arte x filosofia

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Problema ARTE: o Ser Humano como criador O texto a seguir faz parte do encarte do CD “Com defeito de fabricação, do compositor TOM ZÉ (1998). Nele o artista discorre sobre o “defeito inato” da população humana”. “O Terceiro Mundo tem uma crescente população”. A maioria se transforma em uma espécie de “androide”, quase sempre analfabeto e com escassa especialização pera o trabalho. Isso acontece aqui nas favelas do Rio, São Paulo e do Nordeste do país. E em toda a periferia da civilização. Esses androides são mais baratos que o robô operário na Alemanha e no Japão. Mas revelam alguns “defeitos” inatos, como criar, pensar, dançar, sonhar; são defeitos muito “perigosos” para o Patrão Primeiro Mundo. Aos olhos dele, nós, quando praticamos essas coisas por aqui, somos “androides” com defeito de fabricação. Pensar sempre será uma afronta. Ter ideias, compor, por exemplo, é ousar. No umbral da História, o grande projeto de juntar fibras vegetais e criar arte de tecer foi uma grande ousadia. Pensar sempre será. Zé, Tom. Defeito de fabricação, In: Com defeito de fabricação (CD) LukaBop, 1998. Encarte Segundo o texto, criar, pensar, dançar, sonhar são “defeitos perigosos” Eles expressam aquilo que há mais de um humano no ser humano. Graças a esses “defeitos”, o ser humano deixa de ser androide que apenas produz para o mercado consumidor. A música “Defeito 6: Esteticar”, brinca com essa ideia.

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Page 1: Arte X Filosofia

Problema

ARTE: o Ser Humano como criadorO texto a seguir faz parte do encarte do CD “Com defeito de fabricação, do compositor TOM ZÉ (1998). Nele o artista discorre sobre o “defeito inato” da população humana”.

“O Terceiro Mundo tem uma crescente população”. A maioria se transforma em uma espécie de “androide”, quase sempre analfabeto e com escassa especialização pera o trabalho.

Isso acontece aqui nas favelas do Rio, São Paulo e do Nordeste do país. E em toda a periferia da civilização. Esses androides são mais baratos que o robô operário na Alemanha e no Japão. Mas revelam alguns “defeitos” inatos, como criar, pensar, dançar, sonhar; são defeitos muito “perigosos” para o Patrão Primeiro Mundo.

Aos olhos dele, nós, quando praticamos essas coisas por aqui, somos “androides” com defeito de fabricação. Pensar sempre será uma afronta.

Ter ideias, compor, por exemplo, é ousar. No umbral da História, o grande projeto de juntar fibras vegetais e criar arte de tecer foi uma grande ousadia. Pensar sempre será.

Zé, Tom. Defeito de fabricação, In: Com defeito de fabricação (CD) LukaBop, 1998. Encarte

Segundo o texto, criar, pensar, dançar, sonhar são “defeitos perigosos” Eles expressam aquilo que há mais de um humano no ser humano. Graças a esses “defeitos”, o ser humano deixa de ser androide que apenas produz para o mercado consumidor. A música “Defeito 6: Esteticar”, brinca com essa ideia.

Desde as primeiras civilizações humanas, a arte é valorizada como um meio de expressão do potencial criativo dos seres humanos.

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Em 1993, Tom Zé foi o primeiro e único músico brasileiro a apresentar-se no MoMa (Museu de Arte Moderna de Nova York), e o primeiro e único compositor da América Latina a apresentar-se no Walker Art Center, de Minneapolis, EUA.

Pense que eu sou um caboclo tolo boboca Um tipo de mico cabeça-oca Raquítico típico jeca-tatu Um mero número zero um Zé à esquerda Pateta patético lesma lerda Autômato pato panaca jacu 

Penso dispenso a mula da sua ótica Ora vá me lamber tradução inter-semiótica 

Se segura milord aí que o mulato baião (tá se blacktaiando) Smoka-se todo na estética do arrastão 

Ca esteti ca estetu Ca esteti ca estetu Ca esteti ca estetu Ca esteti ca estetu Ca estética do plágio-iê 

Pensa que eu sou um andróide candango doido Algum mamulengo molenga mongo Mero mameluco da cuca lelé 

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Trapo de tripa da tribo dos pele-e-osso Fiapo de carne farrapo grosso Da trupe da reles e rala ralé 

Arrastão dos baiões da roça. Espinha dorsal

A FILOSOFIA NA HISTORIA

APOLO E DIONISIO

Segundo a mitologia grega, Apolo era filho de Zeus e Leto, e irmão gêmeo de Ártemis (deusa da caça e da Lua). Representa beleza, a perfeição, a harmonia, o equilíbrio e a razão. Protege os marinheiros, os pastores, e os arqueiros, além de tocador de lira.

Dionísio era filho de Zeus e da princesa Sêmele. Representa os ciclos vitais, o vinho, as festas, a loucura. O culto prestado a Dionísio em Atenas foi à origem do teatro Grego.

Já em seu primeiro livro, o nascimento da tragédia, publicado em 1872, o filósofo Friedrich Nietzsche atribuiu à arte um papel central na cultura humana. Estudando a Antiguidade grega, Nietzsche afirmou que a criatividade e a beleza daquela civilização se deveram a sua capacidade de articular duas forças que em princípio são opostas. Denominou essas forças inspirado na mitologia grega. Chamou de apolíneo (relativo de Apolo) o princípio que representa a razão como beleza harmoniosa e comedida, organizada. E denominou dionisíaco (relacionada ao deus Dionísio) o princípio que representa embriaguez, o caos, a falta de medida, a paixão. Para Nietzsche, nenhuma arte pode ser puramente apolínea (isto é centrada na razão e na harmonia) nem puramente dionisíaca (isto é, centrada na desordem criativa e na embriaguez). A criação humana depende da articulação dos dois princípios, uma vez que dionisíaco nos dá o princípio criativo e o apolíneo nos dá a ordem e a harmonia necessárias para a produção de algo belo.

Para Nietzsche, é a arte – com suas forças de criação – que nos faz plenamente humanos, pois ela nos dá oportunidade de produzir nossa própria vida, construindo o que somos na medida em que vamos vivendo.

“Apenas os artistas”, especialmente os do teatro, dotaram os homens de olhos e ouvidos para ver e ouvir, com algum prazer, o que cada um é, o que cada um

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experimenta e o que quer apenas eles nos ensinaram a estimar o herói escondido em todos os seres cotidianos, e também a arte de olhar a si mesmo como herói, à distância e como que simplificado e transfigurado – a arte de se “pôr em cena” para si mesmo.

Nietzsche, F. A gana ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. P.106

A ARTE, PRODUÇÃO E INDÚSTRIA CULTURAL.

Analisando a arte e a cultura no sec. XX, os filósofos Adorno e Horkheimer criaram o conceito de “indústria cultural”, que apareceu pela primeira vez no livro Dialética do Esclarecimento, publicado em 1947. Antes deles, outro filósofo alemão, Walter Benjamin, havia publicado um ensaio sobre a questão da arte na sociedade industrial.

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Obra Boite-em-valise (em francês “caixa numa maleta”) feita pelo artista conceitual francês Marcel Duchamp, entre 1935 e 1941. A caixa traz cópias em miniatura de 69 obras do próprio artista, que mais tarde reproduziu edições de luxo dessa mesma obra.

O pensamento produzido pela escola de Frankfurt, em geral denominado “teoria crítica”, exerceu grande influência na Filosofia nas Ciências Sociais ao longo do século XX.

Para Valter Benjamin, a natureza da obra de arte transforma-se radicalmente com a invenção das técnicas de reprodução em meados do século XIX. Se antes uma pintura ou escultura eram objetos únicos, com a reprodução fotográfica elas passam a ser reproduzidas em massa, o que transforma a relação do público com a arte. Antes da invenção da fotografia, por exemplo, apenas quem fosse ao Museu do Louvre, em Paris, poderia conhecer a Modaliza, de Leonardo da Vinci. Com a reprodutibilidade técnica, sua imagem ganha uma circulação universal. Com isso, a arte deixa de ser acessível a poucos. E, apesar de a pintura nunca perder seu caráter original, sua autoridade é diminuída.

Influenciou profundamente as artes plásticas, contribuiu mais tarde e na criação do cinema.

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No caso da música, ela só estava acessível quando os músicos se reuniam para tocá-la. Com a industrialização, a invenção de técnicas e equipamentos de gravação permitiu música fosse gravada e que alguém que tenha em casa um aparelho de reprodução possa ouvi-la a qualquer momento sem precisar ir a uma sala de concerto.

Theodor Adorno (1903 – 1969), Marx Horkheimer (1895-1973) e Valter Benjamin (1892-1940).

Os três filósofos estiveram ligados aos Instituto de Pesquisa Social, na cidade alemã de Frankfurt. Mesmo com diferenças intelectuais formaram aquilo que se tornou a Escola de Frankfurt. Suas pesquisas foram influenciadas pelo pensamento de Karl Marx, Nietzsche e Freud. Alemães de origem judaica sofreram perseguições durante o período nazista e precisaram deixar o país. Adorno e Horkheimer exilaram-se nos EUA E RETORNARAM APÓS A SEGUNDA guerra mundial. Benjamin não teve a mesma sorte; quase capturados pelos nazistas ao tentar deixar a Europa, acabou se suicidando.

Theodor Adorno

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Marx Horkheimer

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Walter Benjamin

Para Benjamin possibilidade de reprodução contém um aspecto positivo, pois “democratiza” o acesso à arte, que deixa de ser um privilégio das elites. Embora a obra de arte perdesse seu caráter singular, de ser única, podia agora ser levada às massas.

Já Adorno e Horkheimer acentua o caráter problemático dessa democratização, exatamente por ela vir acompanhada de uma massificação. Eles afirmavam que a obra de arte reproduzida poderia ser transformada em apenas mais uma mercadoria pela lógica capitalista de produção e circulação. E, como mercadoria ela deixava de ser obra de arte. Surgia assim uma nova indústria, a Indústria Cultural” destinada a produzir objetos culturais para serem vendidos como mercadorias. O cinema se

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tornava uma mercadoria para a indústrias culturais (os filmes) e a música passada a ser produzida como lógica do mercado das gravadoras. Em lugar de democratizar a arte, como pensava Benjamin, levando-a a um número maior de pessoas, perdia-se a arte, que se transformava em apenas mais uma mercadoria.

O efeito desse processo é o que Adorno chamaria mais tarde de semicultura, uma cultura pela metade. Ouvimos as músicas que o mercado nos oferece, assistimos aos filmes que a indústria cultural nos oferece. Pensamos que escolhemos aquilo de que gostamos, mas escolhemos a partir das opções que a indústria cultural nos dá.

Atualizando esse debate, poderíamos questionar em que medida a internet, como meio de comunicação de massas e como arquivo digital de uma grande quantidade de informações e de produtos culturais, pode agir contra ou a favor da indústria cultural. Por outro lado, a tecnologia, hoje, permite que um músico tenha um estúdio em casa, grave as músicas que compõe e as divulgue nas redes mundiais, cobrando ou não por seu trabalho. A diversidade de criações a que temos acesso, portanto, nunca foi tão grande e o acesso a elas é muito mais direto. Nesse sentido, podemos pensar em como a internet podem ser, elas mesmas, um reforço da própria indústria cultural.

Arte e criação

Ao relacionar-se com o mundo, assim como qualquer pessoa, o artista experimenta sensações boas ou ruins, que afetam, o mobilizam, deixa neles alguma marca. Mas diferentemente daqueles que não artistas, eles são capazes de transformar percepções e os sentimentos em algo. – uma música, uma pintura, uma escultura, um poema ou outra obra de arte – que condensa esse estado. Outra pessoa quando entra em contato com o objeto artístico, sente-se afetada por ele, com sensações boas, não tão boas ou mesmo ruins. Por essa razão, Gilles Deleuze e Félix Guattari, quando falam da potência criativa da arte, dizem que aquilo que os artistas cria a obra de arte, é um “bloco de sensações”. A obra traz em si sensações, e quem usufrui a obra não são necessariamente os mesmos do artista. Cada um tem suas próprias percepções do artista, sendo por isso capaz de provocar novas sensações nas pessoas que entram em contato com a obra. Frente ao trabalho de Jackson Pollack (1912-1956), por exemplo, que pintou de forma intensa, jogando tinta sobre tela e formando composição bastante inusitadas, algumas veem não mais do que borrões de tinta, outras, emocionam-se profundamente.

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As três potências do PensamentoAfinal, por que exatamente a filosofia, como já estudamos, mantém com a mitologia, a religião e o senso comum relações muitas vezes conflituosas, enquanto seus vínculos com a arte e a ciência são mais estreitos?

Vamos pensar: uma obra de arte, seja ela qual for, é um produto de uma experiência que o artista vivenciou e tem potencial de despertar em outras pessoas a sensibilidade e a curiosidade, instigando-as a pensar. Da mesma forma, uma teoria cientifica é também um produto do pensamente de um cientista e estimula outras pessoas a refletir. A filosofia igualmente consiste em produzir conceitos com base em experiências do pensamente e gerar, assim, outros pensamentos.

Portanto, com as formas de enfrentar o mundo que não convidam nem incitam a um pensamento constante, a filosofia não pode interagir com a mesma intensidade. Esse é o caso, como vimos da mitologia, da religião e do senso comum. Com aquelas que estão o tempo todo nos fazendo pensar – a ciência e a arte – a filosofia dialoga e interfere nelas, da mesma forma que recebe suas influências e interferências.

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Enquanto a ciência produz funções, a arte produz sensações e a filosofia produz conceitos, as três potências do pensamento completam na invenção de novas formas de ver o mundo e a vida.