ascaris lumbricoides - cap. 29

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Cristiano Lara Massara Na família Ascarididae, subfamília Ascaridinae, são en- contradas espécies de grande importância médico-veteriná- na representadas principalmente pelo Ascaris lumbricoides Linnaeils, 1758 e A. suum Goeze, 1882, que parasitam, res- pectivamente, o intestino delgado de humanos e de suínos. Estes helmintos são citados com frequência, pela ampla dis- tribuição geográfica e pelos danos causados aos hospedei- ros. São popularmente conhecidos como lombriga ou bicha, causando a doença denominada ascaridíase e, menos frequentemente, ascaridose ou ascariose. Do ponto de vista morfológico e biológico as duas es- pécies são semelhantes, observando-se pequenas diferen- ças com relação ao comprimento, ao tamanho dos dentí- culos das margens serrilhadas dos três lábios e a grande quantidade de ovos colocados pela espécie parasita de su- ínos, cerca de um milhão por dia. Existe controvérsia se a as- caridíase é uma zoonose ou não. Entretanto, trabalhos men- cionam que pode haver infecções cruzadas, isto é, a espé- cie do suíno pode infectar humanos e vice-versa, com du- ração normal do parasitismo. O A. lumbricoides é encontrado em quase todos os paí- ses do mundo e ocorre com frequência variada em virtude das condições climáticas, ambientais e, principalmente, do grau de desenvolvimento socioeconômico da população. Os dados de prevalência são muito antigos, pontuais e todos com base em estimativas. Stoll(1947) baseando-se em dados obtidos através da literatura estimou em 644 milhões o nú- mero de indivíduos parasitados por A. lumbricoides em todo o mundo. Dados de 1984 da Organização Mundial de Saú- de relataram que 1 bilhão de pessoas apresentavam-se infectadas. Chan e cols., em 1994 estimaram em 1,s bilhão o número de pessoas que albergavam o parasito. No Brasil, utilizando os resultados do inquérito helmintológico realiza- do por Pellon & Teixeira em 1950, Pessoa (1967) calculou a prevalência da ascaridíase em 7 1,4%. Vinha (197 l), analisan- do os dados fornecidos pelo antigo Departamento de Nacio- nal de Endemias Rurais, estimou a prevalência para popula- ção brasileira em 60%. Atualmente, apesar das campanhas realizadas nas escolas, sabe-se que os níveis de parasitismo continuam elevados, especialmente em crianças com idade inferior a 12 anos em várias regiões brasileiras quer seja na cidade ou em zonas rurais. MORFOLOGLA O estudo da morfologia deste parasito deve ser feito observando-se as fases evolutivas do seu ciclo biológico, isto é, os vermes macho e fêmea e o ovo. As formas adul- tas são longas, robustas, cilíndricas e apresentam as extre- midades afiladas. No entanto, deve-se mencionar que o ta- manho dos exemplares de A. lumbricoides está na depen- dência do número de parasitos albergados e do estado nu- tricional do hospedeiro. Assim, as dimensões dadas para machos e fêmeas referem-se a helmintos recolhidos de crian- ças com baixas cargas parasitárias e bem nutridas Nota: ver descrições gerais de Nematoda no Capítulo 2 1. Quando adultos, medem cerca de 20 a 30cm de compri- mento e apresentam cor leitosa. A boca ou vestíbulo bucal está localizado na extremidade anterior, e é contornado por três fortes lábios com semlha de dentículos e sem interlá- bios. A boca, segue-se o esôfago musculoso e, logo após, o intestino retilíneo. O reto é encontrado próximo a extremi- dade posterior. Apresenta um testículo filiforme e enovela- do, que se diferencia em canal deferente, continua pelo ca- nal ejaculador, abrindo-se na cloaca, localizada próximo a extremidade posterior. Apresentam ainda dois espículos iguais que funcionam como órgãos acessórios da cópula. Não possuem gubernáculo. A extremidade posterior forte- mente encurvada para a face ventral é o caráter sexual exter- no que o diferencia facilmente da fêmea. Notam-se ainda na cauda papilas pré e cloacais. Medem cerca de 30 a 40cm, quando adultas, sendo mais robustas que os exemplares machos. A cor, a boca e o apa- relho digestivo são semelhantes aos do macho. Apresentam

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Page 1: Ascaris lumbricoides - cap. 29

Cristiano Lara Massara

Na família Ascarididae, subfamília Ascaridinae, são en- contradas espécies de grande importância médico-veteriná- na representadas principalmente pelo Ascaris lumbricoides Linnaeils, 1758 e A. suum Goeze, 1882, que parasitam, res- pectivamente, o intestino delgado de humanos e de suínos. Estes helmintos são citados com frequência, pela ampla dis- tribuição geográfica e pelos danos causados aos hospedei- ros. São popularmente conhecidos como lombriga ou bicha, causando a doença denominada ascaridíase e, menos frequentemente, ascaridose ou ascariose.

Do ponto de vista morfológico e biológico as duas es- pécies são semelhantes, observando-se pequenas diferen- ças com relação ao comprimento, ao tamanho dos dentí- culos das margens serrilhadas dos três lábios e a grande quantidade de ovos colocados pela espécie parasita de su- ínos, cerca de um milhão por dia. Existe controvérsia se a as- caridíase é uma zoonose ou não. Entretanto, trabalhos men- cionam que pode haver infecções cruzadas, isto é, a espé- cie do suíno pode infectar humanos e vice-versa, com du- ração normal do parasitismo.

O A. lumbricoides é encontrado em quase todos os paí- ses do mundo e ocorre com frequência variada em virtude das condições climáticas, ambientais e, principalmente, do grau de desenvolvimento socioeconômico da população. Os dados de prevalência são muito antigos, pontuais e todos com base em estimativas. Stoll(1947) baseando-se em dados obtidos através da literatura estimou em 644 milhões o nú- mero de indivíduos parasitados por A. lumbricoides em todo o mundo. Dados de 1984 da Organização Mundial de Saú- de relataram que 1 bilhão de pessoas apresentavam-se infectadas. Chan e cols., em 1994 estimaram em 1,s bilhão o número de pessoas que albergavam o parasito. No Brasil, utilizando os resultados do inquérito helmintológico realiza- do por Pellon & Teixeira em 1950, Pessoa (1967) calculou a prevalência da ascaridíase em 7 1,4%. Vinha (1 97 l), analisan- do os dados fornecidos pelo antigo Departamento de Nacio- nal de Endemias Rurais, estimou a prevalência para popula- ção brasileira em 60%. Atualmente, apesar das campanhas realizadas nas escolas, sabe-se que os níveis de parasitismo

continuam elevados, especialmente em crianças com idade inferior a 12 anos em várias regiões brasileiras quer seja na cidade ou em zonas rurais.

MORFOLOGLA O estudo da morfologia deste parasito deve ser feito

observando-se as fases evolutivas do seu ciclo biológico, isto é, os vermes macho e fêmea e o ovo. As formas adul- tas são longas, robustas, cilíndricas e apresentam as extre- midades afiladas. No entanto, deve-se mencionar que o ta- manho dos exemplares de A. lumbricoides está na depen- dência do número de parasitos albergados e do estado nu- tricional do hospedeiro. Assim, as dimensões dadas para machos e fêmeas referem-se a helmintos recolhidos de crian- ças com baixas cargas parasitárias e bem nutridas

Nota: ver descrições gerais de Nematoda no Capítulo 2 1.

Quando adultos, medem cerca de 20 a 30cm de compri- mento e apresentam cor leitosa. A boca ou vestíbulo bucal está localizado na extremidade anterior, e é contornado por três fortes lábios com semlha de dentículos e sem interlá- bios. A boca, segue-se o esôfago musculoso e, logo após, o intestino retilíneo. O reto é encontrado próximo a extremi- dade posterior. Apresenta um testículo filiforme e enovela- do, que se diferencia em canal deferente, continua pelo ca- nal ejaculador, abrindo-se na cloaca, localizada próximo a extremidade posterior. Apresentam ainda dois espículos iguais que funcionam como órgãos acessórios da cópula. Não possuem gubernáculo. A extremidade posterior forte- mente encurvada para a face ventral é o caráter sexual exter- no que o diferencia facilmente da fêmea. Notam-se ainda na cauda papilas pré e cloacais.

Medem cerca de 30 a 40cm, quando adultas, sendo mais robustas que os exemplares machos. A cor, a boca e o apa- relho digestivo são semelhantes aos do macho. Apresentam

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ço anterior do parasito. A extremidade posterior da fêmea é A retilínea.

Ovos Originalmente são brancos e adquirem cor castanha de-

vido ao contato com as fezes. São grandes, com cerca de 50 pm de diâmetro, ovais e com cápsula espessa, em razão da membrana externa mamilonada, secretada pela parede uterina e formada por mucopolissacarídeos. A essa membra- na seguem-se uma membrana média constituída de quitina e proteína e outra mais interna, delgada e impermeável à água constituída de 25% de proteínas e 75% de lipídios. Esta Última camada confere ao ovo grande resistência às condições adversas do ambiente. Internamente, os ovos dos ascarídeos apresentam uma massa de células germina- tivas. Frequentemente podemos encontrar nas fezes ovos inférteis. São mais alongados, possuem membrana mami- lonada mais delgada e o citoplasma granuloso. Algumas vezes, ovos férteis podem apresentar-se sem a membrana mamilonada.

BIOLOGIA HÁBITAT

Em infecções moderadas, os vermes adultos são encon- trados no intestino delgado, principalmente no jejuno e íleo, mas, em infecções intensas, estes podem ocupar toda a ex- tensão do intestino delgado. Podem ficar presos à mucosa, com auxílio dos lábios ou migrarem pela luz intestinal.

CICLO BIOL~GICO É do tipo monoxênico, isto é, possuem um único hospe-

3 4 5 deiro. Cada Emea fecundada é capaz de colocar, por dia, cer- ca de 200.000 ovos não-embrionados. que chegam ao am- . - biente juntamente com as fezes. Os ovos férteis-em presen-

Fig. 29.1 - Ascaris lumbricoides. A - a) macho (extremidade posterior recurvada); b) fêmea (extremidade posterior reta); c) ovo fbrtil não- embrionado; d) ovo fbrtil embrionado; e) ovo infbrtil. B - f) extremidade an- terior mostrando os trés fortes lábios (D - lábio dorsal; V - lábios ven- trais; P - papilas) J. Parasitology 59 (1):143, 1973).

dois ovários tiliformes e enovelados que continuam como ovidutos, diferenciando em úteros que vão se unir em uma única vagina, que se exterioriza pela vulva, localizada no ter-

ça de 6mperatura entre 25OC e 30°C, umidade mínima de 70% e oxigênio em abundância tomam-se embrionados em 15 dias.

A primeira larva (L,) forma dentro do ovo e é do tipo rabditóide, isto é, possui o esôfago com duas dilatações, uma em cada extremidade e uma constrição no meio. Após uma semana, ainda dentro do ovo, essa larva sofre muda transformando-se em L, e, em seguida, nova muda trans- formando-se em L, infectante com esôfago tipicamente filarióide (esôfago retilíneo). Até há pouco tempo conside- rava-se como forma infectante o ovo contendo a L, no seu interior. Entretanto, após os trabalhos de Araújo (1972), Artigas & Ueta (1989) e de Austin e cols. (1990) demons- trou-se que em A. lumbricoides e outros ascarídeos a for- ma infectante é a L, dentro do ovo. Estas formas permane- cem infectantes no solo por vários meses podendo ser ingeridas pelo hospedeiro (Fig. 29.2). Após a ingestão, os ovos contendo a L, atravessam todo o trato digestivo e as larvas eclodem no intestino delgado. A eclosão ocorre gra- ças a fatores ou estímulos fornecidos pelo próprio hospe- deiro, como a presença de agentes redutores, o pH, a tem- peratura, os sais e, o mais importante, a concentração CO, cuja ausência inviabiliza a eclosão. As larvas, uma vez li- beradas, atravessam a parede intestinal na altura do ceco,

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caem nos vasos linfáticos e nas veias e invadem o figado I entre 18 e 24 horas após a infecção. Em dois a três dias che- e

gam ao coração direito, através da veia cava inferior ou superior e quatro a cinco dias após são encontradas nos pulmões (ciclo de LOSS). Cerca de oito dias da infecção,

. as larvas sofrem muda para L,, rompem os capilares e r caem nos alvéolos, onde mudam para L,. Sobem pela árvo- I , re brônquica e traquéia, chegando até a faringe. Podem I então ser expelidas com a expectoração ou serem degluti-

das, atravessando incólumes o estômago e fixando-se no , intestino delgado. Transformam-se em adultos jovens 20 a

30 dias após a infecção. Em 60 dias alcançam a maturida- de sexual, fazem a cópula, ovipostura e já são encontrados ovos nas fezes do hospedeiro. Os vermes adultos têm uma longevidade de um a dois anos (Fig. 29.2).

I Ocorre através da ingestão de água ou alimentos conta- i minados com ovos contendo a L,. A literatura registra gran-

i de número de artigos que avaliam a contaminação das águas de córregos que são utilizadas para irrigação de hortas le- vando a contaminação de verduras com ovos viáveis. Po- eira, aves e insetos (moscas e baratas) são capazes de vei-

I cular mecanicamente ovos de A. lumbricoides. Pesquisas , revelaram que além destes mecanismos a transmissão pode

ocorrer pela contaminação do depósito subungueal com ovos viáveis, principalmente em crianças, verificando-se ní- veis de contaminação que variavam de 20 a 52%.

Os ovos de A. lumbricoides têm uma grande capacida- de de aderência a superfícies, o que representa um fator im- portante na transmissão da parasitose. Uma vez presente no ambiente ou em alimentos, estes ovos não são removidos com facilidade por lavagens. Por isto, o uso de substâncias que tenham capacidade de inviabilizar o desenvolvimento dos ovos em ambientes e alimentos é de grande importân- cia para o controle da transmissão.

A ação de 16 produtos detergentes e desinfetantes de uso doméstico e laboratorial foi testada e verificou-se a ini- bição completa do embrionamento dos ovos de A. lumbri- coides em todos os tempos e diluições testadas por ape- nas um dos produtos. Por outro lado, verificou-se o au- mento na porcentagem de embrionamento dos ovos com um dos desinfetantes utilizados, quando comparado com o controle.

A resistência dos ovos de A. lumbricoides a vários agentes terapêuticas é uma outra característica importante na transmissão da doença. Testando-se a capacidade ovicida de levamisol, cambendazol, pamoato de pirantel, meben- dazol, praziquantel e tiabendazol concluiu-se que somente o último medicamento foi efetivo na inibição completa do embrionamento dos ovos 48 horas após o tratamento. Já o tratamento com tiabendazol de indivíduos infectados com Ascaris confirmou-se a atividade ovicida intra-uterina da droga, após eliminação dos vermes.

PATOGENIA Deve ser estudada acompanhando-se o ciclo deste

helminto, ou seja, a patogenia das larvas e dos adultos. Em ambas as situações, a intensidade das alterações provoca-

Fig. 29.2 - Ciclo de A. lumbricoides: 1) ovo não-embrionado no exterior; 2) ovo torna-se embrionado (L, rabditóide); 3) embrião passa para L, rabditóide infectante (dentro do ovo); 4) contaminação de alimentos ou mãos veiculando ovos até a boca. Daí chegam ao intestino delgado, onde emer- gem as larvas que vão ao ceco, chegam ao sistema porta e depois ao fí- gado; ganham veia cava, vão ao coração, pulmóes e faringe; larvas sáo então deglutidas e chegam ao intestino delgado, transformando-se em ver- mes adultos, ocorrendo oviposição dois a três meses após a infecção.

das está diretamente relacionada com o número de formas presentes no parasito.

Em infecções de baixa intensidade, normalmente não se observa nenhuma alteração. Em infecções maciças encontra- mos lesões hepáticas e pulmonares. No figado, quando são encontradas numerosas formas larvares migrando pelo pa- rênquima, podem ser vistos pequenos focos hemorrágicos e de necrose que futuramente tomam-se fibrosados. Nos pulmões ocorrem vários pontos hemorrágicos na passagem das larvas para os alvéolos. Na realidade, a migração das lar- vas pelos alvéolos pulmonares, dependendo do número de formas presentes, pode determinar um quadro pneumônico com febre, tosse, dispnéia e eosinofilia. Há edemaciação dos alvéolos com infiltrado parenquimatoso eosinofilico, manifes- tações alérgicas, febre, bronquite e pneumonia (a este conjun- to de sinais denomina-se síndrome de Loeffler). Na tosse pro- dutiva (com muco) o catarro pode ser sanguinolento e apre- sentar larvas do helminto. Estas manifestações geralmente ocorrem em crianças e estão associadas ao estado nutricio- na1 e imuniiário das mesmas.

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Fig. 29.3 - Ovos de A. lumbricoides: A) ovo fedi1 normal; 6) ovo fértil decorficado; C) ovo infbrtil (foto gentilmente cedida por Mosby Co. Medical Parasitology, 1981).

Em infecções de baixa intensidade, três a quatro vermes, o hospedeiro não apresenta manifestação clinica. Já nas in- fecções médias, 30 a 40 vermes, ou maciças, 100 ou mais vermes, podemos encontrar as seguintes alterações:

ação espoliadora: os vermes consomem grande quan- tidade de proteínas, carboidratos, lipídios e vitaminas A e C, levando o paciente, principalmente crianças, a subnutrição e depauperamento físico e mental; ação tóxica: reação entre antígenos parasitários e an- ticorpos alergizantes do hospedeiro, causando edema, urticária, conwlsões epileptiformes etc.; ação mecânica: causam irritação na parede e podem enovelar-se na luz intestinal, levando à sua obstrução. Este quadro parece não ser incomum e Silva e cols. (1 997) após estudos realizados em sete países com di- ferentes níveis de prevalências de ascaridíase concluí- ram que a obstrução intestinal é a mais comum das complicações agudas contabilizando três quartos de todas as complicações. As crianças são mais propen- sas a este tipo de complicação, causada principalmen- te pelo menor tamanho do intestino delgado e pela in- tensa carga parasitária; localização ectópica: nos casos de pacientes com al- tas cargas parasitárias ou ainda em que o verme sofra alguma ação imtativa, a exemplo de febre, uso impró- prio de medicamento e ingestão de alimentos muito condimentados o helminto desloca-se de seu hábitat normal atingindo locais não-habituais. Aos vermes que fazem esta migração dá-se o nome de "áscaris errático".

A literatura registra um número de situações ectópicas que podem levar o paciente a quadros graves necessitando algumas vezes intervenção cirúrgica:

apêndice cecal causando apendicite aguda; canal colédoco, causando obstrução do mesmo; canal de Wirsung, causando pancreatite aguda; eliminação do verme pela boca e narinas.

Além destes locais, vermes adultos e formas larvares já foram encontrados no ouvido médio, narinas e trompa de Eustáquio.

É muito comum entre crianças o aparecimento de uma al- teração cutânea, que consiste em manchas, circulares, dis- seminadas pelo rosto, tronco e braços. Tais manchas são popularmente denominadas "pano", e são comumente rela- cionadas com o parasitismo pelo A. lumbricoides. Na reali- dade não existe nenhuma comprovação científica deste fato, mas algumas observações sugerem uma analogia entre man- chas cutâneas e ascaridíase. Parece que seriam causadas pelo verme que consome grande quantidade de vitaminas A e C, provocando despigmentações circunscritas. Após a te- rapêutica e eliminação do verme, as manchas tendem a de- saparecer.

Usualmente a ascaridíase humana é pouco sintomática, por isto mesmo difícil de ser diagnosticada em exame clíni- co, sendo a gravidade da doença determinada pelo número de vermes que infectam cada pessoa. Como o parasito não se multiplica dentro do hospedeiro, a exposição contínua a ovos infectados é a única fonte responsável pelo acúmulo de vermes adultos no intestino do hospedeiro.

É feito pela pesquisa de ovos nas fezes. Como as fême- as eliminam diariamente milhares de ovos por dia, não há necessidade, nos exames de rotina, de metodologia especí- fica ou métodos de enriquecimento, bastando a técnica de sedimentação espontânea. Contudo, o método de Kato mo- dificado por Katz é bastante eficiente e recomendado pela Organização Mundial de Saúde para inquéritos epidemioló- gicos. Esta técnica permite a quantificação dos ovos e con- seqüentemente estima o grau de parasitismo dos portado- res, compara dados entre várias áreas trabalhadas e demons- tra maior rigor no controle de cura.

Deve-se ressaltar que em infecções exclusivamente com vermes fêmeas, todos os ovos expelidos serão inférteis, en- quanto em infecções somente com vermes machos o exame de fezes será consistentemente negativo.

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TRATAMENTO O potencial do tratamento das helmintoses intestinais

aumentou em muito com a descoberta dos benzimidazóis. Estas drogas são altamente efetivas contra o A. lumbricoi- des e outras helmintoses intestinais.

A Organização Mundial da Saúde recomenda quatro dro- gas - albendazol, mebendazol, levamisol e pamoato de pirantel - para o tratamento e controle de helmintos trans- mitidos pelo solo.

Albendazol: é um componente dos benzimidazóis com um amplo espectro antiparasitário, principalmente para o Ascaris ssp. A droga é encontrada sob a forma de compri- midos de 200 e 400mg, e de suspensão oral de 100mg/5ml. A dose única de 400mg é altamente eficaz contra a ascari- díase, mostrando níveis de cura e de redução de ovos de até 100%. Este fármaco pode atuar de duas maneiras: através da ligação seletiva nas tubulinas inibindo a tubulina-poli- merase, previnindo a formação de microtúbulos e impedin- do a divisão celular; e, ainda, impedindo a captação de gli- cose inibindo a formação de ATP que é usado como fonte de energia pelo verme. A droga é pouco absorvida pelo hos- pedeiro e sua ação anti-helmíntica ocorre diretamente no tra- to gastrointestinal. A fração absorvida é metabolizada no fí- gado, tendo uma vida média de aproximadamente nove ho- ras. Após este período é excretada com a bile através dos rins.

Mebendazol: é um outro derivado dos benzimidazóis com am~la e efetiva atividade anti-helmíntica. É encontrada sob a firma de comprimidos de 100 e 500mg e também em sus- pensão oral de 100mg/5ml. O mecanismo de ação de mebendazol é o mesmo descrito para o albendazol. A dose única de 500mg mostrou alta efetividade contra a ascaridía- se e outras parasitoses intestinais. A absorção da droga é pequena, mas pode ser aumentada pela ingestão de alimen- tos gordurosos. É metabolizada predominantemente no fíga- do e sua excreção pode ocorrer pela bile e urina. Usualmente a maior parte da droga é encontrada inalterada nas fezes, o que explica sua excelente atividade contra os helmintos in- testinais. O tratamento com mebendazol alcança níveis de cura entre 93,8% e 100% e taxas de redução de ovos de 979% a 993%.

No caso de associação de Ascaris e ancilostomídeos, o uso destes fármacos na gravidez é justificado. De acordo com a OMS (2002) estes anti-helmínticos podem ser reco- mendados para o tratamento de lactantes e grávidas, após o primeiro trimestre de gravidez, em dose oral única. Entre- tanto, existem divergências na literatura médica contra indi- cando o uso de benzimidazóis durante a gravidez. As dife- rentes opiniões são baseadas de um lado pela falta de evi- dências científicas sobre a toxicidade e teratogenicidade das drogas, e por outro pelo impacto que as helmintoses intes- tinais causam na saúde pública principalmente nos países subdesenvolvidos.

O tratamento com benzimidazóis em crianças com menos de 2 anos de idade é outra questão crucial. Quando as in- fecções helmínticas se estabelecem em crianças de até 24

meses de idade e estas infecções causam danos para o de- senvolvimento físico, mental e para o crescimento saudável da criança, o tratamento é recomendável (OMS, 1997). O uso de benzimidazóis em crianças menores de 2 anos de idade indica benefícios a saúde, e os riscos são minimizados quan- do existe correta administração da droga.

Levamisol: é um isômero levógiro do fetramisol e tem uma boa eficácia contra o A. lumbricoides. E encontrado em comprimidos de 40mg e administrado em dose única de 2,5mgkg. Levamisol inibe os receptores de acetilcolina, cau- sando contração espásmica seguida de paralisia muscular e conseqüente eliminação dos vermes. A droga é completa- mente absorvida pelo trato gastrointestinal, alcançando pi- cos máximos de concentração plasmática em duas horas. É metabolizada no fígado e eliminada pela urina. Não existe evidência de teratogenicidade e embriotoxicidade em ani- mais e o uso deste medicamento durante a gravidez é visto como uma opção segura, mas sempre após o primeiro trimes- tre de gestação. Não apresenta capacidade ovicida, mas, ao contrário, observa-se uma atividade estimuladora do desen- volvimento embrionário.

Pamoato de Pirantel: é uma droga derivada da pirimiduia, sendo efetiva contra a ascaridíase e a ancilostomíase. É en- contrada em forma de comprimidos de 250mg, sendo admi- nistrada em dose única oral de 10mgkg. O modo de ação é similar ao levamisol. É pouco absorvida pelo trato gastroin- testinal, uma pequena fração é metabolizada no fígado e eli- minada pela urina. A maior parte da droga é eliminada sem alteração com as fezes. Testes em animais não mostraram efeitos teratogênicos, mas como outras drogas não deve ser administrada antes do primeiro trimestre de gestação. Estu- dos não identificaram efeito ovicida desta droga. Vários ar- tigos demonstraram níveis de cura, para a ascaridíase, de 8 1 % a 100% e taxas de redução do número de ovos entre 82% a 100%.

Ivermectina: é uma potente lactona macrolítica semi- sintética com boa eficácia contra o A. lumbricoides e ou- tras infecções por nematodas. A droga é administrada em dose única de 0,l a 0,2mgkg. Sua atuação está baseada na indução do fluxo de íons cloro que atravessam a membra- na, fazendo uma disruptura nervosa na transmissão de sinais, resultando na paralisia do parasita e sua posterior eliminação. A droga é absorvida pelo sangue e níveis máximos são alcançados quatro horas após a sua adminis- tração. E inteiramente excretada com as fezes. O uso da ivermectina para o tratamento de infecções helmínticas in- testinais no homem tem sido pouco investigado. Apesar de sua atividade comprovada em vários estágios do ciclo de vida de muitos nematóides de animais domésticos, em hu- manos é utilizada principalmente para o tratamento de on- cocercose.

No tratamento da ascaridíase, quando há complicações como oclusão e suboclusão, é recomendado manter o pa- ciente em jejum e passar sonda nasogástnca. Administrar pela sonda hexahidrato de piperazina (100mgkg; sem exce- der dose total de 6g) e 50ml de óleo mineral. Caso não haja resolução do processo oclusivo é recomendado tratamento cirúrgico.

Capitulo 29 257

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A atividade anti-helmintica de plantas é bem conhecida na medicina tradicional em muitas regiões do mundo. Extra- tos de diferentes partes de plantas ou de.seus frutos são preparados pelos curandeiros, que representam o conheci- mento e,mpirico, e cultural em comunidades do mundo intei- ro. Na Africa, Asia e América Latina existem algumas evi- dências de que estas preparações são ativas contra helmin- tos e protozoários. O modo de ação ou a substância quími- ca que causa dano ao parasita foi muito pouco investigado. Entretanto, os resultados obtidos foram promissores. Em geral estas preparações mostraram poucos efeitos colate- rais, níveis de toxicidade baixos, indicando segurança no seu uso. Outras vantagens são o baixo custo e o fácil acesso, sendo, às vezes, a única opção de tratamento em regiões pobres. Por tudo isso as substâncias fitoterapêuticas repre- sentam uma ferramenta em potencial para o controle das helmintoses intestinais. São necessários, entretanto, estu- dos bem conduzidos e ensaios comparativos, para confirmar o real valor terapêutico dessas plantas no tratamento da as- caridíase e de outras helmintoses.

EPIDEMIOLOGIA Dados mais recentes indicam que o A. lumbricoides é o

helminto mais frequente nos países pobres, sendo sua esti-

mativa de prevalência de aproximadamente 30%, ou seja, 1,5 bilhão de pessoas em todo o mundo. Distribuído por mais de 150 países e territórios, atinge cerca de 70% a 90% das crianças na faixa etária de 1 a 10 anos. Apesar da ascaridía- se ser cosmopolita, a maior parte das infecções ocorre na Asia (73% de prevalência), seguida pela África (l2,0%) e América Latina (8%). Condições climáticas têm um importan- te papel nas taxas de infecção. Em geral, a prevalência é bai- xa em regiões áridas, sendo, contudo, relativamente alta onde o clima é úmido e quente, condição ideal para a sobre- vivência e o embrionamento dos ovos. Além disso, áreas desprovidas de saneamento com alta densidade populacio- na1 contribuem significativamente para o aumento da carga da doença.

A infecção humana por esta espécie de helminto está relacionada com a interação de diversas características que asseguram o processo de transmissão, como o parasito, o hospedeiro, o meio ambiente e a falta de noções ou condi- ções de higiene.

Assim alguns fatores interferem na prevalência desta parasitose, são eles:

grande quantidade de ovos produzidos e eliminados pela fêmea; viabilidade do ovo infectante por até um ano, princi- palmente no peridomicílio; concentração de indivíduos vivendo em condições precárias de saneamento básico;

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Alta prevalência

Média prevalência

Baixa prevalência

Fig. 29.4 - Distribuiçáo geográfica do Ascaris lurnbricoides (atualizado, 1999).

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Page 7: Ascaris lumbricoides - cap. 29

grande número de ovos no peridomicílio, em decorrên- cia do hábito que as crianças têm de aí defecarem; temperatura e umidade com médias anuais elevadas; dispersão fácil dos ovos através de chuvas, ventos, insetos e aves; conceitos equivocados sobre a transmissão da doen- ça e sobre hábitos de higiene na população.

O contato entre crianças portadoras e crianças suscetí- veis no peridomicílio ou na escola, aliado ao fato de que suas brincadeiras são sempre relacionadas com o solo e o hábi- to de levarem a mão suja a boca, são os fatores que fazem com que a faixa etária de 1 a 12 anos seja a mais prevalente. Os adultos muitas vezes não apresentam a doença, e isto, provavelmente, é devido a mudança de hábitos higiênicos e, ainda, porque se infectaram quando crianças, desenvol- vendo imunidade.

A infecção pelo A. lumbricoides, como qualquer ou- tra geo-helmintose, está seguramente associada a fatores sociais, econômicos e culturais que proporcionam condi- ções favoráveis à sua expansão, sobretudo em regiões onde os fatores ambientais são apropriados. Desse modo, o crescimento desordenado da população, em áreas mui- tas vezes desprovidas de saneamento básico, juntamen- te com o baixo poder econômico, educacional e hábitos pouco higiênicos, são relevantes e merecem destaque nos estudos epidemiológicos das parasitoses intestinais. As precárias condições ambien-tais, decorrentes da insalu- bridade das habitações coletivas e de favelas, são conhe- cidas como potencialmente favoráveis para o aumento das infecções por helmintos. Muitas vezes, estas situa- ções contribuem para maior intensidade de transmissão, inclusive em áreas beneficiadas pelo saneamento ambi- ental. Esta afirmação pode ser corroborada pelo encontro de ovos de A. lumbricoides e outros helmintos em amos- tras de água, solo e alimentos contaminados por fezes de portadores deste parasito. Ainda sobre a dinâmica de transmissão, cabe ressaltar a importância das migrações humanas, aspecto relevante de ordem social e econômi- ca, que, de acordo com Barreto (1967), são responsáveis pela introdução e disseminação do agente etiológico em áreas indenes.

Vê-se, pois, que não só para a ascaridíase, mas para to- das as doenças resultantes da má qualidade de vida o de- terminante socioeconômico interfere e define o quadro bio- lógico e patológico.

CONTROLE Em geral, quatro medidas são bem conhecidas para o

controle das infecções por helmintos: a) repetidos tratamen- tos em massa dos habitantes de áreas endêmicas com dro- gas ovicidas; b) tratamento das fezes humanas que eventu- almente, possam ser utilizadas como fertilizantes; c) sanea- mento básico; e dj educação para a saúde.

A principal rota de transmissão dos helmintos intestinais C o contato fisico, no ambiente, com as fezes humanas con-

taminadas. A maioria dos tratamentos feitos em habitantes de áreas sem saneamento básico têm efeito de curto prazo e os ganhos obtidos são frequentemente superados pelas rein- fecções, que em muitos casos podem levar a cargas parasi- tárias mais altas que as observadas antes do tratamento.

Sabe-se que 27 milhões de ovos podem ser encontrados no útero de uma fêmea grávida. Considerando que no ter- ço dista1 ou terminal do Útero, estão localizados os ovos fer- tilizados, em tomo de 9 milhões de ovos estão prontos para serem lançados e contaminar o ambiente. Após o tratamen- to de habitantes de áreas não-saneadas, com drogas não- ovicidas, as fêmeas grávidas são expelidas com as fezes e conseqüentemente um número exorbitante de ovos férteis são liberados para o ambiente. Este modelo teórico pode ex- plicar a permanência de altos níveis de infecção em áreas urbanas com precárias condições de higiene e alta concen- tração de população, apesar de tratamentos regulares. Desse modo o saneamento é essencial para a manutenção, a lon- go prazo, do controle das helmintoses.

O aspecto "educação em saúde" e o seu impacto nas in- fecções helmínticas foi enfatizado para a redução da preva- Iência e intensidade de infecção do A. lumbricoides. O uso exclusivo da educação em saúde como intervenção, em uma população estudada, reduziu a prevalência em 26%. Já, a combinação da educação em saúde, com o tratamento, pro- vocou um impacto na redução da prevalência do A. lumbri- coides de 42% a 75% e na intensidade da infecção de 73% a 85%.

A educação em saúde para crianças é uma importante medida para o controle das helmintoses, especialmente con- siderando as características da doença durante a infincia: alta prevalência, alta porcentagem de resistência ao trata- mento, altas taxas de eliminação de ovos e altos níveis de reinfecção. Todos estes fatores indicam que a criança tem um papel importante na manutenção do ciclo do Ascaris.

Sendo o ovo resistente aos desinfetantes usuais, e o peridomicílio funcionando como foco de infecção, algumas medidas têm de ser tomadas para o controle desta e de ou- tras helmintoses intestinais:

educação em saúde; construção de redes de esgoto, com tratamento e/ou fossas sépticas; tratamento de toda a população com drogas ovicidas, pelo menos, durante três anos consecutivos; proteção dos alimentos contra insetos e poeira.

É importante salientar que a descentralização do sistema de saúde, a formação adequada de equipes para atuar em municípios e comunidades endêmicas (Programa de Saúde da Família - PSF) e o envolvimento total das populações interessadas são fatores importantes e indispensáveis para se conseguir resultados eficazes e duradouros, não só com relação a ascaridíase, mas em todos os programas em que o controle de parasitoses esteja envolvido. O desenvolvimen- to de conhecimento específico sobre a transmissão do pa- rasita, sintomas e noções de higiene pessoal, é um bom co- meço de estímulo para a população.

Capitulo 29