalho.22

Como se sabe, a denunciação à lide é obrigatóriapara aquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo con-trato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo doque perder a demanda” (CPC, art. 70, III). Essa figuraprocessual permaneceu afastada do processo do tra-balho pelo fato de que a JT é competente para dirimirlitígios entre empregados e empregadores (C. F., art.114). Na hipótese, todavia, de configurar-se responsa-bilidade por fato de outrem (sendo este outrem em-pregado ou preposto), a denunciação à lide é obriga-tória, na medida em que a ação de regresso visa solu-

cionar pendência entre empregador e o empregadocausador do dano. Não se tratando, pois, de mobbingestratégico, o empregador responde objetivamente,independentemente de culpa, mas detém a ação re-gressiva contra o empregado ou preposto responsávelpelas agressões.

Outra importante inovação trazida pelo Novo Códi-go Civil é quanto à aplicação da teoria do risco, aodispor no § Único do art. 927 o seguinte:

“Haverá obrigação de reparar o dano, independen-temente de culpa, nos casos especificados em lei, ouquando a atividade normalmente desenvolvida peloautor do dano implicar, por sua natureza, risco para osdireitos de outrem”.

Muito embora visível a forte conotação trabalhistadessa norma, haja vista que a legislação do trabalhodefine, no capítulo da Medicina e Segurança do Tra-balho, as atividades de risco, discute-se desde já aaplicação desse dispositivo infraconstitucional na hipó-tese de acidente do trabalho diante do que dispõe aConstituição Federal no art. 7o XXVIII:

Seguro contra acidente de trabalho, a cargo doempregador, sem excluir a indenização a que este estáobrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.

Considerando o conceito de atividade perigosacomo sendo “aquela que contenha em si uma graveprobabilidade, uma notável potencialidade danosa,em relação ao critério da normalidade média”23, nãovemos como aplicar a teoria do risco na hipótese demobbing em qualquer de suas modalidades. O assédiomoral é uma ação voluntária desencadeada por umsujeito perverso e capaz de provocar danos em diver-sas esferas da vida, mas pode ser evitada na medidaem que o empregador se empenhe em construir umambiente de trabalho saudável e de respeito aos direi-tos humanos. Do mesmo modo não cabem as exclu-dentes de culpa como o caso fortuito, a força maior ea culpa exclusiva ou concorrente da vítima.

4.3. Assédio moral e ainsuficiência do direito privado.

O novo Código Civil, muito embora tenha sido ela-borado sob a égide dos princípios da eticidade, da so-ciabilidade e da operosidade e haja explicitado, nocapítulo dos atos ilícitos, o dano patrimonial e moral,nasceu atrasado em mais de 40 anos e num momentohistórico quando já o mundo avança a passos largosna direção da constitucionalização do direito privado,

2 2 O que define a competência ratione materie é a causa de pedir. Ora, se o dano resulta de uma relação de emprego, data venia da polêmicaque graça nos tribunais, não vemos porque recusar a competência da Justiça do Trabalho para apreciar a ação de danos decorrente doassédio moral no trabalho.

2 3 CARLOS ALBERTO BITTAR, citado por Caio Mario da Silva Pereira, ob. citada, pág 100.

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na relativização do primado da autonomia privada edo fim do binômio Direito Público e Direito Privado.

No trabalho, o desprezo pelo outro constitui umpressuposto para o assédio moral. O terror psicológicoé o projeto de destruição individualizada da pessoa noambiente de trabalho, que guarda estreita proximida-de com o genocídio. Essa constatação nos remete aoproblema da vinculação dos entes privados aos direi-tos fundamentais, e a negação dessa responsabilidadeconduz à própria negação da pessoa humana comovalor-fonte da experiência jurídica em prol da sacrali-zação da liberdade individual.

O recrudescimento da violência psicológico no tra-balho – fruto da corrosão do caráter – promovida pelaflexibilização que precariza as relações sociais e pelosmétodos de gerenciamento voltados para enaltecer oindividualismo egoísta, prova a necessidade de se en-frentar a questão do agigantamento do poder privado,tomando-se em consideração as múltiplas dimensõesda liberdade, reconhecendo a insuficiência do prima-do da autonomia privada como critério exclusivo e ex-cludente de aferição dos atos ilícitos, sob pena de sepreservar a imunidade desses poderes, privando degarantias efetivas os que têm a sua liberdade injusta-mente violada.

Aqueles que ainda “vêem os direitos fundamentaisexclusivamente como direitos subjetivos públicos emdetrimento da concepção dos direitos subjetivos priva-dos representam uma ‘moral jurídica cindida’, pois nãose pode admitir que na vida privada as pessoas pos-sam ser tratadas como se não fossem seres humanos,porque isso implicaria na negação do axioma antropo-lógico que serve de fundamento à própria idéia de di-reitos fundamentais. Por isso, a dignidade humanaenquanto conteúdo essencial absoluto do direito, nun-ca pode ser afetada: essa é a garantia mínimo que sepode deduzir da constituição”.24

A proteção da dignidade do trabalhador brasileirotambém se encontra encartada na CLT, que dispõeexaustivamente sobre as hipóteses de justa causa doempregador (art. 483, alíneas de “a” a “g”). Conce-deu-se ao empregado a possibilidade de resistência,frente ao abuso de poder do empregador, ou o poderde rescindir o contrato e receber a indenização. A nor-ma celetista não cuida de outra coisa senão de direi-tos fundamentais dos trabalhadores, neles incluindodireitos prestacionais, alínea “g”. Diante do atual con-texto, todavia, soa ingênua a norma que pretendeigualar empregado e empregador na faculdade de

romper o contrato por justa causa. Por outro lado, ojus resistentiae do empregado brasileiro inexiste, mor-mente, se a Convenção 158 da OIT foi denunciadapelo governo passado.

Não obstante, uma variada gama de direitos de cré-ditos dos trabalhadores tenham sido guindados à cate-goria de direitos fundamentais (C. Federal, art. 7o eincisos), sem a garantia do emprego, todas as normasde proteção, até mesmo aquelas voltadas à proteçãode direitos fundamentais, se fragilizam e perdem efi-cácia. Talvez, partindo-se da leitura do § 1o do art. 5o

da C. Federal, seja adequada uma aplicação da teoriada Drittwirkung, facultando-se ao trabalhador o direi-to de se manter no emprego e não ser molestado emsua dignidade. Assim, podendo requerer ao juiz quefaça cessar os atos atentatórios ao livre desenvolvimen-to de sua personalidade no trabalho, dessa forma dar-se-á consistência substancial aos arts. 12 e 21 do atualCódigo Civil. Afinal, em termos de direitos fundamen-tais, mais vale prevenir do que reparar.

5. A Teoria da “Drittwirkung”

5.1. Origens. DefiniçãoOs direitos fundamentais foram concebidos primei-

ramente como direitos de defesa do indivíduo contra oEstado, isto é, direitos reflexos que têm sua origem noprocesso de autolimitação do Estado. O Código Civilsurge como verdadeira “carta constitucional” em de-fesa da autonomia privada e da liberdade de contra-tar, eixos da regulação das relações interprivadas. In-teressante notar, como de sorte já constataram reno-mados constitucionalistas, que o Estado Absoluto, de-vido às constantes intervenções do príncipe na esferajurídico-patrimonial dos súditos, não oferecia ambien-te favorável ao desenvolvimento da economia, namedida em que afetava a calculabilidade do desen-volvimento econômico e do lucro.25

Conforme vimos, precedentemente, a primeira ge-ração dos direitos humanos é de natureza negativa,de omissão e oponível aos poderes públicos. Se a pri-meira geração se constitui em direitos de defesa; asegunda contempla os direitos sociais e exigem do es-tado uma ação positiva. Poucas categorias jurídicas,portanto, se mostram tão permeáveis à evolução dosparadigmas culturais como a dos direitos fundamen-tais. Mergulhados numa realidade cambiante, hoje,os direitos fundamentais já não se contêm no paradig-ma da autonomia privada do estado liberal e recla-

2 4 GÜNTHER DÜRIG. Conf. JUAN MARIA BILBAO UBILLO, in La Eficacia de los Derechos Fundamentales frente a Particulares. Notade rodapé, pág. 265.

2 5 JULIO CÉSAR FINGER, pág. 87.

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mam aplicação e eficácia também contra particulares,é o que prega a teoria conhecida por Drittwirkung ouda eficácia horizontal ou, melhor ainda, da “eficáciados direitos fundamentais nas relações entre particula-res”, conforme preferem renomados doutrinadores.26

A doutrina da “Drittwirkung der Grundrechte”, ouda eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas-ceu na Alemanha, na década de 50, e foi formuladapor Hans Carl Nipperdey, juiz e prestigioso especialistaem direito civil e do trabalho. A teoria de Nipperdeyparte da constatação de que na sociedade modernadeterminados grupos dispõem de poder social e eco-nômico capaz de afetar intensamente as relações in-terprivadas e os direitos e interesses essenciais dos in-divíduos. A teoria da Drittwirkung não apenas rece-beu calorosa recepção dos constitucionalista alemãescomo também foi recepcionada pela jurisprudência doTribunal Federal e do Trabalho daquele país.

Nipperdey distingue na Lei Fundamental aqueles di-reitos como a liberdade de circulação, de reunião, ainviolabilidade do domicílio, o direito de asilo e autode-terminação dos povos, que vinculam tão somente o Es-tado, mas ressalta a existência de outros preceitos quereconhecem direitos fundamentais e que garantem acada cidadão um “status social”, uma esfera de liber-dade constitucionalmente protegida frente aos social-mente potentes. Entre esses preceitos menciona a dig-nidade humana, o livre desenvolvimento da personali-dade, a liberdade de expressão, o princípio de igualda-de salarial entre homens e mulheres, a proibição de dis-criminação, a liberdade de consciência, a liberdade deassociação e o segredo das comunicações27.

A teoria da “ Drittwirkung” de direitos fundamentaisé construção da ciência jurídica alemã, mas vem sendoacolhida por significativa parcela de juristas da Itália,Espanha e Portugal, Bélgica, Holanda, Áustria, Suíça,Japão e África do Sul. Atualmente, conforme sintetizaIngo W. Sarlet, essa teoria se enquadra de modo singularna discussão da denominada constitucionalização doDireito Privado, que por sua vez decorre do reconheci-mento da existência de normas “jusfundamentais” tantona acepção material quanto formal, de cuja posição pri-vilegiada decorrem importantes conseqüências para o

problema da vinculação do poder público e dos particu-lares aos direitos fundamentais.28

5.2. O agigantamento do poderprivado e a teoria daDrittwirkung

A concepção liberal dos direitos e liberdades indivi-duais assenta-se no dogma da igualdade formal, deri-vada da autonomia da vontade. Diz-se que as rela-ções reguladas pelas normas de direito privado são,por definição, relações entre iguais, resultado do acor-do de vontades entre pessoas livres, enquanto as rela-ções nas quais intervém o Estado (trabalho, consumi-dor) se caracterizam como relações de dominação esubordinação. O princípio da autonomia privada seassenta na presunção jurídica da “igualdade formal”.Ocorre que essa presunção vem se esboroando dianteda perversa realidade do agigantamento crescente dopoder privado.

Valendo-se da principal questão levantada pelo filó-sofo Hans Jones, o sociólogo Zygmunt Baumann afir-ma que “a morte do conhecimento ético não pode seracusada dos efeitos globalmente perversos, a longoprazo e a longas distâncias do crescente potencial hu-mano de fazer as coisas e refazer o mundo. Na apura-ção dessa responsabilidade, deve-se conceder lugar dedestaque às forças de mercado cada vez maisdesregulamentadas, isentas de todo controle políticoeficaz e orientadas exclusivamente pelas pressões dacompetitividade”.29

Os grupos de pressão não se resumem apenas àstransnacionais, mas pululam em todos os setores davida social. Daí a constatação óbvia de que o poder jánão está concentrado no Estado, mas disperso por todaa sociedade, por essa razão não basta a proteção dosdireitos humanos frente apenas ao Estado. Ora, a de-sigualdade social gera a falta de liberdade, daí a cons-tatação de Juan Maria Bilbao Ubillos: “Os poderes pri-vados constituem uma ameaça para o gozo efetivodos direitos fundamentais, não menos inquietante quea representada pelo poder público”.30 Não podemosesquecer que foi precisamente o agigantamento do

2 6 Juan Maria Bilbao Ubillos e Ingo Wolfgang Sarlet criticam a expressão “eficácia horizontal”, porque a relação entre uma pessoa submetidaao poder de uma “autoridade privada” tem caráter vertical e quando a relação é horizontal tem-se verdadeira colisão de direitos.

2 7 Conf. J.M.B. UBILLOS, nota de rodapé, pág. 271.2 8 “Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”.

In A Constituição Concretizada, pág. 154.2 9 Ilustrando sua afirmação, o autor nos fornece dados eloqüentes do poder das corporações: “o mero tamanho dos principais atores nos

mercados globais, atualmente, excede em alto grau a capacidade de interferência da maioria, se não de todos, os governos de estado eleitos — essasforças receptivas, pelo menos em princípio, à persuasão ética. Em 1992, a General Motors teve uma movimentação anual de U$ 132,4 bilhões, aExxon de US$ 155,7 bilhões, a Royal Dutch-Shell de US$ 99,6 bilhões, contra o produto nacional bruto de US$ 123,5 bilhões da Dinamarca,US$ 112,9 bilhões da Noruega, US$ 83,8 bilhões da Polônia e US$ 33,5 bilhões do Egito”. In O Mal-Estar na Pós-Modernidade, pág. 74.

3 0 Ob. citada, pág. 243.

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estado e a franca ameaça aos direitos fundamentaisque propiciou a construção da responsabilidade civilobjetiva vertical.

Segundo a definição de Lombardi – citado por BilbaoUbillos – o poder privado surge como tal naquelas si-tuações caracterizadas por uma “disparidade substan-cial entre as partes”. A ausência de uma igualdadereal permite que a parte, que por razões econômicasou sociais se encontre em posição dominante, condi-cione a decisão da parte fraca. Quando esta posiçãodominante se institucionaliza, acrescenta Lombardi,estamos na presença de um poder de “supremaciaprivada”, que assume a relevância social de um ver-dadeiro “poder de instância pública”, subjugando acontraparte inteiramente indefesa.31

No mundo do trabalho, a organização econômicada empresa e a estrutura hierárquica criam por si sóuma situação de poder e correlativamente outra desujeição. O poder diretivo e disciplinar do empregadorconsiste numa ameaça potencial para os direitos fun-damentais do trabalhador. Além disso, ressalta Um-berto Rumongoli que, “a autoridade empresarial nãose fundamenta unicamente na lógica do contrato. Asupremacia do empregador (e a conseqüente subordi-nação do trabalhador) preexiste ao contrato e faz queo consentimento contratual não seja completamentelivre e espontâneo”.32 Por razões óbvias a origem e ofecundo desenvolvimento da teoria da Drittwirgunkdos direitos fundamentais teve como cenário o campodas relações trabalhistas.

A primeira sentença acolhendo a teoria dos direitosfundamentais privados versou sobre um caso de Direitodo Trabalho. A demandante era uma jovem estagiáriaque trabalhava em um hospital para formar-se em en-fermagem. O contrato de trabalho e formação previaque, em caso de matrimônio, o empregador podia res-cindir o contrato. Por força dessa cláusula, a jovem foidespedida depois de contrair núpcias. Em sua defesa,perante o Tribunal Federal Alemão, a demandante ale-gou que a despedida violava seus direitos fundamentaisprevistos no art. 6 (proteção ao matrimônio e à família)e § 1° do art. 1° da Constituição (livre desenvolvimentoda personalidade). O Tribunal decidiu a demanda emfamosa sentença de 5 de maio de 1957 e declarou nulaa cláusula contratual em questão por vulnerar os direi-tos fundamentais da demandante.

O Direito do Trabalho não se constitui num simples

feixe de direitos prestacionais destinados a manter vivoo prestador. É ignominioso separar a condição geralde cidadão da condição de trabalhador subordinado ea reprovação dessa injusta dicotomia se fortalece coma invasão da constituição e dos direitos fundamentaisnas fábricas. Um exemplo de norma nesse sentido é oEstatuto dos Trabalhadores italianos, que proíbe todoe qualquer controle oculto dos trabalhadores e obrigao empregador a dar conhecimento dos nomes e dasfunções do pessoal da vigilância e ajustar previamentecom os representantes sindicais a possibilidade de im-plantação de equipamentos eletrônicos de controle adistância, assim tutelando o direito à intimidade e ex-cluindo a possibilidade de controle do tipo policialescoou de espionagem.

5.3. Crítica à Drittwirkung

5.3.1. Direitos Fundamentais eDireitos da Personalidade

A essa altura, o leitor perplexo deve estar se per-guntando: a doutrina da Drittwirkung não seria supér-flua, na medida em que a divisão direitos subjetivospúblicos e direitos da personalidade está bem assenta-da há mais de um século e respondendo razoavelmen-te às necessidades cotidianas do tráfico jurídico? Sa-bemos que, em direito, o supérfluo é errôneo. Comojá dissemos, o Código Civil nasceu como verdadeiraconstituição, dique eficaz – em dado momento históri-co – na defesa das liberdades individuais contra a ex-pansão do Estado. Os direitos à intimidade própria eda família, à honra, à imagem, são direitos personalís-simos criados originalmente na esfera civil, mas foramelevados à categoria de direitos fundamentais por obrado constituinte, e isso, em direito, equivale a uma re-volução copernicana.33

No tempo presente, já não se pode continuar man-tendo a clássica divisão de que os direitos da persona-lidade operam no espaço do direito privado e que osdireitos fundamentais regem as relações entre os indi-víduos e os poderes públicos. A se manter esta“esquizofrênica” concepção, sublinha Bilbao Ubillos,“a garantia da intimidade joga frente ao estado comodireitos fundamentais, mas frente ao vizinho usurpadorou ao empregador opera como simples direito de per-sonalidade”.34

3 1 Ob. citada, pág. 245.3 2 Conf. JUAN MARIA BILBAO UBILLOS, ob. citada, nota de rodapé, pág. 246.3 3 Quem primeiro empregou essa expressão foi Kant ao se referir à revolução de Copérnico – que rompeu com o geocentrismo (terra) e

concebeu a teoria do heliocentrismo (sol) – colocando no centro da discussão filosófica a razão.3 4 Ob. citada, pág 731.

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Em número decrescente, contudo, alguns autoresainda negam a concepção da eficácia dos direitos fun-damentais frente a particulares. Acreditam que, paraos direitos fundamentais cumprirem sua função, não énecessário renunciar a sua configuração como simpleslimite ao poder do Estado, pois admitir o contrário tra-ria insegurança ao tráfico jurídico e até mesmo levariaà dissolução da Constituição. Esses críticos defendema coerência e harmonia entre as normas de garantiasdas liberdades e as normas que protegem a personali-dade, mas advertem que as disposições do Direito Ci-vil que protegem os direitos individuais têm caráterexaustivo, cuja regulação completa e detalhada nãonecessita de acudir às garantias constitucionais.

Relevante assinalar que o fundamento central dascríticas à teoria da Drittwirkung se assenta no temor dadegradação do princípio da autonomia privada, critérioexclusivo e excludente para aferir a licitude dos atosprivados. Veja-se o que afirma um dos mais severos crí-ticos da Drittwirkung: “a irrupção dos direitos garanti-dos diretamente pela constituição nesse marco de pazsocial e liberdade seria perturbadora, produziria‘entrecruzamentos e colisões’ e, em última instância,uma ‘inflação protetora’. Há que resolver os possíveisconflitos dentro do espírito próprio do Direito Civil”.35

A jurisprudência nacional é celeiro da utilização docritério da autonomia privada para aferir a licitude dosatos privados. Em 1991 – contamos com as escusas doleitor pela ausência de pesquisa mais atualizada – oJuiz Sergio de Souza Verani, da 37a Vara Criminal do Riode Janeiro, condenou a empresa De Millus S/A Indústriae Comércio a elevada multa por incorrer na prática decrime de constrangimento ilegal, ao submeter cerca de3 mil operárias a revistas íntimas periódicas.36

Segundo reportagem noticiada na revista Veja, asoperárias eram encaminhadas a cabines sem cortina,em grupos de trinta, e recebiam instruções para levan-tar as saias e blusas ou abaixar as calças compridas, afim de que fossem examinadas as etiquetas das peçasíntimas e, quando ocorria estarem menstruadas, de-veriam mostrar a ponta do absorvente higiênico paraprovar que não havia peças escondidas ali.

Mesmo depois dessa decisão e da pública divulga-ção dos fatos pelos meios de comunicação em todo opaís, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao apre-ciar ação ajuizada por Marilene de Almeida Silva con-tra De Millus S/A Indústria e Comércio, entendeu que

não havia dano moral na hipótese de revista íntima,motivando assim a decisão:

“A inspeção pessoal per se, é expediente legítimo,corriqueiro em determinados estabelecimentos indus-triais, adotado com prévio conhecimento dos empre-gados, estando essa legitimidade na observância dosprocedimentos normais, desenvolvido com discrição eindiscriminadamente, preservado o devido respeito aoser humano, não consistindo, conseqüentemente, emato abusivo” (TJRJ Ac. Unânime. 1a Câm. Civil. Ap.5.365/94. Reg. Em 27/09/95. Des. Sérgio Fabião).37

Na província trabalhista é dominante a doutrina quese assenta no princípio da autonomia privada comocritério na aferição da ilicitude dos atos, sobrelevandoo capital em detrimento dos direitos fundamentais.Prova disso é a admissão, quase sem reservas, da re-vista e vigilância pessoal no local de trabalho. A força,infelizmente, dessa doutrina é contagiante conformepodemos sentir na atitude do Ministério Público do Tra-balho, ao apurar denúncia de grave violação da inti-midade dos trabalhadores nas Lojas Americanas for-mulada pelo Sindicato dos Empregados.

Após as diligências, o MP, através da portaria 9 de23/01/96, decidiu arquivar o Inquérito Civil Público,reconhecendo a regularidade de uma Norma de Ope-ração Interna da Empresa. A norma impõe a revistados empregados na saída do estabelecimento desdeque sejam “sorteados”. A revista consiste em mostraro conteúdo dos bolsos e da bolsa, retirar os sapatos,levantar a bainha da calça até a altura dos joelhos,abrir o cinto e a calça, levantar a camisa ou a mangae soltar os cabelos. Os fatos provam apenas a escassasensibilidade da nossa cultura jurídica no que toca aorespeito à intimidade dos trabalhadores e a importân-cia dos estudos sobre a Drittwirkung.

Os defensores da Drittwirkung ressaltam a singularvinculação dos convênios coletivos de trabalho aos di-reitos fundamentais. Na Espanha, o Tribunal Constitu-cional tem proferido decisões assinalando que as con-venções coletivas, assim como outros atos privados,podem violar os direitos fundamentais.38 Além disso,reconhecem que a vinculação das convenções coleti-vas aos direitos fundamentais pressupõe necessaria-mente o reconhecimento da vigência desses mesmosdireitos na esfera das relações jurídico-privadas.

Bastante desenvolvida encontra-se a jurisprudência doTCE acerca da proteção à liberdade de expressão e infor-

3 5 J.M.PABÓN ACUÑA, citado por BILBAO UBILLOS, ob. citada, pág. 283.3 6 ALICE MONTEIRO DE BARROS – Proteção à Intimidade do Empregado, LTr, pág. 76.3 7 ALICE MONTEIRO DE BARROS, ob. citada, pág. 76.3 8 O Tribunal Constitucional da Alemanha, na famosa decisão proferida no caso Lüth, afirma que “os tribunais civis podem lesar o direito

fundamental de livre manifestação de opinião, aplicando regras de direito privado”. Ver INGO W. SARLET, pág. 124.

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mação nas relações de trabalho. Em julgamentos maisrecentes, esse Tribunal deixou claro que no exercício dessedireito é necessário que haja um objeto laboral das críticase um conteúdo não ofensivo para o empregador. Igualmen-te desenvolvida encontra-se a jurisprudência espanholaquanto à efetiva proteção à liberdade sindical, a intimi-dade e a não discriminação por sexo e por idade 39

5.4. Eficácia mediata ou imediataA Constituição brasileira não menciona – como o

faz a portuguesa – a vinculação dos entes privadoscom os direitos fundamentais – como de resto não ofazem a espanhola, a italiana e a alemã. O § 1o doart. 5o, todavia, dispõe que as normas definidoras dosdireitos fundamentais têm eficácia imediata. Comovemos, não há uma palavra sequer sobre a vinculaçãodo estado a esses direitos, mas ninguém em sã cons-ciência é capaz de colocar em dúvida responsabilida-de dos poderes públicos (executivo, legislativo e judi-ciário) com os direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais constituem uma concreti-zação do princípio da dignidade humana, por essa ra-zão diz-se que todas as normas de direitos fundamen-tais, no que tange ao conteúdo humano, vinculam oestado e os particulares. Em outras palavras, ao seadmitir que, os direitos fundamentais, na constituiçãobrasileira, encontram seu fundamento na dignidade dapessoa, obriga a todos (estado e particulares). Alémdisso, há, ainda, aqueles direitos de caráter social, pre-vistos no art. 7° e incisos, que expressamente vincu-lam os empregadores.

A teoria da eficácia mediata ou indireta condicionaa efetividade dos direitos fundamentais a uma inter-mediação de um dos órgãos do Estado (legislativo oujudiciário). Exige-se concretamente a intervenção dolegislador ou a recepção através do juiz, no momentode interpretar a norma aplicável ao caso. Uma varian-te dessa teoria é a assim denominada da “convergên-cia estatista.” Essa teoria nega a relevância da diver-gência entre a teoria da eficácia imediata e mediata,pois sustenta que a atuação dos particulares no tráficoprivado é sempre produto da autorização do estado,portanto, cabe a este proteger os direitos fundamen-tais em geral, de modo que o problema da eficáciados direitos fundamentais em relação a terceiros émeramente aparente.

A doutrina da “convergência estatista” tem corres-

pondência com o state action de procedência norte-americana. Muito embora nos Estados Unidos preva-leça inteiramente o dogma do Estado liberal de que osdireitos fundamentais são direitos subjetivos públicos,a jurisprudência tem reconhecido a oponibilidade dosdireitos fundamentais frente a particulares em duassituações: a) quando um particular ou entidade priva-da exerce função estatal típica; b) quando existempontos de contato e aspectos comuns suficientes paraque se possa imputar ao Estado a responsabilidadepela conduta oriunda do particular.

A doutrina da eficácia imediata parte da idéia deque os direitos fundamentais rechaça a dicotomiaoriunda do liberalismo entre Direito Público e Privado,como também o dogma da igualdade formal proveni-ente do paradigma da autonomia privada. Segundoum dos seus mais fervorosos defensores, Juan MariaBilbao Ubillos, “é a norma constitucional a que se apli-ca como “razão primária e justificadora” (não é ne-cessariamente a única) de uma determinada decisão.Essa norma fundamental não se aplica como “regrahermenêutica, e sim como norma de comportamentoapta para incidir também no conteúdo das relaçõesentre particulares”.40

Segundo esse autor, “o direito cujo reconhecimen-to depende do legislador não é um direito fundamen-tal. Os direitos fundamentais se distinguem precisa-mente por sua indisponibilidade pelo legislador”.41 Asnormas de direito fundamentais regem-se pelo princí-pio da máxima eficácia, daí porque a teoria da eficá-cia mediata é inteiramente equivocada. Explica emseguida, o mesmo autor que, a existência de uma nor-ma infraconstitucional que reitera expressamente oprincípio enunciado na constituição não é óbice paraque se possa falar de aplicação direta da norma cons-titucional e de eficácia imediata do direito fundamen-tal, indica apenas que, neste caso, a função do legis-lador é meramente declarativa e não constitutiva.42

Importa ressaltar que a polêmica quanto à eficáciaresulta, antes de tudo, da acolhida pela grande maio-ria da doutrina da teoria da Drittwirkung. Como sóiacontecer também no direito, a discussão é filtradapor posições político-ideológicas. De acordo com osabalizados esclarecimentos de Ingo Wolfgang Sarlet43,a concepção que defende a eficácia direta filia-se àidéia política na defesa de um “constitucionalismo daigualdade”, e busca dar efetividade ao sistema de

3 9 A respeito ver Derechos Fundamentales y Contrato de Trabajo – JOSÉ FERNÁNDEZ LOUSADA AROCHENA e MATIAS MOVILLAGARCIA (org.), Editorial Comares, 1998.

4 0 Obra citada, pág. 327.4 1 Obra citada, pág. 297.4 2 Idem ibdem.

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garantias fundamentais dentro do Estado Social deDireitos. Já os que defendem a eficácia mediata, indi-reta, estão presos às idéias originárias do “constitucio-nalismo de inspiração liberal-burguesa”.

6. Efeitos da Drittwirkung

6.1. Mobbing, dano existenciale interesse homogêneo

As primeiras sentenças proferidas pelo Tribunal doTrabalho de Turim desencadearam grande interessepelo estudo doutrinário do mobbing. Segundo essesestudos, para um correto enquadramento dos danosderivados do terror psicológico no trabalho, deve-separtir da noção doutrinária e jurisprudencial de danoexistencial.44

Entende-se por “dano existencial o conjunto de re-percussões de tipo relacional marcando negativamen-te a existência mesma do sujeito que é obrigado arenunciar às específicas relações do próprio ser e daprópria personalidade”.45

O terror psicológico reúne em si mesmo uma série deprejuízos na esfera existencial da pessoa que trabalha,tanto podendo ser a causa direta ou a concausa de gra-ves lesões à saúde da vítima. O rebaixamento de funçãoou a mortificante inatividade, a derrisão, o assédio se-xual, as sanções disciplinares injustas, as visitas fiscaisreiteradas, a vigilância abusiva, a sujeição humilhante ediscriminatória, a solidão proveniente da segregação edo isolamento físico ou decorrente do comportamentoindiferente ou de franca rejeição dos colegas, atingemem cheio a espontaneidade – a mais elementar expres-são da liberdade humana – e com isso a pluralidade, adiversidade, a esperança e a alegria de viver, provocandoa depressão e o desgaste psicofísico.

Na Itália distinguem-se cinco modalidades de danopossíveis de ocorrer numa situação de mobbing. Danopatrimonial, dano moral (injúria, calúnia, difamação),dano biológico46 (psíquico), dano à vida de relações edano existencial. Assim, no mobbing, ao lado do dano

patrimonial, do dano moral47, do dano biológico oupsíquico temos, ainda, o dano existencial e o dano àvida de relações. O dano existencial é compreendidocomo conseqüência do dano psíquico, como dano “da-quilo que a pessoa é e não como dano daquilo que apessoa tem”. A tese tem o respaldo da jurisprudênciaitaliana conforme podemos ver em seguida:

“A negação ou o impedimento ao desenvolvimen-to das funções no trabalho ou o rebaixamento profis-sional, redundam em lesão do direito fundamental àlivre explicação da personalidade do trabalhador tam-bém no lugar de trabalho, determinando um prejuízoque incide sobre a vida profissional e de relações dointeressado, com uma indubitável dimensão patrimo-nial que ocasiona o mesmo prejuízo suscetível de res-sarcimento e de avaliação também na via eqüitativa”(Cass. Seção n. 10 de janeiro de 2002 – Pré. E Mercú-rio – Rel. G Coletti De Cesare – P.M R. Finocchi (Conf.)Perna c. Raí Radiotelevisione Italiana. In Diritto e Pra-tica Del Lavoro ORO n. 2/2002, pág. 172).

“O rebaixamento profissional de um trabalhadornão apenas viola a específica proibição de que fala oart. 2.103 do Código Civil, mas dá lugar a uma plura-lidade de prejuízos apenas em parte incidentes sobrea potencialidade econômica do dependente e consti-tui também lesão a direito fundamental à livre expli-cação da personalidade no posto de trabalho, com aconseqüência que ao prejuízo correlato a tal lesão, queincide sobre a vida profissional e de relações do inte-ressado, vai reconhecida uma indubitável dimensãopatrimonial que torna suscetível de ressarcimento e deavaliação também eqüitativa, ou na hipótese em quevenha a faltar a demonstração de um efetivo prejuízopatrimonial, segundo quanto previsto no art. 1.226 docc.” (Cassação seção lavoro, n. 13033 de 23 de outu-bro de 2001 – Pres. Saggio – Rel. Mileo – Fiorucci Spac. Arturo Tronti).Idem Ibdem.

Devemos recordar o fato de que, assim como o ge-nocídio não foi apenas um crime contra o povo judeu,mas um crime contra a humanidade, o terror psicoló-gico no trabalho atinge direitos e interesses de todos

4 3 Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, pág.147.

4 4 A noção de dano existencial vem sendo ampliada pela jurisprudência italiana, que terminou por caracterizar a tutela ressarcitória de todosos aspectos existenciais da dimensão humana, com particular consideração à nova categoria dos direitos fundamentais. Veja-se PIERLUIGIRAUSEI, ob. Citada, pág. 55 e nota de rodapé 29. O autor se apóia nos estudos de L. GRECO (Il Bene Giuridico Leso, hp.www.guidalavoro.it); U. OLIVA (Mobbing, Quale Rissarcimento?); G. CRICENTI (Il danno non patrimoniali, Cedam, Padova, 1999);L. ZIVIZ (La tutela rissarcitoria della persona, Giuffré, Milano 1999).

4 5 Conf. PIERLUIGI RAUSEI, in Diritto e Pratica del Lavoro – 3/2002, pág. 55.4 6 O dano biológico é definido pelo D. Lgs./38200 para efeito de tutela pelo INAIL e art. 5° da Lei 57/2001 como sendo “a lesão à integridade

psicofísica suscetível de avaliação médico-legal da pessoa”. HARALD EGE “La Valutazione Peritale del Danno da Mobbing”, pág. 169.4 7 No Brasil, PAULO EDUARDO V. OLIVEIRA defende que a expressão dano pessoal é mais adequada para o dano moral e, fiel à teoria

dos direitos personalíssimos, referindo-se sobre o dano existencial, afirma que não há razão para se invocar um tertium genus, pois qualquerdano que afete a integridade psicofísica, intelectual ou moral, é dano pessoal. In “O Dano Pessoal no Direito do Trabalho”, pág. 35.

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os trabalhadores envolvidos na organização onde osujeito perverso atua. Acreditamos que, numa situa-ção de assédio moral no trabalho, existem interesseshomogêneos em jogo, e o grupo vitimizado pode legi-timamente invocar reparação de danos nos moldesdescritos na Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990, art.81, III – interesse individual homogêneo.

Segundo a doutrina, três aspectos caracterizam osinteresses individuais homogêneos: existem enquanto umfeixe de interesses individuais; os titulares são determi-nados; e os interesses têm origem comum, ou seja, alesão é idêntica e o causador dela também. A ação dosujeito perverso pode saturar o ambiente de trabalho aponto de todas as pessoas que ali trabalhem sentiremos efeitos nocivos da violência; e, se não se acumpli-ciarem com o perverso, são contagiadas pelo clima do-entio e pervertido que passa a imperar. Nesse caso, alegitimidade para ajuizar ação de reparação de interes-ses homogêneos tanto é do grupo vitimizado, quantodo sindicato, quanto do Ministério Público.

Acreditamos que a elevação dos direitos da perso-nalidade ao status de direitos fundamentais, a relativi-zação do primado da autonomia privada como critériopara se aferir à ilicitude dos atos nas relações interpri-vadas, a substituição do dogma da igualdade formalpelo da igualdade real, legitimam a invocação tantodo dano existencial quanto do dano de relacionamen-to, e o psicoterror está aí para demonstrar que sãodanos que resultam da violação de direitos subjetivosda pessoa, indenizáveis, garantidos constitucionalmen-te e dirigidos contra todos em face da aplicação dateoria da vinculação dos entes privados para com osdireitos fundamentais da pessoa humana e do traba-lhador em particular.

6.2. Inversão do ônus da provaPara a vítima de mobbing é muito difícil fazer a

prova do nexo etiológico entre o dano e a conduta dosujeito perverso, na medida em que o dano do terrorpsicológico deriva de um conjunto de comportamen-tos de reduzida dimensão no espaço e no tempo, seapreciados singularmente, mas de gravidade inimagi-nável se apreciados sob a ótica da continuidade, deatos programados em série e por isso idôneos paracaracterizar a conduta repetida de assédio moral. Nodano de mobbing não há uma multiplicidade de cau-sas, mas uma única causa. Se a vítima possuía algumapredisposição para determinada doença, agravada

pelos ataques de mobbing” isso é irrelevante, confor-me decidiu o Tribunal de 1° grau de Turim.48

Sabemos que orientação quanto a repartição doônus da prova advém do dogma da igualdade formal.A doutrina da “complexidade agregada” orienta queas normas do direito civil devem ser aplicadas no pro-cesso do trabalho com respeito às singularidades eprincípios desse direito. Uma conseqüência, porém, daeficácia da Drittwirkung é a inversão do ônus da pro-va, já que implica na relativização do princípio da au-tonomia privada e da substituição do dogma da igual-dade formal pelo da igualdade real.49

Dando provas de sensibilidade à moderna visão te-leológica e instrumentalista do processo, o legisladorfrancês, através da lei de modernização do trabalho,que define o assédio moral e as hipóteses de sanção,recentemente aprovada, adotou o princípio da inver-são do ônus da prova; assim, diante da verossimilhan-ça das alegações cabe ao agente provar sua inocênciaem relação àqueles fatos. Cremos que essa condutado legislador francês está em consonância com a dou-trina da prevalência dos direitos fundamentais da pes-soa humana em contraposição ao agigantamento dopoder privado e ao enfraquecimento do primado daliberdade individual.

7. Ética nas organizações

7.1. ConstataçõesEm 17 de janeiro de 2000, o diretor de Recursos

Humanos da Electrolux Zanussi (multinacional alemãdo setor de eletrodomésticos), instalada no Veneto,em entrevista concedida à tevê italiana Rai 2, fez aseguinte afirmação: “a marginalização e o isolamentodecorrente do mobbing deveriam ser consideradoscomo medidas fisiológicas e admitidas como mal me-nor, num país, como a Itália, no qual a dispensa discri-cionária e indenizada não é permitida”.50 Em marçode 2003, o jornal L‘Azione publica que a mesmaZanussi é a primeira empresa do Nordeste Italiano aadotar um código de ética!

Segundo explica o número um da empresa, HansStraberg, “uma contínua inovação por uma vida maissimples e prazerosa, esforçando-se de antecipar ossonhos e desejos e a necessidade dos clientes, respei-tando a todo o momento o ambiente, encorajando umcrescimento sustentável, prestando a devida atençãoao desenvolvimento do nosso pessoal a fim de criar

4 8 “A Constituição no seu art. 32 e o art. 2.087 do CC tutelam todos os cidadãos sem distinção, sejam eles fortes e capazes de resistirem às prevaricações,sejam eles mais fracos e estejam destinados a sucumbir antes do tempo”. In Terror Psicológico no Trabalho, pág. 161.

4 9 O Código do Consumidor, Lei 8.078/90 admite a inversão do ônus da prova, art. 6°, VIII.5 0 MÁRCIA NOVAES GUEDES, ob.citada, pág. 78.

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enorme valor agregado que somente homens e mu-lheres que se sintam escutados e respeitados podemtrazer a uma enorme empresa global como aElectrolux” 51. Um mês antes, a Unidustria de Treviso jáhavia promovido a adoção do balanço socioambientalcom o objetivo de difundir nas empresas associadas eno território (Nordeste Italiano) os princípios da res-ponsabilidade ética e social das empresas.

O mobbing é uma epidemia contaminando as rela-ções de trabalho tanto na administração pública quan-to na iniciativa privada, e acreditamos que no Brasilesse quadro é particularmente agravado por nossaherança cultural, haurida no “patrimonialismo” e per-meada pela “cordialidade”52. O Instituto Ethos, criadopor um grupo de empresários brasileiros, realiza umaconferência anual visando fortalecer o movimento na-cional de RSE – Responsabilidade Social Empresarial,que segundo seus organizadores é mais que a simplesação social53. A Responsabilidade Empresarial é a for-ma ética pela qual as empresas se relacionam comseus diversos públicos. O RSE deve estar no DNA daempresa, afirma o Diretor-executivo da FundaçãoTelemig Celular, Francisco de Assis Azevedo em en-trevista divulgada no site www.ethos.org.br54.

Em meio a essa profusão de projetos éticos e com-portamentos politicamente corretos, é preciso separaro joio do trigo. O mundo dos negócios é sensível acampanhas vazias, ao marketing de fachada e nãofaltam os que buscam apenas se aproveitar de idéiasbem intencionadas para vender e lucrar mais. O fato,todavia, vem sendo acompanhado de perto pela Anis-tia Internacional, que, inusitadamente, assegura quehoje as empresas são sempre mais consideradas res-ponsáveis pelo próprio comportamento nos confrontoscom os dependentes e o meio ambiente e tambémsobre o plano das normas internacionais originariamen-te endereçadas aos estados55.

De acordo com o documento publicado pela AnistiaInternaciol (Diritti Umani la Nuova Sfida per leImprese), o conjunto de referências que visam regularos comportamentos das empresas se torna cada vezmais intenso e complexo: por exemplo, a Comissão

para direitos humanos das Nações Unidas, coloca par-ticular ênfase sobre os direitos econômicos, sociais eculturais, incluindo o direito ao desenvolvimento de umpadrão de vida adequado. As Convenções da OIT, asdecisões do Conselho e do Parlamento Europeu de1999, assumem valores de referência operativo tam-bém sobre o plano local, a exemplo das Chec-list daConfederação das indústrias norueguesas.

Na Austrália se concede incentivos fiscais às em-presas “socialmente responsáveis”. Na Suécia incenti-vos à exportação são conferidos às empresas que res-peitam as regras estabelecidas pelo Ministério doMeio-ambiente. No Reino Unido, desde 03/06/00, háuma obrigação no sentido de que os fundos de pensãodemonstrem em que medida tomam em consideraçãovalores de caráter ético, social e ambiental no mo-mento de decidir sobre em qual empresa investir ascontribuições.

Sem dúvida, os direitos humanos estão se tornandoelemento chave no debate sobre a responsabilidade dasempresas e isso se deve ao aumento do número de in-vestidores e consumidores éticos. Inegável, por outrolado, a contribuição da revolução mediática. O amplouso da internet e o aumento do número de organiza-ções não governamentais dispostas a defender os direi-tos humanos vêm tornando cada vez mais difícil escon-der qualquer coisa do grande público. É notório o fatode que muitas ONGs vêm se tornando a voz de milharesde pessoas que pressionam a classe política e conse-guem introduzir novas e importantes providências noplano legislativo. Cresce o número de empresas quepublicam relatório ambiental e o balanço social.

A Anistia reconhece, entretanto, que as organizações,ainda, resistem duramente à Auditoria Social56 – verifi-cação externa e independente, a exemplo da E.T.I(Ethical Trading Initivative) e a SA8000, que dentre ou-tras coisas exigem da empresa providenciar um ambientede trabalho seguro e psicologicamente são, e adotarmedidas adequadas a fim de prevenir infortúnios e da-nos à saúde provocados, ligados e surgidos no ambientede trabalho, reduzindo ao mínimo, por quanto razoa-velmente praticável, as causas de risco no ambiente de

5 1 Domenica 30 março 2003.5 2 Ver ANDRÉ AGUIAR - Assédio Moral nas Organizações no Brasil, dissertação de mestrado onde o autor traça um quadro do fenômeno

a partir da nossa formação cultural esteado nos estudos de Raymundo Faoro e Sergio Buarque de Holanda, dentre outros.5 3 Paralelamente, o Governo brasileiro em parceria com a Anamatra, Ajufe, CPT (Comissão Pastoral da Terra) e o Ministério Público ainda

estão a braços na luta contra o trabalho escravo.5 4 Numa conversa franca entre executivos, alunos, professores e atores em seguida à exibição da peça “Executivos” (texto de Daniel Besse,

vencedora do Molliere e dirigida no Brasil por Eduardo T. Araujo), conduzida pelo professor do curso de MBA Jean Bartoli, entredesbafos e confissões de vários executivos das empresas Dow Química, Deloitte, GM, Citibank e Erikson, a controller financeira daAmBev, Viviane Valente, declarou: “fala-se muito de govrnança corporativa, mas há uma preocupação maior de a instituição ser e parecer corretado que se criar um relacionamento ético entre os funcionários”. Revista Carta Capital, 4/06/03, pág. 81.

5 5 Amnesty International – Diritti Umani, La Nuova Sfida Per Le Imprese.5 6 Diritti Umani. La Nuova Sfida per l’ Emprese. Amnesty International. Sezione italiana, pág. 63.

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trabalho, isso porque, em matéria de direitos humanosa transparência é um direito indisponível57.

Afora aquelas leis de defesa dos direitos trabalhis-tas que todas as empresas são obrigadas a respeita-rem com as singularidades de cada país, não há uminstrumento jurídico internacional eficaz que obrigueentes privados aos direitos fundamentais. O principalestandarte internacional de defesa dos direitos huma-nos ainda é a Declaração de 1948. A esta segue-se oPacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de1966 e o Pacto internacional sobre Direitos Econômi-cos, Culturais e Sociais. Mais recentemente a Conven-ção Européia sobre direitos humanos, reúne grandeparte dos direitos civis, políticos, culturais e sociais doPacto Internacional e é aplicada na Corte Européia dedireitos humanos de Strasburgo, cujos julgamentos sãoreconhecidos pela maioria dos países da Europa Oci-dental. Nenhum destes instrumentos, contudo, temforça vinculante.

Da parte da União Européia, a diretiva mais desen-volvida é a que trata da igualdade de oportunidades eproibição de discriminação por razão de sexo, contem-plada, inicialmente, no art. 119 do Pacto de Roma eposteriormente modificada no Tratado de Amsterdam.A nova redação, permitiu a incorporação de dois im-portantes preceitos, hauridos da doutrina do Tribunalde Justiça da UE: a “discriminação indireta”58 e a“ação positiva”. Quanto a esta última medida de igual-dade de oportunidades, os Tribunais Constitucionaisdos países membro esteiam suas decisões na Conven-ção das Nações Unidas sobre “Eliminação de todas asformas de discriminação contra a mulher” que, emseu art. 4.1, assinala que não se deve entender comodiscriminatórias “aquelas medidas especiais de cará-ter temporal, destinadas a acelerar a igualdade de fatoentre homens e mulheres”59.

A essa altura, o leitor intrigado deve estar se pergun-tando: estaria a teoria da “Drittwikung” da eficácia ho-rizontal dos direitos fundamentais bafejando a socieda-de com um efeito irradiante? Julgamos que o assunto

tem fortes imbricações com o tema aqui desenvolvido emerece reflexão séria e profunda da parte de estudio-sos de todos os matizes, inclusive dos juristas.

7.2. Ponto finalEsperamos ter conseguido demonstrar que a teoria

da Drittwirkung dos direitos fundamentais é uma ex-cepcional descoberta da ciência jurídica também paraa melhoria das relações de trabalho, porque permiteescapar do critério da autonomia privada na aferiçãodos atos ilícitos. Numa situação de terror psicológicono trabalho, que indubitavelmente é um conflito dedireitos fundamentais, essa teoria amplia a responsa-bilidade civil do empregador para além do dano patri-monial e moral (conflito-jurídico civil), admitindo odano biológico, existencial, de relacionamento e deinteresses homogêneos. Sufraga, seja no plano mate-rial, seja no formal (inversão do ônus da prova) umatutela mais eficaz na defesa do indivíduo e da coletivi-dade e na prevenção e combate dos pressupostos, ain-da que em grau microscópicos, mas nem por isso me-nos perigosos, de novas formas de totalitarismo.

Quanto aos códigos e posturas éticas das organiza-ções e a responsabilidade destas com os direitos funda-mentais, quisera não frustrar expectativas. Por um lado,temos um fato social de excepcional relevância para odireito que se traduz na tomada de consciência por umnúmero cada vez maior de organizações de que já nãopodem desempenhar suas atividades ignorando seu pa-pel social e político. Por outro lado, essa consciênciaética (no sentido empregado por Levinas, responsabili-dade com o Outro) constitui-se no ponto de fricção eunidade entre o judiciário e a sociedade, já que os direi-tos fundamentais vinculam todos, inclusive o judiciário.No mais, é preciso dizer com franqueza: chegamos aofim sem uma conclusão porque precisamos, como diz opoeta, “Chegar mais perto e contemplar as palavras/Cada uma tem mil faces secretas/ sob a face neutra/ eperguntar, sem interesse pela resposta/ Pobre ou terrí-vel, que deres/ trouxeste a chave?”.60

5 7 Muitas empresas brasileiras sequer observam a exigência da NR 7 e 9 não possuindo PCMSO (programa de controle médico ocupacio-nal) e o PPRA (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais), importantes estratégias concebidas pelo legislador infraconstitucionalpara prevenção dos infortúnios do trabalho, conforme anota Ana Paola Machado – dissertação de Mestrado – UFPE 2002. Mímeo.

5 8 O texto aprovado em 10/012/97 em seu art. 2° dipõe: “Para efeitos do princíio de igualdade de tratamento. existirá discriminação indiretaquando uma disposição, critério ou prática aprentemente neutra afete uma proporçao substancial maior de membros de um mesmo sexo, a menosque dita disposição, critério ou prática resultem adequados e necessário e possam jurstificar-se como critérios objetivos e que não estejam relacionadoscom o sexo”.

5 9 No Brasil aplica-se o preceito da “ação positiva” particularmente no sistema de quotas que facilita o acesso de pessoas negras nasuniversidades públicas.

6 0 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - “Procura da Poesia”.

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A teoria da desconsideração da personalidade jurí-dica, surgida no século XIX, em tribunais ingleses eamericanos, tornou-se um instrumento eficaz para coi-bir a utilização nociva da pessoa jurídica pelos seusintegrantes.

No Brasil, sua importância só passou a ser reconhecidaem meados do século XX, inicialmente, através do de-senvolvimento doutrinário e, logo, pela aplicação nostribunais. Aplicada pontualmente em diversos ramos doDireito, recentemente foi incorporada no ordenamento,como regra geral, para reger todos as relações jurídicas.É justamente por essa recente inclusão como norma doDireito Civil, que o presente trabalho busca, revendo oposicionamento doutrinário, trazer alguma contribuiçãoà discussão acerca do tema.

Com esse escopo, a presente monografia cujo tema éa desconsideração da personalidade jurídica frente aonovo Código Civil, tem como objetivo analisar a teoria,abordando a redação do instituto e sua aplicabilidade emface ao princípio da autonomia da pessoa jurídica.

Isto porque, embora relativamente nova, a teoriada desconsideração da personalidade jurídica temcomo característica primordial, o fato de conseguir re-lativizar um dos verdadeiros pilares da teoria do direi-to, que se fundamenta, seja no direito pátrio, seja nodireito estrangeiro, na distinção rígida entre, de umlado, a pessoa e o patrimônio da sociedade e, de ou-tro, as pessoas e os patrimônios dos sócios.

O fio condutor da pesquisa bibliográfica foi o de quea norma do Código Civil (CC, art. 50) tem total aplica-bilidade no Direito do Trabalho, havendo total ade-

LÍDICE DA COSTA MEDEIROS*

Desconsideração dapersonalidade jurídica

frente ao novo Código Civil1

quação da mesma aos princípios norteadores desseramo do direito.

Para desenvolvimento do trabalho optou-se pelométodo dialético, de modo a que não se perdesse apostura crítica diante do tema.

A monografia foi dividida didaticamente em capítu-los: pessoa jurídica; teoria da desconsideração da per-sonalidade jurídica e o abuso da personalidade e suascaracterísticas legais.

1. Pessoa jurídica

1.1. Aspectos IntrodutóriosA pessoa jurídica é o alvo central da teoria

desconsiderativa, de modo que, o presente capítulotrata de alguns aspectos relevantes relacionados àaplicação da teoria em estudo.

Procede-se, então, um levantamento histórico econceitual, apontando para seu surgimento no mundojurídico, bem como, produz-se uma breve abordagemsobre sua natureza jurídica, de modo a identificar oposicionamento adotado pelo direito pátrio. Por fim,leva-se a efeito, também, o desenvolvimento do prin-cípio da autonomia patrimonial, evidenciando sua re-latividade, capaz de permitir a existência de mecanis-mos legais de correção do mau uso da pessoa jurídica.

1.2. Notícia históricaNo Direito romano, no período pré-clássico, não se

admitia que entes abstratos fossem dotados de perso-nalidade, de modo que a eles era negada a capacida-

* Lídice da Costa Medeiros é Juíza do Trabalho aposentada pela 14ª Região.1 Texto classificado em 2º lugar no 3º Concurso de Monografias da Amatra II.

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de jurídica. Segundo Alves (s.d., p. 155) admitir queentes abstratos pudessem ser sujeitos de direitos sub-jetivos, à semelhança das pessoas físicas, requeriauma capacidade de abstração incompatível com aque-le momento jurídico. Entretanto, mesmo naquele pe-ríodo, certas associações de interesse público eramconhecidas, como universitates, sodalitates, corpora ecollegia.

Já no período pós-clássico, devido à crescente ne-cessidade de conjugar-se esforços para a consecuçãode certos objetivos, é que, timidamente, reconheceu-se que as corporações eram titulares de direito, pas-sando a se entender, conforme Impallomeni, citadopor Gomes (1992, p. 24), que “estas não se extingui-am com a morte de seus integrantes, desde que estesfossem substituídos”. Foi a codificação justinianéia queenriqueceu a pessoa jurídica, por força da influênciada Igreja, eis que igrejas, conventos, hospitais e esta-belecimentos pios, passaram a ser entendidos comoentidades corporificadas.

Os ensinamentos dos romanos desapareceram naAlta Idade Média e o Direito Germânico que passou aprevalecer não distinguia entre as associações e seusmembros, quanto à, entre outros, responsabilidade ci-vil e pessoal, à atribuição de bens, aos direitos de uso,à representação em juízo.

Na Idade Média vai se encontrar um fortalecimentoda concepção de pessoa ficta, por força da influênciados glosadores e do Direito Canônico. Aos glosadorescabe a primeira tentativa de sistematização, fixando-aem brocardos, como universitas nihil aliud est nisisingulis homines qui ibi sunt. Já os canonistas valeram-se do conceito de corporação ou universitas, redesco-berto pelos glosadores, transformando-o e chegando,por fim, num avanço institucional, à concepção depessoa ficta sive intellectuallis.

Assim, nesse período, constituíam figuras de pes-soas jurídicas, além dos institutos eclesiásticos (igre-jas, ordens e congregações), outros entes personifica-dos: universitates scholarium vel studiorum, academi-as, obras pias e estabelecimentos de caridade (causaepiae), confrarias leigas, instituições de crédito (ban-cos, câmaras de empréstimo, montes de piedade) esociedades de comércio.

É, entretanto, após a Revolução Francesa, com odesenvolvimento do liberalismo, que se organizam ascondições necessárias para a generalização da perso-nalidade societária. A política liberal, o direito indivi-dual, a revolução industrial, exigindo a concentraçãode grandes capitais e, por fim, a retirada do Estado doexercício das atividades econômicas, determinam2, nodireto privado, que se procedesse a distinção entre opatrimônio da sociedade e o patrimônio dos sócios quea compunham: é nesse contexto que se estende àpessoa jurídica os atributos que antes só eram conce-didos às pessoas físicas.

Ocorre que o conceito de pessoa jurídica, no signifi-cado de centro de imputação de direitos, poderes,obrigações etc., tal como afirma Catalano, tambémcitado por Gomes (1992, p. 25), é fruto característicoda dogmática dos séculos XIX e XX.

No Brasil, os entes personalizados que não foramreconhecidos no Código Comercial, de 1850, ganha-ram lugar no ordenamento jurídico através de dois di-plomas legais: primeiro, pelo Decreto n. 1.102, de 21de novembro de 1903, que instituía regras para os es-tabelecimentos dos armazéns gerais e, posteriormen-te, pela Lei n. 1.637, de 5 de janeiro de 1907, queconcedia personalidade civil aos sindicatos.

Finalmente, a normatização de 1916 incorporouessas entidades e, ao mesmo tempo que reconheciaserem as associações e sociedades comerciais dotadasde personalidade jurídica (art. 16), consagrava, expres-samente, a distinção entre a personalidade da pessoajurídica e a de seus membros (art. 20)3.

1.3. Denominações e conceitoA ordem jurídica é mais do que um sistema de nor-

mas. Relacionando-se aos fatos sociais que lhe dãoorigem, ela, longe de ser estática, é dinâmica, viva,pulsante, pois princípios, valores e fins incorporam-see se completam na norma. E, assim, no arcabouçojurídico, determinados institutos vão surgindo, se aper-feiçoando e até sendo extintos.

A pessoa jurídica surge quando determinados em-preendimentos tornam-se grandes para serem realiza-dos, determinado a necessidade da conjugação deesforços, que Venosa (1998, p. 171) denomina de

2 Santos (1980) entende que o estado capitalista opera como se fosse descomprometido, utilizando os instrumentos políticos parareproduzir as relações sociais de produção em condições sociais desiguais. Assim sendo produz leis que têm um discurso igualitário, masque no seu contradiscurso reproduzem a lógica do capital. Ou seja, a normatividade nada mais é do que o reflexo do pensamento e dosinteresses do poder dominante – e no Estado capitalista o poder dominante – é o poder econômico, no contexto da luta de classes.

3 Como antes da promulgação do CC, o rol de pessoas jurídicas não estava solidificado duas correntes acerca da conceituação depersonalidade jurídica se impuseram: a minimalista (liderada por Clóvis Beviláqua), que prevaleceu e, conforme Alberton (1993, p. 28),reduzia o número de regras, mas ampliava o reconhecimento da personalidade jurídica a todas as sociedades civis e comerciais, ou seja,“a qualquer grupamento ou entidade que satisfaça determinados requisitos”; a segunda, maximalista, fazia distinção entre corporações esociedade, negando personalidade jurídica às sociedades civis, sociedades em nome coletivo e sociedades em comandita simples.

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“uma polarização de atividades em torno do gruporeunido”, na medida em que “a premência de conju-gar esforços é tão inerente ao homem como a próprianecessidade de viver em sociedade”.

Entretanto, não é um simples aglomerado de pessoaspara a realização de uma atividade que determina osurgimento da pessoa jurídica: é imprescindível que ocor-ra tanto vinculação psíquica quanto jurídica entre seusmembros4, de modo que a vontade do coletivo seja diver-sa da vontade de seus membros, o que foi assinaladopelos romanos, segundo Planiol, Ripert e Boulanger(1950), no sentido de que societas distat a singulis.

Ludwig Enneccerus, por sua vez, aponta para o fatode que a necessidade sugeriu uniões permanentespara a obtenção de fins comuns. Essas uniões alcan-çavam tanto aquelas que tinham um raio de atividadeamplo (Estado, por exemplo) quanto as restritas, comoé o caso das associações particulares.

Pessoa é conceito jurídico, na medida em que con-siste numa expressão unitária para um conjunto de di-reitos e deveres jurídicos. Lembra Ferrara (1958) quea personalidade jurídica individual é tão constituídapelo direito quanto a personalidade do ente coletivo.

Assim, não são apenas as pessoas naturais que po-dem ser sujeitos de direito, pois, a lei reconhece quealguns entes têm capacidade de ter direitos e contrairobrigações. Esses entes –em sua grande maioria, cons-tituídos de união de alguns indivíduos–, passaram afigurar como titulares de direitos e obrigações,excepcionalizando-se pelo fato de que a personalida-de dos mesmos não se confunde com as personalida-des daqueles que os constituem.

O direito pátrio tem adotado, com uniformidade, adenominação “pessoa jurídica” para indicar esses entesque não sendo homens, recebem qualificação pessoal.Essa denominação é também encontrada no Código Civilalemão (arts. 21 a 89), italiano (art. 11) e espanhol (art.35). Já em outros direitos normatizados, esses entes re-cebem denominações diferentes: pessoa morais (Direi-to francês e belga); pessoa coletiva (Direito português);pessoas de existência ideal (Direito argentino). Outrasdenominações são encontradas na doutrina, tais como,pessoas místicas, fictícias, abstratas, civis, intelectuais,universalidades de pessoas e de bens etc.

Entretanto, segundo Pereira (1998, p. 188), a denomi-nação pessoas jurídicas é a menos imperfeita e, portanto,a mais aceitável, já que mais tradicional na doutrina.

Na verdade, se a sua personalidade é puramenteobra de reconhecimento do ordenamento legal, e sesomente na órbita jurídica é possível subordiná-las acritérios abstratos e reconhecer-lhes poder de ação eefeitos, o uso do nome deve obedecer a um critériohábil a sugerir de ponto esses fatores.

No Brasil, é, também, na doutrina que se encontrao conceito de pessoa jurídica5, sendo que na definiçãode Ruggiero (1957, p. 466), é:

(…) qualquer unidade orgânica resultante de umacoletividade organizada de pessoas ou de um comple-xo de bens a que, para consecução de um fim socialdurador e permanente, é pelo Estado reconhecida umacapacidade de direitos patrimoniais.

Entre outras definições não menos importantes citam-se: Cunha Gonçalves (s.d., p. 917) define as pessoasjurídicas como sendo “associações ou instituições for-madas para a realização de um fim e reconhecidas pelaordem jurídica como sujeito de direito”; Pereira (1998,p. 185) entende que “as pessoas jurídicas (…) compõem-se, ora de um conjunto de pessoas, ora de uma destina-ção patrimonial, com aptidão para adquirir e exercerdireitos e contrair obrigações”; para Rodrigues (1998,p. 64) as “pessoas jurídicas (…) são entidades a que alei empresta personalidade, isto é, são seres que atuamna vida jurídica, com personalidade diversa da dos indi-víduos que os compõem, capazes de serem sujeitos dedireitos e obrigações na ordem civil”.

Batalha (1982, p. 164) ensina que: “Pessoa jurídicaé toda entidade a que se atribui a qualidade de sujeitode relações jurídicas, excetuado o ser humano; a pes-soa jurídica pode ser constituída por um conjunto depessoas (sociedade, associação), por determinado pa-trimônio afetado a um fim (fundação), por um serviçopúblico descentralizado (autarquia, empresa pública)”.

Partindo do entendimento de que são pessoas todosos entes suscetíveis de adquirir direito e contrair obriga-ções, entende-se que pessoas jurídicas são entidades aque a lei empresta personalidade, atribuindo-lhes capa-cidade de serem titulares de direitos e deveres, notada-mente, na ordem civil. Malgrado no plano ontológico,os verdadeiros sujeitos sejam os entes humanos, no pla-no lógico-jurídico, que é o da norma, as pessoas jurídi-cas são titulares de direitos e deveres que lhes são im-putados, ainda que indiretamente, estes sejam imputa-dos aos indivíduos humanos que a compõem.

Encontra-se, deste modo, no ordenamento pátrio,

4 Essa vinculação jurídica, segundo Ruggiero (1957, § 42), é que lhe imprime “unidade orgânica”.5 O nosso ordenamento (arts. 40 e ss.) optou por informar quais eram essas pessoas – de direito público interno (União, Estados, Distrito

Federal e Territórios, Municípios, autarquias e demais entidades de caráter público criadas por lei); de direito externo (Estadosestrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público) e de direito privado (associações, sociedades civis oucomerciais e fundações) –, sem entretanto, emitir um conceito geral.

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imputação de personalidade jurídica tanto ao homemao nascer com vida (CC, arts. 1º e 2º) quanto às pes-soas jurídicas que cumprirem certos requisitos legais(CC, art. 45). Entretanto, em face da existência deentes que não cumprindo os requisitos legais, mas queainda assim existem como sociedade no mundo fáti-co, optou-se por uma solução ampliativa, permitindoo Código de Processo Civil (CPC) a representação emjuízo de sociedades sem personalidade (CPC, art. 12,VI). Por outro lado, nem todo grupo de indivíduos quelogram um fim específico é dotado de personalidadejurídica, seja porque lhes falte a affectio societatis, sejaporque não lhes reconhece o direito posto característi-cas de pessoa jurídica. Esses entes, denominados degrupos despersonalizados, tais como a família, o con-domínio, o espólio e a massa falida, entretanto, têmrepresentação em juízo6.

1.4. Personalidade jurídicaDiscute-se, na doutrina, a existência ou não da per-

sonalidade jurídica. Assim, existem teorias, que fun-dadas na negação do direito subjetivo, negam, tam-bém, a personalidade jurídica (Planiol). Outras teorias,entretanto, afirmam sua existência.

Por esse entendimento, tem-se, segundo Gomes(1995) duas teorias: a personalidade jurídica imputadaàs pessoas jurídicas é ficção ou realidade e, sendo rea-lidade, ou é realidade orgânica ou é realidade técnica.

Pela teoria da ficção, pode o direito positivo tantonegar capacidade a certas pessoas humanas quantoconferi-la a entes que não o são. Nesse sentido, tem-se que, para essa escola, cujo representante mais des-tacado é Savigny, a pessoa jurídica é um sujeito criadoartificialmente, capaz de ter um patrimônio7.

As teorias da realidade se exprimem através dacompreensão de que as pessoas jurídicas são seresdotados de existência própria e que atuam no mundojurídico independentemente das pessoas naturais queo conceberam8. Seus defensores dividem-se quanto àdeterminação de sua essência ou substrato, de modoque, nesse entendimento maior, incorporam-se, de umlado, tanto os que, como Gierki, entendem que o fun-cionamento da pessoa jurídica se dá aos moldes deuma pessoa natural (realidade orgânica ou objetiva)quanto os que, como Zitelman, afirmam a existência

de uma vontade coletiva distinta da vontade indivi-dual dos membros do grupo (teoria da vontade); e deoutro lado, aqueles que, como Ferrara, defendem quea personalização decorre de um processo técnico (rea-lidade técnica)9.

Ferrara (1958, p. 32 e ss.) entende que a persona-lidade jurídica, tanto individual quanto coletiva, é ca-tegoria jurídica, criada pelo direito. Nesse contexto, apessoa jurídica funciona como conceito unificador dasrelações jurídicas que se estabelecem entre os indiví-duos e as organizações.

Por essa teoria, que segundo Rao (1952, p. 241) édominante entre os modernos autores franceses, as pes-soa jurídicas são reais, mas essa realidade não é a mes-ma nem se equipara a que existe para as pessoas natu-rais, cabendo à norma assegurar direitos subjetivos tan-to às pessoas naturais quanto a esses entes criados.

Também, o entendimento da corrente majoritáriados civilistas pátrios é o de que a natureza jurídica dapersonalidade jurídica decorre de um processo técni-co, isto porque, segundo Pereira (1998, p. 195):

O jurista moderno é levado, naturalmente, à aceita-ção da teoria da realidade técnica, reconhecendo aexistência dos entes criados pela vontade do homem,os quais operam no mundo jurídico adquirindo direi-tos, exercendo-os, contraindo obrigações, seja peladeclaração de vontade, seja pela imposição da lei.

Ou seja, o conceito jurídico de pessoa que se refere aohomem individual é o mesmo que se aplica aos entescoletivos, porque, tal como ensina Recaséns Siches(1935), em seus estudos de filosofia do Direito, as dife-renças ente o sujeito individual e os entes coletivos nãosão de índole jurídica, mas referem-se a dimensõesmetajurídicas, isto é, são diferenças que se referem avárias realidades a que o Direito outorga qualificação depersonalidade. Nesse sentido, a pessoa jurídica estáconstituída pela unidade de imputação de uma séria defunções atuais e possíveis previstas na norma.

1.5.Requisitos para a constituiçãoOs requisitos necessários para a constituição da pes-

soa jurídica são: vontade criadora (intenção de criaruma entidade distinta de seus membros); observânciadas condições legais para sua formação (CC., art. 45)e liceidade de seus objetivos ou de finalidade.

6 O condomínio consiste num conjunto de diretos igualitários sobre determinado bem; o espólio é a concepção unitária dos herdeiros elegatários; a massa falida é a concepção unitária de um conjunto de bens sujeitos a execução coletiva por parte dos credores.

7 Por esse entendimento, sendo a pessoa jurídica decorrente de uma criação da lei, afirma-se, também, que a lei pode, a qualquer momento,suspender seus efeitos, desconsiderando-a, justificando-se, assim, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

8 No campo da desconsideração da personalidade jurídica, pela teoria da realidade, justifica-se a desconsideração como um instrumentodo Direito positivo necessário para ajustar as construções jurídicas aos seus referenciais metajurídicos.

9 Desse modo, pode-se concluir que a teoria da realidade técnica surge como posição aglutinadora das teorias da ficção e da realidadeorgânica, na medida em que reconhece elementos de ambas.

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Ou seja, tal como afirma Beviláqua (1975, p. 228),tratando das sociedades:

A sociedade constituída por seu contrato, e personi-ficada pelo registro, tem um fim próprio, econômicoou ideal; move-se no mundo jurídico, a fim de realizaresse fim, tem direitos seus e um patrimônio que admi-nistra, e com o qual assegura aos credores a soluçãodas dívidas que contrai.

No Direito Privado é a vontade humana –direciona-da para uma finalidade comum e para um novo orga-nismo– que dá origem à pessoa jurídica, sendo excep-cionadas algumas situações em que a interferência doEstado se manifesta através de determinativos de au-torização estatal (CC, art. 45, caput, in fine).

Para que a pessoa jurídica nascida dessa vontadecriadora possa gozar de prerrogativas na vida civil,cumpre que ela observe determinações legais, sendoque a lei estipula que ato de constituição tem legali-dade e legitimidade para efetivar a manifestação devontade: estatuto (associações sem fins lucrativos);contrato social (sociedades civis e mercantis) escriturapública ou testamento (fundações).

O ato de constituição é levado a registro10 (CC, arts.45; 985 e 988), pois antes dele e sem ele tem-se ape-nas sociedade de fato (CC, art. 986). É por força da leique a vontade se materializa definitivamente num cor-po coletivo.

Por fim, a atividade desse novo ente deve estar di-recionada para uma finalidade lícita. A LRP (art. 115)preceitua que não podem ser registrados atos consti-tutivos de pessoas jurídicas que tenham por objeto,destino ou atividades ilícitos; ou que sejam contrários,nocivos ou perigosos ao bem público, à segurança doEstado e/ou da coletividade, à ordem pública ou so-cial, à moral e aos bons costumes.

O direito posto normatiza expressamente que o des-vio de finalidade é uma característica do abuso dapersonalidade jurídica (CC, art. 50).

1.6. Autonomia patrimonial

1.6.1. Princípio norteadorPara a pessoa jurídica, a existência de um patrimô-

nio não é essencial para sua constituição11, bastando apossibilidade de vir a tê-lo, não se devendo confundir,segundo Ferrara (1958, p. 63), a capacidade patrimo-nial com a existência de um patrimônio.

O direito anterior incensava expressamente o princí-

pio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas –quod debet universitas non debet singuli. Essa prote-ção era tida como necessária para a iniciativa privada,em razão da necessidade de reduzir os riscos de pre-juízos individuais dos componentes da sociedade, tor-nando mais seguras as relações jurídico-comerciais.

Beviláqua (1975, p. 228), comentando o CódigoCivil de 1916 (art. 20) que expressava essa autonomiadispondo que “as pessoas jurídicas têm existência dis-tinta da de seus membros”, ensinava que a autono-mia patrimonial constituía uma conseqüência direta eimediata da personificação que era imputada à pes-soa jurídica. In verbis: “a conseqüência imediata dapersonificação da sociedade é distingui-la, para osefeitos jurídicos, dos membros que a compõem”. Istoporque cada um dos sócios é uma individualidade(pessoa natural) e a coletividade (pessoa jurídica) umaoutra, não havendo como lhes confundir a existência.

Apenas com o registro, entretanto, é que constituí-da a pessoa jurídica legalmente, a proteção se tornaeficaz, ainda que não reproduzida expressamente, nanova norma. Esta distinção permanece, tanto que oordenamento (CC, art. 50) estipula as condições ne-cessárias, que ocorrendo determinam a possibilidadede se suspender o véu da pessoa jurídica e alcançar osbens dos sócios que a constituem.

Essa norma está em consonância com o disposto noCódigo Processual Civil (CPC, art. 596, caput) quandolimita a execução de bens do sócio, aos termos defini-dos em lei, significando que a responsabilidade pes-soal só é aplicada na existência de norma de direitomaterial permissiva.

Isto se dá porque o princípio da autonomia patrimo-nial representa um instrumento típico do sistema dalivre iniciativa, sendo, destarte de fundamental impor-tância para a manutenção da lógica do capitalismo.

Nesse sentido encontra-se em Coelho (1994, p.216) que:

Este panorama quanto à inserção do princípio daautonomia patrimonial da pessoa jurídica no cenáriodas relações econômicas possibilita afirmar que a teo-ria de desconsideração da personalidade jurídica nãoé uma elaboração doutrinária na perspectiva do ques-tionamento daquele instituto. Muito pelo contrário, ateoria da desconsideração, visa, mesmo, o aperfeiço-amento da disciplina da pessoa jurídica, de forma acompatibilizar a sua importância para o sistema eco-nômico existente e a coibição das fraudes e abusosque, através dela, são praticados.

1 0 Para pessoas jurídicas de direito privado, o registro do contrato social das sociedades comerciais faz-se na Junta Comercial; os demais atosconstitutivos são registrados no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (Lei de Registros Públicos – LRP –, arts. 114 e ss.).

1 1 Para as fundações, contudo, é essencial a existência de um patrimônio.

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A autonomia patrimonial da pessoa jurídica, então,constitui princípio norteador da lógica do capital e que,portanto, continua vigente, apesar de não estar maisexpresso no texto civil de 2002, devendo ser respeita-do sempre que a pessoa jurídica não pratique atos queconfigurem abuso da personalidade jurídica.

1.6.2. RelatividadeO princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurí-

dica atende principalmente a separação patrimonial entrea coletividade constituída (pessoa jurídica) e seus sócios(pessoas naturais), permitindo, todavia, que aquela pas-sasse a ser utilizada em fins diversos daqueles para osquais havia sido criada. Essa situação, cada vez maisfreqüente, de abuso da personificação da pessoa jurídi-ca levou doutrinadores, legisladores e juízes a buscaremmecanismos capazes de coibir essas atitudes.

Na Itália e na Alemanha desenvolveu-se, então, aTeoria da Soberania que segundo Verrucoli, citado porKoury (1998), imputava ao controlador de uma socie-dade de capitais aquelas obrigações assumidas pelasociedade controlada e por ela não satisfeitas.

Essa teoria significou um grande avanço doutriná-rio, na medida em que incensava a substância das re-lações em detrimento da estrutura formal da socieda-de, sem ter grande repercussão no campo prático.

Verificava-se que o instituto da pessoa jurídica haviapassado a viver em descompasso entre os conceitos tra-dicionais e o ambiente social onde se inseria. Este des-compasso foi identificado por Oliveira (1979) como umadupla crise da pessoa jurídica: crise do sistema e crisede função. A crise do sistema diz respeito à construçãodo sistema normativo sobre pessoa jurídica, ao mesmotempo em que se negava formalmente essa condição aoutros agrupamentos humanos, muito embora, esses,também, acabassem recebendo um tratamento jurídicocoerente apenas com a personificação. A crise de fun-ção – que tem íntima relação com a teoria da desconsi-deração, consiste na incompatibilidade entre os fins doDireito e a conduta específica e concreta dos entes per-sonificados: isto significava que o ente personificadoestava desfigurando-se, produzindo, conseqüentemen-te, um resultado antijurídico.

Segundo Coelho (1994, p. 217):A autonomia patrimonial, com efeito, apesar de sua

plena compatibilização com os fundamentos da econo-

mia de mercado, pode dar ensejo à realização de frau-des, em prejuízo de credores ou de objetivo fixado porlei. Ao apontar as circunstâncias em que se mostra legí-timo não se levar em conta a forma da pessoa jurídica,com o intuito de coibir o seu mau uso, a teoria da des-consideração reforça a importância do instituto e, me-lhorando-o, contribui para sua preservação e desenvol-vimento. Trata-se de teoria contra o uso indevido dapersonalização dos entes morais e não contra estes.

Para atender às condições de abuso da personalida-de jurídica, a moderna doutrina do direito comercialimpõe que se abrande a aplicabilidade do princípio daautonomia patrimonial. Tal entendimento deflui docrescente prestígio da teoria da desconsideração dapessoa jurídica, que, conforme ensina Dinamarco(1987, p. 245) “permite estender a responsabilidadealém dos limites tradicionais estabelecidos entre o só-cio e a sociedade em certos casos, ou além dos limitesentre duas pessoas jurídicas componentes da mesmaconstelação empresarial”.

Assim, estabeleceu-se a relatividade do princípio daautonomia patrimonial da pessoa jurídica, pela possi-bilidade de desconsideração da personalidade jurídi-ca, doutrina que veio resolver, de modo satisfatório,aquelas situações de abuso de personificação e quefoi incorporada ao novo texto de legislação civil brasi-leira, passando a existir como norma geral material,obrigando, deste modo, todas as relações jurídicas dedireito privado.

2. Teoria da desconsideração2. da personalidade jurídica

2.1. Aspectos introdutóriosA teoria da transparência é recente, mais ainda

como norma no Direito pátrio, podendo ser considera-da uma das mais relevantes inovações no campo dodireito privado. É uma conseqüência das característi-cas excludentes do capitalismo industrial, que, entreoutras atividades nocivas, passou a utilizar os entescoletivos com vistas à consecução de fins ilegítimos,desvirtuando seus objetivos, de modo que, as pessoasjurídicas passaram a ser usadas para lesar direitos decredores12.

Nesse capítulo, procede-se, um levantamento his-tórico e conceitual, buscando um delineamento segu-

1 2 É bem verdade que existem outros mecanismos voltados para a correção dos desvios de função da pessoa jurídica, embora sem seconfigurarem como desconsideração da personalidade jurídica. Entre estes citam-se: a) Decreto n. 22.626/33 (Lei de Usura) (art. 13,parágrafo único), que tratando da responsabilidade penal estabelece: “Serão responsáveis como co-autores .... em se tratando de pessoa jurídica,os que tiverem qualidade para representá-la”; b) Na CLT (art. 2º, § 2º) determinando a responsabilidade solidária das sociedades integrantes deum conglomerado econômico; c) Lei 4.595/64 (Lei do Sistema Financeiro, art. 34), vedando determinadas operações com seus administradores epessoas jurídicas de cujo capital estes participem; d) Lei 4.137/62 (Lei de Repressão ao Abuso do Poder Econômico, art. 6º) responsabilizando civil

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ro da desconsideração da personalidade jurídica, parasituá-la, finalmente, no Código Civil. Entendeu-se sernecessário estabelecer uma distinção entre desperso-nalização e desconsideração, bem como, identificarquais os permissivos de sua aplicação, para, finalmen-te, aprofundar o estudo da desestimação como conse-qüência do determinativo da norma trabalhista sobregrupo econômico.

2.2. Fundamentação filosóficaA desconsideração da personalidade jurídica (CC,

art. 50), baseia-se, no plano filosófico, segundo Dena-ri (2001, p. 211), na Jurisprudência de Interesses(Interessenjurisprudenz), cujos representantes máximossão Philipp Heck, Heinrich Stoll, Max Rümelin e PaulOertmann e na Escola do Direito Livre, que tem emHerman Kantorowics, seu representante maior. Elasapontam – e aí reside sua maior importância – para adivergência entre Direito legislado quando relaciona-do à realidade da vida onde ele é aplicado.

Para a escola Jurisprudência de Interesses, o objeti-vo do Direito é disciplinar relações entre pessoas, deli-mitando esferas de interesses, valorando os interessescomuns, devendo o juiz inspirar-se na ponderação des-ses interesses acordando-os às estimativas que orien-taram o legislador a quando da elaboração da norma.

No campo da criação legal, a desconsideração dapersonalidade jurídica, conclama, portanto, os julga-dores a assumirem uma posição crítica diante do con-flito de interesses, adequando os resultados dojultamento às necessidades práticas da vida.

Ou como ensina Denarri (id. ib.):Esta [Jurisprudência de Interesses], respeitando o

Direito legilsado, mas, de todo modo, concitando osjulgadores a não assumir uma postura meramente cog-noscitiva da normatividade posta – como sugere aDogmática Jurídica e seu último rebento, a Jurispru-dência de Conceitos (Begriffsjurisprudenz) –, mas, aum só tempo, crítica e sobretudo criativa, diante daconcretude dos interesses opostos.

A Escola do Direito Livre, por sua vez, reage contra aidentificação entre Direito e lei, de modo que segundoJosé Medina Echavarría, citado por Batalha (1982, p.473), “insiste unilateralmente en el primado de la realidadsocial, frente a las exigências de esquema e forma de lajurisprudencia clásica formalista y conceptual”.

Embora tenha se fundamentado em estudos de di-versos estudiosos do Direito (François Gény, VanderEycken, Eugen Erlich, Otto von Gierke etc.) é Kanto-rowicz que, em 1906, acentua que o Direito livre étodo o Direito que pretende reger independentemen-te do poder estatal. Ou seja, o Direito livre tem vigên-cia independentemente do Direito estatal e mesmocontra este, mas a recíproca não é verdadeira, poisquase todos os pensamentos legislativos existiram an-teriormente como princípios do Direito livre, e, por-tanto, como crítica ao Direito do Estado.

Apontando para o estudo de outros doutrinadoresSouza (1979, p. 87) relembra:

A Escola do Direito Livre, cujas vertentes PaulinoJacques encontrou na “prática do direito (…) que re-velou a insuficiência dos métodos até então usadospara a determinação da plenitude existencial do Direi-to”, do que resultou sua luta contra a procura de solu-ções artificiosas, como bem repara Claude de Pasquier,orienta-se em sentido peculiar. Ela coloca, na opiniãode Mário Franzen de Lima, a essência do direito “mui-to acima das fontes formais, que não são senão suasrevelações empíricas”.

Nesse sentido, a interpretação não parte da normapara o fato, como ocorre com a Escola Dogmática,altamente racionalista. Ao contrário, parte da obser-vação dos fatos e da apreciação do interesse social,para a formulação de um critério que transcende tan-to a eles quanto à lei. Desse modo, a interpretaçãoexpõe um ponto de vista superior a ambos, expondoum paralelismo exato entre a norma e a exigênciaimposta pela realidade.

A normatização da teoria da desconsideração dapersonalidade jurídica vai buscar na Escola do Direitolivre, segundo Denari (2001), inspiração para libertar-se das amarras legislativas e decidir de acordo com osreclames sociais.

Desse modo a teoria da desconsideração da perso-nalidade jurídica aplicada ao direito material constituiuma nova etapa do estudo da pessoa jurídica, que semdespersonificar, atinge e vincula a responsabilidadedos sócios. Isto porque, o instituto visa à suplantaçãoda barreira legal imposta pela instituição da pessoajurídica, contornando-a, quando necessário, no casoconcreto, mantendo, todavia, íntegros os valores queinspiraram sua criação.

e criminalmente diretores e gerentes de pessoas jurídicas pelos abusos caracterizados na supradita lei; e) Lei 4.729/65 (Lei da Sonegação Fiscal, art.6º) tratando da responsabilização penal estabelece que “todos os que, direta ou indiretamente ligados à mesma, de modo permanente ou eventual,tenham praticado ou concorrido para a prática da sonegação fiscal”; f ) Lei n. 5.172/66 (Código Tributário Nacional), tratando do abuso dorepresentante legal induz a responsabilidade pessoal (art. 135) e a responsabilidade subsidiária (arts. 133, II, 134) g) Lei 6.404/76 (Leidas Sociedades Anônimas, arts. 115 a 117, 233, 242), para evitar prejuízos aos sócios minoritários, ao mercado imobiliário, etc.,contempla situações de responsabilidade pessoal, solidária ou subsidiária de terceiros.

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2.3. Notícia histórica

2.3.1. OrigemA origem da doutrina em estudo encontra-se no di-

reito anglo-americano e se desenvolve na Europa.Koury (1998) indica como leading case a decisão

proferida, em 1809, na América do Norte, no casoBank of United States vs. Deveneux, na qual o juiz,buscando preserva a jurisdição das cortes federais so-bre as corporations conheceu da causa, ainda que aConstituição Federal Americana (art. 3º, seção 2a) li-mitasse tal jurisdição às controvérsias entre cidadãosde diferentes Estados13.

Para prolatar sua decisão sobre competência, o juizultrapassou a personificação da entidade bancária,passando a considerar as características dos sócios in-dividuais, utilizando, portanto, a teoria da desconside-ração da personalidade jurídica.

A doutrina majoritária cita, como origem, o casoclássico Salomon vs. Salomon & Co., julgado na Ingla-terra, em 1898, sendo que, indiscutivelmente, com oresultado obtido na primeira instância iniciou-se a dis-cussão doutrinária sobre o desvio de finalidade do ins-tituto da pessoa jurídica14.

Na Alemanha, em 1955, foi Rolf Serick, em tese deconcurso apresentada na Universidade de Tubigen,quem primeiramente sistematizou a teoria da descon-sideração da personalidade jurídica. Seus estudos tive-ram grande influência na Itália e na Espanha, sendo, ateoria sistematizada, posteriormente absorvida pelodireito de diversos países.

Na Itália, em 1964, Piero Verrucoli, destacou-se,também, aprofundando estudos sobre a nova teoria,construindo, como resposta aos abusos da personali-dade jurídica, uma base comum para a common law epara a civil law acerca da teoria da desconsideraçãoda personalidade jurídica.

No Brasil, o tema foi abordado por primeiro peloprofessor Rubens Requião, em conferência intitulada“Abuso de direito e fraude através da personalidadejurídica (Disregard Doctrine)”, realizada na Universi-dade do Paraná: nesse trabalho reporta-se às decisõesdos tribunais norte-americanos, ingleses e alemães,desenvolvendo as doutrinas de Serick e Verrucoli.

O direito de diversos países incorporou a doutrina,que passou a ser conhecida por diversas expressões,

que objetivam, de algum modo, indicar a função derelativizar a autonomia patrimonial. Nos Estados Uni-dos e na Inglaterra é denominada de disregard doc-trine ou disregard of legal entity ou piercing the cor-porate veil ou, ainda, cracking open the corporateshell; na Alemanha tem como denominação durchgriffder juristichen person; na França é conhecida como,miseà l’écart de la pernannalité morale; na Itália,superamento della personalità giurídica; e, finalmen-te, no Direito pátrio como desconsideração da perso-nalidade jurídica ou desconsideração da pessoa jurídi-ca ou desestimação da personalidade jurídica ou, ain-da, teoria da transparência.

Atualmente, na Inglaterra, a aplicação da disregarddoctrine pressupõe sempre o uso fraudulento da com-panhia pelos seus controladores, como se deduz daLei inglesa (Companies Act de 1948, art. 332). Aí, essaresponsabilidade pessoal só surge no caso de dolo,sendo que mais recentemente, a Comissão Jenkinspropôs a sua extensão aos casos de culpa (negligênciaou imprudência graves) na conduta dos negócios(reckless trading). Essa Lei (art. 333) admite a proposi-tura de ação contra o administrador (officer), nos caosde culpa grave (misfeasance e breach of trust), mastão somente para que sejam ressarcidos os danos cau-sados à sociedade pelos atos que o administrador prati-car contra a mesma.

Nos Estados Unidos, a doutrina vem sendo aplicadacom reservas, tanto nos casos de comprovada fraudeà Lei, ao contrato ou aos credores, quanto nos casosem que a sociedade é, de modo evidente, utilizadacomo simples instrumento, sendo o alter ego do agen-te controlador.

Na França a pessoa jurídica é desconsiderada noscasos de simulação de aparência e interposição depessoas.

Na Alemanha, aplica-se quando a pessoa jurídica éutilizada abusivamente para fins ilícitos, bem como noscasos de infração às obrigações contratuais e de pre-juízo fraudulento a terceiros.

No Brasil, após o desenvolvimento doutrinário e umafarta jurisprudência, foi editada a Lei 8.078/90, tam-bém denominada de Código de Defesa do Consumi-dor (CDC, art. 28), introduzindo a teoria da desconsi-deração da personalidade jurídica como normativida-de expressa no ordenamento jurídico pátrio, estabele-

1 3 Colocada a questão para se saber se o banco deveria ser visto como sendo “cidadão” do Estado onde havia sido criado, Marshall recusou-se a reconhecer a “cidadania” do Banco, mas disse que, para efeitos de fixação de competência, o elemento de conexão seria a cidadaniaestadual dos indivíduos que compusessem a sociedade, no caso diferente da do réu, fixando-se a competência federal.

1 4 Salomon era um comerciante que, aproveitando-se da autonomia patrimonial oferecida pelo instituto, protegeu seu patrimônio pessoalsob o manto da pessoa jurídica que criou com a finalidade de fraudar seus credores. A decisão de primeira instância foi favorável emdesconsiderar o caráter absoluto do instituto e aplicá-lo com relatividade, desconsiderando a personalidade jurídica da empresa eatingindo o patrimônio pessoal de Salomon. Este recorrendo à conservadora House of Lords, conseguiu a reforma da decisão a quo.

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cendo os casos em que esta é aplicável, na defesa dosdireitos dos consumidores.

2.4. ConceitoO estudo da desconsideração da personalidade jurí-

dica evidencia, de pronto, que esta não envolve a anu-lação da personalidade jurídica em toda sua extensão,mas declara, indiretamente, a relatividade da autono-mia patrimonial, ao mesmo tempo, em que, direta-mente, conforme Requião (1974, p. 19) declara “aineficácia para determinado efeito no caso concreto”.

Para Justen Filho (1985, p. 57 e ss.), a formulaçãode seu conceito passa pela análise dos seguintes ele-mentos:

a) existência de uma ou mais sociedades, pois sópode se falar em desconsideração quando nos depara-mos com pelo menos um ente personificado e, porconseguinte, da existência de sócios distintos da socie-dade ou de sociedades que se encontram vinculadaspor coligação ou controle;

b) ignorância dos efeitos da personificação, ou seja,afasta-se o regime da personificação societária, tra-tando a questão como se esta não existisse;

c) ignorância de tais efeitos para caso concreto, sus-pendendo os efeitos da personalidade jurídica apenasno que concerne um único ato específico, durante al-gum período definido ou em relação a certos indiví-duos ou sociedades.

d) manutenção da validade dos atos jurídicos, ouseja, os atos praticados são considerados válidos e pro-duzirão seus efeitos, apenas não afetarão a pessoajurídica, pois desconsideração da personalidade jurídi-ca não significa invalidar atos;

e) a fim de evitar o perecimento de um interesse,significando que é necessário proceder a análise dafinalidade do ato praticado, ou seja, verificar se a fina-lidade da conduta é oposta à finalidade da pessoa ju-rídica, sacrificando um interesse tutelado pelo direito,importando na utilização abusiva da pessoa jurídica.

A partir desses dados conceituais Justen Filho(1985, p. 60) constrói o seguinte conceito de desconsi-deração da personalidade jurídica:

É a ignorância, para casos concretos e sem retirar avalidade de ato jurídico específico, dos efeitos da per-sonificação jurídica validamente reconhecida a umaou mais sociedades, a fim de evitar um resultado in-compatível com a função da pessoa jurídica.

Pode-se entender, então, que reconhecendo válidaa constituição da pessoa jurídica a teoria da desconsi-deração da personalidade jurídica passa pela relativi-zação do princípio da autonomia patrimonial da pes-soa jurídica, que, até então, era tido como absoluto,sendo uma forma de solução de abuso da personalida-de da pessoa jurídica, quando o Juiz se vê diante desituações em que prestigiar a autonomia e a limitação

da responsabilidade da pessoa jurídica, implica sacrifi-car outros interesses legítimos. Ela não incensa a anu-lação dos atos praticados com vício, mas sim, levan-tando o véu da personalidade jurídica, visa imputá-losaqueles sócios que praticaram os referidos atos.

Kriger Filho (1994, p. 21) sintetizando a doutrinadominante também aponta para o objetivo do institu-to que é estabelecer para certos atos um regime jurídi-co distinto daquele preconizado pela personalização:

A desconsideração da personalidade jurídica signifi-ca tornar ineficaz, para o caso concreto, a personifica-ção societária, atribuindo-se ao sócio ou sociedadecondutas que, se não fosse a superação (…) resultariaindesejável ou pernicioso aos olhos da sociedade.

A aplicação da disregard doctrine tem como conse-qüência o alcance daquele que indevidamente se uti-lizou da diferenciação patrimonial. O desvelamento sedá apenas no caso concreto e momentaneamente: ouseja, retira-se o véu, alcança-se o patrimônio daqueleque perpetrou o ato e, de imediato, retorna-se o véu àorigem, para que o ente coletivo possa retornar a cum-prir seus objetivos. Guimarães (2000, p. 5) lembra queé importante essa momentaneidade do descortina-mento de modo que a pessoa jurídica possa cumprircom seu objetivo de incentivo aos investimentos, eisque, segundo ele:

Não se pode asseverar que determinada sociedadeteve a sua desconsideração chancelada em processojudicial, com decisão trânsita em julgado, estando, por-tanto, os sócios ao alvedrio de todas as responsabilidadesrubricadas, a partir de então, no passivo societário.

Isto significa que esta técnica se aplica a situaçõesconcretas nas quais a pessoa jurídica deixou de ser sujeitopara ser objeto utilizado na consecução de fins fraudu-lentos ou ilegítimos de modo que prestigiar a autonomiaimplica em sacrificar interesses legais ou moral e social-mente legítimos. Nessa situação, então, o interesse legí-timo ameaçado é valorado pelo ordenamento jurídicocomo mais desejável ou menos sacrificável do que ointeresse colimado pela personificação societária.

Pode-se, então, concluir que a desconsideração dapersonalidade jurídica implica no afastamento momen-tâneo da personalidade jurídica da sociedade, paradestacar ou alcançar, em relação a um ato concreto eespecífico, diretamente a pessoa do sócio, responsabi-lizando-o como se a sociedade não existisse.

2.5. Despersonalização edesconsideração: algumasdistinções necessárias: de

A teoria da desconsideração da personalidade jurí-dica não foi aceita por todos os doutrinadores exata-mente porque estabeleceu-se uma confusão concei-tual entre desconsideração e despersonalização oudespersonificação.

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Assim Pontes de Miranda (1965, p. 303) opôs-se aela, tenazmente, ligando a teoria a uma “negação daprópria pessoa jurídica privada”. Para ele, a metafísicada extrema esquerda, em seu posicionamento contrao capitalismo, estava criando condições para negar,até mesmo, a pessoa jurídica Estado.

Essas considerações que foram qualificadas porComparato (1977, p. 202) como “objurgatória des-temperada”, são, na verdade a manifestação do en-tendimento errôneo de que a teoria da desconsidera-ção oportuniza a despersonalização da pessoa jurídi-ca, quando, na realidade, constitui um instrumento deseu aprimoramento.

Pela despersonalização busca-se a anulação da per-sonalidade jurídica, fazendo-se desaparecer a pessoajurídica como sujeito autônomo, por lhe faltarem con-dições de existência, como nos casos de dissolução dasociedade. Ou seja, a despersonalização acarreta o fimda própria personalidade jurídica do ente coletivo.

A teoria não serve para desconstituir a personalidadeda pessoa jurídica, porque esta não é sua finalidade.

Também Coelho (1994, p. 219) tem o mesmo en-tendimento, tanto que segundo ele, a aplicação dadoutrina da transparência não postula invalidar irregu-laridade ou dissolver a sociedade jurídica.

Ao contrário, por superamento da autonomia patri-monial se entender tomar por episodicamente ineficazo ato constitutivo da pessoa jurídica, ou seja, a socie-dade será ignorada apenas no julgamento da condutafraudulenta ou abusiva da pessoa que a utilizou inde-vidamente, permanecendo existente, válida e eficazem relação a todos os demais aspectos de suas rela-ções jurídicas.

E continua, complementando esse entendimento(id., p. 220):

A teoria da desconsideração da personalidade jurí-dica possibilita a coibição da fraude ou do abuso dedireito sem o comprometimento dos interesses quegravitam em torno do desenvolvimento da atividadeempresarial que nenhuma relação guardam com aconduta fraudulenta ou abusiva justificadora dosuperamento; e possibilita exatamente porque não põeem questão a validade ou regularidade do ato consti-tutivo ou dos negócios e demais atos jurídicos pratica-dos ela sociedade. Naquele episódio, e somente nele,em que a autonomia patrimonial foi instrumento ouabuso de direito, a sociedade não será considerada,mas ignorada. Para as demais relações jurídicas, noentanto, ela continua sendo pessoa plena de direitos eobrigações.

Isto significa, segundo o autor que a despersonali-zação é a forma própria de coibição da fraude e doabuso de direito, possibilitando, ao mesmo tempo, apreservação da empresa explorada pela sociedade, oque significa garantir a estabilidade do sistema econô-

mico. Por isso, aqueles antigos mecanismos de coibi-ção de ilícitos, em sede de direito societário, que con-sagravam a sanção da dissolução da pessoa jurídicanão mais se compatibilizam com as novas tendênciasdo direito comercial.

Requião (1974, p. 14) aponta no mesmo sentido,entendendo, desde sempre, que a teoria da desconsi-deração da personalidade jurídica não significava aanulação da personalidade jurídica, como in verbis:

(…) a disregard doctrine não visa a anular a perso-nalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderarno caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa ju-rídica, em relação às pessoas ou bens que atrás delasse escondem. É o caso de declaração de ineficáciaespecial da personalidade jurídica para determinadosefeitos, prosseguindo todavia a mesma incólume paraseus outros fins legítimos.

E continua (id. p. 20), reafirmando esse ponto im-portantíssimo para entendimento da teoria “a verdadeoriginal da doutrina é que ao penetrar na personalida-de jurídica, desestimando-a, o juiz não anula a socie-dade, que continua normalmente as suas atividades,apenas desfalcada dos bens do sócio fraudulentamen-te nela incorporados”.

Assim quando a doutrina penetrar no âmago dasociedade, superando ou desconsiderando a persona-lidade jurídica, tornando-a ineficaz para determinadosatos, objetiva apenas atingir e vincular a responsabili-dade do sócio, não se tratando, nunca por nunca, deconsiderar ou declarar nula a personificação.

Com isto tem-se que a desestimação constitui umaperfeiçoamento do próprio instituto da personaliza-ção, até porque, segundo Globekner (1999, p. 2):

(…) determina a ineficácia episódica de seu atoconstitutivo, preservando a validade e existência detodos os demais atos que não se relacionam com odesvio de finalidade, e nisto protegendo a própria exis-tência da pessoa jurídica. A teoria ou doutrina da des-consideração assegura a finalidade da pessoa jurídicaao tempo em que protege os demais, dos prejuízosdecorrentes da utilização desvirtuadora de seus fins.

Também merece destaque que existem algumasoutras situações em que sócios, administradores e ge-rentes podem ser responsabilizados por dívidas da so-ciedade, não se podendo aplicar, nesses casos, adesestimação da personalidade jurídica. Aqui está-sefrente a medidas de caráter excepcional que objeti-vam punir pessoas que tenham agido com excesso oude maneira contrária à lei ou aos costumes.

Nessas hipóteses nem há manipulação da pessoajurídica nem serviu esta de véu para que tais pessoasagissem e não pudessem ser responsabilizadas, ocor-rendo, ao contrário, má gestão, atuação de forma ilí-cita, de modo que se deve buscar responsabilizar quemassim agiu, ou seja, o administrador é que, na sua

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atividade ligada à empresa, agiu mal, devendo res-ponder por esses atos.

Também a desconsideração não acarreta a nulida-de dos atos que propiciaram a atuação judicial. Os atospraticados não são anulados, pelo contrário, em razãode sua validade, é que são tomadas determinadasmedidas para corrigir ou compensar suas conseqüên-cias, desfazendo o que de fraudulento houver sido pra-ticado em nome da pessoa jurídica, atribuindo respon-sabilidade aquele que praticou o ato.

Dentro desse contexto, pode-se concluir que quan-do a pessoa jurídica é constituída ela recebe uma au-torização para realizar os atos necessários para alcan-çar o fim para o qual se propôs, entretanto, se os atospraticados, nesse exercício atentam contra a ordemposta e os bons costumes, evidenciando-se o abuso dapersonalidade jurídica, autoriza a lei que se procedauma penetração para alcançar quem verdadeiramen-te está praticando os atos indevidos, preservando, en-tretanto, a entidade.

2.6. Formas de efetivaçãoAs formas de efetivação da doutrina vêm sido defi-

nidas na doutrina e na jurisprudência como de descon-sideração direta, desconsideração incidental, descon-sideração inversa e desconsideração indireta.

2.6.1. Desconsideração diretaQuando o abuso da personalidade é aferido de pla-

no tem-se a desconsideração para alcançar aquele queefetivamente praticou o ato lesivo. Duas situações, emque a utilização do anteparo é flagrante, podem serexemplificadas: (a) aluguel de imóvel em nome dasociedade para ser utilizado como residência de umdos sócios; (b) quando a sociedade é apenas um alterego de seu controlador, em verdade, comerciante in-dividual.

É muito comum, o empresário individual querer setravestir sob a forma de sociedade, apresentando-seno quadro societário com a quase totalidade dasações, ficando o restante com sócios fictícios ou, comodenominam Lamy Filho e Pedreira (1997, p. 255)em poder de “homens de palha”, sócios que existemapenas para se alcançar a pluralidade, uma vez que oordenamento jurídico vigente determina que nas em-presas individuais o proprietário seja ilimitadamenteresponsável pelas dívidas sociais.

Então, nesse evento é que a desconsideração reali-

za é evidenciar a verdadeira situação que estava es-condida sob o manto protetor da pessoa jurídica.

2.6.2. Desconsideração incidentalExistem situações nas quais o abuso da personalida-

de não pode ser aferido de plano, porque, pela suaestrutura, se apresenta eivado de mácula. Nesse caso,pode ocorrer que após ter-se proposto demandada emface da sociedade, se verifique, no decorrer do pro-cesso de conhecimento, a existência do ardil e nessecaso a desconsideração da personalidade jurídica dapersonalidade jurídica é ato incidental que permite aretirada do escudo protetor, alcançando aquele que éefetivamente o autor do ato, especificamente quandoa sociedade não apresenta recursos para fazer frenteao débito pleiteado.

É bem verdade que no plano jurisprudencial não exis-te consenso quanto a possibilidade de declaração inci-dental no mesmo processo ou se é necessário a proposi-tura de nova demanda para tal. Se, de um lado, existeum posicionamento unânime quanto à necessidade decontraditório, por outro, corrente doutrinária e jurispru-dencial majoritário afirma que tal determinativo nãoobsta a possibilidade da decretação incidental da des-consideração, no curso do mesmo processo15.

O CC (art. 50) privilegiou esse entendimento namedida em que o pedido pode ser formulado pelaparte “ou pelo Ministério Público, quando lhe couberintervir no processo”, ou seja, incidentalmente.

Assim, pode-se concluir por essa redação do Códi-go, que a aplicação da teoria da desconsideração dapersonalidade jurídica dispensa a propositura de açãoautônoma, bastando sejam verificados, no processoem curso, os pressupostos de sua incidência para queo Juiz possa levantar o véu da personalidade jurídica.

2.6.3. Desconsideração inversaA utilização de mecanismos para se furtar à respon-

sabilidade pode ocorrer invertendo o percurso de suaaplicação original: é o caso em que pessoas físicastransferem bens pessoais para empresas buscando evi-tar que os mesmos sejam gravados. Ou como ensinaGuimarães (2000, p. 7): “Em vez do sócio se utilizarda sociedade como escudo protetivo, passa a agir os-tensivamente, escondendo seus bens na sociedade, ouseja, o sócio não mais se esconde, mas sim a socieda-de é por ele ocultada”.

Nesse casso ocorre a desconsideração inversa, ou

1 5 No sentido acima esposado, a 3ª Turma do E. Superior Tribunal de Justiça precisou: “A aplicação da teoria da desconsideração dapersonalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o juiz, incidentementeno próprio processo de execução (singular ou coletiva), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bensparticulares de seus sócios, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros.”

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seja, desconsidera-se a personalidade jurídica da so-ciedade para alcançar seus bens de modo a corrigiratos praticados por terceiros.

Exemplo típico na doutrina é a situação de desfazi-mento da sociedade conjugal (de direito ou de fato),quando um dos seus membros se emprenha no esvazia-mento do patrimônio comum, para lesar direitos do com-panheiro ou cônjuges, de forma a que o patrimônio exis-tente na partilha fique reduzido. Uma das formas utili-zada é a transferência de bens para sociedade.

Nesse caso, cabe citar decisão proferida nos autosda Apelação Cível no Tribunal de Justiça do Rio deJaneiro (Apelação Cível n. 1999.001.14506. TJ/RJ. 8a

Câmara Cível. Rel. Des. Letícia Sardas. Julgado em07/12/1999):

Separação Judicial. Reconvenção. Desconsideraçãoda personalidade jurídica. Meação. O abuso de con-fiança na utilização do mandato, com desvio dos bensdo patrimônio do casal, representa injúria grave docônjuge, tornando-o culpado pela separação. (…) Épossível a aplicação da desconsideração da personali-dade jurídica, usada como instrumento de fraude ouabuso à meação do cônjuge promovente da ação, atra-vés de ação declaratória, para que estes bens sejamconsiderados comuns e comunicáveis entre os cônju-ges, sendo objeto de partilha. A exclusão da meaçãoda mulher em relação às dividas contraídas unilateral-mente pelo varão, só pode ser reconhecida em açãoprópria, com ciência dos credores.

Também cabe a desconsideração da personalidadejurídica nos casos em que a pessoa natural constituiuma sociedade para guarnecer o ativo, ficando ape-nas o passivo a seu cargo pessoal. Claro está que ter-ceiros que contratem com o sócio (pessoa natural) ima-ginam, pela teoria da aparência (residência nobre,aparência abastada, etc.) ser este pessoa merecedorade crédito quando, na verdade, todos os bens aparen-temente do sócio são, na realidade, de propriedadede outra pessoa, in casu, ente jurídico – sociedadecriada exclusivamente para esse fim. Em casos comoeste, terá sede a desconsideração para se declarar queo arcabouço jurídico societário serve de escudo aosatos fraudulentos do sócio.

2.6.4. Desconsideração indiretaA desconsideração da personalidade jurídica indire-

ta cabe nos casos de grupos econômicos.Segundo Lamy Filho e Pedreira (1997, p. 253), as

transformações econômicas mundiais, voltadas para aglobalização, exercem uma influência direta na estru-tura organizativa do mercado que se dá, normalmen-te, sob a forma de sociedades, de modo que:

(…) no seu processo de expansão, a grande empre-sa levou à criação de constelações de sociedades coli-gadas, controladoras e controladas, ou grupadas –o

que reclama normas específicas que redefinam, nointerior desses grupamentos, os direitos das minorias,as responsabilidades dos administradores e as garan-tias dos credores.

Ou seja, no momento atual da concentração de ca-pitais, característica mesma do processo de globaliza-ção da economia, tem-se que, embora essa concen-tração possa assumir os mais variados aspectos, estatem como principal fundamento o controle financeiro.Nesse sentido a solidariedade ativa entre as pessoasjurídicas, objetivando receberem valores que lhes sãodevido, encontra-se resguardada em normas própriasque determinam como esses agrupamentos devem serorganizar. Entretanto, quando se trata de direitos aserem pleiteados contra uma ou mais empresas queconstituem o grupo econômico, pode o titular do mes-mo encontrar dificuldades para identificar quais dasempresas constituintes tem patrimônio capaz de su-portar o pagamento.

Nesses casos a desconsideração pode servir paraalcançar quem está verdadeiramente por trás da pes-soa jurídica, principalmente quando uma ou mais soci-edades estejam presentes tendo por objetivo encobriro fraudador. Ou seja, pode ocorrer que as empresasou grupo de empresas sejam mera fachada de umapessoa comum.

Justen Filho (1987, p. 57) informa o alcance doinstituto é, diante de terminados casos concretos, agin-do sem retirar validade de ato jurídico específico, ig-norar os “efeitos da personificação jurídica validamen-te reconhecida a uma ou mais sociedades, a fim deevitar um resultado incompatível com a função da pes-soa jurídica”.

2.7. A desconsideração indiretano Direito do Trabalho

2.7.5. O grupo de empresasO Direito do Trabalho, antecipando-se, em muito, à

normatização da doutrina, estabelece na Consolida-ção das Leis Trabalhistas (CLT, art. 2o, § 2º) que:

Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora,cada uma delas, personalidade jurídica própria, estive-rem sob a direção, controle ou administração de outra,constituindo grupo industrial, comercial ou de qualqueroutra atividade econômica, serão para os efeitos da re-lação de emprego, solidariamente responsáveis a em-presa principal e cada uma das subordinadas.

Num dos pólos do contrato de trabalho está o em-pregador (pessoa física ou jurídica) que a CLT refere-se como empresa, individual ou coletiva.

Diante, pois, da realidade econômica, o Direito doTrabalho, antecipando-se ao reconhecimento pelo or-denamento civil, inova entendendo que a empresa é

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representada pela organização de pessoas (titulares) ede bens (capitais) para a exploração de uma atividade(fim) com o concurso do trabalho humano16.

Essa denominação foi recebida com elogios pelosdoutrinadores que apoiavam a doutrina da desconsi-deração da personalidade jurídica, porque as normasde proteção ao trabalho visam antes do mais, ao em-prego exercido num determinado empreendimentoeconômico e não à pessoa de quem explore esse em-preendimento e, portanto, como lembra Maranhão(1993, p. 83), “se referem ao fenômeno do que seriaa despersonalização do empregador”.

E, constatando como Carrion (2000, p. 31) que “aconcentração econômica pode assumir os mais varia-dos aspectos”, é que se tem o que a doutrina denomi-na de grupo econômico, eis que, embora esses grupostomem contornos definidos, muitas vezes, suas carac-terísticas tornam-se indeterminadas e as fronteiras dasdiferentes espécies não são passíveis de demarcação17.

A relação entre as empresas que compõem o grupoeconômico implica na qualidade do vínculo: existemgrupo de empresas composto por subordinação e gru-po de empresa composto por coordenação. No primei-ro caso tem-se a verticalidade e no segundo a horizon-talidade.

Os grupos econômicos podem ser formados, tantohavendo hierarquia entre as empresas18, como semque existam empresas líderes ou lideradas, ocupando,todas, a mesma posição hierárquica19. De toda sorte,ainda que a discussão sobre verticalidade ou horizon-talidade entre as empresas que formam o mesmo gru-po econômico seja totalmente despicienda para osefeitos da relação de emprego e das garantias quedeve gozar o empregado, por força dos princípios nor-teadores do Direito do Trabalho, a doutrina e a juris-

prudência estabelece distinção quanto aos efeitos dasolidariedade estipulada normativamente.

Com efeito, grupo de empresas composto por su-bordinação são grupos econômicos em que as empre-sas guardam vínculo de hierarquia, de forma que ofuncionamento se dá sob o esquema de comando deuma delas.

Moraes Filho (1991), define a communis opiniodoutrinaria quando entende ser necessário a hierar-quia como elemento indispensável à constituição ereconhecimento de um grupo econômico.

Para ele o grupo econômico existe como emprega-dor único, quando uma ou mais empresas ficam sob ocontrole, direção ou administração de outra, sendo ahierarquia e subordinação entre as empresas (subordi-nada ou subordinadas e a principal) constitui nota ca-racterística desses agrupamentos, sem o que inexisteuma unidade orgânica e, por isso mesmo, não se podefalar em grupo econômico.

Nesse sentido, o texto consolidado, estabelece umasolidariedade passiva tão somente para fins de adim-plemento das obrigações que o empregador tem emface do empregado. Não cabe, portanto, em outrassituações relativas ao contrato de trabalho, destemodo, não possui o grupo solidariedade ativa paraefeito, por exemplo, de exigir a prestação dos serviçosdo empregado com relação a empresa, diferente da-quela que celebrou o contrato, exceto em circunstân-cias especiais, como no caso de haver expressa previ-são contratual20.

Já outros doutrinadores entendem que incide o con-ceito ainda que haja apenas horizontalidade entre asempresas, pois no grupo econômico composto por co-ordenação existe uma relação entre as diversas em-presas que se caracteriza pela colaboração. Não ha-

1 6 É interessante atentar para a evolução histórica do conceito de trabalho. Nos sistemas escravistas, o trabalho era juridicamenteconceituado como um fruto de um bem, objeto de direito real, o escravo. No sistema feudal, o próprio trabalhador (servo de gleba)passou a se constitui no fruto, ou melhor dizendo, no subproduto da propriedade rural. A Revolução Francesa, incensando o liberalismoburguês, proclamou o dogma da liberdade de trabalho. Nesse sentido, no mundo capitalista, o trabalho, adequado ao princípio daautonomia da vontade, passou a ser entendido como a própria mercadoria que pode ser comprada ou alugada ao preço de mercado. ARevolução Industrial priorizou ainda mais o dogma liberal da igualdade entre o empregador e o empregado, destarte o empenho dasmassas proletárias apontando as graves injustiças acobertadas por tal princípio, bem como, buscando uma desigualdade normativa parafazer frente à desigualdade social. No que pese alguns institutos de Direito do Trabalho (CLT, arts. 2º, 10 e 486, por exemplo) vierem ematendimento aos anseios dos trabalhadores, a globalização da economia universalizou mecanismos capazes de driblar direitos trabalhis-tas.

1 7 Segundo Batalha e Rodrigues Netto (1996, p. 97 e 99), hoje, em razão de normatização pelo Direito pátrio, o grupo de sociedades nãose confunde com as sociedades holding, sociedades coligadas e consórcios. Isto porque “o grupo de sociedades resulta de convenção entresociedades controladoras”, devendo haver, portanto, uma sociedade dominante (Obergesellschaft) e sociedades filiadas ou controladas(Tochtergesellschaften).

1 8 O modelo vertical de empresas nasceu, em meados de 1920, nos Estados Unidos, objetivando reduzir riscos a partir do controle acionáriodos fornecedores.

1 9 O modelo horizontal tem expansão a partir dos anos 70, objetivando manter o mesmo patamar de lucros numa economia em retração.2 0 É bem verdade que existe direito sumulado a respeito: Súmula 129 do TST – A prestação de serviços a mais de uma empresa do mesmo

grupo econômico, durante a mesma jornada de trabalho, não caracteriza a coexistência de mais de um contrato de trabalho, salvo ajusteem contrário.

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vendo subordinação, entretanto, pode existir harmoni-zação da gestão, uma direção unificada e, até mes-mo, comunicação total ou parcial dos lucros.

Como lembram Batalha e Rodrigues Netto (1996),muito embora, nossa legislação preveja algumas mo-dalidades para formação de grupos de sociedades, anova organização capitalista mundial está semprecriando novas figuras, numa reengenharia social queobjetiva, in fine, maiores lucros, podendo-se estar, noscasos de relação de emprego, frente a uma fraude aosdireitos trabalhistas e fraus ominia corrumpit.

O objetivo legal volta-se para prevenir situaçõesonde o trabalho possa ser utilizado como meio de pro-dução de várias empresas, recaindo a obrigação dacontrapartida, à empresa de patrimônio insuficiente,restando, desse modo, lesados direitos trabalhistas.Desnecessário, nesses casos, que se provem a fraudeou mesmo o abuso de direito.

Definindo-se solidariedade passiva como sendo o vín-culo jurídico entre os devedores de uma mesma obriga-ção, ficando cada um deles com o dever ao total dadívida, pode-se perceber que, aqui, também, prevalece,em face do texto normatizado, a utilização da desconsi-deração da personalidade jurídica para chegar ao deve-dor (entre as empresas que constituem o grupo econômi-co) que está em condições de efetuar o pagamento.

Assim, data venia entendimentos contrários, se paraalguns ramos do Direito interessa saber a natureza, asformas e condições em que se verifica a formaçãodesses agrupamentos, para o Direito do Trabalho bas-ta a constatação do fenômeno, para que, sem maio-res investigações, seja aplicada a regra do texto con-solidado (CLT, art. 2o, § 2º).

Essa noção conceitual frisa de modo mais evidente adesconsideração da personalidade jurídica, pois com aevolução econômico-financeira e o surgimento de no-vos tipos de empresas (mega empresas e grupos econô-micos), o empregador foi se diluindo nas relações como empregado, tornando-se, cada vez mais, difícil suaidentificação. Esse estado de coisas exige mecanismosque driblem o processo concentratório, identificando, semdúvida, quem é o empregador, que in casu, será sem-pre, a empresa do grupo que tiver as condições de fazerface aos compromissos trabalhistas.

O protecionismo em que se envolvem as empresaspara limitar direitos trabalhistas é histórico e, tal comoo capitalismo, se renova constantemente para atendera novas situações sociais.

Hoje a terceirização das empresas consiste na for-ma mais usual de fraudar direitos trabalhistas. Se doponto de vista das empresas a terceirização só temvantagens21, do ponto de vista do empregado, só temdesvantagens22.

O certo é que empresas passaram a se formar como único intuito de formar mão de obra, muitas vezes,para uma única empresa, sendo a ela subordinadas e,pelo mecanismo da terceirização, buscam descaracte-rizar a formação do grupo econômico. Outras empre-sas, em tempo de retração, orientam os empregadosque vão ser demitidos a formarem empresas terceiri-zadas, cujo atividade está ligada com o processo pro-dutivo. Nesses casos, em que os direitos trabalhistasficam tão pulverizados, o instituto da desconsideraçãoda personalidade jurídica pode ser um instrumento efi-caz para identificar a fraude.

Uma outra forma de lesar direitos trabalhistas – eque vem proliferando – consiste no incentivo à forma-ção de cooperativas com todos os empregados de umadeterminada empresa, os quais são demitidos paraesse fim. Plá Rodrigues (1978) já atentava para a odesejo de muitos proprietários de conseguirem evitarproblemas trabalhistas pelo incentivo à criação de co-operativas e até pela transformação de empresas emcooperativas que eram aparentemente entregues aostrabalhadores. Em ambos os casos cabe à perfeição aaplicação da desconsideração da personalidade jurídi-ca, objetivando identificar o verdadeiro empregador.

Trata-se, na verdade, de uma forma de terceiriza-ção, na qual, em vez de cooperados, encontram-severdadeiros empregados. Aqui novamente a teoria dadesestimação pode ser valiosa na identificação dosverdadeiros objetivos da empresa que toma os servi-ços, principalmente, se ela funcionar como controla-dora das atividades.

Como o texto consolidado busca ressalvar a solida-riedade passiva entre as empresas do mesmo grupoeconômico em relação aos empregados, não existin-do, de direito grupo econômico, a regra do CC (art.50) pode e deve amparar o julgador nas decisões emque a empresa utiliza a terceirização e o cooperativis-mo para fraudar direitos trabalhistas.

Portanto, sempre que houver perigo da empresa seorganizar – seja diretamente, através do grupo econômi-co, seja indiretamente, através de interposta pessoa –para criar um escudo de modo que direitos trabalhistassejam lesados cabe, por oportuno, ao juiz, aplicando a

2 1 Viana (1997, p. 164) cita entre as vantagens: “baixa os custos, crescendo os lucros. Permite o ingresso rápido e simples de mão-de-obra. E, emgeral, aumenta a produtividade, pois permite que as forças se concentrem no foco principal da atividade”.

2 2 O mesmo autor (id. ib.) indica como desvantagens: “em vez de aumentar, reduz postos de trabalho. Dobra a carga de subordinação, Pulverizaa ação coletiva. Destrói o sentimento de classe. Degrada as condições de higiene e segurança. E, de quebra, reduz salários”.

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teoria da desconsideração da personalidade jurídica,levantar o véu que cobre a constituição das empresas,para determinar qual delas tem o patrimônio resguarda-do – e suficiente –, podendo, destarte, fazer frente aoscompromissos com os direitos dos trabalhadores.

Pode-se, então, concluir que para resolver o proble-ma da despersonalização dos titulares da empresa(pessoas físicas ou pessoas jurídicas), a norma traba-lhista atribuiu personalidade jurídica à própria empre-sa e, para se atender às questões ligadas à formaçãode grupos econômicos (concentração de empresas),valeu-se do instituto da solidariedade passiva em facedo empregado.

3. O abuso da personalidade e3. suas características legais

3.1. Aspectos introdutóriosEm razão da recém normatização da teoria da des-

consideração da personalidade jurídica no Código Ci-vil, ainda não se encontram estudos que esgotem ascaracterísticas do abuso da personalidade ali elenca-das (CC, art. 50).

Nesse sentido, partindo do abuso de direito quer-sedefinir abuso da personalidade e caracterizando-o,identificar o que se pode entender como desvio defunção e confusão patrimonial.

3.2. Abuso de DireitoA palavra abuso significa mal uso ou uso errado, ex-

cessivo ou injusto, de modo que se pode associar o abu-so como o uso ilícito de poderes, faculdades, situações,causas ou objetos. O abuso de direito indica que a açãoé contrária à ordem do direito, e que desvia o exercíciodos direitos subjetivos dos fins (justos e verdadeiros) con-sagrados pelo ordenamento jurídico. Assim, no abusode direito tem-se o direito, ainda que viciado23.

Josserand, citado por Luna (1988) e por Martins(1997) trouxe significativa contribuição, pois a partirda jurisprudência dos Tribunais Franceses, conseguiusistematizar a teoria de abuso do direito, destacandoa finalidade social do mesmo em servir como instru-mento possibilitador da conservação da sociedade.Enfatizou, ainda, que todo ato, embora respaldado nalei, mas contrário a essa finalidade, seria abusivo e,por via de conseqüência, atentatório ao Direito.

Esse autor ensina, então, que a teoria do abuso dedireito, caracteriza-se, exatamente pela utilização deum direito legalmente conferido com finalidade distin-ta daquela pela qual foi criado, visando a obtenção de

vantagem indevida. Segundo por Koury (1998, p. 70),Josserand ensina que essa teoria:

(…) tem como critério básico e concreto o finalista,pois diz respeito à finalidade dos direitos, à sua relati-vidade em consideração e em função de seu fim. Des-sa forma, o ato abusivo é o antifuncional, o ato con-trário ao fim do instituto, ao seu espírito. Esse critériofinalista, um tanto abstrato, concretiza-se através domotivo legítimo, de tal modo que o ato será normal ouabusivo conforme explique-se ou não por um motivolegítimo sendo o desvio do direito denunciado exata-mente pelos motivos ilegítimos, como dolo e a má-fé.

A expressão consagrada “abuso de direito” ou “abu-so do direito” sofreu crítica de Planiol (1950) que,entendendo não haver um sentido claro e preciso naexpressão, a identificou como verdadeira antítese ló-gica, pois na realidade, onde termina o direito, aí já seinicia o abuso.

Léon Duguit, citado por Martins (1997, p. 26), enten-deu no mesmo sentido: “Eu não diria, com M. Planiol(Droit Civil, II, n. 87), que a fórmula uso abusivo dosdireitos ‘é uma logomaquia’, mas como ele, entendo quese há direito, este cessa onde o abuso começa”.

Esta posição, entretanto, não encontrou respaldo nadoutrina. Jorge Americano, citado por Martins (1997, p.25), explicou que: “Se por um lado, a noção do direitoexclui a idéia do abuso, porque o abuso desnatura odireito e faz com que deixe de o ser, por outro lado nãohá contestar a realidade dos fatos, que verifica, em umasérie de atos ilícitos, um falso assento em direito (…)”.

Segundo o texto normativo (CC, 188, I) o abuso dedireito consiste no exercício irregular de um direito. ParaBeviláqua (1975), por esse entendimento, a lei brasilei-ra acolheu a doutrina de Saleilles, segundo a qual, paraque se realize o ato abusivo, basta que se desvie o direitode seus fins sociais e econômicos, não havendo nenhumanecessidade de indagar o elemento subjetivo do ato, istoé, se o autor agiu com dolo ou culpa.

Os doutrinadores entendem que o abuso do direitosó pode significar o dever de reparar quando praticadocom dolo ou culpa (CC. 186), dizendo-se, entretanto,que o novo código, em acordo com os ditames maismodernos do direito, estabelece que o abuso podeocorrer mesmo quando existe a violação de um deverapenas moral.

Assim é que Kriger Filho (1994, p. 23) entendeque se caracteriza o abuso de direito “com o uso anor-mal das prerrogativas conferidas à pessoa pelo orde-namento jurídico, objetivando, por dolo ou má-fé, au-ferir vantagem ilícita ou indevida”.

2 3 No Direito Administrativo o abuso de direito corresponde ao desvio de poder, cuja distinção foi proposta por Hauriou conforme citadopor Luna (1988, p. 117), pois “o desvio de poder tem, como conseqüência, uma anulação, o abuso de direito, tem, como efeito uma indenização”.

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O certo é que a expressão abuso de direito indicaque existe um ato abusivo oculto na aparência de exer-cício de direito, o que está intimamente ligado à teo-ria da responsabilidade civil.

A melhor doutrina, segundo Martins (1997, p. 37)ensina que:

(…) não é qualquer fato lesivo do interesse de terceiroque pode gerar (…) a responsabilidade civil. Somente ofato que, dissimulando-se sobre a aparência de uso deuma prerrogativa jurídica, se reveste, na realidade, deum cunho nitidamente anti-social deve sujeitar o seu atorà obrigação de reparar os prejuízos causados.

Atos como exercício anormal da pessoa jurídica, afalta de interesse sério e legítimo na sua constituição, demodo que encobre uma atividade ilegal ou ilícita, o exer-cício antifuncional da empresa, o estabelecimento daconfusão patrimonial etc., são aspectos que confluempara o abuso da personalidade que é um aspecto doabuso de direito diretamente ligado à pessoa jurídica.

3.3. Abuso da personalidadeO conceito de abuso de personalidade está ligado ao

de abuso de direito, na medida em que a personalidadejurídica deve ser usada como instrumento que viabilizenegócios jurídicos legítimos. Nesse sentido, em qualquerhipótese que a pessoa jurídica seja utilizada em sentidocontrário ao que consta, seja de seu contrato social, sejade outros atos constitutivos (desvio de função) ou quan-do se configurar confusão entre o patrimônio social edos sócios ou administradores (confusão patrimonial) tem-se presente o abuso da personalidade.

Assim quando o titular de um ente coletivo escolheuma opção que, não sendo adequada ao espírito dainstituição, é, ao mesmo tempo, danosa para outremcomete um ato abusivo contra a personalidade jurídica.

Identificam-se algumas situações que, ocorrendo,determinam a aplicação da doutrina da superação.Segundo Santos (1990, p. 66-68), embora sem con-senso doutrinário, elas podem ser agrupadas do se-guinte modo:

a) ingresso fraudulento de bens ou de direitos deterceiros para posterior desfalque de patrimônio emdetrimento dos credores;

b) mistura de bens ou contas entre controlador eparticipantes da sociedade e a própria sociedade, du-plo controle ou dupla propriedade de açòes ou cotasou distribuição fictícia de lucros;

c) negócios pessoais praticados pelo sócio ou

pelo administrador como se fora pela sociedade;d) confusão de patrimônio entre o sócio e a socie-

dade;e) estabelecimento de uma comunicação entre bens

dos sócios e os da sociedade, ou entre sociedades;f) quando a sociedade é o alter ego do sócio;g) desvio de finalidade do fins social para a prática

de atos ilícitos;h) subcapitalização evidente, no intuito de excluir a

responsabilidade pelas dívidas da sociedade.Diga-se que se trata de um conjunto de autoriza-

ções que, embora, simplesmente exemplificativas,constituem-se, ainda segundo aquele autor, em dire-trizes básicas que servem para nortear a aplicação dadesestimação.

Desvio de funçãoSegundo Abal (1999) verifica-se uma crescente utili-

zação da personalidade jurídica para fins diversos dospropostos em sua criação, de modo que encontra-se aconstituição de empresas privadas, que geridas seja deforma desconcertada, de forma imprudente e, até mes-mo, maliciosa, importando, em desvio de função.

Em casos semelhantes, seria totalmente contrárioaos cânones do direito que, posteriormente convoca-do para responder por danos que a sociedade causoua outros, os sócios, venham aduzir, simplesmente, que,diante da integralidade do capital social, não mais res-pondem por qualquer problema inerente à gestão dasatividades empresariais. É, então que, uma vez esgo-tado o patrimônio da sociedade, emerge a responsabi-lidade do patrimônio dos sócios.

Todo e qualquer tipo de desvio da função para aqual o ente coletivo foi constituído é vedado, entre-tanto, isso simplesmente não autoriza a aplicação dateoria. É necessário, primeiramente, que tal desvio sejaacompanhado de efeitos danosos a terceiros: ou seja,o elemento integrante de todas as hipóteses de des-consideração da personalidade jurídica é que o abusoda personalidade se dê com preterição de direito deterceiros. Em segundo, a pessoa jurídica deve estarincapacitada de reparar o dano por si mesma, haven-do necessidade de alcançar os bens dos sócios ou ad-ministradores responsáveis pelo desvio de função.

A desconsideração da personalidade jurídica busca,então, atingir o desvio de função alcançando o patri-mônio dos indivíduos que praticaram os atos seja comabuso de direito seja com fraude24, utilizando o mantoprotetor da pessoa jurídica.

2 4 O CC não elencou expressamente a fraude como hipótese de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Ela é prevista,entretanto, no CDC (art. 28) entre as hipóteses que a autorizam. De toda a sorte, a doutrina majoritária vem entendendo que suaocorrência determina a necessidade de sua aplicação. No Direito do Trabalho os atos que visam fraudar direitos trabalhistas são nulos depleno direito, não produzindo, portanto, qualquer efeito.

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Ou ainda, acontecendo o desvio de função cabe aaplicação da desconsideração da personalidade jurídi-ca, de tal sorte que, embora não se chegue a anularou ter como nula a pessoa jurídica, essa pode chegara ser tida como ineficaz, se existe encobrindo ativida-de ilícita, caso em que, conforme Santos (1990) sepode falar em abuso da personalidade jurídica.

O desvio de função da pessoa jurídica, segundoKoury (1998, p. 68), encontra-se estreitamente rela-cionado ao negócio indireto, que, segundo a autora é“aquele em que as partes se propõem alcançar umafinalidade que não é a finalidade típica, segundo a lei,do negócio jurídico escolhido”.

Certamente que havendo desvio de função ou frau-de cabe a aplicação da teoria da transparência. No en-tanto, segundo Coelho (1994, p. 142), outros atos, emque se age com excesso de poder (a pessoa pratica atoou contrai negócio fora do limite da outorga ou autori-dade conferida ou naquilo que a lei permite), ou contralegem (contra a lei, contra os estatutos ou contra asdisposições do contrato social) ou configurando-se a prá-tica de ato ilícito está-se diante de atos da teoria ultravires, não sendo aplicável a teoria da transparência25.

Nos primeiros casos o agente deverá responder porato próprio, enquanto que nos atos ilícitos, a vítima dodano deverá acionar o responsável para que este orepare.

Nesse sentido afirma o autor:Excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito

ou violação dos estatutos ou contrato social dizem res-peito a um tema societário diverso, que é a responsa-bilidade do sócio ou do representante legal da socie-dade por ato ilícito próprio, embora relacionado com apessoa jurídica.

Alberton (1992, p. 168-169) também entende ainaplicabilidade da teoria in casu:

“No que se refere ao excesso de poder, infração dalei, fato, ato ilícito, violação dos estatutos ou contratosocial, não há desconsideração, pois aquele que excedeo que lhe é permitido por lei, age contra a lei ou, dolo-samente contra o estatuto ou contrato, responde porato próprio. Já há previsão legal: no caso da sociedadede responsabilidade limitada (art. 10, Decreto. 3.708, eart. 16); no caso da sociedade anônima (arts. 115, 117e 158, Lei 6404), demais casos, art. 159, CC.”

3.3.2. Confusão patrimonialO Direito positivado estabelece uma separação níti-

da entre o patrimônio do ente coletivo e o patrimônio

das pessoas que o constituem. Esse tipo de determina-ção, com base no princípio da autonomia patrimonial,objetiva atender interesse dos sócios, de modo quecabe aos mesmos proceder de modo a que se efetiveverdadeiramente essa separação.

Entretanto, existem muitas situações em que os só-cios de uma empresa não atentam para a separaçãodo patrimônio e, assim, cria-se uma situação em queos bens da sociedade e os bens dos sócios se confun-dem. Nesse contexto, segundo Xavier (2001, p. 31),deve-se distinguir as situações em que ocorre misturade sujeitos de responsabilidade daquelas em que sedá a mistura de massas patrimoniais, ocasionando con-fusão patrimonial.

A confusão patrimonial ocorre, desse modo, quan-do o patrimônio da pessoa jurídica confunde-se com opatrimônio de seus sócios e administradores. Tal auto-riza a aplicação da teoria da transparência, ainda quemantida a mesma atividade prevista estatutária oucontratualmente.

A garantia da separação patrimonial é diretamenteatingida quando as formalidades da pessoa jurídicanão são obedecidas ou respeitadas. É o que acontece,por exemplo, nos casos da constituição de grupos eco-nômicos, em que empresas são constituídas apenaspara resguardar o patrimônio de ações dos credores.

Existem casos em que, entre outras características,uma das empresas do grupo possui todas ou a maioriadas ações de uma ou mais subsidiárias; as empresastêm diretores comuns; perdas das empresas subsidiári-as são suportadas por financiamentos da controlado-ra; a empresa ou empresas subsidiárias possuem capi-tal inadequado. Todas essas características informama confusão patrimonial, pois não há garantia de que opatrimônio das empresas controladas atenda os credo-res, aplicando-se, então, a teoria da transparência,levantando o véu da pessoa jurídica e alcançando overdadeiro responsável pelas obrigações.

4. ConclusãoO que se verifica é que a autonomia patrimonial da

pessoa jurídica, mesmo que não mais expresso, nonovo CC, é um princípio que ainda tem aplicação noDireito posto. Todavia rejeita-se seu absolutismo, suaincondicionalidade, para preconizar a relatividade domesmo em situações em que as condições permitemidentificar o abuso do direito.

De modo salutar o novo ordenamento jurídico pre-

2 5 Entre as teorias afins à teoria da desconsideração da personalidade jurídica mais prestigiadas citam-se, na doutrina: a teoria da fraude àlei, da instrumentalidade da pessoa jurídica, a teoria ultra vires, a dos atos próprios e da aparência e a teoria do abuso de direito, esta últimaincorporada pelo texto do novo Código Civil.

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coniza que havendo abuso de personalidade, caracte-rizada pelo desvio de função ou pela confusão patri-monial, cabe a aplicação da desconsideração da per-sonalidade jurídica. A regra de total aplicabilidade emtodos os ramos do direito privado, é, de toda sorte,uma evolução no direito normativo até porque conti-nua permitindo ao interprete e aplicador da lei agir demodo crítico e criativo na sua aplicação.

A norma, por sua vez, tem total aplicação no Direi-to do Trabalho, seja nos casos de formação de grupoeconômico, seja naquelas situações em que a criaçãode empresas terceirizadas e cooperativas nada maissão do que braços da empresa principal.

Diga-se, ainda, que sua aplicação, em nada desnatu-ra a pessoa jurídica, ao contrário a aperfeiçoa, porque,no caso concreto mesmo que momentaneamente, o véulevantado vai evidenciar apenasmente o que de verda-deiro existe por trás do manto da pessoa jurídica.

Três considerações quanto a sua aplicação devemser feitas. A uma, o pressuposto das hipóteses de seucabimento é o da lesão de interesses legítimos de ter-ceiros. Assim, a prática abusiva deve estar adequada

à preterição do direito de terceiro, inclusive dos de-mais sócios. A duas: a desestimação, sempre está vin-culada à incapacidade financeira da pessoa jurídicapara reparar o dano causado. Claro está que, tendo apessoa jurídica capacidade financeira não se verifica,a primeira vista, a aplicação da teoria. A três, tem-seque o fundamento jurídico da desconsideração é a res-ponsabilidade, tanto objetiva quanto subjetiva.

A aplicação do instituto, por sua excepcionalidade,não deve funcionar como substituto de outros meca-nismos legais de correção do mau uso da pessoa jurí-dica, já incorporados no nosso ordenamento. Levanta-se o véu quando responsáveis pela empresa praticamatos que importam em abuso da personalidade jurídi-ca, seja desviando suas finalidades, seja produzindoconfusão patrimonial. Entretanto, não se deve esque-cer que a empresa permanece e, no caso específicodos direitos trabalhistas, o Juiz deve sempre estar aten-to para que sua decisão não venha implicar em impos-sibilidade da empresa manter os demais empregados,o que seria, sem dúvida um mau uso da teoria dadesestimação.

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AMATRA IIAssociação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2a Região

Av. Rio Branco, 285 - 11º andar - CEP 01205-000 - São Paulo - SPTel.: (011) 222-7899

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