aspectos relevantes da lei anticorrupo empresarial

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24 Aspectos relevantes da lei anticorrupção empresarial brasileira (Lei nº 12.846/2013) Relevant features from brazilian corporate corruption law (Law 12.846/2013) João Marcelo Rego Magalhães 1 Resumo A partir de uma análise crítica da Lei nº 12.846/2013, que trata da responsa- bilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, busca-se desenhar um panorama geral do regime jurídico relativo à aplicação das sanções em face dos atos lesivos às licitações, a adoção do compliance pelas empresas, a desconsideração da personalidade jurídica, o acordo de leniência, a prescrição da punibilidade das infrações pra- ticadas, e, principalmente, o regime de independência de instâncias para fins de punibilidade, conforme previsto nos artigos 3º, 18 e 30, o que possibilita a dupla sanção pelo mesmo fato ilícito. Palavras-chave: Pessoa Jurídica. Atos lesivos. Administração Pública. Abstract From a critical review of Law 12.846/2013, which deals with civil and ad- ministrative liability of legal persons for the commission of acts against the government, we seek to draw an overview of the legal framework on the application of sanctions in the face of acts harmful to bids, the adoption of compliance by companies, disregard of legal entity, the leniency agreement, prescribing punishment of offenses committed, and especially the indepen- dence of instances for purposes of punishment, as provided in articles 3, 18 and 30, which enables the double penalty. Keywords: Corporations. Injurious acts. public service. 1 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Professor de Graduação do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza. Procurador do Banco Central do Brasil.

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    Aspectos relevantes da lei anticorrupo empresarialbrasileira (Lei n 12.846/2013)

    Relevant features from brazilian corporate corruption law (Law 12.846/2013)

    Joo Marcelo Rego Magalhes1

    ResumoA partir de uma anlise crtica da Lei n 12.846/2013, que trata da responsa-bilidade administrativa e civil de pessoas jurdicas pela prtica de atos contra a administrao pblica, busca-se desenhar um panorama geral do regime jurdico relativo aplicao das sanes em face dos atos lesivos s licitaes, a adoo do compliance pelas empresas, a desconsiderao da personalidade jurdica, o acordo de lenincia, a prescrio da punibilidade das infraes pra-ticadas, e, principalmente, o regime de independncia de instncias para fins de punibilidade, conforme previsto nos artigos 3, 18 e 30, o que possibilita a dupla sano pelo mesmo fato ilcito.

    Palavras-chave: Pessoa Jurdica. Atos lesivos. Administrao Pblica.

    AbstractFrom a critical review of Law 12.846/2013, which deals with civil and ad-ministrative liability of legal persons for the commission of acts against the government, we seek to draw an overview of the legal framework on the application of sanctions in the face of acts harmful to bids, the adoption of compliance by companies, disregard of legal entity, the leniency agreement, prescribing punishment of offenses committed, and especially the indepen-dence of instances for purposes of punishment, as provided in articles 3, 18 and 30, which enables the double penalty.

    Keywords: Corporations. Injurious acts. public service.

    1 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Professor de Graduao do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza. Procurador do Banco Central do Brasil.

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    1 Introduo

    A Lei n 12.846, de 1 de agosto de 2013, tambm conhecida como Lei Anticorrupo Brasileira, dispe sobre a responsabilizao administrativa e civil de pessoas jurdicas pela prtica de atos contra a Administrao Pbli-ca, nacional ou estrangeira.

    A Lei n 12.846/2013 expressa em afirmar que a responsabilidade imposta s pessoas jurdicas no exige prova de conduta culposa, sendo de-vida pela simples prtica de ato contra a Administrao Pblica, configuran-do, assim, responsabilidade por culpa objetiva.

    A norma aplicvel s sociedades empresrias e s sociedades sim-ples, personificadas ou no, independentemente da forma de organizao ou modelo societrio adotado, bem como a quaisquer fundaes, associaes de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representao no territrio brasileiro, constitudas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.

    As pessoas jurdicas sero responsabilizadas objetivamente, nos m-bitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos, praticados em seu interesse ou benefcio, seja exclusivo ou no.

    A responsabilizao da pessoa jurdica no exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa na-tural, autora, coautora ou partcipe do ato ilcito.

    A pessoa jurdica ser responsabilizada independentemente da respon-sabilizao individual das pessoas naturais.

    Subsiste a responsabilidade da pessoa jurdica na hiptese de alterao contratual, transformao, incorporao, fuso ou ciso societria.

    Como toda legislao recente, no houve tempo suficiente para que a doutrina e os Tribunais assentassem os temas mais relevantes da Lei n 12.846/2013 alguns deles acompanhados de certa controvrsia na interpre-tao e aplicao das normas de regncia.

    Assim, sem pretender esgotar o assunto, entendemos que, por ora, me-rece especial ateno a disciplina jurdica que a Lei adotou para os seguintes assuntos: a responsabilidade objetiva das pessoas jurdicas e a responsabi-lidade subjetiva das pessoas fsicas; as sanes em face dos atos lesivos s licitaes e a no extenso dos efeitos disciplina da Lei n 8.666/1993; o compliance como medida a ser adotada pelas empresas a fim de atenuar

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    as sanes eventualmente aplicveis; a desconsiderao da personalidade jurdica; o destacado papel conferido CGU, notadamente quanto aplica-o da Lei no mbito do Poder Executivo federal e em face de atos contra a Administrao Pblica estrangeira; o acordo de lenincia como medida que beneficia exclusivamente as pessoas jurdicas; a prescrio da punibilidade das infraes e a imprescritibilidade das aes de ressarcimento (art. 37, 5, da Constituio Federal) e o regime de independncia de instncias para fins de punibilidade, previsto nos arts. 3, 18 e 30, e a possibilidade de dupla sano pelo mesmo fato.

    2 A responsabilidade objetiva das pessoas jurdicas e a responsabilidade subjetiva das pessoas fsicas

    De incio, preciso lembrar que a Lei n 12.846/2013 dispe sobre a responsabilizao objetiva administrativa e civil de pessoas jurdicas pela prtica de atos contra a administrao pblica, nacional ou estrangeira2, punindo aquelas que venham a praticar, em seu interesse ou benefcio, atos lesivos Administrao Pblica, nacional ou estrangeira, atravs de sanes aplicadas na via administrativa ou judicial, instituindo responsabilidade de natureza objetiva (independente de culpa)3.

    Ocorre que esta Lei tambm estabeleceu responsabilidade para pes-soas naturais (autores, coautores e partcipes de ato ilcito, sejam ou no dirigentes ou administradores da pessoa jurdica), sendo possvel extrair as seguintes regras do caput e pargrafos do art. 3:

    a) a responsabilizao da pessoa jurdica no impede a respon-sabilizao individual da pessoa natural que praticou o ato il-cito;b) a pessoa jurdica ser responsabilizada independente da res-ponsabilizao da pessoa natural;c) dirigentes e administradores somente so responsabilizados em caso de conduta culposa.

    bom notar que a Lei imputou responsabilidade subjetiva de forma expressa apenas aos dirigentes e administradores, nada dispondo sobre a res-

    2 Conforme teor de seu art. 1, caput.3 Conforme art. 2, caput.

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    ponsabilidade de pessoas fsicas estranhas aos quadros das pessoas jurdicas que praticam atos lesivos Administrao Pblica. Assim sendo, para esta categoria de particulares preciso indagar se h alguma forma de responsa-bilidade e se esta seria de natureza objetiva ou subjetiva.

    No soa razovel pensar que pessoas estranhas ao quadro de uma em-presa, mas agindo em beneficio desta no cometimento de ilcitos contra a Administrao Pblica, ficassem totalmente livres de responsabilizao. Em seguimento a tal raciocnio, tambm no aceitvel impor responsabilidade objetiva s pessoas fsicas que no so dirigentes e administradores, pois esta no se presume: a responsabilidade sem culpa deve estar definida em lei.

    O fundamento da responsabilidade objetiva imputada s pessoas ju-rdicas evitar que possam auferir qualquer tipo de vantagem ilcita e, pos-teriormente, alegar que no agiram com culpa ou que terceiro deu causa a eventual infrao. No sendo aceitvel qualquer enriquecimento sem causa em prejuzo do poder pblico, o ganho ilcito deve sempre ser objetivo de punio.

    Como a Lei n 12.846/2013 objetiva impedir a corrupo empresarial, a pessoa jurdica responde sempre que praticar ato lesivo em suas relaes com a Administrao Pblica (obtida vantagem indevida ou no). No que concerne s pessoas naturais, entretanto, sua punibilidade obedece a regime menos gravoso, o que no obsta a responsabilidade das pessoas jurdicas: tenham ou no culpa em suas condutas, sejam ou no responsveis, os atos de dirigentes ou outros particulares contra o patrimnio pblico impem a punio das personalidades jurdicas que representam ou beneficiam.

    Portanto, deve ficar bem definido que todos os particulares, no im-porta sua relao com a pessoa jurdica, vo responder de forma subjetiva, da mesma forma que, independentemente de serem punidos os particulares, as personalidades jurdicas definidas no pargrafo nico do art. 1 desta Lei respondem de forma objetiva, sem necessidade de verificao de culpa, pois a conduta ilcita destas que a Lei n 12.846/2013 visa coibir.

    Por oportuno, registramos que o caput do art. 1 fala em prtica de atos contra a administrao pblica, o que significa dizer que a mera tenta-tiva e a omisso, mesmo que causadoras de prejuzo, no sero punidas por esta norma, ainda que haja processo de ressarcimento. Todavia, desde que tenha ocorrido uma das condutas descritas no art. 5 da Lei n 12.846/2013, pouco importa se ocorreu prejuzo Administrao, tendo em conta que a

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    prtica do ato que considerado lesivo por presuno legal j enseja, por si, a responsabilizao da empresa de forma objetiva, no sendo necessrio avaliar se houve culpa ou dolo.

    Na verdade, a verificao de prejuzo ao poder pblico no condi-o para a responsabilizao prevista na Lei aqui comentada, prestando-se, contudo, a impor que um procedimento especfico para fins de ressarcimen-to seja instaurado juntamente com o processo que avaliar a aplicao de sanes.

    Ocorre que uma das situaes levadas em conta no momento da apli-cao de sanes consumao ou no da infrao, conforme inciso III do art. 7. Assim, salvo melhor interpretao, pensamos que a mera tentativa de cometer a infrao no deve ser punida, mas, uma vez cometido o ato lesivo, a consumao do resultado pretendido (quando houver finalidade descrita na tipificao) ou do prejuzo causado aos cofres pblicos que se torna irrelevante para fins de sano.

    Uma ltima observao pertinente: mesmo que dirigentes e admi-nistradores no tenham qualquer conhecimento do ilcito praticado por um empregado ou preposto, a conduta, se tipificada no art. 5 desta Lei, atrai a responsabilidade objetiva das pessoas jurdicas, situao que aumenta de importncia a adoo do compliance, que ser logo adiante analisado.

    A afirmao de que dirigentes e administradores sero punidos inde-pendentemente do conhecimento da prtica de ato lesivo encontra amparo na interpretao conjunta do caput do art. 2 com o 1 do art. 3, de onde se extrai que mero interesse ou benefcio motivo suficiente para punio, no tendo a norma, em momento algum, exigido a cincia da conduta lesiva.

    De toda sorte, se adotarmos uma interpretao puramente literal da-queles dispositivos, na hiptese descrita nos pargrafos anteriores seramos obrigados a afirmar que a responsabilidade objetiva aqui tratada no com-portaria nem mesmo a excludente de culpa exclusiva de terceiro, o que a tornaria mais gravosa at do que a responsabilidade objetivo do Estado e a aproximaria de uma responsabilidade pelo risco integral.

    Tal abrangncia da responsabilidade objetiva aqui analisada h de ter contornos mais bem definidos quando as situaes fticas forem apresenta-das ao crivo do Poder Judicirio. Por ora, a redao, dados aos dispositivos legais, no permite pensar de outra forma: dirigentes e administradores sero punidos ainda que no saibam e no aprovem a conduta de seu proposto, bastando que o ato lesivo traga algum benefcio pessoa jurdica.

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    3 As sanes em face dos atos lesivos s licitaes e a no extenso dos efeitos disciplina da Lei n 8.666/1993

    A Lei n 12.846/2013 prev, em seu art. 5, uma srie de atos lesivos que atentam contra o patrimnio pblico, os princpios da administrao pblica ou os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

    Em seu art. 6, a Lei n 12.846/2013 afirma que as sanes aplicveis s pessoas jurdicas consideradas responsveis pelos atos lesivos descritos no art. 5 so a multa e a publicao extraordinria da deciso condenatria. H previso ainda, mas agora no art. 19, de que tais atos lesivos permitem o ajuizamento de ao pelas respectivas advocacias pblicas ou pelo Mi-nistrio Pblico com vistas aplicao das seguintes sanes s pessoas jurdicas infratoras:

    a) perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infra-o, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-f;b) suspenso ou interdio parcial de suas atividades; c) dissoluo compulsria da pessoa jurdica;d) proibio de receber incentivos, subsdios, subvenes, doa-es ou emprstimos de rgos ou entidades pblicas e de insti-tuies financeiras pblicas ou controladas pelo poder pblico, pelo prazo mnimo de 1 (um) e mximo de 5 (cinco) anos.

    No h como deixar de notar que no houve qualquer previso de proibio de participar de licitao ou de contratar com o Poder Pblico, mesmo sendo prevista na via judicial a sano de suspenso ou interdio de atividades.

    Ora, uma pessoa jurdica condenada por ato lesivo administrao pblica suspenso ou interdio parcial de suas atividades na esfera judi-cial, no pode, sob o enfoque da moralidade e da eficincia administrativa, licitar ou contratar com o poder pblico, notadamente quando algumas de suas condutas lesivas so descritas como atentatrias justamente s licitaes e aos contratos administrativos, conforme o inciso IV do art. 5 da Lei n 12.846/2013.

    Todavia, do ponto de vista do princpio da legalidade administrativa, a pessoa jurdica condenada a qualquer sano da citada Lei n 12.846/2013 no fica impedida de licitar e contratar com o poder pblico, e tal afirmao

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    se apoia nos seguintes motivos:

    a) a Lei n 12.846/2013 previu vrias proibies s pessoas ju-rdicas sancionadas pelas condutas que descreve como lesivas, no prevendo expressamente a proibio de licitar ou contratar com o poder pblico, no sendo possvel o uso da analogia pelo princpio da legalidade, principalmente quando implicar sano ao administrado;b) a Lei n 8.429/1992, que trata da sano por improbidade ad-ministrativa, prev a proibio de contratar com o Poder Pbli-co, mas a sano prevista para agente pblico ou para pessoa fsica que induza ou concorra para a prtica do ato de improbi-dade ou dele se beneficie sob qualquer forma;c) as sanes previstas nos incisos III e IV do art. 87 da Lei n 8.666/1993 so aplicadas por inexecuo do contrato, ou seja, quando a pessoa jurdica j foi adjudicada no objeto licitado, sendo certo que os atos lesivos previstos na Lei n 12.846, de 2013, podem ou no estar relacionadas com licitaes pblicas (incisos I a III e V do art. 5) ou terem sido praticados antes da efetiva contratao com o poder pblico (alneas a a e do inciso IV do art. 5).

    4 O compliance como medida a ser adotada pelas empresas a fim de atenu-ar as sanes eventualmente aplicveis

    Compliance o termo da lngua inglesa (do verbo to comply) utilizado para designar o dever de cumprir, de estar em conformidade e fazer cumprir regulamentos internos e externos impostos s atividades de uma organizao (SANTOS, on-line, p. 4).

    Tendncia moderna nas organizaes empresariais, notadamente as que tm contrato com o poder pblico, o compliance engloba o conjunto de aes voltadas a cumprir os regulamentos internos sobre tica empresarial e a legislao anticorrupo existente no Pas.

    So instrumentos usualmente adotados pela rea de compliance das empresas o uso de cdigo de tica e/ou cdigo de conduta, canais de de-nncia, ouvidorias, desenvolvimento de controles internos e procedimentos voltados divulgao de temas relacionados corrupo (SANTOS, on-line, p. 4).

    A Lei n 12.846/2013 elenca, em seu art. 7, as circunstncias que sero consideradas como agravantes ou atenuantes na aplicao de sanes,

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    dentre as quais a existncia de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo denncia de irregularidades e a aplica-o efetiva de cdigos de tica e de conduta no mbito da pessoa jurdica (inciso VIII).

    Por oportuno, relevante mencionar que os parmetros de avaliao de mecanismos e procedimentos relativos aos compliance devem ser estabe-lecidos por regulamento expedido pelo Poder Executivo federal4.

    O comando normativo acima transcrito (inciso VIII do art. 7) acaba por fazer um rol legal de instrumentos adotados pelo compliance empresa-rial, devendo tal lista ser considerada como meramente exemplificativa, at porque no cabe ao legislador encerrar a discusso terica sobre o tema, que afeto Administrao Geral e no ao Direito.

    Assim, caso uma empresa adote instrumentos que entenda adequados e eficientes na preveno e represso de desvios na conduta interna da cor-porao e de atos de corrupo lesivos Administrao Pblica, tal conduta dever ser considerada como atenuante no momento da aplicao de pena-lidades, compondo necessariamente o relatrio a ser redigido pela comisso prevista no art. 10 da Lei n 12.846/2013.

    Importante citar ainda que a aplicao de qualquer penalidade na via administrativa exige anlise por parte do rgo de assessoria jurdica do r-go ou entidade, conforme preceitua o 2 do art. 6 desta Lei.

    Outra vantagem na adoo do compliance decorre do carter objetivo das sanes aplicadas, que alcana inclusive aes que no so do conheci-mento de dirigentes e administradores. Assim, mesmo que estes no tenham qualquer conhecimento do ilcito praticado por um empregado ou preposto, a conduta, se tipificada no art. 5 desta Lei, atrai a responsabilidade objetiva das pessoas jurdicas, situao que pode ser elidida se houver estrutura que se ocupe de divulgar uma cultura organizacional tica, alm de controlar a legalidade das aes empresariais; ainda que no seja evitado o cometimen-to do ilcito, os esforos da pessoa jurdica devem ser considerados para fins de atenuar a penalidade a ser eventualmente aplicada.

    No custa enfatizar que a adoo da interpretao conjunta do caput do art. 2 com o 1 do art. 3, de forma puramente literal, leva a concluir que a responsabilidade objetiva aqui tratada no comportaria nem mesmo

    4 Vide pargrafo nico do art. 7 da Lei n 12.846/2013.

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    a excludente de culpa exclusiva de terceiro, o que a aproximaria de uma responsabilidade pelo risco integral. At que o Poder Judicirio manifeste-se sobre o tema, o exame daqueles dispositivos implica afirmar que dirigentes e administradores sero punidos ainda que no saibam e no aprovem a conduta de seus propostos, bastando que os atos lesivos tragam benefcio pessoa jurdica.

    Todavia, em situaes peculiares, onde se mostrasse ntida a falta de razoabilidade da punio em face da existncia de uma poltica de complian-ce firmemente arraigada e a verificao de ato ilcito isolado, notadamente fora da esfera de conhecimento dos dirigentes, seria possvel at pensar em excluso da punibilidade da pessoa jurdica, cabendo apenas sano penal ao preposto.

    Tambm cabe o registro de que a adoo desta cultura que respeita regulamentos, cdigos de conduta e leis pertinentes lisura das relaes com o poder pblico pode se prestar ainda como publicidade positiva das pessoas jurdicas, notadamente no que se refere sua responsabilidade social, permi-tindo a concesso de benefcios e incentivos fiscais ou creditcios, por parte das agncias oficiais de fomento.

    No seria exagerado dizer ainda que pessoas jurdicas que exercem ati-vidade econmica regulada pelo Estado podem encontrar no compliance um importante aliado no processo permanente de fiscalizao, tendo em conta que o mecanismo interno envolve auditorias e verificaes que se prestam a identificar problemas na execuo da atividade regulada antes de qualquer medida estatal de carter sancionatrio.

    Portanto, em uma anlise preliminar sob o aspecto jurdico, podemos afirmar que a adoo do compliance oferece os seguintes benefcios:

    a) configura conduta atenuante para fins de aplicao de pena-lidades;b) contribui para evitar o cometimento de ilcitos por parte de empregados e prepostos, que, mesmo sem a chancela ou o co-nhecimento de dirigentes e administradores, permite a respon-sabilizao das pessoas jurdicas;c) caracteriza o compromisso com a responsabilidade social, permitindo o recebimento de incentivos fiscais ou creditcios, por parte de agncias de fomento;d) facilita o processo de fiscalizao e controle pelo ente regu-lador, permitindo ainda que o regulado se previna de condutas

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    ilcitas, potencialmente ensejadoras de medidas sancionatrias.

    Finalizando a abordagem desta Lei sobre o compliance, cabe registrar que, em nossa opinio, o legislador poderia ter sido mais ousado no incen-tivo s polticas empresariais anticorrupo, prevendo tambm mecanismos de premiao por condita tica, e no somente a sano por ilcitos pratica-dos.

    Seria interessante, por exemplo, que a Lei trouxesse tambm a previso de um cadastro positivo de empresas que adotam o compliance, e no ape-nas o cadastro negativo previsto no art. 22, qual seja, o Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP).

    Outra medida possvel seria considerar como critrio de desempate nas licitaes pblicas o fato de os bens ou servios serem produzidos ou prestados por empresa que tenha implantado um departamento ou gerncia de auditoria interna e compliance, o que seria concretizado com uma altera-o simples no 2 do art. 3 da Lei n 8.666/1993.

    5 A desconsiderao da personalidade jurdica

    Conforme mencionado de forma destacada no art. 14 da Lei n 12.846/2013, a personalidade jurdica poder ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prtica dos atos ilcitos previstos nesta Lei ou para provocar confuso patri-monial, sendo, assim, estendidos todos os efeitos das sanes aplicadas pessoa jurdica aos seus administradores e scios com poderes de administra-o, necessariamente observando o contraditrio e a ampla defesa.

    Vale mencionar que a desconsiderao da personalidade jurdica aqui prevista adotou a chamada Teoria Maior da desconsiderao, prevista no art. 50 do Cdigo Civil de 2002, que exige a verificao do abuso da perso-nalidade em caso de desvio de finalidade ou confuso patrimonial, e no a Teoria Menor, que se contenta com a mera insolvncia e prevista no 5 do art. 28 do Cdigo de Defesa do Consumidor5.

    Neste ponto oportuno citar ainda que, no mbito do direito admi-nistrativo, a desconsiderao da personalidade jurdica pode ocorrer em 2

    5 Vide REsp 279.273/SP, Rel. Ministro Ari Pargendler, Rel. p/ Acrdo Ministra Nan-cy Andrighi, 3 Turma, julgado em 04/12/2003, DJ 29/03/2004, p. 230.

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    (duas) situaes (com adoo da Teoria Maior em ambos os casos):

    a) para fins de aplicao de sanes previstas no art. 87 da Lei n 8.666/1993, conforme jurisprudncia do TCU (Acrdo n 1.327/2012-TCU-Plenrio), na hiptese de fraude comprovada;b) em caso de aplicao das sanes desta Lei, quando a per-sonalidade da empresa for utilizada com abuso do direito, para fins de encobrir ou dissimular atos ilcitos, ou para provocar confuso patrimonial.

    6 O acordo de lenincia como medida que beneficia exclusivamente as pessoas jurdicas

    A Lei n 12.846/2013, em seu art. 16, prev que as pessoas jurdicas podem celebrar acordo de lenincia para fins de identificao dos demais envolvidos e obteno de informaes e documentos que comprovem o il-cito sob apurao. O 1 do mesmo artigo exige que a celebrao do acordo precisa atender a 3 (trs) requisitos: a pessoa jurdica deve ser a primeira a manifestar interesse em cooperar, cessar completamente sua participao nas ilicitudes e admitir sua participao nos ilcitos, cooperando de forma plena e permanente com as investigaes e com o processo administrativo.

    Atendidos todos os requisitos e celebrado o acordo de lenincia, a pessoa jurdica fica isenta, conforme 2 do art. 16, das sanes previstas no inciso II do art. 6 (publicao da deciso condenatria) e no inciso IV do art. 19 (proibio de receber incentivos, subsdios, subvenes, doaes ou em-prstimos de rgos ou entes pblicos), tendo ainda sua sano pecuniria prevista no inciso I do art. 6 reduzida em at 2/3 (dois teros).

    Apesar de parecer um acordo tentador primeira vista, preciso ob-servar que no h qualquer benefcio previsto para as pessoas fsicas que cometem o ilcito tipificado.

    Ora, se a pessoa jurdica vai celebrar acordo, apontar culpados, ofe-recer informaes ou documentos e cooperar plenamente com as investi-gaes, certo que tais condutas s podem ser materializadas por pessoas fsicas, notadamente seus gestores mais graduados, que detm ou pelo menos deveriam deter o conhecimento das decises estratgicas e das re-laes com o poder pblico, estando, assim, aptos a prestar colaborao de forma eficiente.

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    E nem se diga que dirigentes e administradores s sero punidos se tiverem o pleno conhecimento do ato lesivo Administrao Pblica, tendo em conta que a interpretao conjunta do caput do art. 2 com o 1 do art. 3 no deixa dvida de que o simples interesse ou benefcio motivo sufi-ciente para aplicao de sanes, no tendo a norma, em momento algum, exigido a cincia da conduta lesiva.

    Assim sendo, a confisso de ato lesivo contra o poder pblico, normal-mente tambm tipificado como ilcito penal, pode at trazer vantagens pes-soa jurdica, mas certamente trar consequncias gravosas s pessoas fsicas. Neste ponto, curioso observar que, quanto mais colaborar o dirigente ou administrador, mais reduzida ficar eventual sano pecuniria a ser impu-tada pessoa jurdica, e mais implicado ficar o delator na esfera criminal.

    Por oportuno, bom lembrar que o legislador, por ocasio da Lei n 12.529/2011, que dispe sobre a preveno e represso s infraes contra a ordem econmica, teve a oportunidade de elaborar um vantajoso pro-grama de lenincia tanto para pessoas fsicas quanto jurdicas, o que inclui at mesmo a extino da punibilidade penal em caso de cumprimento do acordo de lenincia6.

    A verdade que Lei n 12.846/2013 no previu qualquer extenso s pessoas fsicas dos benefcios que pretende conceder s pessoas jurdicas em caso de acordo de lenincia, no sendo errado afirmar que a oportunidade para tal at se apresentou, quando o legislador decidiu aplicar os benefcios de forma extensiva s empresas que formam o mesmo grupo econmico, conforme redao dada ao 5 do art. 16.

    Por fim, entendemos que a frmula genrica contida no 4 do art. 16 (o acordo de lenincia estipular as condies necessrias para assegurar a efetividade da colaborao e o resultado til do processo) no permite a concesso, na via administrativa, de qualquer benefcio ou vantagem s pes-soas fsicas, tendo em conta que a extino de punibilidade penal matria que se insere no mbito da reserva legal.

    7 A prescrio da punibilidade das infraes e a imprescritibilidade das aes de ressarcimento (art. 37, 5, da Constituio Federal)

    6 Vide arts. 86 e 87 da Lei n 12.529/2011.

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    Conforme preceitua o art. 25 da Lei n 12.846/2013, prescrevem em 5 (cinco) anos as infraes previstas nesta Lei, contados da data da cincia da infrao ou, no caso de infrao permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.

    importante registrar que o prazo prescricional previsto ser interrom-pido com a instaurao do processo administrativo de apurao da infrao, nos termos do pargrafo nico do art. 25.

    A partir da leitura da norma contida no caput do artigo em exame a primeira concluso at bvia: aqui se apresenta mais uma situao onde foi adotada a prescrio quinquenal para fins de punio a ser imputada por ilcito praticado contra a Administrao Pblica. Exemplos de normas que adotam a prescrio quinquenal das punies a serem imputadas queles que lesam o poder pblico podem ser lembrados com facilidades, cabendo citar, por sua relevncia, as seguintes Leis:

    a) Lei n 8.112/1990: estabelece prescrio quinquenal para a ao disciplinar que vise punir o servidor com demisso, cassa-o de aposentadoria, disponibilidade ou destituio de cargo em comisso (art. 142);b) Lei n 8.429/1992: estabelece prescrio quinquenal para aplicao de sanes por improbidade administrativa aos que exercem cargo em comisso ou cargo efetivo no mbito federal (art. 23);c) Lei n 9.873/1999: estabelece prescrio quinquenal para a ao punitiva da Administrao Pblica federal no exerccio do poder de polcia (art. 1).

    A segunda concluso que se julga possvel extrair do citado art. 25 no to bvia quanto a anterior. Ocorre que o texto legal ficou silente em rela-o reparao integral do dano prevista no 3 do art. 6 , o que pode levar equivocada concluso de que a reparao do dano tambm prescreve com o lapso temporal de 5 (cinco).

    Todavia, por sua natureza de ressarcimento aos cofres pblicos, a re-parao do dano a que se refere a Lei n 12846/2013 amparada por direito de ao imprescritvel, conforme interpretao que extrai do teor do 5 do art. 37 da Constituio Federal, j devidamente assentada no mbito do STF7.

    7 Vide MS 26.210, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Plenrio, julgado em 04/09/2008, DJE 10/10/2008.

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    8 O regime de independncia de instncias para fins de punibilidade, previs-to nos arts. 3, 18 e 30, e a possibilidade de dupla sano pelo mesmo fato

    A Lei n 12.846/2013 definiu um peculiar regime de independncias de instncias para fins de punibilidade, utilizando como critrios diferencia-dores a natureza do infrator, a esfera de responsabilizao e norma sancio-nadora aplicvel, conforme se depreende da leitura dos arts. 3, 18 e 30, respectivamente, sendo possvel elaborar a seguinte sntese:

    a) o art. 3 define que a responsabilizao da pessoa jurdica no exclui a responsabilidade individual dos dirigentes e admi-nistradores, nem de qualquer pessoa natural, autora, coatora ou partcipe do ato ilcito (critrio da natureza do infrator);b) o art. 18 afirma que a responsabilidade da pessoa jurdica na esfera administrativa no afasta a responsabilidade no mbito do processo judicial (critrio da esfera de responsabilizao);c) o art. 30 dispe que a aplicao de sanes previstas na Lei n 12.846/2013 no afeta a aplicao de penalidades decorren-tes de ato de improbidade administrativa, nos termos da Lei n 8.429/1992, e de atos ilcitos alcanados pela Lei n 8.666/1993, ou outras normas de licitaes e contratos da administrao p-blica, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contrata-es Pblicas (RDC), institudo pela Lei n 12.462/2011 (crit-rio da norma sancionadora aplicvel).

    A primeira hiptese de independncia de instncias (em face da na-tureza do infrator) foi suficientemente abordada quando se fez um paralelo entre a responsabilidade objetiva das pessoas jurdicas e a responsabilidade subjetiva das pessoas fsicas, nada mais sendo necessrio acrescentar.

    Quanto ao critrio da esfera de responsabilizao, que permite puni-o tanto no mbito quanto judicial, cabem algumas ponderaes sobre os seguintes aspectos:

    a) impossibilidade de cumulao de uma mesma espcie de san-o punitiva;b) natureza das sanes aplicveis;c) competncia concorrente do Ministrio Pblico e do rgo de representao judicial para ajuizamento da responsabiliza-o judicial;d) atuao subsidiria do Ministrio Pblico.

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    A responsabilizao em mbito administrativo foi disciplinada no art. 6 da Lei n 12.846/2013, sendo previstas como sano s pessoas jurdicas consideradas responsveis a aplicao de multa e a publicao extraordi-nria da deciso condenatria. No mbito do processo judicial, conforme redao do art. 19, so cabveis o perdimento dos bens, direitos e valores, a suspenso ou interdio parcial de suas atividades, a dissoluo compulsria e a proibio de receber incentivos, subsdios, subvenes, doaes ou em-prstimos de rgos ou entidades pblicas e de instituies financeiras p-blicas. Portanto, mesmo com a independncia das instncias administrativa judicial, impossvel que uma mesma espcie sancionatria, uma multa, por exemplo, seja aplicada de forma dplice, ou seja, pelo mesmo fato e em momentos e instncias distintas (bis in idem). Todavia, a possibilidade de dupla imputao pode ocorrer quando se permitir a incidncia de norma diversa sobre os mesmos fatos, o que ser analisado quando comentarmos a regra do art. 30.

    Curioso observar que as sanes administrativas tm ntido carter civil (uma de natureza pecuniria e outra com natureza de obrigao de fazer), enquanto as sanes previstas no mbito judicial, com exceo do perdi-mento de bens, direitos e valores, guardam ntida semelhana as punies normalmente aplicadas no exerccio do poder de polcia administrativa.

    Outra regra que chama ateno do caput do art. 19, que estabelece competncia concorrente entre o Ministrio Pblico e os rgos de repre-sentao judicial da Advocacia Pblica federal para ajuizamento das aes de responsabilidade pelos atos lesivos Administrao Pblica tipificados no art. 5. Ainda que se diga que previso semelhante pode ser encontrada tambm no art. 5 da Lei n 7.347/1985, em defesa dos direitos difusos e coletivos, e no art. 17 da Lei n 8.429/1992, em defesa da probidade admi-nistrativa, a regra em questo cita de forma especfica o rgo de representa-o judicial, sem adotar a meno genrica ao ente federado ou s pessoas jurdicas de sua Administrao Indireta; ademais, no 4 do mesmo art. 19 consta at mesmo a previso de que o rgo da Advocacia Pblica federal requeira a indisponibilidade cautelar de bens e direitos necessrios garantia do pagamento da multa ou da reparao integral do dano.

    Tambm digno de registro que a Lei n 12.846/2013 instituiu uma regra de atuao judicial subsidiria do Ministrio Pblico na hiptese de omisso da autoridade administrativa, conforme redao do art. 20 daquela

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    Lei. Segundo a norma citada, o Ministrio Pblico fica autorizado a propor a aplicao conjunta das sanes previstas no art. 6 (que devem ser aplicadas no curso de um processo administrativo) com as do art. 19, sempre que a autoridade administrativa se mostrar inerte diante da cincia de atos que, em tese, se adequam s condutas descritas no art. 5, hiptese em que tambm devem ser tomadas medidas contra o agente pblico omisso.

    Em caso de atuao subsidiria do Ministrio Pblico nos casos em que no se instaurou processo administrativo, no cabe falar em desrespeito ao contraditrio e ampla defesa previstos no art. 8, porque a defesa do acusado ser oportunizada no curso do processo judicial. Todavia, em tal hiptese, mostra-se adequado colher a manifestao do rgo de representa-o judicial, que no teve a oportunidade de exercer a prerrogativa descrita no 2 do art. 6.

    Por fim, a independncia de instncias para fins de punio prevista no art. 30 da Lei n 12.846/2013, apoia-se no critrio da norma sanciona-dora aplicvel, permitindo a cumulao das sanes daquela Lei com as penalidades previstas nas Leis n 8.429/1992 (improbidade administrativa), n 8.666/1993 (licitaes e contratos) e n 12.462/2011 (RDC), caso o ato praticado represente ilcito tipificado em mais de uma norma.

    Quanto ao regime jurdico previsto na Lei n 8.429/1992, que dispe sobre as sanes aplicveis aos agentes pblicos nos casos de enriqueci-mento ilcito, no h a menor dvida de que as sanes ali previstas podem ser cumuladas com as da Lei n 12.846/2013, tendo em conta a notria diversidade de seus escopos de incidncia, pois na primeira norma a sano prevista para o agente pblico ou para a pessoa fsica que induza ou con-corra para a prtica do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma, enquanto na segunda as penalidades so dirigidas somente s pessoas jurdicas.

    Entretanto, quanto aplicao conjunta de sanes previstas nas Leis n 12.846/2013 e n 8.666/1993, necessrio conceder ateno especial a uma possvel dupla punio em face do mesmo fato (bis in idem).

    Dentre as condutas descritas no art. 5 da Lei n 12.846/2013, pre-ciso atentar para aquelas estampadas no inciso IV, que se relacionam parti-cularmente s licitaes pblicas e aos contratos administrativos, conforme transcrio a seguir:

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    Art. 5 Constituem atos lesivos administrao pblica, nacio-nal ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles prati-cados pelas pessoas jurdicas mencionadas no pargrafo nico do art. 1, que atentem contra o patrimnio pblico nacional ou estrangeiro, contra princpios da administrao pblica ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos: (...)IV - no tocante a licitaes e contratos: a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinao ou qual-quer outro expediente, o carter competitivo de procedimento licitatrio pblico; b) impedir, perturbar ou fraudar a realizao de qualquer ato de procedimento licitatrio pblico; c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo; d) fraudar licitao pblica ou contrato dela decorrente; e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurdica para participar de licitao pblica ou celebrar contrato adminis-trativo; f) obter vantagem ou benefcio indevido, de modo fraudulento, de modificaes ou prorrogaes de contratos celebrados com a administrao pblica, sem autorizao em lei, no ato con-vocatrio da licitao pblica ou nos respectivos instrumentos contratuais; oug) manipular ou fraudar o equilbrio econmico-financeiro dos contratos celebrados com a administrao pblica;(grifos nossos)

    Analisando de forma mais acurada as sanes descritas no inciso IV do art. 5 da Lei n 12.846/2013, possvel vislumbrar um aparente conflito com a disciplina das sanes contratuais estabelecidas na Lei n 8.666/1993, notadamente as regras de seus arts. 87 e 88, a seguir reproduzidas:

    Art. 87. Pela inexecuo total ou parcial do contrato a Admi-nistrao poder, garantida a prvia defesa, aplicar ao contra-tado as seguintes sanes: I - advertncia;II - multa, na forma prevista no instrumento convocatrio ou no contrato;III - suspenso temporria de participao em licitao e im-pedimento de contratar com a Administrao, por prazo no

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    superior a 2 (dois) anos;IV - declarao de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administrao Pblica enquanto perdurarem os motivos deter-minantes da punio ou at que seja promovida a reabilitao perante a prpria autoridade que aplicou a penalidade, que ser concedida sempre que o contratado ressarcir a Adminis-trao pelos prejuzos resultantes e aps decorrido o prazo da sano aplicada com base no inciso anterior. 1 Se a multa aplicada for superior ao valor da garantia pres-tada, alm da perda desta, responder o contratado pela sua diferena, que ser descontada dos pagamentos eventualmente devidos pela Administrao ou cobrada judicialmente. 2 As sanes previstas nos incisos I, III e IV deste artigo po-dero ser aplicadas juntamente com a do inciso II, facultada a defesa prvia do interessado, no respectivo processo, no prazo de 5 (cinco) dias teis. 3 A sano estabelecida no inciso IV deste artigo de com-petncia exclusiva do Ministro de Estado, do Secretrio Estadual ou Municipal, conforme o caso, facultada a defesa do interessa-do no respectivo processo, no prazo de 10 (dez) dias da abertura de vista, podendo a reabilitao ser requerida aps 2 (dois) anos de sua aplicao. (grifos nossos)Art. 88. As sanes previstas nos incisos III e IV do artigo ante-rior podero tambm ser aplicadas s empresas ou aos profis-sionais que, em razo dos contratos regidos por esta Lei:I - tenham sofrido condenao definitiva por praticarem, por meios dolosos, fraude fiscal no recolhimento de quaisquer tri-butos;II - tenham praticado atos ilcitos visando a frustrar os objeti-vos da licitao;III - demonstrem no possuir idoneidade para contratar com a Administrao em virtude de atos ilcitos praticados.(grifos nossos)

    No preciso maior esforo interpretativo para se verificar que as con-dutas descritas no inciso IV do art. 5 da Lei n 12.846/2013, amoldam-se s hipteses previstas nos incisos II e III do art. 88 da Lei n 8.666/1993.

    Todavia, o aparente conflito de normas no resiste a uma observao simples: o mbito de incidncia e os destinatrios da Lei n 12.846/2013, no tocante s fraudes em licitaes e contratos, so diversos daqueles descritos na Lei n 8.666/1993. Enquanto aquele diploma legal trata de responsabili-dade objetiva de pessoas jurdicas que, conforme o inciso IV de seu art. 5,

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    fraudaram procedimento licitatrio ou contrato firmado com o poder pblico, a Lei de Licitaes e Contratos, em seus arts. 87 e 88, cuida de responsabi-lidade contratual daqueles que j pactuaram avena com a Administrao Pblica (pessoas fsicas ou jurdicas) e que, por esta razo, detm com este vnculo administrativo especial, ou relao especial de sujeio, nas palavras de Celso Antnio Bandeira de Mello (2008, p. 811-816).

    No caso das sanes motivadas pelas condutas do inciso IV do art. 5 da Lei n 12.846/2013, a empresa no precisa sequer ter sido escolhida como vencedora no certame licitatrio8, ou seja, no precisa possuir qual-quer vnculo especial com o poder pblico, tendo em conta que a punio no decorre de sua sujeio especial pela condio de contratada o que exigiria ao menos culpa , mas de uma conduta tpica, apenada de forma objetiva, sem que se precise demonstrar qualquer grau de culpa9.

    Assim, mesmo que certa conduta atenda cumulativamente tipificao feita nas duas normas em exame (Lei n 12.846/2013 e Lei n 8.666/1993), mostra-se possvel a cumulao de sanes, tendo em conta a diversidade das naturezas jurdicas, sendo uma delas motivada por responsabilidade objetiva e outra por responsabilidade contratual por vnculo especial com a Administrao Pblica. Em concluso, no h que se falar em conflito de normas quando seu escopo de aplicao diverso10.

    No bastasse toda a argumentao expedida, existe ainda um argu-mento definitivo e suficiente para concluir que a aplicao das sanes da Lei n 12.846/2013 e Lei n 8.666/1993, pode (e deve) ocorrer de forma cumulativa: o comando normativo do art. 30 daquela Lei claro em afir-

    8 De fato, apenas nas condutas descritas nas letras d, f e g daquele inciso h possibilidade de a pessoa jurdica j ter sido contratada pela Administrao.9 Conforme art. 2 da Lei n 12.846/2013: As pessoas jurdicas sero responsabili-zadas objetivamente, nos mbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefcio, exclusivo ou no.10 Ademais, ainda que possa ocorrer dupla sano por fato que repercute em instn-cias distintas, importante notar uma modalidade especfica de sano nunca ser aplicada de forma dplice; ora, se alguma das condutas descritas no inciso IV do art. 5 da Lei n 12.846, de 2013, tambm for verificada no mbito da execuo de um contrato adminis-trativo, sua tipificao se far pelo inciso II ou III do art. 88 da Lei n 8.666, de 1993, e as sanes cabveis sero multa por fora do art. 6 daquela Lei e suspenso temporria de participao em licitao, impedimento de contratar ou declarao de inidoneidade por aplicao do art. 87, III ou IV, da Lei de Licitaes. Portanto, no seria possvel, por exem-plo, a aplicao de duas multas pelo mesmo fato considerado ilcito.

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    mar que as instncias no se comunicam para fins de aplicao de sano. Vejamos o teor do artigo citado:

    Art. 30. A aplicao das sanes previstas nesta Lei no afeta os processos de responsabilizao e aplicao de penalidades decorrentes de: I - ato de improbidade administrativa nos termos da Lei n 8.429, de 2 de junho de 1992; eII - atos ilcitos alcanados pela Lei n 8.666, de 21 de junho de 1993, ou outras normas de licitaes e contratos da adminis-trao pblica, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contrataes Pblicas - RDC institudo pela Lei n 12.462, de 4 de agosto de 2011.(grifos nossos)

    Por oportuno, mostra-se relevante expor o regime jurdico da indepen-dncia de instncias no direito brasileiro, formado pela interpretao conjun-ta dos arts. 125 e 126 da Lei n 8.112/1990, art. 935 do Cdigo Civil e arts. 66 e 67 do Cdigo de Processo Penal, a seguir colacionados:

    Lei n 8.112/1190:Art. 125. As sanes civis, penais e administrativas podero cumular-se, sendo independentes entre si. Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor ser afastada no caso de absolvio criminal que negue a existncia do fato ou sua autoria. Cdigo Civil:Art. 935. A responsabilidade civil independente da criminal, no se podendo questionar mais sobre a existncia do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questes se acharem decididas no juzo criminal.Cdigo de Processo PenalArt. 66. No obstante a sentena absolutria no juzo criminal, a ao civil poder ser proposta quando no tiver sido, categori-camente, reconhecida a inexistncia material do fato.Art. 67. No impediro igualmente a propositura da ao civil:I - o despacho de arquivamento do inqurito ou das peas de informao;II - a deciso que julgar extinta a punibilidade;III - a sentena absolutria que decidir que o fato imputado no constitui crime.

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    A comparao das sanes previstas na Lei n 12.846/2013 com as da Lei n 12.462/2011, que trata do RDC, no traz maiores novidades a tudo o que j foi comentado, at porque o 2 do art. 47 desta norma permite a aplicao de todas as sanes previstas na Lei n 8.666.

    De importante a ser citado apenas a previso de impedimento de licitar e contratar com os entes federativos em caso de ocorrncia de algumas das hipteses descritas no caput do art. 47, dentre as quais a ao de fraudar a licitao ou a execuo do contrato.

    9 Consideraes Finais

    Feitas estas observaes, conclui-se que a aplicao das sanes pre-vistas na Lei de Licitaes no fica impedida por apelao em virtude da Lei Anticorrupo, podendo as normas serem aplicadas cumulativamente at pelo mesmo fato, tendo em vista que a aplicao conjunta das sanes, alm de permitida pela diversidade do escopo de responsabilizao previsto na-quelas normas, est assegurada pelo art. 30 da Lei n 12.846/2013.

    Em suma, um mesmo fato ocorrido no curso de um processo de lici-tao ou na execuo de um contrato pode ser caracterizado como conduta infracional pela Lei n 8.666/1993 e como ato lesivo Administrao Pbli-ca, nos termos da Lei n 12.846/2013, justamente pela independncia de instncias antes comentada, no cabendo falar em bis in idem.

    Por ltimo, e no se poderia deixar de registrar tal fato, a independn-cia de instncias punitivas e o variado rol de normas administrativas que impem sanes aos ilcitos praticados no mbito das licitaes pblicas, permite concluir que, segundo o arcabouo legal atualmente vigente, a frau-de ou frustrao a um procedimento licitatrio poder ensejar, inclusive de forma cumulativa, as seguintes sanes:

    a) suspenso temporria de participao em licitao e impedi-mento de contratar com a Administrao por at 2 (dois) anos e declarao de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administrao Pblica (art. 88, inciso II, da Lei n 8.666/1993);b) impedimento de licitar e contratar com os entes federativos por at 5 (cinco) anos, quando se tratar do Regime Diferenciado de Contrataes (art. 47 da Lei n 12.462/2011);c) multa e publicao da deciso condenatria (art. 6 da Lei n

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    12.846/2013);d) ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimnio, pagamento de multa civil de at 2 (duas) vezes o valor do dano e proibio de contratar com o Poder Pblico ou receber benefcios ou incentivos fiscais ou creditcios, direta ou indiretamente, ainda que por interm-dio de pessoa jurdica da qual seja scio majoritrio, pelo prazo de 5 (cinco) anos, no caso de pessoa fsica que, mesmo no sendo agente pblico, induza ou concorra para a prtica do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta (art. 10, inciso VIII, c/c art. 12, inciso II, da Lei n 8.429/1992).

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    Referncias

    BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Curso de direito administrati-vo. 25. ed. So Paulo: Malheiros, 2008.

    BRASIL. Lei n 8.429, de 2 de junho de 1992. Dirio Oficial da Unio, Poder Executivo, Braslia, DF, 3 de junho de 1992. Disponvel em: . Acesso em: 5 fev. 2014.

    _________. Lei n 8.666, de 21 de junho de 1993. Dirio Oficial da Unio, Poder Executivo, Braslia, DF, 22 de junho de 1993. Disponvel em: . Acesso em: 5 fev. 2014.

    _________. Lei n 12.846, de 1 de agosto de 2013. Dirio Oficial da Unio, Poder Executivo, Braslia, DF, 2 de agosto de 2013. Disponvel em: . Acesso em: 5 fev. 2014.

    _________. Tribunal de Contas da Unio. Acrdo n 1.327/2012-TCU--Plenrio. Relator: Ministro Walton Alencar Rodrigues. Braslia, 30 de maio de 2012. Dirio Oficial da Unio, 19 jun. 2012.

    CONTROLADORIA-GERAL DA UNIO. Conveno da OCDE sobre o Combate da Corrupo de Funcionrios Pblicos Estrangeiros em Transa-es Comerciais Internacionais. Disponvel em: . Acesso em: 13 fev. 2014

    SANTOS, Renato Almeida dos. Compliance como ferramenta de miti-gao e preveno da fraude organizacional. Disponvel em: . Acesso em: 5 fev. 2014.