armance - stendhal

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Impressionada com as singularidades que observava em Oc- tave, temia que uma doença do peito o atingisse. Mas ela pensava que se tivesse a infelicidade de bem adivinhar, nomear essa doença seria apressar sua evolução. Médicos e pessoas de espírito disseram à senhora Malivert que seu filho não tinha outra doença senão aquela espécie de tristeza descontente e crítica que caracteriza os jovens de sua época e de seu meio; mas a advertiram de que ela mesma deveria se ocupar de seus pulmões. Essa notícia fatal foi divulgada na casa por meio de um re- gime ao qual era preciso se submeter, e o senhor de Malivert, de quem se desejou em vão esconder o nome da doença, entreviu para a sua velhice a possibilidade do isolamento. Muito irresponsável e muito rico antes da revolução, o marquês de Malivert, que revira a França apenas em 1814, seguindo o rei, encontrava-se reduzido pelos confiscos a vinte ou trinta mil libras de renda. Ele se considerava na miséria. A única ocupação dessa cabeça que jamais fora muito inteligente era agora casar Octave. Mas ainda mais fiel à honra do que à idéia fixa que o atormentava, o velho marquês de Malivert jamais deixava de começar pelos termos seguintes as declarações que fazia na sociedade: “Posso oferecer um belo nome, uma genealogia garantida desde a cruzada de Luís, o Jovem, e não conheço em Paris senão treze famílias que podem andar com a cabeça erguida nesse aspecto; mas, quanto ao resto, estou reduzido à miséria, à esmola, sou um indigente. Essa maneira de ver em um homem idoso não é feita para produzir aquela resignação doce e filosófica que faz a alegria da velhice; e sem as extravagâncias do comendador de Soubirane, meridional, um pouco louco e bastante maldoso, a casa onde vivia Octave ter-se-ia distinguido por sua tristeza, até Stendhal A rmance Tradução e prefácio de Leila Aguiar Costa

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Armance é, cronologicamente, o primeiro dos grandes romances de Stendhal. Quando comparado a obras-primas como O vermelho e o negro e A cartuxa de Parma, porém, este romance de 1827 é considerado ambíguo — e isso por uma razão muito simples: toda a trama é articulada ao redor de um segredo sobre a vida do protagonista que nunca é revelado, o que tornaria obscuras as motivações deste livro sobre o amor idealizado e a renúncia ao casamento. A chave para se entender a trama estaria numa carta de Stendhal a Mérimée (publicada na presente edição), na qual ele explicita o motivo que impede a consumação do amor entre o visconde Octave de Malivert e sua prima, Armance de Zohiloff: seu herói sofre de babilanismo, ou seja, impotência sexual. De fato, um romance diante do qual o leitor depende de informações extraliterárias para captar o sentido da narrativa poderia ser considerado imperfeito.

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Page 1: Armance - Stendhal

Impressionada com as singularidades que observava em Oc-

tave, temia que uma doença do peito o atingisse. Mas ela

pensava que se tivesse a infelicidade de bem adivinhar, nomear

essa doença seria apressar sua evolução. Médicos e pessoas de

espírito disseram à senhora Malivert que seu filho não tinha

outra doença senão aquela espécie de tristeza descontente e crítica

que caracteriza os jovens de sua época e de seu meio; mas a

advertiram de que ela mesma deveria se ocupar de seus pulmões.

Essa notícia fatal foi divulgada na casa por meio de um re-

gime ao qual era preciso se submeter, e o senhor de Malivert, de

quem se desejou em vão esconder o nome da doença, entreviu

para a sua velhice a possibilidade do isolamento.

Muito irresponsável e muito rico antes da revolução, o marquês

de Malivert, que revira a França apenas em 1814, seguindo o

rei, encontrava-se reduzido pelos confiscos a vinte ou trinta mil

libras de renda. Ele se considerava na miséria. A única

ocupação dessa cabeça que jamais fora muito inteligente era

agora casar Octave. Mas ainda mais fiel à honra do que à

idéia fixa que o atormentava, o velho marquês de Malivert

jamais deixava de começar pelos termos seguintes as declarações

que fazia na sociedade: “Posso oferecer um belo nome, uma

genealogia garantida desde a cruzada de Luís, o Jovem, e

não conheço em Paris senão treze famílias que podem andar

com a cabeça erguida nesse aspecto; mas, quanto ao resto, estou

reduzido à miséria, à esmola, sou um indigente.”

Essa maneira de ver em um homem idoso não é feita para

produzir aquela resignação doce e filosófica que faz a alegria

da velhice; e sem as extravagâncias do comendador de

Soubirane, meridional, um pouco louco e bastante maldoso, a

casa onde vivia Octave ter-se-ia distinguido por sua tristeza, até

Armance é, cronologicamente, o primeiro

dos grandes romances de Stendhal. Quando

comparado a obras-primas como O vermelho

e o negro e A cartuxa de Parma, porém,

este romance de 1827 é considerado ambíguo

— e isso por uma razão muito simples: toda

a trama é articulada ao redor de um segre-

do sobre a vida do protagonista que nunca

é revelado, o que tornaria obscuras as moti-

vações deste livro sobre o amor idealizado

e a renúncia ao casamento. A chave para se

entender a trama estaria numa carta de

Stendhal a Mérimée (publicada na presente

edição), na qual ele explicita o motivo que

impede a consumação do amor entre o viscon-

de Octave de Malivert e sua prima, Armance

de Zohiloff: seu herói sofre de babilanismo,

ou seja, impotência sexual.

De fato, um romance diante do qual o lei-

tor depende de informações extraliterárias

para captar o sentido da narrativa poderia

ser considerado imperfeito. Mas isso só é

verdade se confundirmos a intenção inicial

de Henri Beyle (verdadeiro nome do escri-

tor) com a realização de Stendhal (nome

pelo qual ficou conhecido).

A julgar pelo tom lúbrico que permeava

sua correspondência com Mérimée, ele que-

ria escrever um romance que satirizasse o

ideal do amor romântico. O resultado, porém,

é bem diferente: como a suposta anomalia

permanece oculta, toda a torturante aproxi-

mação dos dois amantes se dá sob o signo

do desafio a preconceitos sociais, políticos

e econômicos.

Stendhal faz da misantropia de Octave e

da integridade de Armance a metonímia de um

ardor passional que sobrevive a uma socie-

dade de nobres decadentes e banqueiros, um

mundo regido por contratos matrimoniais, em

que o casamento poderia pacificar o tumulto

do coração. Nesse sentido, Armance é um

livro que mergulha como nenhum outro nas

sutilezas do jogo amoroso, antecipando aque-

le culto à energia individual que, em seus

romances posteriores, Stendhal irá contrapor

ao desencantamento do mundo burguês.

Manuel da Costa Pinto

Stendhal nasceu

na França em

1783. Acompa-

nhou o exército

napoleônico em

suas investidas à Itália, Áustria e Rússia.

Após obras ensaísticas, entre as quais

o relato de viagem Roma, Nápoles e

Florença, em 1827 publica seu primeiro

romance, Armance. Suas obras de ficção

mais conhecidas são O vermelho e o

negro (1830) e A cartuxa de Parma (1839).

A complexidade psicológica de seus per-

sonagens e suas análises sociais influen-

ciam toda a literatura francesa posterior.

O estilo de Stendhal, ao invés do excesso

de ornamentos que caracterizava o ro-

mantismo, predominante na época, valo-

riza o perfil psicológico dos personagens,

a interpretação de seus atos, sentimentos

e paixões.

StendhalOctave fugiu do salão da senhora de Bonnivet, o

mundo causava-lhe horror; deixou a carruagem dafamília para seu tio e voltou a pé para casa. Choviatorrencialmente e a chuva dava-lhe prazer. Logo, nãomais notou a espécie de tempestade que inundava Parisnaquele momento.

mesmo no faubourg Saint-Germain. A senhora de Malivert,

que nada desviava de suas inquietações quanto à saúde do

filho, nem mesmo seus próprios perigos, aproveitou-se do estado

lânguido em que se encontrava para receber, como de hábito,

dois célebres médicos. Ela desejava torná-los seus amigos. Como

esses senhores eram, um, o chefe, e o outro, um dos mais

fervorosos promotores de duas seitas rivais, suas discussões,

embora sobre um assunto demasiado triste para aqueles que

não são movidos pelo interesse da ciência e do problema a re-

solver, às vezes divertiam a senhora de Malivert, que conservara

um espírito vivo e curioso. Ela os incentivava a falar e, graças

a eles, ao menos de tempos em tempos alguém elevava a voz

na sala tão nobremente decorada, mas tão sombria, do palacete

Malivert. Tapeçarias de veludo verde, ornadas de elementos

dourados, pareciam feitas de propósito para absorver toda a

luz trazida por duas imensas janelas providas não de vitrais,

mas de vidro. Essas janelas davam para um jardim solitário,

dividido em compartimentos bizarros por orlas de buxos. Uma

alameda de tílias podadas regularmente três vezes ao ano

ocupava o fundo, e suas formas imóveis pareciam uma imagem

viva da vida moral daquela família. O quarto do jovem

visconde, situado acima da sala e sacrificado à beleza daquele

cômodo essencial, mal tinha a altura de um meio pavimento.

Inclui carta de Stendhal a Mérimée

Stendhal

Armance

Tradução e prefácio deLeila Aguiar Costa

ISBN 85-7448-085-1

Arm

ance

capa.p65 8/12/2003, 19:571

Page 2: Armance - Stendhal
Page 3: Armance - Stendhal

ArmAnceou AlgumAs cenAs de um sAlão pArisiense em 1827

Stendhal

Tradução e apresentação

Leila de Aguiar Costa

Estação Liberdade

Page 4: Armance - Stendhal

Título original: Armance

© 2003 Editora Estação Liberdade Ltda., para esta tradução

Preparação e revisão Fernando Santos e Manuel da Costa Pinto

Composição Wildiney Di Masi / Estação Liberdade

Capa Edilberto Fernando Verza e Pedro Barros

Ilustração da capa Gustave Caillebotte: Rue de Paris, jour de pluie, 1877 (detalhe). Óleo s/ tela, The Art Institute of Chicago.

Direitos desta edição reservados à

Editora Estação Liberdade Ltda.Rua Dona Elisa, 116 • 01155-030 • São Paulo SP

Tel.: (11) 3661 2881 • Fax: (11) 3825 4239e-mail: [email protected]

http://www.estacaoliberdade.com.br

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

S85a

Stendhal, 1783-1842 Armance, ou, Algumas cenas de um salão parisiense em 1827 / Stendhal ; tradução Leila de Aguiar Costa. – São Paulo : Estação Liberdade, 2003. 288p. Tradução de: Armance ISBN 85-7448-085-1 1. Romance francês. I. Costa, Leila de Aguiar, 1961-. II. Título.

03-2554. CDD 843 CDU 821.133.1-3

Page 5: Armance - Stendhal

sumário

9 Que romAnce é este?! Apresentação de Leila de Aguiar Costa

19 ArmAnce ou AlgumAs cenAs de um sAlão pArisiense em 1827

21 prefácio

25 cApítulo um

39 cApítulo dois

49 cApítulo três

57 cApítulo QuAtro

65 cApítulo cinco

79 cApítulo seis

89 cApítulo sete

99 cApítulo oito

105 cApítulo nove

113 cApítulo dez

117 cApítulo onze

123 cApítulo doze

131 cApítulo treze

139 cApítulo QuAtorze

149 cApítulo Quinze

Page 6: Armance - Stendhal

155 cApítulo dezesseis

161 cApítulo dezessete

169 cApítulo dezoito

177 cApítulo dezenove

183 cApítulo vinte

189 cApítulo vinte e um

199 cApítulo vinte e dois

205 cApítulo vinte e três

215 cApítulo vinte e QuAtro

225 cApítulo vinte e cinco

237 cApítulo vinte e seis

241 cApítulo vinte e sete

247 cApítulo vinte e oito

255 cApítulo vinte e nove

269 cApítulo trintA

277 cApítulo trintA e um

283 Apêndice

Carta de Stendhal a Mérimée

Page 7: Armance - Stendhal

9

ArmAnce

Que romAnce é este?!

Curiosa carreira, essa de Stendhal, que nem mesmo

Stendhal civilmente se chamava, mas Henri Beyle. Quando

publica Armance em 1827, Stendhal pode ser conside rado

um neófito em matéria literária: trata-se de seu primei-

ro romance. Contudo, embora não houvesse até então

expe rimen tado o gênero romanesco, é bem verdade que

Stendhal-Beyle já se fazia presente no mundo das letras

com dezenove textos, dos quais sete publicados: neles

exercitava-se em alguns assuntos de sua predileção como,

por exemplo, a música (Vida de Haydn, Vida de Mozart,

Vida de Rossini), a pintura (História da pintura na Itália),

o tea tro (Racine e Shakespeare) e suas experiências em

terras italianas (Roma, Nápoles e Florença). Há, ainda, Do

amor, que ele reputa um exercício de “descrição exata e

científica de uma espécie de loucura”, a explicação sim-

ples, arrazoada e matemática do que se chama “paixão do

amor”. Não se trata entretanto de um romance e, sobretudo,

Stendhal não o considera “divertido como um romance”,

cuja matéria primeira é sempre, segundo sua perspectiva

literária, o amor. Faltava, pois, aventurar-se na descrição

ficcional dos movimentos amorosos que a alguns acometem:

Apresentação de Leila de Aguiar Costa *

* Pós-doutoranda no Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas.

Page 8: Armance - Stendhal

10

ApresentAção

Armance é, para muitos críticos e historiadores literários,

justamente a aplicação romanesca desse tratado que se

quer quase científico, escrito cinco anos antes.

Curioso Stendhal, que julgava fundamental ter mais de

quarenta anos para escrever um romance, talvez porque

antes disso, como confessara no prefácio de Do amor,

fosse “bastante pouco experimentado em coisas literárias”.

Ou ainda, o que em muito condiz com seu percurso pes-

soal, porque não se pode considerar romancista aquele

que não tenha vivenciado os tormentos e contentamentos

propiciados pelo amor. É então aos 43 anos, em apenas

31 dias do ano de 1827, que Stendhal compõe Armance

— rapidez que pode surpreender, mas que é típica desse

autor, cujo último romance, A cartuxa de Parma, publi-

cado três antes de sua morte (1842), foi escrito em pouco

mais de cinqüenta dias.

A gênese desse primeiro romance é saborosa, ativada

que foi por uma artimanha ou mesmo impostura literária

a envolver dois escritores e da qual igualmente participará

Stendhal. Em 1825, a duquesa de Duras, aristocrata com

veleidades literárias, amante de Chateaubriand, narra para

amigos, em seu salão, a picante desventura de Olivier, que

sabe muito bem falar de amor, mas que não ousa prati-

cá-lo: apaixonado por Louise, ele não pode efetivamente

amá-la, pois “há seres dos quais nos sentimos sepa rados

como por um muro de cristal: vemo-nos, falamo-nos,

aproximamo-nos, mas não podemos nos tocar”. A breve

narrativa da duquesa alimenta a imaginação de seus ou-

vintes e logo correm sobre Olivier rumores dando conta

de sua pretensa impotência sexual. História escabrosa para

a época — publicada por isso mesmo apenas um século

Page 9: Armance - Stendhal

11

ApresentAção

mais tarde —, da qual se aproveitará no final do mesmo

ano Henri de Latouche, escritor conhecido e que não mor-

ria de amores por duquesas: ele escreve um Olivier cujo

segredo é o mesmo da personagem de Duras. Publicado

anonimamente, os jornais divertem-se com o pequeno

jogo de Latouche, sobretudo porque seu texto em muito

se assemelha a outros dois de Duras — Ourika, de 1824,

e Edouard, de 1825. O Olivier de Latouche é então atri-

buído à duquesa, e o embuste torna-se um acontecimento

no mundo das letras. Em janeiro de 1826, nas páginas

literárias do New Monthly Magazine, Stendhal reforça a

mistificação e escreve um artigo sobre o “novo romance

da duquesa de Duras”, cuja seriedade, estima, suplantaria

qualquer ausência de decoro. Mas não pára aí: resolve, ele

também, contar uma história semelhante, cuja persona-

gem principal deveria igualmente se chamar Olivier. Mas

Olivier, a pedido de um de seus mais próximos amigos,

Prosper Mérimée, torna-se Octave, o romance intitula-se

Armance, a voz narradora não explica o célebre segredo

e o texto fracassa. Poucos são os leitores, não mais de

cem, que reconhecem o valor de um autor que por muito

tempo permanecerá incompreendido. O próprio Stendhal

confessa, em diversos de seus escritos — literários ou

“ideológicos”, para empregar seu termo —, que escreve

para um público leitor restrito, uns poucos eleitos, aqueles

a quem chama, emprestando uma célebre tirada teatral

de Shakespeare, os happy few. Armance parece inaugurar

esse estigma, que de desconfor tável passa a ser bastante

apropriado: é graças a ele que espe cialistas em literatura

francesa do século xix, ou stendhalianos em particular,

dedicam-se à redescoberta e recuperação de um autor que,

Page 10: Armance - Stendhal

12

ApresentAção

quase ignorado por seus pares oitocentistas, precisou de

quase dois séculos para ser considerado um dos grandes

pilares da ficção moderna.

Qual então o segredo de Armance e de Octave de Mali-

vert? Esse romance a que se atribuíram epítetos como “mis-

terioso”, “enigmático”, “estranho”, “difícil”, é um pequeno

diamante de composição literária que será depurado ao

longo de uma carreira que produziu peças fundamentais

para a compreensão do fazer ficcional: haverá leitor con-

temporâneo que não tenha percorrido sequer uma página

de O vermelho e o negro, das Crônicas italianas e da

Cartuxa de Parma? Armance, pois. Que André Gide, um

dos pio neiros no resgate literário de Stendhal, lera com

“deslum bramento”, considerando-o o “mais delicado e o

mais graciosamente escrito” dos romances stendhalianos.

Era precisamente o objetivo de Stendhal trabalhar um estilo

cujos “modos de falar ingênuos” se afastassem da “ênfase

germânica e romântica” tão em voga nesse princípio de

século. Armance é, assim, a estréia do tão característico

estilo seco de Stendhal, que se queria natural, próximo

da linguagem oral em razão de suas frases curtas que

Baudelaire reputará incisivas e penetrantes; um estilo “de

tal modo original em sua incorreção e em sua aparente

despreocupação que permaneceu típico”, como quer

Émile Zola, um dos poucos admiradores oitocen tistas de

Stendhal. A que assunto então ele reserva esse estilo? À

história infeliz de Octave de Malivert e de Armance de

Zohiloff passada nos aristocráticos e preconcei tuosos

salões parisienses do início do século xix. História infeliz

sobre a qual pairou durante muitos anos e durante quase

um século um pesado interdito.

Page 11: Armance - Stendhal

13

ApresentAção

Por que infeliz? Qual o mistério a rondar a vida e as ações

do protagonista masculino? Pois que há um segredo, nunca

revelado, mas constantemente referido, a impor obstáculos

intransponíveis ao livre curso da paixão entre Octave e Ar-

mance. Leitores absolutos que somos, auxilia dos pela carta

de Stendhal a Mérimée cujo tom malicioso e quase vulgar

destoa da delicadeza estilística do romance, sabemos que

Octave é Olivier, um pobre amante impotente, um babilano

— termo que empresta do setecentista Giovanni Giacomo

Casanova. “Que assunto esse!...”, exclama o próprio Stendhal

em seu prefácio. Assunto tabu? Nem tanto, se se pensar que

Stendhal e “cinco belíssimos jovens de vinte e cinco a trinta

anos”, reunidos no estado-maior de um general francês,

ousaram confessar seus fiascos “na primeira vez com suas

mais célebres amantes” — não por acaso um dos capítulos

de Do amor se intitula “Sobre os fiascos”.

História, pois, de um babilano que se apaixona gradual

e perdidamente, e sem se dar conta, por sua prima pobre

Armance. Mas, como Stendhal já afirmara em Do amor, “o

prazer físico [...] situa-se em plano inferior aos olhos das

almas ternas e apaixonadas”, pouco importando então

o babilanismo. Incapaz de usufruir do amor físico, Oc-

tave expe rimentará um amor superior, irrepreensível: o

amor-paixão. Ele e Armance servem, assim, a um tempo

à descrição do nascimento do amor verdadeiro e à crítica

dos preconceitos que ele desperta: Armance seria, na ver-

dade, menos a história de um herói fisicamente impotente

do que a pintura da sociedade aristocrática parisiense à

época da Restauração.

Octave é a primeira das grandes personagens romanes-

cas de Stendhal, cujos traços morais alcançarão a perfeição

Page 12: Armance - Stendhal

14

ApresentAção

com Julien Sorel (O vermelho e o negro), Fabrice del Dongo

(Cartuxa de Parma) e Lucien Leuwen (Lucien Leuwen).

De família da alta nobreza, de passado notável — seus

ancestrais estiveram nas Cruzadas —, de endereço ilustre

— seu palacete localiza-se na rua Saint-Dominique, um dos

santuá rios da aristocracia —, de freqüentações eminentes

— sedia das no elegante faubourg Saint-Germain —, o

visconde de Malivert é jovem de “muito espírito”, “esta-

tura elevada”, “modos nobres”, “dos mais belos grandes

olhos do mundo”. É igualmente filho afetuoso — alguns

estudiosos de Armance chegam mesmo a reconhecer uma

patologia duvidosa no apego de Octave à mãe, a bela e

desprovida de afetação senhora de Malivert. E, o que mais

importa, afasta-se do comum dos homens, que o detestam,

em razão das singularidades de seu temperamento. Aquele

que se diz um monstro a guardar um segredo terrível e

fatal é, contudo, criatura de nobre caráter, o “dever en-

carnado”, não hesitando em segui-lo escrupulosamente e

dele aceitando todas as conseqüências, mesmo as mais

terríveis. Talvez por isso mesmo Octave seja melancólico,

taciturno, dado a rompantes de fúria que o fazem discutir

com soldados, agredir um jovem serviçal e duelar até o

último disparo de pistola, já se esvaindo em sangue, com

um marquês a quem ofendera com suas impertinências e

a quem acabara de ferir mortalmente. Esse matiz sombrio

que impele Octave ao contato físico pela vio lência faz com

que estudiosos de Armance arrisquem a hipótese de um

repúdio homossexual pelo sexo feminino. Estranho Oc-

tave, estrangeiro em seu próprio meio social que, inapto

a conhecê-lo, julga-o misan tropo; extraordinário Octave

que, ao se esquecer um momento da racionalidade — sua

busca incessante é a do conhecimen to de si pela razão —

Page 13: Armance - Stendhal

15

ApresentAção

para se entregar à paixão amorosa, deixa-se vitimar por

personagens invejosas, vindicativas, astutas.

Há somente uma criatura que pode verdadeiramente

amá-lo e compreendê-lo: sua prima Armance, jovem de

18 anos, nascida em terras russas. Sua “educação estran-

geira” faz dela um “caráter singular”, concede-lhe um

“perspicaz espírito”, dota-a de uma “serenidade perfeita”

e de uma “honestidade impassível”. Estrangeira Armance,

que repudia, censurando-os, os artificialismos ridículos e

as futilidades da sociedade francesa; excêntrica Armance,

cuja conduta é balizada por seus sentimentos e não pelos

imperativos do social; estranha Armance, cujo “sangue

eslavo”, cuja “beleza russa” — “pura beleza circassiana”

—, cujo não sei quê de “asiático nos traços” a tornam

incompreensível aos olhos comuns; exótica Armance,

cujos “grandes olhos azul-escuros”, cujo “olhar fixo e pro-

fundo”, olhar da “atenção extrema”, são imagem de seu

temperamento e caráter. Não por acaso Octave a julga o

“único ser estimável” a freqüentar os salões aristocráticos

parisien ses. Armance é como um espelho de Octave: se

a socie dade é apenas motivo de estranhamento para Octa-

ve, em Armance ele se mira, se descobre e se reconhece.

É pelo olhar de ambos que o leitor visualizará “algumas

cenas de um salão parisiense em 1827”, com as virtudes e

nobreza de uns poucos e os vícios e vileza de muitos. Ao

redor de Octave e Armance gravitam duquesas desmio ladas,

condessas maledicentes, marquesas falsamente devotas,

marqueses revanchistas, cavaleiros de fé jesuítica pouco

con fiáveis, comendadores cúpidos... Todas criaturas hostis

a esses dois seres de exceção — como o são aliás todos

os protagonistas stendhalianos —, cujo amor-paixão será

vítima de uma opinião pública que decreta inaceitável a

Page 14: Armance - Stendhal

16

ApresentAção

união entre o célebre e abastado nome de Malivert e o

obscuro e desafortunado nome de Zohiloff.

Entretanto, em meio às dificuldades e aos obstáculos

exteriores e, por vezes, interiores — Octave e Armance

são igualmente obcecados por uma ética do dever e da

honestidade —, há agradáveis e suaves sensações. Tam-

bém aqui Armance revela o Stendhal pleno de filigranas,

leitor delicado do coração humano. Não surpreende,

pois, que em diversas páginas ele relate uma simples mas

intensa troca de olhares entre Octave e Armance — “po-

de-se tudo dizer com um olhar”, afirma Stendhal em Do

amor, pois que o olhar é mais revelador de um afeto do

que a linguagem oral, em geral artificiosa e tiranizante.

Que em outras tantas descreva a comunicação silenciosa

entre os protagonistas, que dissimulam bilhetes na caixa

de proteção de uma laranjeira — e a laranjeira, que se

fará fundamental na Cartuxa de Parma, é paradigma da

simbologia stendhaliana que sempre a associa à paixão

amorosa e à esperança de felicidade. Que em outras, ainda,

exponha os pequenos deleites de um passeio noturno aos

“bonitos bosques de castanheiros” de Andilly, suavemente

balouçados por uma “doce brisa”, sob a “luz tranqüila de

uma bela lua de verão”, “lua resplandecente” a oferecer

“aspectos encantatórios” ao casual encontro de Octave

e Armance em plena natureza. Em todas estas páginas,

enfim, Stendhal narra breves momentos do “amor mais

feliz”, desse amor que “faz esquecer tudo o que não é

divino como ele”, amor matizado de sutil sensualidade à

vista de “um corpo delicado” dissimulado sob “um simples

vestido matinal”, de uma “pequena cruz de diamantes” ao

pescoço, de um “belo braço [...] coberto por uma gaze

Page 15: Armance - Stendhal

17

ApresentAção

leve”, amor que faz o Eu sair de si e viver “mais em alguns

instantes do que durante longos períodos”.

Armance é inegavelmente o primeiro grande texto lite-

rário de Stendhal. Aqui ele já se experimenta no registro

das análises psicológicas que dele farão um requintado

“observador das profundezas do coração humano”. Uma

simples olhadela e descobre-se que a composição roma-

nesca de Armance é exemplar desse jogo de auscultação

dos bati mentos passionais de homens e mulheres: dos 31

capítulos, mais da metade analisa o nascimento do amor.

Stendhal, de página em página, de capítulo em capítulo,

pacientemente esculpe Octave e Armance e as outras

cria turas da intriga — alguns teóricos franceses costumam

afirmar que suas personagens se constroem sob os olhos

do leitor, contrariamente àquelas, por exemplo, de um

Honoré de Balzac, cujos traços fundamentais são apre-

sentados logo às primeiras páginas. Quase nada acontece

nesses capítulos iniciais, pois que se trata unicamente de

compreender e dar a compreender as motivações de uns

e de outros. Quando a caracterologia está enfim monta-

da, Stendhal introduz um acontecimento que fará tudo

oscilar: “Você está apaixonado pela bela prima”, diz uma

das personagens a Octave. A partir dessa revelação,

multiplicam-se os episódios, a ação corre rapidamente

e o romance caminha para o seu desfecho. A segunda

parte do romance é, assim, plena de animação. Armance

permite descobrir um Stendhal teatral que sabe igualmente

manejar o ritmo dramático, fazendo de seu texto quase

uma peça trágica, na passagem que expõe: o trajeto da

felicidade ao infortúnio, da vida à morte (em vida). Ines-

perada cenografia stendhaliana.

Page 16: Armance - Stendhal

18

ApresentAção

Que romance então é este?! Romance tipicamente

stendha liano ao descrever o amor impossível entre duas

“almas feitas para sentir com energia”. Armance parece

mesmo convidar o leitor a se interrogar: seria esse romance

impossível efetiva mente aquele de um amor infeliz? Como

entender o “encantamento do mais terno amor” que domi-

na Octave momentos antes de expirar? A resposta talvez

esteja em Do amor :

Sempre uma pequena dúvida a acalmar, eis o que faz a

sede de todos os instantes, eis o que faz a vida do amor feliz.

Como o temor jamais o aban dona, seus prazeres não podem

jamais entediar. O caráter dessa felicidade é a extrema seriedade.

Page 17: Armance - Stendhal

ArmAnce ou AlgumAs cenAs de um sAlão pArisiense em 1827

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ArmAnce

prefácio

Uma mulher de espírito, que não tem idéias muito feitas

1. Vivian Grey e Matilda são romances oitocentistas, escritos respectivamente por Disraeli e Lorde Normanby; Almak’s é o nome de um clube e de um célebre baile londrino. (N.T.)

sobre os méritos literários, rogou-me, a mim, indigno, que

corrigisse o estilo deste romance. Estou longe de adotar

alguns sentimentos políticos que parecem misturados à

narrativa; eis o que eu precisava dizer ao leitor. O amável

autor e eu pensamos de modo bastante diferente sobre

muitas coisas, mas ambos temos horror ao que se chama

aplicações. Em Londres, são escritos romances bastante

mordazes: Vivian Grey, Almak’s, High Life, Matilda1, etc.;

todos necessitam de uma chave. São caricaturas bastante

divertidas de pessoas que os acasos do nascimento ou da

fortuna colocaram em posição invejável.

Eis um gênero de mérito literário que recusamos. O au-

tor não acedeu, desde 1814, ao primeiro andar do palácio

das Tulherias; seu orgulho é tal que nem mesmo conhece

os nomes das pessoas que provavelmente se fazem notar

em um certo meio.

Mas ele pôs em cena industriais e privilégios, dos quais

fez a sátira. Se pedíssemos notícias do jardim das Tulherias

às rolas que suspiram no cimo das grandes árvores, elas

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Impressionada com as singularidades que observava em Oc-

tave, temia que uma doença do peito o atingisse. Mas ela

pensava que se tivesse a infelicidade de bem adivinhar, nomear

essa doença seria apressar sua evolução. Médicos e pessoas de

espírito disseram à senhora Malivert que seu filho não tinha

outra doença senão aquela espécie de tristeza descontente e crítica

que caracteriza os jovens de sua época e de seu meio; mas a

advertiram de que ela mesma deveria se ocupar de seus pulmões.

Essa notícia fatal foi divulgada na casa por meio de um re-

gime ao qual era preciso se submeter, e o senhor de Malivert, de

quem se desejou em vão esconder o nome da doença, entreviu

para a sua velhice a possibilidade do isolamento.

Muito irresponsável e muito rico antes da revolução, o marquês

de Malivert, que revira a França apenas em 1814, seguindo o

rei, encontrava-se reduzido pelos confiscos a vinte ou trinta mil

libras de renda. Ele se considerava na miséria. A única

ocupação dessa cabeça que jamais fora muito inteligente era

agora casar Octave. Mas ainda mais fiel à honra do que à

idéia fixa que o atormentava, o velho marquês de Malivert

jamais deixava de começar pelos termos seguintes as declarações

que fazia na sociedade: “Posso oferecer um belo nome, uma

genealogia garantida desde a cruzada de Luís, o Jovem, e

não conheço em Paris senão treze famílias que podem andar

com a cabeça erguida nesse aspecto; mas, quanto ao resto, estou

reduzido à miséria, à esmola, sou um indigente.”

Essa maneira de ver em um homem idoso não é feita para

produzir aquela resignação doce e filosófica que faz a alegria

da velhice; e sem as extravagâncias do comendador de

Soubirane, meridional, um pouco louco e bastante maldoso, a

casa onde vivia Octave ter-se-ia distinguido por sua tristeza, até

Armance é, cronologicamente, o primeiro

dos grandes romances de Stendhal. Quando

comparado a obras-primas como O vermelho

e o negro e A cartuxa de Parma, porém,

este romance de 1827 é considerado ambíguo

— e isso por uma razão muito simples: toda

a trama é articulada ao redor de um segre-

do sobre a vida do protagonista que nunca

é revelado, o que tornaria obscuras as moti-

vações deste livro sobre o amor idealizado

e a renúncia ao casamento. A chave para se

entender a trama estaria numa carta de

Stendhal a Mérimée (publicada na presente

edição), na qual ele explicita o motivo que

impede a consumação do amor entre o viscon-

de Octave de Malivert e sua prima, Armance

de Zohiloff: seu herói sofre de babilanismo,

ou seja, impotência sexual.

De fato, um romance diante do qual o lei-

tor depende de informações extraliterárias

para captar o sentido da narrativa poderia

ser considerado imperfeito. Mas isso só é

verdade se confundirmos a intenção inicial

de Henri Beyle (verdadeiro nome do escri-

tor) com a realização de Stendhal (nome

pelo qual ficou conhecido).

A julgar pelo tom lúbrico que permeava

sua correspondência com Mérimée, ele que-

ria escrever um romance que satirizasse o

ideal do amor romântico. O resultado, porém,

é bem diferente: como a suposta anomalia

permanece oculta, toda a torturante aproxi-

mação dos dois amantes se dá sob o signo

do desafio a preconceitos sociais, políticos

e econômicos.

Stendhal faz da misantropia de Octave e

da integridade de Armance a metonímia de um

ardor passional que sobrevive a uma socie-

dade de nobres decadentes e banqueiros, um

mundo regido por contratos matrimoniais, em

que o casamento poderia pacificar o tumulto

do coração. Nesse sentido, Armance é um

livro que mergulha como nenhum outro nas

sutilezas do jogo amoroso, antecipando aque-

le culto à energia individual que, em seus

romances posteriores, Stendhal irá contrapor

ao desencantamento do mundo burguês.

Manuel da Costa Pinto

Stendhal nasceu

na França em

1783. Acompa-

nhou o exército

napoleônico em

suas investidas à Itália, Áustria e Rússia.

Após obras ensaísticas, entre as quais

o relato de viagem Roma, Nápoles e

Florença, em 1827 publica seu primeiro

romance, Armance. Suas obras de ficção

mais conhecidas são O vermelho e o

negro (1830) e A cartuxa de Parma (1839).

A complexidade psicológica de seus per-

sonagens e suas análises sociais influen-

ciam toda a literatura francesa posterior.

O estilo de Stendhal, ao invés do excesso

de ornamentos que caracterizava o ro-

mantismo, predominante na época, valo-

riza o perfil psicológico dos personagens,

a interpretação de seus atos, sentimentos

e paixões.

StendhalOctave fugiu do salão da senhora de Bonnivet, o

mundo causava-lhe horror; deixou a carruagem dafamília para seu tio e voltou a pé para casa. Choviatorrencialmente e a chuva dava-lhe prazer. Logo, nãomais notou a espécie de tempestade que inundava Parisnaquele momento.

mesmo no faubourg Saint-Germain. A senhora de Malivert,

que nada desviava de suas inquietações quanto à saúde do

filho, nem mesmo seus próprios perigos, aproveitou-se do estado

lânguido em que se encontrava para receber, como de hábito,

dois célebres médicos. Ela desejava torná-los seus amigos. Como

esses senhores eram, um, o chefe, e o outro, um dos mais

fervorosos promotores de duas seitas rivais, suas discussões,

embora sobre um assunto demasiado triste para aqueles que

não são movidos pelo interesse da ciência e do problema a re-

solver, às vezes divertiam a senhora de Malivert, que conservara

um espírito vivo e curioso. Ela os incentivava a falar e, graças

a eles, ao menos de tempos em tempos alguém elevava a voz

na sala tão nobremente decorada, mas tão sombria, do palacete

Malivert. Tapeçarias de veludo verde, ornadas de elementos

dourados, pareciam feitas de propósito para absorver toda a

luz trazida por duas imensas janelas providas não de vitrais,

mas de vidro. Essas janelas davam para um jardim solitário,

dividido em compartimentos bizarros por orlas de buxos. Uma

alameda de tílias podadas regularmente três vezes ao ano

ocupava o fundo, e suas formas imóveis pareciam uma imagem

viva da vida moral daquela família. O quarto do jovem

visconde, situado acima da sala e sacrificado à beleza daquele

cômodo essencial, mal tinha a altura de um meio pavimento.

Inclui carta de Stendhal a Mérimée

Stendhal

Armance

Tradução e prefácio deLeila Aguiar Costa

ISBN 85-7448-085-1

Arm

ance

capa.p65 8/12/2003, 19:571