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ARTE E ARQUITECTURA: FRONTEIRAS E SITUAÇÕES DE CONTACTO NA OBRA DE FERNANDA FRAGATEIRO Maria Azevedo Mendes de Sousa Eiró Dissertação para a obtenção do Grau de Mestre em: Arquitectura Júri Presidente: Prof.ª Doutora Teresa Frederica Tojal de Valsassina Heitor Orientador: Prof.ª Doutora Helena Silva Barranha Gomes Co-Orientador: Prof. Doutor Luís Manuel Morgado Santiago Baptista Vogais: Prof.ª Bárbara dos Santos Coutinho Prof. Ricardo Alberto Bagão Quininha Bak Gordon Outubro 2012

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ARTE E ARQUITECTURA:

FRONTEIRAS E SITUAÇÕES DE CONTACTO

NA OBRA DE FERNANDA FRAGATEIRO

Maria Azevedo Mendes de Sousa Eiró

Dissertação para a obtenção do Grau de Mestre em:

Arquitectura

Júri

Presidente: Prof.ª Doutora Teresa Frederica Tojal de Valsassina Heitor

Orientador: Prof.ª Doutora Helena Silva Barranha Gomes

Co-Orientador: Prof. Doutor Luís Manuel Morgado Santiago Baptista

Vogais: Prof.ª Bárbara dos Santos Coutinho

Prof. Ricardo Alberto Bagão Quininha Bak Gordon

Outubro 2012

i

RESUMO:

A afinidade entre a arte e a arquitectura não é um tema novo. A relação entre ambas as

disciplinas foi, no entanto, adoptando diferentes modelos, sentidos de influência e estruturas

hierárquicas para as suas intercepções, subsistindo assim, ao longo dos séculos.

As revoluções artísticas dos anos 20 e dos anos 60, que culminam na sua vertente pública

contemporânea, aproximam a arte da arquitectura e colocam o artista numa posição, sem

precedente, de contiguidade com o arquitecto em relação à possibilidade de actuação no meio

urbano. Possibilitando assim, uma alteração definitiva na estrutura hierárquica, à qual a

inserção de obras de arte em projectos arquitectónicos obedeceu até ao final do séc. XX.

Este encontro no espaço público dará origem a novos términos para a relação entre arte e

arquitectura que quebram todos os anteriores e constituem a base do modelo colaborativo, que

se pretende definir com a maior profundidade e exactidão possíveis.

A presente investigação apoia-se na diversidade da obra e na multiplicidade de plataformas de

actuação utilizadas por Fernanda Fragateiro, para dar resposta a questões fundamentais no

entendimento dos novos parâmetros de união e comunhão entre arte e arquitectura. A escolha

da artista tem por base a visibilidade e importância das suas colaborações no panorama

nacional e a sua vasta obra individual de enorme relevância para o estudo das novas tipologias

artísticas, por vezes, indistintas da arquitectura.

Palavras-chave da dissertação: Colaborações, Arte Pública, Arquitectura, Fernanda Fragateiro.

ii

ABSTRACT:

The affinity between art and architecture is not new. Their relationship, however, has adopted

different models, types of influence and hierarchic structures that convey each other’s

necessities and, thus subsisting throughout the centuries.

The artistic revolutions of the 20s and 60s that culminate in art’s contemporary public practice,

approximates art to architecture and calls artists into an unprecedented position of contiguity

with architects, where both can think and design the urban environment. Resulting in the

possibility of constructing a new hierarchic form, that finally, breaks architecture dominance over

all artistic and technical fields.

This encounter in the public sphere will, not only, give way to new terms for the relationship

between art and architecture, but also brake every previous ones and, therefore creating a new

collaborative model that we will try to define with the greatest exactitude.

The present investigation takes base in the diversity of the work and multiplicity of platforms

used by the artist Fernanda Fragateiro, to provide answers to fundamental questions, which in

the long term, will provide the understanding of the new parameters that define this form of

relation between art and architecture. The artist’s choice emerges from relevance of the

individual works displayed and their indistinctiveness from architecture, as well as, the

importance and visibility that her collaborations with architects, present in the national context.

Keywords: Collaboration, Public Art, Architecture, Fernanda Fragateiro.

iii

AGRADECIMENTOS:

Á Professora Helena Barranha, o mais sentido obrigado, pela paciência, disponibilidade e

persistência no acompanhamento e orientação da presente dissertação.

Ao Arq. Luís Santiago Baptista, por ter aceite embarcar nesta ‘aventura’, por ter sido uma

constante fonte de positivismo e encorajamento, e pela sua contribuição no desenvolvimento

temático deste trabalho.

Aos arquitectos, João Maria Ventura Trindade, João Gomes da Silva e José Veludo, pela

abertura e disponibilidade demonstradas para a realização das entrevistas.

À artista Fernanda Fragateiro, pelo interesse demonstrado pelo trabalho e também pela

disponibilidade com que me recebeu na realização da entrevista.

Aos meus pais, por todo o apoio, compreensão e incentivos vários dados ao longo da

elaboração da presente dissertação, e aos meus irmãos, pelas críticas, olhares condenadores

e pressão exercida para que a terminasse.

Aos meus avós, mas especialmente ao meu avô, Fernando Azevedo Mendes, pela revisão de

texto, que não duvido penosa e confusa para um advogado, mas essencial para o resultado

final atingido.

Ao Manel, sempre paciente e tolerante perante as minhas inseguranças, e um enorme apoio

durante este longo processo.

iv

v

ÍNDICE GERAL

RESUMO: i

ABSTRACT: ii

AGRADECIMENTOS: iii

ÍNDICE: v

ÍNDICE DE FIGURAS: vii

FERNANDA FRAGATEIRO

INTRODUÇÃO: 1

CONTEXTUALIZAÇÃO: 9

I. PASSAGEM PARA O ESPAÇO REAL

1.1. do espaço virtual para o espaço real. 11

1.2. o minimalismo e o espaço na arte. 16

1.3. Fernanda Fragateiro: Exposição Invisibilidade, Galeria Leme, 2009. 24

II. DIMENSÃO DA CORPORALIDADE

2.1. o corpo, a escala e o lugar. 27

2.2. Fernanda Fragateiro: Caixa para Guardar o Vazio, 2005. 31

III. VERTENTE SOCIAL DA ESPACIALIDADE

3.1. quando a arte sai à rua. 34

3.2. Fernanda Fragateiro: O Paraíso é um Lugar Onde Nada Nunca Acontece,

Lisboa Capital do Nada, 2001. 43

IV. A “OBRA DE ARTE TOTAL”

4.1. a ‘Gesamtkunstwerk’ e a colaboração. 47

4.2. Fernanda Fragateiro: ‘Através da Paisagem’, EBG, Mourão, 2002-2008. 59

V. PERCENT FOR ART

5.1. a origem do modelo e a sua evolução. 65

5.2. arte no espaço publico VS arte na arquitectura. 69

5.3. algumas situações e casos de sucesso. 72

5.4. Fernanda Fragateiro: ‘Jardim das Ondas’, Expo’98, Lisboa, 1998. 75

vi

VI. NOVAS DINÂMICAS COLABORATIVAS

6.1. interdisciplinaridade como método de acção. 84

6.2. problemática dos novos métodos colaborativos. 88

6.3. Design Urbano. 93

6.4. Fernanda Fragateiro: ‘Jardim nas Margens’, Cacém, 2002-2008. 96

VII CONCLUSÕES: 105

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 109

ANEXOS:

ANEXO I. Entrevista realizada a Fernanda Fragateiro. 115

ANEXO II. Entrevista realizada ao Arq. João Maria Ventura Trindade. 127

ANEXO III. Entrevista realizada ao Arq. João Gomes da Silva. 136

ANEXO IV. Entrevista realizada ao Arq. José Veludo. 143

vii

ÍNDICE DE IMAGENS:

Fig. 1. Expanded Field - diagramas I, II e III. 9

Rosalind Krauss - "Sculpture in the Expanded Field." October, Vol. 8, 1979, pp. 36-38.

Fig. 2. Interpretação em diagrama da teoria de David Summers. 12

Criado pela autora.

Fig. 3. Tatlin – ‘Selection of Materials’, 1914. 13

http://www.russianavantgard.com/Artists/tatlin/tatlin_assortment_materials_a.html

Fig. 4. Tatlin – ‘Corner Counter-relief’, 1914. 13

www.museothyssen.org/microsites/exposiciones/2006/Vanguardias/museo.html

Fig. 5. Tatlin - ‘Complex Corner-relief’, 1915. 13

http://artntheory.blogspot.com/2011/05/el-guitare.html

Fig. 6. Picasso – ‘Guitarra’, 1914. 13

http://artntheory.blogspot.com/2011/05/el-guitare.html

Fig. 7. El Lissitzky – ‘Prounenraum’, 1923 (reconstrução de 1971). 14

http://www.tate.org.uk/research/tateresearch/tatepapers/07autumn/berndes.htm

Fig. 8. Piet Mondrian – ‘Salon of Madame B., 1923. 14

Harry Holtzman – Mondrian: The Process Works. New York: Pace Editions, 1970, capa.

Fig. 9. A. Rodchenko – ‘Desenho para Quiosque’, 1919. 15

http://coisasdaarquitetura.wordpress.com/2010/12/04/arquitetura-desconstrutivista/

Fig. 10. A. Rodchenko – ‘Desenho para Estação de Rádio’, 1920. 15

http://coisasdaarquitetura.wordpress.com/2010/12/04/arquitetura-desconstrutivista/

Fig. 11. Vladimir Tatlin – ‘Projecto para o Monumento da 3ª Internacional’, 1917. 15

http://arkinetblog.wordpress.com/2010/03/11/

Fig. 12. Maqueta realizada para apresentação em Petrograd e Moscovo, 1920. 15

http://www.cabinetmagazine.org/issues/28/boym2.php

Fig. 13. Monumento da 3º Internacional, Paris, 1925. 15

http://www.cabinetmagazine.org/issues/28/boym2.php

Fig. 14. Morris – ‘Sem título’, 1965. 18

http://www.architetturadipietra.it/wp/?p=2010

Fig. 15. Morris – Vista da Geral da Green Gallery, N.Y., 1964. 18

http://www.architetturadipietra.it/wp/?p=2010

Fig. 16. Morris – ‘Threadwaste’, 1968. 18

http://bestamericanart.blogspot.com/2011/06/minimalism-specific-objects-and.html

Fig. 17. Carl Andre – ‘Equivalent VIII’, 1966. 18

http://www.tate.org.uk/servlet/ViewWork?workid=508&searchid=8201&tabview=work

Fig. 18. Carl Andre – ‘5x10 Altstadt Rectangle’, 1967. 18

http://www.guggenheim.org/new-york/collections/collection-online/show-full/piece/

Fig. 19. Carl Andre – ‘Fall’, 1968. 18

http://www.guggenheim.org/new-york/collections/collection-online/show-full/piece/

Fig. 20. Judd - ‘Untitled’, Solomon R. Guggenheim Museum, N.Y., 1971. 19

http://glasstire.com/2003/02/02/donald-judd-the-early-work-1956-1968/

viii

Fig. 21. Judd - ‘Untitled’, Moderna Musset, Stockholm, 1965. 19

http://www.walkerart.org/archive/C/B37399294D4A64CD616C.htm

Fig. 22. Judd - ‘Untitled’, Gian Enzo Seprone Gallery, N.Y., 1974. 19

http://www.guggenheim.org/new-york/collections/collection-online

Fig. 23. Judd - ‘Untitled’, Judd Foundation Archives, 1966. 19

http://artsearch.nga.gov.au/Detail.cfm?IRN=14962&PICTAUS=True

Fig. 24. Judd – ‘Untitled’, MOMA, N.Y., 1967. 19

James Meyer – Minimalism. London: Phaidon Press Limited, 2010, p. 89.

Fig. 25. Judd - ‘Untitled’, T. B. Walker Foundation, 1971. 19

http://www.moma.org/collection

Fig. 26. Chinati Foundation, Marfa, Texas 21

http://www.flickr.com/photos/shane_bzdok/6307407127/lightbox/

Fig. 27. Donald Judd - 15 ‘Works in Concrete’, 1980-84. 21

http://www.apartmenttherapy.com/escape-to-marfa-29618

Fig. 28. Detalhe de15 Concrete Works. 21

http://www.apartmenttherapy.com/donald-judds-minimal-style-fur-111723

Fig. 29. Pormenor desenhado por Donald Judd. 21

http://articles.sfgate.com/2005-11-20/living/

Fig. 30. Donald Judd– ‘Utitled’, 1976. 21

http://www.chinati.org/visit/collection/juddalummore.php

Fig. 31. Donald Judd - 100 ‘Untitled Works in Mill Aluminum’,1982-1986. 21

http://www.diaart.org/exhibitions/main/42

Fig. 32. Serra – ‘Spalshing’, 1968 no Leo Castelli Warehouse, N. Y. 22

http://sites.duke.edu/artsvis54_01_f2010/2010/11/05/process-art/

Fig. 33. Serra – ‘Gutter Corner Splash: Night Shift’, 1969 no Jasper Johns' Studio. 22

http://www.tate.org.uk/research/tateresearch/tatepapers/07spring/saletnik.htm

Fig. 34. Idem no SFMoMA, San Francisco, 1995. 22

http://www.flickriver.com/photos/tags/ernstfuchs/

Fig. 35. Mel Bochner - ‘Mesurments’, 1969. 23

http://sunkyungoh.wordpress.com/2010/12/27/mel-bochner/

Fig. 36. Detalhe de ‘Mesurments’, 1969. 23

http://radicalart.info/concept/tautology/index.html

Fig. 37. Sol LeWitt - Detalhe de ‘Drawing Series—Composite, Part #1–24, B’, 1969. 23

http://www.diaart.org/img/press/_l/LeWitt-wall-drawings_l.jpg

Fig. 38. Lawrence Weiner - Série 36" x 36", Kunsthalle Bern, 1969. 23

http://www.artnet.com/magazineus/news/ntm/ntm4-1-08.asp

Fig. 39. Idem. 23

http://radicalart.info/concept/weiner/

Fig. 40. Gordon Matta-Clark – ‘Conical Intersect’, 1975. 23

http://www.e-flux.com/announcements/gordon-matta-clark/

Fig. 41. Gordon Matta-Clark – ‘Splitting’, 1974. 23

www.theartnewspaper.com/articles/Long-loan-makes-Barcelona-a-MattaClark-centre/

ix

Fig. 42. Fernanda Fragateiro - ‘Gavetas Duplas’, 2002. 26

http://www.galerialeme.com/exposicoes_textos.php?lang=ing&id=134

Fig. 43. Fernanda Fragateiro - 'Pequenas Transgressões num Edifício' #2, 2008. 26

http://www.galerialeme.com/exposicoes_textos.php?lang=ing&id=134

Fig. 44. Fernanda Fragateiro - ‘Caixa (desmontagem)’ #6, 2009. 26

http://www.galerialeme.com/exposicoes_textos.php?lang=ing&id=134

Fig. 45. Fernanda Fragateiro - ‘Expectativa de uma Paisagem de Acontecimentos’ #4, 2009. 26

http://www.galerialeme.com/exposicoes_textos.php?lang=ing&id=134

Fig. 46. Fernanda Fragateiro – Vista geral da Exposição. 26

http://www.galerialeme.com/exposicoes_textos.php?lang=ing&id=134

Fig. 47. Robert Morris - 'Bodyspacemotionthings', 1971. 28

http://www.guardian.co.uk/artanddesign/gallery/2009/apr/06/

Fig. 48. 'Bodyspacemotionthings', 1971 de Robert Morris, Tate Modern, Londres, 2009. 28

http://www.guardian.co.uk/artanddesign/gallery/2009/apr/06/

Fig. 49. 'Bodyspacemotionthings', no Museu de Serralves, Porto, 2011. 28

http://www.serralves.pt/actividade/detalhe.php?id=1992

Fig. 50. Vito Acconci - 'Instant House' da série 'Self-erecting architecture', 1980. 28

http://web.mit.edu/newsoffice/2005/techtalk50-3.pdf

Fig. 51. Fernanda Fragateiro - Caixa para Guardar o Vazio: Maqueta, 2005. 33

Fernanda Fragateiro - Caixa para guardar o Vazio. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 38.

Fig. 52. Intervenção coreográfica dirigida por Aldara Bizarro, 2005. 33

Idem, pp. 14-17.

Fig. 53. Fernanda Fragateiro – ‘Caixa para Guardar o Vazio’, 2005. 33

Idem, pp. 56-59.

Fig. 54. Daniel Buren - 'Sandwich Men', Paris, 1968. 34

http://catalogue.danielburen.com/fr/expositions/

Fig. 55. Daniel Buren - 'Peinture-Sculpture', Guggenheim N.Y., 1971. 35

http://www.artnet.com/magazine/news/ntm5/ntm3-1-05.asp

Fig. 56. Daniel Buren - 'Within and Beyond the Frame', John Weber Gallery, N.Y., 1973. 35

http://catalogue.danielburen.com/fr/expositions/

Fig. 57. Rachel Whiteread - Parts 1-4 de House Study (Grove Road) 1992. 36

http://www.tate.org.uk/tateetc/issue20/rachelwhiteread.htm

Fig. 58. Rachel Whiteread - 'House', 1993 (pré intervenção, vista frontal e lateral). 36

http://www.michaelhoppengallery.com

Fig. 59. Serra - 'Tilted Arc', 1981. 37

Harriet F. Senie. – The Tilted Arc Controversy: Dangerous Precedent?. Minnesota:

University of Minnesota Press, 2001, p. 13.

Fig. 60. Richard Serra com 'Tilted Arc'. 37

http://www.lightstalkers.org/images/show/1257411

Fig. 61. Poster para fundo de defesa da obra de Serra, 1988. 37

http://www.globalgallery.com/enlarge/89858/

x

Fig. 62. Destruição do 'Tilted Arc', 1989 37

http://johnpowers.us/indicatorspaces/

Fig. 63. Martha Schwartz - Federal Plaza, N.Y., 1997 37

http://www.marthaschwartz.com/projects/javits_06.html

Fig. 64. Projecto da MVVA para Jacob Javits Plaza, N.Y., 2009-11 38

http://www.mvvainc.com/project.php?id=15

Fig. 65. Tim Rollins e o grupo K.O.S., 1987 39

Ian Berry - Tim Rollins and K.O.S.: A History. Massachusetts: The MIT Press, 2009, capa.

Fig. 66. Roberto Ramirez do gupo K.O.S), 1982. 39

Ian Berry - Tim Rollins and K.O.S.: A History. Massachusetts: The MIT Press, 2009, p. 16.

Fig. 67. Tim Rollins + K.O.S. - 'Amerika-For The People of Bathgate', 1988. 39

http://www.lehman.edu/vpadvance/artgallery/publicart/artists/rollins.html

Fig. 68. Tim Rollins + K.O.S. - 'Untitled', 1982-83. 39

Ian Berry - Tim Rollins and K.O.S.: A History. Massachusetts: The MIT Press, 2009, p. 17.

Fig. 69. Peggy Diggs - 'Faces', 2008. 39

http://web.williams.edu/humanities/pdiggs/projects0.html#

Fig. 70. Daniel J. Martinez - ‘Consequences of a Gesture’, 1993. 41

KWON, Miwon - One Place After Another. Massachusets: The MIT Press, 2002, p.129.

Fig. 71. Iñigo Manglano-Ovalle - 'Tele-Vecindario', 1993. 42

Idem, p. 133.

Fig. 72. Haha – ‘Flood’, 1992-95 42

http://www.hahahaha.org/projFlood.html

Fig. 73. Urbanização 'Pantera Cor-de-Rosa' e Praça Raúl Lino pré-intervenção. 44

Fundação Caloust Gulbenkian - Lisboa Capital do Nada - Marvila 2001: criar, debater,

intervir no espaço público. Marvila: Extramuros, 2002, pp. 188-191

Fig. 74. Reuniões realizadas por Fernanda Fragateiro com os habitantes do Bairro. 45

Idem, pp. 192-193.

Fig. 75. Diário gráfico utilizado por Fernanda Fragateiro em Lisboa Capital do Nada. 46

Idem, pp. 196-197.

Fig. 76. Praça Raúl Lino pós intervenção de Fernanda Fragateiro, 2002. 46

Idem, p. 194.

Fig. 77. Mies van der Rohe - Pavilhão de Barcelona, 1929. 50

http://www.miesbcn.com/

Fig. 78. Georg Kolbe – ‘Alba’, Pavilhão de Barcelona, 1929. 50

http://www.miesbcn.com/

Fig. 79. Cartaz da Exposição This is Tomorow, 1956. 52

http://www.thisistomorrow.info/default.aspx?webPageId=1&pageNumber=36

Fig. 80. This is Tomorow - The Independent Group. 52

http://www.thisistomorrow.info/default.aspx?webPageId=1&catId=175&pageNumber=8

Fig. 81. Gerrit Rietveld - Casa Schoder, 1923-24. 53

William J. R. Curtis – Modern Architecture, since 1900. 3ª Ed. London: Phaidon Press

Limited, 1996. p. 157

xi

Fig. 82. Theo van Doesburg - Maison d’Artiste, 1923. 53

Germano Celant – Architecture & Arts 1900/2004. 1ª Ed. Torino: Skira, 2004, p, 212.

Fig. 83. Theo van Doesburg e van Eesteren - Maison Particulière, 1923. 53

Alan Colquhoun – Modern Architecture. 1ª Ed. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 112.

Fig. 84. Le Corbusier – Catedral de Notre Dame du Haut, Ronchamp, França, 1954. 54

www.archdaily.com/84988/ad-classics-ronchamp-le-corbusier/

Fig. 85. Frank Gehry – Camp Good Times, 1984-1985. 57

COBB, Henry N. – La Arquitectura da Frank Gehry. Barcelona: Gustavo Gili S.A., 1988.

Fig. 86. Herzog & de Meuron – Roche Pharma 92, Basileia, 1993-2000. 57

El Croquis, nº 109/110, Madrid: El Croquis edit., 2003. pp. 24-66

Fig. 87. Rémy Zaugg – Intervenção no edifício Roche Pharma 92,1997-2000. 58

El Croquis, nº 109/110, Madrid: El Croquis edit., 2003. pp. 24-66

Fig. 88. Desenhos do arquitecto e maquete de Fernanda Fragateiro. 60

CEAI – CEAI @ EBG: Ventura Trindade Arquitectos. Matosinhos: DARCO, 2010.

Fig. 89. Estação Biológica do Garducho, Mourão, 2002-2008. 61

CEAI – CEAI @ EBG: Ventura Trindade Arquitectos. Matosinhos: DARCO, 2010.

Fig. 90. Vista geral, imagens do exterior e interior da Estação Biológica do Garducho. 62

Mourão, 2002-2008.

CEAI – CEAI @ EBG: Ventura Trindade Arquitectos. Matosinhos: DARCO, 2010

Fig. 91. Intervenções de Fernanda Fragateiro na Estação Biológica do Garducho. 63

CEAI – CEAI @ EBG: Ventura Trindade Arquitectos. Matosinhos: DARCO, 2010.

Fig. 92. Alexander Calder - Flamingo, Chicago, 1974. 67

Barbaralee Diamonstein - Collaboration: Artists & Architects. New York:

Whitney Library of Design, 1981, p. 80.

Fig. 93. Pablo Picasso - Escultura para o Chicago Civic Center, Illinois, 1967. 67

Idem, p. 67.

Fig. 94. Jean Dubuffet - Group of Trees, Chase Manhattan Plaza, NY, 1972. 67

Idem, p. 71.

Fig. 95. Obras na Subestação Elétrica Viewland/Hoffman, da Hobbs/Fukui Associates,1979. 73

http://sirisartinventories.si.edu/ipac20/

Fig. 96. Cesar Pelli – Battery Park City Plaza, N.Y., 1982-1989. 74

http://www.mpfp.com/projects/urban_spaces/battery_park_city/

Fig. 97. Sir. Joseph Paxton - Palácio de Cristal, Londres, 1851. 76

http://architeoriahistoriaaa.blogspot.com/p/andando-por-ai.html

Fig. 98. Gustave Eiffel - Torre Eiffel, Paris, 1889. 76

http://thiagof-amorim.blogspot.com/2010/05/torre-eiffel.html

Fig. 99. André Waterkeyn - Atomiun, Bruxelas, 1958. 76

http://de.wikipedia.org/wiki/Datei:Atomium_WA_1958.jpg

Fig. 100. Marcos Pantaleón - Ponte da Barqueta, Sevilha, 1989. 76

http://www.flickriver.com/photos/harry_nl/3291479384/

Fig. 101. Maquete em gesso realizada por Fernanda Fragateiro. 82

António de Campos Rosado - Co-laborações: Arquitectos/Artistas. Lisboa: Parque Expo'98,

2000, p. 117.

xii

Fig. 102. Jardim das Ondas - Planta de modelação e Corte transversal do terreno. 82

Idem, p. 116.

Fig. 103. Jardim das Ondas - Imagem geral da construção/modelação do terreno. 82

Idem, pp. 108-109.

Fig. 104. Jardim das Ondas - Revestimento, forma e apropriação do espaço. 83

Idem, pp. 112-113.

Fig. 105. Jardim das Ondas, vista Este. 83

http://europaconcorsi.com/projects/143650-Jardim-das-Ondas

Fig. 106. Jardim das Ondas, vista Sul 83

http://gracieth-sales.eujafui.com.br/foto/44359/#lp

Fig. 107. Jardim das Ondas, vista Norte. 83

http://vasverde.blogspot.com/

Fig. 108. Risco - Plano de Promenor do Cacém: planta de encarnados e amarelos. 98

http://www.risco.org/pt/02_04_cacem.html

Fig. 109. Esboço realizado pelo atelier RISCO para o P.P. do Cacém. 98

http://www.risco.org/pt/02_04_cacem.html

Fig. 110 Imagens dos diferentes espaços e atravessamentos do Parque Linear. 100

Imagens da autora.

Fig. 111. NPK - Parque Linear da Ribeira das Jardas: Plano geral. 101

http://idd.fba.up.pt/roadtowonderland/

Fig. 112. Zona de intervenção da obra de Fernanda Fragateiro no Cacém. 101

http://www.risco.org/pt/02_04_cacem.html

Fig. 113. Maquete de estudo da obra Jardim nas Margens feita em barro. 102

Imagens retiradas do filme Lugares Perfeitos, 2003 do realizador Luís Alves Matos.

Fig. 114. Maquete final da obra Jardim nas Margens realizada em gesso. 102

Junho das Artes – Óbidos Arte Contemporânea: JÁ 10. Óbidos: C.M., D.L., 2010, p. 29.

Fig. 115. Fernanda Fragateiro - Jardim nas Margens: Imagem geral. 103

http://www.risco.org/pt/02_04_cacem.html

Fig. 116. Fernanda Fragateiro - Jardim nas Margens: Pormenores. 104

Imagens da autora.

BIOGRAFIA DE FERNANDA FRAGATEIRO:

Fernanda Fragateiro nasceu no Montijo em 1962. Estudou na Escola Superior de Belas Arte e

no Ar.Co. onde ingressou em cursos de ilustração e escultura. Nos anos 80 passou por

Chicago, interessando-se pela “Arte Povera“ e pelo processo artístico enquanto laboratório e

processo. Foi ainda nos Estados Unidos que ficou a conhecer as obras de Donald Judd, Carl

André, Gordon Matta-Clark, Vito Acconti, Mary Miss, Dan Graham, Joseph Beuys, Richard

Serra, Agnes Martin, Lygia Clark e a do arquitecto Mies van der Rohe, o que foi determinante

para a sua formação. Em meados dos anos 80 começa a expor em Lisboa, cidade onde vide e

trabalha. O seu trabalho de características multifacetadas tem-se revelado em diversos

projectos de instalação, cenografia, ilustração e escultura, alguns dos quais resultaram de

colaborações com outros artistas plásticos, arquitectos, arquitectos paisagistas e performers. A

sua obra está representada em diversas colecções públicas e privadas, entre as quais o Museu

de Arte Contemporânea de Serralves e o Museu Nacional Centro Reina Sofía.

1

INTRODUÇÃO:

JUSTIFICAÇÃO DO TEMA:

“A qualidade arquitectónica (...) não significa aparecer nos guias arquitectónicos, na história da

arquitectura ou ser publicado. Qualidade arquitectónica só pode significar que sou tocado por

uma obra.” 1

A presente dissertação foi realizada no âmbito do Mestrado Integrado em Arquitectura, do

Instituto Superior Técnico. O tema surgiu da leitura do livro de Peter Zumthor, "Atmospheres",

onde o arquitecto fala da importância da sua obra transmitir algo mais, algo para além do

desempenho da sua função, algo especial que seja sentido por qualquer utilizador, através dos

materiais e do desenho do espaço, e que introduza uma nova atmosfera, um ambiente que

transforme quem entra, que marque quem o sinta. Numa abordagem conscientemente distinta,

mas que serviu, como contraponto, surge “Delirious New York” de Rem Koolhaas, como

proposta visionária, mas ainda representativa de uma época onde é notória a existência de

uma crescente contradição entre a instabilidade da metrópole e a perenidade da arquitectura.

Numa fase inicial da presente dissertação, esta dualidade apontou para uma valorização da

aproximação da arquitectura à arte, proposta por Zumthor.

A cidade está cada vez mais rápida, mais instável, mais impessoal, mais caótica; como futura

arquitecta, os meus ideais vão de encontro a uma arquitectura que volte a olhar para o Homem

e que, variando nas suas formas, seja vivida e experimentada como uma obra de arte

contemporânea, tal como afirmou Le Corbusier:

“You employ stone, wood and concrete, and with these materials you build houses and palaces;

that is construction. Ingenuity at work. But suddenly you touch my heart, and do me good. I am

happy and I say: ‘This is beautiful’. That is architecture. Art enters in.” 2

Embora não seja consensual entre muitos autores, a arquitectura trabalha numa contínua

irresolução, num dilema constante entre prática utilitária e disciplina criativa, entre a técnica e a

estética; na citação acima, Le Corbusier situa-a num espaço intermédio entre o que considera

construção e o que considera arte. Deste modo, pretende-se explorar a forma como a

arquitectura atinge, ou pode atingir, o seu exponente máximo quando toca os limites da arte,

quando transmite emoção, quando convoca uma relação ou se transforma frente a um

observador, dando espaço a um ambiente para ser experimentado e não apenas utilizado,

destacando-se a importância deste tipo de visão arquitectónica na sociedade contemporânea.

1 Peter Zumthor – Atmospheres. Amadora: Editorial Gustavo Gili, SA, 2005, p. 11.

2 Le Corbusier – Towards a New Architecture. 13ª Edição. London: Architectural Press, 1989, p.153.

2

A constatação de que alguns dos arquitectos de referência apresentam uma enorme afinidade

com a arte, que varia entre os que se consideram também artistas ou à utilização da arte como

laboratório criativo, os que integram obras de arte para complemento do projecto e finalmente,

aos que efectivamente colaboram e envolvem artistas do início até ao final da construção do

projecto. Esta última via, embora de difícil materialização, produz, os resultados mais

completos e fascinantes e é nesta mesma interacção, entre artistas e arquitectos, numa

relação que representa a contemporaneidade, tanto das novas práticas arquitectónicas como

das artísticas, que se centrará a presente dissertação.

O conceito de colaboração suscitado a discussão da relação entre a arte e a arquitectura, nos

últimos 30 anos. A actualidade do tema e sua importância para o futuro de ambas as áreas é

visível nas diversas exposições realizadas sobre o tema. No contexto nacional realizaram-se,

por exemplo, em 2000, a exposição “Co-laborações: Arquitectos/Artistas”, comissariada por

Elba Benitez e Luís Enguita, na qual é exposta a colaboração de Fernanda Fragateiro com o

arquitecto paisagista João Gomes da Silva para o Jardim das Ondas e, em 2012, no Museu

Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, em Lisboa, inserida no programa da

Trienal de Lisboa, realizou-se a exposição “Falemos de Casas: Quando a arte fala

arquitectura", comissariada por Delfim Sardo.

A nível internacional, para além das exposições, referem-se os colóquios realizados em 1997,

na Royal Academy of Arts, em Londres, com o tema “Art and Architecture”, que tiveram como

pontos de discussão temáticas imprescindíveis ao entendimento deste conceito, como:

“Transgressions: Crossing the lines of Art and Architecture”, “Frames of Mind” e “Fused”,

discutidas em mesas redondas por artistas, arquitectos e teóricos. Importa ainda referir o ciclo

de seminários realizados na 27ª Bienal de S. Paulo, em 2006, sobre o tema “Como viver junto”

e o tema da 12ª Exposição Internacional de Arquitectura, na Bienal de Veneza, em 2010:

“People meet architecture”.

Apoiados neste interesse renovado pelas colaborações e possibilidades da relação entre a arte

e arquitectura, têm também surgido uma série de autores, que incidem especificamente sobre

o tema e exploram o conceito colaborativo. Referem-se assim, “Frontiers: Artists and

Architects” de Maggie Toy, “Interdisciplinary Architecture: Art/Architecture/Landscape:

Intersections” de Nicolleta Trasi, “Arte e Arquitectura: Novas Afinidades” de Julia Schultz-

Dornburg, “One Place After Another” de Miwon Kwon, “Mapping de Terrain: New Genre Public

Art” de Suzanne Lacy, e “Frames of Mind: Artists and Architects”, de Jes Fernie, entre outros;

todos eles referem esta nova tendência de trabalho conjunto e processo partilhado entre

artistas e arquitectos.

O tema “Arte e Arquitectura: Fronteiras e Situações de Contacto” surge como oportunidade de

explorar as várias mutações que ambas as disciplinas sofreram ao longo dos tempos; os seus

encontros e reencontros e a forma como, no seio das suas histórias individuais, das suas

diferenças e semelhanças, dos seus estigmas e imagens pré-concebidas, pode resultar uma

colaboração plena e benéfica para ambas as partes, e acima de tudo, para a sociedade.

3

De grande influência na escolha do objecto de estudo está o trabalho da artista Fernanda

Fragateiro. Desde a conferência dada pela artista na VI Semana da Arquitectura do Instituto

Superior Técnico, a 16 de Abril de 2007, que tenho desenvolvido interesse e um enorme

fascínio pela sua obra: pela variedade de plataformas nas quais realiza o seu trabalho, pelas

obras que evocam uma arquitectura plena, pelo seu envolvimento a nível social e pelas

distintas colaborações realizadas com arquitectos e arquitectos paisagistas.

OBJECTIVOS:

A presente dissertação visa um entendimento desta eterna cumplicidade entre a arte e a

arquitectura, que vai muito para além de simultaneidades estéticas ou interesses particulares

de alguns artistas e arquitectos e também dos benefícios imensuráveis que o trabalho

colaborativo trouxe e pode vir a trazer, no futuro, para ambas as áreas.

Os objectivos da presente dissertação são, assim, os seguintes:

- Investigar o que a arte no séc. XXI pode oferecer à arquitectura, quais os métodos e

plataformas de actuação contemporâneos e como a evolução da arte, a partir de meados do

séc. XX, num sentido convergente à arquitectura, promoveu a reaproximação entre ambas as

disciplinas.

- Explorar as consequências da actual tendência para a especificidade nesta relação

interdisciplinar.

- Inquirir a pertinência do diálogo interdisciplinar para a cidade actual.

- Entender o que motiva a colaboração entre artistas e arquitectos e que plataformas existem

para a realização das mesmas.

- Averiguar como se materializam as colaborações, quais os benefícios envolvidos para ambos

os intervenientes, quais as dificuldades, riscos e mais-valias presentes no processo.

- Analisar, através do estudo de obras em que Fernanda Fragateiro interveio, os diferentes

resultados, contextos e modo como foi levado a cabo o trabalho conjunto com arquitectos e

arquitectos paisagistas.

4

METODOLOGIA E ESTRUTURA:

A metodologia utilizada foi sendo descoberta à medida que se foi reunindo informação sobre os

temas gerais e investigando a obra de Fernanda Fragateiro, no seu conjunto. A pesquisa sobre

o tema mostrou-se, ao longo da investigação, ilimitada. Os temas referentes especificamente

às colaborações, ainda escassos e os conceitos que ao mesmo surgem interligados ou que o

tentam definir são frequentemente de elevada abertura e ambiguidade. A resposta à dispersão

do tema surge, não da pesquisa geral, mas na obra de Fernanda Fragateiro e da leitura crítica

das múltiplas referências identificadas na mesma.

Através deste recentrar do tema, foi possível limitar as referências e as obras analisadas, pela

sua pertinência na discussão da obra de Fernanda Fragateiro e, num âmbito geral, para a

temática das colaborações. Partindo de uma selecção das obras da artista que melhor se

enquadravam no estudo das suas colaborações, no âmbito da arquitectura, procedeu-se à

reunião da pesquisa já efectuada, pelos temas gerais que contextualizam as obras que se

pretendem explorar.

As obras seleccionadas são:

Obras individuais: Exposição Invisibilidade, Galeria Leme (S. Paulo), 2009.

Caixa Para Guardar o Vazio, Teatro Viriato, Viseu, 2005.

O Paraíso é um Lugar Onde Nada Nunca Acontece, Lisboa Capital do

Nada, 2001

Colaborações: Estação Biológica do Garducho, 2002-08 - com João Maria Ventura

Trindade.

Jardim das Ondas, Expo’98, 1998 – com João Gomes da Silva.

Jardim nas Margens, Parque Linear da Ribeira das Jardas, Cacém,

2007 – com NPK arquitectos paisagistas associados.

A análise proposta pretende realizar o cruzamento de um contexto geral e maioritariamente

internacional com a obra da artista, possibilitando, assim, dar resposta a questões centrais para

a compreensão da prática de Fernanda Fragateiro. A metodologia tende a evitar uma

organização cronológica, privilegiando uma interpretação temática dos pontos explorados, que

se considera mais interessante e eficaz para os fins pretendidos.

A realização de entrevistas à artista e aos arquitectos com os quais colaborou, centradas nas

suas obras e nas concepções individuais em relação à ideia de colaboração, criou uma

narrativa secundária ao corpo da dissertação e justificou, de certo modo, as questões

levantadas numa primeira análise, tendo também incentivado a procura de resposta a outras

perguntas que, entretanto, se afiguraram pertinentes.

5

A preparação das entrevistas aos arquitectos teve em atenção, não só o projecto de

arquitectura, mas igualmente a colaboração com a artista. As questões propostas incidem

assim, na obra, mas tentam captar também uma perspectiva pessoal do arquitecto em relação

ao tema da dissertação. De uma forma geral, as questões para as quais se procurava resposta

são:

- Como surgiu a colaboração com Fernanda Fragateiro no contexto do projecto?

- Quais as motivações que estão na base da colaboração com a artista?

- Em que estágio do projecto foi a artista envolvida ou convidada a intervir?

- Qual a dinâmica colaborativa existente na fase criativa, de desenho e materialização da obra?

- Qual foi o grau de colaboração existente, a nível do contributo da artista na própria

arquitectura e do arquitecto em relação à obra de arte?

- Que tipo de problemas ou questões surgiram no decorrer do processo?

- Descrição da relação pré-existente e existente com a artista.

- Que benefícios ou mais-valias surgem da colaboração com um artista, a nível do resultado

final e para a prática individual de cada um?

- Que referências têm, a nível nacional e internacional, de relações colaborativas entre artistas

e arquitectos?

- Como perspectivam o futuro deste tipo de trabalho conjunto?

A entrevista realizada à artista, por outro lado, toma um modelo mais livre. As questões surgem

relacionadas com as obras referidas, com a sua relação específica com a arquitectura e sobre

as várias colaborações nas quais esteve ou está envolvida, assim como, sobre a relação

estabelecida com os arquitectos, no decorrer do processo colaborativo.

Todas as entrevistas foram fulcrais para o aprofundamento do tema e adquirem, por isso, uma

enorme relevância na presente dissertação.

A estrutura que decorre da metodologia adoptada obedeceu ao mesmo padrão de descoberta

e reorganização progressiva. Numa fase inicial do desenvolvimento do tema, a premissa que

se colocava era se a arquitectura poderia ser arte, se o arquitecto se poderia colocar no papel

do artista e, por outro lado, se a arte poderia ser considerada arquitectura tendo em conta a

sua escala, localização e por vezes função.

Ao longo do processo de investigação, esta abordagem foi passando para um plano secundário

e a temática da dissolução das fronteiras entre arte e arquitectura passou então para foco

central, compreendendo os limites entre disciplinas e os momentos em que ambas se dispõem

6

a romperem as suas próprias barreiras disciplinares e colaborar para um fim comum, para um

objectivo estabelecido no qual autoria e responsabilidade são partilhadas por ambos e ainda,

os benefícios, enriquecimento e valorização que esta colaboração traz, para as disciplinas em

questão.

A estruturação sequencial dos seis capítulos, com as obras seleccionadas de Fernanda

Fragateiro, visa permitir um entendimento global de uma relação que parte da aproximação da

arte à arquitectura, que se inverte com a entrada da arquitectura na esfera da arte e culmina

com o seu reencontro no espaço público, onde se dá a institucionalização das colaborações.

No primeiro capítulo, focam-se dois momentos chave que marcaram permanentemente a arte e

a arquitectura do séc. XX: as vanguardas Russas da década de 1920 e o movimento

Minimalista, que se afirma na década de 1960. Ambos têm enorme influência para Fernanda

Fragateiro e são visíveis na escolha e tratamento dos materiais que utiliza, na primazia pela

tridimensionalidade e na forma como as suas obras se integram, reflectem e homenageiam o

espaço em que se inserem. Através da investigação das obras que constituem a “Exposição

Invisibilidades”, procura-se expor a forma, como o Minimalismo está na base do interesse da

arte pela arquitectura e da possibilidade de contaminação.

No segundo capitulo, exploram-se alguns conceitos fulcrais na obra de Fernanda Fragateiro. O

corpo, a escala e a criação de ‘lugares’, são constantemente explorados pela artista e surgem

interligados e de forma óbvia, na “Caixa Para Guardar o Vazio”. Esta obra revela também a

relação da artista com a arquitectura. Ao assumir uma enorme curiosidade e rejeitando ao

mesmo tempo, qualquer aproximação limite à prática arquitectónica, Fernanda Fragateiro

condiciona, mas torna também particular, a sua forma de colaborar com arquitectos e de

intervir nos mais diversos espaços.

No terceiro capítulo, propõe-se inicialmente definir a contribuição que a saída dos artistas do

museu para a esfera pública, onde domina a arquitectura, teve para a consciencialização dos

arquitectos de que a arte começava a invadir o seu espaço de actuação e de que novas formas

de relacionamento se impunham. Num mesmo contexto reflecte-se, também, sobre a forma

como a arte irá absorver e actuar dentro do contexto social urbano de que agora faz parte.

Através do projecto “O Paraíso é um Lugar Onde Nada Nunca Acontece” enquadra-se o

trabalho de Fernanda Fragateiro na mais recente vertente da Arte Pública, nomeada por

Suzanne Lacy como “new genre public art” e caracterizada pela interacção directa do artista

com a comunidade que acolhe a sua obra e por uma postura mais activista sobre temas

relevantes para a mesma. A importância desta obra da artista no contexto das colaborações,

assenta na demonstração das principais mais-valias da colaboração com artistas, ou seja, a

humanização da arquitectura e a utilização da arte, como meio veículo de aproximação à

comunidade.

O quarto capítulo reflecte sobre o conceito da “obra de arte total”, como fim idealizado para o

processo colaborativo proposto e a forma como este conceito foi levado a cabo, ao longo da

7

história da relação entre a arte e a arquitectura. A colaboração de Fernanda Fragateiro com o

arquitecto João Maria Ventura Trindade, para a Estação Biológica do Garducho, permite

perceber a forma como, embora almejando a “obra de arte total”, os vários lugares que a arte

ocupa na arquitectura nem sempre permitem atingir a coerência, a coesão e a

interdependência características da interpretação actual deste conceito.

O quinto capítulo foca o encontro da arte e da arquitectura no espaço público e os resultados

de várias experiências de institucionalização e controlo das colaborações. Os programas de

arte pública, para além de principais fomentadores das colaborações entre artistas e

arquitectos, permitem um estudo mais factual das dinâmicas e processos colaborativos, já que,

providenciam também, o registo de informação relacionada com obras colaborativas realizadas

dentro de esquemas que obedecem, salvo raras excepções, ao modelo percent-for-art ou a

programas de arte pública, como é o caso do “Jardim das Ondas” de Fernanda Fragateiro em

colaboração com o arquitecto paisagista João Gomes da Silva.

O último capítulo consiste na proposta da colaboração dentro da actual tendência para a

interdisciplinaridade, como solução para a especificidade disciplinar a que se tem vindo a

assistir desde o final do séc. XX. Propõe-se assim, através da reunião dos dados adquiridos ao

longo da investigação dos vários programas de integração de arte na arquitectura e das

colaborações realizadas por Fernanda Fragateiro, a identificação dos factores cruciais ao

sucesso ou não das colaborações. O último caso de estudo apresentado, o “Jardim nas

Margens” de Fernanda Fragateiro, com o arquitecto paisagista José Veludo, ilustra a

complexidade deste processo e o que pode resultar quando este não é controlado, quando não

existe sintonia entre artista e arquitecto ou ainda, quando a colaboração é proposta para um

projecto urbano de grande dimensão e com múltiplos intervenientes.

Todas as secções de capítulo são acompanhadas de uma citação relacionada ou retirada das

entrevistas realizadas à artista e aos arquitectos directamente envolvidos nos casos de estudo

seleccionados. A presença destes pequenos textos pretende não só introduzir a temática a

explorar em cada secção, mas também dar alguns indícios das questões, que através dos caso

de estudo se pretende responder. Tenta-se, assim, em paralelo, desenvolver os temas

escolhidos e, ao mesmo tempo, revelar a postura de cada arquitecto em relação à temática das

colaborações e da artista Fernanda Fragateiro, em relação à sua prática e ao contexto geral da

dissertação.

8

FERNANDA FRAGATEIRO - contextualização:

O intervalo disciplinar, no qual se situa a obra de Fernanda Fragateiro, envolve uma situação

de indefinição entre a arte e a arquitectura, que é objecto de estudo nesta dissertação.

Designado por Jane Rendell como “The Space Between”3, este espaço de comunhão entre a

arte e a arquitectura surge, actualmente, como um dos campos mais profícuos da prática

artística contemporânea, cada vez mais dirigida para o espaço público e para a própria

arquitectura.

A transição da arte para o campo ambíguo que, segundo a autora, se localiza entre a arte e a

arquitectura, vem sendo realizada desde o início do séc. XX, e tem apresentado uma evolução

constante até aos dias de hoje, conduzindo à diluição dos limites e definições pré-

estabelecidas da escultura e da própria arquitectura. Neste contexto, a aproximação da arte à

arquitectura constitui um tema de enorme actualidade e de desenvolvimento e exploração

contínua por filósofos, teóricos, artistas e arquitectos.

Embora de difícil definição, este tipo de actividade artística é de enorme interesse para a

exploração da obra de Fernanda Fragateiro, já que se relaciona, nas suas intenções,

preocupações formais, sociais, estéticas e, acima de tudo, na sua prática actual, com a de

artistas frequentemente referidos por diversos autores como, por exemplo: Donald Judd, Carl

Andre, Gordon Matta-Clark, Robert Morris, Dan Graham, Robert Smithson, Walter de Maria,

entre outros. Esta prática apresenta a sua origem no despertar social e utilitário das artes,

aliado a um movimento de ruptura com as instituições artísticas e um interesse renovado pela

espacialidade, que culminará no encontro, por parte de alguns artistas, com a arquitectura

como seu meio primordial de exploração e actuação. O tema da espacialidade marca

definitivamente a progressão da arte em direcção à arquitectura e por isso terá especial

destaque na introdução da teoria de David Summers, em Real Spaces4.

De modo a introduzir a obra da artista Fernanda Fragateiro neste contexto, recorrer-se-á a dois

conceitos que apontam para uma definição desta prática. O primeiro é introduzido por Rosalind

Krauss, em 1979, sob a designação de “Expanded Field”5 e materializa-se numa série de

diagramas nos quais a autora propõe, através da negação, uma estrutura que tenta englobar,

contextualizar e denominar as novas tipologias artísticas que surgiram nos anos 60 e 70

(Minimalismo, Performance, Land Art, Arte Povera, Arte Conceptual), que tendem a tornar-se

indistintas da arquitectura e da paisagem.

3 Jane Rendell – “Art and Architecture: A place between.” London: I.B. Tauris & Co Ltd, 2008.

4 David Summers – Real Space: World art history and the rise of western modernism. London: Phaidon

Press, 2003. 5 Rosalind Krauss – "Sculpture in the Expanded Field." October, Vol. 8, 1979, pp. 30-44.

9

Fig. 1. Expanded Field - diagramas I, II e III.

Um segundo conceito, que surge com enorme pertinência, é explorado por Jane Rendell como

“Critical Spatial Practice”6. O termo, utilizado pela autora, constitui uma forma mais assertiva de

denominar a arte pública no seu envolvimento com a arquitectura, englobando tanto a

possibilidade da arte apresentar uma postura crítica sobre os procedimentos disciplinares e

ideologias dominantes na arte e na arquitectura, como uma postura activa em relação aos mais

amplos problemas sociais e políticos.

No início da demonstração da sua teoria de “Expanded Field”, Krauss começa por explicar que

a escultura do Pós-Segunda Guerra, na qual nos iremos focar, não pode ser definida de forma

universal, mas que o seu entendimento e definição dependem de uma perspectiva historicista7.

Explica também que a relação histórica serve de certo modo, como atenuante do novo, do

desconhecido, indicando a existência de um relativo conforto no estabelecimento de relações

ou afinidades entre o que nos é estranho e o que, ao pertencer ao passado, se torna de certo

modo reconhecível.8

Nicoletta Trasi reforça, no seu artigo “Interdisciplinary Architecture”, que somente através da

resolução do confronto entre arquitectura e artes visuais se poderá começar a imaginar novos

desenvolvimentos na relação entre ambas as áreas, e que esse confronto só pode ser

resolvido ao deixar de ignorar e menosprezar a sua dimensão histórica.9

Deste modo, Krauss exemplifica como, com nascimento da escultura minimalista dos anos 60,

críticos e teóricos rapidamente iniciaram a construção de uma série de ligações de

‘paternidade’ que legitimavam uma forma artística que contestaria as definições clássicas e

práticas comuns das áreas da pintura, escultura, musica e teatro. Indicando as suas origens

6 Jane Rendell – Art and Architecture: A place between. London: I.B.Tauris & Co Ltd, 2008, pp. 3-6.

7 Rosalind Krauss– op. cit., p. 33. 8 Idem, p. 30. 9 Nicolleta Trasi – Interdisciplinary Architecture. Londres: Wiley-Academy, 2001, p.12.

10

em nomes sonantes do movimento construtivista como Naum Gabo, Vladimir Tatlin ou El

Lissitzky, e estabelecendo relações complexas, intrincadas e por vezes descontextualizadas

entre o novo e o que, ao pré-existir era já aceite, criaram zonas de conforto e aceitação para os

novos termos contestatários e de distanciamento das ‘regras’, dentro das quais os artistas a

partir do pós-guerra actuavam.

Assim sendo, ao reconhecermos na obra de Fernanda Fragateiro as múltiplas referências

históricas e a relação que as suas obras apresentam com as de artistas que marcaram a frente

de debate da relação da arte com a arquitectura, tentar-se-á retraçar/identificar, na evolução da

arte no séc. XX, as origens de algumas das obras mais marcantes da artista.

A estruturação do texto seguirá, de uma forma livre, a cronologia proposta por Defim Sardo em

“Ecologia Emocional”. Neste texto sobre o percurso de Fernanda Fragateiro, o autor afirma que

a obra da artista se desenvolve de forma evidente no que identifica como o ‘eixo de tradição

histórica’ propondo que:

“No início, interessar-lhe-ia, sobretudo, o seu carácter de pesquisa formal sobre o espaço e a

arquitectura. Posteriormente, esse interesse veio a incidir sobre o centro deste núcleo de

questões artísticas, ou seja, o arco que realizam entre a dimensão da corporalidade e a escala

pública do espaço. Diria que mais recentemente, também sobre a vertente social da

espacialidade que aqui encontra um primeiro eixo de confluência.”10

Dentro desta perspectiva, são indicados três momentos essenciais para a reflexão incidente na

obra da artista, que iremos analisar: partindo da inicial pesquisa formal sobre o espaço e a

arquitectura, passando pela dimensão da corporalidade e a escala do espaço público e

culminando na vertente social da espacialidade.

10

Delfim Sardo – “Ecologia Emocional”, Caixa para guardar o vazio. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.36.

I

DO ESPAÇO VIRTUAL PARA O ESPAÇO REAL

1.1. DO ESPAÇO VIRTUAL PARA O ESPAÇO REAL.

“Há, de facto, muitos artistas a trabalhar com uma linguagem que é mais do âmbito da

arquitectura, mas também há outros a trabalhar com linguagens que são do âmbito, por

exemplo, da Filosofia; portanto, acho que os artistas têm tudo ao seu dispor! Isso é a parte

interessante da minha profissão.

Posso trabalhar em microprojectos ligados a um cientista ou numa paisagem imensa, que a

minha forma de ver as coisas e, mesmo, os próprios resultados serão sempre muito diferentes.

O que é interessante é um artista ter desafios, desafios que o façam, de repente, esquecer

tudo, partir do zero e pensar: como é que eu posso pensar sobre isto que traga uma nova

discussão, uma nova perspectiva aos outros? No meu caso, a arquitectura é um dos temas

sobre o qual me questiono e que me desperta curiosidade, mas é também um, entre outros que

me interessam, e podem sempre surgir mais.”

Excerto da entrevista realizada a Fernanda Fragateiro.

11

1.1. DO ESPAÇO VIRTUAL AO ESPAÇO REAL

No final do séc. XIX e como consequência directa do aparecimento da fotografia e da imagem

em movimento na cena artística, as grandes revelações na arte irão centrar-se na questão da

imagem. No entanto, nas primeiras décadas do séc. XX, o interesse pela tridimensionalidade e

a busca pela representação da quarta dimensão, darão aso a que a exploração espacial se

torne na principal temática artista do mesmo século.

Esta transição entre dimensões teve um enorme impacto, principalmente para a escultura, mas

é também essencial para a contextualização das novas relações entre a arte e a arquitectura.

Segundo autores como David Summers, a pesquisa espacial constitui o primeiro passo a

caminho da aproximação e dissolução das barreiras anteriormente assumidas entre as duas

disciplinas em questão.

Summers define as artes segundo a sua plataforma espacial, sugerindo na sua obra “Real

Spaces” os conceitos de espaço real – onde insere a arquitectura, a escultura e o design – e de

espaço virtual – onde localiza as artes que surgem da representação bidimensional do real, fiel

através da fotografia, por exemplo, ou através do imaginário do artista como a pintura, o

desenho, ou a serigrafia. Mais especificamente, a escultura e o design têm por base a

exploração do espaço pessoal e a arquitectura actua, por sua vez, no espaço social. 11

Numa espécie de ‘matrioska’, a estrutura espacial das artes parte então do real, para o social,

onde se localiza a arquitectura, e envolve o espaço pessoal assim como os formatos

necessários ao virtual, ou seja, as categorias condicionantes do último serão, sempre, parte do

que define o seguinte e finalmente, o geral.

Segundo o autor; “o espaço real é, em última instância, definido pelo corpo humano”12

e as

suas condicionantes, são então as mesmas que as do corpo em todas as suas limitações e

constrangimentos. A nossa própria espacialidade real implica a ampla condição de nos

encontrarmos a nós próprios no mundo, tornando o espaço real condicionado pela nossa

estrutura corpórea, pela nossa finitude espácio-temporal e, acima de tudo, pela capacidade

humana de se relacionar com o mundo em seu redor e de se definir somente através do

mesmo. De forma simplificada, o espaço real é a condição espacial do local físico, do

ambiente, do artefacto e da imagem, assim como, da maneira como foram feitos e como

podem ser observados e utilizados pelo ser humano, num contexto histórico e sociocultural que

define o seu estatuto e o seu valor.

A relação referida entre a arte e a arquitectura, em que se pretende incidir e tal como sugerido

por Summers, apresenta, a sua origem na transição da pintura (espaço virtual) para o espaço

11

David Summers – op. cit., p.43. 12

Idem, p.36. Trad. Liv.

12

pessoal onde se localizava a escultura na sua forma tradicional, criando uma forma de arte

que, por um lado, dilui pintura e escultura e, por outro, marca o início de uma corrente

interdisciplinar entre práticas artistas que será de difícil definição para críticos e teóricos da arte

do séc. XX. Um segundo passo para uma relação directa entre arte e arquitectura é dado

posteriormente através da transição da escultura (espaço pessoal) para o espaço social da

arquitectura. É neste culminar de todas as artes no espaço real que surgem as possibilidades

não só de diálogo e relação, mas de comunhão plena entre a arte e a arquitectura.

Fig. 2. Interpretação em diagrama da teoria de David Summers.

Um dos primeiros passos dados no caminho da transição de uma arte clássica, estabelecida

dentro dos limites do espaço virtual, para uma arte que actua no espaço real, é dado já no

início do séc. XX pelas vanguardas russas,13

sendo o movimento Construtivista,

especificamente referenciado por Rosalind Krauss14

, Mary Jane Jacob15

, Arlene Raven e

Miwon Kwon16

, como precedente da arte pública.

É salientada, pelas autoras acima referidas, a forma como estes artistas, no espaço de duas

décadas e potenciados por um clima de instabilidade política e social, percorreram os passos

identificados na evolução da arte até à sua vertente pública contemporânea. Sem excepção, as

13

Delfim Sardo – A Visão em Apneia: Escritos sobre Artistas. Lisboa: Babel, 2011, p. 351 14

Rosalind Krauss – op.cit., p.32. (Krauss explica que embora o conteúdo ou a razão por detrás do

objecto final fossem totalmente díspares ou mesmo opostas, a linha de paternidade das obras

minimalistas é indicada pela maioria dos historiadores é em última instância, Construtivista). 15

Mary Jane Jacob – Outside the Loop, in Culture In Action, exb. cat. Seattle: Bay Press, 1995. p. 56

“As Public Art shifts from large scale objects, to physically or conceptually site specific projects, to

audience-specific concerns (works made in response to those who occupy a given site), it moved from

an aesthetic function to a design function, to a social function.” 16

Miwon Kwon – One place after another. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2002, p.106.

13

autoras referem uma arte que transita primeiramente entre dimensões, que assimila o espaço

como factor intrínseco à sua produção e percepção, que escapa para o exterior assumindo a

escala pública e urbana e estabelece um diálogo profundo com a arquitectura, potenciando

assim, neste novo ambiente de actuação, uma preocupação que ultrapassa a estética e se foca

no utilitário e no social.

A exploração espacial, mais especificamente tridimensional nas artes, é desencadeada na

segunda década do séc. XX, através do experimentalismo de Vladimir Tatlin (1885-1953), em

obras como ‘Corner Relief’ (1914-15) e ‘Selection of materials’ (1914) e da pesquisa da quarta

dimensão cubista em obras como ‘Guitarra’ (1914) de Picasso. No entanto, de acordo com

Summers, estas obras, embora livres do formato e da estrutura clássica, retêm ainda, a

memória da tradição pictórica na sua escala, composição, e no facto de estarem ainda

suspensas17

. Fica, no entanto, retida nestas obras a sugestão de uma pintura tridimensional,

que transcende a sua formatação base e sai dos seus moldes geométricos e pré-definidos para

conquistar novas formas.

Fig. 3. Tatlin – ‘Selection of Materials’, 1914. Fig. 5. Tatlin - ‘Corner Counter-relief’, 1914.

Fig. 4. Tatlin – ‘Complex Corner-relief’, 1915. Fig. 6.Picasso – ‘Guitarra’, 1914.

A mais coerente transição da pintura, do espaço virtual para o espaço pessoal, é visível na

obra Prounenraum (Espaço Proun), do artista e arquitecto El Lissitzky (1890-1941), exposta em

1923 na Grosse Berliner Kunstausstellung. Nesta obra, a arquitectura não serve somente de

suporte, mas é parte integrante da obra, não existindo elementos independentes, o espaço

constitui uma obra de arte coesa e interdependente nos seus volumes e planos, a

espacialidade da sala apropriada pelo artista constitui-se como elemento entre os vários que no

conjunto formam o espaço ‘Proun’. O ‘cubo branco modernista’ perde assim, a sua esterilidade

para se transformar num ambiente interactivo, activado pelo espectador. Segundo El Lissitzky,

“O Proun começa no plano, avança para o modelo espacial e dai para a construção de todos

os objectos da vida em geral. Sob este ponto de vista, o Proun ultrapassa a pintura e os seus

artistas por um lado, e a máquina e o engenheiro, por outro. Estrutura o espaço, fragmentando-

17

David Summers – op.cit., p.638.

14

o com elementos de todas as dimensões, e constrói uma nova e versátil figura da natureza que

é, no entanto, uniforme.”18

Este tipo de abordagem foi também partilhado por Piet Modrian ao projectar, em 1926, o Salão

de Madame B, em Dresden, apenas executado já em 1970, após a sua morte em 1944. Este

projecto surge directamente ligado ao artista anteriormente referido, já que foi o próprio El

Lissitzky e sua mulher que sugeriram e mediaram o convite a Piet Mondrian para a execução

desta sala no interior da casa de Ida Bienert.19

Fig. 7. El Lissitzky – ‘Prounenraum’, 1923 (reconstrução de 1971). Fig. 8. Piet Mondrian – ‘Salon of Madame B., 1923.

A transição do espaço pessoal para o espaço social, que culmina, em última instância, numa

arte que actua no espaço real, tem como factor essencial, um fascínio pela tridimensionalidade

e pela actuação directa da arte na sociedade e como resultado, a criação de elementos de

escala cada vez mais ambiciosa. Aliando a dimensão a uma funcionalidade intrínseca, estas

obras acabariam por se afirmar na sua afinidade com a arquitectura: “the constructivist function

is synonymous with architecture”20

. Exemplos disso são os inúmeros quiosques criados por

artistas como Aleksandr Rodchenko e, talvez o maior símbolo do movimento Construtivista: o

Monumento à III Internacional de Vladimir Tatlin, de 1919, que segundo Giulio Carlo Argan:

“contém todas as premissas do Construtivismo. Indistinção das artes: é arquitectura, estrutura

18

K. Ruhrberg - Arte do século XX, Vol. II. Lisboa: Taschen, 2005, p.449. 19

“In the early 1920’s, she (Madame Ida Bienert) became friendly with El Lissitzky; and it was apparently upon the advice of his future wife, Sophie Küppers, that Bienert first acquired work by Mondrian. Küppers herself had organized Mondrian’s show at Kühl and Kühn, and it was shortly after this, again through her mediation and that of Lissitzky, that Mondrian was invited to redesign the room in Bienert’s home in Plauen, a suburb of Dresden.” Nancy J. Toy – “Mondrian’s Design for the Salon Madame B…, à Dresden”. The Art Bulletin, Vol.62, Nº 4, Dec. 1980, pp.640-647, Disponível em: http://www.jstor.org/pss/3050061 20

Stephen Bann - The Tradition of Construtivism. New York: Da Capo, 1974. p. 122.

15

provisória, escultura construtivista em escala gigantesca; funcionalidade técnica e sistema de

comunicação; expressividade simbólica do dinamismo ascendente da espiral inclinada (…).”21

Conscientes do impacto da arte na sociedade, estes artistas acabam por entrar no espaço real

de uma forma objectiva e com o único propósito de espalharem a sua mensagem, seja política

ou ideológica. As barreiras entre arte e arquitectura foram dissolvidas de uma forma

permanente e evolutiva, promovendo assim a aproximação da arte à arquitectura, que será a

base do grupo Holandês De Stijl e da Escola Alemã da Bauhaus. Este assimilar da arte em

relação à arquitectura, como modelo analítico e formal, irá estabelecer uma relação natural e

recíproca entre as duas disciplinas, contrariando, deste modo, a sugestão de William Morris

(por volta de 1850) e de Walter Gropius (na criação da Bauhaus em 1919), de uma arquitectura

que absorve todas as artes.

O séc. XX irá estabelecer, assim, a partir da década de 20 e envolvendo mais tarde, os novos

experimentalismos artísticos do período Pós-Segunda Guerra, uma relação horizontal,

equilibrada, dinâmica, uma contaminação recíproca e de profícuo dialogo entre a arquitectura e

as artes plásticas.

21

Giulio Carlo Aragan – Arte Moderna: Do Ilusionismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo:

Companhia das Letras,1992. p. 284.

Fig. 13. Apresentação da maqueta do Monumento da 3º Internacional, na Feira Internacional da Industria Moderna e Artes Decorativas em Paris, 1925.

Fig. 11. Vladimir Tatlin – ‘Projecto para o Monumento da 3ª Internacional’, 1917.

Fig. 10. A. Rodchenko – ‘Desenho para Estação de Rádio’, 1920.

Fig. 9. A. Rodchenko – ‘Desenho para Quiosque’, 1919.

Fig. 12. Maqueta realizada para apresentação em Petrograd e Moscovo, 1920.

1.2. O MINIMALISMO E O ESPAÇO NA ARTE.

“As exposições que mais aproximaram o meu trabalho da arquitectura foram:

A minha primeira exposição, chamada ‘Instalação’, em 1987, foi na Galeria Monumental, do

artista Miguel Sampaio. Quando me convidam a expor na Galeria Monumental, o que me

interessa não é o espaço da galeria, não tinha nada para dizer ali, interessa-me muito mais o

espaço que está atrás da galeria, entre a primeira sala, onde eu era suposto expor, e o pátio.

Esta sala interessa-me porque servia de atelier para os artistas mas estava em muito más

condições, estava muito estragada. (…) Uma das peças, por exemplo, era uma parede inteira

que fazia a ligação entre dois espaços de atelier, as restantes são também, peças de

reconstrução do espaço. Este primeiro gesto, que surge de uma forma muito inconsciente,

acaba por ter consequências permanentes para a galeria, (…) quando a minha exposição sai

de lá o espaço ganha melhores condições, aliás, ainda hoje essa sala, em conjunto com a sala

principal e o pátio, é utilizada como uma grande galeria. Mais do que as peças que fiz e que

estão documentadas foi o gesto de, de repente, abrir aquilo tudo que mais me marcou.

A segunda exposição tem também a ver com esse gesto e acontece em 1990, na Faculdade

de Ciências, na Sala Sul. Na altura, andava a fotografar imenso a cidade, sobretudo esta zona

do Chiado que tinha sido alvo de incêndio. (…) Essa vida extremamente violenta, mas

muitíssimo poética da construção e da ruina sempre me interessou muito. (…) Consegui que

me cedessem uma sala durante três meses e fiz uma exposição com uma série de peças

efémeras, umas casas em madeira e gesso em posições instáveis. No entanto, mais uma vez,

o que interessa neste projecto é que, depois de eu ter lá feito a exposição, aquele espaço ficou

aberto até hoje. Portanto esses dois projectos, que são os projectos que iniciam o meu

trabalho, são também fundadores daquilo que, depois, será o meu caminho como artista.

Continuo a partir desse gesto de abrir um espaço novo.

Excerto da entrevista realizada a Fernanda Fragateiro.

16

1.2. O MINIMALISMO E O ESPAÇO NA ARTE.

“Se pensarmos um pouco a respeito, o facto de o espaço, o vazio, ser o protagonista da

arquitectura é, no fundo, natural, porque a arquitectura não é apenas arte nem só imagem de

vida histórica ou de vida vivida por nós e pelos outros, é também, e sobretudo, o ambiente, a

cena onde vivemos a nossa vida.”22

O espaço, segundo Zevi, foi sempre uma entidade directamente relacionada com a

arquitectura. Sem o estabelecimento de limites normalmente definidos por um arquitecto, sem

um contentor, sem algo que o encere, o espaço é na realidade invisível, incomensurável,

infinito. Delimitado o espaço, e para um melhor entendimento do mesmo neste capitulo, iremos

distinguir, segundo Henrique Muga, os quatro tipos ou níveis de espaço por ele propostos: “o

espaço físico, o espaço perceptivo e o espaço cognitivo” inserindo ainda numa categoria

própria, o espaço arquitectónico23

. Sumariamente:

Espaço físico: é definido pelo sistema cartesiano, traduzido em coordenadas, podendo

também ser descrito quantitativamente, e constitui uma “entidade exterior ao indivíduo”24

. É

espaço para ser ocupado por massas, delimitado pela sua inclusão ou exclusão em volumes

fechados, atravessados por aberturas e volumes vazios, é nele também, que num primeiro

olhar analítico, se estabelece a base de dados inicial e essencial a qualquer acção de

transformação do mesmo. O espaço físico contém em si a possibilidade de objectificação e

definição das suas características físicas.

Espaço perceptivo: é a experiência imediata que acompanha a utilização do espaço físico;

segundo o autor, este espaço contém em si tanto a dimensão física (do objecto), como a social

(das pessoas que o habitam). Segundo Merleau-Ponty, autor de “Fenomenologia e Percepção”,

“o espaço não é um ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo

qual a posição das coisas se torna possível”25

. O espaço perceptivo é, então, construído a

partir da experiência humana e inexistente sem a mesma, e a espacialidade somente pode ser

definida através da experiência de determinado sujeito em determinada situação.

Espaço cognitivo: é a “representação mental que fazemos do espaço físico, a imagem que

criamos do ambiente que experienciamos directa ou indirectamente.”26

É a configuração do

espaço físico e perceptivo, interpretada pelos sentidos, processada pelo pensamento e

compreendida através da inteligência e percepção individual, é, assim, a experiência do espaço

que reside na memória por mais tempo podendo vir a ser alterada ou a distanciar-se da

realidade vivida por consecutivas experiências físicas e sensoriais.

22

Bruno Zevi – Saber ver a arquitectura. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.28. 23

Henrique Muga – Psicologia da Arquitectura. Canelas, VNG: Edições Galivro, 2006, p. 59. 24

Idem. 25

M. Merleau-Ponty - Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 328. 26

Idem, p. 59 – 60.

17

Os espaços arquitectónicos e urbanos, embora distintos nas suas formulações são, sem

excepção, espaços para ser habitados, experienciados nas suas múltiplas escalas pelo

Homem e portanto indissociáveis das três perspectivas de espaço. Inegavelmente também,

tanto a arquitectura como o urbanismo têm como ponto central à sua prática o espaço,

teorizado, de forma global, por Sigfried Giedion em “Space, Time and Architecture” (1941),

Bruno Zevi em “Saber ver a Arquitectura” (1948) ou Roger Scruton em “The Aesthetics of

Architecture” (1979), entre outros. Num entendimento mais particular e que se insere de uma

forma mais incisiva na ligação entre a arte e a arquitectura, sugere-se também a perspectiva de

espaço arquitectónico de Norberg-Schultz, que o define como “expressivo, artístico, estético, e

a concretização de espaço existencial”27

.

A arquitectura apresenta várias formas de encarar o espaço e, tal como na arte, o tema da

pesquisa espacial é experimental e evolui na forma como é trabalhado pelos diferentes artistas

que o tomam também central à sua prática.

É no tratamento do espaço que se realça a escultura Minimalista, directamente inspirada pelas

vanguardas russas, já referidas, e pelos ideais lançados por Marcel Duchamp, de que “a arte é

na realidade feita pelo público, nessa relação do objecto com o espaço, por meio da exposição,

que lhe dá verdadeiro sentido plástico”28

. O espectador e o seu espaço pessoal tornam-se

agora, de um modo totalmente consciente para o artista, parte integrante da obra. Segundo

Miwon Kwon, “(…) the space of art was no longer perceived as a blank slate, a tabula rasa, but

a real place.”29

Entendido, ainda no início da década de 60, de uma forma bastante formal, o espaço é definido

primeiramente pela aglomeração dos seus atributos físicos (tamanho, escala, textura,

dimensão das paredes, tectos, divisões; luminosidade, entre outros). Numa segunda instância,

o entendimento do espaço irá evoluir para uma perspectiva fenomenológica, ou de espaço

perceptivo na qual, a simplicidade formal dos objectos, os materiais ou as técnicas industriais

utilizadas, assim como a forma como são colocados nos espaços expositivos, activam as

sensações do espectador a cada movimento em redor do objecto. Esta nova forma de pensar a

arte, ambiciona a alteração da nossa percepção do próprio espaço e faz-nos reflectir sobre o

nosso corpo e sobre a nossa espacialidade perante estes objectos.

Podem observar-se como características comuns a este tipo de arte, catalogada em 1965 por

Richard Wollheim como Minimalista30

: a continuação e aprofundamento da pesquisa espacial, a

primazia por uma arte tridimensional, a importância dada à essência dos materiais e a sua

utilização na forma mais pura, digna, honesta, assim com, o recurso explicito a técnicas

industriais que afastam qualquer ligação afectiva e referência ao artista e às suas qualidade

27

Christian Norberg-Schulz - Existencia, Espacio y Arquitectura. Barcelona: Ed. Blume, 1975, p. 33. 28

Marcel Duchamp cit. por Juan Carlos Rico – Montaje de exposiciones: museos, arquitectura, arte.

Madrid: Silex Ediciones, 1996, p.12. 29

Miwon Kwon – op. cit., p.11. 30

David Hopkins – After Modern Art: 1945-2000. Oxford: Oxford University Press, 2000, p.138.

18

como artesão, na criação de obras que ambicionam, não a sua admiração estética mas sim

uma resposta física e interactiva por parte do espectador.

“Minimal art, (…), reveals the literal space of the viewer and the viewer’s presence in this space.

Placed in the center of the gallery, the Minimal work sets up a ‘theatrical’ relationship with the

spectator, demanding his or her attention, much as an actor does”31

Em “Sculpture in the Expanded Field”, 1979, Rosalind Krauss localiza neste movimento, a

entrada da escultura no que intitula de “no man’s land”, categorizando assim um tipo de

escultura que não se distinguia da sua envolvente – “it was what was on or in front of a buiding

that was not the buiding, or what was in the landscape that was not the landscape.”32

– dando

como exemplo a instalação de Robert Morris, na Green Gallery em 1964.

Fig. 14. Morris – ‘Sem título’, 1965. Fig. 15. Morris – Vista da Geral da Green Gallery, N.Y., 1964 Fig. 16. Morris – ‘Threadwaste’, 1968.

Fig. 17. Carl Andre – ‘Equivalent VIII’, 1966. Fig. 18. Carl Andre – ‘5x10 Altstadt Rectangle’, 1967. Fig. 19. Carl Andre – ‘Fall’, 1968.

A integração destas obras no espaço deve-se à renúncia de um tipo de escultura impositiva,

comemorativa e, na maioria das vezes, figurativa, tendo a maioria, como factor comum a “perda

do pedestal”33

. Estas obras aproximam-se do público, do banal e da arquitectura,

apresentando-se, conforme se pode observar nas obras de Morris, de elementos

arquitectónicos indistintos dos constituintes do espaço, ou nas obras de Carl André, através do

extremismo na negação do pedestal e da introdução de uma escultura horizontal e, quase

31

James Meyer – Minimalism. London: Phaidon Press Limited, 2000, p. 33. 32

Rosalind Krauss - op. cit., p. 36. 33 Javier Maderuelo – La pérdida del pedestal. Madrid: Cuadernos el Círculo, Círculo de Bellas

Artes, 1994.

19

plana, as suas obras confundem-se com o pavimento e integram-se profundamente na

arquitectura, criando pisos diferentes e caminhos alternativos no espaço.

Ao introduzir o espaço físico e perceptivo como parte integrante da obra, assiste-se a dois

fenómenos distintos, que irão criar uma relação mais próxima entre arte e arquitectura:

primeiro, ao trabalhar o espaço como parte integrante da obra, torna-se essencial para o artista

o entendimento profundo do que o caracteriza geométrica e formalmente. Como consequência

desta pesquisa, surge outro fenómeno de aproximação à arquitectura, que se materializa no

final dos anos 60, numa busca por parte dos artistas de novos enquadramentos para as suas

obras, dispares das salas brancas e neutras dos museus. Esta saída dos artistas para o

exterior dos museus culminará na actuação da arte no Espaço Real, definido por Summers.

Donald Judd reúne ambos os fenómenos referido, apresentando-se assim, como uma figura

central para diluição dos limites entre a arte e a arquitectura, e como a grande referência do

Movimento Minimalista. Os seus ‘Objectos Específicos’ apresentam-se como contentores do

vazio, objectos neutros que absorvem o espaço e que advêm do fascínio de Judd pela

arquitectura Modernista. Esta arte objectual, praticada por Judd, apresenta, como premissas, a

retirada ao artista de todo o individualismo que constituía o ‘primeiro mandamento’ do

Movimento Moderno, bem como toda a força, expressão pessoal e emocional dos artistas do

Expressionismo Abstracto e ainda a recusa a qualquer componente política e social; tudo a

favor de uma arte neutra, depurada, totalmente aberta a qualquer interpretação pessoal por

parte do espectador.

Fig. 20. Judd - ‘Untitled’, Moderna Musset, Stockholm, 1965.

Fig.24. Judd - ‘Untitled’, Judd

Foundation Archives, 1966.

Fig. 25. Judd – ‘Untitled’, MOMA, N.Y., 1967.

Fig. 23. Judd - ‘Untitled’, Gian Enzo Seprone Gallery, N.Y., 1974.

Fig. 21. Judd - ‘Untitled’, T. B. Walker Foundation, 1971.

Fig. 22. Judd - ‘Untitled’, Solomon R. Guggenheim Museum, N.Y., 1971.

20

A importância deste movimento situa-se, à semelhança das vanguardas russas, na quebra das

barreiras limítrofes da arte; Suzanne Lacy afirma que “(…) with the advent of minimalism and

earthworks those boundaries were extended to circumscribe the sites in which artworks were

made and placed”34

, e que é através deste alargamento do seu espaço de actuação, no final

dos anos 60 e início dos anos 70, que a escultura inicia também a sua faceta “site-specific”, na

qual a arquitectura ganha um papel de acrescida relevância, servindo na maioria das vezes,

segundo Kwon, “como tela para a obra de arte.”35

Através do afastamento de qualquer referência (histórica, político-social ou pessoal), da obra

de arte e da passagem da componente estética para segundo plano, resta aos artistas

Minimalistas, como factores decisivos na criação artística, o público, o espaço e a matéria.

Assim, na transição da arte, do museu para o espaço público, Miwon Kwon refere que, para

além da interpretação do espaço museológico já referida, os artistas, tomam agora também em

consideração categorias espaciais como a topografia, padrões de circulação, características

sazonais do clima, entre outras, numa nova forma de arte catalogada como Land Art.36

“Site-specific work in its earliest formation, then, focused on establishing an inextricable,

indivisible relationship between the work and its site, and demanded the physical presence of

the viewer for the work’s completion.”37

A obra de Donald Judd constitui um dos casos mais interessantes de contaminação recíproca

entre disciplinas que advém deste tipo de arte Minimalista e que obedece ainda a uma

interpretação inicial do conceito e “site-specific”. A sua arte, singularmente marcada pela

arquitectura irá ser também de enorme relevância para a mesma. Autores como Stefan Beyst38

ou Richard Guy Wilson39

colocam Judd na prática arquitectónica, comparando-o com Mies van

der Rohe e dando como exponente máximo do trabalho do artista, a Chinati Foundation, em

Marfa, Texas,

Inaugurada em 1987, a Chinati Foundation localiza-se num rancho no Texas, comprado pelo

artista em 1973 e para o qual trabalhou de 1979 até ao fim da sua vida, criando, segundo Urs

Peter Flueckiger: “the perfect artist’s museum”40

. O trabalho realizado pode ser encarado como

o Espaço Proun de El Lissitzky levado ao extremo; a pequena sala do museu é substituída pelo

lugar. Um lugar onde arte, arquitectura e paisagem estabelecem um diálogo profundo e

demonstrativo das potencialidades da relação entre as disciplinas referidas.

34 Suzanne Lacy – Mapping the terrain: New Genre Public Art. Seattle, Washington: Bay Press, 1995,

p.141. 35

Miwon Kwon – op. cit., p. 3. 36

Miwon Kwon – op. cit., p. 3. 37

Idem, p.11. 38

Stefan Beyst - Donald Judd Designs: a turning point in the history of sculpture?, July 2004, disponível

em: http://d-sites.net/english/judd.htm. 39

Urs Peter Flückiger - Donald Judd : Architecture in Marfa. Berlin: Birkhauser, 2007, p. 20.

40 Idem, p.21.

21

Fig. 26. Chinati Foundation, Marfa, Texas.

Fig. 27. Donald Judd - 15 ‘Works in Concrete’, 1980-84.

Fig. 28. Detalhe de15 Concrete Works. Fig. 29. Pormenor desenhado por Donald Judd

Fig. 30. Donald Judd– ‘Utitled’, 1976. Fig. 31. Donald Judd - 100 ‘Untitled Works in Mill Aluminum’,1982-1986.

22

A introdução de um conceito que visa estabelecer uma relação inequívoca entre o objecto e o

espaço envolvente, constitui um dos maiores contributos da arte minimalista para a Arte

Pública. Em obras intituladas site-specific, o espaço é peça essencial na criação e parte

integrante da sua produção e posterior apreciação, tornando-se assim indissociável da obra de

arte nos seus vários estágios. Esta relação de convergência entre a arte, o espaço expositivo e

o ambiente, é visível nas obras de Richard Serra, ‘Splashing’ (1968) ou ‘Measurment of Time’

(1969)41

.

Fig. 32. Serra – ‘Spalshing’, 1968 no Leo Castelli Warehouse, N. Y.

Fig. 33. Serra – ‘Gutter Corner Splash: Night Shift’, 1969 no Jasper Johns' Studio.

Fig. 34. Idem no SFMoMA, San Francisco, 1995.

Mais do que adaptadas ou realizadas em função do mesmo, tal como as referidas

anteriormente, estas obras, de uma forma abrupta, reclamam para si o espaço expositivo de

uma forma permanente. Tornam-se inseparáveis deste e contrariam, na sua formulação quase

excessiva, as bases da escultura modernista, auto-referencial, autónoma e independente do

seu espaço circundante ou do local onde é colocada42

.

Esta forma de encarar o espaço desencadeia um interesse renovado pela arquitectura, que

assume diferentes formas. Numa fase inicial, os minimalistas tratavam o espaço como

componente nas suas obras; obras que continham o vazio ou que, na sua semelhança a

elementos arquitectónicos, se tornavam, pelo contrário, componentes do espaço. No final dos

anos 60, tal como já foi referido, alguns artistas reclamam para si o espaço transformando-o de

forma permanente, neste momento o espaço deixa de ser parte integrante da obra, e passa a

ser a própria obra; são reflexo desta intenção obras como as de Sol LeWitt a partir de 1969, ou

a obra ‘Mesurments’ (1969) de Mel Bochner.

41

Na primeira, o artista atira, chumbo líquido contra as paredes da galeria, assumindo uma relação

intemporal e inquebrável entre o espaço e a obra, na segunda, barras de aço são assentes no pavimento, com o intuito de observar a reacção do material em relação às condições de humidade do local, numa medida temporal específica. 42 Segundo Miwon Kwon, p.11: “If modernist sculpture absorbed its pedestal/base to sever its connection

to or express its indifference to the site, rendering itself more autonomous and self-referential, thus transportable, placeless, and nomadic, then site-specific works, as they first emerged in the wake of minimalism in the late 1960s and early 1970s, forced a dramatic reversal of this modernist paradigm.”

23

A relação com a arquitectura é crescente e intensifica-se na investida para o exterior de alguns

artistas saturados das limitações dos espaços institucionais. A comparação entre a obra de

Laurence Weiner, ‘36 x 39’ (1968) – na qual o artista removia pequenas porções do

revestimento ou da própria parede de modo a revelar o que estava por detrás da parede neutra

da galeria ou museu – com as obras de Gordon Matta-Clark – executadas no exterior desses

espaços institucionais – comprova a nova dinâmica entre arte e arquitectura e um desejo por

parte dos artistas de explorar esta nova possibilidade de utilizar a arquitectura como

instrumento, como meio primordial de pesquisa e de suporte das suas obras. Esta nova forma

de olhar para a arquitectura, criará uma ânsia por novos espaços, novos enquadramentos para

as suas obras e que comprometerá indefinidamente as barreiras que separam estas duas

áreas.

Fig. 35. Mel Bochner - ‘Mesurments’, 1969.

Fig. 36. Detalhe de ‘Mesurments’, 1969.

Fig. 37. Sol LeWitte - Detalhe de ‘Drawing Series—Composite, Part I–IV, #1–24, B’, 1969.

Fig. 38. Lawrence Weiner - Série 36" x 36", Kunsthalle Bern, 1969. Fig. 40. Gordon Matta-Clark – ‘Conical Intersect’, 1975.

Fig. 39. Idem Fig. 41. Gordon Matta-Clark – ‘Splitting’, 1974.

1.3. EXPOSIÇÃO INVISIBILIDADE, GALERIA LEME, 2009.

24

1.3. FERNANDA FRAGATEIRO: EXPOSIÇÃO INVISIBILIDADE, GALERIA LEME, 2009

“Os pressupostos conceptuais e construtivos das intervenções escultóricas de Fernanda

Fragateiro impelem a evidenciar a importância que concede aos elementos arquitectónicos, à

sua geometria e volumetria e a um processo de observação e reconhecimento que implica

frequentemente a deslocação do espectador pelas imediações do espaço, num trabalho

individual de apreensão, memorização e ordenamento que reage às várias camadas de

sugestão da obra.”43

Fernanda Fragateiro passou, nos anos 80, um breve período nos Estados Unidos, onde “ficou

a conhecer as obras de Donald Judd, Carl Andre, Gordon Matta-Clark, Vito Acconci, Mary Miss,

Dan Graham, Joseph Beuys, Richard Serra, Agnes Martin, Lygia Clark e a do arquitecto Mies

van der Rohe, o que foi determinante para a sua formação.”44

As obras da artista apresentam

uma relação óbvia com o espaço, já que grande parte do seu trabalho se realiza em torno da

exploração do vazio, da sua contenção, representação, ou construção através do recurso a

técnicas minimalistas visíveis na depuração formal, nos materiais utilizados, na forma como as

suas obras são expostas, na intenção de indivisibilidade entre as obras e o espaço onde são

expostas e ainda na relação que estabelece com a arquitectura.

Os objectos patentes nesta exposição são realizados em aço inoxidável e alumínio polido: a

escolha dos materiais deixa clara a intenção de não só nos “fazer lembrar a natureza não

utilitária da escultura”45

, ao mostrar materiais do quotidiano e de utilização industrial agora

polidos e espelhados e transformados em arte, mas também de revelar o espaço

arquitectónico.

Segundo a artista: “É esse desaparecimento e essa ausência que me interessa quando

exponho em espaços arquitectónicos fortíssimos, como é o caso da Galeria Leme ou do

Mosteiro de Alcobaça. O facto de eu levar para dentro desses espaços peças em aço polido,

fazia com que as peças desaparecessem, mantendo assim a integridade do espaço

arquitectónico e, simultaneamente, como as peças reflectem, quer as pessoas, quer o espaço,

também se tornavam receptores. Por um lado, são extremamente invisíveis e quase

desaparecem e, por outro lado, têm uma multiplicidade de possibilidades de ser vistos e

convocam muita coisa. O facto de ser denso e ser intenso, de ter muitas camadas e

simultaneamente ser quase invisível, é uma coisa que me interessa muito.”46

43

Ana Vasconcelos – Expectativa de uma paisagem de acontecimentos #3. Disponível em:

http://www.paralelo33.com. 44

Helena Vasconcelos – “Equilibrio e Leveza: Entrevista a Fernanda Fragateiro”, Elle Magazine. Outubro,

2009, pp. 88-91. Dísponivel também em: http://www.baginski.com.pt/pages/clip/clip2.pdf. 45

Ana Vasconcelos – op. cit., p.1. 46

Excerto da entrevista realizada pela autora a Fernanda Fragateiro.

25

A aproximação destas obras a outras minimalistas referidas, é entendida na sugestão de

Robert Morris: “The better new work takes relationships out of the work and makes them a

function of space, light, and the viewer’s field of vision. The object is but one of the terms in the

newer aesthetic. It is in some way more reflexive because one’s awareness of one-self existing

in the same space as the work (…)”47

Refere-se assim, que para além da sintese formal e material que aproxima as obras de

Fernanda Fragateiro de uma prática minimalista, a artista não nega, no entanto, a possibilidade

de expressão pessoal. Por trás de cada obra, existe um pensamento profundo, uma

experiência pessoal reflectida ou uma ideia construida e desenvolvida ao longo do tempo que

afasta todos estes objectos de um único conceito. Destaca-se, nestas obras, uma relação de

enorme intimidade com a arquitectura e um desejo de fazer parte, de integrar sem hesitação o

espaço arquitectónico, revelando-o, tomando-o em sua pose e partilhando-o ao mesmo tempo

com o espectador.

As formas simples e materiais únicos constituem “textos” para Fernanda Fragateiro. Segundo a

própria: “usar um determinado tipo de material já é um texto tão forte, que o que me interessa,

se calhar, é dizer numa frase aquilo que se poderia dizer num livro. A minha procura em

relação aos materiais é conseguir encontrar essa frase, ou seja, encontrar um único material

que contenha a densidade e a quantidade de camadas de pensamento necessária para que a

obra comunique ou diga, de uma forma muito sucinta, uma quantidade de coisas que penso e

que sinto.” 48

Em “Expectativa de uma paisagem de acontecimentos #4”, Fernanda Fragateiro explora

também o conceito de site-specific, ao criar uma obra composta por uma grelha de 825

módulos rectangulares de alumínio polido ou madeira, totalmente articulável e adaptável ao

espaço expositivo. A mesma obra pode assim aparecer suspensa, admitindo a verticalidade49

ou, à semelhança das obras de Carl André, na versão horizontal formando uma espécie de

tapete pelo chão50

. A escolha de superfícies reflectoras, neste caso, convidam o espectador a

interagir com o espaço envolvente, percepcionando a obra e a arquitectura que a contém de

uma forma renovada e sensorial. É “um dispositivo portátil e reversível, em constante mudança,

adaptando-se ao espaço que ocupa, de modo semelhante ao da arquitectura urbana ou da

paisagem. Ocupa o espaço e, simultaneamente, é um espaço em si mesmo, tratando a área

circundante como parte integral do trabalho.”51

47

Michael Fried – Art and Objecthood. p.125 Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/22752386/Michael-

Fried-s-Art-and-Objecthood 48

Fernanda Fragateiro – Excerto da entrevista realizada pela autora. 49

Como é o caso da versão #2 desta obra, realizada em cortiça e exposta no Museu de Arte

Contemporânea de Elvas (2007), da versão #3 já em alumínio, exposta na Igreja da Misericórdia em Silves (2009) e da intervenção no Paço dos Duques em Guimarães (2012). 50

Como é o caso da primeira versão desta série, realizada em madeira para Galeria Elba Benitez em

Madrid (2006) e da que se refere nesta exposição. 51

Ana Vasconcelos – Expectativa de uma paisagem de acontecimentos #3, 2009. Disponível em:

http://algravio.blogspot.com/2009_06_01_archive.html

26

Na série “Caixas” e na obra “Gavetas Duplas”, é explorada, segundo a artista, a ideia do

contentor ser simultâneamente o contéudo. Mais uma vez, o material utilizado e a

representação estática de objectos quotidianos, aos quais é inerente um movimento de

abertura e descoberta, exemplificado através da construção dos vários momentos do mesmo,

são exemplo do perfil explorativo e de uma intenção sempre presente de integrar tanto a

arquitectura como o espectador nas suas obras.

Fig. 42. Fernanda Fragateiro - ‘Gavetas Duplas’, 2002. Fig. 43. Fernanda Fragateiro - 'Pequenas Transgressões num Edifício' #2, 2008.

Fig. 44. Fernanda Fragateiro - ‘Caixa ’ #6, 2009. Fig. 45. Fernanda Fragateiro - ‘Expectativa de uma Paisagem de Acontecimentos’ #4, 2009.

Fig. 46. Exposição Invisibilidades, Galeria Leme (S. Paulo), 2009: Vista Geral.

II

DIMENSÃO DA CORPORALIDADE E O ESPAÇO.

2.1. O CORPO, A ESCALA E O LUGAR.

“Sim, eu acho que o meu trabalho tem muito a ver com o espaço e, portanto, pensa muito

sobre o espaço onde está a ser incluído, mas também pensa sobre ou implica muito o

espectador, todas as minhas obras têm um lado performático.

Essa separação entre o pensar o espaço e quem o habita ou utiliza, às vezes existe quando se

pensa muito na arquitectura, por vezes esquece-se as pessoas, o conforto, o desconforto ou o

que isso provoca nas pessoas. Eu trabalho sempre nesses dois campos.

(…)

Lembro-me de ler uma frase do pensamento do Vito Acconci, em que acho que ele diz: se o

espaço for flexível, as pessoas passam a ser flexíveis. Outra, do mesmo artista, que também

tenho sempre muito presente é: se um espaço puder ser usado por um adulto da mesma forma

que uma criança usa esse espaço, é porque é um espaço interessante, é um espaço que nos

abre, que nos não condiciona.

O que me interessa é romper com todos os condicionalismos que temos criado nas cidades,

(…). Cada vez mais, temos sítios específicos para fazer coisas específicas e as pessoas já não

conseguem escolher; sobretudo, gosto da ideia de que as peças sejam bastante flexíveis, que

permitam muitos acontecimentos e que ultrapassem as minhas espectativas.”

Excerto da entrevista realizada a Fernanda Fragateiro.

27

2.1. O CORPO, A ESCALA E O LUGAR.

Durante a década de 60, a experiência da percepção corporal foi explorada por diversos

artistas ligados ao minimalismo; os convites à participação física do espectador difundiram-se e

intensificaram-se nas propostas artísticas.

A apreciação da obra de arte envolvia então muito mais do que a sua simples observação: a

obra era realizada para ser experimentada e por vezes, participada pela sua assistência. Se,

até esse momento, eram criadas obras nas quais as características físicas do espectador

possibilitavam diferentes percepções do objecto artístico, um novo conceito de arte é agora

assente, na dimensão corporal. O corpo passa, assim, a ser tratado como objecto de arte e

material essencial na criação artística. Segundo Mary Kelly52

, os novos conceitos de Body Art e

Performance visavam compensar as audiências pela desmaterialização praticada pelos artistas

americanos no seio do movimento Minimalista.

Considerando especificamente a compreensão da obra de Fernanda Fragateiro, incidir-se-á na

Performance Art e no seu factor essencial e mais característico – a interdisciplinaridade: arte,

escultura, arquitectura, teatro e música coligam-se de forma a criar a expectativa do corpo;

tornando, o próprio artista numa obra de arte que se realiza nestes vários planos. O desafio

dos limites da arte e a criação de uma linguagem interdisciplinar entram na linha dos

experimentalismos pós-1960, através da introdução de novos termos e práticas como a arte

Conceptual, a arte Processual, a Instalação, a Land Art e ainda, a Body Art e a Performance. É

numa proposta de aproximação da arte à vida – defendida por Rauschenberg – com contornos

da Arte Povera Italiana, do Construtivismo Russo e na forma como o grupo de artistas

americanos, a partir de meados do séc. XX, a irá tomar como sua sob os contornos de

‘happenings’ e o experimentalismo das manifestações do grupo Fluxus, que a Performance

apresenta as suas bases.

Extrapolando a presença física do espectador e a sua percepção do objecto no espaço para a

validação da obra como arte, proposta na crítica à teatralidade das obras minimalistas de

Michael Fried em “Art and Objecthood” (1998)53

, estas obras chamam efectivamente o corpo e

o próprio espectador à acção, de uma forma totalmente consciente.

A palavra ‘espectador’ perde assim, o seu sentido, no que se refere a obras que requerem a

activação e participação física de um público, como na instalação interactiva de Robert Morris

de 1971, ‘Bodyspacemotionthings’ onde, pela primeira vez, foi proposto ao público que

interagisse fisicamente com as obras de arte, no que se relata como, a primeira exposição

52

David Hopkins – op. cit., p. 187. “Mary Kelly asserted that such apparently radical activities

compensated audiences for the dematerialization being practiced elsewhere.” 53 Michael Fried – op. cit., pp. 116-147.

28

totalmente interactiva da Tate Gallery em Londres54

. A exposição foi reproduzida recentemente,

em 2009, na Tate Modern, em Londres e, em 2011, esteve em Portugal, no Museu de

Serralves, no Porto. Neste contexto, refere-se também, a série de trabalhos de Victo Acconci,

de 1980, intitulada ‘Self-erecting Architecture Units’, na qual, o espectador era convidado a criar

ou activar os espaços, segundo Tom Finkelpearl: “Quer o espectador fosse convidado a

pedalar numa bicicleta que movia um cenário, ou a sentar-se num baloiço que puxava para

cima paredes enquanto estas caiam no chão, as obras eram incompletas sem a partição activa

do público.” 55

Para além do estabelecimento de uma relação de dependência entre espaço, obra e

espectador, estas obras apresentam já um carácter lúdico, uma dimensão funcional intrínseca

à sua utilização, que transforma o público não só em participante, mas em utilizador ou fruidor.

Fig. 47. Robert Morris - 'Bodyspacemotionthings', 1971.

Fig. 48. 'Bodyspacemotionthings', na Tate Modern, Londres, 2009. Fig. 49. 'Bodyspacemotionthings', no Museu de Serralves, Porto, 2011.

54

Mais informação em www.tate.org.uk/modern/eventseducation/musicperform/18331.htm 55

Tom Finkelpearl – Dialogues in Public Art. Massachusetts: MIT Press, 2000. p.174. Trad. Liv.

Fig. 50. Vito Acconci - 'Instant House' da série 'Self-erecting architecture', 1980.

29

Na Body Art, ao contrário da Performance, a exploração corporal é realizada pelo artista em

relação ao seu próprio corpo, contrapondo o ideal minimalista do afastamento do artista em

relação à sua obra. Estes artistas procuram, assim, expor-se, explorar os limites do seu corpo

de forma por vezes chocante e propor ao espectador um questionamento, tanto as actividades

mais banais do seu dia-a-dia como os temas mais polémicos e estruturantes da sociedade nos

anos 70, como o feminismo, a homossexualidade ou as políticas culturais; concretizando, desta

forma, uma aproximação da arte à vida, à sociedade e a um público que se desejava cada vez

mais vasto.

É também de realçar que artistas como Vito Acconci, Robert Morris, Claes Oldenburg, Bruce

Nauman ou Scott Burton, entre outros, darão o salto da Performance Art para a Arte Pública,

trabalhando a questão da escala e de um público vasto e indeterminado, na criação de obras,

que nalguns casos se focam maioritariamente na função ou numa forma de diálogo social.

A transição para a esfera pública, onde se localiza a arquitectura, revelou-se, pelas várias

relações que estabelece com o espaço envolvente, bastante apelativa para os artistas que

rejeitavam as instituições. A saída para a esfera pública, segundo Suzanne Lacy, teve como

ímpeto inicial a expansão do mercado da escultura, aliado às potencialidades que o espaço

exterior nas áreas urbanas oferecia como novo contexto expositivo. Este facto é encarado

pelos artistas do final dos anos 60 e início dos anos 70 de uma forma bastante literal; segundo

a autora, estas obras, embora assimilassem a escala do espaço público, remetiam ainda para

versões em grande escala de originais encontrados em museus e galerias56

. Miwon Kwon

distingue, deste modo, a Arte Pública da ‘arte em espaços públicos’ (“art-in-public-places”) 57

,

afirmando que o termo Arte Pública era utilizado, em meados da década de 70, por

profissionais da Arte Pública, para descrever esculturas de grande escala que eram somente

colocadas no espaço público, sem qualquer relação com a sua envolvente. E que o termo ‘arte

em espaços públicos’ designava um tipo de arte que, embora obedecesse à mesma escala,

integrava uma consciência activa do local onde era inserida, e que era realizada tendo já em

conta o espaço que iria ocupar e as suas características arquitectónicas e sociais.

No entanto, a associação deste tipo de obras ao conceito de site-specific58

e a assimilação das

novas escalas da Land Art, bem como a possibilidade de verdadeira alteração da paisagem ou

ambiente urbano, iria estabilizar a Arte Pública dentro deste conceito de ‘arte em espaços

públicos’. Tendo agora de se relacionar, de dialogar, de interagir com o edificado, alguns

artistas focam no objecto arquitectónico a sua prática (como Rachel Whiteread, Gordon Matta-

Clark, Dan Graham), ou operam dentro dos procedimentos arquitectónicos para a produção de

obras de grandes dimensões ou obras de carácter utilitário. A transição da arte para a esfera

pública acabaria por passar pela arquitectura, de modo a contrariar a indiferença ao seu local

56

Suzanne Lacy – op.cit., p. 22. 57

Miwon Kwon – op.cit., p. 60. 58

Em 1974 para contrariar a ineficiente influência no ambiente urbano da Arte Pública a NEA começa a

exigir a adopção dos princípios do site-specific na Arte Pública. Miwon Kwon, 2002, p.65

30

de integração, vindo o resultado final a ultrapassar a escala dos objectos, para estabelecer

novas relações com a sua envolvente arquitectónica e, em última instância, social.

Tendo em conta que a Arte Pública apresenta, como factor determinante para o seu

alargamento, a sua “condição multidisciplinar”59

. Torna-se necessário, para os artistas que

transitaram para a esfera pública, o estabelecimento de uma relação de maior proximidade

com as disciplinas que intervêm no espaço urbano. Embora a pintura, a escultura e o teatro, já

se apresentassem interligadas nas formas artísticas, que emergiram nas três décadas

seguintes ao pós-guerra, como por exemplo, a Performance; a Arte Pública iria introduzir, neste

cruzamento, disciplinas como a arquitectura, o urbanismo, o paisagismo e o design de

equipamento, na ambição de criar um novo ambiente urbano e através de uma arte acessível a

todos e intimamente ligada ao local onde se insere.

Esta relação com a arquitectura através da Arte Pública de carácter utilitário é assumida pelo

artista Vito Acconci, que afirma: “There shouldn’t be a separate field called “public art”, there

should be only architecture, only landscape architecture; there should be architecture projects,

and landscape architecture projects, that everyone – including so-called artists – can apply for.

“Public art” gives an artist an excuse to say: this is like architecture, but it isn’t really architecture

– so it doesn’t have to observe the rules and regulations that architecture has to observe, it

doesn’t have to be as functional as architecture. If the public artist were in the role of architect,

there would be nothing to hide behind.”60

A acessibilidade livre e a presença de um número elevado de espectadores da obra, é para

alguns autores, como Malcom Miles e Lucy Lippard, e para artistas como Robert Morris,

essencial para o conceito de Arte Pública, intrinsecamente associada à criação de ‘lugares’.

Esta transformação do espaço em ‘lugar’ implica, tal como Montaner afirma61

, a presença física

do espectador, neste caso do público geral, e a alteração da percepção do mesmo, de um local

do qual por vezes já continha informação em ‘lugar’ renovado que transmite uma experiência e

percepção do mesmo, totalmente novas. Patricia Philipes apresenta, no entanto, uma outra

perspectiva de Arte Pública: “A arte pública não é pública só porque está ao ar livre (…) é

pública porque é uma manifestação de actividades e estratégias que utilizam o público como a

génese e o tema a analisar. É pública por causa do género de questões que são levantadas ou

postas, e não pela sua acessibilidade ou número de espectadores (…) ”62

; nesta afirmação, a

presença física do espectador é transcendida pelo carácter social e crítico que a Arte Pública

viria a assimilar a partir de 1980.63

59

José Pedro Ragatão – Arte Pública e os novos desafios das intervenções no espaço público. 2ª Ed.

Bond: Books on Demand, 2010, pp. 65-66. 60

Tom Finkelpearl – op. cit., p. 174. 61

Joseph Maria Montaner – Modernidade Superada. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2001. 62

Harriet Senie, Sally Webster – Critical Issues in Public Art: Content, Context and Controversy.

Washington: Smithsonian Institution Press, 1998, pp. 297-298. 63

Idem, p. 289.

2.2. CAIXA PARA GUARDAR O VAZIO, 2007.

31

2.2. FERNANDA FRAGATEIRO: CAIXA PARA GUARDAR O VAZIO, 2005.

“Caixa para Guardar o Vazio é simultaneamente construção e tempo, corpo e performance,

espaço e coreografia.”64

A importância do corpo na obra de Fernanda Fragateiro é recorrente; ao trabalhar a

espacialidade o corpo serve como referencial, como medida da obra; “todas sem excepção

contêm a possibilidade do corpo nelas se manifestar, isto é, contêm a possibilidade da

performance”65

; a artista afirma que: ”Interessa-me criar lugares onde o corpo encontre

“inúmeras possibilidades de ser corpo”66

.

Torna-se difícil, neste caso de estudo, não catalogar esta obra como arquitectura. Num

primeiro olhar seria, de facto, uma interpretação fácil e com alguma consistência se nos

basearmos na função de habitáculo e na escala desta obra. No entanto, a própria artista recusa

esta ideia, com a afirmação de que a Caixa para Guardar o Vazio “não serve para aquilo que a

arquitectura serve, a sua função não é da ordem da arquitectura mas talvez mais da poesia, ou

seja, serve para pensar mas não serve para mais nada. (…) eu acho, que é um projecto que só

podia ser feito por um artista.”67 Fernanda Fragateiro, não ambiciona qualquer relação com a

arquitectura, assume apenas, que opera por vezes, dentro de procedimentos arquitectónicos e

que tem, pela arquitectura, um enorme fascínio e interesse.

A ‘Caixa para Guardar o Vazio’ nasceu de um pedido do Serviço Educativo do Teatro Viriato,

em Viseu, para a realização de um projecto tendo como único programa a ideia de através das

crianças, comunicar com uma comunidade fechada e pouco interessada em iniciativas mais

contemporâneas. Fernanda Fragateiro decidiu trabalhar sobre o espaço, sobre a descoberta do

espaço, afirmando: “O que eu queria era que se começasse a pensar nisso e ainda, trazer ao

de cima o tema do vazio. Estamos sempre a falar do património material e esquecemo-nos que

há uma parte muito importante desse património, que é o vazio, que é o não ter nada, que é o

silêncio, e discutir isso com miúdos, discutir sem palavras, parecia-me muito interessante.”68

A peça segue o conceito das obras de Morris e de Vito Acconci atrás referidas, sendo o último

uma grande referência para a artista. A obra é um objecto para ser experimentado, accionado

pelo corpo, tocado, vivido, e neste caso, até habitado. De uma forma sucinta e factual, a obra

materializa-se num paralelepípedo de quatro por três metros, construído em madeira, aço e

uma superfície espelhada, utilizada com pavimento interior. À primeira vista fechado, oculta no

seu interior, componentes móveis que, quando activados, atravessam para o exterior

possibilitando a entrada e exploração de uma nova relação interior-exterior. Em toda a sua

64

Claudia Taborda – “Figuras de espaço na arquitectura de um Vazio”. Caixa para guardar o vazio.

Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p.13. 65

Fernanda Fragateiro – Quarto a céu aberto. Lisboa: Culturgest, 2003, p. 8. 66

Helena Vasconcelos – op.cit., p. 91. 67

Fernanda Fragateiro – Entrevista realizada pela autora. 68

Idem.

32

simplicidade, apresenta, no entanto, várias formulações distintas; inicialmente fixa, imóvel e

aparentemente imutável, é constituída por um volume puro, sólido e fechado, de escala

próxima da arquitectura, que possibilitaria a sua habitabilidade, não fosse esta negada pelo seu

hermetismo inicial, mas que, mesmo assim, “imediatamente remete à ideia primária de

abrigo”69

.

Esta forma fixa perder-se-á no tempo e no espaço, num processo vivo de complexificação, no

qual surgem uma multiplicidade de volumetrias originárias do primeiro objecto e das suas

várias superfícies ocultas, que se assemelham a elementos arquitectónicos como portas,

janelas, paredes e passagens. A activação destes elementos é realizada através da dança,

numa coreografia especialmente concebida por Aldara Bizarro para a exploração dirigida a

crianças. Os corpos dos bailarinos transformam a obra num dispositivo impermanente e

imprevisível aos olhos do espectador; ao serem activados os vários dispositivos, o espaço é

alterado inúmeras vezes e é-lhe assim retirada toda a solidez inicial; a Caixa perde a sua

materialidade, o vazio dá agora azo à “criação de múltiplas espacializações que afectam

[surpreendem] o seu observador de um modo ainda não percepcionado”70

.

A performance de corpos que trespassam a obra, que levantam, empurram ou abrem as várias

superfícies, numa coreografia geométrica reveladora do espaço no tempo de acção (no que

Delfim Sardo intitula de “jogo exploratório”)71

e, ao mesmo tempo, que introduzem a noção de

escala do objecto, introduzem-no também como objecto cénico que, ao ser habitado, encontra

a metáfora do espaço real, convertendo-se numa estrutura transversal.

Em entrevista, Fernanda Fragateiro explica também o carácter social e político presente na

obra afirmando que: “O título da peça refere-se à possibilidade de habitar um vazio, que é um

lugar “desabitado pelo corpo”. Realmente interessa-me muito a produção de espaço e a

discussão de questões com ele relacionadas, de uma forma poética, mas também política,

social, económica, implicando, nessa compreensão/discussão as pequenas comunidades,

especialmente as crianças que (com) viveram (com) a peça. Neste projecto quis abarcar todos

os sentidos e usar múltiplas possibilidades de compreensão das várias camadas que

constroem uma determinada realidade espacial, uma vez que é importante perceber as

potencialidades do espaço de, por exemplo, uma folha de papel que temos à nossa frente, do

espaço do nosso quarto, da nossa casa ou da nossa sala de aula ou de trabalho, para

podermos perceber o espaço da nossa cidade e do nosso mundo, de forma a intervir nele

livremente”72

A importância desta obra reside na forma como estabelece um diálogo com o corpo, como se

abre ao público possibilitando uma transição fluida entre sujeito espectador e utilizador, na

forma como o seu sentido é regulado através da interacção com quem o experiencia, e

69

Claudia Taborda – op.cit., p.12. 70

Idem, p. 12. 71

Delfim Sardo – p. 37 72

Helena Vasconcelos – op. cit., p.90

33

finalmente, na forma como o espaço é trabalhado e se torna cenário para uma experiencia

social. Tal como é indicado pela artista, o espaço é o vazio habitado pela presença humana, e

como tal, acarreta as consequentes questões de relação e identidade, intrínsecas à nossa

presença no mundo e à forma como nos relacionamos em sociedade, com a cidade e com o

espaço urbano que nos envolve diariamente.

Fig. 51. Maqueta à escala 1:10, 2005.

Fig. 52. Intervenção coreográfica dirigida por Aldara Bizarro, 2005.

Fig. 53. Fernanda Fragateiro – ‘Caixa para Guardar o Vazio’, 2005, Centro Cultural Vila Flor, Guimarães.

III

VERTENTE SOCIAL DA ESPACIALIDADE

3.1. QUANDO A ARTE SAI À RUA.

“Muito mais condicionante do que a população, são todas as condicionantes do que é trabalhar

num espaço público. Um projecto de arte pública, no fundo, é sempre um projecto de

negociação com muitas partes, até com o próprio tempo, com o clima.

(…)

Tenho muito essa posição política de colaborar para chegar a um porto comum, que seja bom

para as pessoas. Se calhar, não estou tão interessada em defender uma determinada imagem

para o meu trabalho, ou seja, se a imagem não for tão boa ou tão interessante, mas se

funcionar para as pessoas para mim já é bom, já fico contente. Há um momento, em que é

preciso decidir se queremos criar uma determinada imagem, que tenha um efeito nos media e

na aceitação da crítica, ou se queremos fazer uma coisa que, se calhar, pode não ser tão

radical ou tão experimental mas que trabalha e traz qualquer coisa de bom para a comunidade.

Esta é uma decisão que um artista pode tomar, e acho que ambas as posturas são válidas e

interessantes. Eu tenho a que me dá, se calhar, mais prazer, que tem mais a ver comigo e que

me faz sentir mais equilibrada. Normalmente não me interessa decorar um espaço, ou fazer

uma escultura, o que me interessa é que o meu trabalho possa contribuir para atravessar as

coisas sem ser impositivo.”

Excerto da entrevista realizada a Fernanda Fragateiro.

34

3.1. QUANDO A ARTE SAI À RUA

“(…) Chris Burden has remarked: ‘I just make art. Public art is something else, I’m not sure it’s

art. I think it’s about a social agenda’.”73

Em 1968, o artista francês Daniel Buren, para uma exibição na Salon de Mai, no Palais de

Tokyo, em Paris, contrata dois ‘sandwishmen’ (homens usualmente contratados para carregar

cartazes publicitários na mesma época em Paris) para passearem as suas obras no exterior do

museu. Cinco anos mais tarde, o mesmo artista realiza outra obra emblemática, intitulada

‘Within and Beyond the Frame’ (1973), para a John Weber Gallery, em Nova Iorque, na qual

uma série de telas com as suas riscas características, transpõem o espaço expositivo e saem

para o exterior atravessando a fachada da galeria até à fachada do edifício localizado do lado

oposto da rua.

Através destas duas obras, podemos entender como o espaço de galeria chegou ao seu limite,

como o espaço fechado e neutro do ‘cubo branco’74

deixou de conseguir conter a arte das

novas tendências artísticas dos anos 70, já tratadas no capítulo anterior.

Na experiência de retirar à abstracção modernista de Buren, ou mesmo ao Minimalismo de

Frank Stella, o pano de fundo branco do museu e ao inseri-las num contexto urbano, complexo,

rico em referências culturais, históricas, sociais, ou mesmo, numa situação em que o pano de

fundo, é a própria vida. Estas obras tornam-se “vulneráveis ou mesmo invisíveis”75

e a sua

validade artística, que pela localização numa instituição artística era automaticamente

garantida, é agora posta em causa.

Fig. 54. Daniel Buren - 'Sandwich Men', Paris, 1968.

73

Jane Rendell – op. cit., p. 5. 74

Brian O’Doherty – Inside the White Cube: The ideology of the galler space, 4º Ed. (1ª Ed. 1976).

California: University of California Press, 1999. O conceito de “cubo branco” é introduzido por Brian O’Doherty em Inside the White Cube (1976), para descrever os novos espaços museológicos ou expositivos modernos, que na sua inocuidade despiam as obras de arte do seu contexto histórico, social e económico, negando à arte a participação na construção da realidade. 75

David Hopkins –op. cit., p.161.

35

Fig. 55. Daniel Buren - 'Peinture-Sculpture', Guggenheim N.Y., 1971.

Fig. 56. Daniel Buren - 'Within and Beyond the Frame', John Weber Gallery, N.Y., 1973.

Em ambas as obras, realça-se o facto de que uma arte auto-referencial e fundamentalmente

estética dificilmente sobreviverá no exterior. Reforçando assim, por um lado, o conceito site-

specific e, por outro, o carácter interventivo dos artistas do Construtivismo e da Arte Povera

versus o carácter integracional da arte site-specific.

A importância de uma postura interventiva na sociedade, por parte dos protagonistas da Arte

Pública é defendida, por exemplo, pelas autoras Rosalyn Deutsche, Luccy Lippard e Miwon

Kwon. Segundo a última autora referida, a arte só fará sentido fora do museu e aceite na esfera

pública, se estiver interligada ao respectivo contexto e se, na sua génese, estiverem respostas

a questões sociais ou urbanas. Kwon explica que ao transitar para o espaço público, “a obra já

não pretende ser um substantivo/objecto mas um verbo/processo, provocando a acuidade, não

somente física mas critica, do espectador em relação às condições ideológicas da visualização.

(…) a crítica ao confinamento cultural da arte (e dos artistas) pelas instituições, é agora

dominada por práticas que procuram outros enquadramentos e um intenso envolvimento com o

mundo exterior e com o público na sua vivência diária (…).”76

Com a entrada da arte na esfera pública, os artistas unem-se aos arquitectos no que toca à

exposição total do seu trabalho ao mundo, à crítica dos média ou de um público geral, muitas

vezes não preparado para novas experiências artísticas ou arquitectónicas. Ao não atenderem

às características sociais do local, ao não integrarem a comunidade na obra ou ao ignorarem

as novas condicionantes do espaço urbano, os artistas vêm-se, por vezes, incompreendidos e

em situações de polémica. Dois casos que ilustram exemplarmente estas situações são: a obra

‘House’ (1993) de Rachel Whiteread e a obra ‘Tilted Arc’ (1981) de Richard Serra. Ambas as

obras, independentemente do seu valor artístico, sucumbem à vontade da população,

demonstrando que, no espaço público, a aceitação da obra pela comunidade que a acolhe é

crucial à sua sobrevivência.

O primeiro caso demonstra que os artistas que actuam no espaço público devem desenvolver

novas capacidades de relação com o espectador e que devem estar dispostos a discutir a sua

obra no seio da comunidade que a irá receber. A obra de Whiteread, ‘House’, visava manter

viva a memória da última casa de um bairro Vitoriano do início do séc. XIX, destruído no

76

Miwon Kwon – op. cit., p. 24.

36

decurso da Segunda Guerra Mundial, através da moldagem em cimento do espaço negativo da

casa. A presença da obra causou reacções díspares, por parte do público e da comunidade

artística, recebendo, por um lado, o prémio Turner, e por outro, acusações desmedidas do

favorecimento da artista em relação à política de demolições por parte da população de Tower

Hamlets. O não entendimento da intenção da obra causou uma enorme polémica que culminou

com a sua demolição em 1994.77

Fig. 57. Rachel Whiteread - Parts 1-4 de House Study (Grove Road) 1992.

Fig. 58. Rachel Whiteread - 'House', 1993 (pré intervenção, vista frontal e lateral).

O segundo caso ilustra a obra mais marcante na discussão da arte no espaço público, mas

também a que maior polémica causou até aos dias de hoje. A obra ‘Tilted Arc’ de Serra

situava-se na Federal Plaza, em Nova Iorque e materializava-se num enorme arco em aço

corten, com 36,576m de comprimento e 3,6576m de altura, que atravessa a praça na sua

diagonal. Ao cortar o atravessamento directo da praça, Serra obriga o espectador a percorrer a

obra minimalista, ganhando assim percepção da sua condição física, corporalidade e

espacialidade em relação ao espaço e à própria obra. A polémica que envolveu esta peça

surgiu passados apenas dois meses após a sua instalação, através de uma petição com cerca

de 1300 assinaturas dirigida à GSA78

pedindo a remoção da obra. A atitude irreverente de

Serra, ao impedir o atravessamento directo da praça, e a própria escolha do material, foram as

principais causas da revolta pública, que culminou numa audiência em tribunal e que levou à

remoção da peça em 1989.79

77

James Lingwood – House. London: Phaidon Press/Artangel Trust, 1995. Neste livro encontram-se

vários ensaios, artigos e cartas que apareceram na impressa e que ilustram a polémica que envolveu a obra. 78

GSA – U.S. General Services Administration: Agência independente do Governo Americano, criada em

1949 para a gestão de agências federais. 79

Harriet F. Senie, Sally Webster – op. cit., p. 23.

37

Richard Serra criara uma obra que, ao assumir não só uma postura crítica de subversão da

ordem do espaço público, como de contraste com a arquitectura envolvente e de

questionamento dos hábitos comuns da comunidade, desafiou o conceito de site-specific e

todas as obras realizadas até então, que admitiam uma certa invisibilidade no espaço público.

Cerca de uma década após a demolição da obra, o espaço deixado livre é ocupado por um

projecto de Martha Schwartz que surge como a antítese da proposta de Serra. Trata-se de uma

obra de carácter utilitário e lúdico, com um programa funcional definido, que busca uma relação

de harmonia com a comunidade. Embora altere o ambiente da praça e ofereça um espaço

funcional, nada é questionado ou posto em causa.

Os três casos demonstram o fim do artista de estúdio, alheio à envolvente física e humana da

sua obra e do impacto que esta pode ter no espaço urbano, e dão a entender as diferentes

posturas que o artista pode ter ao intervir no espaço público, assim como o poder do público ou

da comunidade em relação à existência da obra de arte. Se no primeiro exemplo, a falta de

preparação ou informação da comunidade, criou conflito mesmo quando este não é proposto

pela obra, o segundo, busca exactamente esse conflito e tensão com a comunidade através da

imposição de um questionamento da experiência quotidiana do espaço e de nós próprios, mas

que devido à sua precocidade encontra um público ainda indisponível a esse tipo de

experiência artística. Por fim, encontra-mos uma proposta que busca servir uma carência, uma

harmonia entre o espaço e quem o vive diariamente e que, acima de tudo, não procura

qualquer reacção, que não seja lúdica, por parte da comunidade.

Fig. 59. Serra - 'Tilted Arc', 1981. Fig. 60. Richard Serra com 'Tilted Arc'. Fig. 61. Poster para fundo de defesa da obra de Serra, 1988.

Fig. 62. Destruição do 'Tilted Arc', 1989. Fig. 63. Martha Schwartz - Federal Plaza, N.Y., 1997.

38

Fig. 64. Projecto da MVVA Landscape Architecture para Jacob Javits Plaza, N.Y., 2009-11.

“As Public Art shifts from large scale objects, to physically or conceptually site specific projects,

to audience-specific concerns (works made in response to those who occupy a given site), it

moved from an aesthetic function to a design function, to a social function. Rather than serving

to promote the economic development of American cities, as did Public Art in the late 1960, it is

now being viewed as a mean of stabilizing community development throughout urban centers.

In the 1990’s the role of public art has shifted from promoting aesthetic quality to contributing to

the quality of life, from enriching lives to saving lives.”80

Mary Jane Jacob refere uma evolução, um caminho específico que culmina numa

consciencialização e responsabilização dos artistas em relação ao efeito das suas obras, para

a sociedade em geral e para a comunidade em que se inserem em particular.

Surgem, assim, dois novos paradigmas dentro da Arte Pública: a arte pública de função social

e a arte pública de carácter utilitário. Estes conceitos, embora frequentemente interligados,

implicam diferentes modos de actuar no espaço público, e diferentes formas de se

relacionarem com o espectador.

O primeiro paradigma, também designado por Kwon como ‘arte no interesse do público’ (“art-

in-the-public-interest”81

), envolve uma aproximação mais forte entre o artista e o público ou a

comunidade; nesta forma de arte pública, o público não só é parte integrante da obra, mas é

também factor decisivo na sua formulação.

Entre os artistas que, na sua prática, põem em primeiro plano este tipo de questões sociais

e/ou politicas, assumindo o papel de activistas ou envolvendo-se em colaborações directas

com a comunidade, distinguem-se: John Malpede, Daniel Martinez, Hope Sandrow, Guillermo

Gómez-Peña, Tim Rollins + K.O.S., e Peggy Diggs. Este grupo de artistas desenvolve

trabalhos em que a arte é entendida como um veículo de acção comunitária, como um meio

educacional que enriquece a sociedade, através da expressão de conteúdos específicos,

centrados em comunidades locais. A arte não serve, assim, como meio de expressão do artista

mas da comunidade na qual actua; não é realizada para um público geral mas para um grupo

específico, com uma agenda pré-definida.

80

Mary Jane Jacob – op.cit., p. 56. 81

Miwon Kwon – op.cit., p. 60.

39

Como exemplo deste tipo de aproximação ou intervenção artística na sociedade, surge o grupo

K.O.S (Kids of Survival), criado por Tim Rollins82

, em 1984, e ainda activo actualmente; através

da arte, Rollins estabelece um diálogo interventivo com estudantes problemáticos da Escola

Pública 52 do South Bronx, Nova Iorque. A sua proposta assentava no incentivo da criatividade

e numa produção artística, activa e de forte conexão com a literatura, com o objectivo

especifico de formar jovens criativos e capacitá-los para além das suas limitações intelectuais,

sociais e por vezes psicológicas. Mais recentemente, Peggy Diggs realizou ‘Faces’ (2009) para

a Williams College em Massachusets, através da impressão de questões de origem racial em

guardanapos distribuídos diariamente na cafetaria e refeitório, a artista tinha como objectivo,

não só chamar a atenção ao tema, mas também incitar a discussão do mesmo, passado o

tempo de acção da obra.

Fig. 65. Tim Rollins e o grupo K.O.S., 1987

Fig. 66. Roberto Ramirez do grupo K.O.S a trabalhar na escola I.S. 52 (South Bronx), 1982.

Fig. 67. Tim Rollins + K.O.S. - 'Amerika-For The People of Bathgate', 1988.

Fig. 68. Tim Rollins + K.O.S. - 'Untitled', 1982-83.

Fig. 69. Peggy Diggs - Guardanapos com questões sobre o racismo distribuídos no projecto 'Faces', 2008.

Levando o conceito de ‘arte de interesse público’ ao extremo e a uma forma de arte específica

e concretizada, Suzanne Lacy irá introduzir e catalogar, em 1993, este tipo de arte com o termo

“new genre of public art”83

- explorado na sua obra “Mapping the Terrain” e na apresentação do

programa Culture in Action: New Public Art in Chicago. Suzanne Lacy foca-se num tipo de arte

82

“(…) they hated schooI, and they loved art, and I knew dip down in my soul, that if we all got together,

and we made art together, that not only could we make art but we could make history.” Entrevista a Tim Rollins e os K.O.S. por ocasião da exposição na galeria Lehmann Maupin, em 2008. Disponível em: http://www.lehmannmaupin.com/#/artists/tim-rollins-and-kos/ 83

Suzanne Lacy – op. cit., p. 19.

40

que ultrapassa a estética, o espaço, a arquitectura, o espectador, o artista e a escala, para se

centrar na sociedade, envolvendo-se de uma forma mais profunda que nunca com o público.

As obras criadas dentro desta nova tendência obedecem ao conceito ‘site-specific’ e

relacionam-se com a arquitectura; no entanto, exploram também a história do local, investigam

as questões ambientais e políticas, tomando sempre em consideração as características da

comunidade que o habita, através de uma relação próxima e de diálogo com a mesma: “A

inclusão do público interliga teorias da arte com uma população mais vasta; o espaço existente

entre as palavras público e arte, consiste numa relação desconhecida entre o artista e a sua

audiência e é a exploração desse mesmo relacionamento, que se torna agora na obra de

arte.”84

Segundo Lacy, o termo “new genre public art” é adoptado para caracterizar arte visual que “(…)

utiliza meios tradicionais e não tradicionais, para comunicar ou interagir com um público amplo

e diversificado acerca de temas directamente relacionados com o seu quotidiano”, dando

exemplos de questões profundas na sociedade contemporânea como “lixo tóxico, racismo, os

sem-abrigo, o envelhecimento, os gangues e a identidade cultural.” Estes artistas apresentam

uma desenvolvida sensibilidade em relação à audiência, adoptam estratégias públicas e sociais

premeditadas e por vezes discutidas com o público que irá acolher a obra, e preocupam-se

verdadeiramente com a eficiência da sua obra a longo prazo85

.

Marcante para este conceito e directamente relacionado com a obra de Fernanda Fragateiro

para o programa Lisboa Capital do Nada, realizado em Marvila, em 2001, surge o programa

curado por Suzanne Lacy, em 1993, Culture in Action: New Public Art in Chicago.

O programa, de duração de cerca de cinco meses, reúne artistas de Chicago, a comunidade

local e a organização na produção de obras de arte pública. Embora similar a outras iniciativas

que visavam expandir os limites deste género de arte, explorar a participação do público no

diálogo sobre o local e o significado da arte na sua vivência diária; Culture in Action distingue-

se ao ambicionar também, a eliminação do papel do arquitecto e de outros profissionais do

desenho da cidade, do processo de arte pública; trazendo para o centro do diálogo, e como

figura de maior autoridade, a comunidade.86

Os oito projectos realizados dentro da iniciativa

tiveram como requisito a colaboração directa entre o artista e a população residente, não se

exigindo, no entanto, qualquer resultado ou acção artística especifica. As obras variam tanto na

temática social explorada, como na forma artística escolhida para a transmitir, resultam

exemplos que se estendem da escultura, à instalação, ao vídeo e à performance. As mais

representativas do conceito de “new genre public art” são da autoria dos artistas, Daniel J.

Martinez, Iñigo Manglano-Ovalle e a do grupo Haha.

84

Suzanne Lacy – op. cit., p. 20. Trad. Livre. 85

Idem, p. 19. Trad. Livre. 86

Miwon Kwon – op. cit., p. 104.

41

O projecto ‘Consequences of a Gesture’ de Daniel J. Martinez, em colaboração com VinZula

Kala e o grupo Los Desfiladores Tres Puntos de West Side, visava promover a interacção entre

as diferentes comunidades étnicas. A realização desta proposta contou com cerca de 35

organizações comunitárias e mais de mil afro-ameriacanos e mexicanos de todos os grupos

etários, numa ‘manifestação’ multi-étnica que percorreu os bairros Garfild Park e Harrison Park,

ambos de reconhecida rivalidade entre grupos hispânicos e afro-americanos.87

Fig. 70. Colaboração entre Daniel J. Martinez, VinZula Kara e Los Desfiladores Tres Puntos de West Side - ‘Consequences of a Gesture’, 1993.

O artista Iñigo Manglano-Ovalle, propõe uma aproximação pessoal e educacional que se

prolongará para além da iniciativa. Denominada de ‘Tele-Vecindario’, a instalação de vídeo

surge da intenção do artista em trabalhar directamente com cerca de quinze adolescentes do

bairro predominantemente latino de West Side Chicago. Manglano-Ovalle reúne os

adolescentes numa iniciativa intitulada Street-Level Video. Na qual, através da realização de

workshops de técnicas de gravação, produção, exibição e apresentação de vídeo, o artista

providência, a este grupo de jovens, as ferramentas necessárias à criação individual e posterior

exibição de vídeos que representem as suas vidas e que demonstrem a posição de cada um

em relação a várias questões políticas, sociais e de territorialidade urbana.

‘Flood’ é o nome do projecto do grupo Haha em colaboração com cerca de vinte voluntários.

Durante cerca de três anos (1992-95), os participantes plantaram uma horta hidropónica de

ervas terapêuticas utilizadas em doentes com HIV, num espaço no qual se oferecia também

alimentação, actividades educacionais, eventos públicos, informação e terapias alternativas.88

Este projecto diferencia-se dos anteriores, não só pela sua duração mas também, pela

diversidade de formas encontradas para o tratamento de um tema de enorme relevância nos

bairros sociais de Chicago.

87

Entrevista a Mary Jane Jacob realizada por John Tucker. Disponível em: http://never-the-

same.org/interviews/mary-jane-jacob/ 88

Haha – Flood: A Volunteer Network for Active Participation in Healthcare. Disponível em:

http://www.hahahaha.org/projFlood.html

42

Fig. 71. Iñigo Manglano-Ovalle - 'Tele-Vecindario', 1993. Fig. 72. Haha – ‘Flood’, 1992-95.

A arte pública, na sua formulação actual, constitui um dos meios artísticos de maior

proliferação a nível mundial, da última década. O que Lacy intitula de “new genre public art”

mantém-se, no entanto, uma frágil categoria na esfera da arte pública; embora tenha crescente

reconhecimento e alguns seguidores no final dos anos 90, Lippard afirma que, de facto, não

existem ainda muitos projectos realizados, devido essencialmente ao facto de que, muitos dos

artistas que ambicionaram fazer a sua pequena parte para mudar o mundo através de uma arte

orientada para a problemática social, acabaram por ser dissuadidos pela burocracia que

envolvia este tipo de projectos, percebendo assim que a relação requerida entre artista e

comunidade é uma tarefa difícil, e em alguns casos, quase impossível de concretizar.89

O segundo paradigma apresentado assenta na substituição da comunidade como objecto e

meio de actuação, para uma arte que, segundo Kwon, é espaço público, é arquitectura e

design. As obras de carácter utilitário apresentam, assim, através da realização de uma função

específica, uma proximidade transparente com a arquitectura e são, na sua maioria, realizadas

através de colaborações de artistas dentro de projectos arquitectónicos ou urbanísticos. Como

foi exemplificado através da controvérsia causada pela obra ‘Tilted Arc’ de Richard Serra e da

solução adoptada para a sua substituição, é possível entender, que as obras de arte pública de

função utilitária surjam como uma vertente distinta, mas não auto-exclusiva, das intervenções

realizadas no espaço público na década de 60. A tensão criada por obras que tinham na sua

base um questionamento sobre o espaço público e um inerente confronto com a sociedade, é

substituída por uma arte pública mais pragmática e lúdica, que propõe uma relação, agora de

harmonia e de subserviência com o público que a acolhe.

“The ideology of functional utility, foundational to the modernist ethos of architecture and urban

design, came to overtake the essentialism of formalist beauty, traditionally associated with art;

site-specific public art now needed to be “useful.””90

A arte inclui, nestas situações, uma função específica frequentemente associada ao mobiliário

urbano, ou a estruturas que se afirmam como arquitectura e que está intrinsecamente ligada a

esta nova mentalidade por parte dos artistas, uma forma de pensar o espaço urbano como

‘local’ de encontro humano, como espaço social.

89

Suzanne Lacy – op. cit., p. 124. 90

Miwon Kwon – op. cit., p. 5.

3.2. O PARAÍSO É UM LUGAR ONDE NADA NUNCA ACONTECE.

43

3.2. FERNANDA FRAGATEIRO: O PARAÍSO É UM LUGAR ONDE NADA NUNCA

ACONTECE – LISBOA CAPITAL DO NADA, 2001.

Fernanda Fragateiro insere-se, então, num restrito grupo de artistas que conseguiram, de certa

forma, concretizar a fundo este ‘novo género de arte pública’, defendido por vários

historiadores e críticos de arte, ao realizar uma intervenção participada, intitulada ‘O Paraíso é

um Lugar Onde Nada Nunca Acontece’, inserida na iniciativa Lisboa Capital do Nada.

“Lisboa Capital do Nada procurou contribuir para que o design, as artes plásticas e disciplinas

afins frequentem lugares que muitas vezes temem pisar. Não é de lugares físicos que falamos,

mas dessa instância da criação em que o conhecimento técnico, sentido ético e envolvimento

afectivo se desvanecem a favor da ideia de uma cidadania activa e participada.”91

Mário Jorge Caeiro, comissário deste evento cultural, que ocorreu durante o mês de Outubro,

em 2001, na Freguesia de Marvila, explica que os seus objectivos incluíam – através de um

trabalho transdisciplinar entre artistas plásticos, designers, arquitectos paisagistas, arquitectos,

geógrafos, antropólogos, instituições, representantes e moradores da freguesia – alterar a

imagem negativa de um território fragmentado, um bairro esquecido, trespassado por vias

rápidas e segmentado por espaços expectantes de um uso ou de um sentido único, “(…)

valorizar o local, quebrar a marginalização e o isolamento e promover uma nova imagem

urbana.”92

A arte surge, neste contexto, para construir uma nova identidade, estabelecer um sentimento

de pertença e dar voz àqueles que frequentemente não são ouvidos, através de processos

participativos nos quais os habitantes do bairro seriam trazidos “ (…) à discussão dos grandes

e pequenos tópicos de trabalho, à apresentação dos seus próprios valores num contexto de

alguma projecção mediática.”93

Fernanda Fragateiro desenvolve assim, um dos projectos que mais envolveram a população e

que mais se concentrou nas suas necessidades e qualidade de vida, muito para além da

efemeridade do evento. ‘O Paraíso é um Lugar Onde Nada Nunca Acontece’, irá em termos

práticos, pensar e redesenhar os espaços adjacentes à Urbanização da ‘Pantera Cor-de-Rosa’

(projecto da autoria do Arq. Gonçalo Byrne) e a Praça Raúl Lino (no Bairro dos Lóios), através

da incorporação de massa vegetal e mobiliário urbano nos espaços inicialmente projectados

para receber pequenos jardins e que se encontravam abandonados e em decadência,

91

Mário Jorge Caeiro – “Capital do Nada: uma introdução”, Lisboa Capital do Nada: Marvila, 2001.

Lisboa: Extra]muros[ associação cultural para a cidade, 2002, p. 10. 92

Idem, p. 11. 93

Idem, p. 13.

44

tentando, ao mesmo tempo, revelar as “potencialidades da relação arte-sociedade, na qual o

desenho urbano participativo é essencial”94

A sugestão da obra parte da associação Tempo de Mudar e o interesse de Fernanda

Fragateiro foi imediato. Num primeiro diálogo com os habitantes da urbanização, foram ouvidos

os seus anseios em relação à praça e aos espaços adjacentes, de modo a entender as

características físicas e sociais. Na Câmara Municipal, Fernanda Fragateiro descobriu que já

havia um projecto a decorrer para o mesmo espaço e explica que “a primeira fase, depois de

perceber que a Câmara tinha um projecto de requalificação, foi tentar perceber, como é que o

meu projecto, que tinha a ver com o plantar daqueles canteiros de uma forma muito simples, se

podia articular com o projecto da Câmara”95

, cujo responsável era o Arq. Paisagista José

Eduardo Luiz, da equipa da Direcção Municipal de Ambiente e Espaços Verdes da Câmara

Municipal de Lisboa.

Fig. 73. Urbanização 'Pantera Cor-de-Rosa' e Praça Raúl Lino préviamente à intervenção de Fernanda Fragateiro.

A postura da artista em relação a este projecto é explícita na afirmação: “quando a Câmara

soube que eu estava a fazer ali um projecto, o que tentaram foi que eu fizesse uma escultura

no meio da praça, coisa que obviamente me recusei a fazer. O que me interessava, na altura,

era dar à comunidade o que eles precisavam e não uma peça de decoração, para além de que

já havia alguma proximidade com a comunidade e tinham sido criadas algumas expectativas

em relação ao que íamos fazer ali.”96

Durante todo o projecto e nas diversas reuniões com a

comunidade, com a Câmara e, especialmente, com o morador do bairro (Sr. João) que tinha

ocupado, vedado e plantado densamente um jardim que era propriedade da autarquia e que a

artista tentava evitar que fosse arrasado, como era previsto no projecto de requalificação já

desenhado, Fernanda Fragateiro apresenta-se como catalisador de ideias e como ponte entre

os moradores do bairro e a DMAEV. Nas palavras da própria: “Eu era uma espécie de fada que

faz com que as pessoas conversem entre si.”97

O centro do projecto é a plantação dos canteiros com plantas sazonais oferecidas pela Câmara

e por flores e árvores do jardim do Sr. João, cuja destruição se evitava. O desejo de Fernanda

94

Lisboa Capital do Nada – “O paraíso é um lugar onde nada nunca acontece”, Lisboa Capital do Nada:

Marvila, 2001. Lisboa: Extra]muros[ associação cultural para a cidade, 2002, p.189 95

Excerto da entrevista realizada pela autora a Fernanda Fragateiro. 96

Idem. 97

Idem.

45

Fragateiro da participação da comunidade no projecto estendeu-se para além das reuniões,

tendo conseguido também que o trabalho de transplantação e plantação dos vários canteiros

fosse realizado por crianças de um grupo de futebol do bairro, pela Santa Casa da Misericórdia

que apoiava o grupo e por jardineiros da Câmara Municipal, que orientaram todo o processo. A

data escolhida para estas acções foi propositadamente um fim-de-semana, para que toda a

comunidade se deixasse contagiar e criar assim, uma relação com o projecto que garantisse a

sua manutenção a longo prazo.

A reabilitação da praça Raúl Lino, embora em tempo comum com o projecto dos canteiros, não

foi intervenção de Fernanda Fragateiro mas sim da Câmara, no entanto, foi acompanhada de

perto e com o olhar crítico da artista. O realizador Luís Alves de Matos registou todo o

processo, não só as reuniões e visitas da artista ao espaço como a obra da praça e posterior

ocupação, durante alguns meses, dando origem ao documentário ‘A Praça’.

Tal como foi referenciado no capítulo anterior, a obra de Fernanda Fragateiro, através da

inclusão do público e da esfera social envolvente, situa-se num espaço intermédio entre os

termos arte e público, no qual a obra de arte não se encontra no produto final, mas sim na

relação estabelecida entre artista e audiência, que se considera essencial à criação do “Lugar”

e ao processo de identificação e sentimento de pertença entre o espaço e os seus utilizadores.

Através de um diálogo aberto e consistente com a comunidade, ao longo de todas as fases do

projecto, Fernanda Fragateiro supera as expectativas iniciais em relação ao âmbito da sua

intervenção e restringe-se, como artista plástica, à utilização de uma linguagem expressiva e

tantas vezes autocentrada, dando lugar aos desígnios de quem no dia-a-dia estabelecerá uma

relação com o espaço e de quem a longo prazo o habitará, resultando assim, um projecto que

vai directamente ao encontro das necessidades e carências pessoais em relação a uma praça

“assumida descaradamente como Espaço Público”98

, e constrói um “Lugar” através de gestos

simples, que respeitam o que originalmente foi concebido por Gonçalo Byrne mas que o

elevam em termos de significância e o adequam aos hábitos de quem o utiliza.

Fig. 74. Reuniões realizadas por Fernanda Fragateiro com os habitantes do Bairro.

98

Excerto da entrevista realizada pela autora a Fernanda Fragateiro.

46

“O meu trabalho é uma proposta que envolve os outros e, como dádiva, o projecto existe se for

recebido. O projecto é o processo, uma espécie de caminho, em que o princípio não é o

passado nem o futuro, é o fim.”99

Fig. 75. Diário gráfico utilizado por Fernanda Fragateiro para o projecto Lisboa Capital do Nada, 2002.

Fig. 76. Praça Raúl Lino pós intervenção de Fernanda Fragateiro, 2002.

99

Excerto da entrevista realizada pela autora a Fernanda Fragateiro.

IV

PARA UMA OBRA DE ARTE TOTAL

4.1. A ‘GESAMTKUNSTWERK’ E A COLABORAÇÃO.

“ (…) Havia alguém que dizia, em tom de brincadeira, que nós aqui no atelier éramos uns

arquitectos Renascentistas, mas já no séc. XXI, (…). Nessa altura as obras demoravam imenso

tempo e o arquitecto, ao trabalhar em obra, tinha uma espécie de visão global de tudo (…). Na

arquitectura Gótica passa-se o mesmo: arquitectura, estrutura e arte partem de uma só visão,

de uma só entidade que é o arquitecto.

O que eu tento é que, no final, o trabalho de todas as pessoas envolvidas, aparente poder ter

sido feito por uma espécie de super pessoa, por alguém que reunia todas essas competências,

tal como o arquitecto Renascentista.

(…) É uma espécie de convicção minha sobre os projectos de arquitectura, que todos os

projectos das várias especialidades têm que ser autonomamente impecáveis e válidos como

um todo, que quem fez o projecto de certa especialidade tenha orgulho no seu trabalho

individual.

Para mim, é completamente impensável fazer um projecto em que a estrutura, por exemplo,

seja apenas uma coisa que está por trás para servir os interesses da arquitectura, ou que

surjam soluções desconexas realizadas somente para que se chegue a um determinado

resultado formal do espaço arquitectónico. Para mim não faz sentido!”

Excerto da entrevista realizada ao Arq. João Maria Ventura Trindade.

47

4.1. A ‘GESAMTKUNSTWERK’ E A COLABORAÇÃO.

Ao caminhar para uma relação colaborativa, é importante o estabelecimento das bases nas

quais a relação entre a arte e a arquitectura assenta e que podem ir, desde um objectivo

comum, materializado no conceito de “obra de arte total”, aos vários tipos de influência

estabelecidos, ou mesmo, ao posicionamento da arte na perspectiva da arquitectura ao longo

do séc. XX.

Primeiramente, o conceito de colaboração entre artistas e arquitectos remete, inevitavelmente,

para uma breve análise do que constitui o objectivo final desta tendência actual de reunificação

das artes. A referência a uma “reunificação”, deve-se ao facto de que, até ao séc. XVI, arte e

arquitectura eram conceitos indistintos, unificados numa só entidade e personificados em

figuras como Miguel Ângelo, Diego Siloé, Sansovino ou Bernini.

A partir do século referido, Giorgio Vasari (1511-1574) e a criação das primeiras Academias,

tornam-se peças chave para o entendimento não só da forma como a arquitectura inicia o seu

processo de distinção da arte, com a separação entre as belas-artes, ensinadas nas

academias, e as artes aplicadas, realizadas por artesãos e geralmente desvalorizadas. A

importância desta distinção assenta no facto de que a última, irá estabelecer o primeiro ponto

de contacto numa evolutiva e complexa relação entre a arte e arquitectura do séc. XX.

Vasari defendia o isolamento do artista e a sua afirmação, dentro de um sistema tipicamente

medieval no qual o trabalho artístico era realizado por inúmeros aprendizes nas

guildas/corporações. Segundo Mark Wigley o “panorama vigente contra o qual os limites

disciplinares foram constituídos e explicitamente destinados a rejeitar, era o do trabalho

colectivo”100

, no entanto, explica que, tal como Vitrúvio, Vasari não vingou nos seus ideais e

que a “tradição corporativa nunca morreu completamente até ao séc. XVIII, quando as artes já

não eram misturadas. Só nessa altura é que a distinção entre arquitectura, pintura e escultura

era claramente assinalada em cada projecto importante.”101

De enorme importância também para o entendimento da noção de colaboração é o conceito da

“Gesamtkunstwerk”, definido em meados do séc. XIX por Whilhelm Richard Wagner na sua

obra intitulada “Das Kunstwerk der Zukunft”102

. O compositor propunha, através da sua obra,

uma convergência entre linguagens artísticas que culmina-se na produção de um espectáculo

artístico completo ou uma “obra de arte total”, semelhante às tragédias Gregas, que

considerava o mais perfeito exemplo da síntese das artes. Este conceito estará na base de

alguns dos estilos arquitectónicos mais marcantes da época moderna e será encarado de

diferentes formas, por artistas e arquitectos, até à contemporaneidade.

100

Mark Wigley – op. cit., p. 27. 101

Idem, pp. 27-28 102

“Das Kunstwerk der Zukunft” significa “A Obra de Arte do Futuro” e a primeira edição data de 1849,

(Leipzig, Alemanha).

48

A anterior afirmação de Wigley comprova o caminho percorrido para a distinção disciplinar

entre as artes e a arquitectura, no entanto, na segunda metade do século XIX, em Inglaterra,

teóricos e artistas, reunir-se-ão num movimento que defende o retorno a essa mesma tradição

corporativa e ao que se pode identificar como a primeira interpretação arquitectónica/artística

do conceito Wangeriano da “Gesamtkunstwerk”.

Liderado por dois pensadores nacionais, William Morris e John Ruskin, e influenciado pelos

ideais humanistas de Augustus W. Pugin, o Arts & Crafts surge como reacção à perda de

valores na humanidade, entendida como consequência directa da era da industrialização e da

produção em massa. A proposta de uma reforma social, tem na sua base o retorno ao sistema

medieval, visível tanto na proposta do Gótico como estilo único dentro do eclectismo

arquitectónico que marcava a época, como na proposta de retorno às guildas e ao trabalho

colectivo. Artesãos, pintores, escultores, designers e arquitectos trabalhariam juntos, desde o

desenho da fachada principal aos mais pequenos pormenores decorativos, evitando recorrer a

técnicas industriais ou, como Ruskin defende em The Seven Lamps of Architecture, ao ferro

como material proibido.103

A “obra de arte total” encontra a sua formulação em obras arquitectónicas nas quais o

arquitecto controla, através do desenho, todos os elementos do projecto. O conceito idealizado

por Wagner é, nesta primeira transição para a arquitectura, ‘objectificado’. A síntese das artes

concretiza-se apenas no espaço físico comum, onde os artesãos e o arquitecto trabalhavam e

superficialmente, num resultado final coerente e coeso, mas no qual, a arte encontra a sua

validade na subjugação à arquitectura. A arte é nesta instância arte aplicada.

Segundo James Stirling, a questão da arte e tecnologia dividiu as bases ideológicas do

Movimento Moderno e só terá sido resolvida nos movimentos que derivam do

Construtivismo104

, no entanto, é através deste ideal Wagneriano, conjugado com a intenção de

derrubar a tradição académica vigente, que irá surgir “uma reacção em cadeia de grupos

colaborativos que recusavam a distinção entre as artes: Arte Nova, Jugendstil, os

Secessionistas, os Construtivistas, os Futuristas Italianos, o Expressionismo, o De Stijl e a

Bauhaus”105

.

Quando Mark Wigley caracteriza estes grupos como “colaborativos” será importante referir que

a presente tese defende, desde o início, que sem distinção não é possível a colaboração e que

será importante averiguar, essencialmente em relação aos últimos dois grupos referidos, se a

classificação dada por Wigley é adequada.

Sobre esta questão, pronunciam-se Alan Colquhoun e Paul Goldberger. Colquhoun incide

sobre as afirmações de Van der Leck em relação à colaboração entre a pintura moderna e a

103

Peter Gӧssel, Gabriele Leuthäuser – Arquitectura no Século XX. Alemanha: Taschen, 1996, p, 43-46. 104

Charles Jenks, Karl Kropf – Theories and Manifestoes of Contemporary Architecture, 2ª Ed. England:

Wiley-Academy, 2006, p, 16. 105

Mark Wigley – op. city., p. 29.

49

arquitectura no movimento De Stijl, e apresenta a seguinte questão: “se é verdade que a

pintura e a arquitectura estão a tornar-se cada vez mais indistinguíveis, faz sentido dizer que

deveriam entrar em colaboração?” E sugere como resposta que a “colaboração só pode existir

entre coisas que são diferentes, como no conceito Wagneriano de “Gesamtkunstwerk””106

. Por

outro lado, Goldberger107

toma como base o manifesto de Gropius para a Bauhaus de Weimar

e questiona também se pode existir uma verdadeira colaboração quando a arquitectura

assume um papel de indiscutível superioridade em relação a todas as outras artes.

No seu manifesto de 1919, Walter Gropius começa por afirmar que a função mais nobre da arte

foi, e deverá ser novamente, o “embelezamento do edificado”108

, indicando ainda que só

através da compreensão do edifício como uma composição de todas as partes, nas quais cada

arte deve exercer o seu papel, será possível que a arte volte a ser impregnada pelo espírito da

arquitectura, perdido no seu isolamento disciplinar. Se pensarmos agora no termo

‘colaboração’, como uma relação equilibrada e horizontal entre intervenientes que ambicionam

o mesmo fim, em contraste com o conceito de que a obra construída deverá ser o propósito de

todas as artes. Entende-se que a proposta de Gropius está longe de constituir uma relação

equilibrada ou colaborativa e que é, no fundo, mais uma aproximação ao conceito de ‘obra de

arte total’ de natureza hierárquica.

O que se sugere também, nos movimentos referidos, é que a intenção de colaboração por

vezes perde-se na indistinção disciplinar, ou seja, quando arte e arquitectura estabelecem um

diálogo tão intenso e uma influência de tal modo recíproca que a pintura toma contornos

arquitectónicos e a arquitectura se torna indistinguível de uma versão tridimensional da

anterior, torna-se difícil classificar este tipo de resultado como colaboração. Por outro lado,

embora unidas e trabalhando em conjunto, o apelo principal aponta para que culminem no

desenho e construção arquitectónica e que o trabalho volte ao sistema medieval das guildas,

indicando que ainda no início do séc. XX o objectivo principal não era o trabalho colaborativo

mas sim cooperativo.

Decorrente dos grandes dogmas do início do século, como “a forma segue a função” de Louis

Sullivan, “menos é mais” ou “Deus está nos detalhes” de Mies van der Rohe ou ainda o

manifesto de Adolf Loos de 1908, “Ornamento e Crime”, que surgem da rejeição a decorações

supérfluas, a arquitectura passa a encontrar a sua vertente artística, na composição cuidada,

rigorosa e matemática dos seus elementos constituintes mais puros. A “obra de arte total” é,

agora, e para estes arquitectos, um edifício criado como um todo em torno de um conceito de

106

Alan Colquhoun – Modern Architecture. Oxford: Oxford University Press, 2002, p, 112. 107

Paul Goldberger – “Two Different Ends”, Collaboration: Artists & Architects. New York: Whitney Library

of Design, 1981, p. 56-57. 108

“The ultimate aim of all visual arts is the complete building! To embellish buildings was once the noblest

function of the fine arts; they were the indispensable components of great architecture. Today the arts exist in isolation, from which they can be rescued only through the conscious, cooperative effort of all craftsmen. Architects, painters, and sculptors must recognize anew and learn to grasp the composite character of a building both as an entity and in its separate parts. Only then will their work be imbued with the architectonic spirit which it has lost as “salon art.” Walter Gropius, Abril 1919, Staatliche Bauhaus in Weimar.

50

beleza racionalista que opera dentro do funcionalismo que marcou as primeiras décadas do

séc. XX. A arquitectura, enamorada com ela própria, tende a tornar-se auto-referente, já que o

Movimento Moderno, pela sua postura anistórica tomará como base os seus próprios mestres,

Le Corbusier, Mies van der Rohe, Walter Gropius, e as suas obras melhor sucedidas.

A relação entre a arte e a arquitectura inicia, assim, um novo percurso ao encontro da

“Gesamtkunstwerk”, díspar do conceito moderno, no qual a arte retoma a sua função

“decorativa”; embora os arquitectos deste período rejeitassem o ornamento, a arte tinha como

função atenuar ou servir de contraponto às formas austeras, à abstracção volumétrica, ou à

geometria pura e silenciosa que tantas vezes caracteriza a arquitectura moderna. Como

exemplo disso temos a referência do Pavilhão de Barcelona (1929), de Mies van der Rohe, no

qual a figura feminina da escultura de Georg Kolbe, situada num dos pátios interiores, contrasta

fortemente com a linguagem do pavilhão. Goldberger propõe que este tipo de situação advém

dos ideais de Gropius, nos quais a arquitectura é o ponto culminante de todas as artes, e que

marcará a forma como os arquitectos das décadas de 1940 a 1960, irão olhar para os artistas

da sua geração, explicando que “a maior parte das “colaborações”, até as que melhor

sucederam, foram acima de tudo justaposições, foram obras de arte colocadas dentro de obras

de arquitectura, com o papel principal da escultura, o de encher o espaço e o papel principal da

pintura, o de distrair o olhar e providenciar alivio visual.”109

Fig. 77. Mies van der Rohe - Pavilhão de Barcelona, 1929. Fig. 78. Georg Kolbe – ‘Alba’, Pavilhão de Barcelona, 1929.

O conceito de “gesamtkunstwerk” é distinguido agora pela forma como arte e arquitectura se

complementam, na forma como se tornam essenciais ao entendimento e beleza do todo, no

entanto, segundo o autor, os exemplos que encontramos, até ao final dos anos 60, mostram-se

incapazes ”de nos convencer que podem existir em qualquer outro local, a sua presença dentro

de uma particular obra de arquitectura (deveria ser) tão vital para a sua integridade artística

como vital para o significado da obra de arquitectura."110

O final da Segunda Guerra Mundial marcará a crise do Movimento Moderno e o retorno dos

apelos à união entre artistas e arquitectos. Sigfried Giedion, figura chave no estabelecimento

109

Paul Goldberger – op. cit., p. 56. Trad. Livre 110

Idem, p. 57. Trad. Livre

51

dos CIAM111

, irá defender acerrimamente uma nova forma de arquitectura que permitia que

arquitectos, pintores, escultores e urbanistas voltassem a trabalhar juntos na construção da

cidade112

. Le Corbusier, André Bloc, Fernand Léger, Paul Damaz e Gyorgy Kepes irão, através

de projectos e publicações, apoiar este ideal, exposto publicamente por Aldo van Eyck e Alice e

Peter Smithson no CIAM VI, 1947, em Bridgwater, e no CIAM IX, 1953, em Aix-en-Provence.

Ao chamar a atenção para a frieza da arquitectura moderna e para a necessidade de não

obliterar a sua dimensão emocional, nomeadamente no contexto da reconstrução das grandes

cidades europeias do pós-guerra, os arquitectos referidos acreditavam que a arquitectura

deveria transcender a sua materialidade e satisfazer, para além da sua função, as

necessidades emocionais do homem moderno, reclamando que só voltando ao trabalho

conjunto se poderia humanizar a arquitectura do futuro.

Este período será, assim, marcado pela reconquista dos ausentes conceitos de expressividade

e ‘carácter’ arquitectónicos. Formalizados tanto no manifesto de 1944, de Sigfried Giedion,

Josep Lluis Sert e Fernand Léger, no qual reclamavam uma “nova monumentalidade” que

superasse o puramente funcional; na forma como Giedion insistia no “direito de expressão”,

como Léger aclamava o uso da cor como elemento expressivo da cidade, ou como Lúcio Costa

defende a “expressão” e a “intenção plástica” de uma arquitectura realizada com tecnologia

moderna e ainda como Louis Kahn define a nova monumentalidade na arquitectura como uma

qualidade espiritual inerente a uma estrutura intemporal e unitária. Todos estes apelos são

também referidos por Montaner, como a razão pela qual surgem muitos dos programas de

incentivo à colocação de arte na arquitectura, que segundo o mesmo, culminam na “paulatina

instalação de esculturas modernas nos espaços públicos das grandes cidades”113

.

A busca de expressão irá criar um ambiente propício e desejoso da reintegração da arte na

produção arquitectónica. O que Sara Selwood distingue dentro do paradigma da “assimilação

versus integração”, explicando que, na sua fase inicial, os programas que promoviam a

instalação de arte pública na cidade, tinham como questão central, o conceito de “assimilação”,

ou seja, da absorção da arte em relação à arquitectura.

Muito devido a estes apelos, irão surgir inúmeros grupos que adoptarão uma postura

verdadeiramente colaborativa e que, mais uma vez, irão obliterar as fronteiras entre arte e

arquitectura como: Cobra, SITE, Situacionistas, Group Espace, Liga Nieuw Beelden, o The

Independent Group, ou The Internacional 114

, a exposição “This is Tomorow”, realizada na

Whitechapel Gallery, em 1956, em colaboração com membros do The Independent Group,

mostrará o expoente criativo do período anterior. Os 38 participantes convidados foram

111

CIAM – Congressos Internacionais da Arquitectura Moderna. 112

Jes Fernie – Two Minds: Artists and Architects in Collaboration. London: Black Dog Publishing, 2006,

p. 9. 113

Joseph Maria Montaner – op. cit., p. 85. 114

Tanto os Smithson como van Eyck, ao partilharem uma noção de arquitectura moderna com

fundações bem assentes na arte e considerando a arquitectura como uma forma de arte, irão trabalhar de perto com artistas e intelectuais no seio de grupos como o Cobra ou o The Independente.

52

divididos em 12 equipas que tentavam reunir, pelo menos, um arquitecto, um designer, um

artista e, se possível, um teórico; a cada grupo era pedido que reunissem as suas perspectivas

individuais e que produzissem uma obra através da implantação de uma nova metodologia

colaborativa, que partia do individual ao contrário do trabalho cooperativo a que se assistiu nas

primeiras décadas do séc. XX.115

Fig. 79. Cartaz da Exposição This is Tomorow, 1956. Fig. 80. This is Tomorow - The Independent Group.

É de referir que esta relação contínua, entre a arte e arquitectura, é possibilitada pelo facto de

que, no ensino, arte e arquitectura coabitavam nas mesmas instituições, partilhavam o mesmo

espaço físico e observaram-se de perto até cerca do final dos anos 50.

Sobre o caso Inglês, por exemplo, o arquitecto Richard MacCormac, é peremptório, ao afirmar

que: “In the 1958 Oxford Conference, it was the RIBA which decided to remove the architecture

schools from the art schools, to put them into universities and to make architecture into a

pathetic imitation of science. Of course the scientists didn’t like that with the result that

architecture schools hang uncomfortably in the universities (…) I assume that we all agree that

architecture is an art and that arts should be taught together in the same institution.”116

Embora radical, MacCormac toca numa situação que se mostra também relevante para Claire

Melhuish. Embora a arquitectura moderna tenha sido construída sob alçada da relação

histórica entre arte e arquitectura, foi ao mesmo tempo ganhando distância e separando estas

duas áreas, culminado talvez numa ressentida autonomia disciplinar assegurada pela

profissionalização da arquitectura. Segundo a autora, essa mesma autonomia tornou-se num

“mecanismo defensivo desenhado para manter as outras disciplinas fora do processo

construtivo, que agora se consolidou com a crescente regulamentação e responsabilização do

arquitecto”, e que terá sido incentivada pelos desenvolvimentos tecnológicos e estandardização

de sistemas construtivos, que tiveram como consequência a “elevação do ênfase dado à faceta

115

Informação disponível em: http://www.whitechapelgallery.org/exhibitions/this-is-tomorrow# 116

Maggy Toy – “Frontiers: Artists & Architects”, Architectural Design, Vol. 68, Nº 7/8, July-August, 1997,

p.18.

53

científica e técnica, em detrimento da faceta artística da arquitectura”117

, somente recuperada,

na segunda metade do séc. XX, com a critica do modernismo e emergência da atitude pós-

moderna a nível mundial.

A importância de um contexto artístico na formação dos arquitectos promove uma maior

abertura e interesse entre ambos e viabiliza, até meados do séc. XX, o que Joseph Maria

Montaner caracteriza de uma “intensa sintonia”118

entre as artes, uma entusiasta contaminação

recíproca e o que se pode considerar uma relação que tem na sua base a influência directa ou

indirecta da arte na arquitectura, que suplanta a atitude colaborativa, referida por Wigley.

Joseph Maria Montaner distingue três níveis de manifestação da influência da arte na

arquitectura que nos servirão de referência para explicar esta situação119

.

O autor distingue o primeiro nível como: “influência directa do tipo mimético”, materializada na

forma como a arquitectura utiliza directamente os novos repertórios formais das vanguardas

artísticas, e que se podem observar na relação entre as obras de Theo Van Doesburg ou Gerrit

Thomas Rietveld a as obras de Piet Mondrian, ou mais especificamente na Casa Schrӧder

(1920) projectada pelo último arquitecto.

Fig. 81. Gerrit Rietveld - Casa Schoder, 1923-24.

Fig. 82. Theo van Doesburg - Maison d’Artiste, 1923.

Fig. 83. Theo van Doesburg e van Eesteren - Maison Particulière, 1923.

O segundo nível é identificado como o “estabelecimento de uma relação estrutural e mental”,

na qual a atitude mimética remonta agora, não à forma, mas sim aos processos, métodos e

critérios do movimento artístico. A este nível associa-se também, o conceito de

‘interdisciplinaridade auxiliar’ de Heinz Heckhause,120

no qual uma disciplina emprega métodos

provenientes de outra. A Bauhaus, por exemplo, ao reunir artistas e arquitectos num mesmo

sistema de ensino e até no mesmo espaço, irá criar um ambiente em que, inevitavelmente

117

Idem, p.26 118

Joseph Maria Montaner – op. cit., pp. 150. 119

Idem, pp. 149-153. 120

Olga Pombo – “Contribuição para um vocabulário sobre interdisciplinaridade”, A Interdisciplinaridade:

Reflexão e Experiência. Lisboa: ed. Texto, 2ª Edição, 1994, pp. 92-97.

54

haverá uma contaminação inter-disciplinar rica e vantajosa, no que respeita à relação entre as

várias artes e a arquitectura.

Por último, Montaner refere um terceiro nível no qual as novas propostas das artes plásticas

irão estimular a arquitectura a investigar as suas próprias tradições. A este nível associa-se o

modo como a arquitectura moderna, devido à conjuntura política e económica na qual a Europa

se encontrava em meados do séc. XX, se apoia nas novas formulações artísticas, para tentar

estabelecer a sua própria linguagem e a sua própria estética.

Entende-se assim que a relação entre arte e arquitectura subjacente a estes movimentos,

embora de enorme proximidade, não é na sua essência colaborativa já que apela

primeiramente a uma indistinção entre as artes, constituindo fundamentalmente uma relação de

influência recíproca e interesse mútuo.

Diferentes níveis de influência e objectivos comuns apresentam diferentes formas da

arquitectura posicionar a arte no seu campo de actuação. A partir da investigação antecedente

é possível identificar nos movimentos Arts & Crafts, Art Nouveau e na primeira fase da Art

Déco, no final do séc. XIX e início do séc. XX, uma arte dividida entre arte bela, académica e

distante da arquitectura e uma arte decorativa, aplicada, somente válida quando subjugada à

arquitectura no seu campo específico. A relação entre arte e arquitectura segue inicialmente o

modelo de arte subjugada à arquitectura.

Nos movimentos de vanguarda que surgem a partir de 1920, as revoluções artísticas,

conduzem a uma ascendência da arte sobre a arquitectura, visíveis nos vários níveis de

influência descritos anteriormente e concretizada na forma como a arquitectura, ao interpretar

os movimentos artísticos se torna, por vezes, ela própria arte. Este modelo é visível, até ao

final da década de 50 e clarificado com o exemplo da Catedral de Notre Dame du Haut, em

Ronchamp, de 1954, do arquitecto Le Corbusier, onde a arquitectura assume totalmente a suas

possibilidades plásticas e esculturais.

Fig. 84. Le Corbusier – Catedral de Notre Dame du Haut, Ronchamp, França, 1954 (fachadas Sul-Este e Norte e interior).

Na década de 1960 e com a saída da arte do museu para o espaço público, arte e arquitectura

partilham agora, não só o mesmo espaço de actuação mas também os mesmos valores. Dá-se

início à consciencialização de que nesta nova situação de coabitação, ambas devem interagir

55

de forma renovada, não hierárquica e idealmente até, colaborativa. Neste contexto surgem

duas formas distintas de posicionar a arte na arquitectura, que comprovarão uma tendência

cíclica na temática do lugar da arte na arquitectura.

Por um lado, o ressurgimento da Art Déco, incentivado pelo lançamento do livro de Belvis

Hiller, “Art Deco of the 20s and 30s”121

em 1968 e pela exposição “Art Deco”,122

realizada em

1971 no Minneapolis Institute of Arts, e comissariada pelo mesmo, reavivam o ideal das artes

aplicadas do início do século. A arte volta a ter um carácter decorativo e a encontrar o seu

lugar ao serviço da arquitectura. Este posicionamento é visível, não só dentro do estilo referido,

mas também, nalgumas obras de Josep Lluis Sert e de Alison e Peter Smithson e na

arquitectura moderna nacional, de Nuno Portas ou de Nuno Teotónio Pereira. Por outro lado,

com a “morte da arquitectura moderna”123

e a consequente ânsia na busca de novos

significados e valores para a arquitectura, emerge um fenómeno que ditará um novo lugar para

a arte e que Montaner identifica como “a hostilidade com o público”124

. A arte é nesta instância

um veículo fundamental de comunicação para a integração da sociedade, é “introduzida no

edifício moderno para impressionar os nossos sentidos, actuando no nível das aparências”125

,

ou seja, neste modelo, os artistas colaboram num espaço mais ou menos definido e com uma

função específica, na qual o valor da obra de arte é superficial e serve como complemento ao

simbolismo da própria arquitectura. A este modelo pós-moderno, correspondem, por exemplo,

Robert Venturi, Aldo Rossi e Charles Moore.

A partir do final dos anos 70, surge o modelo do arquitecto-artista. Relembrando o modelo

Renascentista interpretado agora sob o espectro da era da informação, de um conjunto

imensurável de novas possibilidades de materiais, técnicas, de novas tecnologias e de uma

maior abertura a novas propostas que, segundo Hans Hollein em “Alles ist Architektur”126

, de

1968, podem ser físicas ou imateriais. Segundo o autor: “Today everything becomes

architecture. “Architecture” is just one of many means, is just one possibility.”127

O arquitecto

volta, assim, tal como nas vanguardas da década de 20, a renunciar o valor da arte perante a

possibilidade de, ele próprio, ser arquitecto e artista. Peter Zumthor, Frank Gehry, Zaha Hadid,

a dupla Diller Scofidio e Kazuyo Sejima com Ryue Nishizawa, pertencem a um leque de

arquitectos, que nos anos 70 e 80, emergem neste contexto de ilimitadas possibilidades de

expressão e de um ‘star-system’ que exalta a sua atitude criativa e inovadora.

121

Bevis Hiller – Art Deco of the 20s and 30s. Londres: Studio Vista, 1968. 122

Bevis Hiller, Minneapolis Institute of Arts - Art Deco : an exhibition organized by the Minneapolis

Institute of Arts, July 8 - Sept 5, 1971 (catálogo da exposição). Minneapolis: The Minneapolis Institute of Arts, 1971. 123

Charles Jencks propõe como data exacta da certidão de óbito que ele próprio passa ao modernismo

arquitectónico, o dia 15 de Julho de 1972, às 15:32h, hora e data correspondentes à demolição do complexo de Pruitt-Igoe, em St. Louis, Missouri do arquitecto Minoru Yamasaki. Charles Jencks - The Language of Post-Modern Architecture. New York: Rizzoli, 1977, p.23. 124

Josep Maria Montaner – op. cit., p.138. 125

Idem, p.139. 126

Hans Hollein – “Alles ist Architektur”. Zeitschriftfür Architektur und Städtebau. Bau, Nº 1/2, 1968. 127

Joan Ockman – “Everything is architecture”. Architecture Culture 1943-1968: A Documentary Anthology. New York: Rizzoli, 1993, p. 459.

56

Embora todos estes modelos pressuponham uma relação entre a arte e a arquitectura, e

alguns até contenham pressupostos colaborativos, o que se pretende explicar através dos

exemplos que se seguem, é que a colaboração entre a arte e a arquitectura deve transcender,

num extremo, a arte aplicada à arquitectura e, noutro extremo, o modelo do arquitecto-artista.

O modelo colaborativo pressupõe, assim, uma relação em que nenhuma das disciplinas define

inicialmente o lugar da outra, segundo um processo de transformação não regrado e no qual

artistas e arquitectos tomam posições não hierárquicas mas sim igualitárias, possibilitando uma

afectação bilateral ao nível do processo criativo, do desenho e no limite, do construtivo.

O primeiro exemplo é da autoria de Frank Gehry que, ao longo da sua carreira, colaborou

intensamente com artistas (principalmente Claes Oldenburg e Coosje van Bruggen, mas

também Ron Davis, Richard Serra e Lucinda Childs-John Adams), no entanto, é na sua

proposta para o Camp Good Times (1984-1985), um campo direccionado para crianças com

cancro em Santa Mónica, Califórnia, que surge uma das colaborações mais marcantes.

A colaboração parte do arquitecto ao propor, como requisito essencial à aceitação do projecto,

a contratação de Claes Oldenburg e da sua mulher Coojse van Bruggen, mostrando, logo à

partida, uma vontade de colaboração aberta e inovadora com os artistas. A postura da dupla de

artistas é, pela declaração de Coojse, de que “tanto Oldenburg como eu tínhamos pleno

conhecimento das nossas limitações; (…) Colocámo-nos nas mãos de Frank, confiávamos que

nos apanharia se caíssemos ao dar o salto para a arquitectura”,128

igualmente aberta e

plenamente confiante na parceria criada. Tanto a postura de toda a equipe como o âmbito do

projecto, envolveu todos os intervenientes numa atitude desprendida e direccionada para,

“encontrar o melhor resultado possível que poderiam oferecer àquelas crianças, dentro das

suas capacidades.”129

e num processo criativo no qual, segundo Gehry, “The question of

whether the camp would be architecture or art never was asked. We wanted to blur the lines.”130

A intensa colaboração culminou em formas artísticas ambiciosas e numa comunhão formal e

funcional que dificilmente Gehry e Oldenburg voltariam a alcançar. No entanto, a proposta final

não agradou ao cliente. Considerada “artisticamente ostensiva”131

, foi pedido ao arquitecto que

atenuasse o projecto e que o fizesse parecer, segundo Gehry “um campo de férias mais

rústico, um campo normal, do género Huckleberry Finn.” Perante esta limitação da sua

criatividade, tanto a dupla de artistas, como Gehry, recusaram-se a levar o projecto em diante,

acreditando sempre que tanto o processo como o resultado apresentado eram ideais para o

contexto do projecto.

128

Coosje van Bruggen – “Saltos a lo desconocido”. La Arquitectura de Frank Gehry. Barcelona: Gustavo

Gili, S.A., 1988, p. 133. 129

Idem, p.133. 130

Mildred Friedman – Architecture and Process: Gehry Talks. New York: Universe Publishing, 2002,

p.101. 131

Frank Gehry cit. em Coosje van Bruggen – op. cit., p. 140.

57

Fig. 85. Frank Gehry, Claes Oldenburg e Coojse van Bruggen – Maquete para o projecto Camp Good Times, 1984-1945.

O segundo exemplo, que quebra todos os modelos expostos, é visível na relação de longa

data, entre a dupla Herzog & de Meuron e o artista Rémy Zaugg. No edifício Roche Pharma 92,

em Basileia (1993-2000), os arquitectos contactam Zaugg para colaborar no projecto de forma

tradicional, segundo o artista, ”(…) os arquitectos e o artista tinham optado por uma

colaboração clássica na qual o arquitecto faz a arquitectura e o artista a arte. No entanto, a

solução plástica que foi a nossa escolha durante um determinado tempo e as questões

resultantes sobre vários elementos arquitectónicos obstrutivos, não cabiam no modelo clássico

de colaboração, uma vez que as respectivas funções tendem a associar-se.”132

O edifício para

a farmacêutica F. Hoffmann-La Roche AG é formalmente composto por um volume horizontal e

um vertical, que se intersectam ao nível da base, e espacialmente organizado através de uma

parede que, ao seccionar o volume vertical do edifício, separa as zonas pública e privada e

constitui a área definida, pelos arquitectos, como tela para a intervenção pictórica do artista.

Como foi referido, embora inicialmente delimitada, a colaboração de Rémy Zaugg acabou por

se estender da intervenção pictórica ao projecto de cor para todo o interior do edifício,

afectando toda a obra.

Fig. 86. Herzog & de Meuron – Roche Pharma 92, Basileia, 1993-2000. Fachadas exteriores e esquema da intervenção de Rémy Zaugg.

132

Rémy Zaugg - Architecture by Herzog & de Meuron, Wall painting by Rémy Zaugg, A work for Roche

Basel. Basel: Birkhäuser, 2001, p. 79.

58

Fig. 87. Rémy Zaugg – Exemplos da intervenção no edifício Roche Pharma 92, de Herzog & de Meuron, Basileia 1993-2000.

Sobre a intervenção realizada, Rèmy Zaugg afima que: "A intervenção pictórica tem que brotar

da arquitectura. Mais do que isso, o acto artístico e a arquitectura devem dar a impressão de

ser concebidos simultaneamente e que um é impensável sem o outro. (…) É nesta condição

que a obra do artista é legítima, justificada e com significado. Se o artista for bem sucedido,

parecerá que ele não fez nada, a sua obra terá sido determinada e ditada pela própria

arquitectura. O artista desaparecerá atrás da manifesta necessidade da obra.”133

É neste sentido que se prende uma última questão: poderá o trabalho do artista ser validado

como uma colaboração, e não como intervenção ou decoração do espaço arquitectónico, se ao

observarmos a obra final ficarmos com a “impressão” de indissociação e de um trabalho

desenvolvido em tempo comum, tal como o referido por Rémy Zaugg? Ou seja, poderá a

colaboração acontecer, não entre artista e arquitecto, mas somente ao nível dos ‘objectos’, ou

seja, entre arte e arquitectura?

133

Idem, p. 66.

4.2. ESTAÇÃO BIOLÓGICA DO GARDUCHO, 2002-2008.

59

4.2 FERNANDA FRAGATEIRO: ATRAVÉS DA PAISAGEM, ESTAÇÃO BIOLÓGICA DO

GARDUCHO, MOURÃO, 2002-2008.

Ao analisar a participação de Fernanda Fragateiro no projecto do atelier do Arq. João Maria

Ventura Trindade para a Estação Biológica do Garducho, torna-se mais claro o que se

pretende com uma dinâmica colaborativa entre artista e arquitecto ao longo de um projecto e

como se pode atingir uma obra coerente, completa, uma “obra de arte total” que surge do

conceito de complementaridade, proposto por Goldeberger.

Através da sua intervenção, Fernanda Fragateiro engloba eficazmente o edificado, a sua

temática, função e desenho, a paisagem que o rodeia, a natureza e o pensamento científico

mas também espiritual, numa obra que é inquestionavelmente arquitectónica e que ao mesmo

tempo tenta transcender esta mesma definição.

Contexto físico da intervenção:

No centro da triangulação composta pelas localidades de Moura, Mourão e Barrancos, mais

especificamente em Amareleja (Mourão), na estrada que atravessa a fronteira portuguesa em

direcção a Valencia del Mombuey, e a cerca de 2km da fronteira com Espanha, encontrava-se,

ao lado do marco geodésico das Mentiras, um antigo posto fiscal fronteiriço, adquirido em 1997

pelo Centro de Estudos da Avifauno Ibérica (CEAI).

A escolha deste local remoto pelo CEAI advém da sua posição estratégica e dominante, em

cota elevada da topografia alentejana, permitindo avistar a extensa área classificada pela Rede

Natura 2000 como Zona de Protecção Especial (ZPE) para Aves de Moura/Mourão/Barrancos,

devido aos seus diversos valores ecológicos e à presença de espécies ameaçadas, como a

Águia-imperial ibérica, o Grou-comum, a Águia de Bonnelli, a Abetarda, o Sisão e o Cortiçol-de-

barriga-preta134

, foi ainda neste lugar que se encontrou o ultimo indício do lince ibérico. O Posto

da Guarda Fiscal, já há muito abandonado devido ao fim das fronteiras terrestres, era

composto por três edificações, à primeira vista deslocadas num local remoto, numa paisagem

rural de enorme beleza e de extensão aparentemente sem fim.

O projecto:

A Estação Biológica do Garducho, criada pelo CEAI para o desenvolvimento de actividades de

salvaguarda dos valores naturais da ZPE da região interior do Alentejo Central, tinha como

objectivos específicos: o fomento da sensibilidade civil para a importância da biodiversidade, a

difusão do conhecimento científico sobre as espécies e habitats da região, a promoção do

turismo da natureza, o estímulo do conhecimento científico sobre a importância nacional e

134

Instituto da Conservação da Natureza (ICN) – Plano Sectorial da Rede Natura 2000: Sítios da Lista

Nacional (Sítio: Moura/Barrancos), Janeiro 2006. Disponível em: http://www.drapal.min-

agricultura.pt/valor_ambiental/REDE_NATURA/PTCON_0053_MOURA_BARRANCOS.pdf

60

comunitária dos valores naturais, a difusão do uso de materiais e tecnologias ambientais

sustentáveis, a contribuição para o desenvolvimento socioeconómico da região, incentivar o

estabelecimento de parcerias institucionais de âmbito regional, nacional e internacional e ainda

facultar oportunidades a jovens investigadores, através de estágios e de trabalhos académicos

inseridos em projectos da EBG.135

A intervenção procurou, dentro destas premissas, organizar o programa funcional utilizando a

área de implantação das três edificações já existentes e fazendo corresponder a cada uma, um

dos núcleos funcionais definidos: alojamento, área pública e zona de trabalho, alcançando,

assim, a maximização da área de construção solicitada, com a menor afectação do solo

possível.

Fig. 88. Desenhos do arquitecto e trabalho de Fernanda Fragateiro proposto em maquete.

Limitando a área de implantação, estes elementos funcionam como apoio a uma segunda

estrutura, um rectângulo de paredes periféricas de 55x 27,5 metros, que envolve e reúne em si,

as anteriores e respectivos pátios anexos. Sobre estes elementos base e pairando sobre o

terreno, a construção suspensa permite preservar o solo intacto e permeável mas também que

a arquitectura se envolva de uma forma única com a sua envolvente, deixando que a própria

topografia do terreno crie uma série de pátios com diferentes níveis de privacidade e acesso.

A entrada na estação surge de uma forma natural, quando o terreno atinge a sua distância

máxima da massa edificada exterior que paira de nível a uma altura de 2,4 metros, no limite

oeste, possibilitando a passagem para o interior de um grande pátio exterior central em redor

do qual gravitam os diversos edifícios, espaços exteriores e percursos da estação; no limite

oposto o terreno atinge uma cota superior tornando os espaços adjacentes ao edifício

residência, mais privados e parcialmente inacessíveis pelo exterior. Este forte contacto com a

envolvente é controlado de forma precisa ao longo dos vários espaços, de modo a permitir o

enquadramento de vistas amplas sobre a paisagem horizontal ao nível térreo e no piso elevado

através da escassez de aberturas, pretende-se concentrar a atenção do visitante em elementos

arquitectónicos ou expositivos.

135

Informação disponível em: http://www.ceai.pt/ebg/#ebg_enquadramento/objectivos

61

No limite nascente, emerge o primeiro núcleo funcional, no qual se localiza uma unidade de

alojamento para três investigadores com pátio privado. O corpo maior alberga, no piso térreo, o

espaço de recepção e loja, uma sala de conferências a poente e um amplo espaço coberto

para actividades didácticas ao ar livre, com acesso na extremidade oposta a um piso superior

onde se situam os arquivos e o espaço expositivo. No limite poente localiza-se a residência

para os investigadores e a zona de trabalho técnico. A cobertura deste núcleo é ocupada

somente por um jardim de plantas autóctones; a restante área deste corpo funciona como

grande pátio com vista para a extensa paisagem, com excepção da extremidade nascente,

onde se localizam os acessos ao piso superior e a cisterna para recolha de águas pluviais.

O projecto adquiriu um estatuto único em Portugal, pelo seu carácter inovador, em termos de

desenho arquitectónico, tecnologia construtiva utilizada e soluções sustentáveis tanto na

construção como na posterior autonomia do edificado. Segundo a CEAI, “existe outra estação

biológica em Grândola e estruturas de investigação em biologia e ecologia, mas esta é

inovadora. Vai para além do conceito tradicional.”136

Por todas as razões referidas, o projecto do atelier do Arq. João Maria Trindade, foi distinguido

em 2009 com o Prémio FAD (Foment de les Arts i el Disseny), na ata da reunião do júri para a

entrega da 51ª edição dos Prémios, pode ler-se:

“O júri valoriza a arquitectura capaz de gerar lugares e emoções no meio de uma paisagem

sem fim. Aprecia a forma como eleva a sua potente massa, deixando passar sob a sua sombra

o território e a vida da fauna. Assim pois o júri entrega o Prémio FAD (Foment de les Arts i el

Disseny) de Arquitectura à ESTAÇÃO BIOLÓGICA DO GARDUCHO, EM MOURA, PORTUGAL obra

de João Maria Trindade.”137

Fig. 89. Vista geral da Estação Biológica do Garducho, Mourão, 2002-2008.

136

Afirmações de Carla Janeiro do CEAI feitas à Agência Lusa e publicadas no jornal Expresso online, 19

de Outubro de 2010, disponível em: http://aeiou.expresso.pt/ambiente-alentejo-acolhe-estacao-biologica-do-garducho-inovadora-em-portugal=f610214#ixzz1bnHAyJmY 137

Arquin FAD – Ata da reunião do júri da 51 edição dos Prémios FAD de Arquitectura e Design 2009,

Barcelona, 2009. Disponível em: http://arquinfad.org/arquinfad_web/press/2009/acta_dos_idiomes.pdf

62

Fig. 90. Imagens do exterior e interior da Estação Biológica do Garducho, Mourão, 2002-2008.

A colaboração de Fernanda Fragateiro:

A relação existente entre o Arq. João Maria Ventura Trindade e a artista é, como já se deu a

entender, de grande afinidade e de constante convivência, devido à proximidade física entre o

atelier do arquitecto e o da artista. A relação de confiança e de admiração que têm um pelo

outro é identificada por ambos como fulcral para o tipo de trabalho que têm desenvolvido,

assim como uma noção firme dos limites de cada um, segundo o arquitecto:

“Eventualmente, a maneira de funcionar com a Fernanda e o facto de ser muito simples, muito

produtivo e também muito vantajoso trabalhar com ela, é que nós temos muito claro, os dois,

quais são os nossos domínios; não quer dizer que eles não se cruzem e misturem mas, para

mim, sempre foi muito claro que eu queria fazer arquitectura.”138

A intervenção da artista, neste edifício, aconteceu de acordo com a relação existente, ou seja,

de forma natural e casuística, diferente mais uma vez, do que é normal nas colaborações entre

artistas e arquitectos, já que é Fernanda Fragateiro, numa visita desinteressada à obra, que se

138

Excerto da entrevista realizada pela autora ao Arq. João Maria Ventura Trindade.

63

deixa fascinar pelo trabalho já em curso do arquitecto e propõem a realização de uma

intervenção artística. João Maria Ventura Trindade explica que a partir daí o trabalho aconteceu

separadamente, a obra continuou enquanto a artista desenvolveu a sua proposta: “Eu nunca

soube o que ela ia fazer, a obra continuava, ela estava muito entusiasmada, de vez em quando

pedia-me para ir ao atelier dela e eu percebia que ela andava a fazer umas experiências sobre

a maquete, as pessoas que iam passando pelo atelier da Fernanda também se iam

pronunciando sobre aquilo e depois, a dada altura ela apareceu com uma proposta que é

basicamente aquilo que lá está.”139

Ao intervir neste objecto arquitectónico, Fernanda Fragateiro não altera a sua arquitectura, não

rompe a continuidade cromática e táctil, nem se afasta da temática e função que domina o

objecto. A forma escolhida pela artista para a sua intervenção é simples e parte de um

entendimento profundo e sensível da forma como a sua arte têm a capacidade de elevar o

espaço, providenciando-lhe uma ‘alma’ e a possibilidade de o objecto arquitectónico

estabelecer uma relação e um permanente diálogo com quem o observa, utiliza e sente.

Neste caso, Fernanda Fragateiro insere por todo o espaço, fragmentos de textos da obra

Breves Notas Sobre a Ciência, do escritor Gonçalo M. Tavares140

e de autores como: Maria

Gabriela Llansol, W.J.T. Mitchell, Juhanni Pallasma, Bernardo Soares, Walter Benjamin,

Buckminster Fuller, W.G. Sebald, Robert Walser e Henry David Thoreau141

. Frases em

português e inglês surgem então desenhadas nos planos verticais edificados, a escolha de

uma fonte de texto simples, de tamanho único e proporcionado pela escala do próprio edifício,

tornam a sua leitura quase obrigatória mas também, simples e convidativa. A configuração das

frases incita não só a sua leitura mas interpretação e reflexão – acções que através da sua

localização e conteúdo são sugeridas pela artista num enquadramento específico e para um

pensamento conjunto, que engloba, o sentido da frase, o espaço que a sustenta, a paisagem, a

natureza e a ciência.

Fig. 91. Imagens de algumas das intervenções de Fernanda Fragateiro na Estação Biológica do Garducho.

139

Idem. 140

Gonçalo M. Tavares – Breves Notas sobre a Ciência. Lisboa: Relógio de Água, 2006 141

CEAI – CEAI @ EBG: Ventura Trindade Arquitectos. Matosinhos: DARCO magazine, 2010, p. 101.

64

Quando encontradas em percursos e passagens, questionam a forma como o percorremos, e

põem em questão os elementos arquitectónicos que as acolhem, uma rampa deixa de ser um

acesso e passa a ser um caminho que procura uma reflexão desde o interior até ao exterior,

uma abertura circular para o exterior, torna-se um ponto de fuga para uma ponderação sobre a

relação entre a natureza e o homem, uma cisterna passa a ter uma possibilidade infinita de

significados e simbolismo consoante a interpretação que o observador faz da curta frase “suga

a paisagem.”

Embora o arquitecto subscreva a forma como a obra foi descrita, admite também, que

inicialmente teve dúvidas sobre a intervenção que, lhe pareceu um pouco provocatória e até

um pouco redutora – “Eu confesso que, de início o trabalho não me pareceu muito interessante

(…) num certo sentido, a maneira como nós tínhamos desenhado o edifício, já procurava

estabelecer uma determinada relação com aquela paisagem, e por isso, quando a Fernanda

propunha escrever frases sobre o edifício, era um pouco como se a arquitectura não

funcionasse e fosse necessário fazer legendas. (…) Era como se fosse preciso vir alguém

explicar o que nós estávamos a tentar explicar através do edifício.”142

A discussão da forma

como a obra de arte se insere no projecto de arquitectura, surge, neste caso, posterior à

definição de ambas, e acaba por envolver, para além da artista e do arquitecto, o escritor

Gonçalo M. Tavares que convenceu João Maria Ventura Trindade da validade da obra e a

forma como reforçava o que se pretendia somente com a arquitectura.

É, no entanto, de referir que, nesta obra, embora se possa fazer a ligação com o conceito de

“obra de arte total” contemporânea, tanto a artista como o arquitecto admitem que a

arquitectura prevalece sobre a intervenção artística. Na opinião de Fernanda Fragateiro – “o

meu trabalho, por um lado, é um comentário à arquitectura, e por outro é uma espécie de

projecto expositivo, uma espécie de conteúdo dentro do programa da estação, que surge

independente e para além da arquitectura.”143

A opinião do arquitecto, embora semelhante,

propõe que a arte ocupa, neste caso, o lugar proposto no pós-modernismo. A intervenção de

Fernanda Fragateiro é, para Ventura Trindade, um meio de comunicação com o público: “A

questão que torna o trabalho da Fernanda (…) tão interessante, é que a arquitectura, num

certo sentido, é uma coisa muda, somente entendível por um conjunto de pessoas que são

arquitectos ou que estão próximos disso. Agora é como se o edifício (…) falasse por si próprio,

portanto, nós podemos não ir lá mas as pessoas vão e conseguem compreendê-lo na

totalidade das suas intenções, e isso faz muito sentido, principalmente, num edifício que é

público e que tem um teor e até um programa muito didáctico ou educativo.”144

142

João Maria Ventura Trindade – Entrevista realizada pela autora. 143

Fernanda Fragateiro – Entrevista realizada pela autora. 144

João Maria Ventura Trindade – Entrevista realizada pela autora.

V

PERCENT FOR ART

5.1. A ORIGEM DO MODELO E A SUA EVOLUÇÃO.

“O tema das colaborações, pessoalmente interessa-me muito porque, desde que eu comecei a

trabalhar como arquitecto paisagista, procurei justamente trabalhar em colaboração, e isso foi

um mote, uma intenção que explorei até agora e com resultados bastante próprios, bastante

característicos dessa postura, resultados positivos mas também negativos. Mas essa forma de

trabalhar, que põe questões de fronteira e de limite às vezes complexas, outras vezes ajuda a

defini-las e a entende-las, (…) é um tipo de produção que só é possível com fundos públicos,

ou com a articulação de fundos privados que permitam a produção destas peças.

No caso da Expo’98, não houve um programa governamental mas criou-se um fundo, um

programa que de alguma maneira é produzido pelo governo mas num contexto específico,

concreto e limitado no tempo.”

Excerto da entrevista realizada ao Arq. João Gomes da Silva.

65

5.1. A ORIGEM DO MODELO E A SUA EVOLUÇÃO.

“It should be noted that the movement towards placing art in public places, however mixed the

quality of particular works or of discernment in their placement, has been a force that can only

improve the climate for successful collaborations between artists and architects in general.”145

O modelo ‘percent for art’, embora tendo ganho elevada notoriedade somente em meados do

séc. XX, remonta ao início do século. A Suíça, por exemplo, nos primeiros anos da década de

1920, apresentava já uma política de incentivo às artes na arquitectura; a Alemanha e a França

também cedo adoptaram este tipo de investimento, no decorrer da década 1930 e, nos EUA,

surge também em 1934, através do U.S. Treasury Department, o modelo Public Works of Art

Project. A maioria destes modelos propunha que entre 0,5% a 2% do orçamento das obras

públicas fosse dedicado à implementação de arte no interior, exterior ou envolvente do

edificado; no entanto, a razão pela qual muitos autores localizam a emergência destes

programas a partir de 1960 deve-se apenas ao facto de, na sua formulação inicial, estes

modelos sugerem apenas uma prática opcional e não obrigatória, como será o caso da sua

versão mais actual146

.

O primeiro programa a destacar-se, já em 1959, foi o programa “Aesthetic Ornamentation of

City Structures”, em Filadélfia; apenas quatro anos mais tarde (1963), volta a surgir nos

Estados Unidos e através da GSA (U.S. General Services Adminitration), uma iniciativa a nível

nacional intitulada agora Art-in-Architecture. Este último programa viria a substituir o programa

Public Works of Art Project, que sucumbiu, tal como muitos outros, passado somente uma

década de existência devido, não só à Grande Depressão (1929-1932), mas também, à falta de

aceitação do público em relação às obras instaladas147

.

O surgimento destes modelos durante a década de 1960 deve a sua origem, por um lado, a

uma necessidade de reconstrução das cidades no pós-guerra, e por outro, ao desenvolvimento

de um sentimento saudosista das antigas cidades construídas em épocas nas quais arte e

arquitectura eram conceitos indistintos. Acreditava-se que as artes visuais, não só contribuiriam

eficazmente, como seriam essenciais para a reconstrução de um espaço urbano apelativo, que

fomentasse e recriasse valores comunitários e estabelecesse uma relação mais próxima entre

a cidade e os seus habitantes, ou seja, que divergisse da “repetitiva, monótona, e funcionalista

145

Paul Goldeberger – op. cit., p.70 146

Como exemplos surgem o caso Francês da “Délégation aux Arts Plastiques (DAP)”, criada em 1937,

mas que só em 1951, através de um lei proposta pelo Ministro da Educação Pierre-Olivier Lapie, se tornou obrigatória a aplicação da politica do 1% pela arte em todas as construções do domínio da educação; o mesmo acontece em relação ao programa lançado pelo Threasury Department em 1934 em relação à proposta da GSA, em 1963, com a diferença que nesta ultima a politica em causa abrangia todas as áreas dos serviços públicos e mais tarde, em Inglaterra, 1988, através do programa do Arts Council. 147 Steven J. Tepper – “Unfamiliar Object in Familiar Spaces: The Public Response to Art-in-Architecture”.

Working Paper #8, Princeton University Center for Arts and Cultural Policy Studies, March 2, 1999. p.4 Disponível em http://www.princeton.edu/~artspol/workpap/WP08%20-%20Tepper.pdf

66

arquitectura do estilo modernista (…) confiava-se que os artistas através da sua influência

humanizassem a desumana, alienada e desafecta paisagem urbana da era moderna”148

.

Embora em contextos diferentes, os apelos e razões para a implantação deste tipo de

programas repetem-se pelos Estados Unidos e Europa. Se, em 1959, Michael von

Maschzisker, um dos fundadores do programa Aesthetic Ornamentation of City Structures, já

afirmava: “Espalhe-se a mensagem de que as belas-artes devem voltar à Arquitectura

Americana e de que a esterilização e a sua cativa monotonia devem ser banidas das nossas

avenidas.”149

. Em 1988, o manifesto do Arts and Architecture, programa do Arts Council em

Inglaterra, elabora as mesmas questões e apresenta um breve enquadramento histórico para

sua justificação.

Alguns autores, como Sara Selwood, afirmam que o nascimento dos processos ‘percent for art’

se deve, efectivamente, ao movimento dos artistas para o espaço público e a uma necessidade

de controlar, apoiar e criar mais e melhores oportunidades para esta nova prática, promovendo,

ao mesmo tempo, a excelência artística150

. Esta ideia é contestada por Tom Finkelpearl, ao

afirmar que, embora o desalento em relação à frieza e sistematização da cidade moderna

tivesse atingido um ponto em que o “arquitecto era demonizado como o destruidor da cidade e

aos artistas era irrealisticamente pedido que a salvassem”, estes incentivos à colocação de arte

no espaço público, apresentam-se também ligados a questões políticas e económicas.

Segundo o autor, “as leis foram criadas com o intuito de atrair pessoas de volta às áreas do

centro da cidade, que estavam a ser abandonadas”151

, com o intuito de estimular a economia,

atraindo transeuntes, turistas, investidores e empresas que procurem locais que proporcionem

um agradável ambiente de trabalho nestas áreas renovadas152

, mas partem também da

preocupação dos governos locais em assegurar emprego aos artistas e outros agentes na área

da cultura.153

Por todas, ou qualquer uma destas razões, os programas baseados nos esquemas ‘percent for

art’ proliferaram pela Europa, pelos Estados Unidos (em 2003 existiriam cerca de 350,

programas dentro deste modelo em vários estados e municípios dos EUA154

) e ainda na Ásia,

com o caso singular de Singapura. Seguindo, com excepção do último, o modelo tradicional já

referido na implementação arte em locais tão distintos como: escolas, esquadras de polícia,

estações de bombeiros, tribunais, hospitais, clínicas, terminais de passageiros, prisões, centros

de detenção, parques e jardins públicos e instalações de saneamento e abrigos.

148

Miwon Kwon – op. cit., p.64. 149

Penny Balkin Bach – Public Art in Philadelphia. Philadelphia: Temple University Press, 1992, p. 130.

Trad. Livre. 150

Sara Selwood – The Benefits of Public Art. London: Policy Studies Institute, 1996, p.42. 151

Tom Finkelpearl – Dialogues in Public Art. Massachusetts: MIT Press, 2000, p.21. Trad. Livre. 152

Sara Selwood – op. cit. pp. 43-44 153

Slavica Radišić - “Public Art Policies – A Comparative Study”. 1postozaumjetnost.wordpress, 2010.

http://1postozaumjetnost.wordpress.com/texts/cultural-policy/ (acedido em Agosto, 2011) 154

Atkins, Robert – “When the Art is Public, The Making is, Too”. New York Times, Arts & Leisure, Section

2, July 23, 1995. p.1

67

Embora a arte tenha invadido a urbe devido aos incentivos estatais, podemos afirmar que a

aceitação do público em relação às obras que ocupavam agora lugar nas praças, ruas, jardins

e edifícios públicos das cidades, não correspondia ao entusiasmo dos organismos por detrás

dos programas. A vontade de criar uma nova identidade através da arte foi, numa fase inicial,

suplantada por reacções fortes ou de total indiferença em relação às esculturas abstractas

criadas pelos mais notórios representantes da arte moderna, como Alexander Calder, Pablo

Picasso, Jean Dubuffet, entre outros, que “pareciam longe de servir qualquer propósito”155

.

Fig. 92. Alexander Calder - Flamingo, John C. Kluczynski Federal Building, Chicago, 1974.

Fig. 93. Pablo Picasso - Escultura para o Chicago Civic Center, Illinois, 1967.

Fig. 94. Jean Dubuffet - Group of Trees, Chase Manhattan Plaza, NY, 1972.

Opondo-se às criticas realizadas por autores como Malcom Miles, Tom Finkelpearl, Rosalyn

Deutsch, Miwon Kwon ou Sharon Zukin em relação às obras criadas até sensivelmente às

ultimas décadas do séc. XX, Daniel Buren explica que “o hábito de os artistas trabalharem,

conscientemente ou não, para um público específico e por vezes esclarecido, ou seja, o público

dos museus, causou um afastamento drástico de um público que pode ser também esclarecido

mas que não é especialista, já que acima de tudo, nunca recebeu qualquer educação

artística.”156

Esta realidade irá marcar a postura de algumas direcções de programas do modelo ‘percent for

art’, conotada por Robert Lee Fleming e Melissa Tapper Goldman como, o “Princípio da Torre

Eiffel”, ou seja, perante a incompreensão inicial do público em relação às obras, a reacção dos

organismos seria condescendente, apelando ao público que mesmo não as entendendo,

tivesse paciência e que com tempo eventualmente acabariam por habituar-se e até gostar

destes enormes objectos abstractos, assim como aconteceu com a Torre Eiffel, hoje em dia um

ícone Francês. Charles Cuningham, director do Art Institute de Seattle, personifica esta

tendência, em 1967, ao afirmar, nas suas declarações por ocasião da inauguração da obra

“Chicago Picasso” na Daley Plaza, Chicago, que: “Aqueles que ainda não experienciaram este

155

Mel Gooding – “The Failure of Modernism: The Crisis in Public Art”. Public: Art: Space. London: Merrel

Holberton, 1998, p.18 156

Idem, p.17.

68

tipo de arte podem não gostar, mas não tem mal. Daqui a alguns anos, ela será aceite pelos

transeuntes, da mesma forma que Van Gogh e outros o são hoje em dia.”157

Segundo Miwow Kwon e Suzanne Lacy, o descontentamento geral e críticas várias às obras

realizadas dentro dos programas devem-se não só à imposição de um tipo de arte que se

mostrava indisponível em ir ao encontro deste público mais vasto e que, consequentemente,

não conseguia comunicar com o mesmo; mas também devido ao facto de que, só por volta de

1974 é que estas iniciativas começam a promover, nos seus programas, o conceito site-

specific, e uma preocupação explícita e exigência clara de que o local seja respeitado, de que a

obra seja criada em função do lugar. Esta nova forma de olhar para a intervenção de artistas

no espaço público, constitui um importante passo em direcção ao conceito de “obra de arte

total” descrito por Goldberger, no qual a arte e a arquitectura se tornam interdependentes em

relação ao objecto total, ao seu significado e presença no espaço urbano.

A contínua evolução destes programas dá-se paralelamente à evolução da arte pública,

analisada no primeiro capítulo da presente dissertação. De certo modo, as fases e

preocupações são semelhantes e identificadas como: uma primeira, que parte de uma vontade

inicial de integrar a arte novamente no ambiente urbano, aliada a uma vontade dos artistas em

sair do espaço museológico e partir para o espaço real ou de domínio arquitectónico. Numa

segunda instância e quase uma década mais tarde, surge a integração do conceito site-specific

como requerimento essencial ao sucesso da integração da arte na arquitectura. Mais tarde,

entendeu-se também que deveria haver um maior envolvimento entre artista e arquitecto, na

prática, os artistas deveriam ser convidados a entrar no processo desde o seu início, o que,

idealmente resultaria na criação de obras de arte coesas e que revelassem o verdadeiro

sentido da colaboração. Uma última fase corresponderá, tal como na arte pública, ao despertar

da percepção social e educacional nas colaborações, a arte entende agora a possibilidade, de

não só decorar, fazer parte do processo criativo, e humanizar a arquitectura; que deve também

ter uma consciência social, tirando partido do meio privilegiado que são as colaborações e a

possibilidade de actuação no espaço público.

157

Charles Cuningham citado em: Tom Finkelpearl – p.22

5.2. ARTE EM ESPAÇO PÚBLICO VS ARTE NA ARQUITECTURA.

“Quando se faz um edifício e se cria um espaço de paisagem que o envolve ou que o contém,

tal como a criação de espaço público, interagindo com artistas ou com outras visões, tem a ver,

com um período da nossa história recente e da nossa economia, em que há disponibilidade

para isso. Essa disponibilidade terminou, estamos a fechar um ciclo económico e esta cultura

de espaço público, tal como a conhecemos até agora, terminou.

Temos agora de trabalhar de outra maneira, de tentar perceber como é que vamos trabalhar

sendo que estamos a operar sobre outras coisas, outros problemas, a cidade é hoje uma coisa

muito indeterminada nalguns aspectos, e é exactamente essa indeterminação e esse limite que

também é preciso entender.”

Excerto da entrevista realizada ao Arq. João Gomes da Silva.

69

5.2. ARTE NO ESPAÇO PÚBLICO VS ARTE NA ARQUITECTURA.

No seu texto “Public Art for The Public”158

, Robert Lee Fleming e Melissa Tapper Goldman

percorrem a história dos programas ‘percent for art’, Art in Public Places (APP) lançado em

1967 pela National Edowment for the Arts (NEA) e o programa Art in Architecture (AiA) lançado

em 1963 pela U.S. General Services Administration (GSA), com o objectivo de identificar as

razões pelas quais um sucedeu e mantém ainda hoje as suas funções e o outro sucumbiu no

início dos anos 90.

A importância desta revisão assenta no facto de ambos os programas que seguem o modelo

‘percent for art’ e especificamente a sua evolução, são referidos por vários autores como:

Malcom Miles, Miwon Kwon, Suzanne Lacy, entre outros, que se dedicaram ao tema da arte

pública e das colaborações, como, não só representativa do percurso de outros programas

semelhantes, mas também essencial à compreensão da origem das novas dinâmicas

colaborativos entre arte e arquitectura. Torna-se, desta forma mais claro, que existe uma

necessidade de encurtar caminho no diálogo entre artista e arquitecto, para que a inserção de

arte na arquitectura seja uma prática válida e benéfica para o ambiente urbano. Na forma como

esse processo se deu podemos tirar desde logo algumas conclusões úteis ao desenvolvimento

do tema.

Quando implantado, o programa APP, baseava a sua prática no enaltecimento das

capacidades dos artistas e na possibilidade de partilhar com o público geral a mais qualificada

arte dos seus tempos, optando inicialmente por não apresentar orientações específicas para os

fundos que concedia através da realização de concursos, onde artistas conceituados

entregavam maquetas que relembravam obras, na sua maioria abstractas, retiradas

directamente de museus ou galerias ampliadas para a escala do espaço público159

. Este modo

de selecção, supostamente garantia “que os subsídios só seriam entregues a artistas da mais

alta qualidade, aos quais a NEA confiava para produzir obras sem o peso da censura ou

orientação de comissários.”160

. As consequências desta postura são desde logo visíveis na

primeira obra criada dentro do programa APP: La Grand Vitesse de Alexander Calder, instalada

na Vandenberg Plaza, Grand Rapids, Michigan e na atitude de Henry Moore, um dos artistas

que mais obra realizou dentro deste tipo de programas nos anos 1970, e que representa, na

sua afirmação, a atitude da maioria dos artistas comissariados:

“I don’t like doing commissions in the sense that I go and look at a site and then think of

something. Once I have been asked to consider a certain place where one of my sculptures

158 Fleming, Ronald Lee, e Melissa Tapper Goldman - “Public Art for the public”. Artigo Digital disponível

em: www.nationalaffairs.com/public_interest/detail/public-art-for-the-public: The National Affairs, Inc., 22 de Março de 2005. 159

Suzanne Lacy – op. cit., p. 22. 160

Idem p. 62. Trad. Livre.

70

might possibly be placed, I try to choose something suitable from what I’ve done or from what

I’m about to do. But I don’t sit down and try to create something especially for it.”161

O debate causado pelos resultados insatisfatórios e crítica geral do público em relação às

obras levantou uma importante questão subjacente ao programa: “a tensão entre os direitos do

artista como entidade, de criar obras sem direcção ou input e os direitos do público, que as

pagava através dos seus impostos, de ter arte pública eficaz e significativa, que reflectisse as

suas necessidades” 162

. No final dos anos 80, o programa da NEA era encarado como uma

possibilidade sem benefícios óbvios para as várias partes envolvidas, nomeadamente para a

comunidade, e como um enorme risco a correr pelos promotores e arquitectos.

Bert Kubli, comissário do programa, explica que a NEA acabou por assumir os seus erros no

final dos anos 80, através da introdução do termo site-specific, da participação activa dos

artistas na escolha do local onde colocariam a sua obra e ainda do papel essencial do

administrador de arte pública, no controlo do desenvolvimento do processo e do resultado

final163

. Em 1979, apelariam a um maior diálogo entre artista e comunidade, requisitando no

projecto artístico, a demonstração dos “métodos a utilizar de modo a garantir uma resposta

informada por parte da comunidade à obra”, e em 1983, esta medida incluiria não só a

descrição, mas também o planeamento de actividades “que educassem e preparassem a

comunidade e a forma como esta seria envolvida, preparada e como seria realizado este

diálogo”. Novas medidas são tomadas ainda, com base na realização da emergência das

noções colaborativas como reflexo das “design teams”, moldadas a partir da prática

arquitectónica, a NEA irá então, reunir “forças com os programas de Visual Arts and Design

para encorajar a interacção entre artistas e arquitectos através da exploração e

desenvolvimento de novos métodos colaborativos.”164

A arte pública deveria deixar de ser uma escultura autónoma e abandonada numa praça ou no

exterior de um edifício de uma grande empresa, para se tornar parte ou elemento da sua

envolvente arquitectónica e paisagística. Uma nova metodologia de trabalho que olha para a

arte de uma perspectiva funcionalista e que assenta na questão de que utilidade tem a obra e

que sentido tem ou virá a ter em relação ao objecto arquitectónico, será entusiasticamente

adoptada por artistas como: Athena Tacha, Ned Smyth, Andrea Blum, Siah Armajani, Elyn

Zimmermen e Scott Burton, que idealizavam, mesmo perante alguns insucessos, que a sua

integração numa “design team” significaria a partilha de responsabilidades em partes iguais

com o arquitecto e urbanista, na tomada de decisões.

Rosalyn Deutsch, afirma que a utilidade de certas obras relaciona-se em geral com a renovada

associação da arte à sua função social, Kwon afirma ainda, que esta postura está

explicitamente associada a artistas que integram “design teams” e que partilham a noção de

161

Miwon Kwon – op. cit., p. 63. 162

Robert Lee Fleming – p. 64. 163

Idem – p. 69. 164

Suzanne Lacy – op. cit., p.23

71

que quanto mais a obra de arte se integrar e desaparecer na arquitectura em forma de bancos,

mesas, ou adoptar a forma de elementos arquitectónicos como, pilares, escadas, paredes ou

pavimentos, maior o seu valor social.

Também o programa Art in Architecture da GSA, embora tenha sido mais flexível e se tenha,

com tempo, adaptado às novas realidades da arte no espaço público, esteve em 1981 na frente

do caso mais memorável e polémico deste tipo de programas, ao delegar, em 1979 à NEA a

escolha do artista (Richard Serra) e respectiva obra a instalar na Federal Plaza, em Nova York,

o ‘Tilted Arc’ (ver capítulo 3.1). Ao contrário da NEA, a GSA entendeu atempadamente os seus

erros e, no mesmo ano da demolição do Tilted Arc, reformulou a sua estrutura e tomou

medidas preventivas que possibilitaram a sua subsistência até aos dias de hoje.

Em 1996, Robert Peck, o novo Comissário dos Serviços dos Edifícios Públicos da GSA, fez as

reformas mais interessantes ao programa, “ exigindo que os artistas fossem contratados numa

fase muito mais inicial, do processo de desenho arquitectónico, do que alguma vez tinha

acontecido. Peck exigia também que os artistas participassem na revisão de desenvolvimento

do projecto, que ocorre a cerca de um terço do processo de desenho do projecto.165

Outra

decisão relevante, que distingue verdadeiramente os dois programas, foi a alteração dos

paneis de decisão, em vez dos típicos três profissionais do mundo da arte, estes passam agora

a evolver, no mínimo, um profissional do mundo da arte reconhecido a nível nacional, um

artista local, um representante da comunidade, o arquitecto responsável pelo projecto, um

representante da GSA nomeado pelo cliente e ainda dois associados da GSA. Segundo

Fleming, o resultado da reforma de Peck, é hoje em dia visível em obras que verdadeiramente

enaltecem o espaço onde estão e que agradam e melhoram a qualidade de vida dos seus

utilizadores.

No mesmo ano, devido a cortes orçamentais severos relacionados com a impopularidade do

programa, o programa Art in Public Places, deixa de conseguir subsistir. Segundo Fleming o

erro encontra-se no não entendimento por parte da NEA de que “o propósito não é criar arte

para o menor denominador comum da opinião do público, mas sim arte que encontra a sua

inspiração num certo rigor contextual, arte que desafie o público ao invés de abordá-lo com

desprezo”166

. Segundo Jes Fernie: “no final da década de 1990, (…) este modelo foi

largamente abandonado. A ideia base de que a arquitectura, como as suas formas alienadas,

poderia beneficiar da capacidade humanística da arte (…) antagonizou muitos arquitectos que

sentiam que os programas comissionistas da arte estavam a ser impostos sem particular

cuidado ou sensibilidade pelas suas propostas arquitectónicas”, ficando, de certo modo,

aliviados pela reformulação e até exclusão de alguns destes programas.167

165

Robert Lee Fleming – op. cit., p.70 “He required that artists be hired for projects much earlier in the

architectural design phase than had been the case before. (…) He required that artists have a hand in the

design development review of the plans for a building that occurs about a third of the way into a project” 166

Idem, p. 76. 167

Jes Fernie – op. cit., p. 10.

5.3. ALGUMAS SITUAÇÕES E CASOS DE SUCESSO.

“A referência mais contemporânea que tenho e que foi a que mais me interessou conhecer e

investigar durante esse período, foi obviamente a relação entre Herzog & Meuron e Remy

Zaugg, que terminou com a morte de Remy Zaugg, mas que produziu um conjunto de

experiências, em ambos os campos e especialmente no campo de colaboração, que me

parecem ter feito avançar a arquitectura e a produção do espaço, tanto produzido por artistas

como por arquitectos.

Num plano mais próximo, é o arquitecto Carrilho da Graça, com quem nós temos colaborado

muito e que foi aliás, uma das minhas colaborações mais importantes. Carrilho da Graça

sempre teve essa necessidade, ou de interagir directamente com artistas e com diversos

artistas, ou de interagir indirectamente, a partir da observação de experiências de

determinados artistas e da sua incorporação como parte da arquitectura. Eu tenho para mim

que o trabalho dos artistas funciona um pouco como um laboratório de pesquisa avançada e de

investigação da matéria, porque estão, em relação a todas as artes mais sociais e políticas,

que são a arquitectura e a arquitectura paisagista, menos constrangidos por questões de

regulamentos, programas ou mesmo de encomendas de clientes e, portanto, têm uma

liberdade um pouco maior que nós.”

Excerto da entrevista realizada ao Arq. João Gomes da Silva.

72

5.3. ALGUMAS SITUAÇÕES E CASOS DE SUCESSO.

“One might ask what artists can contribute to the building environment over and above

architects, landscape architects and designers? What, for instance, distinguishes a bollard

design by an artist from that of an architect or an industrial designer?”168

Sara Selwood, curadora.

Sara Selwood apresenta estas questões a uma série de promotores. A opinião geral, é de que

a presença da arte se traduz num sentimento de autenticidade para um lugar e na tendência

para uma libertação criativa acentuada em projectos de reabilitação urbana, no entanto, a

autora questiona a validade desta ideia preconcebida perante as várias obras similares de

Henry Moore que surgem em praças e espaços públicos de diferentes cidades do mundo.

Paralelamente, a forma como a arquitectura foi obrigada a integrar a arte, pelo bem de uma

cidade mais humana e atractiva, nem sempre foi bem aceite pelos arquitectos. Alguns,

considerando que a sua arquitectura era ela própria arte, viam a integração da arte nos seus

projectos como redundante e desnecessária. Sobre isso, o artista Mike Stubbs afirma que as

“pessoas preferem ter bons edifícios bem desenhados do que maus edifícios com

apontamentos de arte na sua base, para distrair o utilizador da realidade”169

, Richard Serra

explica, também, que nos EUA muitos arquitectos têm adoptado esta postura, preferindo

recusar a oportunidade aos artistas, não distribuindo o fundo de apoio, e realizando eles

próprios a arte consoante as suas necessidades e ideias específicas para o projecto, em

função do que imaginam que será bem aceite.170

Outra situação que advém das novas metodologias colaborativas é o facto de que, quando a

arte se mostrava totalmente integrada na arquitectura, perdia o seu estatuto, e era nesta

situação usualmente observada como decoração, voltando a questão da “obra de arte total”

Existem vários casos de enorme sucesso na, história recente das colaborações, no entanto,

tentando não reduzir esta análise a uma opinião estética, ou da unidade do projecto de

arquitectura e arte, serão referidos três casos para reflexão que marcaram o interesse inicial

por este tipo de colaborações e alavancaram a ideia de “design team”, integrando artistas e

arquitectos. Embora, passado já meio século, as situações descritas, as ideias pré-formadas de

uma área em relação à outra, as dificuldades iniciais e as identificadas no desenvolvimento do

processo colaborativo e o que surge como resultado final, mantém a sua actualidade e reflecte-

168

Sara Selwood – op.cit., p. 55-56. 169

Idem, p. 52. Trad. Livre. 170

Idem, p. 54. “What you have in the USA is architects who, rather than giving the percent to painters and sculptors, take it upon themselves to interact with the needs of what they think ought to be presented to the public… Serious sculptors are denied the possibility of those interventions because the architects are co-opting the money… that parades as post-modernist signature for context.” Richard Serra.

73

se em outros mais recentes, dando assim uma perspectiva geral deste tipo de projectos

interdisciplinares.

O primeiro processo colaborativo integrado num programa de ‘percent for art’ e no qual o artista

é inserido logo no início do processo criativo arquitectónico, é identificado por Tom

Finkelpearl171

, David Patten, entre outros, como o projecto para a Subestação Eléctrica

Viewland/Hoffman, dos arquitectos Hobbs/Fukui Associates, com a colaboração dos artistas:

Andrew Keating, Sherry Markovitz e Lewis "Buster" Simpson, e patrocinado pelo Seattle City

Lights, dentro do esquema Percent for Art do Seattle Arts Commission, em 1979. Considerado

como a primeira formulação efectiva de uma “Design Team”, envolvendo artistas e arquitectos

no desenvolvimento de um projecto, desde o seu processo criativo até à sua conclusão. Com

base nesta primeira experiência surge o primeiro aviso:

“As subsequent generations of design teams will attest, it was not easy goig. (…) The artists

were not used to the process of public design. How could they be? This was the first design

team and some architects of subsequent generations have cursed the day that architects from

Hobbs/Fukui opened the door for this collaboration.”172

Fig. 95. Obras criadas pelos artistas para a Subestação Eléctrica Viewland/Hoffman, da Hobbs/Fukui Associates,1979.

O primeiro indício das diferenças entre artistas e arquitectos, em relação ao processo criativo,

foi o facto de os artistas insistirem que a primeira acção do projecto deveria ser a reunião das

opiniões dos moradores do bairro, sobre as suas inquietações relativamente à proximidade da

subestação eléctrica em relação às suas casas que, consequentemente, abriu um longo

processo de deliberações entre artistas e arquitectos, que destronou o normal procedimento

arquitectónico e levo-o, segundo Richard Andrews, a um processo desregrado e caótico, ao

qual nem artistas e arquitectos estavam habituados e que “(…) embora artistas e designers

tenham em comum o vocabulário da forma e do material, afastam-se no seu entendimento de

171

Tom Finkelpearl foi director do New York City’s Percent for Art Program entre 1990 e 1996. 172

Tom Finkelpearl – op. cit., pp. 25-26.

74

como o processo criativo individual da arte, do design funcional e ainda na forma como este

deve ser integrado no projecto real.”173

O segundo projecto colaborativo, que também atingiu enorme sucesso junto da comunidade

artística, arquitectónica e do público em geral, foi o desenho da Battery Park City Plaza, em

Nova York, 1982-1989, dentro do programa Percent for Art do NYC Department of Cultural

Affairs, com arquitectura de Cesar Pelli, arquitectura paisagística de M. Paul Friedberg e

colaboração dos artistas Siah Armajani e Scott Burton. O que sucedeu, neste caso, foi o

contrário do anteriormente referido; se, no primeiro, o entusiasmo inicial dos arquitectos se foi

desvanecendo com as dificuldades no arranque do projecto, em Battery Park, o arquitecto

Cesar Pelli não se deixou entusiasmar e expôs, desde o inicio, as suas inquietações em

relação à colaboração, afirmando que: “Pensei que era péssima ideia. (…) Existem

demasiados exemplos de arte anti-civica, exemplos onde o edifício é visto como ‘pano de

fundo’ para o artista que sente que tem de criar uma situação confronto."174

No entanto, a

colaboração ocorreu de forma ideal, arte e arquitectura diluem-se e surgem no espaço de

forma fluida e sem os bruscos contrastes das intervenções iniciais deste tipo de programas, a

que Pelli se refere.

Fig. 96. Cesar Pelli, Siah Armajani e Scott Burton – Battery Park City Plaza, N.Y., 1982-1989.

Não podemos afirmar que somente pelo facto de um artista intervir num projecto arquitectónico

pode fazer com que este seja mais apelativo para o público, da mesma forma que também não

é possível garantir o sucesso do projecto somente ao trazer o artista para o interior do

processo criativo. O que nos é possível dizer, nesta fase, é que foi este o caminho escolhido

pela maioria dos programas de fundos para a integração da arte na arquitectura, como solução

para os casos de insucesso já referidos e que, embora seja impossível garantir o sucesso

destas colaborações, o maior envolvimento dos artistas durante o processo criativo, por norma

complexo de gerir, apresenta uma maior percentagem de resultados satisfatórios, em relação à

tardia implantação de arte num objecto arquitectónico já definido ou mesmo, construído.

173

Steven Huss, Diane Shamash – A Field Guide to Seattle’s Public Art. Seattle: Seattle Arts Commission,

1992, p. 67. Trad. Livre. 174

Douglas C. McGill - "Architect and Artists Collaborate on Battery Park City Plaza" New York Times,

January 31, 1989, III, p. 17

5.4. PROGRAMA DE ARTE PÚBLICA DA EXPO’98.

75

5.4. FERNANDA FRAGATEIRO: JARDIM DAS ONDAS, EXPO’98, LISBOA, 1998.

Este caso de estudo reúne duas condições específicas relevantes para a integração da arte na

arquitectura. Embora a relação estabelecida entre ambas as disciplinas surja em casos

bastante diferenciados, existem meios através dos quais este envolvimento é naturalmente

potenciado e, em certos casos, como os programas de arte pública ou urbana, são criadas

condições em que a relação entre arte e arquitectura se torna um requisito e uma exigência.

A primeira condição reside no facto de surgir no contexto de uma exposição universal,

assinalada aqui como território fértil e intemporal no diálogo interdisciplinar. Praticamente sem

excepções, o binómio proposto por António Mega Ferreira: “Exposição Internacional –

Exposição de Arquitecturas”175

domina o panorama histórico das exposições universais, e é

visível na sua riquíssima tradição iniciada em 1851, com a apresentação do icónico Palácio de

Cristal de Joseph Paxton, na primeira Grande Exposição em Londres. Desde aí que estas

exposições se tornaram palco para as mais arrojadas e marcantes expressões arquitectónicas

do seu tempo.

Por um lado, a temporalidade limitada dos objectos arquitectónicos permitia um

desprendimento com o contexto em que se inseriam, orçamentos menos condicionados e

programas flexíveis; factos que se traduzem na possibilidade de o arquitecto se exprimir sem o

normal leque de restrições, de apresentar um atitude experimental, de se permitir um visão

artística e auto-referencial sobre o programa e conceito arquitectónico, que nem sempre lhe é

permitida em projectos permanentes e de custos controlados. Por outro, em exemplos como o

Palácio de Cristal (recolocado posteriormente, em Upper Norwood, Londres, onde ficou até

1936, ano do incêndio que o destruiu na totalidade), a Torre Eiffel (construída para a Exposição

de Paris, em 1889), o Atomium (obra futurista realizada para a Exposição de Bruxelas, em

1958) ou a mais recente ponte da Barqueta (que une o casco histórico de Sevilha à ilha da

Cartuja onde se realizou a Expo 92), entre outros, marcam ainda a paisagem e história das

cidades onde se localizam. Embora realizadas para um evento temporário, o estatuto simbólico

e a mostra de tendências e inovações construtivas ou arquitectónicas inerente a estas obras

resguardou-as para o futuro e tornou-as ícones do seu respectivo país.

Aliado a esta possibilidade e contexto permissivo de uma atitude inovadora, surge também um

interesse especial pela colocação de arte e difusão de artistas, nacionais mas também

internacionais, neste enorme espaço público.

175

António Mega Ferreira – “Da arte de bem ordenar”, Manuel Salgado: Espaço Público. Lisboa: Parque

das Nações D.L., 2000, p. 5.

76

Fig. 97. Sir. Joseph Paxton - Palácio de Cristal, Londres, 1851.

Fig. 98. Gustave Eiffel - Torre Eiffel, Paris, 1889.

Fig. 99. André Waterkeyn - Atomiun, Bruxelas, 1958.

Fig. 100. Marcos Pantaleón - Ponte da Barqueta, Sevilha, 1989.

A segunda condição referida prende-se com a criação de um programa de arte pública, sem

precedentes em Portugal, que, pela forma como foi realizado e concretizado, corresponde ao

cuidado e à responsabilidade com que as obras são colocadas no espaço arquitectónico ou

urbano, à forma como os vários artistas foram envolvidos e convidados a participar, não só no

programa mas também nas decisões afectas às suas obras.

Embora de duração temporária e implantação delimitada pela zona de intervenção, o programa

de arte pública da Parque Expo’98 é um exemplo de sucesso no panorama nacional e constitui

a plataforma através da qual surge o Jardim das Ondas – referido e discutido como uma

verdadeira colaboração entre artista e arquitecto, neste caso paisagista.

Contexto físico da intervenção:

O Jardim das Ondas situa-se no actual Parque das Nações, que entre 22 de Maio e 30 de

Setembro de 1998 deu espaço à EXPO’98 e que correspondia à zona ocupada pela Doca dos

Olivais e por uma série de grandes infra-estruturas industriais, em avançado estado de

degradação, como o Matadouro Industrial de Lisboa, o Depósito Geral de Materiais de Guerra,

a estação de Tratamento de Águas Residuais, o Aterro Sanitário e a Estação de Tratamento de

Resíduos Sólidos (ETRS) de Beirolas e ainda a refinaria da Petrogal e depósitos de produtos

petrolíferos (ex-Sacor e outras companhias); a poente da linha de caminhos-de-ferro, no final

dos anos 80, estavam ainda instaladas pequenas e médias indústrias176

e, alguma habitação

desordenada e precária. Todo este território urgia reabilitação e uma nova solução urbana que

tirasse partido da sua localização de privilegiada, junto ao rio Tejo, na zona oriental de Lisboa.

A primeira fase do projecto consistiu, então, na relocalização das actividades industriais e da

população residente, na demolição de todas as construções existentes, com excepção das

torres da refinaria, que constituem, hoje em dia, o único vestígio das pré-existências e do

carácter industrial do lugar. Posteriormente, procedeu-se também à descontaminação dos

solos e águas subterrâneas e ao saneamento, despoluição e regularização da parte terminal do

176

Informação disponível em: http://www.portaldasnacoes.pt/item/como-era-o-parque-das-nacoes/.

77

rio Trancão, estabelecendo assim a tábula rasa que um projecto destas dimensões e

importância, a nível local e nacional, requeria.

O projecto:

A operação EXPO’98 englobava, três grandes objectivos: por um lado a realização da primeira

Exposição Mundial em Portugal, e última do seu género realizada a nível mundial no séc. XX,

com toda a carga simbólica e visibilidade nacional inerentes; por outro, pretendia-se a

reabilitação urbanística e ambiental da área com cerca de 340 hectares já referida, na qual a

exposição seria inserida, bem como a restituição, aos cidadãos, do direito de usufruírem destes

5km de frente ribeirinha em utilização desadequada. A manutenção de uma coerência plena e

consciência global entre estes dois objectivos, constitui o terceiro objectivo177

, que constitui “um

dos grandes segredos para o sucesso geral do empreendimento Expo’98”178

e que se

materializa num projecto capaz de conciliar eficazmente a realização da exposição, com os

usos futuros dos seus espaços e construções permanentes.

Como objectivo cultural, visava-se, através do tema definido para a Exposição Mundial: “Os

Oceanos: um Património para o Futuro”, promover uma reflexão profícua em torno da temática

oceanológica, renunciando uma óptica estritamente historicista, e propondo a “revisão do tema

nas suas perspectivas de futuro, relacionando-o com a ciência, a política, a tecnologia e as

artes.”179

A difícil tarefa de harmonizar, estruturar e dirigir o projecto de reabilitação urbana e do espaço

expositivo geral, ficou a cargo do arquitecto Manuel Salgado, que pensou o projecto da

Expo’98, na totalidade. O atelier Risco, distinguido pela realização deste projecto com o Prémio

Valmor em 1998 e com o Prémio do Instituto Português de Design, em 1999, ficaria então

responsável pelo projecto geral do recinto, projectos de infra-estruturas, espaços públicos e

zonas verdes, assim como as estruturas modulares destinadas aos restaurantes e outros

equipamentos de apoio, os pavilhões modulares para a área internacional sul, áreas das

organizações nacionais e internacionais, e projectos para o Edifício Olímpico (actualmente

Lisboa/Expo), o Anfiteatro ao Ar Livre, o restaurante junto à Doca dos Olivais e o Teatro

Camões/ Sala Júlio Verne.180

Através do desenvolvimento do projecto imobiliário, da malha residencial e de um projecto de

uma exposição de grandes dimensões, são desenhados dois eixos principais, um longitudinal,

paralelo à linha ferroviária, nomeado Alameda dos Oceanos e um eixo perpendicular a este,

177

Eng. José de Melo Torres Campos – Relatório da Exposição Mundial de Lisboa de 1998 (realizado

para apresentação ao Bureau International des Expositions). Lisboa: Expo’98, Dezembro 1998, pp. 9-11. Disponível em: http://www.portaldasnacoes.pt/images/stories/documentos/parque_das_nacoes/historia_ patrimonio/expo_98/expo_98/ficheiro/Relatorio.pdf 178

Idem, p. 51. 179

Informação disponível em: http://www.parqueexpo.pt/conteudo.aspx?lang=pt&id_object=692&name=

EXPO'98 180

Atelier RISCO – Expo’98: Espaço Público do Recinto. Disponível em:

www.risco.org/pt/02_04_expo98.html

78

que estabelece uma forte linha de visão para o Tejo, com início na Av. de Berlim, agarrando o

aeroporto de Lisboa, a Estação do Oriente e rasgando a cidade até ao rio. Partindo destes

eixos principais foi desenhada uma malha de 7 por 7m, que estabelece a base de desenho do

espaço público, “que estrutura o desenho do chão, e define as regras de localização de

imobiliário, equipamentos, infra-estruturas, plantações e intervenções artísticas”181

. Definidas

as principais orientações, salienta-se a relevância do espaço público em toda a área de

intervenção, como elemento essencial da reconversão urbana e na unificação dos diferentes

projectos permanentes e temporários que constituíram o recinto da Expo’98.

O protagonismo que o Arq. Manuel Salgado conferiu ao tratamento do espaço público deu azo

a um projecto de arte pública sem precedentes, que constitui hoje em dia “um dos mais

relevantes núcleos na cidade de Lisboa, reunindo não só reconhecidos criadores

internacionais, como prestigiados autores nacionais, nalguns casos de escassa ou nula

representação na malha urbana da Capital.”182

Segundo António Mega Ferreira, o programa de

arte urbana da Parque Expo’98, “representa a soma de partes que se foram afigurando como

elementos indispensáveis à construção da paisagem, não como figurações decorativas, mas

como topoi de uma estratégia de desconstrução e reconstrução do espaço urbano que culmina

no recinto da Expo’98 mas se prolonga, inevitavelmente por toda a zona de intervenção.”183

Invulgar e de relevância no panorama nacional devido ao tratamento dado à implantação e

presença das obras de arte contemporânea no espaço público, o interesse por este aspecto

surge numa fase ainda inicial e mantêm-se ao longo de todo desenvolvimento da obra como

conceito chave e, ainda, como principal razão pela qual este programa prosperou e resultou em

sucesso.

Encarregue de pensar a intervenção dos artistas, António Campos Rosado explica: “não nos

limitámos a deslocar obras de arte existentes para um local público, nem é isso que torna o

objecto artístico um objecto de arte pública ou urbana, no sentido público, citadino e

metropolitano. Um objecto de arte pública é pensado de raiz para essa situação.(…) Neste

sentido, a articulação das esculturas com as suas ideias, das esculturas com o espaço

ambiental/urbano/arquitectónico/vivencial da zona é fulcral para o sucesso que muitas vezes

não é reconhecido imediatamente. A existência desses objectos é sentida pelo visitante de

uma forma por vezes quase subliminar”184

Procurava-se que, através de cada intervenção, um espaço público anónimo se tornaria num

espaço de estada, num espaço humanizado que contrariaria o “monolitismo característico da

cidade”; para isso era pedido aos artistas que considerassem na “idealização e integração da

181

Atelier RISCO – op. cit., não paginado. 182

Informação disponível em: http://www.lisboapatrimoniocultural.pt/itinerarios/Paginas/Itinerario-Parque-

das-Nacoes.aspx 183

António Mega Ferreira – “Figuras Livres”. Arte Urbana. Lisboa: Parque Expo 98 S.A., 1998, p. 9 184

António de Campos Rosado, um dos responsáveis pelo projecto de Arte Pública na Expo 98 em

entrevista ao NetParque , disponível em http://www.netparque.pt/NPShowStory.asp?id=261976

79

sua obra no espaço público” a forma como esta poderia tornar o lugar onde seria implantada

num lugar de referência para o cidadão, que assumissem para as suas obras um carácter de

reacção contra a “indiferença generalizada, sugerindo ao individuo um objecto paradoxal e de

descontinuidade dentro da malha urbana” que resultasse não só como elemento transgressor e

“não pacificado, dentro da estrutura da cidade” mas também, que, ultrapassando o valor

estético do gesto artístico, os criadores questionassem o “valor estético da sua obra e o lugar

que esta ocupa dentro de uma lógica espacial.”185

Sobre o processo de trabalho adoptado com os artistas, Manuel Salgado explica: “A nossa

primeira preocupação foi a relação da arte urbana como o passado. Não pretendíamos um

discurso passadista. Depois de discutirmos um pouco que tipo de intervenção é que podíamos

ter (...) Foi necessário decidir onde localizar as peças. (…) Foi um trabalho interessante:

integrar uma forte componente de arte urbana num espaço recém-nascido, sem cair na

tentação de o rechear com referências à História de Portugal. (…) Pensávamos uma peça para

um determinado local. Havia uma conversa com o artista em que se definia a peça,

considerávamos a altura, o espaço onde se inseria, a forma como seria vista de vários

sítios.”186

A diversidade das obras, dos vinte e quatro artistas seleccionados para intervir, não só no

recinto, mas também ao longo do que é agora o Parque das Nações é visível no funcionalismo

de Kanimambo, de Ângela Ferreira, no carácter arquitectónico de obras como Penélope, de

Fernanda Fragateira ou a obra de Pedro Cabrita Reis no viaduto da Av. Marechal Gomes da

Costa e rotunda da Expo98; em esculturas como Rizoma de Antony Gormley, ou Homem-Sol

de Jorge Vieira, no movimento de Reflexo do céu, navegante de Susumu Shingu, na postura

historicista do Lago das Tágides de João Cutileiro, simbólica de Ilha de repouso de Rui

Sanches e Onda Luso Americana de Stephen Frietch e Steven Spurlock, ou na perspectiva

lúdica de obras como Cursiva de Amy Yoes; nas soluções bidimensionais de pavimento,

destaca-se por exemplo, a praça da Porta Sul de Pedro Calapez, a intervenção de Fernando

Conduto no Rossio dos Olivais, a de Pedro Proença, no cais dos argonautas, a de Xana no

Cais Português, e os murais, Haveráguas de Roberto Matta, ou Navigatio Sancti Brendanni

Abbatis de Ilda David.

De entre o enorme espectro de obras realizadas surge, como caso singular, a participação da

artista Fernanda Fragateiro, não só relevante pelo facto de constituir a intervenção mais

extensa realizada, incluindo os Jardins de Água e o Jardim das Ondas, mas também por

constituir o único caso colaborativo dentro do programa de arte pública. Segundo Manuel

Salgado – “o trabalho de Fernanda Fragateiro, ao contrário dos outros artistas, foi desenvolvido

em colaboração constante connosco. Tínhamos uma ideia para aquele jardim da água, desde a

ideia da fonte que acaba no rio àquelas formas. Convidámos a Fernanda para fazer várias

185

António Manuel Pinto – “Arte Urbana: entre o espaço público e o espaço humano”. Arte Urbana.

Lisboa: Expo 98, 2000, p. 13. 186

Manuel Salgado – op. cit., pp. 20-22.

80

intervenções e ela contribuiu muito para o projecto, contando uma história inspirada em Virginia

Wolf. Havia um muro e ela propôs que o muro funcionasse como uma cortina, depois propôs

uns bancos e uma girafa a ver-se ao espalho. Num sítio com o chão em calçada que era para

ser trabalhada propôs aquela malha/tricôt infindável. Apresentou várias contribuições que

enriqueceram o conceito que existia para uma ideia de organização geral daquele espaço.”187

Para além da clara influência que a artista teve no desenho dos Jardins de Água, interessa-

nos, acima de tudo, explorar a sua outra obra, o Jardim das Ondas, na qual a colaboração com

o arquitecto paisagista João Gomes da Silva foi de tal modo equilibrada e profícua que o

resultado final paira entre o objecto de arte e um jardim ou espaço de estada, sendo difícil

identificar onde acaba o trabalho da artista e começa o do arquitecto paisagista e vice-versa,

uma obra que se situa na linha invisível descrita por Mark Wigley188

.

A intervenção de Fernanda Fragateiro:

Fernanda Fragateiro e o Arq. João Gomes da Silva colaboram com o Arq. Manuel Salgado no

projecto dos Jardins de Água, devido ao sucesso da obra e ao facto de a colaboração surgir

com muita facilidade e naturalidade, decidem prolongá-la para o Jardim das Ondas, espaço

destinado a receber um projecto de João Gomes da Silva para o qual já havia uma série de

desenhos.

A postura do arquitecto é, neste caso, essencial para o sucesso deste projecto: “Devo dizer,

que foi um projecto muito personalizado, (…) ao contrário de outros espaços que envolveram

outras pessoas, houve, de uma forma talvez mais inconsciente da minha parte e de uma forma

mais controlada e consciente da parte dela, tal como é muitas vezes próprio entre os homens e

as mulheres, essa intenção e disponibilidade, sobretudo disponibilidade, para o fazer. Portanto,

a minha posição foi – Bom, temos uma hipótese mas estamos completamente abertos para

explorar outra e, portanto, como é que vamos fazer, como é que vamos trabalhar? A posição

do lado dela foi um pouco diferente, até porque os artistas funcionam muito mais dependentes

da noção de autoria e trabalham de uma forma normalmente muito mais isolada do que

arquitectos.”189

Para a artista: “Embora seja um trabalho de colaboração, tem uma linha

divisória bastante marcada. No fundo, o que o João Gomes da Silva faz é permitir que aquele

projecto aconteça (…) é uma coisa muito importante. (…) Eu proponho aquele projecto e

concebo-o sozinha e o que o João faz, é entender, respeitar imenso e contribuir, com o saber

dele, para que aquele projecto seja possível, mesmo que os outros paisagistas ligados ao

próprio espaço da Expo, achassem que aquele espaço não era viável, não funcionava ou que

tinha uma artificialidade que não coincidia com a linguagem do resto do espaço.”190

187

Idem, p. 25. 188

Mark Wigley – op. cit., p. 29. 189

Excerto da entrevista realizada pela autora ao Arq. João Gomes da Silva. 190

Excerto da entrevista realizada pela autora a Fernanda Fragateiro.

81

A resistência ao projecto por parte dos restantes arquitectos paisagistas deve-se à insistência

da artista, apoiada de forma incontestável pelo arquitecto, na utilização de matérias orgânicas

na modelação do terreno. José Veludo foi um dos arquitectos que se opôs à realização da

obra, alegando que a não utilização de matérias rígidas, punha em causa a manutenção de um

espaço de apropriação intensa e que na sua formulação continha situações de limite de

fragilidade. Por outro lado, para artista, sendo que o espaço, não era um jardim normal, “era

uma coisa muito especial que, teria sempre de ter um tratamento exclusivo”191

, possibilitado

pelo contexto expositivo em que seria criado e pelo estatuto de obra de arte.

O Jardim das Ondas, surge como mais um dos espaços públicos de lazer projectados no

âmbito da Expo’98, mas diferenciando-se, no sentido em que a arte pública, não só serve como

referência para o cidadão, para dinamizar ou criar um identidade para o lugar, neste caso

particular, a arte é tudo isto mas é também em si, o lugar, integrando-se dentro do conceito de

art-as-public-place e de uma obra de Land Art que admite ser habitada e vivida integralmente

pelo espectador.

Partindo de um amplo espaço disponível - cerca de um hectare - destinado à utilização lúdica

dos visitantes, a artista e o arquitecto paisagista irão pensá-lo como tal, e integrá-lo dentro da

temática geral da exposição. A inspiração surge no movimento das águas, não só nas ondas

como na sua propagação quando algo se deposita sobre a sua superfície. Este padrão surge

agora de uma forma estática e terrena, captado no tempo como uma fotografia tridimensional e

representado na topografia do jardim, conferindo, a um espaço que tende a ser plano, um

dinamismo e fluidez que dificilmente se consegue através do simples tratamento e

diferenciação de espaços neste tipo de projectos.

Embora a sua escala só permita a sua total apreciação e entendimento pleno, através de um

distanciamento significativo ou de uma perspectiva aérea, cada alteração no terreno ou

apontamento arbóreo é entendido por Fernanda Fragateiro como micro espaço dentro de um

plano maior e globalizante de todas as acções. A colaboração pode ser visível nas diferentes

escalas às quais o projecto, tanto artístico como paisagístico, deve obedecer, e na coerência

com que cada uma encaixa na outra e o torna tanto funcional como simbólico e esteticamente

completo.

191

Idem.

82

Fig. 101. Maquete em gesso realizada por Fernanda Fragateiro. Fig. 102. Planta de modelação e Corte transversal do terreno.

O solo é utilizado como matéria de deformação, e os elementos naturais como o sol, água e

vegetação como materiais de sensorialidade; o espaço compõe-se por várias elevações ou

depressões no solo, totalmente relvado, pontuado na sua extremidade sul e poente por

árvores. Para recriar os vários efeitos da água definidos numa maqueta realizada em gesso,

foram realizados rigorosos cortes sistemáticos na planta que seriam recriados através da

modelação mecânica de solo arenoso. Um primeiro impasse no projecto, surgiu na verificação

de que somente através da direcção directa, do trabalho pelos autores no local, se chegaria ao

resultado imaginado, e que da mesma forma, a fotografia aérea ou de ângulos elevados seria o

único meio de controlo eficaz da obra durante a sua construção.

Fig. 103. Imagem geral da construção/modelação do terreno.

Todos os aspectos estéticos, técnicos e de futura manutenção do espaço foram alvo de

discernimento e preocupação por ambos os autores, desde a escolha do material de

acabamento da superfície relvada, à rega, que se quis fixa, automática e invisível “de forma a

criar resistência ao material nos meses em que o clima mediterrânico de Lisboa tende a

diminuir a sua vitalidade”.192

192

António Campos Rosado – Co-laborações: Arquitectos/Artistas. Lisboa: Parque Expo 98, 2000, p. 107.

83

Fig. 104. Revestimento, forma e apropriação do espaço.

Embora se tenha tentado prevenir, quando a Expo’98 fechou portas, o jardim encontrava-se em

mau estado de conservação, devido à intensa utilização a que tinha sido sujeito e

consequência positiva do seu sucesso que gerou como espaço público de lazer.

Depois de realizados os necessários trabalhos de manutenção, e passado mais de uma

década da sua construção, o Jardim das Ondas, mantém-se como um importante espaço

público de vivência comunitária, diariamente apropriado de variadas formas e por diferentes

gerações. Ainda podemos observar em qualquer visita, adultos que nele se sentam à sombra

de uma árvore, que passeiam e atravessam os seus socalcos, jovens que o escolhem para o

desenvolvimento de actividades desportivas ou crianças que rebolam nas suas ondas.

Fig. 105. Jardim das Ondas, vista Este. Fig. 106. Jardim das Ondas, vista Sul. Fig. 107. Jardim das Ondas, vista Norte.

VI

NOVAS DINÂMICAS COLABORATIVAS.

6.1. INTERDISCIPLINARIDADE COM MÉTODO DE ACÇÃO.

“Eu acho que a maior vantagem é a aprendizagem. Mesmo que não queiramos, estamos

sempre a ser preconceituosos, não é?

É, de facto, muito importante, questionarmos a forma como trabalhamos, e sobre esse ponto

de vista, o trabalhar com pessoas com uma visão diferente, como no caso dos artistas

plásticos, é uma possibilidade de questionar as coisas de forma diferente. Podiam ser outros

olhares, mas é mais fácil encontrar no campo das artes, olhares críticos que questionem o está

a ser feito. Eu acho que a importância esgota-se toda aí. Depois há uma outra dimensão, já

menos importante, que é a dimensão daquilo que se produz, porque aquilo que eu estava a

falar anteriormente era da dimensão do processo.

O processo é mesmo a coisa mais importante, talvez no início, uma pessoa não veja isso com

clareza, mas à medida que os anos vão avançando, eu acho que isso se torna mais claro. O

que nos alimenta mais, que nos dá aprendizagem, aquilo que nos apaixona, aquilo que nos dá

vida é sempre o processo e, não tanto, o resultado.”

Excerto da entrevista realizada ao Arq. José Veludo.

84

6.1. A INTERDISCIPLINARIDADE COM MÉTODO DE ACÇÃO.

Aliada à especialização disciplinar, que tem vindo a ocorrer desde o início do séc. XX, cada vez

se torna mais pertinente explorar as possibilidades destas novas metodologias de trabalho a

nível interdisciplinar. Aliado ao facto de que as disciplinas têm limitado cada vez mais o seu

campo de acção, surge assim uma necessidade de complementaridade, de cooperação entre

vários actores para a resolução de problemas, a um nível geral. Especificamente sobre as

disciplinas que intervêm no desenho da cidade, surge o facto de o espaço urbano se ter

tornado incrementalmente complexo de resolver e trabalhar, a variedade de espaços e a sua

demanda a utilizações e programas variados requer a intervenção de várias especialidades,

que idealmente se reúnem e disponibilizam os seus conhecimentos e processos para melhor

satisfazer os novos requisitos da urbe contemporânea.

Toda a colaboração tem por base a interdisciplinaridade mas, quando falamos de

interdisciplinaridade, não nos referimos à clássica cooperação entre as artes, como a

tradicional integração de obras arquitectónicas e escultóricas num mesmo espaço, ou ainda, à

óbvia coordenação de diferentes especialidades técnicas que se unem em torno do projecto

arquitectónico (projecto de estruturas, de redes interiores de energia, iluminação, comunicação,

abastecimento de águas e climatização). A interdisciplinaridade com a qual identificamos a

acção colaborativa, e na qual nos queremos focar, é muito mais do que a adição de um número

de competências técnicas que se sobrepõem num mesmo objectivo final, ou da divisão de um

projecto em várias partes componentes, (como exemplo: edificado, trabalho exterior e obra de

arte) sobre as quais cada disciplina se encarrega da sua parte num processo independente, a

que Pedro Brandão classifica de “pluridisciplinaridade ou multidisciplinaridade”193

ou uma

simples relação de cooperação disciplinar.

Numa perspectiva inicial, a colaboração apresenta uma necessidade de cooperação; no

entanto, o trabalho das várias partes consiste num processo, coordenado, sincronizado e

aberto, que só resulta de uma insistência contínua na construção e manutenção de uma visão

partilhada do problema, ou simplesmente, de um interesse mútuo de todos os participantes em

coordenar esforços para a resolução de um problema ou construção de um novo objecto. É, no

entanto importante, para o esclarecimento do tema, o que distingue a pluridisciplinaridade da

transdisciplinaridade?

Primeiramente, e segundo Olga Pombo, a interdisciplinaridade surge como “mais do que a

pluridisciplinaridade e menos do que a transdisciplinaridade.” 194

Estabelecida a hierarquia entre

193

Pedro Brandão – Ética e Profissões, no Design Urbano: Convicções, responsabilidade e

Interdisciplinaridade; Livro I - As Identidade do Desenho e a Cidade. Departamento de Escultura da Universidade de Barcelona: Tese de Doutoramento, 2005, p.141. 194

Olga Pombo, Henrique M. Guimarães e Teresa Levy – A Interdisciplinaridade: Reflexão e Experiência,

2ª Ed. Lisboa: Texto Editora, 1994, p. 11.

85

os diferentes modos nas quais as disciplinas se relacionam e articulam, os dois extremos são

definidos da seguinte forma:

A pluridisciplinaridade, sinónimo de multidisciplinaridade, é entendida como a colaboração

entre disciplinas com vista à recolha de informações provenientes das disciplinas envolvidas ou

à análise conjunta de um mesmo objecto, num período temporal limitado e pontual, para a

análise de um problema concreto, sem que se dêem alterações estruturais ou enriquecimento

no processo normal de cada disciplina, ou seja, não implica uma integração conceptual interna.

Assim como acontece na arquitectura, várias disciplinas unem-se em torno de um único

objecto, o edifício, a pluridisciplinaridade propõe que o conjunto disciplinar se encontra ao

serviço, exclusivamente da disciplina que contem o objecto de estudo. Esta metodologia de

trabalho tende para a interdisciplinaridade “quando as relações de interdependência entre

disciplinas emergem. Passa-se então do simples intercâmbio de ideias a uma cooperação e a

uma certa compenetração das disciplinas.”195

A transdisciplinaridade identifica-se com o nível máximo de integração disciplinar e acontece

quando duas ou mais disciplinas se unem, fora do seu âmbito profissional e disciplinar, de

modo a encontrar uma linguagem comum, centrada numa problemática complexa e com certa

autonomia conceptual, que pode evoluir para o desenvolvimento para o desenvolvimento de

nova área de conhecimento, ou uma nova disciplina. “Trata-se de uma forma extrema de

integração disciplinar (…) rompendo fronteiras entre as disciplinas envolvidas, ela implicaria

profundas alterações”196

na estrutura do conhecimento.

Finalmente a interdisciplinaridade aponta para um nível intermédio, para uma noção de relação

recíproca e um espaço comum mas delineado entre disciplinas. Diferindo, assim, da simples

adição disciplinar, no momento em que procura uma síntese relativamente a um objecto

comum e permite a transferência de conceitos, metodologias, integração de conceitos, e a

“utilização de métodos próprios de pesquisa em zonas de fronteira que podem pôr em causa os

saberes e práticas instituídas”197

e tem ainda, ao contrário da pluridisciplinaridade, no que

consta ao resultado, o enriquecimento recíproco das disciplinas envolvidas.

A questão mais imediata, que surge sobre a colaboração ou relações interdisciplinares entre

artistas e arquitectos, é o facto de que o desenvolvimento de qualquer projecto requer, como

sabemos, uma série de participantes e intermediários para a sua concretização e

desenvolvimento, esta necessidade de recorrência a outras especialidades técnicas e

científicas, é encarada pelos arquitectos com naturalidade, no entanto, a ameaça ao seu

domínio estético e de escala, pelas disciplinas criativas, como a arte ou o design, traz à

superfície alguma tensão, associada por alguns autores, como derivada da autonomia

195

Idem, pp. 92-97 196

Olga Pombo – op. cit., p. 13. 197

Pedro Brandão - Ética e Profissões, no Design Urbano: Convicções, Responsabilidade e

Interdisciplinaridade; Livro II - Profissão de Arquitecto: Identidade e Prospectiva. Departamento de Escultura da Universidade de Barcelona: Tese de Doutoramento, 2005, p. 216.

86

disciplinar e a separação, especificamente entre estas disciplinas, no movimento moderno. Por

outro lado, especificamente para os artistas de estúdio, embora entendam os benefícios e

desejem a instalação das suas obras no espaço público e no edificado urbano, esta questão

põe-se como uma invasão do seu ego criativo, da sua privacidade e do seu solitário processo

artístico.

O artista Andrew Drake, expõe esta preocupação, no sentido em que “uma obra de arte só tem

integridade quando o artista tem sobre ela controle absoluto, trabalhando todos os aspectos no

seu estúdio”198

. Neste tipo de situação, a necessária partilha do processo criativo e a sensação

de perda de controlo sobre o mesmo, pode tornar a colaboração num processo, por vezes

ingrato e esgotante. É importante referir também que, embora isto seja verdade para os

“studio-based artists”, esta situação é atenuada quando nos referimos a artistas que já fizeram

a transição para o domínio público e que já se habituaram a delegar a produção da sua obra,

ou que já apresentam capacidades de dialogo com vários autores como o público, clientes,

curadores e administradores, como é o caso de Fernanda Fragateiro. Para este tipo de artistas,

o trabalho interdisciplinar desenvolve-se com maior diligência, e na opinião de Will Alsop,

embora as “demandas de terceiros, seja um choque e um desafio, tornam também o trabalho

extremamente estimulante.”199

Concluímos, assim, que este tipo de colaboração tem como característica principal, a ênfase

no processo criativo, e não tanto no objecto final, segundo o arquitecto Will Alsop: “(…) a

colaboração tem-se tornado mais significante que a obra; os meios em vez do fim; o processo,

não o resultado; a sensação e não a responsabilidade. O preenchimento de tempo significativo,

não a missão”200

. O crítico de arte Jeff Kelly, refere também que a colaboração é um processo

de transformação mutua, em que mais importante que o resultado final é a transformação que

ocorre no processo criativo, explicando que, colaboração ”significa que artistas e arquitectos,

podem nem criar um objecto de arte nem de arquitectura (…) em vez disso, é a procura

daqueles momentos híbridos no processo colaborativo, nos quais tanto a arte como a

arquitectura, na sua forma reconhecível e identificável, desaparecem e dão lugar a outra coisa,

uma coisa que não é nem uma, nem outra.”201

Entram, mais uma vez, em cena as teorias de negação de Rosalind Krauss, já referidas na

conclusão do primeiro capítulo. Ao afirmar que o resultado de uma colaboração honesta e

plena entre artistas e arquitectos é algo que não representa ou que não se insurge como uma

obra de arte ou como arquitectura, coloca o produto da colaboração entre estas duas áreas

num campo de indefinição no qual Krauss colocou as novas práticas artísticas que surgem a

partir dos anos 60. Acerca desta indefinição em relação ao resultado da colaboração, Mark

198

Maggie Toy – op. cit., p. 27. Trad. Livre. 199

Will Alsop – “Frames of Mind”, Frontiers: Artists & Architects. Architectural Design, Vol. 68, Nº 7/8, July-

August, 1997, p. 28. Trad. Livre. 200

Idem, p. 28. Trad. Livre 201

Jeff Kelly – “Common Work”, Mapping the Terrain: New Genre Public Art. Washington: Bay Press,

1995, p. 140. Trad. Livre.

87

Wigley, explica de forma clara que “colaboração não se resume a pessoas talentosas, de

diferentes campos, a trabalharem juntas em projectos estimulantes. A colaboração começa

realmente quando já não é nítido quem é o responsável pelo quê. Duas pessoas assinam um

projecto que não existe, no trabalho, nenhuma linha visível que nos permita atribuir a cada uma

delas as diferentes partes ou papeis, nenhuma divisão clara entre a arte e a arquitectura.”202

202

Marx Wigley – op. cit., p. 25. Trad. Livre.

6.2. PROBLEMÁTICA DAS NOVAS DINÂMICAS COLABORATIVAS.

“Se calhar, um dia vai surgir um projecto, e eu gostaria de trabalhar com João Maria Ventura

Trindade nesses moldes, que nasça dos dois, que seja uma verdadeira colaboração, ou seja,

que eu não seja chamada a comentar um projecto dele, mas que possamos pensar e construir

qualquer coisa juntos, na qual não se distinga arquitecto de artista, e isso se calhar é a parte

mais limite da colaboração, que é muito, muito difícil de acontecer.”

Excerto da entrevista realizada a Fernanda Fragateiro.

“Há uma coisa, que acho que é importante dizer-lhe: É que, à partida, um artista plástico é

aquele que leva até ao fim a realização da sua obra, isto para dizer, que a determinada altura

nestes processos, a materialização escapa às nossas mãos. Isso é um problema porque, na

materialização, tudo, incluído o mais pequeno pormenor, é importante para o processo, e nem

sempre é possível controlar todas as coisas que acontecem em obra. E também aconteceram

acidentes destes nesta obra, ou seja, a determinada altura, aquilo que se tinha na cabeça, na

da Fernanda e na nossa, não se conseguiu materializar.”

Excerto da entrevista realizada ao Arq. José Veludo.

“Quando as coisas não correm como eu gostaria que corressem, tenho alguma dificuldade em

aceitar esses erros, e é um defeito meu.

(…)

Acho que o Herzog, ao contrário da maioria dos arquitectos, tem uma enorme curiosidade

relativamente áquilo que o artista pode trazer. Se calhar é mesmo dos poucos arquitectos que

tem. O problema dos arquitectos é que têm um desejo, quase incontrolável, de controlar todo o

processo, e o facto de pensarem que o artista pode contaminar esse processo é um risco muito

grande para a sua imagem.”

Excerto da entrevista realizada a Fernanda Fragateiro.

88

6.2. PROBLEMÁTICA DAS NOVAS DINÂMICAS COLABORATIVAS.

“It is like that story about two thieves who hole up in an abandoned restaurant to plan their next

job. While they are plotting in the basement kitchen, the dumbwaiter comes down and there is

an order for fried chicken, Southern style. “What shall we do” asks one. “Quick fill the order,”

says the other, “or they’ll come and find us.” So they send up some fried chicken Southern style.

But then another order comes down, and another and they keep filing them and sending them

up. This is what happened to our revolution.”203

Através desta alegoria, o artista Siah Armajani, descreve o sentimento de alguns artistas

perante a complexidade que atingiu os métodos colaborativos, na década de 80, usando o

termo: “revolução”, em relação à tentativa dos artistas em participar activamente e desde o

início do processo de desenho do projecto, o artista afirma que “A arte pública era uma

promessa que se tornou num pesadelo. (…) a ideia de uma “design team” simplesmente não

resulta (…) pois quem acaba, no final por tomar as decisões é quem controla o dinheiro, ou

seja, o promotor imobiliário e o administrador artístico”. A curadora Patricia Fuller refere-se

também a esta questão da complexidade ao dizer que “a crescente tendência para a

complexificação e ‘rigidificação’ do processo, a codificação de um género de arte intitulado Arte

Pública e a ideia de profissionalismo que admite artistas e arquitectos na mesma fraternidade,

parece ter criado um aparato que só se justifica na criação de objectos permanentes.”204

Embora muitos programas proponham uma série de regras a cumprir para melhorar a eficácia

das colaborações, os autores referidos afirmam que é impossível antever à partida, ou

identificar os factores de garantia de sucesso para qualquer colaboração, já que, considerando-

as essencialmente como um processo dinâmico, recente, flexível e imprevisível, talvez não

deva haver um conjunto de regras que limite o seu funcionamento. São propostos, no entanto,

vários pontos a ter em conta, tanto para artistas como para arquitectos que se envolvem neste

tipo de projectos e que visam apenas a salvaguarda dos intervenientes e a identificação de

factores críticos, de modo a evitar algumas situações de confronto, que derivam da experiência

de cada uma das partes.

O arquitecto Will Alsop205

propõe de uma forma genérica, mas que toca ao mesmo tempo em

todas as questões essenciais, apenas três condições:

Respeito mútuo.

Os termos da colaboração devem ser claros e estão lá para benefício de ambas as

partes.

203

Siah Armajani cit. por Tom Finkelpearl – op. cit., pp. 26-27. 204

Suzanne Lacy – op.cit., pp. 22-23. Trad. Livre. 205

Will Alsop – “Frames of Mind”, Frontiers: Artists & Architects. Architectural Design, Vol. 127, 30 de

Julho de 1997. Londres: Wiley-Academy,1998, p. 37.

89

Onde existe vontade, existe oportunidade para os colaboradores descobrirem o que

não sabem.

A estes pontos, o artista David Patten206

, incidindo mais na dinâmica de trabalho acrescenta

que:

Os intervenientes devem aceitar a colaboração e acreditar que podem contribuir

significativamente para o projecto.

Devem trabalhar colaborativamente (visitas ao local, reuniões, desenhos, discussões,

etc.) para construir uma visão partilhada do projecto.

Devem-se mostrar abertos e entender as diferentes habilidades, conhecimentos e

experiências um do outro.

Convém estabelecer um mecanismo de coordenadas (calendário de reuniões, definir

como se vão trocar dados e informações, qual o caminho crítico, etc.) para suportar a

colaboração.

Acordar um programa de alto nível e gerir sessões de trabalho de modo a criar um

entendimento partilhado do local a intervir e uma visão em arco do projecto, de modo a

que cada um tenha a maior liberdade possível no seu trabalho dentro de um esquema

geral.

O arquitecto Nick Childs207

entende como factores absolutamente críticos na relação de

trabalho:

Selecção - a forma como os artistas são seleccionados deve ser cuidada e abrir espaço

a quem se mostra interessado e habilitado para o trabalho conjunto, se o arquitecto for

integrado nesta escolha, garante-se um maior cometimento na relação e evita-se por

vezes, as desastrosas consequências de impingir um artista numa design team sem

que qualquer um se mostre aberto à dinâmica de trabalho.

Motivação - intervenientes motivados é fundamental para o sucesso do projecto, o

cliente, ao construir a design team deve, para isso, ter desde o início um ideia clara do

que quer atingir e explicar o que teve em conta na selecção de cada interveniente.

Gestão do projecto - deve ser realizada por alguém que entenda as intenções e mostre

empatia pelo projecto, idealmente deve ser um arquitecto a gerir o projecto.

Status - o artista deve ter relevância suficiente no projecto para que tenha alguma

autoridade e controle sobre os seus elementos na obra, garantindo assim que este

tenha uma atitude responsável. A responsabilidade geral recai, no entanto, sobre o

arquitecto, já que este tem como função a entrega de um edifício seguro e dentro do

orçamento e do programa.

Confiança - a partir do momento em que são seleccionados os intervenientes, deve

ser dado espaço e tempo para que artista e arquitecto se conheçam e entrem em

206

David Patten – “An Artist's Perspective: Remember What Jack Said”, 2007. Disponível em:

http://www.publicartonline.org.uk/resources/rescollaboration/collaboration_artist.php, 207

Nick Childs – “Collaboration: An Architect's Perspective: A losing battle?”, Dezembro 2000. Disponível

em: http://www.publicartonline.org.uk/resources/rescollaboration/collaboration_architect.php

90

contacto com as obras um do outro, estabelecendo assim uma relação de confiança,

respeito, reconhecimento de capacidades e entendimento mútuo.

Comunicação - é essencial para o sucesso, o cliente deve ser claro nas suas

intenções, o artista deve ter capacidade de transmitir as suas ideias e o arquitecto deve

conseguir entendê-las e tomá-las em consideração. As diferentes linguagens são, por

vezes, uma barreira intransponível e que torna a colaboração num processo

desnecessariamente complexo.

Compromisso - toda a equipa deve querer suportar a colaboração, o envolvimento e

apoio mútuo dos intervenientes deve fazer parte das orientações e termos exigidos

para o projecto colaborativo, todos devem entender a importância que a sua

intervenção tem ou terá num plano geral e na ambição do cliente.

Nos casos de estudo seleccionados, somente no último é que a colaboração não surge de

forma casual e por vontade de ambos os intervenientes, aproximando-se assim dos programas

de arte pública e percent-for-art, atrás analisados, no sentido da problemática das

colaborações entre artistas e arquitectos. As principais questões devem-se ainda a um certo

preconceito na forma como uma disciplina olha para a outra, e ainda a certos comportamentos

padrão que distinguem artistas de arquitectos.

A arquitectura mantém, nos dias de hoje, um certo controlo sobre a maior parte das disciplinas

com as quais interage. Para João Maria Ventura Trindade, continua ainda a haver “essa

tendência de prevalecer sobre todas as outras especialidades, de todas lhe serem

subservientes ou funcionarem, simplesmente, para que a arquitectura brilhe”208

, e para

Fernanda Fragateiro, o problema tem ainda a ver com a necessidade de controlo total por parte

de muitos arquitectos em relação ao projecto.

Por outro lado, embora haja um desejo evidenciado, tanto pelos arquitectos como pela artista,

de uma colaboração equilibrada, que obedeça na íntegra ao processo que a define e à

consequente diluição entre as fronteiras do trabalho de cada um, é indicada também, a

necessidade de limites claros e evidentes durante todo o processo colaborativo, ou seja,

defende-se a contaminação reciproca e a experimentação, desde que apoiada na consciência

das limitações de todo e qualquer interveniente.

A inexistência desta fronteira tem como consequência a entrada dos arquitectos e artistas em

campos que não são os seus. O alargamento do seu campo de acção e a experimentação

numa área distinta entende aliciante por diversas razões: para os artistas, assenta na

possibilidade de criar ambientes, de intervir no espaço urbano e na questão da escala e para

os arquitectos, deve-se, por exemplo, à evolução tecnológica e ao facto de os materiais e

técnicas de desenho e construção disponíveis nos dias de hoje, permitirem uma maior

liberdade formal, uma enorme variedade de soluções estéticas e uma possibilidade de

expressão.

208

João Maria Ventura Trindade – Excerto da entrevista realizada pela autora.

91

Outra questão que se põe tem a ver com a forma como o artista trabalha, discutindo-se

essencialmente a questão da autoria e de controlo durante o processo criativo e de

materialização. João Gomes da Silva refere que “os artistas funcionam muito mais

dependentes da noção de autoria e trabalham de uma forma normalmente muito mais isolada

do que os arquitectos habituados a ter que colaborar até com outras pessoas para poder

concretizar as coisas”209

. Fernanda Fragateiro admite também a sua limitação como artista, no

que se refere à perda de controlo durante a fase de materialização através da simples

afirmação de que “quando as coisas não correm como eu gostaria que corressem, tenho

alguma dificuldade em aceitar esses erros”210

e compensando com o facto de ser uma artista

extremamente aberta a novos contextos, equipas e enquadramentos, que adopta em relação

às colaborações, uma posição sempre democrática que visa atingir sempre um ponto comum

que beneficie o espaço e a sua experiência pela comunidade do local onde se insere, em

detrimento, por vezes, da criação de uma determinada imagem, que tenha um efeito nos media

e na aceitação institucional ou da crítica.

Para João Gomes da Silva e para João Maria Ventura Trindade, a chave do processo

colaborativo está na abertura e na disponibilidade que apresentam a um pensamento distinto, a

uma intervenção artística e mesmo a possíveis alterações ao seu próprio projecto, que indicam

também dependente de uma pré-existente relação de sintonia e confiança, que idealmente

surja também de uma relação a nível pessoal que ultrapasse a diplomacia e cedência de

posições que muitas vezes acontece em colaborações. O arquitecto José Veludo, em

referência ao facto de que o trabalho com artistas implica sempre uma certa indefinição e que é

sempre um risco, considera absolutamente crucial que se acredite no artista e que se tenha

confiança no seu trabalho, de outro modo não é possível ultrapassar as dificuldades

decorrentes do projecto ou gozar as vantagens e mais-valias que surgem, a nível individual nos

processos colaborativos.

Estas vantagens, na opinião geral dos arquitectos entrevistados, assentam na aprendizagem

oriunda do processo e não do resultado e ainda na possibilidade de questionamento dos

processos e preconceitos habituais da arquitectura, derivada do contacto com uma disciplina

que dispõe de maior liberdade e menores constrangimentos em relação a regulamentos,

programas e exigências tanto, técnicas como provenientes da vontade de um cliente. De uma

forma muito prática, José Veludo explica também que, “no fundo, a parte mais interessante, é a

de sensibilidades diferentes poderem participar num processo comum”211

e acrescenta, a

vantagem mais centrada na arquitectura que é: “colaborar com artistas, ajuda-nos a legitimar

determinados caminhos que não são tão materializáveis, nem tão funcionais.”212

209

João Gomes da Silva – Excerto da entrevista realizada pela autora. 210

Fernanda Fragateiro – Excerto da entrevista realizada pela autora. 211

José Veludo – Excerto da entrevista realizada pela autora. 212

Idem.

92

Sabemos que nenhuma destas listas de factores e interpretações é garantia de sucesso. As

questões que surgem, nos vários projectos colaborativos em que foi possível ter acesso às

opiniões dos intervenientes, são acima de tudo relacionadas com imagens pré-concebidas de

artistas em relação a arquitectos e vice-versa, nas diferentes formas de trabalhar de cada um,

em questões de autoria e responsabilidade intrínsecas a qualquer trabalho interdisciplinar e

ainda ao facto de que a grande maioria das colaborações que surgem de programas percent-

for-art forçam relações entre arquitectos e artistas que não se mostram à partida abertos ou

interessados em projectos específicos.

6.3. O DESIGN URBANO.

“Eu acho que só há uma forma de trabalhar quando se trabalha com equipas, que, como diz

bem, uma coisa é: os programas são algo que muitas vezes nos transcende, que vem de

montante e que extravasa o contexto e a dimensão em que estamos a trabalhar.

A outra coisa é: a partir do momento em que se trabalha com alguém, ou em que existem

várias componentes numa equipa, a ideia é haver o menos programa possível e eu acho, que

aqui, com a Fernanda isso aconteceu em pleno. É evidente que se houvesse alguma coisa,

naquilo que a Fernanda tivesse feito, que incomodasse ou que de alguma forma inviabilizasse

aquilo que era parte do conceito do parque, teríamos discutido isso com ela. Isso aconteceu de

facto, mais tarde, na materialização do projecto e aí teve-se que, em conjunto, encontrar um

caminho e afinar decisões.”

Excerto da entrevista realizada ao Arq. José Veludo.

93

6.3. O DESIGN URBANO.

O Design Urbano parte de uma reacção contra a especialização ou o isolamento disciplinar e

introduz o pensamento interdisciplinar, como possível solução para as questões

contemporâneas originadas pelas novas mutações das cidades213

e inclui, “casos tão distintos

como a reabilitação das frentes ribeirinhas ou marítimas, a criação de novos centros urbanos,

os recintos para eventos temporários como as Expo ou as Olimpíadas, as reabilitações de

espaços históricos nas cidades, espaços associados a redes de transportes públicos, verdes

urbanos ou parques empresariais, ou residenciais...”214

Tendo como prioridade o Espaço

Público, na sua dimensão não só espacial mas também económica e social, o Design Urbano

apresenta uma especial afinidade, não só com o espaço, mas com a sua “estetização, e em

particular com a arte pública”215

. Reunindo, assim, muitos dos temas referidos individualmente

ao longo desta proposta de aprofundamento das colaborações entre artistas e arquitectos.

A relação colaborativa em análise engloba não só arte e arquitectura, mas também disciplinas

ou outros agentes como o paisagismo, o design, a engenharia civil ou de infra-estruturas, o

planeamento, a gestão, a geografia e ainda diversos profissionais das ciências humanas como

sociólogos ou historiadores.

Se, por um lado, este novo domínio de colaboração actua nos interstícios disciplinares, por

outro, ultrapassa a temática tratada até agora e torna-a mais complexa e globalizante ao

introduzir questões mais específicas como, as diferentes escalas (do traçado geral ao

pormenor da iluminação) nas quais um só objecto é trabalhado por vários intervenientes,

questões de responsabilidade ou de qual a disciplina mais indicada a tratar dos temas

específicos do projecto e ainda, dentro desta responsabilidade, o dever de manter em todo o

projecto uma visão holística e partilhada entre as várias entidades e disciplinas envolvidas.

Poder-se-á dizer que a arte (neste caso trata-se mais concretamente da arte pública) e a

arquitectura, encontram no Design Urbano uma outra estabilidade e um novo sentido para a

sua relação, que vai para além da esporádica colaboração entre as disciplinas.

Partindo de uma distinção entre o Desenho Urbano e o Design Urbano, proposta por Brandão

e, na qual, a segunda ultrapassa a composição urbana para se focar também “na estetização

do espaço público ou melhor, no desenho de um ambiente urbano qualificado”216

e para além

do projecto, propõe ainda a importância do processo na sua variante interdisciplinar onde se

impõe uma procura estratégica de “instrumentos conceptuais, para desembaraçar a

213

Pedro Brandão - Ética e Profissão, no Design Urbano: Convicções, resposabilidade e

interdisciplinaridade; Livro I - As Identidades do Desenho e a Cidade. Tese de Doutoramento em Espaço Público e Regeneração Urbana, Barcelona: Departamento de Escultura da universidade de Barcelona, 2005, p. 111. 214

Idem, p. 114. 215

Idem, p.119. 216

Idem, p. 115.

94

Arquitectura, a Arte e o Design, de obsessões familiares”217

. Estas características do Design

Urbano acabam então, por encurtar o caminho das colaborações e da participação de artistas

em projectos urbanos e arquitectónicos e assemelham-se aos interesses que estiveram, e

estão ainda, na base das colaborações originadas em programas de arte pública, já que visam

explorar os benefícios da arte como instrumento revitalizador de centros urbanos, como meio

de fomentar unidade e valores comunitários, como catalisador de investidores ou forma de

dinamizar a economia da cidade e ainda como processo de criação de identidade e carácter de

um determinado espaço, bairro, ou cidade.

A arte pública continua, no entanto, a debater-se com o dilema da subserviência ou confronto.

Para Malcom Miles, por exemplo, a arte no design urbano toma somente um de dois papeis,

“como decoração dentro do revisitado campo do design urbano no qual as necessidades do

utilizador são centrais, e como processo social de criticismo e envolvimento, definindo o espaço

público não como lugar público mas como campo de complexos interesses públicos.”218

Mantendo viva a sensação de que a arte, ao entrar na esfera da arquitectura deve tomar para

si uma função ou resguardar-se como decoração, toma-se assim consciência de que os

maiores benefícios do envolvimento e colaboração entre artistas e arquitectos estão no

processo, na liberação que o trabalho conjunto pode trazer para a prática individual e pela

experimentação de novas formas de olhar para a arquitectura, de novas dinâmicas de trabalho

e novos desafios para ambos.

Tal como em colaborações nas quais o artista toma um papel activo no projecto, o Design

Urbano tenta também resolver o que Remesar identifica como a incoerência metodológica que

mais impossibilita o discurso interdisciplinar entre a arquitectura (incluído o paisagismo e

urbanismo) e a arte (arte pública), identificada também como a questão central dos programas

de arte pública americana já referidos e que segundo o autor acontece “quando arquitectos e

urbanistas falam de espaço público, arte pública ou design urbano, estes temas surgem

periféricos ao discurso central e quando um artista fala sobre a cidade, refere-se a ela somente

como cenário para a sua intervenção.”219

A esta visão, propõe-se ainda a de Brandão, ao sugerir um novo domínio colaborativo que

resolva “a sempre pertinente questão de domínio das escalas” na qual a “relação com o espaço

se coloca, desde as dimensões menores que a da arquitectura (…), até aos mais amplos

sistemas, por exemplo das estruturas naturais ou estruturas viárias.” É esta relação, embora

não englobando a escala urbana, que também se objectiva com a proposta de colaborações

entre artistas e arquitectos, ou seja, a de um objecto trabalhado na escala arquitectónica e do

objecto, reconstruindo a teoria de Summers e ambicionando um resultado final que reúna no

217

Idem, p.118. 218

Malcom Miles – Art, Space and the City: public art and de urban future. London: Routledge, 1997, p.

74. Trad. Livre. 219

A. Remesar – Public Art & Urban Design, Interdisciplinary and Social Perspectives. Waterfront of Arts

III, web version nº4, p. 5.

95

seu desenho, de forma propositada e consciente ainda no espaço virtual (no projecto), o

espaço pessoal, o espaço social e o espaço real.

6.4. JARDIM NAS MARGEM, CACÉM, 2002-2008.

96

6.4. FERNANDA FRAGATEIRO: JARDIM NAS MARGEM, CACÉM, 2002-2008.

O Plano de Pormenor da Área Central do Cacém surge dentro do Programa Polis do Ministério

do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional que, em conjunto

com as autoridades locais, visa realizar intervenções de qualificação urbana e ambiental,

financiadas pelas respectivas Autarquias, Governo e União Europeia (através de Fundos

Comunitários), com a ambição de tornar as cidades em territórios de “inovação e

competitividade, cidadania e coesão social, de qualidades de ambiente e de vida, bem

planeados e governados.”220

As escalas, mais uma vez são aumentadas, o Programa Polis olha para a cidade em diferentes

escalas territoriais, partindo de uma visão de “regeneração urbana” que se centra na escala

dos espaços intra-urbanos específicos na cidade, as várias comunidades que a constituem e

“envolve a articulação de diferentes componentes (habitação, reabilitação e revitalização

urbanas, coesão social ambiental mobilidade, etc.)”, para uma visão de “competitividade

/diferenciação” na qual a cidade é colocada enquanto nó de “redes nacionais e internacionais

entre cidades portuguesas para a valorização partilhada de recursos e a cooperação entre

cidades, potencialidades e conhecimento” e finalmente para uma visão de “integração regional”

na qual a escala é a da “”cidade-região”, definida como o espaço funcionalmente estruturado

por uma ou várias cidades e envolvendo uma rede sub-regional de centros e de áreas de

influência rural”221

O Design Urbano irá actuar na escala urbana, arquitectónica e do objecto, compatibilizando a

estrutura geral com a gestão destes intervenientes e outros que por necessidade sejam

integrados para o cumprimento dos objectivos gerais. A uma escala menor localiza-se a

colaboração entre artista e arquitecto que, como se verá, propõe uma das relações de maior

proximidade entre espaço público e comunidade, conciliando todas as intenções acima

descritas, com especial enfoque na questão da diferenciação e do fenómeno de identidade.

Contexto físico da intervenção:

A cidade do Cacém, pertencente ao conselho de Sintra, é um dos muitos subúrbios de Lisboa

que tem crescido exponencial e desordenadamente desde a década de 70 e que, como tal,

sofria dos sintomas típicos do “urbanismo expansivo”, caracterizados no estudo de Félix

Ribeiro222

realizado em 1999; de uma forma incisiva, referem-se: o esvaziamento da função

residencial dos centros históricos (“tercialização”, desertificação, abandono e degradação); a

degradação do património edificado (no “casco” urbano, periferias mais antigas e bairros

220

Gabinete do Secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidade - PORTUGAL POLÍTICA

DE CIDADES POLIS XXI 2007-2013, apresentado em Maio 2008. Disponível em: http://www.dgotdu.pt/pc/documentos/POLISXXI-apresentacao.pdf 221

Gabinete do Secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidade – op. cit., pp. 2-3. 222

Refere-se este estudo pela relevância que teve na criação do Programa Polis e na forma como é

aplicado e referido nas várias intervenções do programa a nível nacional.

97

sociais); a intensificação das extensões suburbanas caóticas, desprovidas de eficientes infra-

estruturas técnicas e sociais e com fracas condições de vivência urbana; o congestionamento

crescente do trânsito associado aos movimentos pendulares de habitação-emprego e a

degradação acelerada da paisagem urbano (escassez de espaços verdes e espaços públicos

atrofiados pela dinâmica de construção compacta)223

. Este cenário caracterizava a situação do

centro do Cacém e a urgência de uma intervenção capaz de colmatar as consequências do

que o Arq. Nuno Lourenço designa por “analfabetismo urbanístico”224

A situação mais grave, e que consequentemente teve maior relevância no projecto de

intervenção, prende-se com o estado da ribeira das Jardas que atravessa as freguesias de

Aqualva e Cacém, esquecida, desvalorizada e em estado de elevada degradação. A

progressiva construção nas margens da ribeira acabaria por obstruir o leito e colocá-la numa

situação de “traseiras”, na maior parte do seu percurso pelo Cacém, em que a presença de

muros e edificado ilegal limitavam o acesso da população e tornavam o canal “num autêntico

esgoto a céu aberto”225

de condições sanitárias e biológicas consideradas preocupantes. Como

elemento natural de maior importância, não só na reunião de ambas as freguesias que

separava, mas também para o sistema ecológico e de espaços verdes do projecto, a ribeira

das Jardas foi encarada dentro do projecto de requalificação da área central do Cacém, como

peça chave e ponto fulcral no cumprimento dos objectivos gerais apresentados no Plano

Director Municipal como “actuações dominantes” e dos quais se realçam: a melhoria da

qualidade vida, a revitalização da vida comunitária, a ampliação da fruição da cidade e

obviamente da natureza e a criação das infra-estruturas necessárias à melhoria global da

mobilidade e acessibilidades.226

A preparação dos trabalhos para a requalificação da área central do Cacém incluiu um

inquérito social e levantamento das actividades, a elaboração do projecto de expropriações, a

operação de transformação fundiária e a demolição de todas as construções na área inundável

da ribeira, assim como de algum edificado sem condições de habitabilidade ou segurança, e no

realojamento da população afectada temporária ou permanentemente.

223

Programa Polis – Plano Estratégico do Cacém. Documento online, p. 10. Disponível em:

http://polis.sitebysite.pt/cacem/docs/PPCacem.pdf 224

Nuno Lourenço – “Cacém e Antas: Desenhar o espaço urbano com os edifícios ou apesar deles”,

Design Urbano inclusivo: uma experiência de projecto em Marvila: Fragmentos e Nexos. Lisboa: Centro Português do Design, 2004, p.143 225

Kátia Catulo – “Ribeira das Jardas devolvida aos moradores do Cacém”: Diário de Noticias Online, 21

de Abril 2008. Disponível em: http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=998210&page=-1 226

Programa Polis – op. cit., p. 21

98

Fig. 108. Risco - Plano de Promenor do Cacém: Delimitação da intervenção e planta de encarnados e amarelos.

Fig. 109. Esboço realizado pelo atelier RISCO.

O projecto:

A integração neste programa permitiu alargar qualitativa e quantitativamente o âmbito desta

intervenção levada a cargo pelo ateliê de arquitectura e desenho urbano RISCO (Manuel

Salgado e Nuno Lourenço), a nível de Plano de Pormenor e arquitectura, e pelo ateliê de

arquitectura paisagista NPK a nível de paisagismo e ambiente, tornando assim os objectivos

gerais mais ambiciosos e expansivos.

Nos, cerca de 45 hectares de área de intervenção, estabelece-se um plano que visa uma

“restruturação da rede viária; a “beneficiação dos espaços públicos” através da exponenciação

da circulação pedonal, criação de novos espaços verdes e de estada; a

“regeneração/recomposição da edificação” para a criação de uma nova unidade arquitectónica;

a “beneficiação e extensão do parque urbano” criando um novo equilíbrio entre o uso

99

habitacional, em predominância, e a presença de espaços verdes, assim como a formação de

um “verde contínuo” que quebre a densidade edificada da cidade e a “requalificação da ribeira

das jardas” de modo a controlar as cheias, o grau de poluição do curso de água e a devolução

da mesma aos cidadãos através da criação de uma área verde adjacente de utilização lúdica.

Por fim, resta referir a criação do Parque Linear da Ribeira das Jardas, que se explanará

separadamente por ser a intervenção central e mais estruturante do Plano de Pormenor e do

Programa Polis do Cacém, e por constituir um projecto colaborativo que envolveu o atelier NPK

e a artista Fernanda Fragateiro.

Numa zona que se estende por 4 hectares, com início na entrada na cidade de Aqualva-Cacém

pelo IC19, no sentido Lisboa – Sintra, e que termina na união com o Parque Urbano do Cacém,

o Parque Linear desenvolve-se ao longo da Ribeira das Jardas criando um importante corredor

verde numa zona suburbana altamente densificada. Inaugurado em Dezembro de 2007, o

parque serve uma população de cerca de 70 mil habitantes de Aqualva e Cacém e tem o duplo

objectivo de reenquadrar o curso de água na nova estrutura da cidade, tirando proveito das

suas múltiplas valências, a nível cénico, de estrutura ecológica e de transformação da

paisagem para a criação de um grande espaço público de lazer, que integra equipamentos de

utilização colectiva (parque infantil e equipamentos desportivos) para usufruto multigeracional e

no qual a natureza tem especial protagonismo.

O parque divide-se em duas tipologias principais, demarcadas por uma diferença de cota que

se destina “a criar zonas de alargamento do programa em caso de cheias”, a primeira tipologia

corresponde ao espaço canal de enquadramento e protecção à Ribeira, que resolverá os “os

problemas de hidráulica e de manutenção de imagem associados à regularização das

margens”; a segunda tipologia, a uma cota mais elevada, corresponde aos espaços contíguos

“equipados com maior capacidade de carga” e destinados a equipamento cultural, desportivo e

de lazer onde a não impermeabilização dos solos é uma preocupação base.227

A presença da água e a forma como percorre longitudinalmente todo o parque, a sua fluidez, o

som que emite na transposição das rochas que se depositam no leito e a frescura e paz à qual

se associa este elemento da natureza, proporcionam dentro do esquema descrito, a criação de

diferentes espaços ao longo do parque, espaços de reflexão, espaços de passagem, espaços

vocacionados a actividades lúdicas e de exercitação física e espaços de estada. Bilateral e

paralelamente à ribeira, são também criados, dois percursos de circulação pedonal e ciclável

que a cruzam em quatro pontos-chave de atravessamento urbano.

227

RISCO - Relatório do Plano de Pormenor do Cacém, 19.09.2001, p. 21: Disponível em:

http://195.23.241.219/Docs_cmsintra/Regulamentos/PP_Cacem/documentos.htm

100

Fig. 110. Imagens dos diferentes espaços, atravessamentos e relação com a envolvente do Parque Linear.

A intervenção de Fernanda Fragateiro:

O convite à artista surge por parte do Arq. Manuel Salgado e tem como objectivo a sua

integração na equipe da NPK e a realização de uma intervenção no Parque Linear da Ribeira

das Jardas. Para José Veludo, do atelier NPK, a possibilidade de colaboração com a artista é

encarada “como uma oportunidade de diversificar a equipa e ampliar, aquilo que são os olhares

e as sensibilidades no tratamento do território” e a aceitação da sua participação deve-se ao

facto de lhe ter parecido “um melhor caminho para dar uma identidade e caracterizar o espaço

de modo a que as pessoas se identifiquem com ele.228

A escolha da localização da intervenção foi óbvia para ambos, o espaço escolhido soma

características como, centralidade, forma, relação com a envolvente e, mais importante ainda,

o facto de ser um local onde o “desenho viário se sobrepunha muito àquilo que era a lógica

geral”229

de aproximação aos valores naturais presentes na zona. Formalmente é um espaço

rotunda que reúne, a diferentes cotas, o acesso principal na cidade pelo IC19, a Rua João de

Deus (continuação da anterior para Sul), a Av. dos Bons Amigos (que dá acesso à nova

estação ferroviária de Aqualva-Cacém), e a Rua de Angola que se desenvolve para Oeste no

228

José Veludo – Excerto da entrevista realizada pela autora. 229

Idem.

101

Cacém. Confinada por este espaço ovóide, orientado perpendicularmente mas contíguo ao

curso de água e único ponto em que o parque entra na cidade para além do eixo viário que o

limita, situa-se a obra de Fernanda Fragateiro intitulada Jardim nas Margens.

Fig. 111. NPK - Parque Linear: Plano geral. Fig. 112. Zona de intervenção da obra de Fernanda Fragateiro.

A obra assemelha-se à solução criada pela artista para o Jardim das Ondas, no sentido em que

busca a criação de espaço de uso flexível, múltiplo e diverso através de formas que têm o

corpo como medida e que surgem ergonómica e funcionalmente pensadas num proposta de

modelação de terreno, que neste caso, se adapta às características sociais e físicas do local.

Segundo a artista: “Neste projecto, por exemplo, (…) era ridículo estar a propor um

revestimento com matéria vegetal num sitio urbano, duro, complicado e que não vai ter os

mesmos cuidados que numa zona da Expo, feita para uma classe média alta, um espaço onde

aconteceu a Expo e para o qual tinha sido especialmente contratada um equipa, para tratar dos

jardins. Portanto, no Cacém, eu sabia que tinha de introduzir e interessava-me também

introduzir matérias mais duras como o betão ou a borracha.”230

A intervenção consiste em quatro círculos côncavos que se distribuem pelo espaço disponível

e que, de certa forma, reúnem em si as várias funções presentes no jardim, são espaços de

passagem ou de circuito, espaços de estada, de contemplação ou reflexão, locais de reunião

que possibilitam ainda a actividade física e de lazer para várias gerações. Uma das

particularidades deste espaço em relação aos restantes que compõem o parque, está no facto

de se elevar naturalmente em relação ao nível da água e ainda na sua pontuação com estas

formas criadas por Fernanda Fragateiro, como marcas consequentes, de pingas de água que

caíram no terreno e que foram sobredimensionadas pela artista para criar diferentes espaços,

ambientes e utilizações.

O projecto parte de uma maquete em gesso criada pela artista. A partir de um molde do terreno

as formas são esculpidas utilizando a mão como escala e como corpo, ao referir o projecto, a

artista explica que “o gesto da mão, tem um saber que lhe pertence e que nós não sabemos de

onde vem, a mão coisas que não estão no cérebro mas que estão em nós como um todo. O

230

Fernanda Fragateiro – Excerto da entrevista realizada pela autora.

102

jardim do Cacém tinha muito o gesto de se retirar uma parte da matéria para criar lugares de

acolhimento para o corpo, e por isso é que eu queria que as formas feitas em betão fossem

macias, que fossem acolhedoras o suficiente para uma mãe se deitar com o filho, claro que

não podia ser nem rugoso nem agressivo. A zona de borracha também deveria ser

suficientemente mole para que um miúdo pudesse cair sem se magoar, aqueles espaços e

formas foram imaginados para que se façam coisas que uma pessoa não faz normalmente no

meio da cidade.”

Fig. 113. Maquete de estudo da obra Jardim nas Margens feita em barro.

Fig. 114. Maquete final da obra Jardim nas Margens realizada em gesso.

Embora esta obra se aproxime, de certo modo, do Jardim das Ondas, a sua materialização

distancia-se devido às opções do arquitecto e, acima de tudo, pelo contexto que a envolvia;

considerando, tanto o local e contexto social como o tipo de projecto no qual se inseria e que

não lhe permitiram a mesma liberdade. O que para o arquitecto foi “um importante trabalho de

ajuste, entre aquilo que foi o impulso da Fernanda e aquilo que era viável”, Fernanda

Fragateiro descreve como: “a certa altura eu perdi completamente o poder e a voz nesse

projecto, simplesmente foi-me dito que as coisas tinham que ser assim porque não havia outra

maneira de as produzir. As peças em betão, por exemplo, eram peças únicas realizadas com

cofragens feitas no lugar (…) e passaram a ser uma data de gomos de betão, portanto, houve

ali soluções que não foram como eu as tinha pensado e confesso que também não consegui

lidar muito bem com isso e acabei por me afastar um bocado”, confessando também que não

chegou a ver, nem tem qualquer registo do projecto tal como ele foi terminado.

É importante entender que este tipo de situações acontece com alguma frequência, na

realização de projectos desta dimensão e até em projectos nos quais participam vários

103

intervenientes. Embora Fernanda Fragateiro tenha já bastante experiência neste tipo de

projectos, a questão do controlo é uma peça chave para qualquer tipo de colaboração e, neste

caso, mostrou ser predominante em relação a um panorama geral, a uma visão partilhada e a

um projecto para a comunidade que, segundo a artista, estão no centro das suas prioridades

ao entrar neste tipo de processos. Pode-se assim concluir que, embora a postura do arquitecto

e da artista pareçam ser acertadas, não há como prever resultados que partem de situações

tão complexas como é um projecto de intervenção urbana.

No entanto e para além das dificuldades referidas, esta obra site-specific parece não pertencer

de uma forma tão completa em lugar nenhum, as formas circulares estabelecem não só um

diálogo conceptual com a presença da água e com a sua envolvente, visível na forma como os

elementos criados se adaptam à topografia do terreno, mas estabelecem também uma relação

formal com os limites do próprio jardim. A integração da obra no seu espaço, é suave e torna a

proximidade e presença do nó viário na extremidade Oeste, quase natural e não ofensiva ou

intrusiva. A forma como este troço de jardim é tratado pela artista incute-lhe uma imagem

distinta e que se tornará referência não só para o Parque Linear como para a cidade. A arte é

neste contexto, identidade, carácter, referência, para a cidade mas é também utilitária,

funcional e estabelece uma proximidade com público, ímpar em todo o parque.

Fig. 115. Fernanda Fragateiro - Jardim nas Margens: Imagem geral.

104

Fig. 116. Fernanda Fragateiro - Jardim nas Margens: Pormenores.

VIII

CONCLUSÕES

105

CONCLUSÕES:

O tema “Arte e arquitectura: Fronteiras e situações de contacto, na obra de Fernanda

Fragateiro”, a temática das colaborações e a análise da obra de Fernanda Fragateiro, mantêm,

mesmo numa fase conclusiva, uma enorme abertura e subjectividade.

Deste modo, para as conclusões, propõe-se um caminho inverso ao percorrido no

desenvolvimento do tema da presente dissertação e que pretende, desde já assinalar a

legitimidade das colaborações num contexto urbano de crescente complexidade e

indeterminação.

O desenho da cidade realiza-se hoje em dia, a vários níveis, integra várias escalas e tende a

abranger, não só a dimensão espacial, mas também, a económica e a social da cidade. O

Design Urbano apresenta-se como uma proposta colaborativa que ambiciona responder à nova

conjuntura urbana de forma globalizante e multidisciplinar, marcando deste modo, a pertinência

de novas propostas e dinâmicas de trabalho que partam da quebra de limites e obsessões dos

vários aparelhos disciplinares. Todos os arquitectos entrevistados assinalam o incremento de

responsabilidade do arquitecto, como factor relevante para o futuro das experiências

colaborativas: João Maria Ventura Trindade assinala que, actualmente “os requisitos de um

edifício são de tal modo exigentes e vastos, que nós temos que estar completamente

concentrados na nossa especialidade, tornando-se difícil ter tempo ou ter capacidade de gerir

ou dominar várias coisas ao mesmo tempo.”231

Neste contexto, torna-se evidente também, que nenhum dos modelos de relação entre arte e

arquitectura propostos – do arquitecto-artista, da arte subjugada à arquitectura, da arte

integrada na arquitectura e de uma arquitectura que renuncia o valor da arte para ser ela

própria arte – poderá servir na resolução definitiva das questões assinaladas. A colaboração

entre artistas e arquitectos, tal como definida no último capítulo, entende-se assim, como uma

solução de enorme actualidade e coerência com a instabilidade, indefinição, ritmo e

complexidade das cidades do séc. XXI.

As situações que emergem dos casos de estudo foram, por um lado, uma surpresa e, por

outro, confirmaram que os estigmas e preconceitos existentes entre as duas disciplinas não

desapareceram, mesmo dentro do conceito de colaboração.

A longa história de afinidade entre as disciplinas é continuamente marcada pelas óbvias

diferenças entre metodologias, formas de pensar e olhar para mundo, para o Homem e para a

sociedade, características de ambas.

Durante o processo colaborativo revelam-se as discrepâncias processuais entre as disciplinas

em questão. O modo como o arquitecto encara o uso ou a função como uma componente

231

João Maria Ventura Trindade – Excerto da entrevista realizada pela autora.

106

inerente a qualquer projecto e o artista como uma possibilidade na sua obra. A forma como a

obra de arte admite um elevado grau de liberdade e de alteração contínua em relação à rigidez

e exigência do desenho arquitectónico ou o trabalho interdisciplinar ou em equipa, comum em

arquitectura, em contraste com o individualismo do processo artístico. Constituem algumas das

divergências mais visíveis. A colaboração exige portanto, arquitectos e artistas dispostos e

aptos a encontrar novas formas de comunicar e trabalhar.

A conclusão de que não é possível chegar a uma receita de sucesso ou a uma lista de pontos-

chave a cumprir para uma colaboração equilibrada, hierarquicamente horizontal e profícua para

os intervenientes e para o utilizador, é exposta de forma óbvia nos casos de estudo relativos às

colaborações de Fernanda Fragateiro.

No caso da Estação Biológica do Garducho, questões de autoria surgem de relações de

enorme proximidade e confiança entre artista e arquitecto. No Jardim das Ondas, uma obra

referida por vários autores como no extremo do idealismo colaborativo, revela-se como

arquitectura ao serviço da arte e cria uma situação inversa à que se explora na secção

referente à obra de arte total, na qual a arquitectura surge indiscutivelmente, no topo da

hierarquia disciplinar. A obra Jardim nas Margens expõe ainda, questões relacionadas com o

uso, com a passagem do conceptual à materialização e revela as diferenças óbvias na postura

de artistas e arquitectos, quando integrados em equipas multidisciplinares.

Assim como os limites da arte e da arquitectura se expandiram para englobar novas

formulações e plataformas de actuação, o conceito de “obra de arte total“ torna-se agora mais

vasto. A sua materialização, embora raramente conseguida admite portanto, uma obra criada

na sua totalidade por artistas e arquitectos ou somente, um resultado final no qual a linha de

distinção entre o trabalho do arquitecto e o do artista resulte muito ténue ou aparente ser

inexistente. No entanto, interessa apontar, que se acredita que é através das colaborações que

a arquitectura atinge os seus resultados mais interessantes e de maior relevância para o

contexto urbano e que, acima de tudo, apresenta benefícios imensuráveis para artistas e

arquitectos envolvidos, para a sociedade e para a criação de um ambiente urbano humanizado

de qualidade.

Os programas de arte pública e outros que operam dentro do modelo percent-for-art são

identificados como o meio mais privilegiado para realização de projectos colaborativos. Através

da investigação de vários programas, entende-se também, que a relação colaborativa com

artistas que apresentam, à partida, uma forte relação com a arquitectura, um interesse pelo

espaço construído ou um trabalho de exploração que assente na espacialidade e na criação de

ambientes reais ou virtuais, apresentam uma maior facilidade e interesse em participar neste

tipo de projectos. Por outro lado, artistas que centram o seu trabalho em questões sociais ou

que se interessam por uma relação próxima com as comunidades e com o público em geral,

constituem uma enorme mais-valia para projectos arquitectónicos públicos ou de participação

pública.

107

Fernanda Fragateiro, tal como foi explorado através das suas obras individuais, apresenta uma

relação específica com a arquitectura, visível no modo como a utiliza como processo, como

transcendente nas suas criações e, talvez a mais importante, a forma como a arquitectura

surge como condição de possibilidade nas suas obras, sejam elas bidimensionais ou

tridimensionais. O seu interesse pelo espaço, quando cruzado com o corpo, resulta numa

ambição de criação de lugares e de transformação do espaço físico ou do vazio. Que será de

enorme relevância para a forma como olha para a possibilidade de intervir em qualquer espaço

ou projecto arquitectónico.

A arte entra na arquitectura normalmente com uma função específica, que varia da decoração,

à comunicação ou aproximação à sociedade, à atenuação de formas demasiado rígidas, à

humanização, à criação de valor e identidade ou ainda, como elemento funcional ou lúdico. No

seu projecto “O Paraíso é um Lugar Onde Nada Nunca Acontece”, Fernanda Fragateiro, actua

nestas várias vertentes, ao mesmo tempo que assume as tendências artísticas da transição do

séc. XX para o séc. XXI, do projecto de participação pública.

Entende-se, assim, que Fernanda Fragateiro, para além de apresentar características que

permitem uma relação de proximidade com arquitectos e uma elevada aptidão para intervir em

projectos arquitectónicos, apresenta também, uma postura essencial ao nível das

colaborações. Que é compreendida na sua disponibilidade e flexibilidade como artista e pela

sua dominante curiosidade, que a faz receber distintas oportunidades de pensamento e acção,

com enorme vontade e entusiasmo. No entanto, através dos casos de estudo e da entrevista

realizada à artista, entende-se que Fernanda Fragateiro não vai ao limite colaborativo

defendido ao longo da dissertação e exemplificado através da referência ao projecto Camp

Good Times, na Califórnia, do edifício Roche Pharma 92, em Basileia ou da Subestação

Eléctrica Viewland/Hoffman, em Seattle.

Embora seja salvaguardado que a colaboração deverá partir de campos distintos, idealmente

no decorrer do processo as barreiras disciplinares deveram ser quebradas ou diluídas. Nos

casos de estudo seleccionados, embora extremamente elucidadores para a temática,

comprovam a rareza com que as colaborações resultam desta forma.

Fernanda Fragateiro integra de forma correcta todas as colaboração, ou seja, parte do seu

campo disciplinar e define, à partida e eficazmente, os limites do seu campo de actuação. No

entanto, raramente se deixa contaminar no decorrer do processo ou envolver-se a fundo na

experiência colaborativa, ficando aquém da colaboração plena e dos benefícios que advêm da

mesma. Comprovando esta atitude, de certo modo defensiva, a própria artista afirma em

entrevista, o desconforto sentido e a ausência de vontade em repetir o único projecto no qual

deixou cair as suas barreiras e se abriu totalmente a uma nova metodologia, em “O Paraíso é

um Lugar Onde Nada Nunca Acontece”, Lisboa Capital do Nada.

108

Ao longo da dissertação foi sendo referida a dificuldade de concretização de colaborações

literais. Na postura pragmática e na opção frequentemente funcional das suas obras, Fernanda

Fragateiro garante a materialização das suas obras e a sua aceitação pelo público que as

acolhe. A primazia pela concretização ao invés da experimentação é legitimada, quando posta

em contraste com artistas e obras mais arrojadas, como Richard Serra ou quando comparada

com a colaboração limite de Frank Gehry, Claes Oldenburg e Coosje van Bruggen que não

atingiu a materialidade.

Conclui-se assim, que Fernanda Fragateiro apresenta um conjunto de características,

exclusivas no âmbito das colaborações, no entanto, até ao momento, o seu pragmatismo e

objectividade têm-se sobreposto ao entusiasmo e curiosidade com que afirma aceitar este tipo

de propostas, impedindo-a de levar a fundo o conceito colaborativo.

Embora continuem sujeitas a contextos específicos, o futuro das colaborações parece

assegurado, na medida em que, tanto Fernanda Fragateiro como os arquitectos entrevistados

afirmam ambicionar a concretização da colaboração plena e, sem excepção, confirmam os

benefícios que advêm da partilha de metodologias, procedimentos e ideias que decorre do

processo. Segundo a própria artista:

“Se calhar, um dia vai surgir um projecto, e eu gostaria de trabalhar com João Gomes da Silva

nesses moldes, que nasça dos dois, que seja uma verdadeira colaboração, ou seja, que eu não

seja chamada a comentar um projecto dele, mas que possamos pensar e construir qualquer

coisa juntos. Um projecto no qual não se distinga arquitecto de artista e isso, se calhar, é a

parte mais limite da colaboração, que é muito, muito difícil de acontecer.”232

232

Fernanda Fragateiro – Excerto da entrevista realizada pela autora.

109

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ANEXOS

115

ANEXO I:

ENTREVISTA REALIZADA A FERNANDA FRAGATEIRO A 28-02-2012, NO SEU ATELIER:

A primeira pergunta tem a ver com a característica do seu trabalho que deu aso ao tema da

dissertação, ou seja, a sua relação muito específica com o espaço e com a arquitectura. Como

surge esta relação na sua obra?

A exploração do espaço existe na minha obra e no meu trabalho desde sempre. Partindo da minha

estadia na Escola Superior de Belas Artes (ESBAL) em que, mais importante do que as esculturas que fiz

e do que a própria relação com os professores, foi uma determinada atitude relativamente à ocupação e

compreensão do próprio espaço na Escola. A minha primeira paixão pela ESBAL, tem mais a ver com o

espaço, um antigo convento, do que com o próprio ensino. Uma atitude, que acabou por limitar a minha

actividade na escola e por ser considerada como uma pessoa que trabalhava à margem do próprio

sistema. Fui muitas vezes prejudicada por isso e acabei por abandonar a ESBAL no terceiro ano.

Lembro-me que uma das coisas que fiz na escola, foi criar o meu próprio atelier dentro do espaço da

ESBAL. Descobri um saguão, uma espécie de pequeno vazio sem telhado. Rebentei uma porta para ter

acesso ao espaço e criei uma peça, um dispositivo que construí com a artista Catarina Baleiras e que

funcionava como atelier, essencialmente um espaço para pensar.

Porquê criar um espaço seu dentro de um espaço público, uma escola, que supostamente, já lhe

oferecia condições para pensar?

Acho que sempre tive muito a necessidade de ter um espaço q de trabalho meu. Não tem nada a ver com

propriedade nem com um sentimento de posse mas sim, com um espaço de pensamento e de liberdade e

que eu precisava de ter, seja uma mesa, seja um simples lugar no chão. Por exemplo, quando me

retiraram o atelier que tinha construído, fiz outra coisa, agora mais comedida e dentro do espaço de

trabalho comum dos alunos de Escultura, que foi limitar no chão uma área que era a minha área de

trabalho.

Neste percurso inicial, a arquitectura e até a própria construção são as temáticas muito próximas

da exploração espacial que também acaba por integrar no seu trabalho?

As minhas primeiras exposições em 87 e 89/90, nascem, por exemplo, de uma observação da dinâmica

do espaço da cidade, em que simultaneamente estão coisas a crescer, a nascer e a serem construídas,

ao mesmo tempo que há coisas que se estão a destruir, a desfazer, a envelhecer. Foram estas

exposições que mais aproximaram o meu trabalho à arquitectura.

Em que sentido?

A minha primeira exposição, chamada ‘Instalação’ foi em 1987, na Galeria Monumental do artista Miguel

Sampaio. Quando me convidam a expor na Galeria Monumental, o que me interessa não é o espaço da

galeria, mas o espaço que está atrás da galeria, entre a primeira sala onde eu era suposto expor e o

pátio. Esta sala interessa-me porque servia de atelier para os artistas mas estava em muito más

condições. Não fiquei na sala destinada porque não tinha nada para dizer ali! O que eu queria, era falar

116

com aquele espaço e convocar o próprio espaço, as paredes em ruinas, os fragmentos de tijolos.

Interessava-me criar peças que refizessem aquele espaço, interessava-me trabalhar num espaço onde

nunca ninguém tinha feito nada e que nem tinha condições para ser uma galeria de arte. Uma das peças,

por exemplo, era uma parede inteira que fazia a ligação entre dois espaços de atelier, as restantes são

também, peças de reconstrução do espaço.

Este primeiro gesto, que surge de uma forma muito inconsciente, acaba por ter consequências

permanentes para a galeria (…), quando a minha exposição sai de lá, o espaço ganha melhores

condições, aliás, ainda hoje essa sala, em conjunto com a sala principal e o pátio é utilizado como uma

grande galeria. Mais do que as peças que fiz e que estão documentadas foi o gesto de, de repente, abrir

aquilo tudo que mais me marcou.

A segunda exposição tem também a ver com esse gesto e acontece em 1990, na Faculdade de Ciências,

na Sala Sul. Na altura, andava a fotografar imenso a cidade, sobretudo esta zona do Chiado que tinha

sido alvo de incêndio. Havia imensos prédios em ruinas e esse processo interessava-me imenso,

sobretudo, a forma como as pessoas conviviam com estas ruínas, como se fosse uma coisa normal. Era

como numa situação de guerra, as pessoas habituam-se, adaptam-se e seguem a sua vida normal

enquanto, que ao lado está um prédio que levou com uma bomba em cima. Essa vida extremamente

violenta, mas muitíssimo poética da construção e da ruina, sempre me interessou muito. (…) Consegui

que me cedessem uma sala (na Faculdade de Ciências) durante três meses e fiz uma exposição com

uma série de peças efémeras, umas casas em madeira e gesso em posições instáveis. No entanto, mais

uma vez, o que interessa neste projecto é que, depois de eu ter lá feito a exposição, aquele espaço ficou

aberto até hoje.

Portanto esses dois projectos, que são os projectos que iniciam o meu trabalho, são também fundadores

daquilo que depois, será o meu caminho como artista. Continuo a partir muito desse gesto de abrir um

espaço novo.

Este trabalho de materiais que se associa na sua obra ao minimalismo, como a utilização de um só

material, o cuidado que tem no tratamento deste e da sua linguagem no espaço…

Para mim, o material já é um texto. Usar um determinado tipo de material já é um texto tão forte que o que

me interessa, se calhar, é dizer numa frase aquilo que se poderia dizer num livro. A minha procura em

relação aos materiais é conseguir encontrar essa frase, ou seja, o material que contém a densidade e a

quantidade de camadas de pensamento necessária para que a obra comunique ou diga, de uma forma

muito sucinta uma quantidade de coisas que penso e que sinto.

Na Exposição Invisibilidades, na Galeria Leme, são apresentadas cinco peças. A que gostaria de

referir, para já é a peça: Expectativas de uma Paisagem de Acontecimentos #4. Como se enquadra

esta peça no panorama geral da sua obra?

É de facto uma peça quase matriz. Primeiro, porque é uma peça de chão e um plano de chão para mim,

representa o mínimo de num lugar para habitar (…). Eu acho, que uma casa pode ser um chão, pode não

ter mais nada, muitas vezes, quando há um edifício que é demolido ou que vai desaparecendo, o plano

do chão é sempre a última marca a desaparecer, não é? É também uma peça, que dependendo do

material se torna articulável, pode-se estender ou retrair e permite que nela se multipliquem paisagens. É

uma peça que certamente vai continuar a aparecer no futuro, que eu vou continuar a trabalhar.

117

As peças Caixas #4 e #5 que também figuram na exposição vão de encontro a outra temática,

também muito presente na sua obra que é o vazio. São contentores ou representam mais do que

isso?

O que me interessa nas Caixas é a ideia do contentor ser simultaneamente o conteúdo. Essas peças

nascem de um pensamento acerca das caixas de cartão que se encontram por todo o lado no espaço da

cidade, da fragilidade que ganham ao serem abandonadas e expostas às condições atmosféricas ou às

pessoas que quase as destroem antes de as deitarem fora. Da importância e força que ganham ao serem

reutilizadas, habitadas e ao servirem de abrigo. Em todas estas situações, de repente surgem modelos,

podiam ser modelos de casas ou de espaços habitáveis. Durante muitos anos olhei e registei esses

objectos e chegou uma altura em que os apanhei e comecei a trazê-los para o atelier, para os medir e

estuda e de repente há modelos desses objectos que encontramos e que nos fazem lembrar maquetes de

casas ou de espaços habitáveis. Os desdobramentos das caixas representam estes modelos no tempo a

partir de uma matriz, uma caixa de dimensão fixa, que quando aberta vai colapsando de uma forma

organizada. Existe um movimento contínuo implícito em todas essas peças.

O aço ou alumínio polido é o material dominante nesta exposição e é também o material de eleição

para muitas peças realizadas pelas grandes figuras do minimalismo. Porque opta por este tipo de

material?

Acho que são materiais, que pelo facto de serem reflectores, acabam por desaparecer no espaço. É esse

desaparecimento e essa ausência que me interessa quando exponho em espaços arquitectónicos

fortíssimos como é o caso da Galeria Leme ou do Mosteiro de Alcobaça. O facto de eu levar para dentro

desses espaços peças em aço polido, fazia com que as peças desaparecessem, mantendo assim a

integridade do espaço arquitectónico e simultaneamente, como as peças reflectem, quer as pessoas, quer

o espaço, também se tornavam receptores. Por um lado são extremamente invisíveis e quase

desaparecem e por outro lado, têm uma multiplicidade de possibilidades de ser vistos e convocar várias

coisas. O facto de ser denso e ser intenso, de ter muitas camadas e simultaneamente ser quase invisível,

é uma coisa que me interessa muito.

A relação entre o espaço, o espectador e a obra é então propositado e conseguido através da

utilização deste tipo de materiais?

Sim, eu acho que o meu trabalho, (…) pensa muito sobre o espaço onde está a ser incluído, mas também

pensa sobre ou implica muito o espectador. Todas as minhas obras têm um lado performativo.

Essa separação entre o pensar o espaço e quem o habita ou utiliza, existe por vezes na arquitectura.

Quando só se pensa na arquitectura, por vezes esquecesse o conforto, o desconforto ou o que isso

provoca nas pessoas. Eu trabalho sempre nesses dois campos. Na Casa da Musica, por exemplo, fiz uma

instalação com redes vermelhas de modo a criar um diálogo que surge de um confronto muito forte com o

espaço. Aí houve um pensar sobre, dar às pessoas um lugar ou criar um lugar extremamente acolhedor,

em oposição àquilo que a arquitectura oferecia.

O conceito site-specific aplica-se de que forma à sua obra?

O meu trabalho responde muito ao lugar. Eu considero-me uma artista extremamente flexível, no sentido

em que, não tenho exactamente uma agenda na cabeça, ou seja, não tenho um caderno de ideias que

118

vou aplicando à medida que as oportunidades vão surgindo. Aquilo que me interessa e me entusiasma é

a disponibilidade para pensar de novo cada vez que me surge um problema ou um desafio ou uma ideia.

A Caixa para Guardar o Vazio, surge como uma epítome desse lado performativo e da exploração

do espaço. Como surge e como foi pensada esta obra?

A Caixa para Guardar o Vazio nasce de um pedido que me é feito pelo Serviço Educativo do Teatro

Viriato, em Viseu, para a realização de um projecto que, através das crianças, chegasse e comunicasse

com a comunidade. Aqui as crianças são um veículo para chegar a uma comunidade do interior, do Norte

de Portugal, extremamente fechada, conservadora e que não aderia muito aos projectos e iniciativas mais

contemporâneas. O Teatro sentia, acima de tudo, uma grande necessidade de comunicar e de expandir

um público que se tinha tornado extremamente restrito e portanto, eu sabia que tinha que tinha de ser

uma coisa muitíssimo experimental e muitíssimo sensorial, mas ainda não sabia bem o que era.

Decidi trabalhar sobre o espaço porque achava que havia um desconhecimento geral sobre esse tema, é

um tema que não é discutido e é também um tema, sobre o qual as crianças não pensam. (…) O que eu

queria era que se começa-se a pensar o espaço e ainda, trazer ao de cima o tema do vazio.

Estamos sempre a falar do património material e esquecemo-nos que há uma parte muito importante

desse património, que é o vazio, que é o não ter nada, que é o silêncio e discutir isso com miúdos, discutir

sem palavras, parecia-me muito interessante.

Considera que esta sua obra ultrapassa a barreira da arte para a arquitectura pelo facto de ser um

habitáculo, uma construção?

Por um lado sim, mas por outro não serve para aquilo que a arquitectura serve. A sua função não é tanto

da ordem da arquitectura mas talvez mais da poesia, ou seja, serve para pensar mas não serve para mais

nada. No entanto, é importante dizer que sentir é também uma forma de habitar o espaço, mas eu acho,

que é um projecto que só podia ser feito por um artista, se calhar aquela caixa e o desenho podia ser feito

por um arquitecto…

Houve intervenção de arquitectos no desenho da obra?

(…) Nós fizemos, aqui no atelier, uma maquete que não partiu de um desenho, não houve um projecto

com acontece na arquitectura. Quer dizer, houve uma série de desenhos em articulação com a parte da

dança, mas nunca foram feitos projectos técnicos desta peça. A peça foi construída pelos carpinteiros a

partir da maquete e foram os próprios carpinteiros que pediram para que eu falar com arquitectos (…). A

construção era feita simplesmente através de medições na maquete, eu ia vendo, os bailarinos iam

testando e portanto, é uma obra que parece que foi muito desenhado e pensada, mas há ali muita coisa

que foi sendo criada por todos os intervenientes. Só pedi ajuda a dois amigos arquitectos, para fazer uma

segunda maquete, a partir da minha, porque era preciso uma para testar se estava tudo a funcionar, mas

não existem desenhos técnicos da peça. Mesmo em projectos públicos, que obviamente têm esse lado da

arquitectura e da engenharia, tento que o projecto técnico seja o mais leve e menos elaborado possível.

“O Paraíso é um Lugar Onde Nada Nunca Acontece” (título de uma canção dos Talking Heads), foi

um trabalho que envolveu toda uma comunidade, como se estabeleceu esse diálogo?

Esse projecto foi muito especial e durou um largo período de tempo a ir acontecendo porque teve muitos

percalços pelo meio. Nasce, do evento Lisboa Capital do Nada, no qual a própria organização desafiava

as associações locais a proporem projectos, ideais ou colocarem uma espécie de mapa de necessidades

119

sobre o qual os artistas poderiam trabalhar. A “Tempo de Mudar”, do Bairro dos Lóios, era uma

associação extremamente activa e séria, que disse que tinham uma série de jardins no Bairro da Pantera

Cor-de-Rosa, projecto do Gonçalo Byrne, que nunca tinham sido plantados e que eles gostariam de

plantar ou de fazer qualquer coisa. Fiquei logo muito interessada nesse assunto, mas não havia verbas

nenhumas para o projecto e portanto, era preciso entrar em contacto com a Câmara para ver se poderiam

ajudar. Quando fiz o primeiro contacto com a Câmara, percebi que já havia um projecto para aquele

espaço, um projecto de reabilitação da praça Raul Lino, uma praça fabulosa, que serve aquele conjunto

de edifícios.

A primeira fase, depois de perceber que a Câmara tinha um projecto de requalificação, foi tentar perceber,

como é que o meu projecto, que tinha a ver com o plantar daqueles canteiros de uma forma muito

simples, se podia articular com o projecto da Câmara. (…) O que me chamou a atenção naquele espaço,

foi um jardim densamente plantado mas todo vedado com paus e redes, que ‘pertencia’ há mais de 15

anos a morador chamado Sr. João. Este jardim tinha um ar horrível, palmeiras, oliveiras, sardinheiras,

arrozeiras, couves entre outras, plantadas do modo ‘tudo ao molho e fé em Deus’ e o projecto da Câmara,

obviamente, ia arrasar com o jardim do Sr. João e plantar nesse lugar umas lavandas lindíssimas, mas

todas iguais. Isso fez-me muita impressão! Achei que era uma atitude extremamente invasiva pela parte

da autarquia e, embora o senhor não fosse proprietário daquele espaço, tinha cuidado dele e manteve-o

verde durante muitos anos.

Quando a Câmara soube que eu estava a fazer ali um projecto, o que tentaram foi que eu fizesse uma

escultura no meio da praça, coisa a que obviamente me recusei. O que me interessava na altura, era dar

à comunidade o que eles precisavam e não uma peça de decoração. (…)

É aí que se inicia o diálogo com a população do bairro?

Sim, para além das reuniões públicas com a Câmara, houve também uma série de reuniões com o Sr.

João. A ideia era convencê-lo a abrir o espaço tinha ocupado e vedado, a todas as outras pessoas (…),

preservando um trabalho que era, de certo modo, um exemplo para as outras pessoas. Aqui, o meu papel

como artista era, como eu dizia sempre: “eu não faço nada, sou só uma espécie de fada que faz com que

as pessoas conversem entre si. Por sorte, ele ficou logo convencido com a ideia de abrir o espaço dele e

até, de fazer uma selecção das plantas e árvores que estavam no jardim e distribuí-las pelos outros

canteiros e espaços que não tinham nada (…). Basicamente o que se fez foi isso.

Houve somente um diálogo inicial ou houve também uma participação activa ou física por parte da

comunidade no projecto?

Quem fez a operação de retirar as plantas, foi um grupo de crianças do bairro, que pertenciam a um

grupo de futebol (…), a Santa Casa da Misericórdia, que dava apoio a esse grupo e alguns jardineiros da

Câmara que acompanhavam e ensinavam os processos de transplantação. Arranjámos um fim-de-

semana em que os miúdos vieram todos e fez-se esse trabalho envolvendo a comunidade. Foi um

processo muito simples, foi somente transplantar uma série de coisas de uns espaços para outros e abrir

aquilo tudo.

Em relação à manutenção, a Câmara forneceu um sistema de rega.

120

A própria praça foi também requalificada. Foi também um projecto da sua autoria?

Isso foi um projecto do Zé Luís (arquitecto da Câmara) e eu acompanhei o que estava a ser feito mas não

intervim directamente.

O facto de o público ou da população entrar logo na fase criativa da obra e de certa forma

condicioná-la, é uma coisa com a qual se sente à vontade, repetiria este tipo de trabalho

participativo?

Eu acho que são sempre processos muito complicados e para darem algum resultado, demoram tempo e

implicam muita dedicação, muita energia, e eu não sei se tenho essa energia, esse tempo e muitas vezes

o dinheiro e a disponibilidade para o fazer.

O que eu posso dizer deste projecto é que houve um momento, em que implicar as pessoas no meu

trabalho e mais uma vez, uma comunidade maioritariamente de pessoas muito jovens, não foi nada

condicionante, aliás, foi o motor do trabalho. Muito mais condicionante do que a população, são todas as

limitações de um trabalho para um espaço público. Um projecto de arte pública, no fundo, é sempre um

projecto de negociação com muitas partes e até com o próprio tempo, com o clima, etc.

Tem vindo nos últimos anos a colaborar com vários arquitectos. Como distingue as diferentes

relações?

A relação com o João Trindade é se calhar, a relação mais informal que tenho em termos de colaboração.

Há muitas coisas que surgem das nossas conversas que eventualmente se vão reflectir no meu trabalho

aqui no atelier ou no trabalho dele e que nem sequer faz sentido que apareça o meu nome ou o dele. É a

relação mais especial de trabalho que tenho, porque está assente na informalidade e numa partilha de

ideias muito natural. Gosto particularmente da forma como o João pensa e de como resolve os

problemas. É uma pessoa muito prática, mas ao mesmo tempo muitíssimo curiosa e tal como eu, não

repete fórmulas, está sempre à procura de maneiras diferentes de pensar sobre as coisas. Para além

disso, nos projectos que fizemos juntos, há sempre uma separação, ou seja, embora haja uma grande

articulação com o trabalho dele, há uma fronteira. Pois é um projecto meu que se integra ou que pensa

um espaço que o João desenhou.

Se calhar, um dia vai surgir um projecto, e eu gostaria de trabalhar com João nesses moldes, que nasça

dos dois, que seja uma verdadeira colaboração, ou seja, que eu não seja chamada a comentar um

projecto dele, mas que possamos pensar e construir qualquer coisa juntos, na qual não se distinga

arquitecto de artista, e isso se calhar é a parte mais limite da colaboração, que é muito, muito difícil de

acontecer.

No Garducho, por exemplo, se um dia apagarmos todas aquelas frases, o projecto do edifício continua a

ter uma autonomia, continua a ser o que é. No fundo, o meu trabalho é mais um comentário. Por um lado,

é um comentário à arquitectura e por outro, é uma espécie de projecto expositivo ou de conteúdo dentro

do programa daquela estação, que surge independentemente e para além da arquitectura.

O José Veludo é uma pessoa mais técnica, aliás, ele era uma das pessoas, que em relação ao Jardim

das Ondas, estavam um bocado mais sépticas. Mas porque ele tinha uma noção de que aqueles espaços

são extremamente difíceis de manter, portanto, a preocupação dele era em como é que se manteriam

aqueles montes de terra cobertos de matéria vegetal com a enorme carga de utilização diária... E o que

eu disse sempre foi: isto tem de ser tratado como uma coisa muito especial, não pode ser tratado como

um relvado qualquer. Se é um espaço onde podem acontecer coisas muito diferentes daquelas que

121

acontecem num jardim normal tem que se ter esse tipo de cuidados, portanto, tem que ser

constantemente reparado e há zonas que têm que ser vedadas quando estão muito desgastadas. Ele foi

das pessoas que fez bastante força para que eu introduzisse matérias duras, e eu disse sempre que não,

sabendo obviamente que seria mais difícil.

No texto sobre o Jardim das Ondas, presente no catálogo da exposição: Co-laborações:

Arquitectos/Artistas, é referido como um projecto de colaboração que dilui todas as linhas que

separam artistas de arquitectos. Isso aconteceu na prática, no processo criativo ou construtivo ou

vem só da imagem final da obra?

Embora seja um trabalho de colaboração, tem uma linha divisória até bastante marcada. No fundo, o que

o João Gomes da Silva faz, é permitir que aquele projecto aconteça.

Claro que, o deixar que um projecto aconteça já é uma coisa muito importante porque, se olhar para o

desenho urbano da zona de intervenção da Expo e se olhar para o desenho que tem a ver com a parte

paisagística, projecto também do João Gomes da Silva, aquele jardim é um objecto estranho que aterrou

ali e que rompe com aquela linguagem ‘mais natural’ do projecto. Portanto, eu proponho aquele projecto e

concebo-o sozinha e o que o João faz, é entender, respeitar imenso a minha proposta e contribuir com o

saber dele para que aquele projecto seja possível. Os outros paisagistas ligados ao espaço da Expo,

achavam que aquele espaço não era viável, que não funcionava ou que tinha uma artificialidade que não

coincidia com a linguagem do resto do espaço. Não concebemos aquele projecto juntos, mas o João

Gomes da Silva teve, neste cenário, a sensibilidade e a abertura para dizer: “eu vou ajudar a artista a

fazer o seu projecto e vou pôr todo o meu saber ao serviço”. (…) E isso foi muito importante porque havia

muitas resistências ao projecto.

A sua intervenção para a Expo’98 foi singular e díspar das dos outros artistas, porquê? Como

surgem estas intervenções?

É muito simples a forma com nasceram as cerca de sete intervenções que fiz no espaço da Expo. Tudo

começou com um pedido do Arq. Manuel Salgado, para que eu resolvesse o revestimento do muro de

entrada dos Jardins da Água. Um pedido que é clássico, ou seja, é para resolver um revestimento, uma

superfície, um desenho que se aplique num chão ou numa parede que já está desenhada, que o artista é

normalmente chamado, e foi só para isso que ele me convidou e claro que eu fiquei muito contente por

trabalhar naquele espaço da Expo e ter, pela primeira vez um projecto público de grande escala e com a

sorte de ter meios disponíveis para o fazer.

Pedi primeiro, que ele me explicasse o que eram os Jardins da Água e há medida que ele me ia

explicando e mostrado o projecto, eu ia, de uma forma muito naïf, criticando e propondo outras soluções

(…) Neste momento, penso sinceramente que, também pelo facto de os arquitectos estarem tão cheios

de trabalho, o Manuel achou muito bem-vindo que alguém de fora interviesse, e acabou por dizer: então

resolve, então pensa. Assim nascem um muro, uns bancos, um chão e umas paredes de um lago e,

quando se chega ao fim dos Jardins da Água, há um espaço vazio ainda pouco definido, que me

interessou imenso. Para esse espaço pedi especificamente ao Manuel para fazer um jardim.

Foi então o seu primeiro projecto para um jardim?

Sim, nunca tinha feito um jardim na vida. (…) Fiquei seriamente a pensar sobre, como é que podíamos

criar ali situações de experiência de espaço, diferentes daquelas que já estavam autocriadas pela forma

muito simples e quadriculada pela qual este se organizava. A questão que se punha desde logo, era que

122

quando olhava para o rio queria esquecer tudo o resto, mas não percebia porque é que não se conseguia

criar qualquer coisa que tivesse a ver com a subtileza, com o movimento, com a leveza e com a força do

movimento do rio. Se todo o tema da Expo era sobre o mar, porque é que tudo estava a ser construído de

uma forma extremamente rígida?

Porque opta por modelar o terreno e realizar um jardim, atípico, totalmente revestido a relva?

Eu acho que muitas vezes os jardins mantêm a mesma lógica que resto do espaço urbano. São espaços

segmentados, cheios de atravessamentos, caminhos, zonas para sentar, etc. A experiência que eu tive,

em pequenina, de viver junto a um jardim do velho Caldeira Cabral, no Montijo, que é um jardim muito

inglês, com grandes planos de relva, ou seja, espaços muitíssimo flexíveis onde podia pisar a relva, onde

não tinha que estar num caminho ou sentada num banco de um jardim. (…) Essa experiência influenciou-

me muito e durante muito tempo não conheci, em Portugal, mais nenhum jardim onde se pudesse pisar a

relva. Portanto, isso era a experiência principal de espaço que eu queria reproduzir.

Estes projectos estiveram integrados no programa de arte pública da Expo?

No catálogo da Expo, o meu projecto está nos projectos de arte pública simplesmente porque era

estúpido separá-los, mas eu trabalhei, penso eu, de forma diferente dos outros artistas. No fundo, eu

colaborava com o atelier do Manuel Salgado, o RISCO, e depois, mais especificamente com o João

Gomes da Silva, portanto, era quase como se eu fosse mais um membro da equipa.

Havia de facto um programa de arte pública, dirigido pelo meu marido e para o qual eu não fui convidada,

mas para o qual foram escolhidos um série de artistas. A partir do momento em que o Manuel Salgado

me convidou, ficou logo muito claro que eu não estava ligada ao programa de arte pública.

Quem fez a produção das obras?

A produção dos meus trabalhos foi feita pela RISCO, na altura não fiz, mas é uma coisa que agora faço

sempre. Naquele caso eu nem sequer tinha experiência, portanto, o que eu fiz, foi a parte de projecto e

depois a RISCO resolveu toda a parte técnica, de projecto e de produção ou encomenda das peças. No

caso do Jardim das Ondas foi o atelier do João Gomes da Silva.

Existe nesse processo uma certa perca de controlo pelo facto de não ter sida a Fernanda a tratar

da produção das peças?

Não houve, neste caso, porque eu tive muito próxima e considero, que tive até bastante controlo em

ambos os jardins. Por exemplo, no muro, desde a escolha do material, ao esquema de cores, até à

disposição e colocação das pastilhas de vidro, foram tudo processos totalmente controlados por mim. Os

bancos, também em pastilha de vidro e com frases da Virginia Wolf retiradas do Livro das Ondas e o

desenho da calçada foram executados conforme desenhos feito por mim, assim como os painéis

cerâmicos das algas, já no fim do jardim, foram revestidos com um vidrado especial feito com uma técnica

descoberta por duas amigas minhas para eu utilizar ali. Portanto, acho que houve um controle muito

grande.

No Jardim das Ondas, também houve um controle no terreno, embora a primeira vez que se fez o jardim

ele não ficou bem construído, quando se reconstruiu tivemos tempo para refazer exactamente como

queríamos.

123

A obra Jardim das Margens surge na continuação de um processo de modelação do terreno que

utiliza primeiro no Jardim das Ondas, como distingue estes dois projectos de arte pública?

Esse projecto surge também a partir de um convite do Arq. Manuel Salgado para eu trabalhar com a NPK,

no projecto do Cacém. Neste projecto, por exemplo, embora as formas fossem similares às da Expo, era

ridículo estar a propor um revestimento com matéria vegetal num sitio urbano, duro, complicado e que

não vai ter os mesmos cuidados que numa zona da Expo, feita para uma classe média alta, num espaço

onde aconteceu a Expo e para o qual tinha sido especialmente contratada um equipa para tratar dos

jardins. No Cacém, interessava-me agora introduzir matérias mais duras como o betão. O Jardim nas

Margens, devia ser um espaço de descompressão, em oposição, ao resto do Parque Linear da Ribeira

das Jardas, que era um sítio para andar, para passear ou atravessar. Aquela espécie de pêra enterrada,

com carros a circular à volta, tinha mesmo de ser um espaço de descompressão para os miúdos e para

os adolescentes, portanto, a introdução de matérias como o betão e as borrachas foi muito pensada.

O Arq. José Veludo revelou que sentiu alguma perda de controlo na materialização do projecto. Os

artistas estão habituados a ter um maior controle sobre as suas peças e os arquitectos estão mais

habituados a lidar com esse tipo de situações. Como encarou essa situação?

O que acontece é que, não sei como é que a NPK desenvolveu a relação com os construtores, mas a

certa altura eu perdi completamente o poder e a voz nesse projecto. Simplesmente disseram-me que as

coisas tinham que ser assim, porque não havia outra maneira de as produzir.

As peças em betão, por exemplo, eram peças únicas realizadas com cofragens feitas no lugar. Uma

calote esférica é uma calote esférica e não uma data de gomos de betão como os que lá estão. Portanto,

houve ali soluções que não foram como eu as tinha pensado e confesso, que também não consegui lidar

muito bem com isso e acabei por me afastar um bocado. Vi o jardim já acabado de longe, mas nem o

tenho fotografado nem nada.

Quando as coisas não correm como eu gostaria que corressem, tenho alguma dificuldade em aceitar

esses erros. É um defeito meu!

O processo criativo das peças ou obras de arte é muito distinto do da arquitectura, ou seja, um

espaço, um edifício ou mesmo uma paisagem, no caso da arquitectura paisagista, é muitas vezes

pensada para se adaptar a certos processos construtivos. Foi isso que aconteceu?

Eu desenhei aquele jardim com colheres e com as mãos. (…) Quando fiz os projectos para os jardins, a

minha mão era como se fosse o meu corpo, é uma escala para a criação da maquete. Acho que o gesto

da mão tem um saber que lhe pertence, (…) a mão sabe coisas que não estão no cérebro mas que estão

em nós como um todo. O jardim do Cacém tinha muito o gesto de se retirar uma parte da matéria para

criar lugares de acolhimento para o corpo e, por isso, é que eu queria que as coisas fossem feitas em

betão mas que fossem macias, que fossem acolhedoras o suficiente para uma mãe se deitar com o filho

(…) e a zona de borracha, também deveria ser suficientemente mole para que um miúdo pudesse cair

sem se magoar. Aqueles espaços e formas foram imaginados para que se façam coisas que uma pessoa

não faz normalmente no meio da cidade.

124

A apropriação do espaço é um tema que é pensado com o processo criativo ou é uma

preocupação que surge posterior à obra de arte?

Acho que não posso definir uma regra. Quando faço um projecto para o espaço público penso sempre: o

que é que eu posso trazer para este espaço, que de algum modo contribua para uma maior qualidade ou

uma experiência de espaço diferente.

Há um lado, sempre muito optimista na minha visão do espaço público. Interessa-me trazer, acima de

tudo, qualidade. Poderia ter uma atitude mais crítica, mais cínica ou até mais destrutiva, e isso seria

igualmente interessante, (…) o que não faltam são coisas para destruir e para criticar, mas a minha

abordagem é sempre: como é que eu posso criar condições para que, no espaço público, haja uma

experiência do espaço e que essa experiência envolva sempre uma comunidade.

Que referências tem de artistas que trabalham maioritariamente no espaço público e de uma forma

próxima com a arquitectura?

Lembro-me de ler uma frase do pensamento do Vito Acconci, em que acho que ele diz: “se o espaço for

flexível, as pessoas passam a ser flexíveis”. Outra, do mesmo artista, que também tenho sempre muito

presente é: “se um espaço puder ser usado por um adulto da mesma forma que uma criança usa esse

espaço, é porque é um espaço interessante, é um espaço que nos abre, que não nos condiciona”.

O que me interessa é romper com todos os condicionalismos que temos criado nas cidades, (…). Cada

vez mais, temos sítios específicos para fazer coisas específicas, e as pessoas já não conseguem

escolher, portanto, sobretudo gosto da ideia de que as peças sejam bastante flexíveis, que permitam

muitos acontecimentos e que ultrapassem as minhas espectativas.

O Vito Acconci, por exemplo, embora pareça muito um arquitecto, eu acho que não é. O Vito Acconci,

através da criação do seu próprio atelier, encontrou uma forma de poder fazer projectos enquanto artista,

que estão muito mais próximos ou que às vezes são do campo da arquitectura, de uma forma legal.

Começam mais recentemente a existir uma série de intervenções em edifícios, sempre foi um

objectivo seu, superar o que é a clássica instalação de arte em arquitectura?

Sim, existe essa vontade e até, espero poder fazê-las no futuro de formas mais radicais.

Em termos de colaborações entre artistas e arquitectos, quais são as suas principais referências?

Conheço muito bem o trabalho e a relação dos Herzog & de Meuron, com o Rémy Zaugg, essa é talvez a

que eu tenho mais presente, porque é um trabalho muito subtil e muito interessante. Acho que o Herzog,

ao contrário da maioria dos arquitectos, tem uma enorme curiosidade relativamente áquilo que o artista

pode trazer. Se calhar é mesmo dos poucos arquitectos que tem.

O problema dos arquitectos é que têm um desejo, quase incontrolável, de controlar todo o processo e só

o facto, de pensarem que o artista pode contaminar esse processo, é um risco muito grande para a sua

imagem.

Isso não acontece, por exemplo, com o Arq. João Maria Ventura Trindade?

É evidente que relações de confronto também são muito válidas, mas a relação entre mim e o João Maria

Ventura Trindade é assim, porque eu sou muito ‘soft’. Tenho muito essa posição política de colaborar

para chegar a um porto comum, que seja bom para as pessoas. Se calhar, não estou tão interessada em

defender uma determinada imagem para o meu trabalho, ou seja, se a imagem não for tão boa ou tão

125

interessante, mas se funcionar para as pessoas para mim já é bom, já fico contente. Há um momento, em

que é preciso decidir se queremos criar uma determinada imagem, que tenha um efeito nos media e na

aceitação da crítica ou, se queremos fazer uma coisa que, se calhar, pode não ser tão radical ou tão

experimental mas que, funciona e traz qualquer coisa de bom para a comunidade. Esta é uma decisão

que um artista pode tomar e acho que ambas as posturas são válidas e interessantes. Eu tenho a que me

dá, se calhar, mais prazer, que tem mais a ver comigo e que me faz sentir mais equilibrada. Normalmente

não me interessa decorar um espaço ou fazer uma escultura, o que me interessa, é que o meu trabalho

possa contribuir para atravessar as coisas e sem ser impositivo.

Porque opta, mesmo quando não está a trabalhar com o arquitecto por uma linguagem quase

arquitectónica nas suas obras?

Eu acho, que há muitos artistas a trabalhar com uma linguagem que é mais do âmbito da arquitectura,

mas também há outros a trabalhar com linguagens que são do âmbito da Filosofia. Acho que os artistas

têm tudo ao seu dispor! Isso é a parte interessante da minha profissão, ou seja, podes trabalhar em

microprojectos ligado a um cientista ou a uma paisagem imensa, que a tua forma de ver as coisas e os

resultados serão sempre muito diferentes. O que é interessante é um artista ter desafios, desafios que o

façam, de repente esquecer tudo, partir do zero e pensar: como é que eu posso pensar sobre isto que

traga uma nova discussão, uma nova perspectiva aos outros. A arquitectura é um dos temas sobre o qual

me questiono e que me desperta curiosidade, mas é também um, entre outros que me interessam.

As colaborações com arquitectos é um tema que pretende continuar?

É como lhe digo, eu sou muito receptiva e portanto, no caso do João Maria Trindade há um desafio que

está na mesa de trabalharmos juntos num museu em Moura, com o João Pedro Falcão de Campos estou

a trabalhar num projecto para o Banco de Portugal...

O uso do texto e da literatura difere muito na sua obra quando orientada para o espaço público ou

para o museu. Porquê esta distinção?

Eu acho que uma frase ou um texto inscrito num elemento arquitectónico desenha um espaço, ou seja,

não é outra parede, não é um chão, um tecto ou um móvel, estes elementos transformam-se em outras

coisas que, para mim, passam também a desenhar espaço. Tenho sempre muito cuidado na colocação

do texto em arquitectura, porque não gosto que surja de uma forma decorativa, deve ser muito mais do

que isso, ou seja, não é para ser lido como se estivesse numa página. O que me interessa é que o texto

crie outra dimensão espacial, que atravesse quase como uma janela. Escrever uma frase numa parede

não é criar uma janela obviamente, mas é também um dispositivo. É um dispositivo que cria ou destrói

espaço e por isso, utilizo-o de forma muito cuidadosa, escolho onde é que o texto é escrito, se é num

rodapé ao longo de um determinado percurso, se é numa zona em que se desce uma escada, se é num

canto de uma parede, o local determina sempre a forma como ele vai ser encarado.

A forma como utiliza a literatura, de uma forma indirecta em peças expositivas ou de uma forma

textual e directa no espaço público é consequência de públicos distintos, talvez menos

informados no caso do espaço público?

Há muitas surpresas boas no espaço público com um público que não sabe nada e por vezes, tenho isso

em conta e noutras sou surpreendida.

126

A ‘Caixa Para Guardar o Vazio’, por exemplo, é um projecto muitíssimo abstracto, porque no fundo, não

acontece nada ali. Tem somente a magia do quotidiano de uma criança pequena que abre uma gaveta

pela primeira vez, que brinca com uma porta, que se põe de baixo de uma mesa. Essa magia, que

sentimos quando estamos a descobrir uma coisa nova, foi exactamente o que eu quis que acontecesse

na Caixa para Guardar o Vazio. Mesmo sendo um projecto para pessoas que já abriram muitas gavetas,

queria mostrar que esses gestos simples podem ser mágicos e misteriosos e que as coisas que fazes

diariamente podem ser sentidas de outras maneiras. Só no final é que tive a noção do risco que estava a

correr e que pensei que poderia não resultar de todo. Era um projecto para miúdos que não tinha cores,

não tinha musica, tinha somente uns bailarinos que fazem uns gestos, mas era uma coisa em madeira

que parecia, não ter história nenhuma, na qual se espera que aconteça qualquer coisa e no fim, quando

entram na Caixa, apercebem-se, que não há nada a não ser um espelho no chão e aí o que acontece são

eles próprios. Nisto, foi uma enorme surpresa ver a reacção dos miúdos.

Não me interessa explicar porque é que funciona tão bem, mas interessa dizer que funciona ainda melhor

dependendo de quão dura é a vida para as pessoas que o habitam, ou seja, grupos de crianças mais

desprotegidas, de miúdos com deficiências ou pessoas idosas. Quanto menos coisas as pessoas têm,

mais disponíveis estão para fazer o projecto.

127

ANEXO II:

ENTREVISTA REALIZADA A JOÃO MARIA VENTURA TRINDADE A 14-02-2012, NO

ATELIER VENTURA TRINDADE ASSOCIADOS:

Percebi, nas várias leituras que fiz sobre a sua obra, que tem uma relação muito específica com a

artista Fernanda Fragateiro. Podia descrever um pouco esta relação?

No fundo, eu aqui tenho a sorte de estar rodeado, e é mesmo esse o termo, porque o meu atelier está

exactamente no meio, entre um engenheiro de estruturas, o Paulo Cardoso e uma artista plástica, a

Fernanda Fragateiro e portanto, não necessito de estar eu a pensar, nem sobre a estrutura do edifício,

como fazia o Corbusier, nem sobre uma intervenção mais de arte sobre o edifício, porque no fundo

estamos aqui numa espécie de pequena comunidade. É por isso que isto funciona desta maneira. Mas é

assim uma coisa bastante casuística diria eu. Não foi uma coisa procurada, mas sim uma coisa que

aconteceu.

Não foi uma coisa que eu optei por ter ou que possa agora optar por não ter porque mas acaba sempre

por acontecer. Quando chegamos a determinado ponto num projecto em que é mesmo necessário que a

Fernanda cá passe, e tem acontecido de uma forma natural, mas quando não acontece eu também lhe

telefono e ela vem cá propositadamente, fazer uma espécie de consulta de psicanálise, como nós

costumamos dizer. Eu explico-lhe os meus problemas e ela, muitas vezes explica-me que aquilo não é

um problema porque a partir do seu ponto de vista, aquilo até é fácil de resolver.

Um dos primeiros trabalhos nos quais a Fernanda Fragateiro colaborou com o atelier, foi na

remodelação de uma moradia unifamiliar em Évora (Casa na Quinta do Evaristo, 2000-2005), como

surge esta intervenção?

Nessa casa, por exemplo, estávamos com umas dúvidas sobre como resolver uns alpendres que surgem,

tanto do processo de demolição parcial da casa existente, como os que foram criados para fortalecer a

relação entre a casa e o exterior e achámos que deveriam ter uma matéria, uma cor ou uma textura

qualquer que assinala-se a sua importância naquele projecto, e aí lembro-me de ter telefonado

especificamente à Fernanda, para ela cá vir ver a maquete e ver o que achava que se devia fazer naquilo.

Nós andávamos com umas ideias de fazer um revestimento em cerâmico, tipo azulejo ou tijolo nesses

alpendres e a Fernanda andava entusiasmadíssima, na altura, a ler um livro de um autor francês (Maurice

Blanchot, L’attente l’oubli de 1962), que aparenta ser um diálogo entre duas personagens mas percebe-

se, no fim do livro, que é só uma, que é um monólogo escrito em diálogo. Quando eu lhe mostrei o

projecto daquela casa, ela associou-o imediatamente a esse livro, porque dizia, que aquela casa também

eram duas, uma era a casa que estava lá antes e que se mantém em grande medida, mas tem também,

uma espécie de formalização nova que a faz parecer uma casa diferente. Então, começou a retirar textos

desse livro e a usá-los pela casa, criando uma espécie de jogo no qual se vão descobrindo os textos nos

espaços. (…) As frases retiradas do livro são colocadas perto do rodapé, gravadas na madeira do

pavimento.

128

Este projecto e o da Estação Biológica sobrepõem-se no tempo, foi daí que surgiu a colaboração

ou intervenção da artista na Estação Biológica do Garducho?

Sim, ela estava a trabalhar nesse projecto e uma vez fomos juntos a Évora porque eu ia ver a obra da

Estação Biológica e ela foi também. Quando viu a Estação ficou fascinada com o projecto e neste caso,

foi ela que se propôs trabalhar sobre o edifício e nós dissemos logo que sim!

Já distinguida com um prémio de arquitectura ibérica (FAD, 2009), a Estação Biológica do

Garducho, é uma obra arquitectónica de enorme beleza, qualidade e funcionalidade, o que lhe

faltava? Havia algum tipo de intenção inicial da sua parte em acrescentar uma obra ou intervenção

da artista?

Não, a Fernanda começou a trabalhar sobre a obra sem termos nenhuma intenção específica, portanto,

ao contrário da casa em Évora, que eu tinha pedido especificamente para ela olhar para dois espaços e

nos dar a sua opinião, na Estação Biológica não! Simplesmente propôs-nos trabalhar sobre o edifício

quando este já estava em obra.

Lembro-me que ela pediu logo a maquete de trabalho que tínhamos feito e levou-a para o atelier dela

durante uns tempos para fazer experiências sobre o edifício e ver o que é que achava que podia propor.

Só se tornou uma coisa mais deliberada, quando começou a haver algum interesse de várias entidades,

por um lado, do CEAI, a associação que era dona do edifício e por outro, também da Gulbenkian, ou seja,

ambas viam com bons olhos a intervenção da Fernanda sobre aquele edifício e até se conseguiram

fundos à parte para que esta se realizasse.

Da parte do seu atelier, foi então dada total liberdade à artista em relação à sua intervenção?

Completamente! Eu nunca soube o que ela ia fazer. A obra continuava e ela (…) de vez em quando

pedia-me para ir ao atelier dela e eu percebia que ela andava a fazer umas experiências sobre a maquete

e as pessoas que iam passando pelo atelier da Fernanda, também se iam pronunciando sobre aquilo e, a

dada altura, ela apareceu com uma proposta que é basicamente aquilo que lá está.

Visto ter sido concedido um fundo especial, houve alguma intenção específica por parte do CEAI,

por exemplo?

De facto, havia uma coisa que tinha sido proposta pelo CEAI, que ia de encontro às muitas acções de

educação ambiental que realizam com miúdos de escolas. Eles queriam estabelecer um percurso

didáctico na Estação, e queriam, nomeadamente, ter alguns animais pintados sobre as paredes do

edifício. Mas a Fernanda apareceu com uma ideia muito mais interessante sobre isso, que era ter uma

espécie de silhuetas ou sombras parciais ou não, de uma série de animais (…). Já não me lembro se isso

começou primeiro ou se foi mesmo as inscrições dos textos sobre o edifício. Não sei. Sei que havia essa

ideia e que, às tantas, a Fernanda apareceu também com a ideia de escrever uma espécie de legendas

sobre o edifício, coisas que tinham a ver com a paisagem e que eram retiradas de uma série de textos.

Como foram seleccionados os textos?

A Fernanda tinha conhecido, nessa altura, um escritor que é o Gonçalo M. Tavares, que foi ao atelier dela

e veio aqui também ao nosso e tornámo-nos todos muito amigos, (…).

129

O Gonçalo tinha editado um livro incrível nessa altura que são as 'Breves Notas Sobre a Ciência' (Abril

2006) que a Fernanda tinha lido e que me emprestou para ler. Andávamos muito entusiasmados com o

livro e fala-mos daquilo com o Gonçalo.

Portanto, foi um processo parecido com o da casa em Évora, foi também a partir de um livro que depois

se escolheram essas frases. Nem todas são do Gonçalo, existem também frases de outros autores sobre

a paisagem, mas a maior são dele e todas elas foram escritas pela Fernanda.

Referiu-se anteriormente aos excertos de textos ou às frases como “legendas” do edifício. Acha

que a arquitectura precisa por vezes de ser explicada ou legendada?

Eu confesso que de início o trabalho não me pareceu muito interessante, quer dizer, não é que não

parecesse interessante mas pareceu-me um pouco provocatório. Num certo sentido, a maneira como nós

tínhamos desenhado o edifício, já procurava estabelecer uma determinada relação com aquela paisagem

e por isso, quando a Fernanda propunha escrever frases sobre o edifício, era um pouco como se a

arquitectura não funciona-se e fosse necessário fazer legendas para que essa relação fosse perceptível.

Era como se manifestassem que a arquitectura não era suficiente para explicar uma determinada relação

do espaço com a paisagem.

Não é que me parecesse desnecessário ter aquelas frases, mas de alguma forma aquilo que as frases

diziam ou propunham na relação com a paisagem, era aquilo que nós já estávamos a fazer ao desenhar o

edifício daquela forma, portanto, aquilo parecia-me um bocado redutor. (…)

Esse aspecto foi discutido com os vários intervenientes? Como foi resolvido?

Sim, discutimos bastante sobre isto numa série de conversas entre mim, a Fernanda e o Gonçalo M.

Tavares. O Gonçalo, por exemplo, estava fascinado com o trabalho e disse uma coisa muito interessante

sobre os textos, que é: “o facto de escrever uma coisa, ou seja, escrever em letras sobre um edifício, é

como se essas letras ganhassem espessura, e não é só isso, é como se isso obrigasse a que as pessoas

tivessem um tempo mais demorado de atenção sobre um edifício. Se tivermos a olhar para uma parede

branca, olhamos três segundos, mas se tivermos a olhar para uma parede branca que tem uma coisa

escrita, olhamos durante o tempo que precisamos para ler essa coisa e reflectir sobre ela”. Portanto, ao

contrário da opinião que eu tinha, que achava que essas legendas da Fernanda eram redutoras sobre o

edifício, o Gonçalo achava que não, pelo contrário, achava que era uma espécie de elogio ao edifício e

que no fundo, reforçavam um determinado sentido que o edifício já estava a propor.

Isto deu origem a imensas discussões. Foi bastante engraçado e acabei por ultrapassar essa ideia de que

a obra revelava uma espécie de falha do nosso trabalho como arquitectos e eles, acabaram por me

convencer completamente em as ter. Mas era uma coisa que me incomodava um bocado e admito que de

início não estava muito convicto.

Passados quase 5 anos desde a finalização da obra, como olha agora para a intervenção da

artista? Como seria o edifício sem esta obra?

Não é que eu ache que o trabalho da Fernanda sobre o edifício seja supérfluo. Nada disso, bem pelo

contrário! O que eu acho é que, não era por ele não existir, que o edifício não conseguiria comunicar

também, algumas ideias.

A questão que torna o trabalho da Fernanda agora tão interessante, é que a arquitectura, num certo

sentido, é uma coisa muda, é entendível por um conjunto de pessoas que são arquitectos ou que estão

130

próximos disso, mas é relativamente muda para o resto das pessoas. Agora, é como se o edifício, para

além de estar ali, de ser o que é, de ter a sua forma e de propor uma certa relação entre aquele espaço e

a paisagem à volta, falasse também, ou seja, nós podemos não ir lá, mas as pessoas vão e conseguem

compreendê-lo na totalidade das suas intenções, e isso faz muito sentido, principalmente, num edifício

que é público e que tem um teor e até um programa muito didáctico ou educativo.

Decorrente de propostas e obras da artista, existe neste caso, ou costumam existir alterações a

nível da arquitectura?

Sim, isso acontece bastante.

Embora neste caso, a Fernanda tenha entrado no processo quando o edifício estava já a começar a ser

construído ou pelo menos, nós já tínhamos o projecto acabado. Lembro-me de algumas coisas que foram

alteradas a partir de coisas que a Fernanda ia dizendo ou de coisas que nós íamos discutindo com o

Paulo Cardoso, com o engenheiro, com a Fernanda ou com o Gonçalo M. Tavares. Ou seja, houve de

certeza alterações ao projecto motivadas pela proposta da Fernanda e costuma haver porque nós

discutimos sempre bastante, mesmo à medida que o projecto vai avançando.

Como caracteriza a sua relação com a Fernanda Fragateiro, tendo em conta o que é a sua noção

da realidade das colaborações entre artistas e arquitectos?

A versão mais clássica é os edifícios já estarem mais ou menos prontos e depois é pedido a um artista,

uma peça para um determinado espaço. Não é que essa peça não interaja de uma maneira interessante

com esse espaço e até o modifique num certo sentido, mas é sempre uma opção um pouco a posteriori.

Aqui não tem sido a posteriori, tem sido sempre à medida que o projecto avança e às vezes antes de

projecto começar a ser construído. Normalmente é numa fase em que nós já temos o projecto muito

definido, mas na qual, ainda há também muito espaço para alterações e ainda há coisas que nos surgem

um bocado em dúvida, que a Fernanda entra, ou seja, entra mal consigamos explicar o projecto como um

todo. No processo criativo inicial ou enquanto o projecto está a ser experimentado ou ainda em trabalho

de maquete, nessa fase normalmente não discutimos os projectos, mesmo quando eu vou ao atelier da

Fernanda ou ela ao meu.

Os projectos de que falamos são os projectos que ela já tem mais ou menos montados ou ensaiados no

atelier, ou seja, nos quais já tem muito claro o que vai fazer e aí apresenta-mos cheia de entusiasmo e eu

dou a minha opinião, às vezes até bem outras mal, mas provoca sempre para ambos uma reacção

qualquer.

O nosso caso é diferente do clássico, acima de tudo, porque ela não tem criado peças para um espaço,

no sentido em que nem sequer são peças, são intervenções sobre o próprio edifício que muitas vezes o

modificam e que, muitas vezes é modificando mesmo o projecto que nós estávamos a fazer que ela

intervém, ou seja, o trabalho dela, por vezes, nem se materializa num projecto próprio ou numa

intervenção. É diferente porque nem sempre é identificável. O termo é mesmo intrometer-se no nosso

trabalho.

É pela forma da Fernanda Fragateiro trabalhar que torna a sua colaboração com arquitectos

distinta da que refere como clássica?

Acho que nesse aspecto, o trabalho da Fernanda é eventualmente bastante diferente da maior parte do

trabalho de outros artistas contemporâneos, nomeadamente portugueses, que trabalham com arquitectos.

131

Em muitas das colaborações, o trabalho é normalmente mais individual, quer o do artista, quer o do

arquitecto com quem colabora. Relacionam-se, sim, mas são processos separados. No caso da

Fernanda, eu acho que não é assim que ela pensa. Não sei ao certo, mas acho que ela, à partida, ou se

interessa ou não e, quando se interessa pelo projecto, interessa-se também pelo que ele propõe, pelo

espaço, pelo carácter, etc. Ela trabalha e reage a isso modificando muitas vezes o projecto, ou seja, não é

tanto a perspectiva de fazer uma coisa para um sítio ou de fazer uma peça para um espaço, mas é o

próprio espaço que é trabalhado.

O trabalho da Fernanda Fragateiro aproxima-se por vezes da arquitectura, no entanto, também se

defende nesta dissertação, que se não houver distinção entre as áreas também não é possível que

haja colaborações?

Acho que de facto, a Fernanda trabalha muito como se fosse um arquitecto, não é? Ela odiará que eu

diga isto, mas é verdade.

Há, eu não diria pudor, mas uma resistência mútua entre os arquitectos e os artistas, exactamente porque

a linha de fronteira entre o nosso trabalho não é muito clara. Muitas vezes os arquitectos intrometem-se

num trabalho que já é mais do campo de um artista e vice-versa.

Eventualmente, a razão pela qual é muito simples, muito produtivo e também muito vantajoso trabalhar

com a Fernanda Fragateiro, é que é para os dois, muito claro, quais são os nossos domínios. Não quer

dizer que eles não se cruzem ou misturem mas, para mim sempre foi muito claro que eu queria fazer

arquitectura. Nós aqui no atelier, não entramos em nenhum campo que não seja da arquitectura mas sei,

que há uma certa tendência dos arquitectos para fazerem isso.

A evolução tecnológica e as novas possibilidades e técnicas de construção, actualmente, permitem-nos

fazer todo o tipo de formas, e portanto, podemos trabalhar um edifício como se fossemos um escultor, (…)

até porque os escultores, hoje em dia também fazem peças que se habitam, não é? Exactamente por isso

é que há uma espécie de diluição e uma certa, não lhe chamaria rivalidade, mas uma certa resistência

entre os arquitectos e os artistas porque às vezes há, de facto, uma certa intromissão.

A própria maneira de trabalhar aqui no atelier não tem muito a ver com isso, portanto, não nos deixamos

seduzir pelas possibilidades construtivas dos materiais ou tecnologias e tentamos nunca no intrometer no

que é o campo do artista. Temos esses espectros bem distintos, por isso, quando achamos que há um

ponto qualquer no projecto em que faria sentido um tipo de trabalho que já sai do nosso métier, muitas

vezes discutimos isso com a Fernanda (…).

Embora trabalhe por vezes no limite da fronteira entre a arte e a arquitectura, a Fernanda não quer ser

arquitecta, disso eu tenho a certeza. É muito claro o tipo de trabalho que ela faz tem a ver com espaço e

muitas vezes até, com construção e com edifícios, podendo parecer que está quase a intervir como um

arquitecto, mas não está. E para nós é muito claro!

Quais são as suas referências a nível nacional e internacional de colaborações entre artistas e

arquitectos?

Há uma colaboração que se tornou mais ou menos constante, entre os Herzog & de Meuron com um

artista que é o Rémy Zaugg, houve muitos trabalhos que fizeram em conjunto, eles chegaram até a

desenhar o estúdio do Rémy Zaugg, tal como nós desenha-mos o da Fernanda.

Aí trata-se também de uma colaboração menos separável, portanto, o que o Rémy Zaugg faz muitas

vezes, é intervir sobre as definições do projecto de arquitectura e por isso, o trabalho, não é muitas vezes

separável do edifício. (…)

132

Outro exemplo do Herzog & de Meuron que tenho, é o trabalho que fizeram para o Estádio Olímpico de

Pequim, conhecido como o Ninho de Pássaro, com o Ai Weiwei, um artista chinês. Também foi uma

colaboração, (…) muito discutida em conjunto e isso é que me interessa imenso.

(…)

A nível nacional, acho que a grande referência é o arquitecto Nuno Teotónio Pereira, que tem vários

exemplos de integração de arte ou de intervenções de artistas na sua arquitectura. No entanto fá-lo de

uma forma diferente da minha e da Fernanda, ou seja, trata-se somente da colocação de obras em

edifícios já terminados e portanto, com um teor talvez mais decorativo.

Quais as vantagens de uma relação tão próxima entre um arquitecto e neste caso, uma artista?

O que para mim é muito fascinante em trabalhar com a Fernanda, tem exactamente a ver com o que

estava a dizer, ou seja, não me interessa muito que ela produza uma peça para um edifício nosso. Não é

que não goste dos trabalhos que ela faz que são mais objectuais mas, não é isso que nos resolve

problemas. Eu costumo dizer que às vezes lhe telefono quando precisamos de uma visão exterior e

diferente da nossa, porque às vezes a solução que é difícil para nós, é fácil para ela.

O que me interessa é isso, é o facto de estarmos a pensar sobre o mesmo assunto, que é o espaço, a

partir de pontos de vista diferentes.

Existe para si uma receita, ou uma postura chave, para que uma colaboração resulte e funcione?

Não faço ideia, mas imagino que são coisas muito mais simples do que as pessoas às vezes possam

pensar.

Em primeiro lugar, acho que deve de haver uma sintonia qualquer de pensamento e uma relação a nível

pessoal. Por exemplo, no meu caso e da Fernanda, (…) não há pudores nem constrangimentos e por

isso, estamos livres para dizer as maiores barbaridades sobre o trabalho um do outro. Isso é uma coisa

fundamental porque não se pode estar a fazer cedências, não é?

É uma coisa horrível, uma pessoa estar a fazer cedências sobre a sua posição, sobre a sua convicção

para tentar agradar ou para fazer diplomacia, isso não funciona! (…) Se calhar o que acontece

frequentemente na relação dos arquitectos com os artistas é um bocado isso. Há ali uma espécie de

limitação diplomática dos territórios para que aquilo tudo funcione e para que não sejam feridas

susceptibilidades. Isso não pode existir na nossa maneira de trabalhar.

Existem outros casos, como por exemplo, o Pedro Cabrita Reis quando trabalha com o Souto Moura,

normalmente faz peças que reagem fortemente ao espaço arquitectónico que foi desenhado. Esta relação

começa a ganhar alguma dimensão, mas nos três ou quatro trabalhos que fizeram, não se pode dizer que

colaboraram, mas sim, que trabalharam ambos para o mesmo espaço. Se calhar, qualquer dia começam

a ficar mais à vontade um com o outro, começam a haver mais discussões ou debates, menos cedências,

menos pudor nas suas opiniões sobre o trabalho um do outro e começam a sair coisas diferentes.

Mas o confronto é por vezes necessário e pode também dar azo a resultados muito interessantes,

não?

Sim, isso também é muito interessante e eu não vejo problema nenhum em que isso aconteça, mas não é

a nossa maneira de trabalhar. Esta maneira de trabalhar com a Fernanda é o que nos é mais natural, mas

não é que ache que isto seja mais ou menos interessante do que outro tipo de posições.

133

Eu, por exemplo, gosto imenso da peça que o Pedro Cabrita Reis fez para o edifício do Souto Moura no

Campus da Novartis em Basileia (…). Quando vi esta peça pela primeira vez, senti que era

completamente necessária ao edifício porque, era como se o projecto do Souto Moura fosse tão

mecânico, tão racional, tão frio, tão geométrico que chegasse quase ao ponto de ser insuportável. Era

como se não houvesse nenhuma falha, nenhum erro, nenhum defeito e aquela obra do Pedro Cabrita

Reis é exactamente o contrário disso tudo. É uma espécie de caos no meio daquele espaço e funciona

claramente por confronto, mas é uma espécie de confronto complementar, parece que é necessária, ou

seja, a partir do momento em que aquela peça lá está, parece que ela não poderia nunca, não ter estado

lá.

E isso, também acho muitíssimo interessante. É uma coisa diferente daquilo que tem acontecido aqui

connosco e com a Fernanda Fragateiro, que no fundo, é quase estarmos lado a lado na mesma mesa a

trabalhar na mesma direcção. Neste trabalho do Pedro Cabrita Reis com o Eduardo Souto Moura, é como

se eles estivessem frente a frente nessa mesa a discutir violentamente, cada um com a sua posição e a

fazerem coisas totalmente diferentes, que no final, também gera um resultado que faz todo o sentido

interligado.

Em que é que a colaboração com a Fernanda Fragateiro alterou a sua prática arquitectónica ou

mesmo a dinâmica de trabalho do seu atelier?

O ponto de onde nós partimos, e isto tem a ver com uma espécie de convicção minha sobre os projectos

de arquitectura e é uma coisa que eu defendo desde que comecei a trabalhar no atelier do João Luís

Carrilho da Graça, onde fiquei muitos anos. Lembro-me de discutir isto, vezes sem conta, com o João

Luís Carrilho da Graça, porque ele tinha uma posição diferente. Eu sempre defendi que todos os projectos

das várias especialidades, desde o projecto de climatização, ao de estruturas, ao de instalações eléctricas

etc., todos têm que ser autonomamente impecáveis e isto é uma coisa muito minha. O que eu gosto é que

os engenheiros que trabalham connosco, possam ter orgulho do projecto que fizeram (…) e que ele faça

sentido como um todo, como uma coisa autónoma que depois, claro, que faça sentido conjuntamente com

os restantes trabalhos.

Para mim, é completamente impensável fazer um projecto em que a estrutura é apenas uma coisa que

está por trás para servir os interesses da arquitectura (…) ou seja, quando tudo é feito para que se

chegue a um determinado resultado formal do espaço arquitectónico. Para mim não faz sentido!

O que faz sentido, e isso tem muito a ver com o facto de trabalhar desde sempre em conjunto com o

Paulo Cardoso, que é tão responsável pelos projectos que fazemos aqui com eu sou. (…)

Essa postura vai de encontro ao conceito de obra de arte total quando se tenta transpô-la para o

séc. XIX…

Por exemplo, o projecto da Estação Biológica é um projecto do ponto de vista da engenharia de estruturas

fascinante, tudo aquilo faz imenso sentido. Há até coisas engraçadas como, por exemplo, o facto de não

termos sido nós a desenhar os alçados daquele edifício. Como as fachadas são umas paredes vigas,

foram os engenheiros de estruturas que desenharam os alçados do edifício. Todos, tanto eu, como o

Paulo Cardoso e por vezes a Fernanda ou outros, trabalhamos neste sentido, ou seja, com a finalidade de

que cada parte seja válida, autónoma e que nos possamos orgulhar individualmente do nosso trabalho

mas, no entanto, caminhamos para um todo, para um único elemento no qual todas essas partes

sobressaiam de forma equilibrada.

134

É um equilíbrio que no caso da arquitectura nem sempre é fácil de atingir, mas é um princípio que

se mantém?

É muito mais difícil no caso da arquitectura porque há sempre essa tendência de prevalecer sobre todas

as outras especialidades, de todas lhe serem subservientes ou funcionarem, simplesmente, para que a

arquitectura brilhe, não é?

Eu não me interesso muito por isso. Interessa-me muito mais, que todos os projectos sejam

autonomamente inteligentes, que façam sentido e quando, todos eles são cruzados uns com os outros,

façam sentido para uma coisa mais global.

Portanto, quando trabalhamos com um artista a posição não é diferente da do engenheiro de hidráulicas,

de estruturas ou outro qualquer. O artista tem que ter todo o seu campo aberto e não deve fazer

cedências no seu projecto para servir os interesses da arquitectura. (…)

Faz lembrar um pouco um arquitecto Renascentista com vários heterónimos que encarnam as

várias especialidades…

Uma vez tive exactamente essa conversa, já não me lembro com quem é que era, mas a Fernanda

também estava, e havia alguém dizia, em tom de brincadeira, que nós aqui éramos um bocado uns

arquitectos Renascentistas, mas já no séc. XXI, portanto, estávamos para aí quatro séculos atrasados. E

é um bocado isso.

Houve uma altura em que as obras demoravam imenso tempo e o arquitecto, ao trabalhar em obra, tinha

uma espécie de visão global de tudo, de todas as especialidades, aliás essa palavra nem se quer existia

ainda, mas no fundo, uma obra era uma obra e todas as coisas faziam sentido cruzadas (…) e todos os

elementos partiam de uma só visão, a do arquitecto.

A verdade é que hoje em dia fazer um projecto de um edifício é bastante mais complexo porque há um

sem número de requisitos legais, funcionais, etc., (da acústica, às estruturas, às hidráulicas, às eficiências

térmicas, etc.), portanto, é absolutamente impossível fazermos tudo sozinhos, temos sempre que

trabalhar com equipas cada vez maiores.

O que eu tento é que, no final, o trabalho de todas as pessoas aparente poderia ter ser feito por uma

espécie de super pessoa, por alguém que reunia todas essas competências, que talvez seja o arquitecto

Renascentista.

Estou-me a lembrar, (…) que o Corbusier era ainda no séc. XX, uma espécie de arquitecto Renascentista.

Pensava de uma forma muito racional os edifícios, pensava a estrutura como se fosse um engenheiro, a

seguir, trabalhava como um arquitecto ao definir os espaços (…) e por fim, ainda desenha sobre eles e

introduzia pinturas, baixos-relevos ou esculturas como se fosse um artista.

Como vê o futuro das colaborações, em geral e no caso específico do atelier?

Eu acho que faz todo o sentido existir, e digo por experiência própria, que às vezes a nossa maneira de

pensar não é suficiente para resolver completamente um projecto. Há uma expressão do Gonçalo M.

Tavares que até está no nosso site como abertura e de que eu gosto imenso, que diz que:

“Observar pelo canto do olho é, em ciência, começar a elaborar a hipótese. O que é observado pelo

centro do olho é o evidente, o óbvio, aquilo que é partilhado pela multidão. Na ciência, como no mundo

das invenções, observar pelo canto do olho é ver o pormenor diferente, aquele que é o começo de

qualquer coisa de significativo.

Observar a realidade pelo canto do olho, isto é: pensar ligeiramente ao lado.

135

A isto chama-se criatividade. Daqui saíram todas as grandes teorias científicas importantes.”233

Nós como arquitectos, estamos sempre a olhar a partir de um determinado ponto de vista mas se

conseguíssemos olhar para a mesma coisa, a partir de uma outra perspectiva muitas das coisas que às

vezes são difíceis de resolver num projecto, tornar-se-iam bastante mais claras, não é? Mas isso (…) é

extremamente difícil de conseguir fazer.

O que tem acontecido muito facilmente, é que nós discutimos um projecto e a Fernanda tem um ponto de

vista que é o seu, eu tenho o meu, o Paulo Cardoso tem o dele e às vezes, ainda vêm outras pessoas

que têm outros pontos de vista muito diferente. Nesse sentido e, pelo menos no nosso caso, acho

completamente necessário, aliás, não consigo sequer imaginar trabalhar de outra forma. No fundo seria o

mesmo que agora começarmos a ser nós a pensar nos projectos de estruturas dos edifícios que

desenhamos.

De facto, é como diz, não só a relação que criou entre o arquitecto, o engenheiro e o artista é

casuística é também rara no panorama da arquitectura…

Eu percebo, mas de facto, na maneira como nós temos trabalhado aqui com a Fernanda, lá está, não são

coisas complementares. Ela não vem depois introduzir uma coisa qualquer que se possa optar por ter ou

não, não é isso que se passa. (…) Mas claro que se ela não entrevir, hão de haver coisas que ficam pior

resolvidas no projecto.

Hoje em dia não há hipótese porque os requisitos de um edifício são de tal modo exigentes e são tantos,

que nós temos que estar completamente concentrados na nossa especialidade, é difícil ter tempo ou ter

capacidade de gerir ou dominar várias coisas ao mesmo tempo, não é? Portanto, eu diria que cada vez é

mais necessário haver estas colaborações com outro tipo de pessoas, e neste aspecto, eu não falava só

dos artistas, mas também de outro tipo de pessoas como sociólogos, por exemplo, escritores porque não.

233

Gonçalo M. Tavares – Breves Notas sobre a Ciência. Lisboa: Relógio d’Água Editores, Abril 2006.

136

ANEXO III:

ENTREVISTA REALIZADA A JOÃO GOMES DA SILVA, A 30-01-2012, NO ATELIER

GLOBAL ARQUITECTURA PAISAGISTA:

Começo por lhe pedir para descrever a sua intervenção no projecto da Expo’98.

Eu fui co-autor, com o Arq. Manuel Salgado, do plano que ganhou o concurso para o recinto da Expo’98 e

depois tivemos a tarefa de fazer, o que se chamou na altura, projecto de solo. Fizemos, em colaboração e

a vertente de colaboração estendesse aqui a todos os intervenientes, o projecto de espaços públicos da

Expo, no seu todo. Começando pelo que constituiu uma espécie de plano geral, no qual uma série de

regras e elementos de base se estabeleceram, nomeadamente, a relação entre o espaço público, a sua

infra-estrutura e a tão importante revelação ou ocultação da mesma. A partir do momento em que se fez

esse trabalho de base, começaram-se a identificar os temas de trabalho mais isolados e autonomizaram-

se alguns projectos, quer para o meu lado, quer para o lado do Arq. Manuel Salgado e do RISCO.

Surgiram assim, vários espaços, entre eles os jardins e, a certa altura, pensou-se que seria interessante,

antes de se começar a fazer qualquer projecto, envolver outras pessoas que pudessem pensar e ajudar a

conceber o espaço público.

Refere-se agora aos artistas?

Estamos em finais dos anos 90, ou seja, vimos de uma cultura, estabelecida nas últimas duas décadas

(80 e 90), que assentava na ideia de espaço público e da interacção com as artes. Assim surgiu a ideia de

convidar vários artistas e criar um programa de arte pública, a desenvolver no âmbito da Expo. Portanto,

para além do envolvimento dos engenheiros, foram convidados vários artistas para intervir no espaço,

alguns intervieram de maneira mais tradicional, trabalhando sobre os pavimentos a partir de padrões

regulares, abstractos ou figurativos; outros trabalharam de uma forma mais tridimensional, ou seja, sobre

a forma de esculturas ou de instalações e outros trabalharam de uma forma mais insidiosa mas também

mais intensa ou intrincada como é o caso da Fernanda Fragateiro.

Como distingue este Jardim, dos Jardins de Água, em termos de envolvência dos vários

intervenientes? Considera que foi também um projecto colaborativo ou foi somente um projecto

conjunto?

Os Jardins de Água e o Jardim das Ondas foram dois jardins que se autonomizaram no desenvolvimento

do projecto de espaço público. O projecto dos Jardins de Água, foi conduzido pela RISCO e portanto,

houve uma liderança em relação a esse processo e o nosso envolvimento numa outra posição, que não a

de coordenação ou de liderança, mas talvez de colaboração. O Jardim das Ondas tinha um sentido

diferente dos Jardins de Água e era da nossa inteira responsabilidade e mais tarde, seria também, da

Fernanda Fragateiro.

Como surgem os temas para ambos os jardins e como afectam estes, o desenho dos espaços?

O pensamento que está por trás do desenvolvimento dos espaços da Expo’98 e da própria expos ição em

si, é ainda muito influenciado pelo pensamento pós-moderno da tematização da arquitectura e da

137

figuração das ideias. Portanto, a utilização dos temas de uma forma destacada, serve muito o propósito

de uma exposição, que é moldada por um acontecimento mais do domínio do marketing (...).

A Expo 98, celebra os oceanos e sua importância a partir de muitos pontos de vista, entre os quais, a

questão da relação entre os vários cantos do mundo através dos oceanos. Do tema geral começam a

declinar, uma série de outros temas como os Jardins de Água ou o Jardim das Ondas. Os temas são

escolhidos por um gabinete, ou se quisermos, um corpo dentro da própria Expo’98, que basicamente

pensava o tema dos conteúdos. Toda esta questão dos temas esteve muito presente na concepção do

evento em si, tanto na questão dos conteúdos e dos espaços, como dos conteúdos e das exposições e

ainda, dos conteúdos e das instalações. (…) Os Jardins de Água, por exemplo, foi um tema que nos foi

proposto, não fomos nós que inventámos, aliás, nós fugimos dos temas como ‘diabo da cruz’ porque não

trabalhamos a partir de uma ideia de figuração ou de configuração, mas digamos que, aquilo que foi

entregue aos responsáveis pelo conceito, neste caso arquitectos, arquitectos paisagistas e artistas foi

esse tema propriamente dito.

Como distingue o Jardim das Ondas, dos Jardins de Água em termos de programa e envolvência

dos vários intervenientes?

Os Jardins de Água são determinados pela ideia de querer fazer um conjunto de espaços públicos com

uma função fundamentalmente de descanso, de lazer, de uma certa alternância em relação à visita dos

pavilhões e de um contraste com os espaços de grande concentração de gente ou de direccionamento de

fluxos. O Jardim das Ondas, supostamente seria um espaço de um lazer ainda mais profundo, ou seja, a

ideia é que fosse um grande espaço aberto e relvado, que criasse uma grande superfície de estadia e

permanência na margem do rio. Portanto, são duas situações um bocado diferentes mas de função

similar e, se reparar bem, a estrutura dos Jardins de Água é uma sequência de espaços, uns mais do

domínio do duro, do artificial, do pavimento; englobam toda aquela parte central que cruza fluxos e nos

dois extremos, encontram-se espaços mais do domínio do jardim. O Jardim das Ondas constitui uma só

unidade espacial.

Nesse sentido, o Arq. Manuel Salgado propôs que trabalhássemos juntos, o RISCO, nós e a Fernanda

Fragateiro em relação aos Jardins das Águas. Em relação ao Jardim das Ondas, que era um projecto que

nos tinha sido atribuído em exclusivo, com o desenrolar do processo acabamos por envolver a Fernanda

Fragateiro e acabamos até, por desistir (…) de uma configuração de espaço que já tínhamos

desenvolvido e abraçámos o projecto que fizemos com ela.

Portanto foi uma escolha que aconteceu de uma forma quase natural e que surgiu encadeada com

os Jardins das Águas?

Foi, foi uma que surgiu da naturalidade como a nossa relação de trabalho se desenvolveu.

Agora incidindo no Jardim das Ondas, em alguma altura do processo surgiram questões de

autoria, tendo também em conta que já havia, da parte do arquitecto, um estudo desenvolvido para

este espaço?

Devo dizer, que a coisa foi muito personalizada em termos do trabalho desenvolvido entre mim e ela. Ao

contrário de outros espaços que envolveram outras pessoas, houve, de uma forma talvez mais

inconsciente da minha parte e de uma forma mais controlada e consciente da parte dela, tal como é

muitas vezes próprio entre os homens e as mulheres, essa intenção e disponibilidade. Sobretudo

disponibilidade para o fazer.

138

Portanto, aquilo que foi a minha posição foi – Bom, temos uma hipótese mas estamos completamente

abertos para explorar outra e portanto, como é que vamos fazer, como é que vamos trabalhar? A posição

do lado dela foi um pouco diferente, até porque os artistas funcionam muito mais dependentes da noção

de autoria e trabalham de uma forma normalmente muito mais isolada do que arquitectos. No meu caso

de arquitecto paisagista, estamos habituados a ter que colaborar com outras pessoas para poder

concretizar as coisas. Os projectos são coisas muito complexas, então estes espaços públicos, são

muitíssimo complexos porque envolve muita gente, muitos problemas.

Neste caso concreto houve essa disponibilidade e, essa disponibilidade é o mais importante para se

eliminarem esse tipo de problemas que surgem quando a questão da autoria se põe. Portanto, isso não

foi discutido inicialmente, daquilo que me recordo e posteriormente não se pôs esse problema.

Como decorreu a fase mais conceptual do projecto, foi um processo partilhado?

O que se passou, de um ponto de vista muito prático foi que, uma vez entendidas ambas as posições,

fizeram-se reuniões e sessões de trabalho nas quais, a Fernanda Fragateiro disse que gostaria de fazer

um projecto que de alguma maneira se baseava num livro, numa referência que ela tem da Virginia Woolf,

que é o ‘The Waves’ (1931), que aliás aparece também no Jardim das Águas. A Fernanda trabalha muito

a partir da reflexão e do pensamento sobre as realidades em que está interessada no momento.

Apresentou-nos então, uma proposta sobre a forma de uma maquete de gesso, que surgiu do trabalhar

sobre as formas da água. A água que é aparentemente uma matéria formal, na verdade não o é, porque a

água, sendo uma matéria com propriedades que não se ficam apenas pelo plástico, deforma-se

constantemente em função da energia que possui ou em função do elemento que a contem, ou seja, a

água ao ser representada através da forma surge de uma maneira absolutamente transfigurada.

Na verdade, aquilo que a Fernanda Fragateiro propõe, é a configuração de um conjunto de formas com

escalas absolutamente transgredidas. Não há uma escala comum às formas, há um espaço em que

coexistem várias formas de muitas escalas, que aparecem compostas nesses vários estudos que ela fez

a partir de modelos em gesso e também de fotografias. Ela debruça-se sobre um conjunto de formas que

são normalmente próprias da relação e, mais exactamente, do contacto entre o mar e a terra. Essas

formas, compostas e articuladas entre si, são próprias à água nos seus diversos estados e formas de

energia, são próprias daquilo que a água imprime na terra. Por exemplo, há um conjunto de formas que

representam de alguma maneira o movimento provocado pela energia transmitida à água pelo vento, há

outras formas que têm a ver com a inscrição que a água faz na areia, há outros momentos em que se

observa a forma de quando um pingo cai num plano de água. Estas formas têm simplesmente a ver com

a impressão da água, com o efeito da água sobre a matéria e não a água em si. (…)

Qual foi a sua reacção a esta proposta, já que, a passagem destes esquemas conceptuais para o

desenho e mesmo materialização nem sempre é óbvia ou fácil?

Há na tradição dos anos 70 na arquitectura paisagista moderna, pode-se chamar assim, sobretudo, em

França e na Bélgica, a que se chamou "Jardins Culture", ou seja, "Jardins Cultura", em que a construção

de espaços a partir da modelação do terreno, que é uma das três grandes tectónicas da paisagem, foi

muito utilizada, sobretudo, num determinado tipo de desenvolvimento urbano, pós Carta de Atenas. (…)

Os "Jardins Culture" surgem da vontade de criar espaços públicos a partir de uma perspectiva plástica e

muito livre em relação ao espaço em si. Nós podemos ver alguns exemplos disso em Portugal, nos Olivais

Sul. (…) A minha reacção é então, mais ou menos esta – Bom mas isso é um "Jardin Culture" dos anos

70 e passados 20 anos, isto é ainda um conceito muito presente, portanto, tenho um certo receio da

139

colagem a essa imagem. E ela disse – Não tenha receios, isto é uma outra coisa. E como a minha

posição desde o início era bastante aberta, disse – Bom, se é outra coisa, vamos tentar perceber o que é.

Passando agora para a questão do projecto, ou seja, já de desenho do espaço…

O que fizemos em seguida foi tentar perceber, através de desenhos, esquiços e de várias maquetas que

a Fernanda foi fazendo e ainda de desenhos e cálculos que nós também fomos fazendo, como é que

essas formas, com escalas muito diversas convocadas para o mesmo espaço, se poderiam articular,

tomar forma e começar a concretizar. Obviamente que se queremos convocar várias formas no mesmo

espaço precisamos de uma unidade, precisamos de uma certa abstracção relativamente à matéria, ou

seja precisávamos de uma matéria única e portanto, a relva aparece como material que estabiliza as

formas que são feitas com terra.

Depois há problemas técnicos que se põem na construção daquelas formas, porque a certa altura, temos

ondulações que são bastante declivosas, não é? Ora a matéria tem propriedades físicas e momentos de

estabilidade e de instabilidade, nós não íamos fazer aquelas formas em betão, não íamos fazê-las em

gesso, não íamos fazê-las em nenhuma matéria estável, mas sim em terra e depois, íamos estabilizá-las

e sobretudo unificá-las com relva.

Isto parece tudo muito simples mas, na verdade, teve de se perceber como é que se conseguia, primeiro,

chegar a uma forma final muito complexa. Segundo, torná-la possível de construir e em último, resolver

todos os problemas técnicos que estão inerentes. Escolhida a matéria que era a relva, perceber que

várias relvas tinham ali que existir e como as manter num contexto mediterrânico de verões quentes e

secos. Evitámos colocar candeeiros ou focos, a não ser muito pontualmente, no conjunto de árvores, que

nós propusemos e a Fernanda decidiu juntar. Que são um conjunto de chocos plantados sobretudo num

dos limites, para que a sombra, quando a luz sobretudo Poente, começa a ser mais baixa, se projectasse

para o interior do espaço e o tornasse não só habitável no Verão mas, que cria-se uma amenidade

inerente ao conforto e que faz parte deste sentido lúdico característico deste espaço em particular. Todas

estas questões, que se envolvem com a possibilidade de ‘fazer’, que é própria da construção de projectos

artísticos, unem-se às da construção de espaços públicos e de espaços de paisagem, como a questão do

conforto, da possibilidade de ser mantido. Depois há outras questões que têm haver, com a apropriação e

que são bastante interessantes.

Durante a fase de construção, obviamente surgiram problemas ou questões com ela relacionadas,

como foi acompanhado esse processo?

A Fernanda Fragateiro é uma pessoa que trabalha tanto na fase conceptual, como na fase de produção

ou para nós, a fase de obra. Foi um trabalho muito conjunto, sobretudo o lado escultural, de moldar o

terreno e a confirmação e ajuste da forma, foi algo que foi bastante acompanhado por ela, até porque

tinha objectivos, bastante concretos, em relação a isso. Eu fui pondo questões e fui, no fundo, ajudando a

concretizar esse trabalho, através de técnicas topográficas escolhidas e utilizadas para transpor os

desenhos que tínhamos feito para o espaço.

Depois há um momento, em que se atinge a forma pretendida e se faz o revestimento com tapetes de

relva. A relva foi aplicada de uma maneira muito rápida, para que o vento não destrui-se ou altera-se as

formas (…). A área foi reservada e a relva ficou a enraizar durante algumas semanas. Estes trabalhos

finais de pavimentações, revestimentos e plantações, sobretudo plantações de revestimentos, são

sempre os últimos a serem feitos e, apesar de ter havido uma excelente coordenação do conjunto de

140

obras no recinto, as coisas depois precipitaram-se. Mas quando chegou o dia, a relva estava instalada e o

projecto da Fernanda e nosso estava concretizado.

Essa dicotomia entre um objecto de arte e um espaço de exaustiva utilização foi tida em

consideração?

Desde a arte moderna à arte contemporânea, a interacção com as pessoas é um factor chave, e aqui,

mais uma vez foi um pressuposto do projecto e, um aspecto talvez tão importante quanto a concepção e

produção do objecto artístico, que neste caso é o espaço. Do meu ponto de vista esta interacção é

fundamental porque, basicamente, estamos a criar um espaço público e minha perspectiva era: Se é um

espaço público, como é que ele se apropria e como é que ele resiste? Há aqui situações de um limite de

fragilidade. Aquelas pendentes e encostas são muito frágeis do ponto de vista da solidez, portanto,

quando há uma apropriação que é muito intensa e sendo a relva um material vivo, quando é muito pisado

chega a momentos de uma certa instabilidade. Ai iniciou-se outro processo muito importante, que foi a

observação dessa apropriação através de várias formas de registo, que foi também, objecto de um tipo de

comunicação enquanto projecto.

Agora, passados quase 14 anos, como olha para este espaço que co-criou? É um jardim ou é uma

obra de arte?

A minha opinião é que o jardim é essas coisas todas. Não estou muito preocupado com a categorização,

até porque existe um território deliberadamente híbrido e é essa hibridez e essa fusão, se bem que com

objectivos e olhares diferentes, é o que torna o Jardim das Ondas numa coisa única, na qual, a forma

como as pessoas se relacionam com ela é o fundamental e é daí que se retira essa experiência.

Há vários registos que são feitos sobre esta obra, uns são do domínio da fotografia, portanto, estáticos e

no fundo, gestos que objectualizam este espaço vivido, mas há um outro registo muito importante, feito

por um cineasta, a pedido da Fernanda. É um registo dinâmico no qual as imagens são tomadas a partir

de um ângulo fixo e por fracções ao longo de 24h, que montadas sequencialmente revelam, num

determinado tempo, a dinâmica do espaço e as diversas formas como pessoas com diferentes interesses,

miúdos, jovens, adultos e pessoas mais velhas, utilizam o espaço a várias horas, com luz diferente e com

todas as dinâmicas do próprio espaço. Há uma altura em que a rega começa a funcionar, as sombras

movimentam-se quase como pessoas e tudo se sucede ali. Todo o tipo de interacções entre as pessoas,

entre as pessoas e o espaço, tudo inimaginável sucede ali. (…)

Portanto considera irrelevante ou desnecessária a catalogação deste tipo de espaços?

Não, eu acho que é preciso catalogar, no sentido em que, quando reflectirmos sobre as coisas,

reflectirmos a partir de determinadas perspectivas. Estas reflexões são sempre feitas de uma perspectiva

de limites disciplinares ou da observação dessa transgressão das fronteiras disciplinares, (…).

E nesse sentido, é muito interessante, especialmente para mim, perceber de que forma, de que

processos e a que resultados se chegou com estas intervenções que não são originais ou originadas

nesse momento. A colaboração entre artistas e arquitectos existe desde sempre e portanto, essa hibridez

e essa complexidade no espaço, que é própria da arte em conjunto com a arquitectura, existem também

desde sempre, ou seja, o que existe é um revisitar dessa disponibilidade naquele momento.

141

Ao longo da sua carreira já tinha tido colaborado desta forma com algum artista?

Já colaborei muitas vezes com artistas, mas nunca de uma forma tão concretizada. Mais ao menos ao

mesmo tempo, trabalhei para o projecto do Museu de Serralves. (…) Nessa altura houve uma interacção

forte com alguns artistas que lá trabalharam.

O primeiro deles foi o Richard Serra para a peça 'Walking is Measuring'. Houve uma interacção,

obviamente, não tão próxima, por ser alguém que está muito distante e que trabalha de uma maneira

muito fechada, fruto de boas e más experiências sobre os temas da colaboração. O Richard Serra vem de

uma experiência traumática, que é sobretudo a experiência do Tilted Arc. Este é um processo que está

muito bem documentado e eu estudei-o muito bem na altura, para perceber a natureza do trabalho dele e,

sobretudo, deste tema da colaboração.

Esta colaboração teve um sentido completamente distinto, pois houve comunicação, mas cada um

interagiu a seguir, da maneira que melhor entendeu. (…) O meu trabalho articulou-se para, de alguma

maneira, tornar mais explícito e mais claro o trabalho do artista. Uma das alterações óbvias foi, a

substituição de tiras em chapa de aço corten, que delimitava o percurso, para que não anulassem a força

expressiva da peça dele. Isso foi uma coisa que eu entendi de imediato e retirei, nem penso que ele tenha

chegado a saber.

Para além disso tenho colaborado com outros artistas, nomeadamente com o Gilberto Reis, que é um

artista quase invisível mas que tem um trabalho bastante interessante e que, do ponto de vista

conceptual, ainda interage bastante connosco

Que referências tem, em termos de colaborações entre artistas e arquitectos no panorama

nacional e internacional?

A referência mais contemporânea que tenho e que foi a que mais me interessou conhecer e investigar

durante esse período, foi obviamente a relação entre Herzog & Meuron e o Rémy Zaugg, que terminou

com a morte do Rémy Zaugg, mas que produziu um conjunto de experiências em ambos os campos e

especialmente no campo das colaborações, que me parecem ter feito avançar a arquitectura e a

produção do espaço, tanto por artistas como por arquitectos.

Num plano mais próximo, é o arquitecto Carrilho da Graça, com quem nós temos colaborado muito e que

foi aliás, uma das minhas colaborações mais importantes, no tempo, em quantidade e em qualidade. O

Carrilho da Graça sempre teve essa necessidade de, ou interagir directamente com artistas e tem-no feito

com diversos artistas, ou interagir indirectamente a partir da observação de experiências de determinados

artistas e da sua incorporação como parte da arquitectura.

Eu tenho para mim, que o trabalho dos artistas, funciona um pouco como um laboratório de pesquisa

avançada e de investigação da matéria, porque estão, em relação a todas as artes mais sociais e

políticas, que são a arquitectura e a arquitectura paisagista, menos constrangidos por questões de

regulamentos, programas ou mesmo de encomendas de clientes e portanto, têm uma liberdade um pouco

maior que nós.

Esta interacção e esta observação é uma forma de colaborar indirecta. Um artista que observo muito, por

exemplo, é o Eliasson. Claro que eu nunca o conheci nem nunca interagi com ele, no entanto, investigo

muito o trabalho dele e de outras pessoas e, a partir daí, tento extrair experiências, tento reinventá-las e

reinventar o espaço e a produção do espaço a partir dessa observação. Nós agimos não isoladamente e

esta colaboração indirecta é muito visível em quase toda a produção de espaço e produção de artistas

como a Fernanda Fragateiro.

142

Para fechar a entrevista pergunto-lhe como olha para o futuro deste tipo de trabalho colaborativo?

O tema das colaborações, pessoalmente interessa-me muito porque desde que eu comecei a trabalhar

como arquitecto paisagista, procurei justamente trabalhar em colaboração e isso foi um mote, uma

intenção que explorei até agora e com resultados bastante próprios dessa postura, resultados positivos

mas também negativos. É uma forma de trabalhar que põe questões de fronteira e de limite às vezes

complexas, mas outras vezes ajuda a defini-las e a entende-las. É um ciclo que de alguma maneira se

acaba, que vai fechar agora e que se centra nesta questão da colaboração.

Quando diz que é um ciclo que agora se está a fechar, o que é que isso significa?

Quando eu digo que isto está a terminar, é porque é um tipo de produção que só é possível com fundos

públicos, ou com a articulação de fundos privados que permitam a produção destas peças.

No caso da Expo’98, não houve um programa governamental mas criou-se um fundo, um programa que

de alguma maneira é produzido pelo governo mas num contexto específico, concreto e limitado no tempo.

Vamos lá ver, a colaboração com arquitectos, quando se faz um edifício e se cria um espaço de paisagem

que o envolve ou que o contém, ou ainda, a criação de espaço público através da interacção com artistas

ou com outras visões, tem a ver, com um período da nossa história recente e da nossa economia, em que

há disponibilidade para isso. Essa disponibilidade terminou. Estamos a fechar um ciclo económico e esta

cultura de espaço público, tal como a conhecemos até agora, terminou.

Temos agora de trabalhar de outra maneira, de tentar perceber como é que vamos trabalhar, sendo que

estamos a operar sobre outras coisas, outros problemas. A cidade é hoje uma coisa muito indeterminada

nalguns aspectos e é exactamente essa indeterminação e esse limite, que é preciso entender. Por

exemplo, como é que as paisagens são produtivas, como é que se criam espaços que são também

públicos noutras realidades que não apenas as da cidade mais tradicional ou, de que maneira é que a

infra-estrutura entra na nossa vida e de que maneira se criam grandes espaços públicos que na verdade

são espaços de infra-estrutura. Estes são temas que resultam de um ciclo económico, social e cultural

que se fecha agora, que terminou, não há mais, não há mais dinheiro.

143

ANEXO IV:

ENTREVISTA REALIZADA A JOSÉ VELUDO, A 30-01-2012, NO ATELIER NPK

ARQUITECTOS PAISAGISTAS ASSOCIADOS:

Começo por lhe pedir para enquadrar a NPK e a colaboração com a Fernanda Fragateiro, dentro de

um projecto multidisciplinar e de enorme dimensão como foi o Plano de Pormenor do Cacém.

Antes do Programa Polis do Cacém, houve um estudo de um Plano de Pormenor, feito com o RISCO, que

englobava várias unidades de projecto. Entretanto, a Câmara de Sintra aproveitou o aparecimento da

Polis e lançou o Programa Polis do Cacém e aí foram desenvolvidos vários projectos, um deles, o Parque

Linear, que foi entregue aos NPK. A ideia do trabalho com a Fernanda Fragateiro, acho que já vinha de

trás mas como nós gostamos muito do trabalho dela e nos dávamos muito bem, a coisa seguiu assim, ou

seja, quando o projecto avançou, avançamos com ela.

No Cacém esta é a única intervenção de Fernanda Fragateiro?

Sim, penso que foi.

O projecto do Parque Linear da Ribeira das Jardas supera o espaço público ou o jardim relvado e

arborizado, pela sua complexidade a nível da biodiversidade, presença da ribeira, percursos e

ligação não só à cidade mas entre as duas freguesias que une. De onde surge a necessidade ou

intenção de colocar arte urbana num parque já em si tão completo e diversificado?

Eu acho que é mais uma oportunidade do que uma necessidade. Neste caso, tem muito a ver com a

escala, trata-se de uma escala relativamente generosa para o espaço urbano e um espaço maior do que

aquilo a que nós normalmente chamamos um jardim e por isso lhe chamamos parque. Há neste tipo de

situação, uma oportunidade de diversificar a equipa e no fundo, de ampliar aquilo que são os olhares e as

sensibilidades no tratamento do território. Aliás, a questão da necessidade é uma questão que também

precisa de contexto, quer dizer, há muitos tipos de necessidades. Qual necessidade?

A integração da arte no espaço público urbano teve por detrás, por exemplo, nos primeiros

programas de arte pública que refiro na dissertação, uma procura de identidade e carácter para um

espaço?

Sim, aí já faz sentido e de facto, pareceu-nos ser um caminho ou um melhor caminho, para dar uma

identidade e caracterizar o espaço de modo a que as pessoas se identifiquem com ele.

A escolha da localização da obra dentro do espaço pode advir também, de outro tipo de

necessidades. Como foi feita, neste caso, essa decisão?

O sítio ou o espaço físico para a obra, foi escolhido (…) porque somava várias características, como a

sua centralidade, a forma do espaço, a sua relação com a envolvente e o facto de que neste local, o

desenho viário se sobrepunha muito àquilo que era a lógica geral, ou seja, criar uma maior aproximação

aquilo que era os valores naturais do local e do próprio sistema do rio. Nesse sentido, como isto era uma

coisa que se afastava mais, havia uma maior necessidade de trabalhar para integrar, portanto, quando

este espaço surgiu, achamos que era óptimo, por todas essas razões e por esta necessidade específica.

144

Essa escolha foi realizada em conjunto e de forma consensual com a artista?

Sim, mas há aqui situações que eu estou a descrever com alguma assertividade relativa porque

entretanto já se passaram alguns anos, mas penso que foi assim. Todo o processo criativo foi conjunto

mas também é evidente que mesmo os processos criativos que são conjuntos têm processos criativos

autónomos que depois se casam, se juntam, se encontram e se complementam.

Que informações ou talvez programa foram dadas a Fernanda Fragateiro para a criação da sua

obra?

Eu acho que não houve programa, o programa era: O que vamos fazer aqui e, o que é que se vai passar

aqui? Eu acho que era mais isso. É óbvio que a partir daí há uma adaptação, há um descer ao programa

de um parque no geral e deste em particular. Mas no início não havia um programa definido.

Como foi decidido o carácter da obra, se seria lúdico, de intervenção social, simbólico ou temático

por exemplo?

Houve um falar com a Fernanda, houve um conhecer e experimentar o sítio e a seguir, houve uma

vontade, um conceito e uma decisão tomada pela Fernanda. Da nossa parte, houve uma aceitação das

decisões tomadas e um trabalho conjunto para integrar as ideias da Fernanda.

É muito interessante essa libertação em relação ao programa, que existe por vezes nas

colaborações. Pedia-lhe então que explicasse que dinâmica de trabalho foi adoptada para a

realização desta obra?

Eu acho que só há uma forma de trabalhar quando se trabalha com equipas, que, como diz bem, uma

coisa é: os programas são os programas e ponto final, ou seja, são algo que muitas vezes nos

transcende, que vem de montante e que, no fundo, é importante porque são decisões que extravasão o

nosso contexto e a dimensão em que estamos a trabalhar.

A outra coisa é: a partir do momento em que se trabalha com alguém ou em que existem várias

componentes numa equipa, a ideia é haver o menos programa possível. Eu acho que com a Fernanda

isso aconteceu em pleno. É evidente que se houvesse alguma coisa, naquilo que a Fernanda tivesse

feito, que incomodasse ou que de alguma forma inviabilizasse aquilo que era parte do conceito do parque,

teríamos discutido isso com ela. Isso aconteceu de facto mais tarde, na materialização do projecto e aí

tivemos que em conjunto, encontrar um caminho e afinar decisões.

Concorda com a postura de que essa tensão é essencial e benéfica ao processo colaborativo?

Eu acho que essa tensão é boa mas tem que haver sempre um encontro. Se não há esse encontro,

então, estão as pessoas erradas a trabalhar umas com as outras. Quer dizer, quando esse desencontro

acontece em trabalhos (…), é porque a coisa não está bem ou então, não há empatia na forma de

trabalhar.

145

A arquitectura paisagista é em si uma profissão que requer um constante trabalho interdisciplinar,

normalmente mais direccionado para a arquitectura. O que traz de novo a colaboração com

artistas? Quais os principais benefícios?

Eu acho que é a aprendizagem.

(…)

Por mais que façamos um esforço para não o ser, estamos sempre a ser preconceituosos e o simples

facto de entrarem outras pessoas na equipa, que vêem as coisas de outra maneira, ajuda-nos a

questionar os preconceitos e a experimentar outras coisas.

É de facto, muito importante, nós questionarmos a forma como trabalhamos e sobre esse ponto de vista,

o trabalhar com pessoas com uma visão diferente, como no caso dos artistas plásticos, é uma

possibilidade de questionar as coisas de forma diferente. Podiam ser outros olhares mas é mais fácil

encontrar neste campo das artes, olhares mais diversos que questionem mais as coisas que estão a ser

feitas. Eu acho que a importância esgotasse toda aí.

Depois há uma outra dimensão, já menos importante, que é a dimensão daquilo que se produz, porque

aquilo que eu estava a falar anteriormente era da dimensão do processo.

O processo é mesmo a coisa mais importante, talvez no início, uma pessoa não veja isso com clareza

mas, há medida que os anos vão avançando, eu acho que isso se torna mais claro. O que nos alimenta

mais, o que nos dá aprendizagem, aquilo que nos apaixona, aquilo que nos dá vida é sempre o processo

e não tanto, o resultado.

É óbvio que a determinada altura, quando esse casamento de sensibilidade é bom, achamos que aquilo

que é produzido é qualquer coisa de ordem superior. É mais bonito, é mais perfeito, é mais equilibrado,

não é? Mas se a primeira parte do processo não tiver corrido bem, também olhamos para o resultado e

achamos que aquilo não nos transmite equilíbrio nenhum.

Neste caso específico, aconteceu essa aprendizagem?

Sim, eu acho que sim. Neste caso, não acho importante identificar ou sintetizar o que foi mais marcante,

mas de forma geral e até mais óbvia, acho que a aprendizagem é uma pessoa sentir-se satisfeita com

aquilo que aconteceu. De alguma forma, podemos dizer que isto nunca teria sido assim se a Fernanda

não tivesse trabalhado connosco, portanto, houve qualquer coisa de diferente e ela há-de dizer a mesma

coisa.

Voltando agora ao Jardim nas Margens no Parque Linear, como é que a artista apresentou a sua

ideia e daí se partiu para a materialização?

Já lá foi?

Sim várias vezes.

Este projecto tem muito a ver com o género de preocupações da Fernanda Fragateiro e como pôde então

ver, foi um processo com algumas semelhanças ao outro que referiu, o Jardim das Ondas. Para o Jardim

nas Margens, a Fernanda fez uma maqueta muito bonita mas que foi um problema e digo isto somente

em relação à modelação do terreno, que nem sempre é uma coisa simples. Nessa materialização, teve de

haver um importante trabalho de ajuste entre aquilo que foi o impulso da Fernanda e aquilo que nós

achávamos que era viável. Tudo isto foi muito falado e muito trabalhado entre nós, NPK, e a artista.

146

Há uma coisa nesta fase, que acho que é importante dizer-lhe: É que, à partida, um artista plástico é

aquele que leva até ao fim a realização da sua obra, isto para dizer, que a determinada altura nestes

processos, a materialização escapa às nossas mãos. Isso é um problema, porque na materialização,

tudo, incluído o mais pequeno pormenor é importante para o processo mas nem sempre é possível

controlar todas as coisas que acontecem em obra.

Também aconteceram acidentes destes nesta obra, ou seja, a determinada altura, aquilo que se tinha na

cabeça, na da Fernanda e na nossa, não se conseguiu materializar por que causa desta perda de

controlo devido há quantidade de entidades que são postas no processo: donos de obra, fiscalizações,

empreiteiros, há muitos processos burocráticos e jurídicos que a determinada altura não se controlam.

Acho que isso é uma coisa que não faz muito sentido em muitas materializações. Basta que haja uma

falha no caderno de encargos, algo que a fiscalização não vê ou um prazo que entretanto é apertado,

para que a materialização tenha problemas que não são controlados e se para nós, isso já é difícil e a

coisa diluísse mais, por parte dos artistas plásticos, isto torna-se ainda mais grave. Por exemplo, quando

a Fernanda fez aquela girafa que está no Jardim das Águas, foi ela que a realizou e trabalhou com os

artesãos que fizeram aquilo, e isso, neste tipo de projecto é impensável.

Neste caso, a artista manteve-se também ao longo desse processo ou distanciou-se dessas

questões técnicas?

Esteve muito presente, até porque, sempre que havia questões de alterações ou de nós percebermos que

nesse processo algo ia contra algo que estava conversado com a Fernanda, a Fernanda era chamada.

Já referiu que foi dada muita liberdade à artista para questões relacionadas com a forma, o tema e

as características gerais da obra, pergunto-lhe agora sobre a responsabilidade e capacidade de

tomar decisões mais técnicas e sobre essa pressão que refere como inerente à materialização de

um projecto?

A maior parte das coisas que se passa na vida são batalhas: “eu quero, posso e mando” existe em

poucas situações e há que tentar encontrar a maneira mais viável e compatível para a situação que se

apresenta. Mas no sentido de poder dar capacidade de decisão à Fernanda, isso sim. À vontade!

Isso é uma questão do mundo em que se vive. Nós arquitectos, hoje em dia, queixamo-nos exactamente

do mesmo, queixamo-nos também que o processo nos está a ser retirado das mãos. É exactamente a

mesma coisa.

A tendência é para a especificidade disciplinar, que culmina na não-aceitação de que há uma visão mais

global acerca de um processo. (…) Até mesmo no Cacém, a determinada altura, senti que era uma pena

que a materialização não pudesse ter sido ainda mais acompanhada, por nós e pela Fernanda. Nós

andámos sempre em cima, estávamos lá permanentemente, mas mesmo assim, senti falta de uma

interacção maior no processo de materialização, e eu acho que a Fernanda também sentiu.

Que relevância teve o tema da apropriação do espaço no processo colaborativo ou de trabalho?

A apropriação do espaço por parte das pessoas foi muito discutida até porque, como arquitecto paisagista

essa é uma das minhas principais preocupações já que influência muito a forma como este é mantido ao

longo do tempo. Foi muito importante pormo-nos todos ao mesmo nível para discutir questões como: Para

que é que isto servia? Para quem era? Como ia ser utilizado? Todas elas foram amplamente discutidas

com a Fernanda.

147

Olhando agora com uma certa distância temporal, como vê este projecto e a presença da obra

como parte integrante do mesmo?

Acho que resultou bem, estou satisfeito.

Sabe que há aqui uma coisa que, penso eu, é uma das maiores diferenças entre as pessoas que

trabalham só na arquitectura para as pessoas que trabalham só na arquitectura paisagística, ou seja, há

uma temporalidade que nos projectos de arquitectura paisagística é mais alongado que nos de

arquitectura. Eu só considero que uma coisa resulta bem ao fim de cerca de dez anos. No ano em que o

projecto é feito, resulta sempre, não há razão para não resultar; agora, o que é que vai ser aquele espaço

daqui a dez anos é uma coisa que eu tenho muita curiosidade. Para este projecto, no fim deste ano, já

começo a achar que a coisa funciona muito bem, mas mantenho a curiosidade para saber como é que o

espaço vai evoluir em dez anos. Um sinal de que funciona muito bem, é o facto de o espaço ter sido muito

pouco vandalizado, aliás, este espaço já foi vandalizado (…). O Parque Linear da Ribeira das Jardas foi

um processo muito disciplinar, não nos podemos queixar da falta de disciplinaridade neste processo.

Correu muito bem!

Já tinham colaborado anteriormente com artistas?

Poucas vezes ou raramente se concretiza, no nosso caso raramente se concretiza, eu acho que é mais

por uma questão financeira. Acho que é essa a grande questão.

Houve uma situação de colaboração com o Fernando Brízio, que tem formação em design, mas que não

deu num projecto. (…)

Que referências tem em termos de colaborações ou mesmo de artistas aos quais recorra como

inspiração?

É evidente que tenho referências, mas não olho para a arte como inspiração, como referência, nem

recorro a esse meio para resolver projectos específicos. Acho que a arte é uma coisa vasta e aberta e,

acho acima de tudo, que é um processo.

Há um romantismo em relação à arte e aos artistas, da parte das pessoas que não o são. Eu, como

qualquer outro, nesta perspectiva tenho muita vontade de trabalhar com artistas.

De uma forma mais pragmática, o artista plástico é alguém que olha para as situações com mais

liberdade porque não há um programa funcional normalmente dedicado à arte ou o programa funcional é

pelo menos, mais diminuto e isso é uma vantagem em determinada altura porque também nos ajuda de

alguma forma a justificar muita coisa. É verdade! Ajuda-nos a legitimar determinados caminhos que não

são tão materializáveis, nem tão funcionais.

Como prevê o futuro das colaborações entre artistas e arquitectos?

Agora as coisas estão complicadas, não sei se eram demasiado diferentes noutras alturas mas isto é o

que nós vivemos. Vou-lhe dar um exemplo, quando entramos num concurso para uma coisa qualquer,

aquilo que se passa é que, muitas vezes, quando se trabalha com artistas plásticos não se sabe o que vai

acontecer e portanto, não se consegue nem definir, nem materializar, nem custear essa parte do projecto.

Mais tarde, já no meio do processo, as coisas já estão fechadas em termos contratuais e aí fechasse a

porta e os artistas já não conseguem trabalhar.

No nosso caso, a colaboração com artistas, poucas vezes ou raramente se concretiza e eu acho, que é

mais por uma questão financeira. Acho que é essa a grande questão. Hoje em dia, ou há um programa de

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arte pública que obriga a isso, ou então é muito difícil. No fundo, a parte mais interessante, que é a de,

sensibilidades diferentes poderem participar num processo comum, é o que faz mais falta. Isto é o que faz

mais sentido.

Para mim, e repito o que já disse, temos que estar sempre a pôr em causa os nossos preconceitos e a

nossa forma de trabalhar. As outras visões, nomeadamente, visões que estejam menos formatadas ou

que estejam preparadas para constantemente sair dessa formatação, como é o caso dos artistas, é

sempre uma boa parceria.

Por fim, o que considera que sejam os pontos chaves para que uma colaboração seja bem-

sucedida? Existe a seu ver uma fórmula?

Sim, para mim há uma fórmula muito simples, que é: acreditar. Tem que ir buscar alguém em quem se

acredite e não pode ser alguém em que a postura é: vamos lá ver o que este vai fazer e depois se eu não

gostar controlo ou faço diferente. Não dá para trabalhar de outra maneira em parceria, uma pessoa tem

que acreditar em quem envolve, e isso é válido, não só em relação aos arquitectos e artistas plásticos,

mas também entre arquitectos, arquitectos paisagistas, engenheiros e por aí fora. O acreditar, é aceitar

algo que vai para além dos nossos caprichos, é acreditar no trabalho que a outra pessoa faz. Se não

acredita no trabalho que a outra pessoa faz então tem que ir trabalhar com outra pessoa.

Acho que isso é uma boa dica!