as relaÇÕes internacionais do plano nacional de … · as relaÇÕes internacionais do plano...
TRANSCRIPT
AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO PLANO NACIONAL DE
POLÍTICAS PARA AS MULHERES
Leda Aparecida Vanelli Nabuco de Gouvêa Amélia Kimiko Noma
Universidade Estadual de Maringá Introdução
Este texto tem como objetivo, a partir da análise da questão da educação das
mulheres constante do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2004), evidenciar
vinculações com políticas e recomendações de agências internacionais, especificamente
a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o
Banco Mundial e a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL).
Entende-se que, para concretizar a abordagem proposta, deve-se levar em consideração
os condicionantes mais amplos que orientam a política brasileira para as mulheres. Isso
por sua vez, em termos metodológicos, implica o entendimento de que os fundamentos
que dão sustentação à referida política nacional, obviamente, não são gerados
exclusivamente em âmbito nacional. Em consonância, ao admitir vinculações de
abrangência internacional, torna-se obrigatório considerar a influência direta ou indireta
das agências internacionais no direcionamento das políticas públicas, dentre elas, a da
educação das mulheres.
Justifica-se a adoção dessa abordagem pela constatação do incremento da influência das
agências internacionais a partir da década de 1990, as quais baseando-se em
diagnósticos e avaliações de países e regiões, definem diretrizes, elaboram
recomendações divulgadas em relatórios, em documentos resultantes de convenções e
conferências internacionais que incidem, nem sempre de forma direta, nas formulações
internas de cada país no tocante às políticas públicas e sociais. Considera-se que a
análise desses documentos pode intermediar a apreensão da influência dessas
organizações na tomada de decisão dos governos no que se refere a definição de
diretrizes para a implantação de políticas educativas no contexto nacional e na
definição, articulação e orientação das agendas políticas dos países.
2
Destarte, é fundamental apreender o contexto onde foram geradas as análises,
formulações e recomendações referentes à educação formal das mulheres contidas nos
documentos a seguir analisados a fim de compreender as vinculações entre eles e entre
as políticas que extrapolam o âmbito educacional.
O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), para o período de 2005-2007,
foi elaborado a partir de diretrizes definidas na Primeira Conferência Nacional de
Políticas para as Mulheres (CNPM)1, realizada em julho de 2004, que dispôs sobre “[...]
as diretrizes da política nacional para as mulheres na perspectiva da igualdade de
gênero, considerando a diversidade de raça e etnia”. Assim, o referido plano indica as
políticas e linhas de ação propostas para a promoção da igualdade de gênero (BRASIL,
2004, p.13).
A elaboração do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres realizou-se no contexto
da criação da Secretaria Especial de Política para as Mulheres, a qual conforme o
documento tem status de Ministério. O objetivo da Secretaria é assessorar diretamente o
Presidente da República, na promoção da transversalidade das políticas para mulheres e
igualdade de gênero. Além deste objetivo, há o de estimular as diferentes áreas do
governo a pesarem o impacto de suas políticas sobre a vida de mulheres e homens
(BRASIL, 2004).
Segundo o prólogo do documento em questão, o Governo Federal e os demais entes
governamentais, comprometem-se com a incorporação da perspectiva de gênero e raça
nas políticas públicas, “[...] reconhecendo e enfrentando as desigualdades entre homens
e mulheres, negros e negras, no contexto do projeto político de gestão governamental,
que vai se configurar enquanto políticas de Estado” (BRASIL, 2004, p.11).
Como expõe o referido documento, ao considerar a histórica desigualdade de direitos
1 A CNPM foi convocada pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, sob coordenação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM).
3
existentes entre mulheres e homens, bem como as relações desiguais que se estabelecem
e se reproduzem nas relações sociais, “[...] o Estado assume a responsabilidade de
implementar políticas públicas que tenham como foco as mulheres, a consolidação da
cidadania e a igualdade de gênero, com vistas a romper com essa lógica injusta”
(BRASIL, 2004, p.31).
A implementação das políticas públicas para as mulheres, conforme a estrutura do Plano
Nacional para as Mulheres, concentra-se em quatro áreas, chamadas de estratégicas:
autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; educação inclusiva e não
sexista; saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; e, enfrentamento à
violência contra as mulheres (BRASIL, 2004).
Em relação à área estratégica denominada educação inclusiva e não sexista, o Plano
parte suas considerações sobre as conquistas femininas na dimensão educacional. Essas
conquistas, de acordo com o documento, referem-se a três aspetos da educação formal,
ou seja, em relação às matrículas no sistema de ensino, índices de analfabetismo
feminino e número médio de anos de estudo das mulheres em relação aos homens.
Nestes três aspectos os dados apresentados revelam o avanço das políticas em relação à
melhoria da educação feminina que se refletem nos seguintes resultados: a maioria das
matrículas efetivadas no sistema de ensino são de mulheres, houve uma significativa
redução do analfabetismo feminino exceto na faixa etária acima de 45 anos,
permanência por mais tempo das mulheres no sistema de ensino em relação aos homens
visto que o número médio de estudo das mulheres é superior aos dos homens (BRASIL,
2004).
Com base no diagnóstico apresentado no referido Plano, foram definidos cinco
objetivos que norteariam a ação do governo brasileiro até o ano de 2007: 1) incorporar a
perspectiva de gênero, raça, etnia e orientação sexual no processo educacional formal e
informal; 2) garantir um sistema educacional não discriminatório, que não reproduza
estereótipos de gênero, raça e etnia; 3) promover o acesso à educação básica de
mulheres jovens e adultas; 4) promover a visibilidade da contribuição das mulheres na
construção da história da humanidade e, por fim, 5) combater os estereótipos de gênero,
raça e etnia na cultura e comunicação (BRASIL, 2004).
4
Das assertivas indicadas anteriormente, conforme o Plano Nacional de Políticas para as
Mulheres, observa-se a preocupação do governo brasileiro em referendar no plano
institucional as diretrizes que vêm sendo traçadas no plano internacional que
contemplam a educação de mulheres. É o que se explicita a seguir com a análise de
alguns documentos elaborados por agências internacionais integrantes da Organização
das Nações Unidas.
A ONU: UNESCO, o Banco Mundial e CEPAL
A partir de 1990, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), foram
realizados vários eventos internacionais que trataram de temas diretamente relacionados
com os problemas sociais decorrentes da situação de pobreza mundial. Assim, temas
como educação, infância, meio ambiente, direitos humanos, população,
desenvolvimento social, mobilizaram governos e organizações, governamentais e não-
governamentais, chamando a atenção para problemas sociais de interesse mundial e que
estavam a exigir uma solução em caráter de emergência. Nos documentos que
derivaram de cada um destes eventos há ênfase na necessidade de se estabelecer
políticas que assegurem a educação das mulheres.
Estes eventos foram realizados no contexto de campanhas mundiais, encetadas pelas
agências internacionais, sobre a necessidade de investimentos na educação básica.
Assim, a educação despontou como estratégia para propiciar a inclusão social de
contingentes populacionais excluídos das benesses do desenvolvimento econômico, e,
em conseqüência, a educação das mulheres foi propalada como um dos objetivos
prioritários pelo movimento da educação básica para todos.
Dentre os eventos realizados no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU)
destaca-se a IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, China, 1995) de onde
derivou a Declaração de Beijing e a Plataforma de Ação de Beijing. A Plataforma de
Ação de Beijing adotou medidas estratégicas em áreas decisivas de especial
preocupação abrangendo: a mulher e a pobreza, educação e treinamento da mulher, a
mulher e a saúde, a violência contra a mulher, a mulher e os conflitos armados, a mulher
e a economia, a mulher no poder e na adoção de decisão, mecanismos institucionais
para o avanço da mulher, direitos humanos da mulher, a mulher e os meios de
5
comunicação, a mulher e o meio ambiente, entre outros. Dentre estes temas, a
Plataforma de Ação traçou objetivos estratégicos nos quais os Estados membros se
comprometeram a atingir por meio de políticas governamentais (ONU, 1996).
A transformação fundamental produzida pela Conferência de Beijing foi o
reconhecimento da necessidade de mudar o centro da atenção voltando-se da mulher
para o conceito de gênero. Reconheceu-se que toda a estrutura da sociedade, e todas as
relações entre os homens e mulheres no interior da estrutura social e institucional,
teriam de ser reavaliadas para ser possível a participação da mulher em condições de
igualdade com o homem, em todos os aspectos da vida. Ao aprovar a Plataforma de
Ação de Beijing, os governos se comprometiam a incluir de maneira efetiva a dimensão
de gênero em todas suas instituições políticas, processos de planificação e de adoção de
decisões. Este compromisso significava que antes de serem adotadas decisões e
executados os planos e programas, deveria ser feito uma análise de seus efeitos sobre
homens e mulheres, bem como, das necessidades de cada grupo. Este aspecto, conduziu
a inclusão da perspectiva de gênero nas políticas e programas governamentais e
institucionais (ONU, 2002).
Outro evento importante, marco nas ações políticas na direção da educação das
mulheres, foi a Cúpula do Milênio (2000), de onde derivou a Declaração do Milênio das
Nações Unidas. Nesta foram estabelecidos oito objetivos designados como “Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio”: 1) erradicar a extrema pobreza e a fome; 2) atingir o
ensino básico universal; 3) promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das
mulheres; 4) reduzir a mortalidade infantil; 5) melhorar a saúde materna; 6) combater o
HIV/AIDS, a malária e outras doenças; 7) garantir a sustentabilidade ambiental; e 8)
estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento. Estes objetivos a serem
alcançados, em sua maioria, até 2015, foram assumidos pelos 191 Estados membros da
Organização das Nações Unidas, entre eles o Brasil.
Cada um dos oito objetivos assinalados são complementados por metas específicas.
Quanto aos objetivos referentes a atingir o ensino básico universal e o de promover a
igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres, as respectivas metas são: 1)
garantir que até 2005 todas as crianças, de ambos os sexos, terminem um ciclo completo
do ensino básico; 2) eliminar as disparidades entre os sexos no ensino primário e
6
secundário até 2005, e em todos os níveis de ensino até 2015.
No contexto da Organização das Nações Unidas, a IV Conferência Mundial sobre a
Mulher (1995) e Cúpula do Milênio (2000) constituem-se importantes mecanismos para
direcionar as políticas educacionais no interior dos países membros. Associado a estas
diretrizes e recomendações gerais, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO), como agência especializada em educação, convoca
eventos internacionais em educação de onde derivam os instrumentos internacionais em
educação, principalmente as declarações. As declarações formam as bases nas quais a
UNESCO se apóia a fim de cooperar tecnicamente para auxiliar os países na formulação
e operacionalização de ações, estabelecendo parâmetros e normas, que contribuam para
a efetivação de políticas públicas que estejam em sintonia com seu mandato, portanto, a
Organização estabelece um contato estreito com os Ministérios da Educação dos vários
Estados membros (UNESCO, 2005).
Dos eventos internacionais relativos à educação convocados pela UNESCO e
patrocinados por outras agências da Organização das Nações Unidas, Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Fundo das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF) e Banco Mundial, resultaram documentos que foram assinados
pelos vários países membros, entre eles o Brasil. Ao assinarem esses documentos, os
países signatários acordaram em elaborar e implementar políticas educacionais de
acordo com as recomendações e diretrizes formuladas, por consenso, no âmbito da
UNESCO.
Os principais documentos, que caracterizam um compromisso político dos Estados
membros em relação à educação, são: a “Declaração Mundial sobre Educação para
Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem” (Conferência Mundial
sobre Educação para Todos, Jomtien, 1990); a “Declaração de Nova Delhi sobre
Educação para Todos” (Conferência de Nova Delhi, 1993); “Declaração de Hamburgo”
(V Conferência Internacional de Educação de Adultos, 1997); e, o Marco de Ação de
Dacar, “Educação para todos: atingindo nossos compromissos coletivos” (Cúpula
Mundial de Educação, Dacar, 2000).
Todos os documentos anteriormente citados, ao estabelecerem diretrizes e orientações
7
para conformarem as políticas educacionais dos países membros a partir de um modelo
geral, pautado primeiramente na necessidade da universalização da educação básica
com qualidade, enfatizaram a educação das mulheres. Em suma, o que os documentos
mencionados expõem é que os Estados membros devem promover o acesso da educação
básica com eqüidade, eliminar os obstáculos que excluem as mulheres do sistema de
ensino, tanto barreiras sociais como culturais, bem como eliminar preconceitos e
estereótipos que reproduzem a discriminação contra o sexo feminino no contexto
escolar.
Tanto na Cúpula do Milênio (2000) como na Cúpula Mundial de Educação (Dacar,
2000), foram traçados os prazos para que os Estados membros elaborem e implementem
políticas educacionais a fim de resolverem o problema da educação das mulheres. Um
dos prazos, ou seja o ano de 2005, que foi estabelecido para que os países eliminassem
as disparidades entre os sexos na educação, já expirou e os resultados apresentados
foram discretos2. Quanto ao segundo prazo que é o ano de 2015, que se refere ao acesso
do sexo feminino a uma educação de qualidade e a igualdade de gênero na educação,
ainda inspiram expectativas, no entanto, pelo quadro atual ainda são muitos os desafios
a serem superados para que estas metas sejam atingidas.
A importância destes vários eventos internacionais realizados no período analisado para
a questão da educação das mulheres diz respeito a dois aspectos. O primeiro é chamar a
atenção da comunidade internacional em relação às várias dimensões dos problemas
relacionados à condição feminina no contexto atual que se expressam na dimensão da
educação, do mercado de trabalho, e da pobreza que atinge em maior proporção as
mulheres. O segundo aspecto está relacionado aos compromissos políticos que os
Estados membros assumem nestes eventos. Estes compromissos políticos auxiliam na
observação internacional realizada no interior dos países a fim de verificar a
implementação ou não destes compromissos. O que leva a considerar que a “imagem”
2 Em relação ao Brasil, a meta da paridade de gênero na educação, já havia sido atingida no ano de 2000, conforme expôs o Relatório de Monitoramento Global (2003/2004) - Gênero e Educação para Todos: o salto para a igualdade, publicado pela UNESCO em 2004. Este documento define a paridade de gênero como um conceito puramente numérico, ou seja, quantitativo, “[...] atingir a paridade de gênero na educação implica que a mesma proporção de meninos e meninas – em relação a seus grupos etários respectivos – entrem no sistema educacional e participem de seus diversos ciclos” (UNESCO, 2004, p.44). Portanto, a paridade de gênero não significa necessariamente que há o acesso universal de meninos e meninas na educação.
8
dos países no plano internacional pode ser afetada pelo descumprimento ou “falta de
vontade política” em concretizá-los via implementação de políticas educacionais
eficazes.
Os pressupostos educacionais provenientes da UNESCO, que primam pela
universalização da educação básica, destacando-se a importância da educação das
mulheres, são reforçados no âmbito de outras agências da Organização das Nações
Unidas, principalmente Banco Mundial e CEPAL.
Nos documentos oriundos do Banco Mundial, formulados a partir dos anos de 1990, são
recorrentes as menções feitas à educação das mulheres. Nas análises e recomendações
efetivadas nestes documentos há uma vinculação direta entre a necessidade da
promoção da educação das mulheres como condição para o combate mundial à pobreza.
Em 1990, o Banco Mundial publicou o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial
intitulado “A pobreza”. Neste destacou que o peso da pobreza recai com maior força em
certos grupos, principalmente nas mulheres, que apresentariam uma condição
econômica e social em desvantagem. As mulheres de famílias pobres com freqüência
suportam uma carga de trabalho maior que os homens e tem um grau de educação mais
baixo, incluindo menor acesso a atividades remuneradas (BANCO MUNDIAL, 1990).
Os dados contidos neste relatório indicam que se há logrado rápidos avanços na luta
contra a pobreza seguindo uma estratégia que tem dois elementos igualmente
importantes. O primeiro consiste em promover o uso produtivo do bem que os pobres
possuem em maior abundância, ou seja, o trabalho, sendo que a produtividade do
trabalho aumenta com a educação. O segundo elemento é o dos serviços sociais básicos
aos pobres, especialmente importantes, que são a atenção básica da saúde, o
planejamento familiar, a nutrição e a educação primária. Conforme enfatiza o
documento, o investimento em educação é o melhor meio de aumentar os bens dos
pobres (BANCO MUNDIAL, 1990).
A menos que se realizem maiores investimentos no capital humano que representam os
pobres, o objetivo fundamental do desenvolvimento não será possível. As melhoras em
matéria de educação, saúde e nutrição servem para fazer frente diretamente nas
9
conseqüências mais graves da pobreza. Inclusive a inversão em capital humano,
sobretudo na esfera da educação, propicia o combate também de algumas das causas
mais importantes que afetam a pobreza. Para este documento, é evidente que o capital
humano constitui um dos elementos chave para reduzir a pobreza. Se o investimento no
capital humano for pouco, aumenta-se a probabilidade de que os pobres e seus filhos
sigam sendo pobres. Para romper esse círculo vicioso intergeracional o documento
recomenda que os governos priorizem a tarefa de fazer com que os serviços cheguem
aos pobres (BANCO MUNDIAL, 1990).
Dentre outros benefícios da educação, ressalta-se que a eficácia da educação como arma
na luta contra a pobreza vai muito além do campo da produtividade do mercado de
trabalho. Um ano a mais de educação da mulher corresponde a diminuição de 9% da
taxa de mortalidade de crianças. Os filhos de mães que tem um maior nível de instrução
são mais saudáveis. Como explica o relatório, a pobreza e o crescimento populacional
se reforçam reciprocamente de várias maneiras. Os baixos salários (sobretudo no caso
das mulheres), a educação insuficiente e a alta taxa de mortalidade infantil, todos eles
vinculados a pobreza, contribuem para elevar a taxa de fecundidade e, por conseguinte,
a acelerar o crescimento da população. Uma das maneiras mais eficazes de reduzir a
fecundidade é incrementar o nível de educação das meninas e das mulheres (BANCO
MUNDIAL, 1990).
Esta retórica em favor da educação das mulheres e meninas foi reafirmada em outros
documentos do Banco Mundial, principalmente os publicados em 1995 e 2000. Em
“Prioridades e estratégias para a educação”, estudo setorial do Banco Mundial de 1995,
afirma-se que a rentabilidade da inversão na educação de mulheres é superior a dos
homens, quando se trata de mulheres que obtém emprego. Quando se refere à saúde e a
fecundidade os argumentos em favor da educação das meninas resultam ainda mais
contundentes, afirmando-se que a educação pode romper a reprodução da pobreza no
futuro.
No Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial referente a 2000/2001, intitulado “A
luta contra a pobreza” (BANCO MUNDIAL, 2000) afirma-se que as causas da pobreza
apresentam três dimensões. A primeira é a falta de renda e de recursos para atender as
necessidades básicas como alimentos, habitação, vestuário, e níveis aceitáveis de saúde
10
e educação. A segunda é a falta de voz e de poder nas instituições estatais e na
sociedade e, a última, é a vulnerabilidade a choques adversos que está combinada com a
incapacidade de enfrentá-los. Neste sentido, um plano geral de ação é proposto por
intermédio de um esquema de ação baseado em promover oportunidades, facilitar a
autonomia e melhorar a segurança. No documento, considera-se que o desenvolvimento
econômico nacional é indispensável para o êxito na redução da pobreza.
A questão das mulheres é mencionada mais detidamente no esquema de ação desenhado
para promover a autonomia. A esse respeito é proposto o fortalecimento das instituições
sociais, que compreendem os sistemas de parentesco, organizações comunitárias e redes
informais, que afetam consideravelmente a pobreza. Nas instituições sociais, a
discriminação com base no sexo, etnia, raça, religião ou posição social pode conduzir a
exclusão social e prender as pessoas nas armadilhas da pobreza em longo prazo. Essas
formas de discriminação constituem-se em barreiras que precisam ser removidas
(BANCO MUNDIAL, 2000).
Quanto a relação entre discriminação sexual e pobreza, no referido Relatório de
2000/2001, expõe-se entre outros elementos, que a desigualdade entre os sexos tem
acentuadas repercussões no que se refere ao capital humano da próxima geração, dado
que o encargo de gerar e criar os filhos recai em grande parte sobre a mulher. A mulher,
sem instrução e sem poder de decisão no lar, enfrenta graves limitações na criação de
filhos sadios e produtivos. Ademais, tende a ter mais filhos do que desejaria, acentuando
as pressões sobre ela mesma e sobre sua família. Portanto, as mulheres mais instruídas
apresentam maior capacidade de se comunicar com seus maridos em decisões sobre o
tamanho da família, fazem uso mais efetivo de anticoncepcionais e têm aspirações mais
altas para os filhos (BANCO MUNDIAL, 2000).
A vinculação entre educação das mulheres e redução da pobreza também é a tônica dos
documentos da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL),
principalmente nos documentos elaborados a partir do ano de 2000. Como agência de
desenvolvimento regional, a CEPAL vem produzindo, desde os anos 1990, um aparato
teórico e técnico que sustenta politicamente programas de ajuste estrutural, orientando e
operacionalizando o novo modelo de desenvolvimento econômico e social para a região
latino-americana e caribenha. O objeto central do desenvolvimento econômico e social,
11
bem como as grandes questões sociais como educação, saúde e trabalho, foram
incorporadas nas análises da Comissão, pois estes são elementos importantes para nova
tese da agência que contempla a transformação produtiva nos marcos da eqüidade
social.
A educação, neste contexto de elaboração de recomendações para os países da região,
vem sendo advogada como o elemento principal na produção de uma nova conjuntura
econômica e social regional, como pode-se observar no documento “Transformação
produtiva com eqüidade: a tarefa prioritária do desenvolvimento da América Latina e o
Caribe nos anos noventa”, publicado em 1990. Neste documento, após diagnosticar o
crescimento massivo da pobreza na região afirma ser o cerne da transformação
produtiva com eqüidade a incorporação do progresso técnico, que pressupõe a
existência de recursos humanos capazes de se adaptar às mudanças do setor produtivo.
A educação e a requalificação contínua da força de trabalho constituem-se condição
necessária para que a economia avance para o crescimento sustentável e a eqüidade.
Explicita-se que o Estado precisa, sobretudo, minimizar o custo social do ajuste,
preconizando um lugar destacado aos programas sociais. Custos sociais, que nos
estudos realizados por esta agência, são mais severos para as mulheres (CEPAL, 1990).
No projeto da CEPAL de uma transformação produtiva com eqüidade tornou-se
essencial investir-se em recursos humanos, sendo a educação o eixo principal, tanto para
promover condições para o progresso técnico quanto via para redução da pobreza.
Conforme Oliveira (2001) embora a CEPAL não seja uma agência fundamentalmente
preocupada com a política educacional, passou a despontar como uma das principais
fontes das idéias direcionadoras das políticas educacionais na região.
Em 1992, a agência formulou os pressupostos educacionais nos quais os países da
região deveriam embasar-se para implementar suas políticas educacionais, expresso no
documento “Educação e conhecimento: eixo da transformação produtiva com
eqüidade”. Estes pressupostos fundam-se na articulação entre educação, conhecimento e
desenvolvimento, tríade central nas estratégias de incorporação do progresso
tecnológico, que possam transformar as estruturas produtivas dentro de uma progressiva
eqüidade social. Em relação à eqüidade, consta que o Estado deve promover a
passagem de uma educação que reforça as desigualdades para aquela que contribua para
12
elevar a igualdade social, se destinar seus melhores recursos para os lugares onde são
maiores as necessidades (CEPAL, 1992).
Em “Eqüidade, desenvolvimento e cidadania” (2000), outro documento publicado pela
CEPAL, foram reforçados os pressupostos em relação à educação, apontados nos
documentos anteriores, acentuando a questão da pobreza na região e estabelecendo uma
agenda de desenvolvimento para o século XXI direcionada, principalmente, para a
redução da pobreza. A educação é apontada como uma das chaves-mestra para gerar o
progresso simultâneo em igualdade, desenvolvimento e cidadania, sendo vital para
bloquear a reprodução da pobreza via perpetuação de uma geração a outra. Adota o
princípio da focalização e seletividade orientando a destinação dos maiores recursos
estatais onde há maior carência, ou seja, que as políticas sociais sejam dirigidas a grupos
específicos da população que são mais afetados pela pobreza (CEPAL, 2000).
No “Panorama Social da América Latina” de 2002/2003 (CEPAL, 2002) concluiu-se
que a pobreza afeta com maior severidade as mulheres. Como sem a importante
contribuição feminina não é possível superar a pobreza da região, defendeu a autonomia
econômica das mulheres para favorecer o seu “empoderamento”. Entre os efeitos
proporcionados pela educação da mulher estariam o incremento de sua capacidade de
decisão e ação e a melhoria da saúde infantil. Assim, para a CEPAL, investir nas
mulheres é imprescindível para que os objetivos de desenvolvimento do milênio sejam
alcançados na região (CEPAL, 2002).
A prioridade urgente de melhorar a qualidade da educação e garantir o acesso à
educação para meninas e mulheres, no bojo de novas orientações para a atuação do
Estado nas políticas sociais, conforme os documentos da CEPAL, coincidem com as
recomendações políticas advindas de órgãos de fomento financeiro como o Banco
Mundial.
Observa-se que a educação das mulheres e meninas floresceu como mecanismo
considerado mais eficaz para promover o crescimento econômico dos países em
desenvolvimento e para a redução da pobreza. As agências internacionais passaram a
apregoar que a educação não só contribui para inserir as parcelas pobres no mercado de
trabalho, mas também, é dispositivo essencial para aumentar o capital humano e
13
propiciar o controle demográfico, via diminuição das taxas de fecundidade na população
feminina.
Na perspectiva das agências internacionais, nos ditos países em desenvolvimento, o
caráter feminino da pobreza se expressa pela falta de oportunidades econômicas e
autonomia, a falta de acesso aos recursos econômicos, incluindo o crédito, propriedade
da terra, falta de acesso à educação, entre outros. Já no caso dos países desenvolvidos a
feminização da pobreza está vinculada a outros fatores, pois os níveis de educação geral
e formação profissional das mulheres e homens são semelhantes, inclusive dispondo
esses países de sistemas de proteção contra a discriminação. Neste aspecto, a causa do
aumento proporcional de mulheres vivendo na pobreza se relaciona às transformações
econômicas, em alguns setores, que tem provocado o aumento do desemprego feminino
e a precarização de seu emprego.
Apesar de que a referência sobre a educação formal das mulheres encontrar-se no
contexto do movimento internacional de Educação para Todos, ela apresenta uma outra
característica específica, a de estar relacionada diretamente com a redução da pobreza
pela via da diminuição da mortalidade infantil e diminuição da fecundidade. Estes dois
objetivos interligados à educação das mulheres traduzem as justificativas essenciais para
que governos assumam os compromissos firmados internacionalmente para promover
políticas sociais e educacionais que incluam as mulheres, como um grupo mais
vulnerável a pobreza.
Considera-se que a educação das mulheres, conforme os documentos da UNESCO,
CEPAL e Banco Mundial, e sua conseqüente assimilação pelo Governo brasileiro via
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres não formam parte de um movimento
isolado, predominantemente associado a questões de direitos humanos, mas estiveram e
estão inseridas em um conjunto de acontecimentos inerentes a nova ordem do capital
mundial.
A série de eventos realizados nas diferentes áreas da Organização das Nações Unidas, a
elaboração de instrumentos internacionais de educação pela UNESCO, e as análises e
recomendações contidas nos documentos do Banco Mundial e CEPAL para a área
educacional, expressam a preocupação internacional com o crescimento generalizado da
14
pobreza mundial.
A contextualização histórica
O objeto em estudo apresenta estreitas vinculações com o lugar histórico, com as
circunstâncias temporais e com as contingências específicas da vida material na qual se
constitui e é produzido. O final do século XX caracterizou-se por transformações no
modo de produção social, as quais decorreram da resposta do capitalismo mundial às
crises de rentabilidade e valorização do capital. A superação da crise mundial, cujos
sinais que evidenciaram a partir da década de 1970, ocorreu com uma nova
configuração e uma nova dinâmica da produção e da acumulação do capital.
Explicita Chesnais (1997, p.20) que se trata de um regime de acumulação mundial com
dominância das finanças ou regime de acumulação financeirizada. Para este autor a
mundialização do capital não significa que esse regime financeirizado “[...] englobaria o
conjunto da economia mundial numa totalidade sistêmica” (CHESNAIS, 2003, p.52). A
mundialização concernente ao capital produtivo, comercial e financeiro, implicou em
uma interdependência de vários países e regiões acompanhada de uma polarização
maior entre países pobres e ricos, o que revela a essência fortemente seletiva da
mundialização do capital.
A reestruturação do sistema capitalista tem produzido e aumentado o contingente
humano que vive na pobreza. A regulação social baseada no regime de acumulação
flexível implica em níveis relativamente altos de desemprego estrutural, modestos
ganhos de salários reais, e retrocesso do poder sindical (HARVEY, 2003). Neste novo
padrão de acumulação, conforme Antunes (1999), a classe trabalhadora heterogeneizou-
se, tornando-se, de um lado, mais qualificada em vários setores, havendo uma relativa
intelectualização do trabalho e, por outro, desqualificou-se e precarizou-se em diversos
ramos, principalmente no ramo industrial. Neste último aspecto, a maioria das mulheres
passaram a ocupar a esfera do trabalho desqualificado, por serem consideradas mais
adaptáveis às dimensões polivalentes do trabalho na produção flexível.
As mudanças na estrutura produtiva e no mercado de trabalho possibilitaram a
incorporação e o aumento da exploração da força de trabalho feminina (ANTUNES,
15
1999). As mulheres passaram a ser absorvidas pelo capital, preferencialmente no
universo do trabalho part time, precarizado e desregulamentado. Entretanto, esta
expansão do trabalho feminino continua tendo a desigualdade salarial como elemento
marcante. Há referências a uma divisão sexual do trabalho, operada pelo capital dentro
do espaço fabril, onde as atividades de concepção ou aquelas baseadas em capital
intensivo são preenchidas pelo trabalho masculino, enquanto aquelas dotadas de menor
qualificação, mais elementares e freqüentemente fundadas em trabalho intensivo, são
destinadas às mulheres trabalhadoras. O capital, portanto, tem demonstrado capacidade
em apropriar-se intensamente da “polivalência e multiatividade” do trabalho feminino
(ANTUNES, 2002).
As formas em que se efetiva a exploração da força de trabalho, o desemprego e a
informalidade, características desta fase de desenvolvimento capitalista, produzem
efeitos mais significativos nas mulheres, uma vez que elas não participam apenas na
complementação da renda familiar, mas na maioria dos casos, são as principais
provedoras desta renda. Deste modo, o contexto do “regime de acumulação flexível”
determinou não só o aumento da inserção da força de trabalho feminina no mercado de
trabalho, mas também ampliou as formas de exploração da força de trabalho, em
específico a força de trabalho feminina.
A implantação de cadeias produtivas em várias regiões do mundo onde abundam a força
de trabalho com menor valor salarial, associado às condições facilitadoras que os países
oferecem ao capital produtivo, ampliou a oferta de postos de trabalho para a força de
trabalho feminina. Postos de trabalho, como já referido acima, na maioria das vezes
precários, com condições insalubres e com baixos salários. Inclui-se ainda o caráter
instável destes postos de trabalho, devido à dependência do capital produtivo as
oscilações do capital financeiro, gerando o desemprego e o fechamento de indústrias.
Neste aspecto, as mulheres são as mais atingidas pelas oscilações do mercado, pois são
as primeiras a serem demitidas.
O processo de mundialização financeirizada do capital, só foi possível com medidas
políticas internacionais implicando na liberalização e na desregulamentação dos
mercados nacionais. O aporte hegemônico das interpretações atuais do liberalismo
econômico, instituiu um novo direcionamento político e econômico caracterizado na
16
doutrina neoliberal. A doutrina neoliberal configurou as políticas econômicas e sociais
de vários países pelo mundo todo, porém, adquiriu características diferenciadas segundo
o contexto nacional que encontrou. No Brasil e em toda a América Latina as
configurações neoliberais produziram efeitos diferenciados, no entanto, em todos os
casos os princípios essenciais do neoliberalismo se manifestaram igualmente, ou seja,
na produção desenfreada da pobreza latino-americana.
Como assinala Moraes (2001) o neoliberalismo defende a privatização de empresas
estatais e serviços públicos, acentuando a criação de novas regulamentações e novos
dispositivos legais, a fim de diminuir a interferência dos poderes públicos sobre os
empreendimentos privados. O grande argumento do neoliberalismo é que o Estado de
Bem-estar, ao buscar proteger o cidadão, via políticas e assistência social, acabou
produzindo a ineficiência e o clientelismo. A doutrina neoliberal apontou a interferência
do Estado na economia como responsável pelas sucessivas crises do capital (MORAES,
2001).
Para Ugá (2004), as propostas neoliberais, nos países avançados, consistiram na redução
do papel do Estado, no enfraquecimento dos sindicatos e na flexibilização do mercado
de trabalho. Se nos países centrais o neoliberalismo atingiu as políticas do Estado de
Bem-estar social, nos países da América Latina atingiu o modelo de desenvolvimento
econômico fundado no “desenvolvimentismo”. Este fundado na intervenção do Estado
como principal articulador do desenvolvimento econômico, que caracterizou a
economia de países como o Brasil por um longo tempo histórico.
Na América Latina, incluindo o Brasil, os mecanismos de ajuste estrutural estiveram
atrelados aos “programas de ajuste”, a fim de promover condições de renegociação da
dívida externa. Essa série de mecanismos políticos e econômicos se articulam e se
engendram mutuamente, trazendo em seu bojo o acirramento dos problemas sociais,
entre eles o aumento da pobreza mundial, pois milhares de pessoas convivem com
desemprego e o emprego informal, associado a conformação das políticas sociais de
acordo com as orientações neoliberais. As mulheres, neste contexto, arcaram com o
custo social travestido na situação de pobreza extrema.
Segundo Toussaint (2002) as mulheres representam setenta por cento dos um bilhão e
17
duzentos milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza absoluta, ou seja,
pessoas que sobrevivem com menos de um dólar ao dia. Para este autor o principal fator
de exclusão e de pauperização continua a ser o desemprego, no entanto, uma grande
porcentagem dos que tem empregos também vive na pobreza, pois os salários são
insuficientes para arcar com as despesas essenciais à sobrevivência.
Tanto o problema do desemprego quanto a pauperização do trabalho destacam-se como
fatores que acentuam a pobreza para as mulheres.
[...] a tendência do sistema capitalista de reorganizar em seu benefício a economia em escala mundial tem repercussões diretas nas relações entre os sexos. A análise dos métodos empregados mostra, de um lado, que o sistema capitalista se nutre de um sistema de opressão preexistente, o patriarcado, e, de outro lado, que ele revela seus traços. De fato, a opressão das mulheres é, para os capitalistas, um instrumento que permite gerir o conjunto da força de trabalho e mesmo justificar sua política deslocando a responsabilidade do bem-estar social do Estado e das instituições coletivas para a ‘intimidade’ da família (TOUSSAINT, 2002, p.53).
Este contexto de empobrecimento mundial que atinge com mais intensidade as mulheres
vem sendo denominado como um quadro de “feminização da pobreza”. Esta
constatação vem se consolidando como ponto nodal para o direcionamento das políticas
sociais. A vinculação da educação como estratégia universal para o combate a pobreza,
e sua conseqüente focalização em grupos mais atingidos por esta, ou seja, as mulheres,
vem também acompanhada por assertivas de que a educação da mulheres é importante
para deter a reprodução social da pobreza.
De acordo com o discurso das agências internacionais, diante deste contexto global,
caracterizado pela pobreza feminina, a inclusão da perspectiva de gênero, na análise,
elaboração e implementação das políticas sociais, que inclui a educação, tornou-se
fundamental para atingir o objetivo mundial de combate à pobreza, que no âmbito das
agências internacionais, tornou-se central neste novo século.
A UNESCO, como agência da Organização das Nações Unidas, aderiu a campanha de
combate à pobreza nos últimos anos. No mais recente planejamento bienal de atividades
da UNESCO, o “Programa e Orçamento” para 2004-2005, esta agência expôs que a
educação trata-se de um fator crítico para superar a pobreza e assegurar o
18
desenvolvimento sustentável. Assim, concede prioridade às políticas práticas que
promovam o rendimento escolar geral, a eqüidade mediante gastos em favor dos pobres,
melhor acesso aos grupos excluídos, principalmente crianças, entre elas, meninas e as
crianças com necessidades especiais (UNESCO, 2003).
A questão da feminização da pobreza e o aumento acentuado no discurso em prol da
educação das meninas e mulheres mostram como os grandes problemas sociais
passaram a ser diagnosticados e analisados de forma focalizada. Conforme o
direcionamento focalizado das políticas sociais de cunho neoliberal, tende-se a
compartimentalizar ainda mais os grandes problemas sociais, selecionando dentre a
população grupos específicos a serem beneficiados pelas políticas públicas
compensatórias e assistencialistas. Nesse caso, as mulheres pobres, com baixa ou
nenhuma escolarização, passam a ser o foco principal na grande estratégia mundial de
redução da pobreza.
O conteúdo dos documentos analisados no presente trabalho oferecem elementos
analíticos para evidenciar-se que a preocupação atual com a educação das meninas e
mulheres não vem separada das contingências neoliberais que caracterizam o estágio
atual do capitalismo mundial. O consenso em torno das proposições sobre a educação
das mulheres, que se baseia em argumentos estritamente econômicos, ligados
especialmente em conter o crescimento demográfico, melhorar a saúde e a nutrição da
população, a fim de reduzir a pobreza, que são comuns aos documentos das agências
internacionais analisadas neste trabalho, são estabelecidos a partir de uma perspectiva
teórica lógica e linear, que obscurece as relações mais gerais que implicam na produção
da pobreza.
A apreensão imediata desses fenômenos, sem a análise das mediações que eles
incorporam em sua manifestação, levam a imputar a educação à única estratégia
possível para melhorar as condições econômicas e sociais da população, e
principalmente ser o elemento que vai equalizar as distorções existentes entre mulheres
e homens no contexto social.
As políticas públicas para as mulheres, tal qual está sendo orientada no Brasil, precisa
ser analisada mais detidamente, pois conforme assinala Bandeira (2005), existe
19
diferença entre esta política e as políticas públicas de gênero. Segundo Bandeira (2005,
p.8), “[...] as políticas públicas no Brasil, no geral, quando são feitas e dirigidas às
mulheres não contemplam necessariamente a perspectiva de gênero”. Para esta autora,
as políticas públicas de gênero, precisam considerar a diversidade dos processos de
socialização para homens e mulheres, pois suas conseqüências se fazem presentes ao
longo da vida, nas relações individuais e coletivas (BANDEIRA, 2005).
Conforme Bandeira (2005) as políticas públicas para as mulheres centram-se no aspecto
feminino enquanto parte da reprodução social. Para a autora (2005, p.8), “[...] a
centralidade posta na mulher-família reafirma a visão essencialista de que a reprodução
e a sexualidade causam a diferença de gênero de modo simples e inevitável”. Portanto,
as políticas públicas para as mulheres configuram-se em uma política pública que “[...]
enfatiza a responsabilidade feminina pela reprodução social, pela educação dos filhos,
pela demanda por creches, por saúde e outras necessidades que garantam a manutenção
e permanência da família e não necessariamente seu empoderamento e autonomia”
(BANDEIRA, 2005, p.8).
Porém, na diferenciação acima descrita, a mesma autora adverte que as políticas para as
mulheres não excluem as políticas de gênero, mas apresentam uma perspectiva restrita,
pontual e menos abrangente. Atendem, nesse aspecto, a demandas das mulheres, mas
não instauram “[...] uma possibilidade de ruptura com as visões tradicionais do
feminino” (BANDEIRA, 2005, p.9).
Este esclarecimento feito por Bandeira (2005) nos ajuda a compreender o tipo de
política que está sendo recomendada pelas agências internacionais, especialmente o
Banco Mundial. Pois a definição de políticas públicas para as mulheres feita pela autora
traduz o que é enfatizado para a educação de mulheres nos vários documentos
produzidos no âmbito daquela agência.
Considerações finais
A conclusão a que se chega, após a análise feita acima é que a ênfase em políticas
focalizadas na educação das mulheres como uma das formas de combater a pobreza
expressa um posicionamento de classe que está relacionada “à incapacidade de tratar as
20
causas como causas”, conforme explicita Mészáros (2002, p.175)
[...] o aspecto mais problemático do sistema do capital, apesar de sua força incomensurável como forma de controle sociometabólico, é a total incapacidade de tratar as causas como causas, não importando a gravidade de suas implicações a longo prazo. Esta não é uma dimensão passageira (historicamente superável), mas uma irremediável dimensão estrutural do sistema do capital voltado para a expansão que, em suas necessárias ações remediadoras, deve procurar soluções para todos os problemas e contradições gerados, em sua estrutura por meio de ajustes feitos estritamente nos efeitos e nas conseqüências.
Destarte, em consonância com o mesmo autor, as políticas públicas sociais de cunho
neoliberal, ao implicarem necessárias ações remediadoras, encaminham soluções para
todos os problemas e contradições gerados estruturalmente pelo capitalismo por
intermédio de ajustes feitos estritamente nos efeitos e nas conseqüências.
Diante do exposto acima, compreende-se que a Política Nacional para as Mulheres no
Brasil, por ora representada no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, representa
um avanço político conquistado pelo movimento de mulheres, pois suas reivindicações,
paulatinamente vão sendo assimiladas pelo aparato político estatal, o que abre e amplia
espaços de luta. Por outro lado, também expressa um posicionamento político do
governo brasileiro ao buscar cumprir, nas condições existentes, a agenda construída
internacionalmente no período pós 1990 para a educação de mulheres. Assim, longe de
ser apenas uma articulação interna, resulta de condicionantes políticos e econômicos
engendrados e articulados em um contexto mais geral e expressa o estabelecimento de
uma relação reducionista entre educação e desenvolvimento.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, R. (Org.). Neoliberalismo, trabalho e sindicatos: reestruturação produtiva no Brasil e na Inglaterra. 2.ed. São Paulo: Boitempo, 2002. ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2002. BANCO MUNDIAL. Informe sobre el desarrollo mundial 1990: la pobreza. Washington, DC: Banco Mundial, 1990. BANCO MUNDIAL. Prioridades y estrategias para la educación: estudio sectorial del Banco Mundial. Versión preliminar. Washington, DC: Banco Mundial 1995.
21
BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o desenvolvimento mundial 2000-2001: a luta contra a pobreza. Washington, DC: Banco Mundial, 2000. BANDEIRA, L. Fortalecimento da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres: avançar na transversalidade da perspectiva de gênero nas políticas públicas. Brasília: CEPAL/SPM, 2005. BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: SPM, 2004. CEPAL. Transformacion productiva com equidad. Santiago do Chile, 1990. CEPAL/UNESCO. Educação e conhecimento: eixo da transformação produtiva com eqüidade. Brasília: IPEA/CEPAL/INEP, 1995. CEPAL. Equidade, desenvolvimento e cidadania. Rio de Janeiro: Campus, 2002. CEPAL. Panorama Social 2002/2003. Disponível em: <http://www.eclac.cl/cgi-bin/getProd.asp?xml=/dds/agrupadores_xml/aes31.xml&xsl=/agrupadores_xml/agrupa_listado.xsl>. Acesso em: 15 mar. 2005. CHESNAIS, F. A mundialização do capital. Tradução Silvana Finzi Foá. São Paulo: Xamã, 1997. CHESNAIS, F. A “nova economia”: uma conjuntura própria à potência econômica estadunidense. In: CHESNAIS, F.; DUMÉNIL, G.; LÉVY, D. Uma nova fase do capitalismo? São Paulo: Xamã, 2003. HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 2003. MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo; Campinas: Editora UNICAMP. 2002. MORAES, R.C. Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai? São Paulo: Editora SENAC, 2001. OLIVEIRA, Ramon de. O legado da CEPAL à educação nos anos 90. Revista Iberoamericana de Educação, 2001. Disponível em: <http://www.campus-oei.org/revista/deloslectores/Oliveira.pdf>. Acesso em: 25 de jul. 2005. ONU. Declaración del Milênio. Nueva York: Naciones Unidas, 2000. ONU. Conferência Mundial sobre a Mulher. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1996. TOUSSAINT, E. A bolsa ou a vida. A dívida externa do terceiro mundo: as finanças contra o povo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002 UNESCO. Conferencia General. Programa y Presupuesto aprobados para 2004-
22
2005. Paris: UNESCO, 2004. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001341/134100s.pdf>. Acesso em: 01 mar. 2006. UNESCO. Relatório de monitoramento global de EPT 2003/4: educação para todos: gênero e educação para todos: o salto para a igualdade. São Paulo: Moderna, 2004. UNESCO. Declaração mundial de educação para todos. Plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem.Tailândia, 1990. UNESCO. Declaração de Nova Delhi sobre Educação para Todos. Nova Delhi, 1993. Disponível em: <www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/decnovadelhi >. Acesso em: 18 jun.2005. UNESCO. Conferência internacional sobre a educação de adultos (1997): Declaração de Hamburgo: agenda para o futuro. Brasília: SESI/UNESCO, 1999. UNESCO/CONSED. Educação para todos: o compromisso de Dakar. Brasília: UNESCO/CONSED. Ação Educativa, 2001. UGÁ, V.D. A categoria “pobreza” nas formulações de política social do Banco Mundial. Revista de Sociologia Política, Curitiba, n.23, nov. 2004. p.55-62.