artefatos e vozes ativas

44
ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL VESTÍGIOS – Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica Volume 1 | Número 2 | Julho – Dezembro 2007 ISSN 1981-5875 Mary C. Beaudry Lauren J. Cook Stephen A. Mrozowski 5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:14 71

Upload: daniele-borges

Post on 02-Oct-2015

59 views

Category:

Documents


27 download

DESCRIPTION

Beaudry Et Al.

TRANSCRIPT

  • ARTEFATOS E VOZES ATIVAS:CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    VESTGIOS Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica

    Volume 1 | Nmero 2 | Julho Dezembro 2007

    ISSN 1981-5875

    Mary C. Beaudry Lauren J. Cook

    Stephen A. Mrozowski

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1471

  • 5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1472

  • 73Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS:CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    Mary C. Beaudry Lauren J. Cook

    Stephen A. Mrozowski

    A nica maneira de preservar a fantasia de massas inarticuladas nuncadar ouvidos aos membros dessas massas quando elas so articuladas.

    Henry Glassie. Passing the Time in Ballymenone (1982)

    O estilo antropolgico de histria... inicia-se com a premissa de que aexpresso individual tem seu lugar dentro de um idioma geral.

    Robert Darnton. The Great Cat Massacre and OtherEpisodes in French Cultural History (1984)

    Transformao e Mediao: as duas caractersticasmais essenciais da vida social humana.

    Anthony Giddens. A Contemporary Critiqueof Historical Materialism (1981)

    EXPRESSES MATERIAIS DE CULTURA

    Um tema comum que conecta as interpretaes do registro material do passado dizrespeito s formas como as pessoas se envolvem com o mundo material em uma dadaexpresso cultural e nas suas negociaes da vida cotidiana. A relao entre comporta-mento e mundo material est longe de ser passiva. Os artefatos so encarnaes tangveisdas relaes sociais, incorporando atitudes e comportamentos do passado. A premissasubjacente [do estudo da cultura material] de que os objetos feitos ou modificados pelohomem refletem, conscientemente ou inconscientemente, diretamente ou indiretamen-te, as crenas dos indivduos que os fizeram, negociaram, compraram, ou usaram e, porextenso, as crenas da sociedade mais ampla, s quais eles pertenciam (Prown, 1988:19).

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1473

    UsuarioHighlight

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200774

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    1 J em 1967, Deetz props em sua monografia Invitation to archaeology que busquemos compreen-der os artefatos como elementos semelhantes linguagem, oferecendo uma formulao para oque ele chamou de factemes e formemes, como equivalentes da cultura material aos morfemas(palavras) e fonemas (som com significados). Enquanto poucos, tendo entre eles, Deetz, tmfeito uso explcito do seu esquema, um significativo nmero de acadmicos tem usado modeloslingsticos como base para a anlise da cultura material (e.g., Glassie, 1976: Beaudry, 1978,1980a, 1980b, 1980c, 1988b; Yentsch, 1988b). Eles tm tambm aplicado o uso do paradigmaestruturalista derivado dos lingistas (e.g., Deetz, 1977b; Yentsch, n.d., 1988a, 1988c, 1990 eneste volume). Ver Tilley (1989), para uma recente discusso sobre teoria da linguagem e anlisede cultura material na arqueologia.2 Para discusses a respeito do crescimento e rumos do estudo da cultura material, ver Prown,1988; Upton, 1983; St George, 1988a; Roberts, 1985; Wells, 1986. Antologias do estudo dacultura material incluem Bronner, 1985; Quimby, 1978; St George, 1988b; Schlereth, 1980,1982 e 1985; ver tambm a revista Material Culture.3 Noel Hume (1969), por exemplo, fornece um importante guia descritivo do perodo coloni-al. Stone (1974) emprega o mtodo do tipo-variedade para estabelecer uma tipologia paracentenas de artefatos descobertos no stio de Fort Michilimackinac em Michigan. Harrington(1954), Binford (1962) e Walker (1965, 1967, 1977, 1983), oferecem maneiras para datarstios e seus nveis pelos cachimbos neles presentes. Binford vale-se de uma frmula para umaregresso linear baseada nos esforos da Nova Arqueologia ao derivar leis atravs da quantificaoe abordagens baseadas em frmulas para a anlise de dados. South (1977, 1978, 1979), homena-geia Binford construindo um espao de trabalho descritivo abrangente que havia sido lanado porNoel Hume, ao oferecer uma frmula para datao de louas, discusses acerca da estrutura dosstios em arqueologia histrica e uma bateria de padres ahistricos derivados estatisticamente ebaseados em agrupamentos neutros de artefatos que, a longo prazo, comprovou-se ser despro-vida de significado etnogrfico (cf. Yentsch, 1989).

    Os arquelogos histricos vm, j h algum tempo, reconhecendo a funo essencialque os estudos da cultura material tm em suas pesquisas (ver Ferguson, 1977). JamesDeetz, talvez o mais criativo expoente no campo dos artefatos como portador de men-sagem1, props que arqueologia histrica melhor pensada como a cincia da culturamaterial (Deetz, 1977a:12). Poucos arquelogos histricos deram ateno sua fala.Nesse nterim, a dcada passada foi testemunha da emergncia e crescimento de estudosda cultura material como um campo fortemente interdisciplinar por si mesma.2

    Os estudos da cultura material em arqueologia histrica foram conduzidos, princi-palmente, dentro do paradigma de pesquisa que at recentemente dominava essa rea: opositivismo/empirismo lgico (ver Gibbon, 1989) e pesquisadores propositadamen-te evitavam a questo do significado enquanto criticavam os poucos que perseguiam acompreenso de aspectos cognitivos ligados ao uso dos artefatos no passado. Em funodisso, somos oprimidos por um legado positivista que produziu uma literatura repleta deestudos descritivos fornecendo detalhes na identificao do artefato, tipologia, e crono-logia3, ligados construo muitas vezes colorida de histrias culturais, assim comomodelos explanatrios que eram generosamente empiristas por natureza. O recentesurgimento do interesse em recuperar o sentido deriva tanto de uma insatisfao como velho paradigma quanto de uma inexorvel penetrao das novas tendncias intelectu-ais da teoria literria, da histria e da antropologia, ultrapassando as barreiras de um

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1474

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • 75Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    4 Embora muitos utilizem o termo ps-processual para denominar as tendncias mais recentes(cf. Leone, 1986; Hodder, 1989b), considermo-lo equivocado e impreciso. Os ps-processualistasque assim se denominam reivindicam fazer uma arqueologia como histria de longa-durao(e.g. Hodder, 1987a) ou antropologia histrica (e.g., Little e Shackel, 1989). Por isso, seja qualfor sua inteno, esto procurando processos. O ps-processualismo, como o entendemos,rejeita o paradigma empirista estrito da Nova Arqueologia (cf. Gibbon; Courbin, 1988) e tem ointuito de pautar-se por uma preocupao em relao ideologia, ao simbolismo, ao significadoe ao poder na sociedade. Hodder (1989b:70) explica que o termo denota uma tendncia geralps-moderna/ps-estruturalista na arqueologia que visa a romper com a velha dicotomia existen-te entre, por um lado, uma arqueologia normativa, histrico-cultural e idealista e, por outro,uma arqueologia processual, ecolgica-cultural e materialista. Nosso interesse na negociao designificados com os artefatos, e atravs deles, possui uma abordagem processual. Acreditamos queos arquelogos fazem, eles mesmos, um desservio, buscando evitar, de forma intencional, uminteresse em processos culturais e histricos quando, na verdade, o que esto rejeitando no oprocesso, mas um positivismo no salutar. Essas observaes podem parecer objees triviais, masso, na verdade, concernentes interpretao dos textos culturais a fim de despertar umaconscincia acerca da importncia e do poder da linguagem.5 Nem todos os pensadores mais influentes na arqueologia histrica concordariam com isso.Numa publicao recente, Deetz (1988a) assinalou que seu interesse em padres amplos dasestruturas cognitivas refletidos na cultura material tem sido influenciado, de certa forma, pelateoria crtica (uma perspectiva que Deetz assinala como pressagiada por Walter Taylor em a Studyof archaeology, primeiramente publicado em 1948). Deetz argumenta que os arquelogos devemusar a cultura material como uma base de dados primria para a construo de contextos(1988a:18). Esse , definitivamente, um ponto de partida, a despeito do fato de que o contextonunca foi um ponto de partida forte na anlise estruturalista. Alm disso, essa afirmao indicaa preferncia do pr-historiador pelo material, em detrimento do documental (ver a nota 18).

    positivismo persistente e intransigente, que fazia parte do pensamento arqueolgicodominante.

    Aqueles que buscam por significados no registro arqueolgico abordam essa ques-to a partir de uma variedade de perspectivas tericas, incluindo-se o estruturalismo, asemitica cognitiva, a teoria econmica, o marxismo e a teoria crtica. Para muitos arque-logos histricos, as novas abordagens ps-positivistas4 oferecem uma oportunidadepara a interpretao e explanao da diferena social, o que era impossvel sob o modogeneralizante do velho paradigma, com seus interesses controlados por regularidadesestatsticas. Uma nova preocupao com o intensivo e, muitas vezes, prosopogrficodetalhe, presente em estudos de caso cuidadosamente montados, no sinaliza a emer-gncia de um novo particularismo. Esse movimento, segundo Hodder (1987a:2), surgiuporque muitos reconheceram que a explanao histrica... envolve uma tentativa de seobter uma descrio particular e total, e isso no coloca essa descrio em posio oposta explanao e teoria geral. Ao contrrio, nossas preocupaes antropolgicasgeneralizantes somente podem progredir por intermdio de uma descrio adequada e,por extenso, por uma compreenso, em nossos termos, do particular

    Enquanto a afirmao de Hodder parece desafiar muito do que era dogma na arque-ologia histrica, a ateno para as recentes tendncias intelectuais revela que mais uma vezos arquelogos tm sido vtimas do que Leone (1972) chamou de lapso de paradigma.5

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1475

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200776

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    O estruturalismo revisado de Sahlins (1981, 1985), que incorpora as estruturas a partir de uminteresse pela profundidade temporal histrica, infelizmente tem tido, at o momento, poucainfluncia na arqueologia. Uma obra recente (Hodder, 1989a) concernente ao significado, osimbolismo e a cultura material contm um total de 25 ensaios, sendo que apenas um deles citaSahlins. Deetz nega que exista qualquer motivo para preocupao relativa a um lapso de paradigmana arqueologia (razo pela qual ele prefere o neologismo arqueografia isso depois de criticaralguns dos seus colegas por comprometerem-se com uma ofensa similar ao usarem o termoetnoarqueologia; 1988a:18: Porque inventar um novo termo quando os dois que j existemcumprem sua funo? Uma vez combinados, esses termos no podem ajudar, mas, se considera-dos juntos, no produzem a mesma significao). O novo termo de Deetz um suporte lxicopara sua viso de que a teoria reside apenas na etnologia, o que passvel de justificativa, dado ofato de que muitas das teorias empregadas na arqueologia so emprestadas de disciplinas fora daantropologia e de que algumas teorias surgem a partir da prpria prtica arqueolgica. Tambmparece que a negao de um lapso de paradigma , no mnimo, uma negao implcita darelevncia ou da validade de qualquer outra coisa alm do paradigma de Deetz de cultura comoconstruo mental (1988a:22; ver tambm Deetz, 1989). Porm, a despeito dos falsos elogioss tendncias recentes, Deetz no desistiu do seu interesse pela busca de padres culturais maisamplos. Sua interpretao mais recente acerca dos padres de distribuio do colono ware naAmrica do Sul (1988b) um exemplo sagaz e particularmente provocativo de seu uso doparadigma estruturalista puro. Todavia, Martin Hall (n.d.:3) corretamente assinala que osresultados deste mtodo de estruturalismo sincrnico e descontextualizado parecem ser, mui-tas vezes, descries brilhantes aguardando explanaes.6 Pea e Pea (1988) fornecem uma exposio muito hbil acerca das deficincias da anlise depadres.

    Paynter (1984) observou que a epistemologia positivista foi largamente desacreditada porpr-histriadores e outros (cf. Hodder, 1986; Shanks e Tilley, 1987; Leone et al. 1987;Wylie, 1989; mas ver tambm Earle e Preucel, 1987). Alm do mais, muitos arquelo-gos histricos parecem operar dentro de um paradigma que outros j abandonaram.Apenas o mais extremo e reducionista dos caadores de padro poderia encontrar algummrito nos estranhos caminhos nos quais os padres de anlise de South (South, 1977,1978)6 e a escala econmica de Miller (1980) tem sido usados. Esse tipo de objetificaose situa fora do domnio de uma investigao antropolgica verdadeira e, na verdade,reduz a arqueologia histrica forma de histria econmica mais rida e impessoal.

    As tendncias recentes do pensamento antropolgico e das cincias sociais e huma-nas como um todo implicam avanar alm das estruturas totalizantes (Marcus e Fischer,1986:9):

    o pensamento social desde essa poca (a dcada de 1960) tem se desenvolvido comdesconfiana em relao capacidade dos paradigmas abrangentes em dar respostaspara as perguntas certas, deixando em aberto uma variedade de respostas locais para aoperao de sistemas globais, que no so compreendidos com a mesma certeza deantes, quando estavam sob o regime dos estilos da grande teoria. Conseqentemente,os debates tericos mais interessantes, em uma variedade de campos, tm se deslocadodo nvel do mtodo para problemas de epistemologia, interpretao e formas discursivasda prpria representao...

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1476

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • 77Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    Os tericos sociais tm preocupado cada vez mais em se apropriar e adequar diferen-tes nveis de descrio, assim como os problemas de representao. Muito do contedointelectual do pensamento recente em antropologia, arqueologia e cincias humanas emgeral derivado das teorias da interpretao desenvolvidas nos campos da filosofia ecritica literria (cf. Hunt, 1989; Rabinow e Sullivan, 1979, 1987). Formas autocrticas ede considerao cuidadosa de tais questes, como contextualizao, o significado da vidasocial daqueles que nela atuaram, e a explanao de excees e indeterminaes, aocontrrio de regularidades no fenmeno observado (Marcus e Fisher, 1986:8), caracte-rizam a nova corrente experimental, tanto na antropologia quanto na arqueologia.

    Neste ensaio, defendemos uma abordagem interpretativa mista, normalmente apli-cada aos aspectos simblicos da cultura, e necessidade do arquelogo em focar ascoisas materiais e o particular. Geertz (1980:135) assinala que parte de nosso legadointelectual do sculo XIX diz respeito ao fato que a noo de simblico se ope aoreal, assim como o alegrico se ope ao sbrio, o figurativo ao literal, o obscuro aoclaro, o esttico ao prtico, o mstico ao mundano e o decorativo ao substancial. Nossaabordagem ocupa-se tanto com a materialidade do dado em seus papis substantivos efuncionais quanto com os papis ideolgicos. Nossa preocupao com asituacionalidade do dado nos habilita a estabelecer o foco no contexto arqueolgico,histrico, institucional e comportamental e evitar a tendncia em tratar significados econtextos como estticos, suspensos no tempo. O registro arqueolgico codifica o tem-po e a mudana no tempo. Por conseguinte, podemos derivar disso evidncias do pro-cesso histrico e mudanas culturais.

    As abordagens interpretativas na antropologia so caracterizadas pela ateno aossistemas de crenas ou vises de mundo e pela preocupao com o significado dentro doseu contexto cultural e histrico. A cultura vista como significativamente constituda,fatos culturais sujeitos a interpretaes mltiplas. Yentsch (n.d.: 7) observou que nosestudos interpretativos.

    O foco dado aos momentos histricos e eventos repetitivos que conduzem informa-es sobre uma cultura especfica. A nfase dada na pequena escala e no examedetalhado das especificidades, nas expresses variadas do significado cultural, nas ativi-dades humanas de pequena escala que informam sobre as aes sociais corriqueiras, enos comportamentos cotidianos que, em sua particularidade e textura complexa, reve-lam o significado que d forma vida das pessoas em um dado tempo e lugar.

    A ateno a contextos histricos e culturais permite aos seres humanos desempe-nhar um papel ativo na criao de significados e na moldagem do mundo que o cerca,sendo vistos como interagindo com seu ambiente, ao contrrio de simplesmente reagira ele. A cultura material vista como um meio de comunicao e expresso que podecondicionar e, eventualmente, controlar, a ao social. Nossa verso de uma abordageminterpretativa envolve a combinao de vrias correntes recentes nas Cincias Humanas:

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1477

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200778

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    7 Ver, por exemplo, Geertz 1982, 1983; Leach, 1982; Wagner, 1975; Taylor, 1979; Yentchn.d., 1988a, 1988b, 1988c, 1989, 1990; Yentsch et al., 1987. Beaudry e Mrozowski 1989 soum exemplo de estudo de caso interpretativo em larga escala.8 Conforme William Sturtevant (1964:107) observou, a cultura material se parece com a lingua-gem em alguns aspectos importantes: alguns artefatos por exemplo, roupas servem comosmbolos arbitrrios de significados. Isso significa que a cultura material pode ser conceitualizadadentro de uma noo de signos da semitica: a semiologia aspira a levar em conta qualquersistema de signos, quaisquer que sejam suas substncias e limites, imagens, gestos, sons musicais,objetos e complexas associaes de tudo isso, o que forma o contexto do ritual, conveno ouentretenimento pblico: isso constitui, se no linguagem, ao menos, sistemas de significao(Barthes, 1964:9). Portanto, a semitica caracterizada pelo tratamento consciente de todos osaspectos da vida humana, verbais ou no verbais, escritos ou, por outro lado, textos sujeitos anlise crtica (cf. Heath, 1974; Coward e Ellis, 1977). Para uma discusso seminal sobre alinguagem objeto e comunicao no verbal, ver Kruesch e Kess (1956:96-159).

    a semitica e o estudo do simbolismo; as teorias sociolgicas e antropolgicas da aosocial e do discurso social; e a construo detalhada do contexto histrico e cultural douso do artefato, por meio de uma leitura crtica dos textos culturais.7

    O ARTEFATO COMO TEXTO E SMBOLO

    Em termos semiticos, o significado tem sentido em funo de um significanteparticular (uma palavra, uma letra escrita, uma imagem ou um objeto).8 Essa relaoentre representao e significado, significante e significado, conhecida como signo. Porexemplo, rosas vermelhas significam paixo e, quando usadas intencionalmente para tal,elas constituem-se em um signo da paixo (Barthes, 1957:197-8). Um smbolo umsigno arbitrrio, tal como o sinal vermelho de um semforo no h uma razo particularpara o sinal vermelho ser um sinal para parar, a no ser que esse significado tenha sidodeterminado pela sociedade (Hawkes, 1977:129). A funo do smbolo a de ser umadas ligaes no processo de comunicao envolvendo o desconhecido, por intermdiodo conhecido (o prprio smbolo). Isto , as propriedades atribudas ao smbolo peloconsenso podem ser transferidas, pelo observador, a uma situao na qual o smbolo empregado. O smbolo e o simbolizado no so vistos como tendo relao cognitivaesttica, mas articulados um em relao ao outro como componentes de uma relaodinmica e em mudana (Tuner, 1974: 25-30). Os smbolos so signos usados em umprocesso semitico e comunicativo. Os objetos freqentemente funcionam como sm-bolos e tem sido abordados semioticamente por acadmicos (Krampen, 1979).

    Enquanto objetos particulares e seu simbolismo variam entre diferentes culturas, ouso de objetos como smbolos pan-cultural. As tentativas por parte dos pr-historiado-res em identificar smbolos e domnios simblicos na cultura material das populaesque no possuam escrita (e.g., Hodder, 1987b; Shanks e Tilley, 1982; Shennan, 1982)so baseadas nos papis universais que a relao entre ao simblica e objetos-smbolosdesempenham na interao social. Csiksentmihalyi e Rochberg-Halton argumentam, de

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1478

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • 79Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    9 Segundo Giddens (1981:51), isto envolve uma medida de controle sobre os recursos dealocao, ao invs de recursos de autorizao. Os trabalhadores, raras vezes, controlam osmeios de produo. Todavia, eles mantm um alto grau de controle sobre as mercadorias produ-zidas: Distribuio refere-se capacidade do homem em controlar no s objetos mas o objeto-mundo. A dominao, tomada por essa perspectiva, refere-se dominao humana sobre a nature-za. Autorizao refere-se capacidade do homem em controlar o mundo da prpria sociedade,criado humanamente. O que critico para a compreenso do uso da cultura material merca-dorias produzidas na definio do eu e na criao da sub-cultura, identidade tnica ou naresistncia cotidiana, o reconhecimento que as pessoas transformam os significados dasmercadorias atravs de suas aes: no cerne da dominao e poder, repousa a capacidadetransformativa da ao humana, a origem de tudo o que liberador e produtivo na vida social, assimcomo de tudo que repressivo e destrutivo (Giddens, 1981:51).

    forma bastante persuasiva, que nossa interao com certas categorias de objetos comoentidades materiais inerente nossa interao com eles como smbolos. Os objetosdomsticos que desorganizam nosso espao de vida podem ser vistos como significati-vos somente como parte de um processo de um signo comunicativo e so ingredientesativos desse processo (Csiksentmihalyi e Rochberg-Halton, 1981: 173). Como smbo-los, os artefatos fixam nos seus donos e usurios certos atributos culturais especficos.Com efeito, eles servem como a parte visvel da cultura por fazerem, firme e visvel,um conjunto particular de julgamentos no processo fluido de classificar pessoas e even-tos (Douglas e Isherwood, 1970:66-7). Atravs de uma anlise do uso de itens materiaispara facilitar o julgamento, classificao e auto-expresso, podemos comear a entenderos meios pelos quais os indivduos construram sua identidade cultural.

    A construo da identidade cultural , primeiramente, um ato pblico de mediaoentre o eu e o outro. Freqentemente, os trabalhadores e membros de grupos subordi-nados (por exemplo: escravos, indgenas e mulheres) no encontram tanto espao paraauto-expresso no trabalho como encontram durante as horas de folga. A funo dasatividades de lazer, ou daquelas que no so consideradas como de trabalho, so importan-tes para a auto-definio e auto-expresso. Enquanto a importncia do trabalho no proces-so de auto-definio inegvel, existe um suporte considervel para a alegao de que atravs do lazer, ou ao menos do no-trabalho, que as atividades em que a grande parte dosprocessos de auto-definio e auto-expresso acontecem (Pieper, 1952; Huizinga, 1970;Godbey, 1981: 98, 123-5). As pessoas criam fortes e complexas personalidades investin-do sua energia psquica em atividades que geralmente so chamadas lazer (Csiksentmihalyie Rochberg-Halton, 1981:48). Em uma sociedade capitalista industrializada, a classe tra-balhadora no ir controlar os meios de produo, mas seus membros vo expressar-seindividualmente e como uma sub-cultura atravs de outros componentes, os quaisCsiksentmihalyi e Rochberg-Halton (1981:49) denominam meios de ao. Esses auto-res definem meios de ao como qualquer objeto ou signo que permite a uma pessoamanifestar-se (incluindo, quando aplicvel, os meios de produo).9

    Os psiclogos sociais nos informam que o processo de classificao do outro e aavaliao das suas intenes e motivos so um componente necessrio, mutvel e transi-

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1479

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200780

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    trio da interao pblica. Por intermdio de uma ampla variedade de signos (incluindo-se os objetos), gestos e posturas, nos comunicamos com aqueles com quem interagimos,dizendo-lhes quem somos e o que estamos fazendo: qualquer um sabe com clareza queo indivduo fornece, necessariamente, uma leitura de si quando est na presena deoutros. Gnero, idade, classe, estado de sade e etnia sero comunicados, na maioria dasvezes de forma no intencional (Goffman, 1971:127). Os psiclogos sociaisespecializados em interao urbana enfatizam que essas apresentaes do eu ocorremnas ruas (cf. Sennet, 1978:164-6). Lyn Lofland se refere a esse processo de classificaodo outro como a ordenao das aparncias, uma expresso que enfatiza tanto a funoclassificatria da atividade quanto uma confiana na aparncia como um critrio de julga-mento. Nesse problemtico mundo dos estranhos, que a cidade, todo residenteurbano deve seguir em frente, conhecer ao menos algo sobre as outras pessoas e era essaa informao que ele poderia colher olhando-as... A vida na cidade tornou-se possvelatravs de uma ordenao da populao urbana baseada na aparncia e localizao espa-cial, assim sendo, aqueles que vivem na cidade poderiam saber bastante em relao aooutro apenas atravs do olhar. (Lofland, 1973:22).

    O processo de decifrar a aparncia dos outros baseado na interpretao de smbo-los visveis codificados primariamente sob a forma de vesturio e outros adornos corpo-rais (jias, penteados, etc.), assim como por meio do comportamento (Praetzellis et al.,1987). O contexto vitoriano foi marcado por uma miniaturizao dos smbolos visveis,que se voltaram para os pequenos detalhes no vesturio ou na aparncia (Sennett,1978:165-8).

    A fora dos smbolos materiais para comunicar reside, freqentemente, no seu usofora do contexto. Isto , contextos diferentes daqueles os quais a tradio culturaldominante os utiliza. Um exemplo extremo poderia ser o uso punk de alfinetes defralda como brincos e no como presilhas. Tal reciclagem do mundano em um contextosimblico informativo para os iniciados (cf. Barthes, 1981:58).

    As tenses entre grupos dominantes e subordinados podem ser encontradas refletidasnas superfcies da sub-cultura, nos estilos dos objetos mundanos que tem um duplosignificado. Por outro lado, elas antecipam o mundo diretamente, dando conta de umapresena sinistra a presena da diferena e atirando sobre eles suspeitas vagas esorrisos difceis e furiosos. Por outro lado, para aqueles que os erguem como cones, queos usam como palavras ou maldies, esses objetos se transformam em signos deidentidade proibida, fontes de valor. (Hebdige, 1979:2-3)

    Assim, o estilo comunica sub-cultura e instrumental na definio de grupos emanuteno de fronteiras. Sub-culturas tnicas e de classe detm o estilo como umaferramenta para identificar aqueles que pertencem e, ocasionalmente, como uma armapara perturbar aqueles que no pertencem.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1480

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • 81Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    10 Muito do que vemos hoje no estudo da desigualdade social, dos significados expressos atravsda produo e uso do artefato, ou dos artefatos no discurso social, se sobrepe a novos concei-tos que envolvem formas antigas de se fazer as coisas. Em sua prtica de anlise da culturamaterial, alguns arquelogos histricos (e outros: cf. o ensaio em Hodder, 1989a) continuam abuscar a maneira certa, em vez de pregar, a exemplo de alguns evangelizadores, um atalho paraa integridade terica. Nossa discusso sobre a construo do contexto dirigida s conseqn-cias desta insistncia no paradigma puritano.11 notvel que outros diretores (i.e., Dent e Yentsch) em pesquisas de Annapolis tm umaabordagem absolutamente diferente tanto analtica quanto terica. Ver, por exemplo, Yentsch,n.d., 1988c, 1990; Yentsch e McKee, 1987.

    O pertencimento identidade de grupo, membro do grupo inevitavelmenteligado s relaes de poder e diferenciao social. Muito freqentemente, os arquelo-gos histricos interessados nas relaes de poder tm falhado em ouvir o apelo de E.P.Thompson (1978:157) para que se examine uma classe de baixo para cima, ou a exor-tao de Henry Glassie (1978:86) para que se estudem as pessoas de dentro para fora. Aomenos em parte, o mtodo que empregamos surge da reao contra o que reconhecemoscomo limitaes da abordagem envolvendo o uso dos artefatos em relaes de poder eque parecem permitir apenas aos poderosos fazer afirmaes por seu intermdio.10 Essaslimitaes se apresentaram devido aplicao da teoria crtica derivada do marxismo e aoemprego da tese ideolgica dominante de Althusser em estudos de caso na arqueologiahistrica. Esta abordagem tem recebido uma crescente quantidade de crticas.

    DOS ARTEFATOS DA HEGEMONIA AOS ARTEFATOS NO DISCURSO HEGEMNICO

    Em um exemplo bastante divulgado envolvendo uma anlise de classe na culturamaterial fora do local de trabalho, Mark Leone e outros de Historic Annapolis, Inc., explo-raram a funo ideolgica do jardim de William Paca (Leone, 1984, 1986, 1987, 1988a,1988b; Leone et al., 1989).11 Paca foi um advogado e jurista, um dos signatrios daDeclarao de Independncia e governador de Maryland entre 1782 1785. Ele foi, sobqualquer prisma, um membro da elite econmica e cultural dos Estados Unidos noperodo colonial (Malone, 1946:123-4). A anlise da reconstruo formal do jardim dePaca centrou-se no simbolismo do poder sobre a natureza como uma metfora dasrelaes de poder na sociedade. Em uma crtica acerca do papel da ideologia no trabalhodos arquelogos marxistas, Ian Hodder (1986:61-70) utiliza a pesquisa de Leone nojardim de Paca para ilustrar quatro problemas no tratamento da ideologia:

    1 No h indicao alguma que a mesma cultura material possa ter significadosdiferentes e diferentes efeitos ideolgicos para diferentes grupos sociais (Hodder,1986:65). A suposio que todos de Annapolis partilhavam a viso do jardim de Paca.

    2 H uma tendncia em opor realidade social e ideologia, com o ltimo falseando,naturalizando ou mascarando desigualdades na ordem social (Hodder, 1986:65). Aoinvs de obscurecer o status de elite de Paca, esse jardim poderia enfatizar apenas isso.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1481

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200782

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    3 dada ateno insuficiente ao contexto histrico especfico no qual o jardim serviu,supostamente, a funes ideolgicas.

    4 A ligao entre as funes das ideologias e seus produtos pretendidos no bemtraada. Fica a questo: de onde a ideologia particular... vem? (Hodder, 1986:69). Porexemplo, os princpios da perspectiva que Leone v como servindo funo social delegitimar a posio dominante de Paca na sociedade esto dentro de uma tradio hist-rica de construo da paisagem que pode, no fim das contas, ser remetido ao mundoclssico. Esses conceitos de ordem podem ter desempenhado um papel em criar certasaspiraes em Paca, assim como serviram como uma ferramenta para seu uso.

    Esses problemas, que se referem ao tratamento da ideologia, tm implicaes im-portantes para uma arqueologia das classes sociais. No que se refere ao primeiro proble-ma, uma das caractersticas mais desconcertantes na anlise do jardim de Paca seutratamento acerca da funo da ideologia nas relaes de classe. Ele se vale da Tese daIdeologia Dominante, derivada do ensaio de Louis Althusser (1971) acerca da funo daideologia no nvel do estado que sustenta serem as ideologias dos grupos dominantes nasociedade impostas aos grupos submissos. Essa tese nega aos grupos subordinados ahabilidade de formular suas prprias ideologias, j se tendo verificado que ela est sujeitaa inmeras excees quando avaliada em relao a situaes histricas (Abercrombie etal., 1980; Miller, 1987:162-3; McGuire, 1988:439-40; Rojek, 1989:100-1). O resulta-do um modelo de influncias indiretas das relaes entre classes e que tende a negar aexistncia de cultura das classes trabalhadoras.12

    O problema parece estar no fato de que a anlise de Leone examinou apenas Paca esuas atividades e motivaes, ignorando aquelas ligadas aos governados. Devemos, noentanto, ser cuidadosos em no igualar o poder dos artefatos com o poder de seus donosou usurios. Alm do mais, no h razo para assumir que jardins, ou quaisquer outros

    12 Esta perspectiva de relaes de poder, amplamente negativa, criticada por Giddens (1981:51),que assinala que a tendncia em considerar dominao como inerentemente negativa e comointrinsecamente inimiga da liberdade de ao no que diz respeito queles a elas sujeitos, relaciona-se, politicamente, idia de que o poder inerentemente coercivo e de que seu uso implica, inevi-tavelmente, na existncia de conflito. Nenhuma dessas idias resiste a um olhar examinador rigoroso.Elas geralmente refletem a suposio de que o poder no um aspecto integral e primrio da vidasocial. Ele assinala adiante que a premissa bsica de uma teoria alternativa de poder, conforme pro-posta por Foucault, embora no o veja como inerentemente coercivo e conflituoso, v a vida so-cial como essencialmente formada por lutas pelo poder. Tal perspectiva torna inarticulados aquelesque no esto no poder, exceto em termos de resistncia e conflito, como reativos, ao contrriode ativos. Se consideramos a afirmao de E.P. Thompson (1963, 1978) de que classe (assim comoetnia) existe apenas quando articulada, comeamos a entender porque a tese da ideologia domi-nante torna impossvel examinar os artefatos como elementos no discurso social. Martin Hall(n.d.:13) comenta que a interpretao de Leone acerca da adoo de ambientes individuais pelosanapolitanos vai de encontro idia de que a posse de conjunto de jogos de mesa transformou otrabalhador em um autmato, como se o capitalismo tivesse vencido a luta pelo controle ideolgicoto rapidamente que persuadiu seus trabalhadores a adotar boas maneiras mesa.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1482

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • 83Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    artefatos, sejam capazes de atender a uma nica funo simblica. Existem, na verdade,boas razes para assumir que eles mediam uma variedade de significados, muitas vezessimultaneamente.13 Est claro que a tese da ideologia dominante implica um certo graude controle social por parte das elites que a tornam inadequada como modelo de rela-es de classe em sociedades desenvolvidas e industrializadas ou, at mesmo, em socie-dades pr-industriais ou naquelas fortemente imersas em um sistema econmico carac-terizado por permuta, ao invs de trocas monetrias (cf. Giddens, 1981:55).

    Outras crticas envolvendo a tese da ideologia dominante na arqueologia histricaderivam de uma ampla variedade de saberes oriundos de outras reas que consideramesta abordagem igualmente insatisfatria. Martin Hall (n.d.:11) critica tanto o programaestruturalista empregado por Deetz como o uso da tese da ideologia dominante deLeone, assinalando que Abercrombie et al. (1980) rastrearam a noo de ideologiadominante atravs do feudalismo e capitalismo inicial e tardio, concluindo que ela eradesejada. Tais autores chegaram concluso de que as ideologias dominantes sofreqentemente inconsistentes e, raramente, tm efeitos mais significativos nas classessubordinadas. Na poca medieval, o campons era mantido sob controle por meio dafora bruta, ao invs da sutileza ideolgica (Hall, n.d.:11), ao passo em que, no capitalis-mo inicial, a dominao era alcanada por intermdio das foras econmicas (ibid.). Hallsugere que os jardins de Annapolis podem ser reinterpretados sem o uso da noo de falsaconscincia ou ideologias mascaradas. A instrumentao, o traado do jardim, a moda naslouas e outros itens materiais podem ser vistos como os meios pelos quais a eliteincorpora a ela mesma como uma classe (ibidem:12). Ele assinala que, se optamos porver a ideologia vestida em cultura material... como uma forma pela qual os grandesproprietrios rurais de Tidewater convenceram-se de sua posio na vida (ibidem:13),nos aproximamos do conceito de ideologia de James Scott (1985), que serve como umaponte que conduz o mundo material ao processo do discurso social, constituindo ereconstituindo a existncia com o poder semitico dos textos sem palavras, com aleitura de artefatos como ideologia, expressando as vises dos atores nas suas relaescom eles mesmos e com os outros (ibidem:14). Hall usa o conceito de ideologia deScott e sua noo de resistncia cotidiana para reinterpretar a cultura material da vidaescrava nas plantations do sul e para oferecer insights sobre o registro arqueolgico dasresidncias escravas no Cabo da Boa Esperana, na frica do Sul.14 Ele fez isso incorpo-rando o paradigma ao conceito de discurso, conforme traado por Foucault (1972), com

    13 O significado negocivel, interpenetrante e fluido (Beeman, 1976:575). Quando objetosso usados como forma de criar significados, de comunicar num nvel no verbal, os significadosno esto embutidos nos prprios artefatos, mas sim designados ou atribudos aos objetos poroperaes individuais em contextos culturais de grupos-especficos (ver, e.g., Wobst 1977;Hodder, 1989a, 1989b).14 O trabalho de Larry McKee sobre a vida escrava nas plantaes de Virginia no sculo XIX explorade forma similar a manipulao da cultura material como forma de discurso entre o proprietriode uma plantao e o escravo (1987, 1988, n.d.). Ver tambm Upton 1985.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1483

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200784

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    sua nfase na importncia do signo.15 Quando o mundo material e as aes daqueles queo criam entram em contato com ele, e o usam para uma dada finalidade, esses so todosvistos como afirmaes em um discurso. Trata-se da ambigidade emergindo a partir dosmltiplos significados que os objetos materiais carregam o status polissmico dosartefatos e que fornecem um ponto de aporte para a explanao. O uso complementardos textos variados de registros oficiais, refugos de cozinha e impresses literrias deHall ilustra uma maneira de se abordar os artefatos como partes integrais de afirmaesatravs dos quais as pessoas se criam e recriam e, essas afirmaes, como partes integraisdo discurso que cria e recria um ao outro (Hall, n.d.:26).

    O que buscamos, ento, um modelo de relaes dentro das, e entre as, sub-culturas baseado em classes e que seja flexvel o bastante para dar conta das acomodaesde interesses que, com efeito, ocorrem entre diferentes classes sociais e grupos tnicos(podendo ser demonstrado como tendo ocorrido no passado histrico). Uma estruturaque parece ter o potencial de incluir processos complexos de mudana cultural envol-vendo classe, etnia, e grupos de gnero, tem sido extensivamente usada por estudiososbritnicos da cultura popular (e.g., Bennett et al., 1981, 1986; Hargreaves, 1989). Trata-se da noo de hegemonia cultural, adaptada do trabalho do marxista italiano, AntonioGramsci. Gramsci era declaradamente preocupado com a tendncia do marxismo cien-tfico em ver a ideologia como reflexo passivo de uma subestrutura econmica, ao invsde ser uma entidade real, em seus prprios termos. De acordo com Gramsci, osmembros das classes sociais tornam pblicas diferentes ideologias concorrentes, centradasem torno do que eles percebem como sendo seu prprio interesse. As relaes de classeconsistem na negociao dessas ideologias na arena cultural. Os smbolos podem seradotados e manipulados pelos membros de diferentes grupos, em um processo atravsdo qual cada grupo busca negociar culturas de classes opostas em um terreno culturale ideolgico que assume por si s uma posio de liderana (Benett, 1986:xv).

    A Hegemonia, assim , uma conscincia predominante em constante mudana enegociada entre grupos de interesses, sendo internalizada ou aceita em diferentes nveispelos membros desses grupos (Boggs, 1976:39). Raymond Williams v a hegemoniacomo transcendendo o que tradicionalmente definido como ideologia, incluindo tam-bm a experincia.

    Ela [a hegemonia] um conjunto de prticas e expectativas sobre a vivncia: nossossentidos e destinao de energia, as percepes que nos moldam e ao nosso mundo. Ela um sistema vivido de significados constitutivos e constituintes os quais quando soexperimentados como prticas parecem que se confirmam reciprocamente. Isto entoconstitui um senso de realidade para a maioria das pessoas na sociedade, um senso deabsoluto causado por realidades experimentadas alm das quais seria muito difcil para

    15 OBrien (1989) fornece uma discusso convincente das contribuies de Foucault para omtodo histrico, assim como uma avaliao de suas crticas.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1484

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • 85Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    a maioria dos membros de uma sociedade se movimentar na maioria das reas de suasvidas. Isto , equivale dizer, uma cultura, mas uma cultura que tambm deve ser vistacomo a dominao e a subordinao vivida por classes especficas.

    As discusses sobre hegemonia vividas, portanto, devem envolver exames deta-lhados dos contextos histricos nos quais elas surgiram e operaram.

    CONSTRUINDO O CONTEXTO HISTRICO E ETNOGRFICO

    Sugerir, assim como Leone e Potter fizeram (1988a:12-13), que possvel confundiro registro documental com o registro etnogrfico o mesmo que confundir as perspec-tivas ticas e micas (cf. Schuyler, 1978; ver tambm Melas, 1989). O registro etnogrfico o produto do etngrafo e, como tal, um documento tico. Yentsch (1988b:152-3)assinala que o registro documental pode ser abordado tanto a partir da perspectiva ticaquanto da mica. Isso possvel porque os documentos so criados por palavras. Porconseguinte, podemos analis-los como reflexos de sistemas semnticos passados: omodo como as pessoas pr-modernas utilizaram e estruturaram sua linguagem, ou aspalavras que neles usaram [documentos], revelam mais sobre o [passado] do que parece,se as palavras forem consideradas de forma literal... As palavras nos [documentos] sopeas residuais de um mundo em ao que j se foi e no qual elas desempenharam umpapel maior (Yentsch, 1988b;153). Usar os documentos para gerar expectativas arqueo-lgicas ou anexar funes aos artefatos , certamente, equivalente ao uso do dadoetnogrfico pelos pr-historiadores. Mas essa a nica coisa que os arquelogos histricosfazem com documentos? A resposta no. O uso da palavra escrita na arqueologia histricavisando construo de contexto e histria muito mais desenvolvida do que Leone ePotter (1988a:11-12) sugerem (cf. Beaudry, 1988a; Schmidt e Mrozowski, 1983).

    Leone e Potter aderiram viso equivocada de que o registro arqueolgico e odocumental foram produzidos por pessoas que geralmente no tem conexo diretaumas com as outras (1988b:14). Fazer conexes diretas entre os produtores dos docu-mentos e os artefatos escavados de utilidade limitada, seja qual for a circunstncia. Osdocumentos, na verdade, codificam conexes entre pessoas em diferentes nveis: nasrelaes diretas de parentesco, na famlia, no domiclio, na vizinhana e comunidade, nasrelaes impessoais de poder entre proprietrios de fbricas e trabalhadores, e assim pordiante. Por exemplo, os documentos que registram conexes comerciais oferecem umajanela mica acerca das relaes sociais de produo (cf. Paynter, 1988). Sem dizer que aanlise documental (em acrscimo e em distino pesquisa histrica) parte integraldo estudo da vida material no perodo histrico o nosso argumento que isso se consti-tui, na verdade, em um elemento vital em qualquer pesquisa arqueologia histrica. Isso vital para se construir o contexto.

    O contexto onde o significado est localizado e constitudo, fornecendo uma chavepara sua interpretao. A recuperao do significado baseada na recuperao do contex-

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1485

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200786

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    to, porque o contexto no somente estrutura significados por meio de uma amarraocom situaes e eventos atuais, como tambm inextricavelmente ligado ao significado.A existncia de um contexto implica, por um lado, na presena de significados funcio-nando dentro dele e, por outro lado, que os significados no podem existir na ausnciadele. Enquanto podemos falar de significados ocorrendo fora do contexto, no pode-mos pressupor a ausncia de contexto, mas sim que o contexto do uso no o contextonormal ou esperado. Freqentemente, nos contextos incomuns e inesperados que osignificado renegociado ou redefinido.

    A anlise dos textos culturais nos permite ter insights acerca das atitudes das pessoasem relao ao mundo que as cerca, sendo esse um componente integral da recuperaodo significado, assim como da explanao do registro arqueolgico. Os Arquelogoshistricos possuem os meios necessrios para incluir em sua tica estudos objetivos dopassado em uma perspectiva mica e culturalmente sensvel. As anlises interpretativas,com sua preocupao em relao ao significado e classificao e percepo folk ofere-cem uma estrutura para a anlise textual voltada recuperao de significados folk. Isso possvel por meio de uma abordagem analtica e etnogrfica dos documentos, umaabordagem rotulada de etnografia histrica (cf. Yentsch, 1975; Schuyler, 1988; Beaudry,s.d.) e arqueologia documental (cf. Beaudry, 1988a).

    Em essncia, o que procuramos o contexto total e inclusivo, conforme propostopor Taylor, o que deveria ser nosso interesse primrio (Taylor, 1948:32). Como Schmidte Mrozowski assinalam, a construo do contexto cultural o caminho no qual o signi-ficado cultural por ser somado arqueologia e a qualquer padro que pode ser deduzidodas evidencias arqueolgicas: Devemos pesquisar cuidadosamente documentos hist-ricos diferentes e a literatura da histria para produzir construtos que possam ser sinteti-zados com a finalidade de fornecer um contexto cultural complexo para nossa escavaoarqueolgica, seja ele um naufrgio, um stio-oficina da Idade do Ferro na Tanznia ou umalatrina do perodo colonial... Se fracassamos ao fazer isso, ento negligenciamos contex-tos culturais que nos informam acerca do comportamento (Schmidt e Mrozowski1983:146-7). A despeito de reivindicaes contrrias (i.e., Leone, 1988a; Leone e Potter,1988a:14-18), esse tipo de abordagem no confunde o registro documental com oetnogrfico ou torna ambos equivalentes. Ao contrrio, ela permite uma abordagemculturalmente sensvel, crtica e interpretativa em relao aos documentos histricos,com objetivo de evitar uma super-objetificao da sua rea de interesse. Enquanto algunssejam talvez tentados a se voltar para uma abordagem dotada do desprezvel rtulo deecletismo (e.g. Orser, 1988:314-15), pode-se dizer a seu favor que uma abordageminterpretativa, uma vez que receptiva a diferentes perspectivas, cria meios para evitar asarmadilhas da aplicao doutrinria do pensamento poltico radical moderno inerente aoque Orser e outros propem como uma perspectiva terica mais unificada (podera-mos dizer rgida) ligada tese da ideologia dominante.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1486

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • 87Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    Existe um persistente temor do mico que , provavelmente, um resduo dopositivismo. Muitos arquelogos histricos retm o carter tendencioso em relao aosdocumentos, adquirida durante seu treinamento na pr-histria, e alguns pesquisadorescontinuam desatentos s possibilidades de se realizar anlises sofisticadas e sensveis tantonos registros materiais quanto documentais. South, evidentemente, continua a conside-rar as fontes documentais como meros documentos diretos, como backgrounds histri-cos ou como verificao: a arqueologia histrica tem um grande potencial para controlaras variveis arqueolgicas em relao ao background da documentao histrica (South,1988:28-9). A proposio de Leone e Potter de que devemos tratar os registros docu-mentais e arqueolgicos como corpos de dado completamente distintos, testando umem relao ao outro, no oferece uma perspectiva muito distinta da abordagem partitivade South.16

    Outros permanecem to desconfiados dos documentos, que recomendam que elessejam relegados a um papel menor na interpretao. Rubertone (1989:32), por exem-plo, prope que a arqueologia dos indgenas americanos do sculo XVII sirva comouma fonte de informao da histria indgena, existindo com independncia dos registrosescritos produzidos pelos observadores europeus. Preferindo os registros no escri-tos pelo que eles revelam sobre a resistncia dos indgenas americanos frente domina-o europia, Rubertone dispensa os documentos, uma vez que os observadores euro-peus os escreveram para atender aos seus interesses e, fazendo assim, omitiram dosregistros escritos as formas pelas quais os ndios Narragansett lutaram para preservar suaindependncia.17 Essa desconfiana em relao aos documentos, essa noo de que o

    16 O artigo de South (1979) sobre a estrutura de stios representou seu maior impulso, juntocom uma extrapolao de uma das idias de Binford dentro da arqueologia histrica. Seu longosilncio abriu as portas para que Leone se apropriasse da mesma frmula de sucesso, apressando-se em adaptar a teoria de mdio alcance de Binford, apresentada, inicialmente, em Leone eCrosby (1987) e, mais tarde, desenvolvida em Leone (1989) e Leone e Potter (1988b). Aproposta dissimuladamente reducionista (cf. Yentsch, 1989), por envolver um tratamentodo dado arqueolgico e do dado documental como analiticamente e epistemologicamenteseparados. Em vez de analisar criticamente ambos os elementos do discurso, somos incentivadosa test-los um contra o outro, a fim de afastar e resolver ambigidades. H, certamente, mritonesse procedimento, mas ele fracassa como mtodo para anlise documental porque no vai almda malha tica ou descritiva, derivada do tratamento superficial dos documentos. Alm do mais,o que verdadeiramente insidioso, essa verso da teoria de mdio alcance tem pouco a ver coma nfase de Binford no uso da teoria de mdio alcance como um meio para entender a estruturado registro arqueolgico pelo desenvolvimento de inferncias, feitas geralmente atravs daanalogia etnogrfica, visando ao isolamento de caractersticas organizacionais variveis dos siste-mas passados (Binford, 1987:449). Em essncia, o que Leone e seus colegas propem ummtodo que falha em tratar tanto do registro documental quanto do arqueolgico com a eficciaanaltica que ambos merecem e que a recuperao do sentido exige.17 Isso no pode ser interpretado como algo que est alm de uma elaborao que visa noutilizao da documentao por uma perspectiva crtica, razo pela qual est longe de ser umarepresentao precisa do que pode ser colhido por meio das fontes primrias. No fica, de fato,totalmente claro se Rubertone consultou fontes primrias, embora muito da literatura recente

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1487

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200788

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    carter tendencioso daqueles que os registraram no pode ser analisada e interpretada,mas que, na verdade ir, inevitavelmente, corromper o pesquisador, algo to ingnuoquanto contra-intuitivo e improdutivo. Em outro exemplo, Ashmore e Wilk (1988:5)atriburam um estranho poder aos documentos, temendo que a elevada sofisticao emdecifrar textos antigos iria afastar arquelogos mesoamericanos da evidncia material e,por conseguinte, influenciar suas concluses. Eles acham que cada fonte tem usosespeciais (e presumivelmente, no caso dos textos, esses seriam limitados), mas reco-nhecem que, se fontes materiais e textuais forem examinadas criticamente, podem serutilizadas conjuntamente como complementos (ibidem). Ashmore e Wilk, todavia, doa entender que os arquelogos devem continuar a confiar em evidncias materiais maisdiretas (ibidem; nfase nossa).18

    Analisar as fontes escritas tanto na perspectiva tica quanto na mica (ou como algunsestudantes da cultura material colocam: tanto na perspectiva do produtor como na dousurio), pode resolver o dilema acerca do que fazer com os documentos. Seguindo apergunta feita por Michael Ann Williams (1990; ver tambm Williams, 1986), devemosnos negar a estudar os papis das mulheres nas residncias e o uso, por essas mulheres,dos seus espaos, s porque sabemos que no perodo histrico as casas eram artefatosmasculinos, uma vez que eram os homens que as construam? Podemos assumir que umprodutor controla os modos pelos quais os usurios percebem e empregam o artefato?Certamente no no caso de textos, a menos que se assuma que ler se constitui em umamera submisso ao mecanismo textual (Chartier, 1989:156). De certa forma, nossaleitura crtica dos documentos uma apropriao, uma interpretao fora do texto(ibidem: 157) que incorpora ateno motivao do produtor, s aes ou respostas dopblico a que se pretende atingir e ao nosso uso intencional do texto na construo danossa prpria narrativa de interpretao. A sntese que buscamos no pode ser alcanadapor intermdio de um esquema partitivo e reducionista, segundo o qual o registro ignorado, tratado de forma acrtica ou deixado totalmente parte em relao s demaisfontes de evidncia.

    Para nos afastarmos da atitude de que o uso dos documentos um exerccio literalapenas para a obteno de informaes intencionalmente criadas por aqueles que osregistraram, necessitamos abord-lo como um corpo de textos (da mesma forma comoos antroplogos e folcloristas fazem com os contos, mitos, etc.) e estar atentos para o fato

    envolvendo a interao entre indgenas americanos e europeus faa excelente uso de documentose evidncias materiais de forma combinada, visando a examinar no apenas resistncia, mastambm construes intencionais de identidade cultural pelos indgenas (e.g., Bradley, 1987;Bragdon, 1988; Brenner, 1988; Crosby, 1988; Hamell, 1983, 1987; Merrell, 1988, 1989).18 Talvez o clamor para permanecer um pr-historiador diante da evidncia textual derive do queparece ser uma preocupao subjacente de que, acrescentando os documentos a essa equao, seadote uma abordagem crtica no realmente necessria, uma vez que a evidncia material , decerto modo, mais direta que os textos e, portanto, mais confivel, necessitando menos anlisescrticas.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1488

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • 89Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    de que nossa leitura , na verdade, uma interpretao da percepo de outra pessoa.Mesmo nossas prprias percepes no podem ser tidas como diretas (cf.Beaudry,1980:5). Para os lingistas, o texto qualquer registro de um evento de linguagem. Elepode ser relembrado, gravado, escrito ou impresso. Ele tanto uma coisa fsica comouma unidade semntica. Os aspectos cruciais dos textos so contedo, forma e situao.Situao o ambiente no qual o texto toma vida (Gregory e Carroll, 1978:3-4). Ela temcaractersticas constantes que nos permitem buscar variaes em aspectos formais ousubstanciais do texto. Supondo, por exemplo, que um grau razovel de linguagem parti-lhada foi usada em um dado corpo de, digamos, registros anglo-americanos, podemosexaminar como uma informao registrada varia tanto na sua estrutura interna e em umestilo sincrnico quanto nas formas pelas quais as diferenas atravs do tempo e espaorefletem mudanas em atitudes, disponibilidade de gneros de consumo ou contatoentre pessoas de diferentes backgrounds sociais, econmicos e culturais.

    E. P. Thompson (1963:9-10) assinala que a pesquisa envolvendo relaes sociais declasse deve sempre ser incorporada em pessoas reais e em contexto real. Ele defendeque os documentos sejam examinados de cima a baixo (Thompson, 1978:157). Aimplicao disso que os documentos, mesmo aqueles produzidos pelos membros declasses superiores, podem informar, de forma no intencional, acerca dos membrosinarticulados ou desprivilegiadas da sociedade.19 Esse tipo de dado, que etnograficamentee contextualmente sensvel, pode ser extrado atravs de anlises crticas de textos docu-mentais em combinao com anlises da cultura material. No entanto, ver a histria debaixo para cima ou de cima pra baixo insuficiente. Em uma perspectiva micapretende-se estudar os significados de dentro para fora. Henry Glassie conduz essaquesto com eloqncia e energia em seu impressionante trabalho Passing the Time inBallymenone, que citamos a seguir.

    Em Ceili, os produtores de ch e conversas criam a comunidade. Nas ruas, no mercadode gado e nas tabernas, eles compram e vendem, olham e caminham, ouvem e cantam,e formam a multido, a populao de sua regio... E alm disso... voc os tem visto,meio perdidos, parados sozinhos numa confuso silenciosa, pessoas do campo, vestidasdecentemente, pobremente, nas ruas das grandes cidades.

    19 Beaudry (1980a, 1980b) prope que os documentos, tais como os inventrios, podem sertratados como contextos elucidativos dos quais o pesquisador pode recuperar informaessobre os segmentos letrados ou semi-letrados da sociedade. Em um estudo do discursoaquecido (profanao, calunia e insulto), St. George (1984) analisou registros jurdicos parareconstruir performances de discursos. Suas interpretaes trazem tona muitos aspectos dasrelaes sociais no sculo XVII em Massachusetts que os responsveis pela criao dos documen-tos nunca pretendiam revelar. A discusso de Rhys Isaac (1988) sobre o comportamentomanipulador dos escravos de Landon Carter atravs de uma leitura crtica do dirio particular deCarter um exemplo esplndido de anlise textual. Isaac volta-se para as intenes de umobservador partidrio, literalmente s avessas, a fim de revelar a natureza dos esforos malsucedidos de Carter para controlar seus escravos e obter o respeito deles.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1489

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200790

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    ai que os polticos e seus agentes, os falsos acadmicos, os querem: fracos, confusos e,acima de tudo, em silncio. O homem que um educador capaz, beira do fogo, umamente iluminada em Ceili, um cantor ousado no pub, transforma-se na gigantescareserva da nao, silncio, praticamente nada, um seguidor para uma doutrina poltica,uma estatstica para um esquema cientfico, um membro das massas inarticuladas. Aidia diablica... [A]poiar uma equao frentica de poder e riqueza com intelignciae habilidade verbal. O falso acadmico constri um quadro piramidal da sociedade comreis e bobos da corte em seu cume, e uma maioria silenciosa em sua larga base. Assim,a realidade ordenada, em cascata, do topo para a base, do poder fraqueza, da riqueza pobreza, da inteligncia estupidez, da inveno imitao, da luz obscuridade, dostextos ao silncio. Mesmo os acadmicos que aspiram a ser democrticos, aceitam, svezes, a horrvel metfora, e propem-se a estudar as coisas de baixo para cima. Asociedade no aguada como uma pirmide ou feita em camadas como um bolo. Ela composta por comunidades que ocupam o espao e o tempo, simultaneamente, nomesmo nvel humano... Tudo parece razovel a partir do seu interior, estranho de fora,silencioso distncia. A forma de se estudar as pessoas no a de cima para baixo nema de baixo para cima, mas a de dentro para fora, dos locais onde as pessoas so articuladaspara locais de onde elas no so, dos locais onde esto no controle de seus destinos paraos locais onde no esto.

    Carmel Schire, uma pr-historiadora que se voltou para arqueologia histrica a fim deexaminar situaes de contato entre sul-africanos nativos e colonizadores holandeses,chegou rapidamente concluso de que as fontes arquivsticas interagem com o dadoarqueolgico. Ela assinala que o sucesso de um estudo arqueolgico envolvendo o impac-to do colonialismo sobre povos indgenas depende da habilidade em escavar profunda-mente nos arquivos e nas areias de um assentamento abandonado por meio da anlise daspalavras e artefatos que codificam o alimento do dia, o carregamento mensal de carne paraum entreposto, e uma poltica colonial de um sculo desempenhada pelos funcionriosda grande Companhia das ndias Orientais (Schire, n.d.:2). Defendemos que isso podeser dado como verdadeiro para qualquer empreitada na arqueologia histrica, como ocaso do trabalho de Schrire em um entreposto holands do sculo XVII na frica do Sul.

    CONTEXTO ARQUEOLGICO

    J foi discutida extensamente neste texto a importncia do contexto na determinaode significados para a cultura material. O registro arqueolgico como contexto requerateno similar. Especialmente em comunidades urbanas, os depsitos arqueolgicosso, freqentemente, resultantes de rpidos episdios deposicionais (ver e. g. Carver,1987; Beaudry, 1986; Mrozowski, 1984; Praetzellis, et al. 1980). Nas cidades, essesrpidos eventos deposicionais podem ser conseqncia de transies no nvel domsti-co (Mrozowski, 1984; Beaudry e Mrozowski, 1987b) ou de mudanas nas instalaesde gerenciamento do lixo e da gua na comunidade como um todo (Honerkamp e

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1490

    UsuarioHighlight

  • 91Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    Council, 1984; Beaudry, 1986; Praetzellis et al., 1988). A estrutura do registro arqueol-gico pode revelar tambm dinmicas comportamentais do passado.

    A Arqueologia histrica no pode ser, na verdade, uma cincia da cultura materialno sentido proposto por Deetz, nem pode ser meramente cultura material com sujeira.Os stios arqueolgicos so matrizes complexas. Compreender suas estruturas internase formao, assim como as relaes entre sedimentos de stios, processos deposicionaise artefatos na matriz so um componente vital na pesquisa arqueolgica (cf. Schiffer,1987; Binford, 1976, 1979, 1981). Da mesma forma que o melhor uso dos documentosno est em servir como um background a ser testado contra artefatos, o melhor uso dosartefatos no est em consider-los como independentes do contexto do qual foramrecuperados. O arquelogo histrico deve realizar anlises contextuais de uma formainclusiva e abrangente. Mesmo um exemplo mais direto ajuda a ilustrar o poder deanlises contextuais que emergem do controle combinatrio de carter complementarenvolvendo os contextos arqueolgicos e histricos.

    A presena de recipientes de bebidas alcolicas nas penses de Lowell uma ineg-vel evidncia de consumo de bebidas, mas a descoberta de garrafas vazias em um engra-dado abaixo do piso de uma latrina uma evidncia de uma dissimulao intencional,uma disposio clandestina, presumidamente seguida do consumo da bebida, tambmde forma clandestina. Situando essa observao arqueolgica em um contexto histricoconstrudo com a ajuda de documentos de uma empresa que indicam restries noconsumo de lcool em penses (Bond, 1989a), criamos uma ligao comportamentalpor onde fragmentos corriqueiros de refugo de jardim comeam a informar sobre aque-les que so aparentemente inarticulados. Uma anlise contextual severa dos artefatosfornece um contraponto ou subtexto para escritas de observadores e reformadores daclasse mdia e alta, levantando, subitamente, o volume das vozes dos trabalhadores.Assim, eles podem ser ouvidos acima daqueles que nos falam em um coro de voz elevadaatravs de documentos escritos.

    ARTEFATOS E VOZES MLTIPLAS:20EXEMPLOS DE ANLISE DE DISCURSO ENVOLVENDO ARTEFATOS

    Conforme assinalado acima, um modelo baseado na hegemonia cultural, ao invs daideologia dominante, tem inmeras vantagens. Primeiro, porque no se pode igualardominao poltica ou econmica com dominao social ou cultural. Por exemplo,enquanto as elites podem ter mais controle sobre as estruturas econmicas e polticas, possvel que seja a burguesia que tenha mais influncia na conscincia dominante. Segun-do, porque a hegemonia cultural vista como baseada no controle atravs do consenso,

    20 O conceito de vozes mltiplas foi adotado a partir de Mascia-Lees et al., tendo sido apresen-tado no volume do outono de 1989 de Signs. Somos gratos a Anne Yentsch e Suzanne Spencer-Wood por trazerem este artigo nossa ateno.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1491

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200792

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    ao invs da coero. Isso requer que se considere que as acomodaes alcanadas porparalelismos, ou mesmo oposies, interesses e, no menos importante, reas de confli-to, sejam mais facilmente e freqentemente estudadas (Stedman Jones, 1977:163).Terceiro, e mais importante, porque a hegemonia no vista como sendo completa(Boggs, 1976:40). As iniciativas e contribuies demonstram que so alternativas opos-tas s hegemonias existentes, embora freqentemente moldadas nos mesmos termos dodiscurso e alguns desses podem ser negociados dentro de posies hegemnicas(Williams, 1977:114). Assim, as contribuies das classes trabalhadoras podem seraceitas ou, ao menos, toleradas pela burguesia e pelas elites. Isso permite que a ideologiae a cultura da classe trabalhadora tenham um papel ativo nos processos sociais, em vez deserem simplesmente tidas como ditadas e destiladas pelas ideologias e culturas dosgrupos politicamente dominantes.

    Conforme acima mencionado, a idia de hegemonia cultural completamente com-patvel com um modelo de cultura material centrado na comunicao, e nisso est autilidade da arqueologia. Uma dimenso importante da cultura material sua funocomunicativa, e boa parte dessa funo ocorre na negociao cotidiana da hegemonia. Oscomerciantes do sculo XVIII com seus aparelhos de louas, e terrenos, e casas simtri-cas e o punk do sculo XX com seus alfinetes de fraldas e botas de engenheiro soigualmente envolvidos nessas negociaes, e muito do que recuperado arqueologica-mente pode ser visto como produto do discurso hegemnico, intencional ou no. Narealidade, podemos ver o alcance dos itens disponveis em qualquer poca, com seusvariados valores simblicos e morais, como extenses da hegemonia contempornea ou mesmo como uma hegemonia material, que existe em cada fragmento de formafluida e mutvel atravs dos tempos, da mesma forma que a hegemonia cultural.

    Uma arqueologia centrada em classes e baseada na hegemonia cultural nos permiteinterpretar nossos materiais em seus aspectos comunicativos e simblicos, abrindo no-vas avenidas de investigao. Por exemplo, se a Georgianization foi a contribuio cultu-ral da classe comerciante durante o sculo XVIII, como muitos arquelogos tm recen-temente proposto (Leone, 1988b; Harrington, 1989), ela pode, da, ser vista como umelemento no discurso hegemnico. Enquanto podemos simplesmente assinalar que aGeorgianization ocorre universalmente atravs daquela classe, seria mais interessante einformativo ir alm desse ponto de vista normativo, a fim de que se examinassem osmeios pelos quais as outras classes e grupos culturais adotam, mudam ou rejeitam a visode mundo Georgiana e a cultura material a ela associada: examinar de onde vem aGeorgianization, como ela se tornou hegemnica no sculo XVIII, o que isso significoue como tais significados mudaram atravs do tempo, como e de que forma ela foi subs-tituda como hegemonia, quando e porque ela se tornou novamente hegemnica pormeio de revivals, e o que permanece disso hoje.

    Os exemplos de anlise da cultura material que aqui oferecemos so tirados da nossamais recente pesquisa em colaborao, envolvendo as penses do engenho Boott, em

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1492

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • 93Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    Lowel, Massachusetts, nos sculos XIX e XX (Beaudry e Mrozowski, 1987a, 1987b,1988, 1989). As escavaes tm se realizado nos quintais situados nos fundos das unidadesde nmero 45, uma penso tpica onde os trabalhadores residiam, e de nmero 48, umahabitao popular destinada ao pessoal de superviso. Os residentes da penso constituamum arranjo domstico corporativo. O espao usado pelo pessoal de superviso era habi-tado, geralmente, por uma pequena famlia nuclear, mas, s vezes, podia ser transformadaem local de hospedagem. Recuperamos nos quintais uma quantidade impressionante deobjetos de uso cotidiano: botes, contas, fragmentos de cachimbo, garrafas, jias, louas,pentes, bolas de gude e ossos de animais, deixados para trs por centenas de trabalhadoresdo engenho que habitaram estas casas durante sua existncia. Talvez seja irnico que tantaspessoas que passaram horas a fio trabalhando nos engenhos, produzindo fortunas paraoutros, tenham deixado um legado to humilde de botes, gemas de vidro e garrafas debebidas. Enquanto os registros arqueolgicos e documentais oferecem um testemunhodo poder do paternalismo corporativo e do sistema de pensionato, eles evocam tambmexpresses, se no de resistncia, de aspiraes pessoais e de auto-expresso. A despeitodo fato de que meios econmicos limitados ofereciam impedimentos autnticos emrelao s necessidades materiais dos trabalhadores do engenho de Lowell, a evidncia deum comportamento adaptativo da criao de sub-cultura visvel. Isto visvel no usode certos medicamentos que eram mais desejados por possurem teor alcolico e noexatamente pela sua eficcia em curar doenas (Bond, 1989b); nas humildes aspiraes deascender a um status de classe mdia refletidas na seleo e uso de louas domsticas pelosfuncionrios da penso (Dutton, 1989) e pelas escolhas intencionais das mulheres traba-lhadoras ao comprar e usar imitaes baratas de jias e ornamentos de cabelo de alto custo(Ziesing, 1989). Isso tambm expresso no uso de cachimbos de argila branca comoexpresso da filiao de classe, ou mesmo orgulho de classe.

    O DISCURSO ATRAVS DA CULTURA MATERIAL RELACIONADA AO TABACO

    Um elemento importante nos estudos realizados em Lowell foi o de ver o uso dotabaco como um elemento de discurso hegemnico entre classes e grupos tnicos,assim como entre homens e mulheres. Foi enfocado o sculo XIX e incio do sculo XX(Cooke, 1989). Embora o uso do tabaco possa parecer algo menor para se abordarquestes maiores envolvendo relaes de classes, deve-se notar que essas relaes pe-netraram na vida cotidiana, tendo sido tramadas com suas prprias linhas. A noo declasse ofereceu e oferece contornos para as atividades e interaes cotidianas. Dessaforma, sua operao pode ser vista nas mais mundanas e triviais aes.21

    21 Historiadores sociais e culturais tem se concentrado, cada vez mais, no cotidiano e no ritualprivado e pblico como nexos da ao social (e.g. de Certeau, 1984; Davis, 1983; Darton,1984; Larkin, 1988). Em grande medida, esse crescimento do marxismo e da Escola dos Annalesna histria social resultado de uma influncia crescente do pensamento antropolgico dentro

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1493

    UsuarioHighlight

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200794

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    Os episdios de uso de tabaco encontrados no registro histrico foram analisadosem trs dimenses bsicas (seguindo Mercer, 1986:54, que modificou os procedimen-tos de Foucault, 1972:50-5). A primeira delas o uso do stio: a posio no espao, notempo e no contexto social onde os episdios ocorrem. A segunda dimenso considera-da aquela do status do evento: quem so os atores e sua posio relativa nas estruturas deautoridade. Finalmente, vm as subjetividades do comportamento: os significados que soexpressos, sendo considerados sempre que estiverem acessveis.

    A anlise das fontes documentais escritas durante o sculo XIX e o incio do sculoXX indica uma crescente associao de cachimbos de haste curta com homens da classetrabalhadora. Imigrantes irlandeses, afro-americanos e outros grupos tnicos tambmforam associados ao seu uso em graus variados. As mulheres, pelo menos as que perten-ciam s classes media e alta, no foram consideradas como fumantes para a regio donordeste dos EUA, especialmente quando estavam em pblico. O ato de fumar nosculo XIX emerge dos documentos contemporneos como uma atividade desprovidade influncias ligadas ao conflito de classes diferente do consumo de lcool. Isto atque algum olhe para o papel que o ato de fumar desempenhou nos conflitos de classepassados no espao pblico. Fumar, assim como beber, praticar esportes coletivos edemonstrar sexualidade, no era algo que polidamente se fazia nos espaos pblicos:ruas, parques, restaurantes, etc.22 Enquanto o ato de fumar, por si s, poderia ser visto e era visto como um comportamento que unia classes, sua indulgncia por membrosde certas classes, grupos tnicos e gneros no contexto social do espao pblico revestiaessa prtica com significados subversivos e sensaes de desconforto quando vistos porescritores das classes mdia e alta. Assim, o ato de fumar encontrou sua expresso nanegociao de hegemonias tanto de classes quanto de gnero, servindo, muitas vezescomo uma expresso de identidade e presena intrusiva.

    Os materiais usados foram cruciais para o contexto do ato de fumar, sinalizandoclasses, backgrounds tnicos ou percepes de relaes de gnero por parte do fumante. Ouso combinado de documentos e artefatos escavados nos permite recuperar contextos eaes do passado e dos significados que os ligam. A coleo de cachimbos da hospedariae residncia de empregados do engenho de Boott evidencia que os fumantes da classetrabalhadora que l viveram quebraram as hastes de certos tipos de cachimbo de argilabranca para encurt-los antes de seu uso. Dentro do contexto do comportamento con-temporneo, tais aes eram expresses claras de pertencimento s classes trabalhadoras.

    da histria, assim como uma retro-alimentao entre as duas disciplinas. Argumentamos que osarquelogos histricos necessitam seguir os especialistas da cultura material (e.g. Mackiewicz,1990), tornando-se cientes e receptivos a essas tendncias. Talvez seja necessrio que esperemospor uma reantropologizao da arqueologia histrica.22 O Conflito de classe nos comportamentos de lazer em lugares pblicos foi intenso no nordesteurbano americano e permanece assim at hoje. Roy Rosenzweig (1983) utiliza a celebrao deferiados, polticas de parques pblicos e controle legislativo dos bares para traar o curso desseconflito em Worcester, Massachusetts, durante o fim do sculo XIX e incio do sculo XX.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1494

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • 95Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    A identidade tnica est claramente manifestada na presena da coleo de cachimbos quemostram slogans polticos irlandeses, tais como soberania, e os nomes de mrtiresirlandeses, tal como Wolfe Tone. Documentos produzidos, na maior parte, por escritoresdas classes mdia e alta podem ser combinados com evidncias materiais ligadas s aesda classe trabalhadora para que se possa revelar os significados dessa classe.

    DISCURSOS DE CONTROLE E DESAFIO

    A anlise detalhada de Kathleen H. Bond (1989a) envolvendo a correspondncia daBoott Company trouxe luz uma variedade de reas de conflito entre trabalhadores egerentes. Muitos dos problemas que surgiram envolvendo o comportamento dos traba-lhadores e oficiais da companhia foram considerados inaceitveis. Isso, porque os traba-lhadores diminuram a rentabilidade da corporao, ou porque certos comportamentospblicos eram destrutivos para a imagem que a corporao queria projetar. Em vriosexemplos, os donos de penso se sentiam censurados por tentar obter lucros extras,burlando regras sobre quem hospedar e como recolher aluguel, ou permitindo o con-sumo fiado de bebidas. Comportamentos aberrantes dos trabalhadores, especialmenteo de beber em pblico, e atos de brutalidade eram, todavia, o alvo principal da ira dosuperintendente. Bond observou que temas internamente consistentes na correspon-dncia revelam que os esforos da companhia em controlar a fora de trabalho foramsistematicamente ineficazes. Ela associa esse fato com evidncias de escavaes arqueo-lgicas para ilustrar a preocupao de natureza contraditria da companhia em relaoaos seus trabalhadores (Bond, 1989a:35):

    A informao colhida das cartas de que os lotes das penses eram sujos, de que acondio geral dos lotes de fundo eram precrias, e de que os trabalhadores consumiamlcool nas unidades concorre com evidncias arqueolgicas. Em alguns casos, as cartaseram escritas at mesmo para, ou sobre, indivduos que viveram nas unidades investigadasarqueologicamete. A imagem ordenada e limpa dos engenhos que os proprietrios seesforavam para apresentar desafiada com consistncia ainda maior pelo registroarqueolgico. A arqueologia ajuda a desnudar essa fachada de limpeza e ordem. Fazendoisso, ela expe os esforos dos gerentes para regular o comportamento dos trabalhado-res sem assumir uma responsabilidade equivalente em relao vida desses trabalhado-res. Os gerentes, entretanto, no eliminavam completamente certos comportamen-tos. Eles podiam apenas purificar nossa corporao absolvendo os criminosos epermanecendo vulnerveis, pelo menos em uma pequena proporo, s tentativas dostrabalhadores em controlar suas prprias vidas.

    Muitas das evidncias a que Bond se refere esto sob forma de recipientes de bebidasalcolicas que foram encontrados nos quintais (Bond, 1989b). Alm desses, havia aindauma grande quantidade de garrafas medicinais e remdios dedicados a uma grande vari-edade de indisposies, todos com alto contedo de lcool. Est claro que beber era umaprtica dominante a despeito dos incessantes esforos da corporao para eliminar e

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1495

    UsuarioHighlight

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200796

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    prevenir tal prtica. Bond (1989a:29) observa que os trabalhadores bebiam por variadasrazes costumes tnicos, como meio de promover solidariedade na classe trabalhado-ra e para escapar temporariamente das realidades da pobreza e que esse era um com-portamento que eles decidiam assumir por si prprios. Se um trabalhador escolhiabeber usque, nenhuma quantidade de ensinamento moral mudaria esse fato. O registroarqueolgico um testemunho do fato de que o discurso entre trabalhadores e gerentes,sobre quem controlava o comportamento de lazer dos trabalhadores nas penses, erapassado nos pequenos e infindveis atos da resistncia do cotidiano, por meio de expres-ses s quais a gerncia tinha, na verdade, pouqussimo controle.

    DISCURSO ATRAVS DO USO DA LOUA DOMSTICA

    A poltica administrativa da corporao de Lowell envolvia paternalismo, mas era umpaternalismo sem direitos. Era nos comportamentos de lazer e nas horas fora do traba-lho, assim como na vestimenta pessoal, que os trabalhadores individuais se expressavame sinalizavam suas filiaes de etnia, sub-cultura e classe.

    bastante intrigante considerar, a esse respeito, o uso das louas de ch e conjuntosde mesa pelos residentes das habitaes populares. Dutton (1989) descobriu que esseuso contrastava com os padres da coleo de loua da penso, o que pode ser associado composio dos domiclios domiclios corporativos versus nucleares, assim como avalores culturais. Deixando de lado os conjuntos de ch e caf, as demais louas das duascolees mostravam-se notadamente similares (tabelas 9.1 9.3). As louas do tipowhiteware no decoradas preponderam em ambas as colees com pequenas porcenta-gens de louas em transfer-printing e pintadas mo. A crescente disponibilidade deformas e tipos de louas de mesa no fim do sculo XIX diminui o nmero de diferenasobservadas entre coleo de louas de domiclios com condies financeiras similares.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1496

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • 97Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    A coleo de louas recuperadas na penso e nos quintais das habitaes popularesem Lowell reflete dois tipos de domiclios da classe trabalhadora do final do sculo XIXque estavam em circunstncias econmicas similares, mas com diferentes composiesdomiciliares. Padres de compra de louas refletem estmulos economia, ao mesmotempo em que oferecem os meios necessrios para o servio e consumo de alimentos.Os residentes das casas populares procuraram emular hbitos mesa da classe mdia pormeio da incluso de um nmero maior de peas, por indivduo, nos conjuntos de mesa,mesmo que eles no tivessem uma funo especfica. Isso sugere que, para o caso dashabitaes populares, a funo do recipiente era polivalente e que formas particularesserviam para funes que iam alm daquela para a qual elas tinham sido planejadas. Napenso, entretanto, o dono fornecia apenas o bsico para o servio e consumo de alimen-tos. As refeies completas eram servidas aos indivduos em um nico prato e compoucos acessrios (e.g., pratos de vegetais, pratos de po e pratos de salada). Portanto,enquanto o residente das habitaes populares procurava emular os principais rituais derefeio da classe mdia por meio da adaptao do seu limitado conjunto de loua comvistas a reproduzir o mais prximo possvel um servio de mesa de classe mdia, o donoda penso, preocupado em oferecer o servio bsico a seus hspedes, evitava tais refina-mentos no uso funcional das peas de loua.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1497

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica | Vol. 1 | No. 2 | Jul - Dez | 200798

    ARTEFATOS E VOZES ATIVAS: CULTURA MATERIAL COMO DISCURSO SOCIAL

    Um trabalho recente de outro arquelogo histrico nos fornece os meios para enten-der a natureza dessas diferenas e suas razes. Wall (1987) pde demonstrar atravs deanlises de sries de colees de loua de Nova Iorque dos sculos XVIII e XIX que aspeas de mesa bem refletem um novo conjunto de valores que emergiu assim que aurbanizao e a industrializao foram implantadas (ver tambm Mrozowski, 1988, queassocia os valores disseminados no sculo XIX no caso do desenvolvimento de cidadesamericanas do sculo XVIII). Amostras de loua do final do segundo quarto do sculoXIX tendem a refletir um conjunto de ideais que se desenvolveram mais ou menos comouma resposta s mutveis condies sociais trazidas pela industrializao e pela emergnciada classe mdia. Liderando esses valores, estava a noo de separao da casa e do local detrabalho, uma vez que a esfera da mulher passou a ser a domstica, e o trabalho apropriadopara ela o de cuidar do domiclio (mas no necessariamente engajando-se fisicamente notrabalho domstico). A noo de aspirar a refinamento e status de classe mdia atravs daadoo de padres da classe mdia como o entretenimento corts e apresentao social especialmente atravs do consumo de chs interessante porque acrescenta uma di-menso anlise da loua alm das consideraes econmicas. obvio que as louas eram,muitas vezes, tanto smbolos como objetos do dia-a-dia. Os arquelogos histricos estocrescentemente desejosos de interpretar suas colees de loua luz das funes mlti-plas que elas possuam com o intuito de colocar o seu uso em seu contexto culturalapropriado. Burley (1989) e Yentsch (neste volume) so bons exemplos de tais anlises.Tais estudos do foco mulher, revelando como, especialmente nos lares do sculo XIX,elas influenciavam a feio do domiclio. O exemplo do Forte Independence, em Boston,Massachusetts, deixa isso claro e oferece um insight para o caso de Lowell.

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1498

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • 99Laboratrio de Arqueologia | Fafich | UFMG

    MARY C. BEAUDRY | LAUREN J. COOK | STEPHEN A. MROZOWSKI

    Clements (1989) descobriu que diferenas crticas ocorreram entre louas e recipi-entes de vidro. No tanto nas colees dos oficiais versus na dos alistados, mais entre as dosoficiais casados e as dos solteiros. Os depsitos dos domiclios de oficiais casados tinham,de longe, a maior proporo de recipientes de servio de alimentos e entretenimento(e.g., louas de jantar finas em transfer-printing pearlware azul e branco ou porcelanas deCanto, tais como terrinas, travessas, pratos, tigelinhas para vegetais, peas de ch, etc.).Ambas as colees tinham recipientes de bebida steamware e tumblers. No entanto, osdepsitos dos quartis dos solteiros tinham, significantemente, mais recipientes relacio-nados ao consumo de lcool que o de ch ou caf, ou mesmo ao consumo de alimentos(provavelmente porque oficiais solteiros comiam no refeitrio). Em depsitos dos quar-tis dos oficiais casados, outros artefatos no relacionados alimentao, destacadamentebrinquedos, acentuam a imagem de que atividades familiares foram levadas a cabo nesseslocais. A presena de mulheres e crianas, portanto, teve um efeito inconfundvel nosregistros arqueolgicos. A influncia estabilizadora da mulher no foi perdida no exrci-to americano, o que encorajava seus oficiais a se casarem. Isso permitia a eles ter respeita-bilidade e estabilidade, algo que os militares valorizavam imensamente em seus primei-ros anos, quando eram confrontados com a oposio pblica em relao presena deum exrcito armado e com o medo especialmente nos principais centros urbanos dos possveis efeitos negativos que deveriam trazer grandes nmeros de homens inde-pendentes e de permanncia temporria para a comunidade.

    O exemplo do Forte Independence ganha vida quando lemos o lamento de ummdico no casado do forte, que se queixava da instabilidade de sua vida, assinalando avantagem que os seus superiores viam no casamento. Casamento, vida de casado e anecessidade de manter uma vida social de acordo com os valores da classe mdia teriamsido uma parte importante da vida cotidiana para os oficiais de um posto militar do incio dosculo XIX. Todavia, nem todos os membros da guarnio militar adeririam a tal viso. Emum posto militar altamente estratificado, est longe de ser surpreendente que se encon-trem diferenas hierrquicas reforadas materialmente. A solidariedade entre as categoriasera promovida atravs do uso da cultura material do mesmo modo em que foi usada deforma diferencial entre diferentes hierarquias. Alm do mais, muita da diferena materialpercebida arqueologicamente refletia o fato de que os oficiais casados mantinham moradi-as convencionais, enquanto os oficiais no casados e homens alistados no as mantinham.

    Parece provvel que as diferenas entre colees de louas das penses e habitaespopulares do engenho de Lowell Boott podem ser igualmente atribudas s diferenasentre arranjos domiciliares. Enquanto as mulheres estavam presentes e, talvez, fossemnumericamente mais expressivas que os homens em ambas as moradias, as mulherescasadas cujas famlias alugavam as casas populares em Boott podiam aspirar a uma vidafamiliar estvel e colocar em prtica valores ligados ideologia domstica do sculo XIXpor meio da estrutura de refeies e entretenimento na casa, especialmente durante oritual do ch. Enquanto muitos desses valores foram expressos na administrao profis-

    5VESTIGIOS-Dez2007-Beaudry-05.pmd 19/12/2007, 13:1499

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

    UsuarioHighlight

  • Rev