as audiografias: uma conversa histórica através dos sons

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  Artigos RESGATE - VOL. XXII, N.28 - JUL./DEZ. 2014 - cOR RÊA , Luiz Otá vio - P. 73-80 73  As audiografias: uma conversa histór ica através dos sons  The audiografias: a historical conv ersation through soun ds Luiz Otávio Corrêa*  [email protected] Resumo Este artigo pretende apresentar o que se chama de  Audiografias , escritas históricas produzidas a partir da linguagem radiofônica. Para explicar melhor a proposta, foi necessário relacionar a História Públi- ca, ponto de partida desta experiência, ao paradig- ma relacional da comunicação. Finalmente, é apre- sentada uma primeira produção chamada “O Rádio e o poder nos anos 30”, bem como a página Paisa- gens Históricas, espaço para a distribuição e para as interações realizadas pelo programa produzido. Palavras-chave: Audiografias, P aradigma relacional, Comunicação, História Pública,  Abstract  This article is intended to present what we call  Audiografias, historical writings produced from the radio language. In order to better explain the proposal was necessary to relate the Public Histor y , starting point for this experience, to the relational paradigm of communication. Finally been presented a first production called “The Radio and the power in the 30” as well as Paisagens Históricas, space for the distribution and interactions performed by the program produced. Keywords:  Audiografias, Relational paradigm, Comunication, Public History. * Luiz Otávio Correa, Historiador e professor do curso de Comunicação das Faculdades Promove.

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Este artigo pretende apresentar o que se chama deAudiografias, escritas históricas produzidas a partirda linguagem radiofônica. Para explicar melhor aproposta, foi necessário relacionar a História Pública,ponto de partida desta experiência, ao paradigmarelacional da comunicação. Finalmente, é apresentadauma primeira produção chamada “O Rádioe o poder nos anos 30”, bem como a página PaisagensHistóricas, espaço para a distribuição e paraas interações realizadas pelo programa produzido.Palavras-chave: Audiografias, Paradigma relacional,Comunicação, História Pública,

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    RESGATE - VOL. XXII, N.28 - JUL./DEZ. 2014 - cORRA, Luiz Otvio - P. 73-80 73

    As audiografias: uma conversa histrica atravs dos sons

    The audiografias: a historical conversation through sounds

    Luiz Otvio Corra*[email protected]

    Resumo

    Este artigo pretende apresentar o que se chama de Audiografias, escritas histricas produzidas a partir da linguagem radiofnica. Para explicar melhor a proposta, foi necessrio relacionar a Histria Pbli-ca, ponto de partida desta experincia, ao paradig-ma relacional da comunicao. Finalmente, apre-sentada uma primeira produo chamada O Rdio e o poder nos anos 30, bem como a pgina Paisa-gens Histricas, espao para a distribuio e para as interaes realizadas pelo programa produzido.

    Palavras-chave: Audiografias, Paradigma relacional, Comunicao, Histria Pblica,

    Abstract

    This article is intended to present what we call Audiografias, historical writings produced from the radio language. In order to better explain the proposal was necessary to relate the Public History, starting point for this experience, to the relational paradigm of communication. Finally been presented a first production called The Radio and the power in the 30 as well as Paisagens Histricas, space for the distribution and interactions performed by the program produced.

    Keywords: Audiografias, Relational paradigm, Comunication, Public History.

    * Luiz Otvio Correa, Historiador e professor do curso de Comunicao das Faculdades Promove.

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    74 RESGATE - VOL. XXII, N.28 - JUL./DEZ. 2014 - cORRA, Luiz Otvio - P. 73-80

    Introduo

    Este artigo levanta a possibilidade da produo de documentos histricos por meio de uma escrita sono-ra, alargando os espaos de recepo tradicionais da Histria. De maneira experimental, prope-se a construo de arquivos sonoros que se traduzam no alargamento das possiblidades da produo histrica, seus objetos e temas, pela edio de sons, msicas, depoimentos e pesquisas disponibilizadas em vrios suportes na internet, em arquivos pblicos e de rdios.

    A linguagem radiofnica tem muito a colaborar com Histria Pblica e vice-versa. Eles nasceram para realizar um mesmo movimento. A Histria Pblica quer conversar, quer fazer comunicao.

    Neste artigo, de uma maneira geral, pretende-se discutir o que a comunicao e sua relao com o fazer histrico de maneira pblica, propondo uma experincia que chamaremos de Audiografias. Nesta proposta, estas produes partem da linguagem radiofnica, mas vo alm dela, rompendo com a lgica da rdio comercial.

    Na sequncia apresentada aqui, se discute a relao entre o conceito de comunicao, proposto por Jos Luis Braga e Vera Frana, com o de Histria Pblica. Em segundo lugar, procura-se discutir como as novas tecnologias da informao e da comunicao alimentam as interaes entre o ouvinte e o leitor de Histria.

    No terceiro momento, pretende-se discutir a questo das fontes para a produo destas produes, re-tomando as experincias da Histria Oral e tambm as possveis utilizaes de registros histricos nos vrios bancos de sons. Por ltimo, pretende-se apresentar uma proposta experimental, sua pgina na internet e as interaes possveis.

    A comunicao e a histria: a questo da audincia

    Os estudos da pesquisadora Vera Veiga Frana (2001) nos permitem abrir um dilogo importante. Para ela, na comunicao existem dois objetos: os meios de comunicao e o processo comunicacional. Em relao ao primeiro objeto, ela diz:

    De um lado, e de forma mais evidente, o objeto recortado so os meios de comunicao de massa (formulao mais antiga) ou a mdia designao contempornea, mais ampla, e que retira a ambigidade do qualificativo massa (nfase na amplitude do pblico atingido), referindo-se comunicao realizada ou mediada pelas novas tecnologias (Frana, 2001, s.p).

    Trata-se aqui, portanto, do estudo dos meios de comunicao e de sua indstria: a imprensa no sculo XIX, a televiso, as redes virtuais e o rdio, mdia que nos interessa aqui. No entanto, ela nos chama a ateno para o fato de que se ater apenas aos meios de comunicao no nos permitiria pensar nas mais variadas e complexas prticas comunicativas que realizamos todos os dias, para alm logicamente dos meios de comu-nicao, mas tambm tendo eles como mediadores. Segundo ela:

    Fechar o objeto da comunicao no campo das mdias uma operao redutora, ao excluir as inmeras prticas comu-nicativas que edificam e marcam a vida social e no passam pelo terreno das mediaes tecnolgicas (por exemplo, o rumor, as relaes de vizinhana e suas formas comunicativas, os teatros ou encenaes urbanas entre outras) (Frana, 2001, op.cit.).

    Pensando na comunicao como uma prtica, Frana faz refletir, ns historiadores tambm, sobre a questo da interdisciplinaridade dos estudos, tanto na comunicao quanto na Histria. Para estes, tal como para os antroplogos e para os prprios comuniclogos, as prticas sociais (ou comunicativas) so impor-tantes pontos de partida. A comunicao nasceu interdisciplinar e a Histria tambm nunca deixou de ser.

    Para explicar este movimento, Frana realiza uma retomada das principais escolas que influenciaram os estudos dos comuniclogos, apresentando suas importantes escolas: a Escola de Frankfurt, a Anlise do Discurso, os Estudos Culturais nos anos 1960, a Teoria da Recepo na Amrica Latina, dentre outras. Todas estas guardavam sua relao com outras reas do conhecimento, como a antropologia, a filosofia e a sociolo-gia. Para Frana, isto coloca a comunicao numa posio privilegiada, ao conseguir transgredir as fronteiras

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    disciplinares. No entanto, ela se pergunta qual a especificidade dos estudos de comunicao, a mesma que poderamos fazer para ns historiadores. Para ela:

    a comunicao compreende um processo de produo e compartilhamento de sentidos entre sujeitos interlocutores, realizado atravs de uma materialidade simblica (da produo de discursos) e inserido em determinado contexto sobre o qual atua e do qual recebe os reflexos, (Frana, 2001,op.cit. ).

    Nesta perspectiva, importante pensar nos processos de troca comunicacionais e no nos processos de transmisso. Por outro lado, os interlocutores no so meros receptores, mas produtores de discursos, como agentes sociais. O processo de produo de sentido , neste aspecto, dialgico. Em vez de observar um evento de maneira isolada, os processos comunicacionais so observados em determinadas situaes de fala, o que para os historiadores um dado importante.

    Segundo ela, finalmente, a especificidade do olhar comunicacional seria alcanar a interseo de trs dinmicas bsicas: o quadro relacional (relao dos interlocutores); a produo de sentidos (as prticas dis-cursivas); a situao scio-cultural (o contexto). (Frana, op.cit.).

    Ao analisar um programa de rdio, por exemplo, deve se observar os processos e as mediaes cons-trudas socialmente pelos vrios interlocutores, a maneira que se produz e tambm em que situao esta produo se d. Um programa de rdio parte de um contexto sociocultural de mltiplas interaes comu-nicacionais.

    Vera Frana nos permite fazer Histria Pblica, ao que parece. Mas o que nos faria diferente? Quais as especificidades do Historiador? Qual seria o nosso olhar especfico?

    A Histria Pblica e as prticas comunicativas

    A Histria Pblica vem se consolidando, tanto no Brasil quanto internacionalmente, como um novo caminho para se pensar a produo historiogrfica.

    Segundo Rabelo e Rovai, a Histria Pblica um novo caminho de conhecimento e prtica de como se fazer Histria que permite a reflexo sobre o trabalho do historiador. De maneira que a Histria Pblica uma possibilidade no apenas de conservao e divulgao da histria, mas de construo de um conhe-cimento pluridisciplinar atento aos processos sociais, s suas mudanas e tenses (Rabelo e Rovai, 2011).

    Novamente aqui, a aproximao com outras reas do conhecimento, no nosso caso com a comuni-cao. Por outro lado, a Histria Pblica prope-se a pensar os processos sociais, os lugares de fala, o con-texto de produo do discurso. Poderamos retomar a questo do campo (THOMPSON, 2001), no qual a circunstncia da ao estabelece relaes de poder e so elementos importantes tanto para os historiadores quanto para os comuniclogos. Por outro lado, A Histria Pblica produz para as grandes audincias, como aponta Evans:

    Public History is history that is seen, heard, read, and interpreted by a popular audience. Public historians expand on the methods of academic history by emphasizing non-traditional evidence and presentation formats, reframing ques-tions, and in the process creating a distinctive historical practice....Public history is also history that belongs to the public. By emphasizing the public context of scholarship, public history trains historians to transform their research to reach audiences outside the academy. (in: Evans, 2000).

    De tal maneira que poderamos acrescentar a estas propositivas acima a questo de que a Histria Pblica pretende-se como uma prtica comunicativa, uma conversa no sentido que os comuniclogos en-tendem e que, do ponto de vista epistemolgico, muito frtil para ns historiadores. Para Jos Luis Braga:

    A questo da interao social vai alm da metfora conversacional (...) A conversao enfatiza os processos de ida-e-volta, na troca entre interlocutores. A ideia de resposta percebida como um retorno imediato ao ponto de origem da primeira contribuio conversacional (Braga, 2011).

    A Histria descobriu a interlocuo ao se chamar de Pblica. Pode-se dizer que o faz como um exer-ccio, ela quer conversar, alimentar as possibilidades de se tornar mediadora de processos conversacionais,

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    quer fazer comunicao. A Histria quer discutir as representaes e as prticas produzidas pelo homem nas suas variadas temporalidades, mas quer tambm que conhecimento chegue ao grande pblico.

    Pensar a Histria como uma conversa implica visualizar os interlocutores como agentes do ato deste processo e no somente receptores passivos dos vrios textos produzidos pelo Historiador Pblico. Pensar nos leitores desta maneira significa criar redes de conversa, mediaes que contribuem para produo e tam-bm para a circulao de toda esta produo simblica.

    De tal maneira que, hipoteticamente, poderamos sugerir que os agentes produtores das escritas hist-ricas, desta maneira aqui, prefiram a participao ativa dos interlocutores do processo de construo. uma pergunta que poderamos tentar responder em outro trabalho.

    Mas cabe-nos perguntar agora como poderamos pensar nas especificidades do fazer Histrico, qual o olhar nosso sobre toda esta interdisciplinaridade. O que justificaria dizer que fazemos Histria e no Co-municao. Mais uma vez, o paradigma conversacional poderia nos iluminar neste aspecto.

    O historiador produz, tal como o msico e o produtor miditico. A maneira como isto pode ser feito que precisa ser pensada, acredito, diferenciando o trabalho do historiador daquela perspectiva que trata a produo historiogrfica como um produto miditico comercial, que tem que disputar o mercado de bens simblicos.

    Para Sara Albieri, (2011), a Histria Pblica pode ser capaz de, por meio da conscincia histrica, superar o conflito entre o fazer histrico e os limites impostos pela indstria de entretenimento, que condi-ciona trabalho do historiador ao produto miditico.

    Desta tal maneira que, em vez da perspectiva comercial, adotada por alguns escritores e jornalistas, poderamos pensar em outras formas de produo que mantenha tanto a independncia do historiador em relao ao mercado quanto a legitimidade da produo historiogrfica. Desta forma, o grande desafio en-contrar formatos que possam se transformar em caminhos alternativos a estes produtos sem, no entanto, direcionarmos para a lgica de mercado de bens simblicos, simplesmente. E as Novas Tecnologias da In-formao e da Comunicao podem nos ajudar muito neste processo.

    A linguagem do rdio e as novas possibilidades mediadoras

    Desde que se transformou em meio de comunicao eletrnico importante, o rdio tornou-se um dos baluartes da modernidade. Nesta perspectiva, acompanhou um movimento em direo individualiza-o da sociedade que Norbert Elias chamou de balana eu-ns. Associado ao capitalismo, ele foi ganhando forma e linguagem. Se isto possibilitou o seu desenvolvimento, tambm dificultou, de certa forma, que ele pudesse ter autonomia em relao ao mercado, associando-se cada vez mais indstria cultural.

    Segundo Patrick Charaudeau, o rdio , dentre as mdias, aquela que melhor faz coincidir o tempo da escuta com o tempo dos acontecimentos, o que faz do rdio a mdia do tempo presente (Charaudeau, 2006). Enquanto um meio de comunicao eletrnico moderno, os radialistas atuam essencialmente em uma dimenso temporal de curtssima durao, a dimenso do evento ou do fato. Segundo Eduardo Meditsch, o rdio:

    um meio de comunicao sonoro, invisvel e que emite em tempo real. Se no for feito de som no rdio, se tiver imagem junto no mais rdio, se no emitir em tempo real (o tempo da vida real do ouvinte e da sociedade em que est inserido) fonografia, tambm no rdio (Meditsch, 1999, s.p.).

    Por outro lado, o rdio comercial inserido na lgica e na dinmica capitalista reproduz uma noo de tempos sem mudanas, a no ser aquela do evento. Enquanto indstria miditica produtora de bens simb-licos, o rdio contribui, de certa forma, para a ritualizao do consumo, da mesma forma que os shopping centers, como tambm demonstra os trabalhos de Marinalva Barbosa sobre os meios de comunicao:

    Constri-se dois arquivos para o presente e a para o futuro e os meios de comunicao se constituem no apenas em arquivos para o futuro, mas em arquivos permanentes do presente. E a narrativa no mais apenas a mescla do ficcio-nal com o informacional, mas a narrativa histrica do imediato (Barbosa, 2004, p. 11).

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    De maneira que h um processo de presentificao do tempo que se manifesta pelas comemoraes oficiais, em que as informaes so difundidas como espetculo. Para isso, mistura-se o presente e o passa-do, razo pela qual tornam os meios de comunicao verdadeiros guardies das comemoraes contempo-rneas e construtores de uma dada materializao da memria (Barbosa, op.cit).

    O tempo ordinrio e o imediatismo oralizado do rdio, em primeira instncia, coloca-o como uma mdia do tempo sem tempo, uma dimenso linear, uma sequncia dos fatos e de eventos que so dados como realidade. Eis o primeiro desafio ao historiador que trabalha numa outra dimenso temporal, nas suas mltiplas temporalidades.

    No entanto, o rdio, como um fenmeno social, modifica e modificado pela sociedade e pelo contexto histrico. A mudana no suporte modifica a relao entre as suas audincias e as indstrias midi-ticas, criando uma segmentao do mercado de bens simblicos, como demostrou os estudos de Burke e Briggs(2004). Com o advento da TV, o rdio perdeu sua centralidade, mas ganhou em penetrabilidade e flexibilidade, adaptando modalidades e temas ao ritmo da vida cotidiana das pessoas. (Castells, 2001). A TV se tornou hegemnica, mas o rdio transformou-se em um instrumento miditico das comunidades1.

    Quando ocorreu o processo de convergncia da rdio para a internet, inaugurou-se um novo mo-mento. Est em processo uma confluncia entre as mdias e os sistemas de comunicao que permitiram o aparecimento de novas experincias miditicas. O interessante que todo este processo fez aparecer mdias hbridas, causando at certa dificuldade de definir o que so, devido rapidez com que ganham espao e muitas vezes desaparecem rapidamente. Atualmente, o streaming pode ser produzido por qualquer pessoa em sites que disponibilizam este servio2. Neste contexto, desenvolvem, ainda que de forma transitria, as chamadas webrdios, as rdios on-line, os podcasts, dentre outras formas estudadas exaustivamente por es-tudiosos (as) como Nair Prata. (2009)

    O mais importante que toda esta transformao vem acompanhada do surgimento de comunidades virtuais que fazem emergir novas formas de sociabilidade. (Castells, 2001) Desta maneira, ocorre, ao mesmo tempo, um processo de individualizao, acompanhado do aparecimento de redes de sociabilidade cada vez maiores complexas e interacionais atravs de fruns, chats, blogs, etc.

    Alex Primo, em artigo de 2005, demonstra que o podcast, por exemplo, quebra sincronia entre o tempo de produo e o tempo de escuta. Tal como os blogs, o podcast reorganiza a diviso do trabalho nas empresas de comunicao e permitem outro tipo de enunciao. Para este autor, por se tratar de uma mdia de nicho, eles atingem pblicos pequenos, mas que so interconectados entre si (Primo, 2005, pg.10). Estas mdias, produzidas pelos mais variados interlocutores, dependem de maneira substantiva, das relaes entre as instncias de produo e recepo, nas suas interaes mtuas.

    No entanto, na perspectiva de Charaudeau, a oralidade do rdio cria uma relao de intimidade que vai se concretizar no somente na fala do locutor, que realiza uma enunciao interpelativa, mas tambm atravs dos canais de interao com o ouvinte: o telefone, o correio eletrnico, as mensagens instantneas. Neste aspecto, para alm do tempo sem tempo da rdio comercial, podemos pens-las a partir de outras dimenses da memria que no so as do tempo ordinrio das rdios comerciais.

    Estamos falando do tempo da memria que se coloca nas entrelinhas das rotinas das enunciaes dirias do espetculo miditico. Desta maneira, pensamos a linguagem radiofnica para alm do meio, ainda que esta mdia nos oferea muitas possiblidades para se conversar, para se realizar prticas comunicativas.

    Finalmente, as audiografias radiofnicas

    Dito tudo isto, voltamos para nossa proposta. Esta experincia prope um caminho para a criao de arquivos sonoros, que chamamos de Audiografias textos histricos que tm com suporte os arquivos sono-ros e a linguagem radiofnica. Os udios, gravados e editados a partir desta perspectiva, foram distribudos

    1 Para ver como as mdias vo se transformando e ganhando novas funes indicamos a leitura do texto de Umberto Eco chamado Muito

    Alm da Internet. Acesso em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1412200304.htm

    2 Alguns sites como o UStream so sistemas de streaming que permitem a transmisso direta de vdeo e de udio. Estes mesmos arquivos podem ser gravados e disponibilizados como fonogramas ou vdeos.

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    atravs de redes virtualizadas na internet. Para fazer tal proposta, criamos uma pgina no Facebook que foi chamada de Paisagens Histricas

    Reproduo da pgina do Facebook.

    Pretende-se que esta pgina atinja pblicos mais amplos e que possa alimentar a conversa entre os mais variados interlocutores. Desta maneira, o foco do trabalho pensar nas audincias, tal como tem sido a preocupao dos historiadores de Histria Pblica.

    Nossa produo fez a seguinte pergunta, ento: a Histria pode ser construda atravs de sons? Como construir uma narrativa histrica atravs de registros sonoros?

    Tomamos os udios histricos como fontes e tambm como objetos de pesquisa do historiador. No os pensamos como acessrios ilustrativos, mas como possibilidades efetivas para se produzir pesquisas his-tricas.

    O desafio utilizar a oralidade mediada e a linguagem do rdio, suporte que revolucionou o sculo XX e que vem se transformando ao longo deste em virtude das Tecnologias da Informao e da Comu-nicao, chamadas de TICs. A internet e as redes virtuais modificam a relao entre aquele que produz e aquele o interlocutor. De ambos os lados do processo conversacional. As TICs so redes alimentadoras da comunicao e no somente da informao, so sociotcnicas, tal como pensa Castells. Para os historiadores, as TICs reorganizam a produo do conhecimento cientfico e o fazer histrico, levantando desafios inte-ressantes. As redes virtualizadas, a televiso, a digitalizao dos peridicos cientficos e o crescente nmero de sites relacionados Histria denotam esta mudana.

    As Audiografias esto inseridas neste contexto. Das contradies das indstrias culturais nascem possi-bilidades efetivas de se fazer um conhecimento mais autnomo em relao ao mercado de bens simblicos.

    Foi nesta perspectiva que propusemos nosso primeiro episdio intitulado O Rdio e o poder nos anos 30. Ele discute a importncia do rdio na sociedade norte-americana e a consolidao e manuteno de movimentos totalitrios na Europa, neste perodo. Propusemos trabalhar comparativamente estes con-textos. Utilizamos vrios tipos de fontes, disponibilizados em vrios espaos, como o acervo digitalizado da

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    BBC, um amplo acervo digitalizado que foi usado aqui como fontes. Tambm buscamos outras fontes para a pesquisa, como banco de dados (como o soundboard), mas tambm outros bancos importantes como a biblioteca digital Internet Archive e o European History Primary Sources (EHPS)

    De tal modo que nos interessou pensar os contextos em que se produziram as falas e, principalmente, a maneira com esta produo recebida. A fala de Goebells ou a da Orson Wells foram contextualizadas e costuradas pelos contextos em que foram produzidas. A novidade aqui ficaria em trazer os udios como fontes primrias e edit-las, dando sentido a um texto no formato deste suporte. A est o desafio. Pensar sempre na perspectiva que as intenes imediatas, estratgias e tticas dos comunicadores precisam estar sempre relacionadas ao contexto nas quais elas operam. (Burke, 2004)

    Consideraes finais

    A Histria Pblica quer produzir escritas histricas e fazer comunicao. Mas temos que pensar no significado deste movimento, tendo em vista o ponto de vista, a maneira como vai ser produzido pelo His-toriador.

    Para isto fomos buscar no paradigma relacional uma maneira de ver a comunicao do homem atravs das suas prticas comunicativas, das conversas entre os vrios agentes que produzem a cultura e, no nosso caso, nas vrias temporalidades. A Histria, entre as prticas e as representaes, terreno frtil para a pro-duo de novas escritas, mediadores comunicacionais.

    A linguagem do rdio, por exemplo, permite realizar este movimento, ao alimentar a fantasia, a imagi-nao atravs dos sons. O rdio comercial faz parte de um sistema miditico e uma indstria. No entanto, ele no deixa de realizar uma conversa, de estabelecer interaes entre os agentes da comunicao. Partimos desta sua caracterstica para escrever a Histria atravs dos sons.

    Por outro lado as TICs modificaram substancialmente estes mediaes, fazendo conversar muitos com muitos pela primeira vez na histria. neste contexto que estamos propondo as audiografias, que tem como base as chamadas videografias, que tambm propem uma nova maneira de se produzir as escritas histricas por meio da escrita audiovisual.

    Apresentamos aqui, finalmente, uma primeira proposta intitulada O Rdio e o Poder nos anos 30 disponibilizada na internet e distribuda atravs das redes virtualizadas, como na pgina criada para o projeto, chamada de Paisagens Sonoras.

    Referncias

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