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“O FATO MAIS IMPORTANTE DA QUINZENA”: A CONSTRUÇÃO DE
UMA MEMÓRIA PARA A ABOLIÇÃO COMPARTILHADA COM AS
MULHERES1
Daniela Magalhães da Silveira2
A polêmica constituiu um dos principais ingredientes dos jornais e revistas publicados no
Brasil do século XIX. O ano de 1888 começou com trocas de farpas entre o Diário de Notícias e a
Gazeta de Notícias. Logo na primeira semana, quando alguns jornais diários mantinham a tradição
de fazer uma espécie de retrospectiva do ano passado, o Diário de Notícias começava o seu “O ano
novo”, acusando a Gazeta de Notícias de transformar o ano de 1887 num desastre, cujo principal
responsável teria sido Francisco Belisário, por causa das medidas financeiras tomadas pelo
governo3. Assim, o redator se posicionava de forma direta:
Sempre divergimos e continuamos a divergir do Sr. Conselheiro Belisário na questão social, mas quanto aos
atos financeiros, o seu maior elogio é que eles são os fatores principais da imigração e do trabalho livre. Custa-
nos a compreender como o ano político se coloca do lado da mais atrasada reação e só encara tudo pelos
moldes dos financeiros de há cem anos. Parece Mirabeau pai escrevendo contra Necker.
As discordâncias continuaram no dia seguinte. Até porque a compreensão do Diário de
Notícias era a de que a publicação de “O Ano político de 1887”, veiculado pela Gazeta de Notícias,
devido à popularidade do jornal, colocava em risco o próprio governo e um momento que se
mostrava tão promissor. Alinhando-se ao governo, a coluna publicada pelo Diário fazia propaganda
política, divulgando as propostas de vários setores para o ano de 1888. Dentre as realizações
previstas, estava a do conselheiro Rodrigo Silva e sua disposição de promover a imigração e uma
dita “magna lei da libertação evolutiva, sancionando os fatos já realizados nas províncias”4.
De acordo com o Diário, a Gazeta deveria retomar as “boas normas” e cuidar de suas seções
reconhecidamente humorísticas: “Tire para fora o realejo e faça dançar os macaquinhos; ao menos é
1 Texto apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (UFSC), de 14 a 18 de maio de 2019. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ 2 Doutora em História Social da Cultura (Unicamp). Professora do Instituto de História da Universidade Federal de
Uberlândia. [email protected] 3 Diário de Notícias. 3 de janeiro de 1888.
4 Diário de Notícias. 4 de janeiro de 1888.
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isso inofensivo, e, quando muito, afetará a moral, sem afetar as finanças e o futuro da nação”5.
Havia aqui uma referência direta à série de crônicas “Macaquinhos no Sótão”, assinda por José
Telha, um dos pseudônimos usados por Ferreira de Araújo. Foi justamente esse o espaço usado para
proferir a resposta6. A defesa veio então sob o formato de ataque. O Diário de Notícias foi acusado
de católico, especialmente por causa das notícias por ele publicadas sobre o jubileu do Papa Leão
XIII. O intuito, no entanto, era o de demonstrar a possibilidade de concordar com uma atitude de
um ministro e discordar de outro político do mesmo gabinete. Não havia nada de contraditório
nisso. Outro problema levantado por José Telha dizia respeito à própria forma de dar a notícia,
conforme fazia a redação do Diário. Enfim, aquilo parecia ser uma querela sem limites que se
alongou por mais algum tempo e em outras seções de ambos os jornais.
Para além de mais uma briga entre jornais que competiam pelo mesmo público leitor, havia
ali também uma discussão sobre imparcialidade e prestação de serviços ao governo em troca de
recursos financeiros. Isso partiu de forma mais direta daquilo que a Gazeta de Notícias havia
publicado em seu “O ano político de 1887”, com relação às finanças do país e o ministro
responsável. Mas acabou respingando em qual diário seria, por exemplo, mais abolicionista. Não
por acaso, José Telha havia escolhido se remeter às comemorações em torno do Papa. Tais
festividades serviram de motivação para que fosse restituída à liberdade algumas pessoas
escravizadas no Brasil. Essa atitude vinha ganhando cada vez mais adeptos por aqueles tempos,
sendo que parte da imprensa ora louvava, ora mostrava as intenções ocultas da classe senhorial.
Conforme foi possível observar pela polêmica em torno do posicionamento político da
Gazeta de Notícias diante do ano de 1887, o Diário de Notícias, jornal que contava, naquele
momento com uma tiragem de 22.000 exemplares e um público diversificado, esforçava-se para
defender o governo (de Francisco Belisário a Cotegipe). Essa defesa exigia um abolicionismo
moderado, que defendia apenas a libertação gradual promovida pelas províncias ou pelos próprios
senhores de escravos.
5 Idem.
6 Gazeta de Notícias. 6 de janeiro de 1888.
3
A Gazeta de Notícias não chegou a noticiar, com destaque, as libertações motivadas pelo
jubileu do Papa. O Diário de Notícias, por sua vez, informou em uma de suas principais colunas
(“Registro da Semana”):
Assim, o jubileu sacerdotal do Sumo Pontífice, que atualmente rege os destinos da Igreja católica,
prendeu a atenção dos fiéis e, além de inúmeros presentes, provas mais acrisoladas do afeto ao chefe supremo
da cristandade foram dirigidas a Roma.
Dentre elas avulta a notícia comovente da restituição à liberdade de grande número de escravizados,
notícia que certamente refulgirá como preciosa gema dentre as joias que abrilhantam a tiara de Leão XIII.
O movimento emancipador cresce de dia para dia. Em S. Paulo o senador Antônio Prado, agitando
com os convocadores da reunião agrícola que deu em resultado a fundação da sociedade promotora de
libertações, deu-nos uma prova cabal de que a província de S. Paulo é mais abolicionista do que parece e de
que o movimento agitado por S. Ex. não adiantou nada ao pensamento da maioria da província.
Todavia, não negamos a S. Ex. um grande serviço: o Sr. Prado fez com que tudo isso ficasse bem
público e a publicidade e o estímulo fizeram com que o movimento se acelerasse por tal forma, que se pode
assegurar que já não é progresso de ideias senão tropel, avalanche impossível de deter, da ideia emancipadora7.
Vamos então tentar compreender a forma escolhida pelo jornal para dar essa notícia naquele
momento. Em primeiro lugar, havia certa prestação de reverência à Igreja católica, conforme
mencionara a Gazeta de Notícias. Depois, a concessão de liberdades individuais era saudada de
forma eloquente. Algo que parecia vir mais em benefício do Papa do que dos próprios escravizados.
Aliás, nada se diz sobre essas pessoas, seus nomes, onde moravam, quais idades e sexo. Nenhuma
informação foi registrada. Finalmente glórias eram dadas ao movimento abolicionista de São Paulo.
Por mais que não devesse existir um pensamento homogêneo dentro do jornal, havia uma
valorização da libertação em parcelas dos escravos. Um movimento interno de cada província e a
vontade senhorial prevalecia sobre a defesa de uma liberdade declarada a todos os escravos do país.
A polêmica entre a Gazeta de Notícias e o Diário de Notícias serviu então para mostrar o
alinhamento de cada jornal com o governo, mas também o posicionamento diante de uma questão
ímpar para o país: o processo que levaria à libertação de todos os escravizados. Mesmo entre a
imprensa dita a favor da abolição, a forma como ocorreria a substituição do trabalho escravo
produzia opiniões bastante diversificadas.
Se em dois jonais aparentemente interessados num mesmo público leitor existiam essas
dissonâncias, como as notícias sobre a abolição chegaram às leitoras? Existia uma forma específica
para se dirigir às “gentis leitoras”? Em que medida, as revistas dedicadas ao público feminino
7 Diário de Notícias. 4 de janeiro de 1888.
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participaram dos debates que culminaram com a abolição da escravidão? Houve algum esforço de
reflexão sobre os destinos dos trabalhadores outrora escravizados, em especial, das trabalhadoras
domésticas que passaram a ocupar o lugar das mucamas?
Política também interessa às leitoras de A Estação?
A Estação: Jornal Ilustrado para a Família era uma revista de moda e literatura, publicada
quinzenalmente entre janeiro de 1879 a dezembro de 19048. A edição brasileira pertencia a H.
Lombaerts & Comp. Enquanto o caderno de modas era ricamente produzido na França, o
suplemento literário, ao longo de toda a publicação, ficou sob responsabilidade de redatores
brasileiros. Entre eles destacou-se Machado de Assis, com a publicação de um número
consideravalmente grande de contos – alguns bastante reconhecidos como “O alienista” e “Capítulo
dos chapéus” – e da primeira versão do romance Quincas Borba. Além de Machado de Assis,
aquelas páginas contaram com a publicação de séries de crônicas teatrais assinadas por Dantas
Junior e X.Y.Z e, a partir de 15 de dezembro de 1885 Eloy, o Heróe passou a escrever as suas
“Croniquetas”. X.Y.Z e Eloy, o Heróe eram pseudônimos utilizados por Artur Azevedo.
Boa parte dos comentários sobre o movimento abolicionista apareceu naquela revista nas
crônicas assinadas por Eloy, o Heróe, tornando esse narrador o porta voz de tais acontecimentos.
Desse modo, logo no primeiro número de 1888, estava lá a notícia dos libertos por causa do jubileu
do Papa Leão XIII. Antes de mais nada, no entanto, Eloy, o Heróe cumprimentava suas leitoras, por
causa do ano novo, e sem fazer balanços sobre o ano passado, conforme habitual nos jornais diários,
remetia-se à questão tratada por Valentim Magalhães nas “Notas à margem”, série de crônicas
publicada na Gazeta de Notícias. Eloy, o Heróe e Valentim Magalhães insistiam sobre a
necessidade de alguns ofícios serem destinados a mulheres. Com certo ar de pilheria, como já era
marca daquele espaço9, brincava com a autorização do ministério da Agricultura de empregar as
mulheres no serviço de distribuição de correspondências. Afinal de contas, “em toda parte do
8 SILVEIRA, Daniela Magalhães da. Fábrica de contos: ciência e literatura em Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. 9 CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Sousa; PEREIRA, Leonardo (org.). “Apresentação”. In: História em cousas
miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.
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mundo é a mulher quem dá as cartas”! Finalmente, tomava a parte central do texto para o processo
de libertação dos escravos, conforme podemos acompanhar:
Deve ter sido muito grata a Leão XIII a notícia de que, para comemorar-lhe o Jubileu, foram aqui
libertados duzentos e cinquenta animais pensantes. Duvido quem entre os inúmeros e suntuosos presentes de
todo o orbe católico enviados a Sua Santidade, fosse algum recebido com mais satisfação do que essa notícia
alegre e consoladora.
O maior e o mais legítimo prazer que pode sentir um homem de bem, é contribuir, direta ou
indiretamente, para a liberdade do próximo, e esse prazer maiores proporções deve tomar no coração do chefe
visível da igreja fundada pelo Cristo.
O Papa seria o primeiro a desejar que a mesma piedosa aplicação tivesse todo o dinheiro que no Brasil
se angariou para brinda-lo. Se os brasileiros, ou antes, as brasileiras não aproveitassem o ensejo para a libertação dos cativos,
seria o caso de ir a Roma e não ver o Papa.
Os desgraçados que naquele dia de júbilo, ou de Jubileu, encontraram a liberdade que tão longe
supunham talvez, e cujo cativeiro não se parecia nada – creiam VV. EEx. – com o do Vaticano, serão outros
tantos esteios do prestígio universal de Sua Santidade, e de hoje em diante os primeiros a sustentar até o
insustentável, isto é, a infalibilidade do Papa.10
É possível observar como a revista feminina impria uma linguagem diferente daquela usada
pelos outros dois jornais citados neste texto. A questão religiosa não foi deixada de lado, talvez
atendendo aos anseios do próprio público do periódico. No entanto, o modo de se referir aos que
receberam as cartas de alforria não parece nada delicado. Primeiro afirma terem sido libertados
“animais pensantes”. Depois segue com o mesmo discurso valorizado pelo Diário de Notícias,
exaltando muito mais o Papa do que as outras pessoas envolvidas no ato. Mais uma vez, as pessoas
escravizadas não foram nomeadas e talvez nenhum daqueles redatores tivessem algum
conhecimento sobre a vida delas nem antes, nem depois do recebimento das cartas. A grande
especificidade aqui estava por conta da inclusão das “brasileiras”. Eram elas quem mais deveriam
aproveitar-se da oportunidade do jubileu para conceder liberdade aos seus escravos. O cronista
talvez estivesse com isso clamando pelo sentimento religioso e caridoso que acreditava ser
intrínseco às mulheres. Além de chamar atenção daquelas ricas senhoras de escravos leitoras da
revista que nada tivessem feito naquela ocasião. O trecho funcionava assim como forma de apelar
às leitoras que ainda era tempo de libertar seus escravos. Finalmente retoma os libertos e tenta forjar
naquelas pessoas uma gratidão pelo Papa.
A mesma notícia, portanto, apareceu em três publicações distintas e com objetivos também
específicos. O Diário de notícias rendia elogios ao feito, valorizando a prática de concessão de
10 A Estação. 15 de janeiro de 1888.
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liberdades individuais. A Gazeta de Notícias recorria à notícia apenas para mostrar o quanto o
jornal concorrente era católico e parcial. A Estação apelava para a sensibilidade feminina de suas
leitoras e tentava comovê-las a distribuir alforrias. Em nenhum dos três casos, é importante frisar,
apareceu qualquer informação sobre as pessoas alforriadas. As notícias valorizavam muito mais o
Papa e os senhores e senhoras que praticavam um suposto ato de bondade, incitadas pelo
cristianismo.
Alguns números mais adiante, outra polêmica envolvendo vários jornais da Corte voltou a
aparecer. Dessa vez, Eloy, o Heróe mostrava o posicionamento de cada folha:
Depois da minha última croniqueta toda a imprensa mudou de aspecto: o Novidades está na oposição,
a Gazeta de Notícias fez-se ministerialista, o Diário das Ditas (Diário de Notícias) defende o governo, o Paiz
retirou da circulação os seus adjetivos petroleiros, e a Cidade do Rio entoa hosanas ao novo presidente do conselho. O Jornal do Commercio, que por amor da abolição da escravatura já começou o Governo com uma
revolução, receia agora que o programa provável do novo ministério dê com o país de pernas para o ar...11
A indisposição, dessa vez, havia causado a queda de um dos ministérios de maior duração
do Segundo Reinado. Com a retirada de Cotegipe, a princesa Isabel reformulou seu gabinete,
mantendo os Conservadores no poder12
. Elevado à posição principal, João Alfredo Correia de
Oliveira contava com a desconfiança do narrador das Croniquetas que pontuava todos os detalhes
da queda do ministério anterior, assim como a importante participação da imprensa naquela crise
política. Consumia com essa narrativa, boa parte do espaço reservado à crônica na revista feminina.
Por isso recorria ao seu cacoete de se desculpar com as leitoras sempre que algum assunto político
dominava seu escrito: “Bem sei que estes assuntos não agradam às leitoras; mas que hei de eu fazer,
não me dirão? Durante a quinzena só se falou em política, e eu não posso colher assuntos onde os
não há”.
Esse foi o tom dominante naquelas Croniquetas nos meses que antecederam à abolição da
escravidão. Vemos um narrador sempre disposto a chamar para o debate a imprensa diária, com
frases provocaticas e análises da posição de outros jornais. Além disso, muito preocupado com os
desdobramentos da campanha abolicionista e com as ações do governo. Embora estivesse
escrevendo essencialmente para mulheres interessadas em modas, em folhetins e no movimento dos
teatros, não abriu mão de seus comentários políticos. Talvez fizesse isso porque contava com o
11 A Estação. 31 de março de 1888. 12
ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. P. 343.
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apoio feminino para alcançar a libertação de escravos, seja por meio da concessão de cartas de
alforrias, seja na preparação de eventos para angariar fundos que seriam usados para a libertação de
um número maior de pessoas que ainda viviam como escravas. Além disso, essa estratégia também
provocava o interesse de quem parecia quase sempre alheio ao movimento político. Por isso, se
desculpava pela inserção da temática sem dar descontinuidade à sua escrita.
Naquela mesma crônica, Eloy, o Heróe já havia deixado escapar que contava com leitoras
atentas inclusive para o posicionamento político dele. Assim afirmava: “As leitoras, se não
passaram por alto croniquetas anteriores, devem saber que as minhas tendências políticas não são
conservadoras; entretanto, forçoso me é reconhecer que há muito tempo não tínhamos no governo
sete nomes tão simpáticos”13
. Esse público de leitoras antenadas com a vida política deveria ser
formado, por exemplo, pelas mulheres que, embora não tivessem o direito eleitoral, participavam do
movimento abolicionista. Segundo Angela Alonso, as mulheres adentraram o abolicionismo por três
portas: a filantropia; de braços dados com homens abolicionistas que faziam parte da vida privada
delas e pelo teatro14
. Aos poucos e algumas vezes pelas bordas, essas mulheres participavam da
política das ruas, deixando para trás a pecha de cidadãs incapazes. Existia, portanto, um público
feminino interessado nas inserções políticas feitas nas Croniquetas, de Eloy, o Heróe.
Para além desse público feminino considerado mais politizado, as inserções de Eloy, o
Heróe atingiam também outras mulheres, conforme já mencionado. Aquelas que passavam a maior
parte do tempo em suas casas, mas que nem por isso estavam desinteradas do movimento das ruas e
das câmaras. Até porque a continuidade da escravidão também as atingiam, seja como prestadoras
de serviços, seja como aquelas que ainda mantinham pessoas escravizadas para a realização de seus
trabalhos domésticos. Esse cronista ajudou a construir uma versão muito parcial do momento que
antecedeu a assinatura da lei Áurea. Artur Azevedo, por meio de seu Eloy, o Heróe, não escondia a
sua luta a favor da abolição e também demonstrava ser favorável a uma sobrevida da sistema
monárquico no país. Vejamos, a seguir, as crônicas publicadas em maio de 1888.
O fato mais importante da quinzena
13
A Estação. 31 de março de 1888. 14 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas. Op. Cit. Pp. 146-7.
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O fato mais importante da quinzena foi a abertura do Parlamento e a festa que se lhe seguiu.
Sua Alteza a Princesa Imperial Regente deve ter gravado na memória o dia 3 de maio de 1888 como o
dia mais feliz da sua vida. A ovação que lhe fez o povo foi muito significativa, e eu sinto que o Diário de Notícias, com uma proclamação espetaculosa, tirasse a essa manifestação popular o seu caráter de
espontaneidade.
Os jornais e revistas publicados na primeira quinzena de maio encontraram diversas
formas de narrar os momentos imediatamente antecedentes à assinatura da Lei Áurea, assim como a
eleger mitos e heróis. A Revista Illustrada, por exemplo, não economizou em reverências à princesa
Isabel. Em seu número de 5 de maio de 1888, produziu toda uma descrição dos acontecimentos
ocorridos no dia 3 de maio, com um trecho especialmente dedicado à “excelsa Princesa”. A
princesa “vinha comovida, como quem acabava de ter do povo a mais bela recepção, mas segura de
si e dominando, com energia, os sentimentos que lhe iam n’alma”15
. Era a governante que, embora
fosse mulher, teve a descrição de seus sentimentos moderados, contrariando tudo o que aquela
mesma imprensa havia tempos considerava como essencialmente feminino. Havia comoção, mas
também segurança e domínio. Havia a necessidade de afastar as características mais passionais,
mesmo quando isso era uma das formas preferidas na hora de descrever o mundo feminino. As
características físicas seguiam o mesmo estilo: “A sua fisionomia tinha a palidez poética dos
momentos solenes, o colo ofegava, mas a voz era clara e firme”. Era a união da forma poética
definidora do feminino com a firmeza física dos mais destacados governantes.
O Diário de Notícias, alvo constante das críticas de Eloy, o Heróe, começou sua saga
narrativa no dia 3 de maio, quando dedicou boa parte de sua primeira página à princesa Isabel e a
convocar a população para comparecer “no Campo da Aclamação, junto ao edifício do Senado,
para, depois da abertura da Assembleia Geral, acompanharem SUA ALTEZA IMPERIAL
REGENTE por começar neste dia uma nova era gloriosa de liberdade”. No dia seguinte, a folha
publicou integralmente a fala da princesa e, no dia 5 de maio, analisou o comportamento da
população e da própria regente:
Uma grande multidão, composta de todas as classes sociais, veio, respeitosamente, desde S. Cristóvão,
manifestar à Augusta Princesa Regente qual o pensamento dominante, quais as aspirações nacionais.
Nesse dia, pode-se dizer, patenteou-se e confirmou-se que a Princesa Imperial merece do povo
brasileiro a mais sincera e ardente veneração.
Feliz prelúdio de seu futuro reinado!16
15
Revista Illustrada. 5 de maio de 1888. 16 Diário de Notícias. 5 de maio de 1888.
9
A docilidade misturada com a firmeza, conforme havia caracterizado a Revista Illustrada,
cedeu espaço, no Diário de Notícias, para a demonstração da confiança popular recebida pela
Regente, o que garantiria a ela um terceiro reinado. Independente do estilo narrativo escolhido para
a elaboração da notícia, houve uma coordenada exaltação da princesa com vistas num governo
futuro. Para tanto, tentou-se ocultar o modo pelo qual a ciência definia a fragilidade e dependência
feminina. A princesa era firme na medida certa para esses jornais e revistas.Vejamos como isso foi
feito em A Estação, um dos principais periódicos da época especialmente dedicado ao sexo
feminino.
Depois de afirmar que o fato mais importante da quinzena havia sido a abertura do
Parlamento, Eloy, o Heróe faz questão de recordar que as páginas da revista eram “percorridas por
tão formosos olhos”, referindo-se às suas leitoras. Desse modo, o narrador mostrava a necessidade
de oferecer um caráter especial a narrativa dos últimos acontecimentos, considerando que escreveria
sobre a princesa numa revista voltada para as mulheres. No entanto, a reverência à princesa Isabel
não veio de forma tão contumaz, conforme apareceu em outros títulos publicados àquela mesma
semana. Depois de transcrever um trecho da fala da regente, o narrador passou a questionar se havia
alguém que por ventura pudesse discordar da abolição. Concluiu suas reflexões, do seguinte modo:
Ainda haverá algum deputado bastante corajoso para defender a escravidão, e assisti-la nos seus
últimos arrancos?
É possível.
Mas vejam lá, meus senhores; ainda estão em tempo de bater nos peitos e murmurar o Peccavi, que
indultou o Sr. Moreira de Barros; só assim poderão salvar toda a odiosidade das suas ideias.
Eu desejava ver todos os brasileiros ligados para erguer aos céus um Hosana uníssono, sem que uma
única voz – nem mesmo a do Sr. Andrade Figueira – destoasse do conceito geral.
Nestes dias de tanto júbilo para a pátria livre deviam calar-se todos os ódios, todas as prevenções,
todos os interesses mesquinhos.
A gente empobrece sem os escravos? Pois que empobreça! Deve ser consoladora a miséria nos braços
da liberdade17.
Nesse momento, o que fazia Eloy, o Heróe era destacar possíveis nomes masculinos
contrários à medida abolicionista. Eram aqueles que pensavam apenas em questões econômicas.
Muito distintos de suas leitoras, assim como da própria princesa. A crônica segue informando sobre
17 A Estação. 15 de maio de 1888.
10
os acontecimentos da semana, sendo que apenas no segundo número de maio as leitoras puderam
acompanhar editorial e crônica agora já com a lei de fato assinada.
O número de A Estação, publicado no dia 31 de maio de 1888, começou, como sempre, com
o seu caderno de modas, reservando ao Suplemento Literário as notícias sobre as mudanças
ocorridas no país. Esse iniciava-se com alguns capítulos da publicação da primeira versão do
romance de Machado de Assis, Quincas Borba. Em seguida, aparecia um texto sem assinatura, sob
o formato de editorial, no qual informava:
A Estação congratula-se especialmente com as suas leitoras pelo grande ato de treze de Maio, a Lei
que aboliu a escravidão no Brasil. Essa lei de justiça implica também um sentimento de caridade, e a caridade é
o característico da alma feminina, mormente na brasileira.
Sim, desde o dia treze de Maio de 1888 não há escravos no Brasil. A alegria pública e as festas, que
duraram oito dias, mostram bem que o Brasil não almejava outra coisa mais ardentemente. De toda a parte
vieram notícias de regozijo nacional. Tudo isto é velho para as nossas leitoras18.
Como um periódico quinzenal, A Estação quase nunca oferecia a notícia em primeira mão.
Aliás, os responsáveis por seus editoriais recordavam que essa nem era a função da revista. Uma
folha de moda e literatura, com série de crônicas dedicadas à vida social e cultural da Corte e que
precisava pedir desculpas, quando gastavam algumas linhas a mais com questões políticas. Àquela
época, no entanto, parecia não ser possível se manter distante, alienados de todas as mudanças
enfrentadas pelo país. Interessa perceber aqui como quem se responsabilizou pela escrita do texto
teve o cuidado de, mais uma vez, levantar a ideia de que a abolição era um ato de caridade (e não de
justiça social), portanto, inteiramente de acordo com o espírito feminino. Ao fazer esse movimento,
o texto tentava moldar as reações femininas diante do ocorrido, muito mais do que a própria lei.
Aquela que não se sentisse feliz com a assinatura da lei Áurea seria a destoante. Destoaria não
apenas porque não possuía uma característica intrisecamente feminina – a caridade – como também
de qualquer brasileiro, independente do sexo – “o Brasil não desejava outra coisa”.
O texto também renderia reverências à princesa Isabel, mas fez isso de forma bastante
cautelosa:
Por um encontro de circunstâncias, visto que o Imperador está ainda na Europa, foi Sua Alteza
Imperial a Senhora D. Isabel que assinou a Lei de treze de Maio. Outro motivo de regozijo particular para as
senhoras brasileiras, que vêm assim a primeira dentre elas honrar o sexo, dando impulso a uma ação liberal e
cristã, resgatando a injustiça dos séculos com uma simples penada de ouro19.
18
A Estação. 31 de maio de 1888. 19 Idem.
11
A princesa Isabel foi a responsável pela assinatura apenas por causa da doença e
consequente afastamento de D. Pedro II do cargo. Era um encontro de circunstâncias, talvez um
lamento. A princesa não teria feito nada para chegar aquele desfecho, além de cumprir a ordem
natural da sucessão imperial. Ainda assim, as leitoras de A Estação deveriam se sentir honradas
pelo fato de ter sido uma mulher a responsável pela assinatura da lei. O restante do texto seguia
ainda mais cauteloso, reafirmando que nem todos lucrariam com aquela decisão, mas o importante
era que finalmente a pátria estava livre. Ainda vale a pena lembrar que poucos foram os momentos
em que existiu um editorial publicado em A Estação. Isso normalmente acontecia apenas no início
do ano, com o objetivo de congratular-se com as assinantes. Aquele, portanto, parecia ser um
divisor de águas na vida de todo o país. Conforme anunciou Eloy, o Heróe, em sua Croniqueta: “o
fato mais importante de nossa vida social”.
O cronista, sem os cuidados de um texto editorial, derramou-se em elogios à princesa:
Folgo de lembrar neste periódico de senhoras, que foi a mão de uma senhora que assinou a suspirada
Lei, ao mesmo tempo libertando o escravo do cativeiro, e a nós outros, que nascemos livre, da inaudita vergonha de ter escravos.
Honra e glória à princesa D. Isabel! Que o seu nome simpático seja transmitido à mais remota
posteridade, envolvido nas bênçãos das mães dos oprimidos e dos escravizados! Que a História faça das suas
páginas um sacrário que o guarde e um documento sublime que o santifique eternamente!20
Essa forma de aproximar a princesa Isabel das leitoras do periódico foi uma característica
específica de A Estação. A mãi de família era outro períodico quinzenal, também voltado para o
público feminino, mantido pelos mesmos editores de A Estação: H. Lombaerts & C. Em seu
número publicado logo em seguida à assinatura da lei Áurea, apareceu o seguinte editorial:
Ave libertas!
13 de maio de 1888.
Minhas senhoras,
A vós, cujos corações se expandem jubilosos pelo acontecimento mais glorioso para a história de
nossa Pátria, vos saudamos, agora, sim, orgulhosos por não pertencermos mais a um país de escravos.
Nós, que também deste lugar, trabalhamos pela grande ideia, congratulamo-nos com o mundo Livre,
pela última conquista que lhe restava. Dr. Carlos Costa, redator-principal.
H. Lombaerts & C., editores21.
A diferença na forma de dar a mesma notícia, em periódicos que possivelmente
compartilhavam público idêntico, é indício do interesse da revista de moda e literatura de construir
uma narrativa para aquele momento em que as mulheres estivessem inseridas. Por isso, Eloy, o
20
Idem. 21 A mãi de família. 15 de maio de 1888.
12
Heróe fazia questão de frisar que havia sido a mão de uma senhora a responsável por aquela
assinatura. Além disso, a revista ainda publicou o retrato da princesa com a seguinte legenda: “A
Sua Alteza a princesa imperial regente D. Isabel, a Redentora, homenagem do jornal de modas A
Estação.
O imperador piorou em Milão
Enquanto corria o debate sobre a assinatura da lei, a notícia que tomava conta dos principais
periódicos do país era sobre o estado de saúde do imperador. Desse modo, logo depois de render
reverências à princesa Isabel, Eloy, o Heróe indicava que essa questão impedia que as
comemorações em torno da assinatura da lei fossem completas22
. Passado o momento incial de
euforia, na crônica publicada em 15 de junho de 1888, o narrador revelaria que boa parte daquilo
que havia sido publicado nos “Telegramas” a respeito da piora da doença do imperador não passava
de boatos. A ideia defendida era a de que o imperador deveria voltar e reassumir o seu cargo de
regente. Porque a população o esperava de braços abertos. Embora pouco tempo atrás a princesa
fosse aclamada por todos, o governo continuava sendo de D. Pedro II e qualquer mudança nesse
sentido parecia assustar bastante. Fazia a defesa do regime, bem como da adequada aplicação da lei
de libertação dos escravos.
Até porque todas essas questões pareciam caminhar juntas. Foi isso que apareceu na crônica:
Não conseguiu o Governo tapar a boca às vitimas da abolição com o projeto de criação de bancos
regionais.
A indenização continua a ser o estribilho do coro dos despeitados. “Indenização ou República!”
exclamam eles, como se a república pudesse nascer de uma questão de interesses pecuniários.
Deixá-los, - mesmo porque às leitoras pouco aprazem estes assuntos políticos, embora a política só
neles figure incidentemente.
*
Prefiro congratular-me com Suas Excelências pelas melhoras obtidas pelo Imperador, que embarcará para o Brasil em princípios do mês vindouro, “se Deus quiser”, como diz um telegrama do visconde de Mott
Maia.
O período imediatamente posterior à assinatura da lei não foi apenas de calmaria ou festas.
As “vítimas da abolição”, ou seja, a classe senhorial, continuaram requerendo aquilo que
acreditavam ser direito, o pagamento de indenizações. E, mais uma vez, as leitoras são chamadas a
participar desse debate político. Mostrando como aquela era uma revista de moda e literatura
22 A Estação. 31 de maio de 1888.
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preocupada com a inserção das leitoras no mundo político, mesmo quando afirmava não fazer isso.
Ao escolher essa estratégia de atuação, especialmente por meio do narrador Eloy, o Heróe, é
possível observar algumas das principais opções políticas daqueles homens de letras, assim como a
tentativa de criar um movimento em torno da assinatura da lei em que as mulheres também
possuíam uma participação ativa. Não apenas por meio da princesa Isabel, como também por causa
das leitoras envolvidas diretamente com o movimento abolicionista, senhoras de escravos ou
simplesmente mulheres interessadas pelos desdobramentos que a execução da lei poderia levar para
o país.
Fontes
A Estação: Jornal Ilustrado para a família (1888).
A mãi de família: Jornal científico, literário e ilustrado (1888).
Diário de Notícias (1888).
Gazeta de Notícias (1888).
Bibliografia
ALBUQUERQUE, Wlamyra. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868 – 88). São
Paulo: Companhia das Letras, 2015.
BALABAN, Marcelo. “Transição de cor”: Raça e abolição nas estampas de negros de Angelo
Agostini na Revista Illustrada. Topoi. Rio de Janeiro. V. 16. N. 31. Pp. 418-441. Julho a dezembro
de 2015.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras 2003.
CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo. “Apresentação”. In:
História em cousas miúdas: Capítulos de História Social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da
Unicamp, 2005.