armance - stendhal
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Armance é, cronologicamente, o primeiro dos grandes romances de Stendhal. Quando comparado a obras-primas como O vermelho e o negro e A cartuxa de Parma, porém, este romance de 1827 é considerado ambíguo — e isso por uma razão muito simples: toda a trama é articulada ao redor de um segredo sobre a vida do protagonista que nunca é revelado, o que tornaria obscuras as motivações deste livro sobre o amor idealizado e a renúncia ao casamento. A chave para se entender a trama estaria numa carta de Stendhal a Mérimée (publicada na presente edição), na qual ele explicita o motivo que impede a consumação do amor entre o visconde Octave de Malivert e sua prima, Armance de Zohiloff: seu herói sofre de babilanismo, ou seja, impotência sexual. De fato, um romance diante do qual o leitor depende de informações extraliterárias para captar o sentido da narrativa poderia ser considerado imperfeito.TRANSCRIPT
Impressionada com as singularidades que observava em Oc-
tave, temia que uma doença do peito o atingisse. Mas ela
pensava que se tivesse a infelicidade de bem adivinhar, nomear
essa doença seria apressar sua evolução. Médicos e pessoas de
espírito disseram à senhora Malivert que seu filho não tinha
outra doença senão aquela espécie de tristeza descontente e crítica
que caracteriza os jovens de sua época e de seu meio; mas a
advertiram de que ela mesma deveria se ocupar de seus pulmões.
Essa notícia fatal foi divulgada na casa por meio de um re-
gime ao qual era preciso se submeter, e o senhor de Malivert, de
quem se desejou em vão esconder o nome da doença, entreviu
para a sua velhice a possibilidade do isolamento.
Muito irresponsável e muito rico antes da revolução, o marquês
de Malivert, que revira a França apenas em 1814, seguindo o
rei, encontrava-se reduzido pelos confiscos a vinte ou trinta mil
libras de renda. Ele se considerava na miséria. A única
ocupação dessa cabeça que jamais fora muito inteligente era
agora casar Octave. Mas ainda mais fiel à honra do que à
idéia fixa que o atormentava, o velho marquês de Malivert
jamais deixava de começar pelos termos seguintes as declarações
que fazia na sociedade: “Posso oferecer um belo nome, uma
genealogia garantida desde a cruzada de Luís, o Jovem, e
não conheço em Paris senão treze famílias que podem andar
com a cabeça erguida nesse aspecto; mas, quanto ao resto, estou
reduzido à miséria, à esmola, sou um indigente.”
Essa maneira de ver em um homem idoso não é feita para
produzir aquela resignação doce e filosófica que faz a alegria
da velhice; e sem as extravagâncias do comendador de
Soubirane, meridional, um pouco louco e bastante maldoso, a
casa onde vivia Octave ter-se-ia distinguido por sua tristeza, até
Armance é, cronologicamente, o primeiro
dos grandes romances de Stendhal. Quando
comparado a obras-primas como O vermelho
e o negro e A cartuxa de Parma, porém,
este romance de 1827 é considerado ambíguo
— e isso por uma razão muito simples: toda
a trama é articulada ao redor de um segre-
do sobre a vida do protagonista que nunca
é revelado, o que tornaria obscuras as moti-
vações deste livro sobre o amor idealizado
e a renúncia ao casamento. A chave para se
entender a trama estaria numa carta de
Stendhal a Mérimée (publicada na presente
edição), na qual ele explicita o motivo que
impede a consumação do amor entre o viscon-
de Octave de Malivert e sua prima, Armance
de Zohiloff: seu herói sofre de babilanismo,
ou seja, impotência sexual.
De fato, um romance diante do qual o lei-
tor depende de informações extraliterárias
para captar o sentido da narrativa poderia
ser considerado imperfeito. Mas isso só é
verdade se confundirmos a intenção inicial
de Henri Beyle (verdadeiro nome do escri-
tor) com a realização de Stendhal (nome
pelo qual ficou conhecido).
A julgar pelo tom lúbrico que permeava
sua correspondência com Mérimée, ele que-
ria escrever um romance que satirizasse o
ideal do amor romântico. O resultado, porém,
é bem diferente: como a suposta anomalia
permanece oculta, toda a torturante aproxi-
mação dos dois amantes se dá sob o signo
do desafio a preconceitos sociais, políticos
e econômicos.
Stendhal faz da misantropia de Octave e
da integridade de Armance a metonímia de um
ardor passional que sobrevive a uma socie-
dade de nobres decadentes e banqueiros, um
mundo regido por contratos matrimoniais, em
que o casamento poderia pacificar o tumulto
do coração. Nesse sentido, Armance é um
livro que mergulha como nenhum outro nas
sutilezas do jogo amoroso, antecipando aque-
le culto à energia individual que, em seus
romances posteriores, Stendhal irá contrapor
ao desencantamento do mundo burguês.
Manuel da Costa Pinto
Stendhal nasceu
na França em
1783. Acompa-
nhou o exército
napoleônico em
suas investidas à Itália, Áustria e Rússia.
Após obras ensaísticas, entre as quais
o relato de viagem Roma, Nápoles e
Florença, em 1827 publica seu primeiro
romance, Armance. Suas obras de ficção
mais conhecidas são O vermelho e o
negro (1830) e A cartuxa de Parma (1839).
A complexidade psicológica de seus per-
sonagens e suas análises sociais influen-
ciam toda a literatura francesa posterior.
O estilo de Stendhal, ao invés do excesso
de ornamentos que caracterizava o ro-
mantismo, predominante na época, valo-
riza o perfil psicológico dos personagens,
a interpretação de seus atos, sentimentos
e paixões.
StendhalOctave fugiu do salão da senhora de Bonnivet, o
mundo causava-lhe horror; deixou a carruagem dafamília para seu tio e voltou a pé para casa. Choviatorrencialmente e a chuva dava-lhe prazer. Logo, nãomais notou a espécie de tempestade que inundava Parisnaquele momento.
mesmo no faubourg Saint-Germain. A senhora de Malivert,
que nada desviava de suas inquietações quanto à saúde do
filho, nem mesmo seus próprios perigos, aproveitou-se do estado
lânguido em que se encontrava para receber, como de hábito,
dois célebres médicos. Ela desejava torná-los seus amigos. Como
esses senhores eram, um, o chefe, e o outro, um dos mais
fervorosos promotores de duas seitas rivais, suas discussões,
embora sobre um assunto demasiado triste para aqueles que
não são movidos pelo interesse da ciência e do problema a re-
solver, às vezes divertiam a senhora de Malivert, que conservara
um espírito vivo e curioso. Ela os incentivava a falar e, graças
a eles, ao menos de tempos em tempos alguém elevava a voz
na sala tão nobremente decorada, mas tão sombria, do palacete
Malivert. Tapeçarias de veludo verde, ornadas de elementos
dourados, pareciam feitas de propósito para absorver toda a
luz trazida por duas imensas janelas providas não de vitrais,
mas de vidro. Essas janelas davam para um jardim solitário,
dividido em compartimentos bizarros por orlas de buxos. Uma
alameda de tílias podadas regularmente três vezes ao ano
ocupava o fundo, e suas formas imóveis pareciam uma imagem
viva da vida moral daquela família. O quarto do jovem
visconde, situado acima da sala e sacrificado à beleza daquele
cômodo essencial, mal tinha a altura de um meio pavimento.
Inclui carta de Stendhal a Mérimée
Stendhal
Armance
Tradução e prefácio deLeila Aguiar Costa
ISBN 85-7448-085-1
Arm
ance
capa.p65 8/12/2003, 19:571
ArmAnceou AlgumAs cenAs de um sAlão pArisiense em 1827
Stendhal
Tradução e apresentação
Leila de Aguiar Costa
Estação Liberdade
Título original: Armance
© 2003 Editora Estação Liberdade Ltda., para esta tradução
Preparação e revisão Fernando Santos e Manuel da Costa Pinto
Composição Wildiney Di Masi / Estação Liberdade
Capa Edilberto Fernando Verza e Pedro Barros
Ilustração da capa Gustave Caillebotte: Rue de Paris, jour de pluie, 1877 (detalhe). Óleo s/ tela, The Art Institute of Chicago.
Direitos desta edição reservados à
Editora Estação Liberdade Ltda.Rua Dona Elisa, 116 • 01155-030 • São Paulo SP
Tel.: (11) 3661 2881 • Fax: (11) 3825 4239e-mail: [email protected]
http://www.estacaoliberdade.com.br
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
S85a
Stendhal, 1783-1842 Armance, ou, Algumas cenas de um salão parisiense em 1827 / Stendhal ; tradução Leila de Aguiar Costa. – São Paulo : Estação Liberdade, 2003. 288p. Tradução de: Armance ISBN 85-7448-085-1 1. Romance francês. I. Costa, Leila de Aguiar, 1961-. II. Título.
03-2554. CDD 843 CDU 821.133.1-3
sumário
9 Que romAnce é este?! Apresentação de Leila de Aguiar Costa
19 ArmAnce ou AlgumAs cenAs de um sAlão pArisiense em 1827
21 prefácio
25 cApítulo um
39 cApítulo dois
49 cApítulo três
57 cApítulo QuAtro
65 cApítulo cinco
79 cApítulo seis
89 cApítulo sete
99 cApítulo oito
105 cApítulo nove
113 cApítulo dez
117 cApítulo onze
123 cApítulo doze
131 cApítulo treze
139 cApítulo QuAtorze
149 cApítulo Quinze
155 cApítulo dezesseis
161 cApítulo dezessete
169 cApítulo dezoito
177 cApítulo dezenove
183 cApítulo vinte
189 cApítulo vinte e um
199 cApítulo vinte e dois
205 cApítulo vinte e três
215 cApítulo vinte e QuAtro
225 cApítulo vinte e cinco
237 cApítulo vinte e seis
241 cApítulo vinte e sete
247 cApítulo vinte e oito
255 cApítulo vinte e nove
269 cApítulo trintA
277 cApítulo trintA e um
283 Apêndice
Carta de Stendhal a Mérimée
9
ArmAnce
Que romAnce é este?!
Curiosa carreira, essa de Stendhal, que nem mesmo
Stendhal civilmente se chamava, mas Henri Beyle. Quando
publica Armance em 1827, Stendhal pode ser conside rado
um neófito em matéria literária: trata-se de seu primei-
ro romance. Contudo, embora não houvesse até então
expe rimen tado o gênero romanesco, é bem verdade que
Stendhal-Beyle já se fazia presente no mundo das letras
com dezenove textos, dos quais sete publicados: neles
exercitava-se em alguns assuntos de sua predileção como,
por exemplo, a música (Vida de Haydn, Vida de Mozart,
Vida de Rossini), a pintura (História da pintura na Itália),
o tea tro (Racine e Shakespeare) e suas experiências em
terras italianas (Roma, Nápoles e Florença). Há, ainda, Do
amor, que ele reputa um exercício de “descrição exata e
científica de uma espécie de loucura”, a explicação sim-
ples, arrazoada e matemática do que se chama “paixão do
amor”. Não se trata entretanto de um romance e, sobretudo,
Stendhal não o considera “divertido como um romance”,
cuja matéria primeira é sempre, segundo sua perspectiva
literária, o amor. Faltava, pois, aventurar-se na descrição
ficcional dos movimentos amorosos que a alguns acometem:
Apresentação de Leila de Aguiar Costa *
* Pós-doutoranda no Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas.
10
ApresentAção
Armance é, para muitos críticos e historiadores literários,
justamente a aplicação romanesca desse tratado que se
quer quase científico, escrito cinco anos antes.
Curioso Stendhal, que julgava fundamental ter mais de
quarenta anos para escrever um romance, talvez porque
antes disso, como confessara no prefácio de Do amor,
fosse “bastante pouco experimentado em coisas literárias”.
Ou ainda, o que em muito condiz com seu percurso pes-
soal, porque não se pode considerar romancista aquele
que não tenha vivenciado os tormentos e contentamentos
propiciados pelo amor. É então aos 43 anos, em apenas
31 dias do ano de 1827, que Stendhal compõe Armance
— rapidez que pode surpreender, mas que é típica desse
autor, cujo último romance, A cartuxa de Parma, publi-
cado três antes de sua morte (1842), foi escrito em pouco
mais de cinqüenta dias.
A gênese desse primeiro romance é saborosa, ativada
que foi por uma artimanha ou mesmo impostura literária
a envolver dois escritores e da qual igualmente participará
Stendhal. Em 1825, a duquesa de Duras, aristocrata com
veleidades literárias, amante de Chateaubriand, narra para
amigos, em seu salão, a picante desventura de Olivier, que
sabe muito bem falar de amor, mas que não ousa prati-
cá-lo: apaixonado por Louise, ele não pode efetivamente
amá-la, pois “há seres dos quais nos sentimos sepa rados
como por um muro de cristal: vemo-nos, falamo-nos,
aproximamo-nos, mas não podemos nos tocar”. A breve
narrativa da duquesa alimenta a imaginação de seus ou-
vintes e logo correm sobre Olivier rumores dando conta
de sua pretensa impotência sexual. História escabrosa para
a época — publicada por isso mesmo apenas um século
11
ApresentAção
mais tarde —, da qual se aproveitará no final do mesmo
ano Henri de Latouche, escritor conhecido e que não mor-
ria de amores por duquesas: ele escreve um Olivier cujo
segredo é o mesmo da personagem de Duras. Publicado
anonimamente, os jornais divertem-se com o pequeno
jogo de Latouche, sobretudo porque seu texto em muito
se assemelha a outros dois de Duras — Ourika, de 1824,
e Edouard, de 1825. O Olivier de Latouche é então atri-
buído à duquesa, e o embuste torna-se um acontecimento
no mundo das letras. Em janeiro de 1826, nas páginas
literárias do New Monthly Magazine, Stendhal reforça a
mistificação e escreve um artigo sobre o “novo romance
da duquesa de Duras”, cuja seriedade, estima, suplantaria
qualquer ausência de decoro. Mas não pára aí: resolve, ele
também, contar uma história semelhante, cuja persona-
gem principal deveria igualmente se chamar Olivier. Mas
Olivier, a pedido de um de seus mais próximos amigos,
Prosper Mérimée, torna-se Octave, o romance intitula-se
Armance, a voz narradora não explica o célebre segredo
e o texto fracassa. Poucos são os leitores, não mais de
cem, que reconhecem o valor de um autor que por muito
tempo permanecerá incompreendido. O próprio Stendhal
confessa, em diversos de seus escritos — literários ou
“ideológicos”, para empregar seu termo —, que escreve
para um público leitor restrito, uns poucos eleitos, aqueles
a quem chama, emprestando uma célebre tirada teatral
de Shakespeare, os happy few. Armance parece inaugurar
esse estigma, que de desconfor tável passa a ser bastante
apropriado: é graças a ele que espe cialistas em literatura
francesa do século xix, ou stendhalianos em particular,
dedicam-se à redescoberta e recuperação de um autor que,
12
ApresentAção
quase ignorado por seus pares oitocentistas, precisou de
quase dois séculos para ser considerado um dos grandes
pilares da ficção moderna.
Qual então o segredo de Armance e de Octave de Mali-
vert? Esse romance a que se atribuíram epítetos como “mis-
terioso”, “enigmático”, “estranho”, “difícil”, é um pequeno
diamante de composição literária que será depurado ao
longo de uma carreira que produziu peças fundamentais
para a compreensão do fazer ficcional: haverá leitor con-
temporâneo que não tenha percorrido sequer uma página
de O vermelho e o negro, das Crônicas italianas e da
Cartuxa de Parma? Armance, pois. Que André Gide, um
dos pio neiros no resgate literário de Stendhal, lera com
“deslum bramento”, considerando-o o “mais delicado e o
mais graciosamente escrito” dos romances stendhalianos.
Era precisamente o objetivo de Stendhal trabalhar um estilo
cujos “modos de falar ingênuos” se afastassem da “ênfase
germânica e romântica” tão em voga nesse princípio de
século. Armance é, assim, a estréia do tão característico
estilo seco de Stendhal, que se queria natural, próximo
da linguagem oral em razão de suas frases curtas que
Baudelaire reputará incisivas e penetrantes; um estilo “de
tal modo original em sua incorreção e em sua aparente
despreocupação que permaneceu típico”, como quer
Émile Zola, um dos poucos admiradores oitocen tistas de
Stendhal. A que assunto então ele reserva esse estilo? À
história infeliz de Octave de Malivert e de Armance de
Zohiloff passada nos aristocráticos e preconcei tuosos
salões parisienses do início do século xix. História infeliz
sobre a qual pairou durante muitos anos e durante quase
um século um pesado interdito.
13
ApresentAção
Por que infeliz? Qual o mistério a rondar a vida e as ações
do protagonista masculino? Pois que há um segredo, nunca
revelado, mas constantemente referido, a impor obstáculos
intransponíveis ao livre curso da paixão entre Octave e Ar-
mance. Leitores absolutos que somos, auxilia dos pela carta
de Stendhal a Mérimée cujo tom malicioso e quase vulgar
destoa da delicadeza estilística do romance, sabemos que
Octave é Olivier, um pobre amante impotente, um babilano
— termo que empresta do setecentista Giovanni Giacomo
Casanova. “Que assunto esse!...”, exclama o próprio Stendhal
em seu prefácio. Assunto tabu? Nem tanto, se se pensar que
Stendhal e “cinco belíssimos jovens de vinte e cinco a trinta
anos”, reunidos no estado-maior de um general francês,
ousaram confessar seus fiascos “na primeira vez com suas
mais célebres amantes” — não por acaso um dos capítulos
de Do amor se intitula “Sobre os fiascos”.
História, pois, de um babilano que se apaixona gradual
e perdidamente, e sem se dar conta, por sua prima pobre
Armance. Mas, como Stendhal já afirmara em Do amor, “o
prazer físico [...] situa-se em plano inferior aos olhos das
almas ternas e apaixonadas”, pouco importando então
o babilanismo. Incapaz de usufruir do amor físico, Oc-
tave expe rimentará um amor superior, irrepreensível: o
amor-paixão. Ele e Armance servem, assim, a um tempo
à descrição do nascimento do amor verdadeiro e à crítica
dos preconceitos que ele desperta: Armance seria, na ver-
dade, menos a história de um herói fisicamente impotente
do que a pintura da sociedade aristocrática parisiense à
época da Restauração.
Octave é a primeira das grandes personagens romanes-
cas de Stendhal, cujos traços morais alcançarão a perfeição
14
ApresentAção
com Julien Sorel (O vermelho e o negro), Fabrice del Dongo
(Cartuxa de Parma) e Lucien Leuwen (Lucien Leuwen).
De família da alta nobreza, de passado notável — seus
ancestrais estiveram nas Cruzadas —, de endereço ilustre
— seu palacete localiza-se na rua Saint-Dominique, um dos
santuá rios da aristocracia —, de freqüentações eminentes
— sedia das no elegante faubourg Saint-Germain —, o
visconde de Malivert é jovem de “muito espírito”, “esta-
tura elevada”, “modos nobres”, “dos mais belos grandes
olhos do mundo”. É igualmente filho afetuoso — alguns
estudiosos de Armance chegam mesmo a reconhecer uma
patologia duvidosa no apego de Octave à mãe, a bela e
desprovida de afetação senhora de Malivert. E, o que mais
importa, afasta-se do comum dos homens, que o detestam,
em razão das singularidades de seu temperamento. Aquele
que se diz um monstro a guardar um segredo terrível e
fatal é, contudo, criatura de nobre caráter, o “dever en-
carnado”, não hesitando em segui-lo escrupulosamente e
dele aceitando todas as conseqüências, mesmo as mais
terríveis. Talvez por isso mesmo Octave seja melancólico,
taciturno, dado a rompantes de fúria que o fazem discutir
com soldados, agredir um jovem serviçal e duelar até o
último disparo de pistola, já se esvaindo em sangue, com
um marquês a quem ofendera com suas impertinências e
a quem acabara de ferir mortalmente. Esse matiz sombrio
que impele Octave ao contato físico pela vio lência faz com
que estudiosos de Armance arrisquem a hipótese de um
repúdio homossexual pelo sexo feminino. Estranho Oc-
tave, estrangeiro em seu próprio meio social que, inapto
a conhecê-lo, julga-o misan tropo; extraordinário Octave
que, ao se esquecer um momento da racionalidade — sua
busca incessante é a do conhecimen to de si pela razão —
15
ApresentAção
para se entregar à paixão amorosa, deixa-se vitimar por
personagens invejosas, vindicativas, astutas.
Há somente uma criatura que pode verdadeiramente
amá-lo e compreendê-lo: sua prima Armance, jovem de
18 anos, nascida em terras russas. Sua “educação estran-
geira” faz dela um “caráter singular”, concede-lhe um
“perspicaz espírito”, dota-a de uma “serenidade perfeita”
e de uma “honestidade impassível”. Estrangeira Armance,
que repudia, censurando-os, os artificialismos ridículos e
as futilidades da sociedade francesa; excêntrica Armance,
cuja conduta é balizada por seus sentimentos e não pelos
imperativos do social; estranha Armance, cujo “sangue
eslavo”, cuja “beleza russa” — “pura beleza circassiana”
—, cujo não sei quê de “asiático nos traços” a tornam
incompreensível aos olhos comuns; exótica Armance,
cujos “grandes olhos azul-escuros”, cujo “olhar fixo e pro-
fundo”, olhar da “atenção extrema”, são imagem de seu
temperamento e caráter. Não por acaso Octave a julga o
“único ser estimável” a freqüentar os salões aristocráticos
parisien ses. Armance é como um espelho de Octave: se
a socie dade é apenas motivo de estranhamento para Octa-
ve, em Armance ele se mira, se descobre e se reconhece.
É pelo olhar de ambos que o leitor visualizará “algumas
cenas de um salão parisiense em 1827”, com as virtudes e
nobreza de uns poucos e os vícios e vileza de muitos. Ao
redor de Octave e Armance gravitam duquesas desmio ladas,
condessas maledicentes, marquesas falsamente devotas,
marqueses revanchistas, cavaleiros de fé jesuítica pouco
con fiáveis, comendadores cúpidos... Todas criaturas hostis
a esses dois seres de exceção — como o são aliás todos
os protagonistas stendhalianos —, cujo amor-paixão será
vítima de uma opinião pública que decreta inaceitável a
16
ApresentAção
união entre o célebre e abastado nome de Malivert e o
obscuro e desafortunado nome de Zohiloff.
Entretanto, em meio às dificuldades e aos obstáculos
exteriores e, por vezes, interiores — Octave e Armance
são igualmente obcecados por uma ética do dever e da
honestidade —, há agradáveis e suaves sensações. Tam-
bém aqui Armance revela o Stendhal pleno de filigranas,
leitor delicado do coração humano. Não surpreende,
pois, que em diversas páginas ele relate uma simples mas
intensa troca de olhares entre Octave e Armance — “po-
de-se tudo dizer com um olhar”, afirma Stendhal em Do
amor, pois que o olhar é mais revelador de um afeto do
que a linguagem oral, em geral artificiosa e tiranizante.
Que em outras tantas descreva a comunicação silenciosa
entre os protagonistas, que dissimulam bilhetes na caixa
de proteção de uma laranjeira — e a laranjeira, que se
fará fundamental na Cartuxa de Parma, é paradigma da
simbologia stendhaliana que sempre a associa à paixão
amorosa e à esperança de felicidade. Que em outras, ainda,
exponha os pequenos deleites de um passeio noturno aos
“bonitos bosques de castanheiros” de Andilly, suavemente
balouçados por uma “doce brisa”, sob a “luz tranqüila de
uma bela lua de verão”, “lua resplandecente” a oferecer
“aspectos encantatórios” ao casual encontro de Octave
e Armance em plena natureza. Em todas estas páginas,
enfim, Stendhal narra breves momentos do “amor mais
feliz”, desse amor que “faz esquecer tudo o que não é
divino como ele”, amor matizado de sutil sensualidade à
vista de “um corpo delicado” dissimulado sob “um simples
vestido matinal”, de uma “pequena cruz de diamantes” ao
pescoço, de um “belo braço [...] coberto por uma gaze
17
ApresentAção
leve”, amor que faz o Eu sair de si e viver “mais em alguns
instantes do que durante longos períodos”.
Armance é inegavelmente o primeiro grande texto lite-
rário de Stendhal. Aqui ele já se experimenta no registro
das análises psicológicas que dele farão um requintado
“observador das profundezas do coração humano”. Uma
simples olhadela e descobre-se que a composição roma-
nesca de Armance é exemplar desse jogo de auscultação
dos bati mentos passionais de homens e mulheres: dos 31
capítulos, mais da metade analisa o nascimento do amor.
Stendhal, de página em página, de capítulo em capítulo,
pacientemente esculpe Octave e Armance e as outras
cria turas da intriga — alguns teóricos franceses costumam
afirmar que suas personagens se constroem sob os olhos
do leitor, contrariamente àquelas, por exemplo, de um
Honoré de Balzac, cujos traços fundamentais são apre-
sentados logo às primeiras páginas. Quase nada acontece
nesses capítulos iniciais, pois que se trata unicamente de
compreender e dar a compreender as motivações de uns
e de outros. Quando a caracterologia está enfim monta-
da, Stendhal introduz um acontecimento que fará tudo
oscilar: “Você está apaixonado pela bela prima”, diz uma
das personagens a Octave. A partir dessa revelação,
multiplicam-se os episódios, a ação corre rapidamente
e o romance caminha para o seu desfecho. A segunda
parte do romance é, assim, plena de animação. Armance
permite descobrir um Stendhal teatral que sabe igualmente
manejar o ritmo dramático, fazendo de seu texto quase
uma peça trágica, na passagem que expõe: o trajeto da
felicidade ao infortúnio, da vida à morte (em vida). Ines-
perada cenografia stendhaliana.
18
ApresentAção
Que romance então é este?! Romance tipicamente
stendha liano ao descrever o amor impossível entre duas
“almas feitas para sentir com energia”. Armance parece
mesmo convidar o leitor a se interrogar: seria esse romance
impossível efetiva mente aquele de um amor infeliz? Como
entender o “encantamento do mais terno amor” que domi-
na Octave momentos antes de expirar? A resposta talvez
esteja em Do amor :
Sempre uma pequena dúvida a acalmar, eis o que faz a
sede de todos os instantes, eis o que faz a vida do amor feliz.
Como o temor jamais o aban dona, seus prazeres não podem
jamais entediar. O caráter dessa felicidade é a extrema seriedade.
ArmAnce ou AlgumAs cenAs de um sAlão pArisiense em 1827
21
ArmAnce
prefácio
Uma mulher de espírito, que não tem idéias muito feitas
1. Vivian Grey e Matilda são romances oitocentistas, escritos respectivamente por Disraeli e Lorde Normanby; Almak’s é o nome de um clube e de um célebre baile londrino. (N.T.)
sobre os méritos literários, rogou-me, a mim, indigno, que
corrigisse o estilo deste romance. Estou longe de adotar
alguns sentimentos políticos que parecem misturados à
narrativa; eis o que eu precisava dizer ao leitor. O amável
autor e eu pensamos de modo bastante diferente sobre
muitas coisas, mas ambos temos horror ao que se chama
aplicações. Em Londres, são escritos romances bastante
mordazes: Vivian Grey, Almak’s, High Life, Matilda1, etc.;
todos necessitam de uma chave. São caricaturas bastante
divertidas de pessoas que os acasos do nascimento ou da
fortuna colocaram em posição invejável.
Eis um gênero de mérito literário que recusamos. O au-
tor não acedeu, desde 1814, ao primeiro andar do palácio
das Tulherias; seu orgulho é tal que nem mesmo conhece
os nomes das pessoas que provavelmente se fazem notar
em um certo meio.
Mas ele pôs em cena industriais e privilégios, dos quais
fez a sátira. Se pedíssemos notícias do jardim das Tulherias
às rolas que suspiram no cimo das grandes árvores, elas
Impressionada com as singularidades que observava em Oc-
tave, temia que uma doença do peito o atingisse. Mas ela
pensava que se tivesse a infelicidade de bem adivinhar, nomear
essa doença seria apressar sua evolução. Médicos e pessoas de
espírito disseram à senhora Malivert que seu filho não tinha
outra doença senão aquela espécie de tristeza descontente e crítica
que caracteriza os jovens de sua época e de seu meio; mas a
advertiram de que ela mesma deveria se ocupar de seus pulmões.
Essa notícia fatal foi divulgada na casa por meio de um re-
gime ao qual era preciso se submeter, e o senhor de Malivert, de
quem se desejou em vão esconder o nome da doença, entreviu
para a sua velhice a possibilidade do isolamento.
Muito irresponsável e muito rico antes da revolução, o marquês
de Malivert, que revira a França apenas em 1814, seguindo o
rei, encontrava-se reduzido pelos confiscos a vinte ou trinta mil
libras de renda. Ele se considerava na miséria. A única
ocupação dessa cabeça que jamais fora muito inteligente era
agora casar Octave. Mas ainda mais fiel à honra do que à
idéia fixa que o atormentava, o velho marquês de Malivert
jamais deixava de começar pelos termos seguintes as declarações
que fazia na sociedade: “Posso oferecer um belo nome, uma
genealogia garantida desde a cruzada de Luís, o Jovem, e
não conheço em Paris senão treze famílias que podem andar
com a cabeça erguida nesse aspecto; mas, quanto ao resto, estou
reduzido à miséria, à esmola, sou um indigente.”
Essa maneira de ver em um homem idoso não é feita para
produzir aquela resignação doce e filosófica que faz a alegria
da velhice; e sem as extravagâncias do comendador de
Soubirane, meridional, um pouco louco e bastante maldoso, a
casa onde vivia Octave ter-se-ia distinguido por sua tristeza, até
Armance é, cronologicamente, o primeiro
dos grandes romances de Stendhal. Quando
comparado a obras-primas como O vermelho
e o negro e A cartuxa de Parma, porém,
este romance de 1827 é considerado ambíguo
— e isso por uma razão muito simples: toda
a trama é articulada ao redor de um segre-
do sobre a vida do protagonista que nunca
é revelado, o que tornaria obscuras as moti-
vações deste livro sobre o amor idealizado
e a renúncia ao casamento. A chave para se
entender a trama estaria numa carta de
Stendhal a Mérimée (publicada na presente
edição), na qual ele explicita o motivo que
impede a consumação do amor entre o viscon-
de Octave de Malivert e sua prima, Armance
de Zohiloff: seu herói sofre de babilanismo,
ou seja, impotência sexual.
De fato, um romance diante do qual o lei-
tor depende de informações extraliterárias
para captar o sentido da narrativa poderia
ser considerado imperfeito. Mas isso só é
verdade se confundirmos a intenção inicial
de Henri Beyle (verdadeiro nome do escri-
tor) com a realização de Stendhal (nome
pelo qual ficou conhecido).
A julgar pelo tom lúbrico que permeava
sua correspondência com Mérimée, ele que-
ria escrever um romance que satirizasse o
ideal do amor romântico. O resultado, porém,
é bem diferente: como a suposta anomalia
permanece oculta, toda a torturante aproxi-
mação dos dois amantes se dá sob o signo
do desafio a preconceitos sociais, políticos
e econômicos.
Stendhal faz da misantropia de Octave e
da integridade de Armance a metonímia de um
ardor passional que sobrevive a uma socie-
dade de nobres decadentes e banqueiros, um
mundo regido por contratos matrimoniais, em
que o casamento poderia pacificar o tumulto
do coração. Nesse sentido, Armance é um
livro que mergulha como nenhum outro nas
sutilezas do jogo amoroso, antecipando aque-
le culto à energia individual que, em seus
romances posteriores, Stendhal irá contrapor
ao desencantamento do mundo burguês.
Manuel da Costa Pinto
Stendhal nasceu
na França em
1783. Acompa-
nhou o exército
napoleônico em
suas investidas à Itália, Áustria e Rússia.
Após obras ensaísticas, entre as quais
o relato de viagem Roma, Nápoles e
Florença, em 1827 publica seu primeiro
romance, Armance. Suas obras de ficção
mais conhecidas são O vermelho e o
negro (1830) e A cartuxa de Parma (1839).
A complexidade psicológica de seus per-
sonagens e suas análises sociais influen-
ciam toda a literatura francesa posterior.
O estilo de Stendhal, ao invés do excesso
de ornamentos que caracterizava o ro-
mantismo, predominante na época, valo-
riza o perfil psicológico dos personagens,
a interpretação de seus atos, sentimentos
e paixões.
StendhalOctave fugiu do salão da senhora de Bonnivet, o
mundo causava-lhe horror; deixou a carruagem dafamília para seu tio e voltou a pé para casa. Choviatorrencialmente e a chuva dava-lhe prazer. Logo, nãomais notou a espécie de tempestade que inundava Parisnaquele momento.
mesmo no faubourg Saint-Germain. A senhora de Malivert,
que nada desviava de suas inquietações quanto à saúde do
filho, nem mesmo seus próprios perigos, aproveitou-se do estado
lânguido em que se encontrava para receber, como de hábito,
dois célebres médicos. Ela desejava torná-los seus amigos. Como
esses senhores eram, um, o chefe, e o outro, um dos mais
fervorosos promotores de duas seitas rivais, suas discussões,
embora sobre um assunto demasiado triste para aqueles que
não são movidos pelo interesse da ciência e do problema a re-
solver, às vezes divertiam a senhora de Malivert, que conservara
um espírito vivo e curioso. Ela os incentivava a falar e, graças
a eles, ao menos de tempos em tempos alguém elevava a voz
na sala tão nobremente decorada, mas tão sombria, do palacete
Malivert. Tapeçarias de veludo verde, ornadas de elementos
dourados, pareciam feitas de propósito para absorver toda a
luz trazida por duas imensas janelas providas não de vitrais,
mas de vidro. Essas janelas davam para um jardim solitário,
dividido em compartimentos bizarros por orlas de buxos. Uma
alameda de tílias podadas regularmente três vezes ao ano
ocupava o fundo, e suas formas imóveis pareciam uma imagem
viva da vida moral daquela família. O quarto do jovem
visconde, situado acima da sala e sacrificado à beleza daquele
cômodo essencial, mal tinha a altura de um meio pavimento.
Inclui carta de Stendhal a Mérimée
Stendhal
Armance
Tradução e prefácio deLeila Aguiar Costa
ISBN 85-7448-085-1
Arm
ance
capa.p65 8/12/2003, 19:571