as relações de poder nos espaços de formação docente

24
AS RELAÇÕES DE PODER NOS ESPAÇOS DE FORMAÇÃO DOCENTE Maria Aparecida Assis Batista Professora do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais; Mestranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais RESUMO O artigo analisa os espaços de formação de professores, as lutas simbólicas e as relações de poder desempenhadas pelos agentes, que compõem esses espaços. Discute o campo educacional enquanto espaço de formação inicial e de formação continuada do professor. Sugere possibilidades de ação do professor, enquanto agente do campo educacional, para dar respostas aos conflitos que se estabelecem nesse campo e promover estratégias de transformação e emancipação. Palavras-chaves: Campo educacional, formação docente, lutas simbólicas, ação, transformação. INTRODUÇÃO O presente artigo visa refletir sobre aspectos das relações de poder praticadas nos espaços destinados à formação docente e a importância do papel que seus agentes desempenham nas lutas simbólicas inerentes a esses espaços. Pretende ressaltar os conflitos e lutas latentes no campo educacional, a liberdade que usufruem 1

Upload: vodung

Post on 31-Dec-2016

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: As relações de poder nos espaços de formação docente

AS RELAÇÕES DE PODER NOS ESPAÇOS DE FORMAÇÃO

DOCENTE

Maria Aparecida Assis BatistaProfessora do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais; Mestranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

RESUMO

O artigo analisa os espaços de formação de professores, as lutas simbólicas e as relações de poder

desempenhadas pelos agentes, que compõem esses espaços. Discute o campo educacional

enquanto espaço de formação inicial e de formação continuada do professor. Sugere

possibilidades de ação do professor, enquanto agente do campo educacional, para dar respostas

aos conflitos que se estabelecem nesse campo e promover estratégias de transformação e

emancipação.

Palavras-chaves: Campo educacional, formação docente, lutas simbólicas, ação, transformação.

INTRODUÇÃO

O presente artigo visa refletir sobre aspectos das relações de poder praticadas

nos espaços destinados à formação docente e a importância do papel que seus

agentes desempenham nas lutas simbólicas inerentes a esses espaços. Pretende

ressaltar os conflitos e lutas latentes no campo educacional, a liberdade que

usufruem seus agentes e, ao mesmo tempo, as coações invisíveis que pesam sobre

eles.

O uso de conceitos provenientes da Sociologia de Bourdieu fomenta reflexões e até mesmo

indagações a respeito das contradições e das lutas concorrenciais, que se estabelecem entre os

agentes envolvidos nos processos de formação. A densidade, a potência analítica e a

dialeticidade inerentes a esses conceitos possibilitam colocações mais ricas e densas, evitando a

superficialidade e o pedagogismo.

Fazer colocações sobre os espaços e projetos formadores e buscar explicações

para a realidade dos mesmos, exige se pautar não apenas no conhecimento

racional, objetivo e técnico, mas, também, no que é subjetivo, simbólico e

implícito, no que está na realidade, no que nela está representado e no que está

1

Page 2: As relações de poder nos espaços de formação docente

sendo construído e modificado a partir das relações e ações que se estabelecem

entre os agentes que compõem esta realidade. É nesse sentido que o presente

artigo sugere possibilidades de ação do professor, nos espaços onde acontecem a

sua formação.

Uma tentativa de entendimento do campo do poder como instrumento de

análise do campo educacional.

Para facili tar a compreensão do campo educacional e das lutas simbólicas que

são desencadeadas em seu interior, se faz necessário fazer uma leitura da

concepção de campo em Bourdieu e dos seus elementos fundamentais. Tais

elementos serão conceituados e explicados, na medida que as abordagens feitas

sobre os espaços de formação docente necessitarem dos mesmos, para serem

melhor compreendidos.

Para Bourdieu, citado por Ortiz (1983), pode-se considerar o campo como

construtos teóricos ou representações da realidade , onde forças simbólicas e

relações de poder se manifestam em condições objetivas. Poder simbólico pode

ser interpretado como uma força invisível presente em todos os recantos do

campo, sem que seus agentes percebam que estão submetidos a ele, sendo com

ele coniventes. Bourdieu desenvolve seu conceito de poder interligado ao

conceito de campo, pois o poder se manifesta nos diversos campos, onde os

agentes uti lizam os capitais que possuem para, hierarquicamente, definirem suas

posições. Assim, dentre outros, os campos científico, acadêmico, literário,

religioso, político, cada um em sua perspectiva, implica uma forma dominante de

capital . Canesin(2002), reforça tal abordagem, quando aponta as lutas e disputas

entre os diversos campos que compõem o campo do poder, determinadas pelas

posições definidas pelo capital simbólico acumulado e que garantem autoridade e

prestígio a quem os detém.

Os campos são espaços de produção de bens s imbólicos permeados por relações de poder expressas em confl i to , lutas , consensos entre os diversos agentes que, dispostos hierarquicamente , disputam o domínio destes bens como forma de autoridade, legi t imidade e prestígio. A his tória dos di ferentes campos revela confrontos entre indivíduos, grupos, inst i tuições ,

2

Padrao, 03/01/-1,
Page 3: As relações de poder nos espaços de formação docente

pela maior ou menor detenção do capi tal s imbólico acumulado. (Canesin,2002:99)

O campo do poder, onde acontecem todos os embates e consensos entre seus

agentes, será sempre permeado pelo poder simbólico, pela relação

dominante/dominado, provocando disputas e a busca de possibil idades para a

emancipação do grupo dominado ou a construção de estratégias, para a

manutenção do poder do grupo dominante. Esse confli to determinado no interior

do campo pelas relações de força entre posições e agentes sofrem alterações a

todo momento, seja por fatores internos ao próprio campo, seja por interferências

externas.

No atual estágio de desenvolvimento do sistema capitalista, acompanhado pela

globalização, pelas polít icas neoliberais, pelo crescimento tecnológico, pela

quebra de paradígmas e pela crescente relação de dominação dos países centrais

sobre os países periféricos, a sociedade não pode ser pensada apenas numa ótica

racional e objetiva. Ela precisa ser pensada enquanto espaço de lutas simbólicas,

de disputas entre seus agentes, pertencentes a campos específicos e interligados,

definidos hierarquicamente pela distribuição do capital . Nessa perspectiva, a

sociedade pode ser entendida como um espaço onde as posições dos diferentes

campos estabelecem relações de força, que delimitam as intenções dos agentes e

as interações entre eles. Assim, a posição de um agente se define pela posição

que ele ocupa nos diferentes campos e na distribuição dos poderes, que prevalece

em cada um deles em termos de capital.

No campo educacional entendido aqui, especificamente, como um espaço de

lutas e confrontos entre os diversos agentes que o compõem, o poder que o

legitima está centrado no capital cultural, embora o capital econômico esteja

presente como “pano de fundo”, nas lutas e disputas pelo domínio do poder

simbólico.

O campo educacional e os espaços de formação docente

O campo educacional recebe influência direta da sociedade a que pertence. As

concepções de conhecimento sofrem transformações oriundas dos elementos que

3

Page 4: As relações de poder nos espaços de formação docente

compõem o campo social, ao mesmo tempo que tais conhecimentos definem

mudanças substanciais nesse campo. Para ilustrar a interdependência entre os

campos social e educacional, pode-se citar a concretização da polít ica de

universalização do Ensino Fundamental e Médio e, gradativamente, do Ensino

Superior. Devido a essa universalização, um público cada vez mais diverso, se

faz presente no interior do campo educacional, mudando o sentido atribuído à

educação e exigindo uma instituição escolar capaz de atender essa diversidade

social e cultural. A mudança de paradígma do campo educacional, onde o que era

imutável passa a ser enfocado como relativo, relacional e dialógico, trás

mudanças no campo social. Os agentes atingidos pela política de universalização

do ensino, mesmo não estando providos do capital cultural e econômico,

legitimadores do poder, estão no campo social exigindo mudanças e construindo

estratégias de emancipação.

Assim como o campo econômico, político, l iterário, religioso, o campo

educacional possui suas próprias normas, seus próprios valores, seus interesses,

sua hierarquia e divisão social . É um espaço que se estrutura a partir de relações

objetivas, mediante a disputa do capital cultural em jogo pelos seus agentes. Os

agentes do campo educacional, detentores ou não do poder simbólico,

proveniente do capital cultural, sofrem sanções, lutam , concorrem, coagem e são

coagidos, integram-se, fazem e desfazem pactos, são simultaneamente parceiros

e adversários.

Nesse ínterim, percebe-se quanto é complexo analisar todos os espaços de

formação docente, devido à diversidade desses espaços e as lutas concorrenciais

estabelecidas entre os campos e entre os agentes. A formação do professor é

portanto um processo que extrapola as relações internas entre os agentes do

campo educacional e se faz presente no campo social . Devido a essa

complexidade, optou-se, nesse artigo, por estabelecer critérios para análise da

formação docente, priorizando os seus espaços mais formais e comuns: a

universidade, onde acontece a formação inicial e a escola onde o professor atua,

locus da formação em serviço. No espaço da formação em serviço a análise se

detém nos seguintes aspectos: a relação do professor com os determinantes legais

4

Page 5: As relações de poder nos espaços de formação docente

e as políticas de investimento na formação docente; a relação do professor com

os alunos e com própria prática cotidiana.

As lutas simbólicas nos espaços de formação docente

O campo educacional tem, na última década, defrontado com diversas polít icas

de formação docente, principalmente após a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional, Lei Nº 9394/96. Os programas de formação contemplam as

mais diferentes demandas, dentre eles, pode-se citar os programas de formação

em nível superior, os programas de aperfeiçoamento em serviço e os programas

de educação à distância. Além desses programas de formação docente, os

professores, para atendimento às exigências legais, buscam formação, através de

recursos próprios, nas instituições privadas de ensino superior.

O Brasil se depara atualmente com um crescimento quantitativo do ensino

superior, seja pela abertura da legislação que dá possibil idades às insti tuições

de ensino superior privadas criarem os Institutos Superiores de Educação, seja

pela reorganização da estrutura do ensino superior brasileiro 1 , através do decreto

nº 3860 (BRASIL,2001), ou ainda pelo grande contingente de professores que,

por exigência da LDB deverão, nos próximos anos estar habili tados em nível

superior. Esse crescimento quantitativo faz emergir diferentes modelos e

projetos de formação, para atender a crescente demanda de pessoas que buscam,

atualmente, esse nível de ensino. As lutas simbólicas travadas no interior do

campo educacional provenientes de diferentes contextos, e envolvendo os

capitais cultural e econômico, fazem emergir interesses antagônicos entre seus

agentes. De um lado está a grande demanda de professores para serem formados,

do outro estão as instituições de ensino superior, que querem propor cursos e

polít icas de formação, muitas vezes, com o mínimo de custo possível e tendo o

1 ____________________________

O decreto nº 3860 (BRASIL,2001) define as seguintes categorias para organização das Inst ituições de Ensino Superior: universidades, centros universi tários, faculdades integradas e inst itutos ou escolas superiores , definindo a abrangência de cada um desses modelos inst itucionais.

5

Page 6: As relações de poder nos espaços de formação docente

máximo de lucro, principalmente do setor privado, onde se percebe maior

expansão desse nível de ensino.

Aliado a esse crescimento quantitativo, as políticas educacionais no âmbito da

formação docente, definidas pelo Ministério da Educação (MEC), não apresentam

força suficiente para atender aos desafios do mundo contemporâneo, pois estão

permeadas por questões ideológicas, políticas e pragmáticas. Os problemas

iniciais detectados nessa política de formação resultam, entre outros, da

combinação de três fatores: a dualização histórica da reforma, a dicotomia entre

o locus da pesquisa e do ensino e os perversos interesses polít icos, ideológicos

e econômicos nela impregnados.

Com relação ao primeiro fator percebe-se que ao apontar os problemas oriundos

do campo educacional, a atual reforma obscurece as conquistas do passado e

principalmente encobre o modo pelos quais essas conquistas se efetivaram. O

poder ideológico imerso na concepção do “novo” é uma das formas uti lizadas

para a manipulação dos agentes e a conquista dos mesmos como aliados no jogo

do poder. O segundo fator corresponde ao lugar destinado à pesquisa no campo

educacional, pois com a criação dos Institutos Superiores de Educação, corre-se

o risco de separar ainda mais o ensino e a pesquisa. Além disso, a pesquisa

proposta nas “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores

da Educação Básica em Nível Superior: Curso de Licenciatura de Graduação

Plena” (Resolução CNE/CP 1/2002 e Parecer CNE/CP 9/2001) está mais l igada

às práticas intra-escolares de cunho mais imediatista, desligada do teor de

reflexão sobre os condicionantes históricos, políticos e culturais que envolvem

todos os agentes do campo educacional. O terceiro fator, voltado para os

interesses econômicos e políticos já fazem parte das políticas educacionais de

épocas anteriores. Cada vez mais a educação serve ao sistema capitalista e ao

jogo do poder estabelecido pelos organismos internacionais e pelas polít icas

internas mercantil istas. Numa análise mais profunda da política atual de

formação docente, é perceptível a estreita relação entre formação em nível

superior e desenvolvimento econômico para a competitividade nacional. A

própria nomenclatura e conceitos presentes nos documentos legais acompanham

6

Page 7: As relações de poder nos espaços de formação docente

os termos uti lizados no mercado. As universidades se pautam cada vez mais na

relação custo/benefício e adotam formas de gestão homogeneizantes,

desconsiderando a diversidade de variáveis humanas, polít icas, sociais e

culturais presentes no interior de cada uma delas. E por fim, a mudança de foco

para a definição dos elementos que definirão o capital simbólico inerente ao

campo educacional é outro forte condicionante para fortalecimento do poder

instituído, ou seja, um novo enfoque é remetido ao capital simbólico do campo

educacional, incentivando lógicas de empreendedorismo e mercado em

contradição com a lógica até então inerente ao trabalho acadêmico tradicional.

Ao explicitar as questões acima, não é pretensão estabelecer conclusões, pois as

mesmas seriam precipitadas, devido ao caráter recente e de implantação das

polít icas de formação docente. No entanto, essas abordagens buscam suscitar a

necessidade da pesquisa, da análise, da reflexão e do acompanhamento da

comunidade acadêmica no campo onde se insere essas políticas de formação.

O espaço da formação inicial

A formação inicial, devido à modernização e a expansão do ensino superior

brasileiro para o setor privado, delinea-se num cenário de diversidade e de

pluralidade na organização desse nível de ensino. As várias medidas oficiais

criadas pelo MEC, para reformulação dos cursos de formação inicial de

professores se apresentam num contexto bastante conflituoso. A criação dos

“Institutos Superiores de Educação” como locus para a formação de professores é

explicitada no documento oficial, ressaltando que o propósito do MEC, ao criar

os Insti tutos, é “retirar as licenciaturas da condição de apêndice dos

bacharelados e colocá-las na condição de cursos específicos, articulados entre

si , com projetos pedagógicos próprios” (BRASIL,2001). As “Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica em

Nível Superior” aponta os l imites enfrentados por esse nível de formação e

define as diretrizes para a organização curricular e insti tucional dos cursos de

formação docente, bem como os mecanismos para a avaliação dos cursos a ser

realizada pelas instituições formadoras e pelo próprio sistema.

7

Page 8: As relações de poder nos espaços de formação docente

Essas medidas oficiais têm sido alvo de contundentes críticas à sua forma de

implantação. Na verdade, as crít icas apontam o caráter prescritivo e

homogenizador das diretrizes para a formação inicial de professores, a negação

às experiências historicamente desenvolvidas na área de formação docente, a

culpabilidade implícita, que o documento remete à escola e aos professores pelo

quadro de má qualidade da educação. Apontam, ainda, a centralidade do

documento na dimensão técnica dos âmbitos pedagógicos e organizacional,

destituído da natureza polít ica que deve estar intrínseco nas polít icas de

formação de professores.

Além das críticas sobre as diretrizes curriculares, diversos autores fazem uma

análise com relação aos investimentos na formação inicial, lançando um olhar

mais analítico sobre as políticas públicas de formação docente e sobre os

organismos de financiamento da educação. Torres (1998) destaca que a formação

inicial vem sendo cada vez mais desqualificada e substituída pela formação

continuada. . . . hoje, ao se falar de formação ou capaci tação docente, fala-se de capacitação em serv iço. A questão da formação inic ial es tá se di luindo, desaparecendo. O f inanciamento nacional e internacional dest inado à formação de professores é quase totalmente dest inado a programas de capaci tação em serviço. (Torres ,1998:176)

Os escassos investimentos no âmbito da formação inicial pode estar relacionado

à política de privatização do ensino superior e a busca de resultados mais

imediatistas para os problemas da prática educativa. Tais pressupostos podem até

justificar um investimento maior na formação continuada, mas são paliativos,

com efeitos colaterais, pois a medida que novos professores são absorvidos pelas

instituições educacionais, os problemas oriundos da má formação inicial se

manifestam na pratica docente.

O espaço da formação continuada

Assim como na formação inicial, o espaço onde acontece a formação continuada

ou em serviço, envolve uma série de agentes e de relações no seu interior.

Inicialmente, o foco está centrado nos cursos de curta duração, ofertados pelas

8

Page 9: As relações de poder nos espaços de formação docente

universidades e por outras agências, financiados por órgãos nacionais ou

internacionais, como meio para alteração da prática pedagógica. O outro foco

centra-se nas relações cotidianas do professor e no seu aprendizado através da

própria prática e da interlocução com os alunos.

Apesar de um maior investimento dos órgãos públicos na formação em serviço, a

maioria dos cursos de capacitação docente mantém com o professor uma relação

superficial. Fornece informações desarticuladas, altera o discurso do professor ,

mas pouco contribui para uma mudança efetiva. As universidades, por serem

consideradas locais de avanço científico e profissional, têm se constituído como

espaço privilegiado para a formação continuada, assumindo programas pré-

estabelecidos por órgãos de fomento, para a formação docente. Porém, pesquisas

na área vêm contrapor a essa visão, enfatizando a dicotomia entre a teoria e a

prática e entre os professores e os órgãos responsáveis pela formação. Candau

(1996) vem reforçar tal abordagem, afirmando que deve ser a escola de Educação

Básica o espaço privilegiado da formação continuada, onde as possibilidades de

produção, socialização e atualização do conhecimento são mais efetivas. A

crít ica também é feita aos processos de formação, que não levam em

consideração o saber docente e os diferentes estágios de desenvolvimento

profissional dos professores.

O locus de formação a ser privi legiado é a própria escola: is to é , é preciso deslocar o locus da formação cont inuada de professores da universidade para a própria escola de 1º e 2º graus.Todo processo de formação tem que ter como referência fundamental o saber docente, o reconhecimento e a valorização do saber docente. Para um adequado desenvolvimento da formação continuada, é necessário ter presentes as di ferentes etapas do desenvolvimento prof iss ional do magistér io; não se pode tratar do mesmo modo o professor em fase inic ial do exercíc io prof iss ional , aquele que já conquis tou uma ampla experiência pedagógica e aquele que já encaminha para a aposentadoria; os problemas, necessidades e desaf ios são di ferentes e os processos de formação cont inuada não podem ignorar essa real idade, promovendo s i tuações homogêneas e padronizadas, sem levar em consideração as di ferentes etapas do desenvolvimento prof iss ional . (Candau,1996:143)

9

Page 10: As relações de poder nos espaços de formação docente

Devido a esses entraves, a relação dos professores com as polít icas de formação

é de desconfiança, pois a história mostra que o critério dominante nas definições

do desejável e do possível em matéria de polít icas educativas é quase sempre o

financeiro. São os custos que definem as estratégias de formação , é o capital

econômico o legitimador desse campo. E mais, tais polít icas não respondem à

complexidade e a urgência da situação. Os professores se limitam cada vez mais

a serem operadores do ensino e a ocuparem posições cada vez mais

desprestigiadas no campo educacional.

Verifica-se que em determinados momentos os cursos de formação continuada

aparecem, com nova roupagem. Pensado, hierarquicamente, pelos órgãos de

financiamento, através de estratégias bem articuladas, legitimam posições e

interesses de grupos específicos em detrimento às reais necessidades da

educação. Atualmente, o próprio projeto neoliberal, onde o poder é instituído

através da concentração de capital e de monopólios financeiros, penetra no

campo educacional transvestido de “qualidade total no ensino”. Esses programas

de qualidade na educação envolvem os docentes num redemoinho de novidades,

prescrições e disputas, imbuindo-lhes incumbências e depositando-lhes

responsabilidades, que não são deles. Bourdieu alerta que ”a política neoliberal,

disfarçada sob o nome de globalização, é uma ameaça à civilização”. (O

Globo,25/01/2002:20). Esses ditames da globalização e das tendências de

modernização empresarial precisam ser melhor analisados pelas políticas

educacionais e seus agentes. É preciso verificar nos processos de formação

docente, quais os reais interesses dos grupos detentores do poder.

Além do enfoque dado às políticas educacionais de formação e capacitação

docente, existe outro enfoque, igualmente importante, que contribui para a

formação do professor e que é proveniente da sua relação com a própria prática ,

tendo como parceiros os alunos e os colegas de trabalho. A ação pedagógica,

desenvolvida pelo professor, constitui-se como componente importante, para o

enriquecimento de sua prática docente.

A “Ação pedagógica” é entendida como a imposição da cultura arbitrária de um grupo/poder reconhecido legi t imamente. Ela é

10

Page 11: As relações de poder nos espaços de formação docente

objet ivamente uma violência, num primeiro sent ido, em que as relações de forças entre os grupos ou as c lasses const i tut ivas de uma formação social es tão na base do poder arbi trário. (Canesin, 2002:.89)

O Poder instituído na ação pedagógica realizada no espaço escolar, está

legitimado nos currículos e na própria autoridade do professor, seja ela oriunda

do saber ou da própria posição, que ele ocupa no campo do poder. O professor é

então o legitimador dos modos de pensar e agir do aluno, através da cultura que

lhe é enculcada. Essa cultura visa a formação do Habitus, que Nogueira (2002)

considera como o conjunto de aprendizados adquiridos ao longo da vida e que

dão ao sujeito possibil idades de dialogar com a realidade e nela deixar suas

marcas. É através do Habitus, que a cultura enculcada continua se manifestando,

mesmo após o término da ação pedagógica. Também Ortiz (1983:15) considera

que “O habitus, tende portanto, a conformar e a orientar a ação, mas na medida

em que é produto das relações sociais, ele tende a assegurar a reprodução

dessas mesmas relações objetivas que o engendraram.”

Ao analisar a teoria de Bourdieu, Ortiz (1983), define que a ação pedagógica

escolar transforma o habitus produzido pela ação pedagógica familiar, e constitui

requisito importante, para a estruturação das experiências futuras dos agentes

envolvidos.

O professor, na relação dialética com os demais agentes da ação pedágogica,

modifica o seu próprio habitus numa construção/reconstrução que determina e

influencia a sua formação profissional. Sua relação com os alunos, com a sua

própria prática cotidiana, com o sistema, enfim, com toda a multiplicidade de

relações que o mesmo estabelece no campo educacional, irá determinar,

sobremaneira, a sua evolução profissional, seja no plano de agente dominante ou

dominado. Embora a ação pedagógica seja considerada arbitrária, porque impõe

determinadas significações, que devem constar no conteúdo a ser desenvolvido,

excluindo as que não interessam às relações de poder, o professor tem nela

oportunidade de reflexão e de ressignificação da sua prática .

11

Page 12: As relações de poder nos espaços de formação docente

A posição do professor frente aos espaços formadoresÉ num acirrado, competitivo e um tanto indefinido campo educacional, onde se

manifestam as lutas simbólicas, que os professores são formados. Agentes de um

cmpo onde o poder oscila entre o capital cultural e o capital econômico.

Para uma melhor compreensão da posição do professor na hierarquia que se

estabelece no campo do poder é importante salientar que Bourdieu, ao discutir a

posição do professor no campo do poder, legit imado pelo capital cultural, ele se

refere ao professor universitário, pois o professor da Educação Básica é

considerado não detentor do poder desse campo específico. O professor

universitário ocupa, portanto, posição privilegiada em detrimento dos demais

professores da Educação Básica. Este, de posse do capital cultural , pode adotar

estratégias de conservação da posição dominante e da legitimação do poder, ou

estratégias de transformação, tendo em vista o grau de comprometimento

polít ico mantido com os agentes educativos. Entretanto, quando o capital que

legitima o campo do poder é o econômico ou o administrativo, o professor ocupa

dentro desse campo posição desprestigiada e dominada. Nesse sentido ele pode

optar pelo estado de acomodação e omissão ou adotar posições de contestação em

relação à estrutura das relações de poder e desenvolver estratégias de

emancipação. Assim, o locus da formação docente pode ser considerado um

espaço ocupado por diferentes agentes, que ora ocupam posições privilegiadas,

ora ocupam posições de subordinação.

Apesar de Bourdieu demonstrar num plano mais amplo de análise social, que a

escola reproduz e legitima os interesses da cultura dominante, considerando isso,

basicamente inevitável, algumas críticas a esse posicionamento merecem

destaque. Principalmente, se a análise for feita num plano microssocial e levar

em consideração a diversidade interna do sistema de ensino, ou seja, é possível

ocorrer dentro da escola, iniciativas que busquem promover o respeito às

diferenças e propostas de determinados grupos, para suprir a defasagem da

cultura escolar dos alunos oriunda da ação pedagógica familiar. É para transpor

esses dilemas que o professor deve estar preparado, não como mero reprodutor

da cultura escolar dominante, mas como mediador das diversas culturas e

12

Page 13: As relações de poder nos espaços de formação docente

linguagens que cada agente, integrante do espaço escolar, trás consigo. Não se

trata de otimismo pedagógico acreditar na força transformadora que advém de

cada professor, acreditar numa formação para a diversidade e para o diálogo

entre os agentes, que compõem as instituições de ensino, mesmo entendendo-as

como espaço de poder, onde cada agente busca manter posições, conquistar

espaços e impor idéias. É preciso acreditar ser possível desestruturar o campo

do poder dominante, colocar em dúvida convicções e desestabilizar conceitos,

para construir diferentes formas de pensamento e ação e uma nova relação entre

os agentes do campo educacional.

No campo educacional, não só os professores se rebelam contra o capital escolar

dominante, também os alunos o fazem das mais diferentes formas. Até mesmo

quando se recusam, inconscientemente, a apreendê-lo, estão dando respostas,

exigindo mudanças nas ações pedagógicas, e reivindicando respeito às culturas

dominadas presentes no interior da escola.

Além dos professores e dos alunos que demonstram suas posições, aderindo ou

rejeitando as reformas implantadas, o envolvimento da sociedade científica e das

organizações da área da educação constitui-se elemento fundamental para

fomentar discussões sobre as políticas de formação e fortalecer ou refutar

concepções defendidas por elas. Pode servir também para estabelecer o diálogo

entre os dois extremos nas relações de dominação, tendo em vista o poder que

lhes é conferido pelo capital cultural que detêm.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se pode observar, o campo onde despontam as lutas e as disputas no

cotidiano das instituições escolares, perpassam por situações incertas, complexas

e portadoras de conflitos. Além disso, as relações de poder presentes nos espaços

de formação docente se manifestam de diferentes formas e através de uma

multiplicidade de fatores que estão interligados e são interdependentes. Portanto,

a formação do professor, seja inicial ou continuada, precisa fornecer subsídios,

para que ele compreenda a sua posição no campo do poder, percebendo que cada

13

Page 14: As relações de poder nos espaços de formação docente

agente ocupa no campo, espaços que possibilitam ações dialéticas em seu

interior.

Finalmente, estar alerto às formas simbólicas de poder e de opressão no campo

educacional é responsabilidade de cada um dos seus agentes. Principalmente

daqueles que ocupam posição hierarquicamente desprestigiada pelo capital

cultural e econômico insti tuídos. A transformação advém das lutas que são

travadas entre os diversos campos e seus agentes. No campo educacional,

especificamente, o professor pode se tornar um agente de transformação e de

emancipação, pois, por mais restrita que seja a sua posição na hierarquia do

poder, seu estado não é de mobilidade, ele é livre para agir e para dar diferentes

respostas às disputas empreendidas no seu espaço social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL . Resolução n. 01, de 18 de fevereiro de 2002 .Institui Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em

nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Conselho Nacional de

Educação. Diretrizes Curriculares para a Formação de Professores da Educação

Básica em Nível Superior, Brasíl ia, DF, 2002.

BRASIL Parecer CNE/CP 009 de 08 de maio de 2002 . Projeto de resolução que

institui Diretrizes Curriculares para a Formação de Professores da Educação

Básica em Nível Superior, em Curso de Licenciatura de graduação Plena.

Brasília, DF, 2001.

BRASIL, Decreto nº 3860, de 10 de julho de 2001 . Dispõe sobre a organização

do ensino superior, a avaliação de cursos e instituições e dá outras providências.

Disponível em: <http://www.mec.gov.br/home/legislação/defaut.shtm>.

BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (org). Pierre

Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983, p. 122-155

14

Page 15: As relações de poder nos espaços de formação docente

__________. Trabalhos e projetos. In: ORTIZ, Renato (org). Pierre Bourdieu:

Sociologia. São Paulo: Ática, 1983, p. 38-45.

CANDAU, Vera Maria. Formação continuada de professores: tendências atuais.

In: REALI, M.M.R.; MIZUKAMI, M.G.N. orgs. Formação de Professores:

tendencias atuais . São Carlos, EdUFSCar, 1996, p. 139-152.

CANESIN, Maria Tereza. A fertil idade da produção sociológica de Bourdieu

para ciências sociais e educação. In: ROSA, Dalva gonsalves; Souza, Vanilton

Camilo ( org). Didáticas e práticas de ensino: interfaces com diferentes saberes

e lugares formativos. XI Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino

(ENDIPE). Goiânia: DP & A, 2002, p. 85-101

NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio Mendes.In: B OURDIEU, Pierre ,

Escritos de Educação ( Organização, introdução e notas de Maria Alice Nogueira

e Afrânio Mendes Catani), 3ª ed., Petropólis: Vozes, 1998.

NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins. A sociologia

da educação de Pierre Bourdieu. Educação e Sociedade, Campinas, nº 78, p. 15-

35, abril . 2002.

ORTIZ, Renato. In: BOURDIEU, Pierre , Sociologia , São Paulo: Ática, 1983.

TORRES, R.M. Tendências da formação docente nos anos 90. In: Novas políticas

educacionais: críticas e perspectivas. II Seminário Internacional. PUC-SP, p.

173-191, 1998.

15