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“As pessoas acima do lucro”
PPOOLLÍÍTTIICCAASS DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO,, DDEESSEENNVVOOLLVVIIMMEENNTTOO EE NNOOVVOOSS
MMOOVVIIMMEENNTTOOSS SSOOCCIIAAIISS
Maria Alexandra de Sá Dias da Costa
Tese de Doutoramento em Ciências da Educação
apresentada à Faculdade de Psicologia e de
Ciências da Educação da Universidade do Porto realizada sob a orientação do Professor Doutor
António M. Magalhães
Volume I
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico (convertido pelo programa Lince). Nas citações de obras portuguesas editadas antes da entrada em vigor do Acordo Ortográfico mantém-se a grafia original.
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RREESSUUMMOO
Este trabalho tem como finalidade contribuir para a complexificação da
discussão em torno das relações entre educação e desenvolvimento.
Nesse sentido configurou-se como objeto de estudo as relações discursivas
estabelecidas entre educação e desenvolvimento por atores políticos que a
assumem como central: os novos movimentos sociais. A centralidade destes
discursos justifica-se pela hipótese de trabalho de que, num contexto de
globalização política e económica e de reescalonamento do Estado, aqueles
discursos se apresentam como contra-hegemónicos na construção de modos de
pensar e agir sobre a realidade social. Para a sua compreensão são
contrastados com os discursos de outros atores políticos que representam um
modelo de globalização hegemónica.
Assumindo como método a Análise Crítica do Discurso, nomedamente a
abordagem dialética-relacional desenvolvida por Norman Fairclough, pretende-
se com este trabalho identificar, no campo específico das relações discursivas
entre educação e desenvolvimento, como se caracteriza a ordem de discurso
contra-hegemónica, nomeadamente i) o que influencia e/ou determina a
produção do discurso ii) como é produzido e organizado o discurso; iii) o que
significa educação na equação educação para o desenvolvimento; iv) o que
significa desenvolvimento na equação educação para o desenvolvimento.
Conclui-se com a discussão das possibilidades de mudança social que a
ordem de discurso caracterizada poderá proporcionar.
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3
AABBSSTTRRAACCTT
This work aims to contribute to the complexity of the discussion around
the relationship between education and development.
In this sense, it was configured as object of study the discursive relations
between education and development established by political actors that take
those as central: new social movements. The centrality of those discourses is
justified by the hypothesis that in a context of political and economic
globalization and rescaling of state, those speeches are presented as building
counter-hegemonic ways of thinking and acting on social reality. For their
better understanding they’re contrasted with the speeches of other political
actors that represent a hegemonic model of globalization.
Assuming Critical Discourse Analysis – namely the dialectical-relational
approach developed by Norman Fairclough – as method the intention of this
work is to identify, in the particular field of discursive relations between
education and development, how is characterized the counter-hegemonic order
of discourse. In order to do that, it is analyzed i) what influences and / or
determines the production of discourse ii) how it is produced and organized the
discourse, iii) what education means in the equation education for development,
iv), what means development in equation education for development.
One concludes with a discussion on the possibilities of social change that
the characterized order of discourse can provide.
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RREESSUUMMÉÉEE
Ce travail vise à contribuer à la complexité de la discussion autour de la
relation entre éducation et développement.
En ce sens il était configuré comme objet d'étude les relations discursives
entre l'éducation et le développement établis par les acteurs politiques qui la
prennent comme un élément central: les nouveaux mouvements sociaux.
La centralité de ces discours est justifiée par l'hypothèse que dans un
contexte de globalisation politique et économique et de rééchelonnement de
l'État, ces discours se présente comme une construction contre-hégémonique
des façons de penser et d'agir sur la réalité sociale. Pour leur compréhension ils
sont mis en contraste avec les discours des autres acteurs politiques qui
représentent un modèle hégémonique de globalisation.
En tenant comme méthode l'analyse critique du discours, en savoir
l’approche dialectique-relationnelle développée par Norman Fairclough, l'objectif
de ce travail était d'identifier, dans le domaine particulier des relations
discursives entre éducation et développement, comme se caractérise l'ordre de
contre-hégémonique du discours, en savoir : i) ce qui influence et / ou
détermine la production du discours ii) comme se produit et organise le
discours, iii) ce que éducation signifie dans l'équation éducation pour le
développement, iv), ce qui signifie développement dans l'équation éducation pour
le développement.
On conclut avec une discussion sur les possibilités de changement social
que peut être fourni par l'ordre du discours caractérisée.
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A Stephen R. Stoer Professor, Orientador, Colega e Amigo. Inspiração diária e exemplo de vida. Este trabalho é indelevelmente marcado pela sua presença.
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AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS
Quem faz um doutoramento diz que este é um trabalho que implica
grandes momentos de solidão e, portanto, a capacidade de gerir essa mesma
solidão – ou aprender a lidar com a incapacidade de o fazer… É verdade. Mas
é igualmente verdade que esses momentos solitários são interrompidos por
momentos solidários. Foi assim comigo porque tenho a felicidade de estar
rodeada de gente que me quer bem e a quem quero, aqui, agradecer
publicamente. Para além do papel e importância concreta que cada um teve
neste processo, une-os uma qualidade que me é cara: o de serem solidários.
Começo por agradecer ao meu orientador. O Prof. António Magalhães
herdou-me, literalmente, enquanto orientanda. Num voto de generosa
confiança acedeu a orientar-me apesar de, nessa altura, a sua experiência de
trabalho comigo ser pouca e de não me conhecer nesse papel. Se quero
publicamente agradecer-lhe as discussões teóricas e metodológicas tidas, as
leituras atentas e críticas realizadas e as sugestões feitas – ou seja, o papel
fundamental de um bom orientador –, quero sobretudo realçar a paciência, a
preocupação e a amizade demonstradas neste longo processo. Tenho
consciência de como foi difícil lidar com alguém tão „inorientável‟ como eu e
com características de trabalho tão diferentes das suas. Muito obrigada pela
paciência, conselhos, ajuda e alento. Muito obrigada pela confiança. O que
houver de qualidade nesta tese deve-se também a si. Os erros são,
obviamente, da minha inteira e exclusiva responsabilidade.
Ao Prof. José Alberto Correia. Homem de pensamento brilhante, de
reflexão epistemológica, teórica e analítica notáveis e que, ainda assim, não
fica preso num qualquer Olimpo dourado, mantendo, como poucos, a
capacidade (a humanidade…) de se manter próximo, de ver no “outro” a
pessoa que existe para além dos papéis institucionais. A si estarei
eternamente grata. Pela solidariedade e confiança institucional mas também
pessoal. Pela amizade. Pelo alento. Pela força. Pela generosidade. Muito, muito
obrigada.
Aos meus amigos da Faculdade de Psicologia e de Ciências da
Educação. Amigos, sim. Porque eles são a prova de que a carreira académica,
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cada vez mais alicerçada na competitividade, pode ser também um espaço de
solidariedades e de cumplicidades:
- à Teresa Medina, mulher de convicções fortes e de uma coerência
inigualável, que apesar da sua enorme carga de trabalho se disponibilizou, de
mote próprio, a assegurar algum do meu serviço docente em dois anos letivos.
Obrigada, querida Teresa, pela tua vontade de ajudar, pela tua irredutibilidade
em fazê-lo e pelo sorriso com que perguntavas “já está?”;
- ao João Caramelo, amigo de tantas horas e contextos. Obrigada João,
por generosamente me aliviares a carga horária (e sobretudo a dispersão de
trabalho), por perderes tempo comigo, pelo cuidado constante e telefonemas a
perguntar “precisas de alguma coisa?” e pelas leituras feitas;
- à Manuela Terrasêca, amiga convicta, exigente e presente, e que
tentou agir contra os meus momentos de prostração. Obrigada, Manela, pelos
telefonemas e mensagens mas também pelo constante “o que é que eu posso
fazer?” e pelos momentos de presença possível;
- à Helena Barbieri, amiga serena e calma, sempre atenta não obstante
as suas próprias prioridades. Obrigada, Léninha, pela tua preocupação não
revelada (sim, eu sei…) e disponibilidade para partilhar tempos de trabalho;
- à Manuela Ferreira, companheira de tantas conversas, sempre pronta
a ler e rever o texto escrito, e que num momento difícil me deu um alento
importante. Obrigada, Manelita, pelo “Ainda tenho no desktop o que me
enviaste. Deixaste-me água na boca.”: nem imaginas a força que isso me deu;
- ao Rui Alves, parceiro de gabinete e cúmplice. Obrigada, Rui, por
ouvires os meus desabafos, por desdramatizares as minhas ansiedades, por te
rires dos meus receios, pelos conselhos, pelas partilhas e por nunca te
esqueceres de perguntar, como quem afirma, “então, isso vai?”;
- ao Paulo Nogueira, pela partilha de angústias e desânimos mas
também pelo ânimo, pelo “não desligues!” e pelo exemplo de tenacidade;
- à Carlinda Leite pelo genuíno e afetuoso apoio manifestado diversas
vezes e por diversas formas; à Isabel Menezes, pelas constantes manifestações
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de vontade de ajudar; à Natércia Pacheco, mais afastada fisicamente mas
presente no apoio; à Preciosa Fernandes pelo interesse demonstrado.
A todos os meus amigos fora do contexto da FPCE, que compreenderam
as minhas ausências mas reclamaram a minha presença. Muito obrigada por
todos os “como vai o trabalho?”, “então, já acabaste a tese?”, “quando é que
acabas isso?”, “Fazes falta aqui, na vida real!”. Um agradecimento especial à
Sónia Dantas, disponível “à distância de um assobio” e à Carmo Mascarenhas,
amiga de todas horas e revisora atenta da bibliografia.
Aos estudantes da licenciatura em Ciências da Educação da FPCE/UP,
com quem trabalhei nas disciplinas de Análise de Políticas Sociais e
Educativas; Socioantropologia do Desenvolvimento; Educação, Cooperação e
Desenvolvimento. Obrigada pelas discussões proporcionadas e pelas questões
levantadas que me permitiram também aprender. Um “obrigada” especial aos
estudantes que frequentaram Socioantropologia do Desenvolvimento no ano
letivo 2009/2010: vocês fizeram da minha „estreia‟ nessa disciplina uma
aventura estimulante pela qualidade dos vossos contributos e reflexões.
A todas estas pessoas, para além do agradecimento, devo um pedido
público de desculpas pelo tempo que esta minha tarefa demorou e pelos
constrangimentos e preocupações que essa demora lhes causou.
Quero ainda destacar cinco pessoas que estão e estarão, para sempre,
no meu coração:
Stephen R. Stoer, por ter sempre acreditado em mim.
A minha querida amiga Filipa César, o anjo da guarda que no pior dos
momentos me agarrou, levantou e nunca mais me largou.
O meu querido irmão que, sendo o mais novo, fez tão bem de irmão
mais velho. O meu pai e a minha mãe que olharam por mim como só os pais
sabem fazer. A vocês os três agradeço tudo. E agradeço, sobretudo, o serem e
o estarem. Sempre.
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AABBRREEVVIIAATTUURRAASS
ACD – Análise Crítica do Discurso
AD – Análise de Discurso
BM – Banco Mundial
CE – Comissão Europeia
CJ – Comércio Justo
CONCORD – Confederação Europeia das ONG de Ajuda Humanitária e de
Desenvolvimento
EFTA – European Fair Trade Association
FINE – rede informal que agrega as seguintes organizações de Comércio
Justo: IFAT, EFTA, NEWS! e FLO
FLO – Federation of Labelling Organisations
IFAT – International Fair Trade
IPAD – Instituto Português de Ajuda ao Desenvolvimento
NEWS! – Network of European World Shops
NMS – Novos Movimentos Sociais
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONG – Organização Não-Governamental
ONGD – Organização Não-Governamental para o Desenvolvimento
ONU – Organização das Nações Unidas
UE – União Europeia
WFTO – World Fair Trade Organization
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“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
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ÍÍNNDDIICCEE GGEERRAALL
ÍÍNNDDIICCEE DDEE FFIIGGUURRAASS 1177
ÍÍNNDDIICCEE DDEE QQUUAADDRROOSS 1177
II IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO 1199
1. Todas as investigações têm uma história pessoal 21
2. Construção da investigação: objeto de estudo, problemática e método 31
2.1. Objeto de estudo 32
2.2. Problemática de investigação 36
2.3. ‘Opções’ metodológicas 53
3. Roteiro do trabalho 61
IIII DDAA MMEETTOODDOOLLOOGGIIAA 6655
1. A Análise de Discurso: fundamentos epistemológicos e teórico-
metodológicos 71
1.1. Premissas filosóficas da análise do discurso ou o pólo
epistemológico 71
1.2 Modelos teóricos de conceptualização do discurso ou o pólo
teórico 73
1.3. Linhas e orientações metodológicas ou o pólo morfológico 76
1.4 Técnicas de análise específica ou o pólo técnico 85
2. ‘Design’ metodológico 97
2.1. Focar um aspeto semiótico de uma prática contra-hegemónica 99
2.2. Identificar modos de resistência e/ou contestação 100
2.3. Evidenciar características contra-hegemónicas do discurso
analisado 107
IIIIII DDAA AANNÁÁLLIISSEE 110099
1. Da Prática Social 113
1.1. Do discurso hegemónico 127
1.1.1 Matriz social do discurso: politicidade do discurso 127
1.1.2. Efeitos ideológicos do discurso: políticos e económicos 143
1.2. Do discurso contra-hegemónico 163
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
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1.2.1. Matriz social do discurso: politicidade do discurso 163
1.2.2. Efeitos ideológicos do discurso: políticos e económicos 175
2. Dos Textos 185
2.1. Do discurso hegemónico 189
2.1.1. Prática discursiva 189
2.1.2. Vocabulário 198
2.2. Do discurso contra-hegemónico 208
2.2.1. Prática discursiva 208
2.2.2. Vocabulário 214
IIVV DDOO DDIISSCCUURRSSOO CCOONNTTRRAA--HHEEGGEEMMÓÓNNIICCOO,, OOUU RREEFFLLEEXXÕÕEESS CCOONNCCLLUUSSIIVVAASS 222255
BBIIBBLLIIOOGGRRAAFFIIAA 233
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
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ÍÍNNDDIICCEE DDEE FFIIGGUURRAASS
Figura 1: Modelo quadripolar a partir de Bruyne, Herman e Schoutheete
(1974) 68
Figura 2: Relação entre a análise de discurso e o modelo quadripolar de
Bruyne, Herman e Schoutheete (1974) neste trabalho 69
Figura 3: A abordagem dialética-relacional da ACD enquanto espaço
metodológico no modelo quadripolar de Bruyne, Herman e Schoutheete
(1974) 69
Figura 4: O papel do discurso na constituição do mundo (adaptado de
Phillips e Jørgensen, 2002: 20) 73
Figura 5: O papel do discurso na constituição do mundo, na perspetiva de
Laclau e Mouffe e da Análise Crítica do Discurso (adaptado de Phillips e
Jørgensen, 2002: 20) 80
Figura 6: Discurso como texto, interação e contexto, segundo Norman
Fairclough (1989). 86
Figura 7: Conceção tridimensional do discurso de Norman Fairclough
(1992). 88
ÍÍNNDDIICCEE DDEE QQUUAADDRROOSS
Quadro 1: Categorias analíticas no modelo tridimensional de Fairclough
(1992) 89
Quadro 2: Modelo da abordagem dialética-relacional (a partir de
Fairclough, 2009) 96
Quadro 3: Modelo de Análise Crítica do Discurso neste trabalho (a partir
da abordagem dialética-relacional desenvolvido por Fairclough, 2009) 99
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
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Quadro 4: Documentos em análise segundo ordens de discurso
previamente identificadas 102
Quadro 5: Codificação dos documentos em análise 104
Quadro 6: Dispositivo de análise da prática social 106
Quadro 7: Dispositivo de análise dos textos 106
Quadro 8: Operacionalização do modelo de Análise Crítica do Discurso
neste trabalho (a partir da abordagem dialética-relacional desenvolvido por
Fairclough, 2009) 108
Quadro 9. Discurso hegemónico em análise no cruzamento do ciclo das
políticas com o processo de elaboração política 142
Quadro 10. Caracterização ideológica do discurso hegemónico em análise 162
Quadro 11: Matriz social do discurso contra-hegemónico em análise 175
Quadro 12. Caracterização ideológica do discurso contra-hegemónico em
análise 183
Quadro 13. Caracterização do vocabulário no discurso hegemónico em
análise 208
Quadro 14. Caracterização do vocabulário no discurso hegemónico em
análise 223
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II IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO
“[É] legítimo associar numa mesma análise a questão
da utilidade das ciências sociais, a do envolvimento do
investigador, a das suas orientações teóricas e,
prolongamento quase natural, a das suas decisões
metodológicas.”
Michael Wieviorka, Nove Lições de Sociologia
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1. Todas as investigações têm uma história pessoal1
O trabalho que aqui apresento para obtenção do grau de Doutoramento em
Ciências da Educação é, inevitavelmente, indissociável dos meus percursos,
pessoal e profissional, que, ao entrecruzarem-se, vão delineando o caminho
seguido e a seguir. Esta indissociabilidade é, aliás, muitas vezes uma marca
deste tipo de trabalhos, podendo-se mesmo afirmar que, em ciências da
educação, a implicação é interior ao próprio trabalho de investigação na medida
em que, tal como afirma Barbier (1985)2, existe um
“(…) engajamento pessoal e coletivo do pesquisador em e por sua práxis
científica, em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições
passadas e atual nas relações de produção e de classe, e de seu projeto
sócio-político em ato, de tal modo que o investimento que resulte
inevitavelmente de tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda
atividade de conhecimento. (Barbier, 1985: 120).
Devido ao meu percurso profissional na Faculdade de Psicologia e de
Ciências da Educação da Universidade do Porto, mas também ao meu percurso
académico e pessoal em termos de intervenção cívica, os meus interesses de
trabalho foram-se desenvolvendo em torno da compreensão da gestão política da
mudança social, tendo por referência os processos de globalização e
1 Por norma, os trabalhos académicos são escritos na primeira pessoa do plural, usando-se, assim, um “nós” que pode querer indiciar a pertença a uma comunidade mais vasta (a comunidade académica a que o investigador se reporta e onde se inclui) e/ou que pode ser interpretado como um “plural de modéstia”, na medida em que o/a autor/a reconhece à sua comunidade científica um contributo na produção do seu trabalho. Não é esta a minha opção na escrita deste trabalho. Não obstante reconhecer o contributo de diversos autores – como será visível ao longo do texto –, opto pela primeira pessoa do singular, um “eu” que me implica em cada palavra e ideia aqui expressa, que me responsabiliza perante todo/as que me leem e que me afirma enquanto autora deste trabalho. Recuso também o “nós” majestático, de porta-voz de algo ou alguém que não pediu para ser representado, porque defendo a minha responsabilidade individual por tudo o que aqui é afirmado. 2 As datas das obras citadas ao longo do texto referem-se, sempre, à edição consultada e não, necessariamente, à edição original.
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
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reescalonamento do Estado e diferentes tipos de atores políticos3,
problematizados entre estrutura e ação social. Este interesse forma-se, como
dizia, no quadro das minhas experiências pessoais e profissionais e é também
muito influenciado pelos trabalhos de Stephen Stoer e António Magalhães (2005),
nomeadamente, na ideia por eles desenvolvida de que, atualmente, a justiça
social – que derivaria da justiça económica, segundo a matriz moderna – não
emerge separada da justiça económica, sendo que esta é muitas vezes
reconfigurada pela primeira, e que a cidadania, ao invés de ser atribuída, é,
conscientemente, cada vez mais reclamada.
Também o meu envolvimento numa Organização Não Governamental para o
Desenvolvimento (ONGD) como voluntária, associada e dirigente, permitiu-me ir
conhecendo o modo como estas organizações trabalham e ter contacto com uma
realidade cada vez mais presente na sociedade. Ao mesmo tempo, constatei que
no mundo associativo e das ONGD‟s existe um conjunto de expressões que se
constitui numa terminologia própria, partilhada por membros de diversas
organizações e que, do meu ponto de vista, permite codificar formas específicas
de ação, conferindo, a quem partilha esse código, a pertença a um dado grupo.
São exemplo disso expressões como capacitação, monitorização ou educação para
o desenvolvimento que são usadas pelas ONG‟s para descrever práticas,
configurar modos de ação, sem no entanto serem explicitadas de modo claro
quanto ao(s) seu(s) significado(s).
3 Em particular, a análise dos processos de gestão política da mudança social tem sido abordada por mim a partir da discussão das funções e papéis de atores políticos diversos no “ciclo das políticas” (Bowe, Ball e Gold), na elaboração e implementação das políticas sociais e educativas e dos sentidos sócio-políticos e educativos destas. Neste sentido, em trabalhos de natureza diversa, venho problematizando a intervenção de atores políticos transnacionais (como a ONU), supranacionais (como a União Europeia), nacionais (como o Governo) e de outros atores situados a diferentes escalas do espaço nacional e com diversos estatutos no processo político (tais como o as estruturas descentralizadas do Governo nacional – por exemplo, as Comissões de Coordenação do Desenvolvimento Regional – as autarquias locais ou associações com intervenção no campo do desenvolvimento local (Cf. Costa, 2001; Costa, Jordão e Terrasêca, 2004; Terrasêca e Costa, 2005).
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
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É com base nestas constatações e interesse geral que este trabalho se
inscreve no tema da educação para o desenvolvimento4, expressão que tem vindo
a ser cada vez mais utilizada, no âmbito de ações de cooperação internacional de
luta contra a pobreza, por organismos da sociedade civil (ONG‟s nacionais e
internacionais) e por instâncias de influência e de decisão política (por exemplo, a
União Europeia e o Instituto de Apoio Português ao Desenvolvimento tutelado
pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros Português)5, sem que haja, no entanto,
uma reflexão científica e crítica sistemática no panorama da produção académica
nacional sobre o que está subjacente ao conceito e às práticas de educação para
o desenvolvimento.
Clarificado o tema e o interesse pessoal relativo a ele, importa agora refletir
sobre a relevância científica e social, ou seja, qual o interesse, em termos de
produção de conhecimento em ciências da educação, em interrogar a educação
para o desenvolvimento e que utilidade social poderá ter um trabalho sobre este
assunto. A abordagem a estas questões impõe uma clarificação sobre o papel das
ciências sociais, onde as ciências da educação se incluem, e também sobre a
identidade destas últimas.
4 Ao longo do texto irei destacar, em itálico, a expressão „educação para o desenvolvimento‟, dado ser um termo central a ser interrogado. 5 Ao nível de organismos da sociedade civil, e a uma escala europeia, o reconhecimento da importância da educação para o desenvolvimento no âmbito das estratégias de cooperação internacional no campo do desenvolvimento, pode evidenciar-se pela recente criação de um European Multi-Stakeholder Steering Group On Development Education, responsável pela elaboração de relatórios que procuram dar conta dos “processos e esforços realizados, ao nível europeu, pelas partes interessadas na educação global/para o desenvolvimento, no sentido de discutir e dar forma a perspetivas comuns, conceitos, standards, e políticas coordenadas na sua área de ação” (Krause, 2010: 3). À escala nacional assistiu-se, também recentemente, à definição de uma “Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento” que Guimarães e Santos (2011) reconhecem resultar do reconhecimento da importância da educação para o desenvolvimento para a compreensão das causas e consequências da pobreza e para melhorar o impacto dos esforços de desenvolvimento e incrementar o debate nos países desenvolvidos em torno destas questões. Mas, mais particularmente resulta quer da longa tradição neste domínio das ONGD portuguesas, quer do reconhecimento governamental desta forma de cooperação que resultou na promoção de linhas próprias do seu financiamento e na sua assumpção explícita como prioridade sectorial dentro da “Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa” (em documento datado de 2005), bem como na assinatura de declarações internacionais de compromisso com a promoção da educação para o desenvolvimento.
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
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Numa obra publicada em 2008 (em português em 2010), Michel Wieviorka
coloca uma questão que se poderia julgar ultrapassada (até porque ela tinha já
sido aflorada pelo autor no Relatório “Para abrir as Ciências Sociais”, em 1994):
“Para que servem as ciências sociais?” (Wieviorka, 2010: 69). Apesar do
desenvolvimento e consolidação das ciências sociais e humanas ao longo de
décadas este parece ser um tema ainda relevante, sobretudo, no que toca às
questões relacionadas com a pertinência e com a fiabilidade das ciências sociais:
os seus produtos, o papel do/a investigador/a e os métodos. Se a questão se
coloca às ciências sociais e humanas, genericamente consideradas, ela é ainda
mais premente quando se trabalha em ciências da educação, dada a “relativa
instabilidade do seu estatuto epistemológico” (Correia, 2001: 20).
Correia (1998; 2001) argumenta que essa instabilidade deriva,
essencialmente, de características internas ao campo educativo, nomeadamente,
a impossibilidade de “se proceder a uma estabilização das distinções entre factos
e opiniões, entre sujeitos e objectos, entre o indivíduo e a sociedade, entre o
educativo e o não-educativo”. (Correia, 2001: 20), o que não significa, no entanto,
que essas distinções não existam, mas sim que a investigação em ciências da
educação necessita de ter como referência essa instabilidade que complexifica o
processo de investigação e que restitui singularidade às práticas de investigação
(Correia, 1998). Rui Canário (2003), após uma análise das fronteiras que
separam a ciência de outras formas de conhecimento, e as ciências da natureza
das ciências sociais, sustenta que a especificidade das ciências da educação (não
só destas mas de todas as „ciências de…‟), face a outras ciências sociais, reside
no derrubar de fronteiras disciplinares clássicas, tentando assim superar
compartimentações territoriais sem, no entanto, eliminar a diversidade possível
de olhares. Pelo contrário, “(…) o conhecimento fecundo de uma realidade social
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
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una6 apela a uma diversidade de abordagens, ou seja, de pontos de vista, na qual
as ciências da educação participam.” (Canário, 2003: 17). Neste sentido, as
ciências da educação podem ser vistas, na perspetiva de Rui Canário, como um
contributo para “reconceptualizar a abordagem do social multiplicando a
possibilidade de olhares multireferenciais” (2003: 20).
De facto, as especificidades das ciências da educação, ao romperem com as
fronteiras disciplinares, concorrem para uma conceção de investigação que, de
alguma forma, se inscreve naquilo que Santos (1996) considera ser a nova
divisão científica da ciência. Segundo este autor, “[a] fragmentação pós-moderna
não é disciplinar e sim temática. Os temas são galerias por onde os
conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros” (Santos, 1996: 47). Este
exercício de “bricolage reflexiva” (Correia, 1998: 130) – e que se enquadra na
multirreferencialidade constitutiva da identidade das ciências da educação
(Canário, 1996) – permite que a ciência se constitua como “tradutora, ou seja,
incentiv[e] os conceitos e as teorias desenvolvidos localmente a emigrarem para
outros lugares cognitivos, de modo a poderem ser utilizados fora do seu contexto
de origem” (Santos, 1996: 48).
Ora, esta é, de alguma forma, uma das intenções deste trabalho e uma das
suas potenciais relevâncias científicas: ao centrar-se no tema das relações entre
educação e desenvolvimento, necessariamente serão convocados contributos
teóricos de áreas disciplinares diversas como a sociologia e a economia num
olhar inevitavelmente multirreferencial que se ancora no que Berger (1992:29)
caracteriza como investigação em educação7: “menos dependente das disciplinas
já constituídas e [que] define o seu objceto a partir do conjunto de práticas que
dizem respeito ao acto educativo, sejam elas práticas familiares, práticas de
6 O destaque é do autor. 7 O destaque é do autor.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
26
ensino ou práticas institucionais”. Deste modo, o que está aqui em causa não é o
que diz a sociologia ou a economia sobre a educação, o desenvolvimento ou a
educação para o desenvolvimento, mas sim como é que esta última se constrói e
de que modo diferentes olhares teóricos podem contribuir para abordar esse
discurso e prática educativa, ou seja, construí-la enquanto objeto teórico de
análise.
Do ponto de vista da relevância social, importa, antes de mais, considerar a
estreita ligação entre esta e a pertinência científica, que caracteriza toda a
atividade de investigação. Nas ciências sociais esta ligação caracteriza-se pela
reflexividade da vida social moderna (Giddens, 1996), na medida em que
“as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de
informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim
constitutivamente o seu carácter [e dado que] todas as formas de vida social
são parcialmente constituídas pelo conhecimento que os actores têm delas”
(Giddens, 1996: 27).
Deste modo, a relevância social das ciências da educação, e das ciências sociais
em geral, ao permitirem à sociedade pensar-se a si própria tendo em conta a
informação adquirida sobre elas (Canário, 2003), encontra-se, sobretudo, na
promoção de processos de reflexividade social, ou seja, “as ciências da educação
retiram a sua pertinência do modo como se inscrevem e se relacionam com um
meio ambiente social em que estão inseridas. Neste sentido, todo o trabalho de
investigação representa uma resposta, directa ou indirecta, a uma “procura”
social.” (Canário, 2003: 23).
Esta “procura social”, a que se refere Rui Canário, relaciona-se com factos
sociais que se tornam notados e que se constituem enquanto ponto de partida
geral para interrogar o mundo social. Neste trabalho, esse ponto de partida
surgiu com a constatação de uma realidade social protagonizada por diversos
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
27
atores. As ONG‟s que trabalham na área da cooperação para o desenvolvimento
incluem a educação para o desenvolvimento como uma das suas áreas de ação. A
CONCORD – Confederação Europeia das ONG de Ajuda Humanitária e de
Desenvolvimento8 define como um dos seus tópicos e matéria de trabalho a
educação para o desenvolvimento através das ONG‟s que representa e também
através de um projeto próprio.
O Banco Mundial, que se apresenta como “[t]rabalhando para um mundo
livre de pobreza”9, define-se como “uma parceria única para reduzir a pobreza e
apoiar o desenvolvimento”10. É de salientar que, de entre as 10 áreas mais
apoiadas em 2007, a educação esteve em 4º lugar e o BM assume que “[a]o
investir nas pessoas, a educação é um poderoso motor de desenvolvimento e
um dos mais fortes instrumentos para reduzir a pobreza e promover a saúde, a
igualdade de género, a paz e a estabilidade.”11. A educação é, portanto, uma das
suas áreas de ação em matéria de cooperação internacional e combate à pobreza,
através da constituição de grupos de trabalho sectoriais sobre a educação e da
produção de relatórios sobre a situação da educação em países em vias de
desenvolvimento, bem como medidas de apoio ao aumento dos níveis de
educação nestes países.
O Conselho de Ministros da União Europeia, em novembro de 2001,
aprovou uma resolução sobre educação para o desenvolvimento onde considera
“que, dada a interdependência global da nossa sociedade, a sensibilização
através da educação para o desenvolvimento e a informação contribuem para
8 Confederação que congrega 19 redes internacionais de ONG‟s e 21 associações pertencentes a Estados Membro da UE e a países candidatos, representando, assim mais de 1600 ONG‟s europeias). 9 In, http://www.worldbank.org/ , [06/06/2011]. 10 In, http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTABOUTUS/0,,contentMDK:20103838~menuPK:1696997~pagePK:51123644~piPK:329829~theSitePK:29708,00.html , [06/06/2011]. 11 In, http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/TOPICS/EXTEDUCATION/0,,contentMDK:20040939~menuPK:282393~pagePK:148956~piPK:216618~theSitePK:282386,00.html , [06/06/2011].
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
28
reforçar o sentimento de solidariedade internacional e para criar um clima
propício à emergência de uma sociedade intercultural na Europa; que essa
mesma sensibilização contribui também para alterar o modo de vida,
privilegiando um modelo de desenvolvimento sustentável para todos e, por
último, para aumentar o apoio dos cidadãos à realização de esforços
suplementares de financiamento público à cooperação para o
desenvolvimento”
e declara que o Conselho
“Deseja promover um maior apoio à educação para o desenvolvimento, bem
como à política de comunicação a ela ligada, por parte da Comissão e dos
Estados-Membros graças ao estabelecimento de relações mais estreitas entre
diferentes sectores que podem ajudar a promoção da educação para o
desenvolvimento em domínios como, nomeadamente, as ONG, as escolas, as
universidades, a formação de adultos, a formação de formadores, os meios
de comunicação audiovisuais, a imprensa, o mundo associativo e os
movimentos de juventude” (in, Resolução do Conselho de Ministros da UE,
disponível on-line).
De igual modo, em 2005, a União Europeia acordou um Consenso Europeu
sobre o Desenvolvimento comprometendo-se a uma “atenção particular à
educação para o desenvolvimento e promoção do aumento de consciencialização
entre os cidadãos europeus”12
, considerando o seu papel e estatuto de um dos
maiores financiadores dos projetos neste domínio. Como sugere Rilli Lappalainen
(2011:8), por um lado, este compromisso contribuiu paulatinamente para o
desenvolvimento em maior número de estratégias nacionais neste domínio e para
o que identifica como uma maior “atenção” dos Estados-membros, Parlamento
Europeu, Comissão Europeia e da sociedade civil para questões genericamente
inscritas nas preocupações da educação para o desenvolvimento, tais como
“aprendizagem global, cidadania ativa global, educação para o desenvolvimento
12 Parte I, secção 4.3, parágrafo 18 do Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento. In, http://ec.europa.eu/development/icenter/repository/european_consensus_2005_en.pdf
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
29
sustentável”. Por outro lado, contribuiu igualmente para a emergência no seio da
União Europeia de processos de consulta e de investigação em torno da
“Experience and Actions of the Main European Actors active in the field of
Development Education and Awareness Raising”, plasmado no Relatório
publicado em 2010 intitulado “DEAR in Europe - Recommendations for future
interventions by the European Commission”13, e que se espera que possam
conduzir à adoção de uma “estratégia explícita de educação para o
desenvolvimento” que se reconhece ainda não existir, desta forma, no seio da
União Europeia (Lappalainen, 2011).
Não é de somenos importância recordar ainda que as Nações Unidas
definiram como uma das prioridades da sua intervenção para o decénio 2005-
2014 a educação para o desenvolvimento sustentável tendo em vista “integrar os
valores inerentes ao desenvolvimento durável em todos aspetos da educação, a
fim de suscitar uma mudança de comportamentos propícios ao favorecimento da
existência de uma sociedade mais viável e justa para todos”14.
Também em Portugal, a educação para o desenvolvimento é uma área
apoiada no âmbito da cooperação internacional – reconhecida desde 2005 em
documentos que fixam a visão estratégica para a cooperação portuguesa – sendo
que em 2005 e 2006 o IPAD – Instituto de Apoio Português ao Desenvolvimento
abriu uma linha de cofinanciamento específica para projetos de Educação para o
Desenvolvimento desenvolvidos por ONGD‟s, tendo começado a discutir, em
2008, a Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento. Em 2010, e na
sequência de um processo participativo que envolveu instituições públicas e
organizações da sociedade civil, foi publicado em Diário da República, com
assinatura dos Ministros dos Negócios Estrangeiros e da Educação, o documento
13 In, https://webgate.ec.europa.eu/fpfis/mwikis/aidco/images/d/d4/Final_Report_DEAR_Study.pdf . 14 In, http://www.unesco.org/new/fr/education/events/prizes-and-celebrations/un-decades/ .
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
30
estratégico da Cooperação Portuguesa em matéria de Educação para o
Desenvolvimento que fixa como principal finalidade a promoção de uma
cidadania global através do acesso universal à educação para o desenvolvimento
numa perspetiva de longo prazo. Esta orientação estratégica foi ainda
complementada com um plano de ação que estabelece as prioridades e atividades
a implementar anualmente tendo como horizonte 2015, invetivando-se as
organizações que se reconheçam neste domínio a integrarem e situarem as suas
próprias atividades face àqueles documentos.
Temos, então, atores com papéis e funções distintos no âmbito do “ciclo das
políticas” (Bowe, Ball e Gold, 1992) que enfatizam as relações entre educação e
desenvolvimento e referem a centralidade e importância da educação para o
desenvolvimento. Assim, e dado que as relações entre educação e
desenvolvimento são assumidas, de forma explícita, pelos Estados e
Organizações Transnacionais15, considerando a educação como fator
imprescindível de desenvolvimento dos países, nomeadamente na luta contra a
pobreza16, a questão que se coloca é se a educação para o desenvolvimento se
15 Na bibliografia consultada não é uniforme o modo de identificação destes contextos e organizações. Para alguns autores a designação “supranacional” refere-se ao contexto de influência direta do Estado-nação enquanto que, para outros, a mesma designação é usada para se referirem às agências internacionais que influenciam os conjuntos e/ou blocos organizados de Estados-nação. Ao longo deste trabalho irei adotar a designação: transnacional para me referirs à(s) agência(s) internacionais (como a ONU e o Banco Mundial) cuja existência está para além dos Estados-nação considerados em bloco ou individualmente e regional quando me referir aos blocos político-económicos que agregam Estados-nação (p. ex. a União Europeia, a Ásia-Pacífico ou a NAFTA.). 16 Para além das organizações e documentos já referidos, e que evidenciam essa relação ao nível discursivo, também a OCDE enfatiza a relação entre educação e desenvolvimento. No entanto, esta organização não é aqui considerada por duas ordens de razão: em primeiro lugar, o nome da organização explicita o tipo de cooperação e desenvolvimento que promove: económico; em segundo lugar, os membros da OCDE – e portanto, a sua área de influência – são, maioritariamente, países ocidentais, pese embora a abertura que tem vindo a ser feita a novos membros (sobretudo em 2007 e 2010) e à extensão de contactos a 70 países não-membros. (cf. http://www.oecd.org/pages/0,3417,en_36734052_36761800_1_1_1_1_1,00.html ). Assim, a primeira ordem de razão retira pertinência à inclusão dos discursos da OCDE neste trabalho dado ser „anunciado‟ o tipo de relação entre educação e desenvolvimento que a organização privilegia, e portanto, pouco interessante do ponto de vista analítico face aos objetivos do trabalho. A segunda ordem de razão retira centralidade aos discursos desta organização dado o contexto geo-político a ser aqui considerado.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
31
apresenta, e de que modo, como um tipo distinto de relação entre educação e
desenvolvimento.
Obviamente que a constatação de um fenómeno social não pode ser
confundido com um objeto de pesquisa. Esta constatação é, apenas, o primeiro
passo, aquele que irá permitir a construção do objeto, uma vez que “os discursos
científicos sobre educação não podem ser encarados como discursos produzidos
sobre objectos pré-construídos, mas são antes discursos que produzem o objecto
sobre o qual procuram discorrer, contribuindo, nomeadamente, para a sua
produção científica” (Correia, 2001: 20). Assim, apresento, de seguida, o objeto,
problemática e opções metodológicas.
2. Construção da investigação: objeto de estudo, problemática e
método
Definindo a investigação como uma atividade “normal” cuja prática deve
ser racional, Bourdieu (2001) sistematiza os passos que considera serem
fundamentais num processo de pesquisa. Segundo este autor, a construção do
objeto, um processo moroso mas também a operação mais importante do
processo de pesquisa, não é um momento a priori do trabalho, mas algo que vai
sendo construído ao longo de todo o processo. A ela estão intimamente ligados
todos os outros passos que fazem parte do modus operandi científico,
nomeadamente as opções metodológicas. Bourdieu (2001) chama a atenção para
a incongruência da tradicional dicotomia entre teoria e metodologia (teoria e
prática científica), na medida em que “as opções técnicas mais «empíricas» são
inseparáveis das opções mais «teóricas» da construção do objecto.” (Bourdieu,
2001: 24), ou seja, a pertinência da opção por uma metodologia de trabalho
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
32
empírico está diretamente relacionada, porque tem de ser congruente, com o
objeto construído. Poder-se-á, assim, antever a importância de que se reveste a
construção do objeto, já que se relaciona, isto é, interfere com as opções de
pesquisa que se assumem. Torna-se, pois, importante ressaltar que, neste
momento, apenas por uma questão de ordenação e inteligibilidade para quem lê,
estes três itens – construção da problemática, do objeto de estudo e da
metodologia de investigação – se encontram separados mas, como espero que
seja claro, com uma evidente inter-relação.
2.1. Objeto de estudo
A construção de um objeto de estudo pressupõe algumas precauções,
nomeadamente, o estabelecer da diferença entre o ato de reconhecer uma
situação, dado ou problema – o que nos coloca numa perspetiva de senso comum
– e o ato de conhecer a realidade – o que supõe o acionamento de processos de
rutura epistemológica característicos dos modos de produção de conhecimento
reconhecidos como científicos numa dada comunidade. Trata-se, no fundo, de
fazer a distinção entre o social e o sociológico: do ponto de vista sociológico não é
possível pensar em termos de realidades – o que nos faria inscrever num registo
do social – mas sim em termos de relações. Não há, portanto, uma
correspondência direta entre o „mundo‟ dos factos reais e o „mundo‟ dos objetos
teóricos e conceptuais. Estes são autónomos dos primeiros, apesar de criados a
partir da perceção construída daqueles.
Bourdieu (2001) também chama a atenção para o facto de, usualmente, os
objetos de investigação sociológica serem “realidades que se tornaram notadas”
por levantarem problemas sociais. O que permitirá a passagem dessas realidades
sociais a factos sociológicos é a abordagem relacional, ou seja, “pensar
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
33
relacionalmente” os objetos de pesquisa. Esta “atitude investigativa” que nos
impede de pensar o mundo social de forma realista, remete-nos para uma das
noções centrais da obra de Bourdieu: a noção de campo que, segundo o autor, é
“uma estenografia conceptual de um modo de construção do objecto que vai
comandar – ou orientar – todas as opções práticas de pesquisa. Ela funciona
como um sinal que lembra o que há a fazer, a saber, verificar que o objecto
em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o
essencial das suas propriedades” (Bourdieu, 2001: 27).
Assim, para abordar a questão das relações entre educação e
desenvolvimento, nomeadamente, na equação estabelecida na expressão (e
práticas de) educação para o desenvolvimento, configurou-se como objeto de
estudo as relações discursivas estabelecidas entre educação e desenvolvimento
pelos atores políticos que a assumem como central: os novos movimentos sociais.
Torna-se agora necessário definir de que modo os discursos dos novos
movimentos sociais sobre educação para o desenvolvimento serão considerados.
Dada a profusão de movimentos existentes, com áreas específicas de atuação,
seria impossível considerá-los todos. Assim, elegeu-se um movimento em
concreto – o Comércio Justo – como analisador das relações entre educação e
desenvolvimento e das conceções de educação para o desenvolvimento
protagonizadas por movimentos sociais.
Esta escolha é feita, sobretudo, pelas características que o próprio
movimento tem. Se se atentar:
a) numa definição de educação para o desenvolvimento aprovada num
Fórum de Educação para o Desenvolvimento17
“A ED é um processo de aprendizagem activa, fundado nos valores de
17 A Educação para o Desenvolvimento não tem uma definição única. Considero aqui uma definição aprovada pela CONCORD – Confederação Europeia das ONG de Ajuda Humanitária e de Desenvolvimento.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
34
solidariedade, igualdade, inclusão e cooperação. Permite que as pessoas
passem de um estado de sensibilização das prioridades de desenvolvimento
internacional e de desenvolvimento humano sustentável para a compreensão
das causas e efeitos das questões globais apelando a um envolvimento
pessoal e acção informada.
A ED promove a plena participação dos cidadãos de todo o mundo na
erradicação da pobreza e na luta contra a exclusão. Procura exercer
influência sobre as políticas nacionais e internacionais de modo a torná-las
mais justas e sustentáveis do ponto de vista económico, social, ambiental ou
em assuntos de direitos humanos.” (definição aprovada pelo Fórum ED no
seu encontro anual de 2004 e aprovada pela CONCORD na Assembleia Geral
de novembro de 2004, disponível on-line)
e
b) na definição do Comércio Justo:
“uma parceria comercial baseada no diálogo, transparência e respeito e que
procura uma maior equidade no comércio internacional. Contribui para o
desenvolvimento sustentável oferecendo melhores condições de comércio
tendo em conta os direitos dos produtores e trabalhadores marginalizados,
especialmente no Sul do mundo” (definição da FINE18, disponível on-line)
entendo que este movimento contém em si características que permitem que o
seu discurso se constitua como analisador.
Isto significa que o Comércio Justo – ao assumir-se como uma alternativa ao
comércio internacional promovendo a justiça social e económica, o
desenvolvimento sustentável e o respeito pelas pessoas e pelo meio ambiente
através do comércio, da sensibilização dos consumidores e de ações de educação
e informação e tendo como pano de fundo as relações Norte/Sul –, na sua
definição e génese, acumula um conjunto de propriedades que permitem que o
18 A FINE é uma rede informal que agrega as organizações de Comércio Justo: IFAT – International Federation for Alternative Trade; EFTA – European Fair Trade Association; NEWS! – Network of European World Shops; FLO – Federation of Labelling Organisations. Recentemente o IFAT mudou de designação para WFTO – World Fair Trade Organisation.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
35
seu discurso desempenhe um papel operatório na pesquisa, na medida em que
permitirá, num trabalho de complexificação, decompor, relacionar, tipificar e
amplificar. A potencialidade do discurso deste movimento como analisador é
precisamente a de, devido às suas características, permitir a problematização de
noções como educação, desenvolvimento, relações Norte-Sul, agência,
reflexividade e consumo ao mesmo tempo que permite estudar as relações que se
estabelecem entre elas e tipificar a qualidade e constância dessas mesmas
relações. É a partir destas dimensões que será possível, então, analisar as
conceções de educação para o desenvolvimento, discursivamente construídas, de
um modo que possibilite a sua amplificação no quadro dos novos movimentos
sociais.
A intenção é, portanto, que a análise do discurso do Comércio Justo, como
novo movimento social, em torno das relações entre educação e desenvolvimento
permita simultaneamente caracterizar e discutir o(s) conceito(s) e práticas
discursivas de educação para o desenvolvimento, tendo em conta as
especificidades dos papéis dos novos movimentos sociais e, adicionalmente,
contribuir para ampliar a discussão em torno das relações entre educação e
desenvolvimento.19 E o que faz do discurso deste movimento um analisador
interessante face a outros é o que, na minha perspetiva, se pode constituir como
a “dupla dimensão” educativa do Comércio Justo:
ser considerado, no âmbito da política de desenvolvimento da União
Europeia, um método “eficaz” de educação para o desenvolvimento (Cf.
Resolução do Conselho de Ministros da UE, de novembro de 2001);
assumir uma vertente comercial, enquanto alternativa de
desenvolvimento, mas também uma vertente educativa e política, no
19 Mais à frente, e porque faz parte da construção da problemática de investigação, explicitarei de que modo, neste trabalho, são considerados os novos movimentos sociais, através da sua caracterização.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
36
sentido de formar consumidores conscientes e críticos e tentando
introduzir mudanças nas políticas nacionais e internacionais.
A análise do Comércio Justo enquanto discurso e prática discursiva de
educação para o desenvolvimento, no quadro dos novos movimentos sociais,
permitirá então perceber de que se fala efetivamente quando se fala de educação
para o desenvolvimento.
2.2. Problemática de investigação
Como já referi, a identificação de um problema, grupo ou questão social
não é condição única para „ter‟ um objeto de investigação, sendo necessário
enquadrar a questão identificada num campo que permita apreender o objeto
enquanto espaço de relações, ou seja, “proceder à sua interrogação sistemática a
partir de um corpo articulado de teorias e de conceitos – uma problemática”
(Canário, 1996: 127).
Esta é uma atitude inerente à construção do objeto e que, no caso deste
estudo, significa dar conta das transformações políticas e sociais que marcam o
nosso tempo e que contribuem para a emergência de novos atores sociais e
políticos, novas políticas e novas centralidades no que à educação diz respeito. É
neste sentido que assumo, neste trabalho, o abandono dos quatro “ismos”
metodológicos que Susan Robertson e Roger Dale (2007) referem ser necessário
ultrapassar na pesquisa em educação em contexto de globalização política e
económica. Como argumento inicial, os autores referem que um dos efeitos chave
da globalização no campo da educação é a clara e evidente mudança de rumo no
que diz respeito à escala, ou seja, de um sistema educativo predominantemente
nacional para uma distribuição multiescala, mais fragmentada, envolvendo
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
37
novos atores, novos modos de conceber a produção e distribuição de
conhecimento e novos desafios no que respeita a assegurar a mobilidade social
(Robertson e Dale, 2007). Apoiando-se nas ideias defendidas, entre outros, por
Beck e por Cox de que as mudanças ocorridas nas estruturas sociais e na
relação entre estas e o seu conhecimento, não pode ser feito através de
ferramentas ou instrumentos conceptuais que já não se adequam a esse
propósito20, os autores argumentam ser necessário ter em conta os desafios
conceptuais e metodológicos colocados às ciências sociais pelas mudanças que
foram referindo, e nomeadamente, na escala e modos de governação da, e através
da, educação.
Nesse sentido, os autores destacam quatro assumpções que, na sua
perspetiva, são tendencialmente considerados como categorias “naturais, fixas e
imutáveis, ou noutras palavras, ontológica e epistemologicamente ossificadas”
(Robertson e Dale, 2007: 3)21: o “nacionalismo metodológico”, o “estatismo
metodológico”, o “educacionalismo metodológico”, e o “fetichismo espacial”.
Estas quatro assumpções referidas estão intimamente relacionadas e
concorrem, então, para cristalizar a abordagem das ciências sociais no que à
educação diz respeito, obnubilando as transformações sociais e os novos espaços
e escalas em que a educação opera, bem como os atores que nela intervêm. A
consequência deste facto, argumentam Robertson e Dale (2007), é o risco de não
se ver de que forma os atores estão a usar estrategicamente o espaço para
20 Os autores referem mesmo o facto de Beck (in, “The cosmopolitan society and its enemies”, Theory, Culture and Society, 19 (1-2), pp. 17-44) defender a necessidade de existência de um novo léxico para descrever os fenómenos sociais na medida em que, para ele, estes não dependem do que considera serem conceitos ou categorias “zombies”: „Estado-nação‟, „identidades‟, „classes‟, etc. Não considero que estas sejam categorias dispensáveis ou de somenos importância para análise do mundo social complexo em que hoje vivemos, no entanto, tal como Robertson e Dale – ao afirmarem que os argumentos de Beck são controversos e que não têm intenção de desenvolver essa discussão –, considero que essa mesma complexidade inerente às estruturas e processos sociais impõe a necessidade de criar, ou ter em consideração, também outros conceitos, não no sentido do abandono daqueles mas do seu alargamento e complexificação através da consideração e/ou cruzamento de outras categorias. 21 A tradução para português de citações de obras originais em língua estrangeira é da minha inteira responsabilidade.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
38
promover novos projetos de educação com diferentes lógicas. De que modo,
então, considero ter ultrapassado os “ismos” metodológicos referidos por
Robertson e Dale (2007)?
Se, tal como afirmei, o objeto em estudo neste trabalho se constitui nas
relações discursivas estabelecidas pelos novos movimentos sociais entre
educação e desenvolvimento, nomeadamente a educação para o desenvolvimento,
o que está em causa é, claramente, olhar para além de um “nacionalismo
metodológico”. Segundo Robertson e Dale (2007), o exemplo mais claro da
existência deste é a centralidade atribuída ao Estado-nação na pesquisa em
educação, de tal forma que as sociedades são vistas como sendo contidas por
aqueles. Mas acontece que
“a base de estado, soberano e autónomo que a sociologia da educação tem,
em grande medida, tomado como adquirido, tem vindo a sofrer uma grande
erosão ao longo das duas últimas décadas (…) [a] equação de estado
(nacional) e sociedade (nacional) tem que ser problematizada (…)” (Dale,
2005: 53).
Neste sentido, é necessário ter em conta a(s) reconfiguração(ões) do Estado
numa época de globalização e como, neste contexto, o ciclo político se forma,
dando relevo a atores como as agências transnacionais e a blocos político-
económicos, bem como o papel que os novos movimentos sociais desempenham
e/ou podem desempenhar nesta(s) reconfiguração(ões) que atravessa(m) a
própria conceção e ação políticas, numa época de globalização económica, mas
também política, e que trazem implicações para o governo e para a governação do
setor educativo.
Concordo com Roger Dale quando este se refere à globalização como uma
alteração das relações estabelecidas entre os Estados-nação e as forças
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
39
supranacionais, considerando que a globalização “não é simplesmente um
fenómeno económico ou político mas um fenómeno político-económico.” (2000:
94), na medida em que, apesar dos aspetos da economia global parecerem
escapar com facilidade ao controlo dos Estados-nação, não deixam de assentar
em aparelhos politicamente determinados (Dale, 2000 e 2005). É neste cenário
que surgem os grandes blocos de união interestadual com interesses políticos e
económicos (a União Europeia, os Estados Unidos da América – NAFTA, a Ásia-
Pacífico – ASEAN) e também as agências transnacionais que influenciam, de
modo mais ou menos direto, a formulação das políticas nacionais
(designadamente, a Organização das Nações Unidas e o Banco Mundial).
A consideração do fenómeno de desnacionalização, ou de ir para além do
“nacionalismo metodológico” (Robertson e Dale, 2007), está presente neste
trabalho exatamente na consideração da existência de diferentes níveis de
Estado, que não se confina à escala do Estado-nação. Sendo os discursos dos
novos movimentos sociais – em particular, como já clarifiquei, do movimento
Comércio Justo – o objeto em análise neste trabalho, não vou deixar de
considerar os discursos das agências transnacionais e da União Europeia (bloco
regional) relativamente à questão da educação, do desenvolvimento e da
educação para o desenvolvimento22. O motivo dessa consideração prende-se com
a hipótese da existência de modos distintos de pensar e agir sobre a realidade
social e, também, com posições e papéis distintos no contexto de globalização
política: por um lado, as agências transnacionais e os blocos político-económicos
representando um modelo de globalização hegemónica e “top-down” enquanto,
por outro, os novos movimentos sociais assumindo-se como modelo contra-
hegemónico e “bottom-up”.
22 No capítulo dedicado às questões metodológicas explicarei, mais detalhadamente, o estatuto que cada um dos discursos assumiu no trabalho.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
40
Intimamente articulado com “nacionalismo metodológico” (Robertson e Dale,
2007), está o “estatismo metodológico” que, nas palavras dos autores, se
“refere à tendência em assumir que existe uma forma intrínseca a todos os
Estados. Ou seja, é assumido que todas as políticas são geridas, organizadas
e administradas essencialmente da mesma forma, com o mesmo conjunto de
problemas e responsabilidades e através do mesmo conjunto de instituições.
O problema surge porque o Estado, enquanto objeto de análise, existe tanto
enquanto força material como enquanto constructo ideológico.” (Robertson e
Dale, 2007: 4)
É neste sentido que o Estado, mais do que explanans deve tornar-se
explanandum (Dale 2005; Robertson e Dale, 2007), ou seja, o Estado precisa de
ser explicado mais do que ser parte da explicação de fenómenos sociais e
políticos. A ideia de globalização política apresenta-se como particularmente
desafiadora na medida em que, não só descentra da escala nacional a
organização política dominante (desnacionalização), mas também descentra do
Estado o papel de ator principal (desestatização) (Robertson et all, 2007).
Esta necessidade de olhar para além do Estado (independentemente da
escala considerada) para compreender as dinâmicas sociais é também defendida
por Manuel Castells (2003), cuja conceptualização da “sociedade em rede” vem
reconfigurar, entre outros aspetos, o papel do conhecimento na vivência da
cidadania. E, tal como afirmam Stephen Stoer e António Magalhães,
“se, em termos modernos, a cidadania era determinada pela ligação ao
trabalho assalariado e à pertença nacional, actualmente parece depender da
integração na rede, isto é, a sua determinação alarga-se para o campo
cultural (como resultado, a cidadania, assume novas formas: em lugar de ser
«atribuída», ela é, antes, «reclamada», ou «reivindicada»”) (2003: 1191).
Tal como refere Touraine, “não é possível definir um objeto nomeado
movimentos sociais sem escolher um modo geral de analisar a vida social (…)”
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
41
(1984: 3). O conceito de movimento social está intrinsecamente ligado ao conceito
de ação, do sujeito que age e “é agido” por estar inserido num conjunto de
determinações. Ao agir, ao “reclamar” para si próprio o exercício da cidadania,
faz com que esta se cruze e articule com os conceitos de conhecimento,
reflexividade e agência (Giddens, 1996) que despoletam a emergência de um novo
ator: os novos movimentos sociais (Santos, 1994, 2002 e 2003; Pureza e Ferreira,
2001). É que, e de acordo com Touraine (1998)
“[em] vez de se ver os movimentos sociais apenas nos levantamentos
populares que desencadeiam revoluções, a sua presença tem de ser
reconhecida em todos os aspetos da vida social onde a capacidade social
para a ação sobre si mesma está constantemente a aumentar e onde os
conflitos sociais em torno da apropriação dos principais recursos culturais
são cada vez mais vividos. (…) a nossa vida pessoal e coletiva está cada vez
mais permeada de movimentos sociais.” (: 8).
Offe (1992) refere que, desde 1970, os cientistas sociais que se dedicam à
área da política constatam a existência de uma certa fusão entre a esfera do
Estado e da sociedade civil ao nível de manifestações sociopolíticas globais e
também dos cidadãos enquanto atores políticos. Também Santos (1994) refere o
interesse da sociologia pelos novos movimentos sociais que, genericamente,
podem ser definidos como “um sector significativo da população que desenvolve e
define interesses incompatíveis com a ordem política e social existente e que os
persegue por vias não institucionalizadas” (Dalton e Kuechler, 1990, cit in
Santos, 1994). Maria da Glória Gohn (2002), num interessante e abrangente
trabalho em que analisa os paradigmas clássicos e contemporâneos das teorias
dos movimentos sociais, refere que
“[p]artindo da inadequação do paradigma tradicional marxista, denominado
por alguns clássico ou ortodoxo, para a análise dos movimentos sociais que
passaram a ocorrer na Europa a partir dos anos 60 [do século XX], assim
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
42
como fazendo a crítica aos esquemas utilitaristas que as teorias baseadas na
lógica racional e estratégica dos atores (que analisavam os movimento como
negócios, cálculos estratégicos etc.), Touraine, Offe, Melluci, Laclau e
Mouffe, entre outros, partiram para a criação de esquemas interpretativos
que enfatizavam a cultura, a ideologia, as lutas sociais cotidianas, a
solidariedade entre as pessoas de um grupo ou movimento social e o
processo de identidade criada.” (Gohn, 2002: 121).
A autora analisa as diferenças entre as teorias dos NMS nos paradigmas
europeu e norte-americano e, dentro destes, entre diferentes autores, mas ainda
assim, estabelece algumas características teóricas básicas para a conceção e
compreensão dos NMS (Gohn, 2002: 121-124):
- a construção de um modelo teórico baseado na cultura que nega a visão
desta enquanto conjunto fixo e predeterminado de normas e valores herdados,
apropriando a base marxista de cultura enquanto ideologia mas negando a
ideologia enquanto falsa representação do real;
- partilha da importância da consciência, ideologia, lutas sociais e
solidariedade na ação coletiva de base neomarxista mas negação do principio
marxista clássico (ou ortodoxo) de entendimento da ação coletiva apenas ao nível
das estruturas, das ações de classe, que prioriza as determinações macro da
sociedade e que impedem a explicação
“[d]as ações que advêm de outros campos, tais como o político e,
fundamentalmente, o cultural; o que ocorre é uma subjugação desses
campos ao domínio do econômico, matando o que existe de inovador: o
retorno e a recriação do ator, a possibilidade de mudança a partir da ação do
individuo, independente dos condicionamentos das estruturas.” (Gohn,
2002: 122)
- eliminação da centralidade um sujeito histórico específico e pré-
determinado através da conceptualização dos atores sociais enquanto coletivo
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
43
difuso e não hierarquizado que participam em ações coletivas fundamentadas em
ações solidárias e/ou comunitárias;
- centralidade e redefinição da política, que passa abarcar todas práticas
sociais.
O que parece ser distintivo dos novos movimentos sociais face aos „velhos
movimentos sociais‟ é a sua característica de ação coletiva organizada em torno
de preocupações tematicamente identificadas e não classistas, privilegiando
áreas como o ecologismo, o feminismo, o antirracismo, o consumo, etc., e ainda
que, tal como afirma Offe (1992), a sua base social de apoio seja composta por
segmentos bem definidos da estrutura social, aquilo que constitui a sua
verdadeira novidade é a pouca relevância de códigos socioeconómicos (como a
classe) e códigos políticos (como, por exemplo, a clivagem esquerda/direita) na
sua autoidentificação.
A relativa fusão entre Estado e sociedade civil a que Offe (1992) se refere ao
falar dos novos movimentos sociais, pode ser entendida numa outra
característica de que estes se revestem: em última análise, o impacto que os
novos movimentos sociais procuram é político, ou seja, as reivindicações feitas
traduzem-se em exigências políticas feitas ao Estado, entendido nas diferentes
escalas em que este se reconfigurou, e fazendo com que a intervenção política e a
cidadania seja “reclamada” ou “reivindicada” (Stoer e Magalhães, 2003 e 2005).
De acordo com Santos (2000), a oposição „Norte‟/„Sul‟ é uma assunção
básica dos novos movimentos sociais e o autor sugere mesmo que os guiões
alternativos à globalização hegemónica devem ser delineados através do „Sul‟.
Santos (2002: 56) refuta a ideia de que “a globalização é um fenómeno linear,
monolítico e inequívoco”. Para o autor, esta ideia prevalecente sobre a
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
44
globalização torna-a, aparentemente, transparente e sem complexidade, “a ideia
de globalização obscurece mais do que esclarece o que se passa no mundo. E o
que obscurece ou oculta é, quando visto de outra perspectiva, tão importante que
a transparência e simplicidade da ideia de globalização, longe de serem
inocentes, devem ser considerados dispositivos ideológicos e políticos dotados de
intencionalidades específicas.” (Santos, 2002: 56). O autor destaca a falácia do
determinismo e a falácia do desaparecimento do Sul, como duas dessas
intencionalidades. A falácia do determinismo refere-se ao que se poderia chamar
de naturalização do processo de globalização, ou seja, a “inculcação da ideia de
que a globalização é um processo espontâneo, automático, inelutável e
irreversível que se intensifica e avança segundo uma lógica e uma dinâmica
próprias suficientemente fortes para se imporem a qualquer interferência
externa.” (Santos, 2002: 56), o que, para o autor, é uma ideia falsa, já que, “[a]
globalização resulta, de facto, de um conjunto de decisões políticas identificadas
no tempo e na autoria.”. Quanto à falácia do desaparecimento do Sul, Santos
(2002) refere-se às relações Norte/Sul em termos de desenvolvimento e comércio
internacional e à ideia de que
“[h]oje, quer ao nível financeiro, quer ao nível da produção, quer ainda ao
nível do consumo, o mundo está integrado numa economia global onde,
perante a multiplicidade de interdependências, deixou de fazer sentido
distinguir entre Norte e Sul (…). Quanto mais triunfalista é a concepção da
globalização menor é a visibilidade dos Sul ou das hierarquias do sistema
mundial.” (Santos, 2002: 57).
Não obstante a integração na economia mundial global, a verdade é que os
países – e até mesmo regiões do globo – se posicionam de modo distinto nessa
mesma economia global. As fronteiras entre „Norte‟ e „Sul‟ não são, então,
fronteiras estabelecidas geograficamente mas sim pela disparidade de riqueza
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
45
entre países ricos e países pobres e pelo rácio de inclusão e exclusão dos
diferentes países e/ou regiões. O „Sul‟ é, então, visto geo-politica-
economicamente como a parte do mundo oprimida e explorada e os projetos de
globalização contra-hegemónica23 devem ser traçados a partir da sua perspetiva,
reconhecendo a relação Norte/Sul como uma relação imperial („Aprender que há
um Sul‟); identificando essa relação como profundamente injusta e
desumanizante para ambos o que significa colocar-se ao lado da vítima
(„Aprender a ir para o Sul‟) e terminar a relação imperial destruindo todas as
suas ligações, a nível pessoal e mundial, deixando de tomar o partido da vítima
para se tornar a vítima („Aprender com o Sul‟). Uma das questões que se pode
levantar é se o Comércio Justo é tão derivado da “reflexividade política” (Beck,
2000a) do Norte, da reflexividade política Ocidental, quanto do Sul, ou seja, qual
o papel que o Sul efetivamente tem neste movimento?
Atualmente, a questão do consumo tem vindo a assumir um papel central
em diversos movimentos sociais (nomeadamente ecologista, pacifista, direitos
humanos) e pode ser analisado enquanto campo de confronto entre visões
paradigmáticas e subparadigmáticas de mudança social. O autor distingue estas
duas visões da seguinte forma: “Os argumentos paradigmáticos apelam a actores
colectivos que privilegiam a acção transformadora enquanto os argumentos
subparadigmáticos apelam a actores colectivos que privilegiam a acção
23 A distinção entre “globalização hegemónica” e “globalização contra-hegemónica” é, também, feita por Santos (2002). Na perspetiva do autor, e ainda contrariando a ideia da existência de uma globalização monolítica, a “globalização hegemónica” é constituída por localismos globalizados – processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado com sucesso” (Santos, 2002: 71) – e globalismos localizados – “efeito específico nas condições locais produzido pelas práticas e imperativos transnacionais que decorrem de localismos globalizados” (Santos, 2002: 71). A resistência a estes dois fenómenos – isto é, à “globalização hegemónica” – faz-se através do cosmopolitismo – “organização transnacional da resistência de Estados-nação, regiões, classes ou grupos sociais vitimizados pelas trocas desiguais de que se alimentam os localismos globalizados e os globalismos localizados” (Santos, 2002: 72-73) – e do património comum da humanidade – “lutas transnacionais pela proteção e desmercadorização de recursos, entidades, artefactos, ambientes considerados essenciais para a sobrevivência digna da humanidade e cuja sustentabilidade só pode ser garantida à escala planetária.” (Santos, 2002: 75). Estes dois modos de resistência consubstanciam-se, segundo o autor, em “globalização contra-hegemónica”.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
46
adaptativa.” (Santos, 2002: 98). Já num trabalho anterior, o autor afirmara que
“[e]nquanto as lutas políticas subparadigmáticas visam reproduzir uma forma
dominante de sociabilidade, as lutas políticas paradigmáticas anseiam pela
experimentação social com formas de sociabilidade alternativa. (Santos, 2000:
317). Neste sentido, “enquanto, na luta política subparadigmática, a
emancipação pela qual se luta é a que é possível dentro do paradigma dominante
– e que, portanto, não questiona fundamentalmente a regulação social instituída
–, na luta política paradigmática, a confrontação ocorre entre a regulação
socialmente construída pelo paradigma dominante e a emancipação imaginada
pelo paradigma emergente. Entre as duas lutas, há uma total
incomensurabilidade.” (Santos, 2000: 319).
Ora, o modo como os atores sociais se relacionam com o consumo é muito
diverso e relaciona-se com as suas posições culturais, sociais, económicas e
políticas. Podemos identificar, por exemplo, o consumo passivo (ou consumo
alienado); o consumo estético (relacionado com estilos de vida); o consumo
reflexivo (que se refere à aplicação do conhecimento na gestão da vida pessoal e
coletiva) e interventivo (ou seja, consumo ético relacionado com questões sociais
e políticas). Este último parece ser o que está na base do movimento Comércio
Justo na medida em que, na sua génese e atualmente, pretende responder a
questões como: “o que posso fazer, no meu quotidiano, para tornar menos
injusto o sistema económico?” “O que posso fazer, enquanto consumidor, para
alterar a relação comercial injusta entre „Norte‟ e „Sul‟?” “Como posso dar um
sentido ético/reflexivo às minhas escolhas enquanto consumidor?”. Nestas
questões fica evidente o exercício de uma cidadania reflexiva na medida em que
se atribui um forte significado político a escolhas pessoais e grupais, bem como
uma dialética entre o possível e o desejável, na qual a agência é central.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
47
Pretende-se, portanto, passar de consumidor a „consumerista‟, ou seja, a
perspetivar o consumo como ato político usando o poder que enquanto
consumidor se pode ter.
Também de modo claro, do meu ponto de vista, este trabalho escapa ao
“educacionalismo metodológico” (Robertson e Dale, 2007), entendido enquanto
constructo abstrato e rígido: a educação vista como escolarização e sem
questionamentos conceptuais. Daí a necessidade de “explorar as implicações de
diferentes definições e fronteiras de modo a examinar novas formas de
conceptualizar a educação (…) em vez de assumir/aceitar que todos queremos
dizer a mesma coisa quando falamos de educação” (Robertson e Dale, 2007: 7).
Esta é uma das finalidades deste trabalho que, inscrevendo-se na sociologia
política e da educação-não escolar, procurará atribuir
“(...) ênfase à problemática da sociabilidade em detrimento de uma definição
do educativo e do escolar ocupada apenas com a diversificação das
oportunidades de acesso aos bens escolares (…) [procurando] formas
alternativas e, mesmo, modos contraditórios de definir politicamente a
questão educativa.” (Correia, 2001: 37).
É que, não obstante a existência de diversas obras que, desde há já algumas
décadas, apontam para o facto de a “educação estar a sair da escola” e,
consequentemente, para a necessidade de não reduzir o educativo ao escolar
(apenas como exemplo, Faure, 1972; Beillerot, 1985; Pain, 1990; Canário, 1995;
Correia, 2001), a verdade é que a forma escolocêntrica de pensar a educação
ganhou relevo, não só na investigação em ciências da educação (pelo menos no
contexto português), mas também no papel cada vez mais amplo que é atribuído
à escola pela sociedade. Pretendo, assim, de algum modo, esbater fronteiras
entre o educativo e o não-educativo através da atribuição do estatuto de
educativo a situações não escolares, na linha do que afirma Afonso (1992: 86),
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
48
quando propõe o desenvolvimento de “uma sociologia da educação (não-escolar)
que estude como se caracterizam os contextos educativos informais, mas
sobretudo, não-formais, enquanto instâncias de reprodução ou mudança social”
através da incorporação, nas preocupações científicas da sociologia da educação,
de formas e contextos de aprendizagem que não se reduzem à instituição escolar
e onde possam ocorrer processos de educação não-formal (Afonso, 1992 e 2005).
Durante décadas, e decorrente do predomínio das Teorias do Capital
Humano, o binómio educação-desenvolvimento foi sendo construído tendo por
base a ideia de que a mais educação – entendida maior nível de escolarização –
corresponderia, necessariamente, um maior e melhor desenvolvimento. Esta
forma de equacionar a relação entre educação e desenvolvimento
“atingiu um sucesso considerável nos anos 60/70, com o desenvolvimento
da „teoria do capital humano‟. (…) Para a „teoria do capital humano‟, o maior
nível de qualificação académica será acompanhado de uma maior
capacidade para produzir de forma mais rápida, segura e eficiente. Nesse
sentido, tendo em atenção as repercussões que a educação teria na
produtividade do trabalho, investir em educação seria, do lado da oferta,
bastante vantajoso.”. (Cabrito, 2002: 22).
Esta teoria que encontra sustentação nos trabalhos de Theodore Schültz e,
também, segundo Lopes (2010), em Gary Becker e Jacob Mincer, é “[c]riticada
fortemente a partir da década de 60 [e] veio a retomar parte da sua importância
inicial a partir dos finais do século XX, com as novas teorias do crescimento
económico (Lucas, 1988; Romer, 1989), que priorizam o papel do conhecimento e
da investigação científica na capacidade competitiva das economias e no êxito
dos trabalhadores no mercado de trabalho.” (Cabrito, 2002: 25).
Inerente a este binómio está uma identificação, por um lado, da educação
com a escolarização e, por outro, do desenvolvimento com o crescimento
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
49
económico. Assim, a ênfase era (é?) colocada na educação escolar e a
escolarização vista como fator de progresso e desenvolvimento económico.
Tal como já afirmei, apesar de ser muito usada por organizações da
sociedade civil, como ONG‟s, e por estruturas de influência e decisão política de
natureza diversa, tais como a ONU e a União Europeia, a noção de educação
para o desenvolvimento tem sido pouco explorada conceptualmente. O que
significa „educação‟ quando se fala de educação para o desenvolvimento? De
escolarização? Da promoção de sociabilidades? Da formação de força produtiva?
E o que significa „desenvolvimento‟ quando se fala de educação para o
desenvolvimento? De progresso? De evolução? De mudança social? De
crescimento económico?
Desenham-se, então, relações entre educação e desenvolvimento que não
são passíveis de ser entendidas de modo linear pela característica polissémica
dos dois conceitos, bem como pela complexidade de articulações que podem ser
(ante)vistas quando nos debruçamos sobre os agentes que dela se ocupam.
Torna-se necessário, então, explorar essas diferentes conceções e articulações de
modo a perceber que conceções e objetivos económicos, culturais, sociais e
políticos lhes estão subjacentes. De que modo é entendida a educação, o
desenvolvimento e a educação para o desenvolvimento para a União Europeia
(enquanto instância de decisão e de influência política), para as organizações
transnacionais (enquanto instâncias de ação ao nível da cooperação
internacional) e para os novos movimentos sociais, nomeadamente o Comércio
Justo?
Importa, portanto, perceber qual a história, formas e contextos que a
educação para o desenvolvimento foi assumindo, tentando assim, conceptualizá-
la.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
50
Nas práticas de educação para o desenvolvimento pode perceber-se um
percurso que vai da intenção de „ajuda‟ – que se caracteriza sobretudo pela
criação de um elo de auxílio entre os países ricos (o „Norte‟) e os países pobres (o
„Sul‟) – à intenção de „transformação‟, com a tentativa de análise das causas e
consequências dos diferentes modos de desenvolvimento entre „Norte‟ e „Sul‟ e as
relações de dependência entre centro e periferia (cf. Mesa, 2005).
É possível, desde já, identificar intenções na educação para o
desenvolvimento protagonizada por organizações da sociedade civil
consubstanciadas na “Sensibilização da opinião pública em geral e de
determinados grupos específicos dos países do Norte, em particular; Campanhas
informativas e de sensibilização; Formação; Participação na definição de políticas
através de lobbying e advocacy”. (in, CIDAC – Centro de Informação e
Documentação Amílcar Cabral, 2004: 5)24.
Sobretudo através do Centro Norte-Sul, a União Europeia tem formulado
(tal como já foi referido) recomendações e diretivas sobre a importância da
educação para o desenvolvimento. Importa, pois, perceber qual o papel que a
educação para o desenvolvimento tem na agenda europeia, bem como que tipo de
relações Norte-Sul são privilegiadas.
Em novembro de 2001, uma Resolução do Conselho de Ministros da União
Europeia sobre Educação para o Desenvolvimento e sensibilização da opinião
pública europeia a favor da Cooperação para o Desenvolvimento
“[s]alienta a importância do factor "comércio equitativo", que constitui um
método eficaz de educação para o desenvolvimento. Considera que seria útil
24 De acordo com CIDAC (2004), lobbying consiste na capacidade de um dado grupo relacionado a um determinado tema, desenvolver actividades de pressão político-social, no curto e médio prazo, por meio de acções concretas concebidas para um período de tempo específico. O termo advocacy refere-se à capacidade de um dado grupo desenvolver actividades de pressão político-social, no longo prazo, motivadas e estimuladas por uma causa. Sendo ambas acções de pressão política e social, advocacy tem mais como finalidade as mudanças de comportamento, o lobbying é mais dirigido a causar mudanças políticas e legislativas públicas.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
51
analisar, em concertação com os meios interessados, as possibilidades de
promover ainda mais o conceito de comércio equitativo” (conforme
documento disponível on-line)
legitimando, deste modo, o Comércio Justo enquanto conceito e prática de
educação para o desenvolvimento. Esta mesma posição foi recentemente
reforçada no Relatório sobre Comércio Equitativo e Desenvolvimento, produzido
pela Comissão de Desenvolvimento em 2006 e apresentado ao Parlamento
Europeu (documento disponível on-line).
Na definição e princípios do Comércio Justo é referido, de forma explícita, o
papel que a educação assume naquilo que é enunciado como sendo as “duas
almas” do Comércio Justo, enquanto movimento internacional: a comercialização
de produtos produzidos segundo os critérios estabelecidos e a sensibilização e
educação dos consumidores numa ótica de consumo reflexivo e interventivo.
Assim, o Comércio Justo enquanto novo movimento social que se pretende
constituir enquanto modelo alternativo de desenvolvimento, no que às relações
Norte/Sul diz respeito, e por estar fortemente vinculado a práticas de educação e
desenvolvimento, poderá permitir analisar conceções e práticas que esta relação
pode assumir.
Ultrapassar o “fetichismo espacial” (Robertson e Dale, 2007), implica ter em
consideração o papel que o espaço tem em processos e relações sociais,
nomeadamente, que ele é objeto mas também resultado de lutas, o que significa
considerar a sociedade e o espaço como parte integrante um do outro, ao invés
de considerar este último apenas como o pano de fundo, ou o cenário, onde as
relações sociais têm lugar.
A contemplação de diferentes escalas em que o Estado se reconfigura não é
tida em conta neste trabalho apenas como constatação, ou seja, como um novo
contexto de definição e ação política e social, mas sim como elemento
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
52
interpretativo, na medida em que os diferentes atores usam diferentemente o
espaço, e diferentes escalas, para agir socialmente. Significa isto que não basta
considerar a existência de um mundo globalizado que contribui para o processo
de desestatização e desnacionalização, ou seja, entender a globalização como um
processo sem sujeito mas ter em conta que aquilo que é denominado
“globalização hegemónica” (Santos, 2002) tem, como principal agente um projeto
político neoliberal que, não sendo inevitável nem indispensável, é, no entanto,
conduzido através da combinação entre Estados-nação, empresas multinacionais
e transnacionais, agências transnacionais (BM, OMC, OCDE, FMI) e organizações
regionais (Robertson, Bonal e Dale, 2002). Perante este cenário, percebemos que
o espaço de elaboração e implementação política foi alterado, e ainda de acordo
com Robertson, Bonal e Dale (2002), em termos de escala, ou seja, o espaço
político – social e discursivamente construído, bem como a sua organização,
articulação e regulação – foi reconfigurado, isto é, houve um reescalonamento
que relocaliza o território e cuja principal característica reside no projeto político
neoliberal. Ultrapassar o “fetichismo espacial” é também, abandonar uma
conceção dicotómica e cristalizada do local e do global em que o primeiro é
romantizado e o segundo diabolizado, na medida em que essa conceção contribui
para negar as possibilidades de agência. Neste sentido, torna-se relevante
perceber se, e como, o reescalonamento do espaço de ação social e política pode
ser utilizado para desenvolver movimentos sociais, ou seja, de que forma os
movimentos sociais, e neste caso específico o Comércio Justo, podem usar a
escala de modo a imporem-se “de baixo para cima”, na medida em que ao
disporem de diferentes instâncias de contestação, aumentam os espaços de ação
disponíveis em termos de agência social.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
53
Sintetizando o que até aqui foi dito no que diz respeito ao objeto de estudo e
à problemática:
- este trabalho tem como finalidade contribuir para a complexificação da
discussão em torno das relações entre educação e desenvolvimento;
- o objeto de estudo deste trabalho é as relações discursivas estabelecidas
pelos novos movimentos sociais para as relações entre educação e
desenvolvimento;
- assumo como hipótese de trabalho que, num contexto de globalização
política e económica e de reescalonamento do Estado, os discursos dos novos
movimentos sociais se apresentem como contra-hegemónicos, pelo que serão
esses os discursos centrais em análise, ainda que contrastados com os discursos
de outros atores políticos que assumem a educação, o desenvolvimento e a
educação para o desenvolvimento como centrais;
- assim, as questões de pesquisa, relacionadas com o discurso dos novos
movimentos sociais, debruçam-se sobre i) se, e como, aquele se constitui
enquanto discurso contra-hegemónico; ii) o que influencia e/ou determina a
produção do discurso; iii) como é produzido e organizado o discurso; iv) o que
significa educação na equação educação para o desenvolvimento; v) o que
significa desenvolvimento na equação educação para o desenvolvimento.
2.3. ‘Opções’ metodológicas
Retomando a ideia segundo a qual a construção do objeto de estudo não
pode ser separada das opções teóricas e conceptuais, mas também metodológicas
que são tomadas, pode-se considerar que, no limite, não é o/a investigador/a
que escolhe a metodologia a utilizar, mas que é na articulação coerente entre
objeto, problemática e teoria, ou seja, no modo como se pensa o processo e o
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
54
projeto de pesquisa, que as opções metodológicas tomam forma e se „escolhem a
si próprias‟. Trata-se, pois, de deixar espaço que permita que objeto,
problemática e teoria definam opções metodológicas congruentes com o que se
pretende estudar, ou seja, não escolhemos o método: é o método que nos escolhe
a nós. Com base nesta ideia, e considerando o objetivo e objeto de trabalho acima
enunciados, a metodologia que guiou este trabalho foi a análise de discurso. Esta
„opção‟, insisto, é uma consequência do objeto, objetivo e hipótese do trabalho,
pelo que decorre do facto de estarem aqui em causa, ou seja, em estudo,
discursos e, nomeadamente, discursos políticos.
Concordo com Stephen Ball (2006) quanto à necessidade de, em trabalhos
que assumem o político como central, ou seja, em trabalhos de sociologia política
(termo que, refere Ball, foi cunhado por Jenny Ozga em 1987), se definir
conceptualmente o que se quer dizer com política25: “Para mim, muito repousa no
sentido ou possíveis sentidos que damos a política; isso afeta „como‟ pesquisamos
e como interpretamos o que encontramos.” (Ball, 2006:44). É exatamente nesse
sentido que o autor faz a distinção entre a política como discurso e a política como
texto:
“Os discursos políticos (e uso aqui o termo no sentido Foucaultiano, como
uma prática regulada que se refere a afirmações, em vez do sentido
linguístico da linguagem em uso) produzem quadros de sentido e de
evidência nos quais a política é pensada, falada e escrita. Os textos políticos
são definidos no âmbito desses quadros que constrangem mas nunca
determinam todas as possibilidades de ação (Ball, 2006: 44).
25 Stephen Ball (2006: 44) chega mesmo a colocar a questão “what is policy?”. Em português esta pergunta é ainda mais pertinente dado que a língua inglesa permite uma diferenciação entre politics e policies que não existe em língua portuguesa e que distingue a conceção ampla de uma política (politics) e a materialização desta em medidas políticas concretas (policies): “A primeira é a conceção orientadora da mudança social a implementar, as segundas são elaboradas a partir da primeira enquanto seu enquadramento orientador” (Stoer e Magalhães, 2005: 22).
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
55
Sigo a linha de Ball (2006), na medida em que esta distinção da política
como discurso e da política como texto tem valor operatório neste trabalho,
nomeadamente, no que às implicações metodológicas diz respeito. Na perspetiva
do autor, a resposta à questão “o que é a política?” não significa a opção pelo
entendimento desta como uma ou outra coisa: na verdade, segundo Ball (2006),
a política é ambas as coisas, ou seja, é texto e discurso.
Na dimensão da política como texto, Stephen Ball (2006) enfatiza a ideia,
também defendida por Codd (1988) de que “para qualquer texto, uma pluralidade
de leitores produz uma pluralidade de leituras” (Codd, 1988: 239). Isto significa
que os autores não detêm controlo sobre os significados que os leitores atribuem
aos textos, apesar dos esforços dos autores das políticas para “controlarem” o
texto, nomeadamente, através do uso de uma linguagem que promove um
aparente interesse, ou bem, público e universal tornando oculta a diversidade de
interesses e a heterogeneidade da sociedade (Codd, 1988). No entanto, é
necessário ter em conta esses esforços e os efeitos que eles têm nos leitores (Ball,
2006) para que, em termos de análise da política como texto, não se caia na
falácia intencional (Codd, 1988, 2004) que o modelo de análise técnico-
empiricista de documentos de política implica. Significa isto que este modelo de
análise se baseia na procura das intenções dos autores, ou seja, na procura de
uma leitura “correta”, na medida em que assenta no que o(s) autor(es) pretendem
com o texto. Como perspicazmente alerta John Codd (1988, Olssen, Codd e
O‟Neill, 2004), a consideração deste tipo de preocupação – baseada nas
„verdadeiras‟ intenções dos autores do texto – sugere a ideia de que o significado
de um texto tem uma correspondência direta com as intenções de um autor,
sendo portanto uma evidência do que pretendeu exprimir. Ora, ainda segundo
Codd (1988), este tipo de abordagem tem uma impossibilidade intrínseca na
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
56
medida em que, não só as intenções não são acontecimentos mentais privados,
como as intenções não são o mesmo que declarações de intenções, e também não
é a mesma coisa referir „intenção‟ enquanto plano prévio ou enquanto ação
realizada intencionalmente. Deste problema inerente à abordagem técnico-
empiricista, no que à falácia intencional diz respeito, decorre ainda um outro:
como alerta Stephen Ball (2006)
“é crucial reconhecer que as políticas em si mesmas, os textos, não são
necessariamente claros, fechados ou completos. Os textos são o produto de
compromissos a vários níveis (na influência inicial, na micropolítica da
formulação legislativa, no processo parlamentar e na política e micropolítica
de articulação de grupos de interesse). Eles são, tipicamente, os produtos
canibalizados de múltiplas (mas circunscritas) influências e agendas” (Ball,
2006: 44).
A acrescentar a estes compromissos há também a considerar a questão da
representação, tão bem analisada no trabalho de Stoer, Cortesão e Magalhães
(1997). Com base num exemplo de uma medida – texto – de política educativa em
Portugal, os autores defendem que a decisão política se toma no confronto entre
a diversidade de representações que cada ator político tem, ou dizendo de outro
modo, na hibridez identitária que constitui cada ator político. Significa isto que o
momento da decisão, o momento de cortar com opções, é também o momento de
escolha entre diversas fidelidades, percursos ideológicos e institucionais,
compromissos, acordos, negociações, promessas e conflitos que compõem o
decisor político, pelo que a questão levantada por Codd (1988) relativamente à
intenção é assaz pertinente e desmistificadora da suposta linearidade dos textos
políticos pois, tal como afirma Ball (2006), as políticas são representações
codificadas de modo complexo e descodificadas de modos também complexos.
Se “os textos e os seus leitores e o contexto de resposta, todos têm histórias”
(Ball, 2006: 45) não é possível, através da análise política, tornar a linguagem
“As pessoas acima do lucro”
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57
transparente para todos os leitores, nem captar na linguagem a realidade da
experiência do autor, exprimindo-a num discurso que todos os leitores
reconheçam como verdade (Codd, 1988): “o que a abordagem técnico-empiricista
é incapaz de ter em conta é o facto de a linguagem, em si mesma, ser uma esfera
de prática social necessariamente estruturada pelas condições materiais nas
quais esta prática se realiza.” (Olssen, Codd e O‟Neill, 2004: 64). É importante
então, na consideração da política como texto, ter em conta que os textos não
nascem de um vazio institucional ou social, nem da simples intenção do autor:
os textos de política são passíveis de leituras e interpretações várias, ou seja, são
“writerly texts” e não “readerly texts” (cf. distinção de Roland Barthes, referida
por Codd, 1988) na medida em que sobrevêm em contextos e discursos
ideológicos, políticos e sociais particulares. É neste sentido que, tal como afirma
Ball (2006: 45), “[é] também importante não reificar a política – não identificar a
política apenas com um conjunto de textos.”.
É nesta consideração de que a política é mais do que um conjunto de textos
que a dimensão da política como discurso deve ser entendida. É que a
consideração da política como texto foca a sua atenção no que “aqueles que
habitam a política pensam e as relações entre pensamento e ação e erra e falha
na atenção ao que eles não pensam. Assim, precisamos ter em conta o modo
como conjuntos de política, ou políticas relacionadas, exercem poder através da
produção26 de „verdade‟ e „conhecimento‟, enquanto discurso.” (Ball, 2006: 48).
Esta aceção tem, clara e reconhecidamente, a influência dos trabalhos de
Foucault (1971, 1997, 1998, 2005) no que diz respeito à ideia de que os
discursos não são sobre objetos mas que, eles próprios, constituem os objetos e,
nesse sentido, instituem “regimes de verdade”, que se constroem também a partir
do discurso político:
26 O destaque é do autor.
“As pessoas acima do lucro”
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58
“Os discursos referem-se ao que pode ser dito e pensado, mas também
determinam quem pode falar, quando, onde e com que autoridade. Os
discursos corporizam o sentido e uso de proposições e palavras. Assim, são
construídas determinadas possibilidades de pensamento. As palavras são
ordenadas e combinadas de modo particular e outras combinações são
deslocadas ou excluídas.” (Ball, 2006: 48).
A política como discurso assenta, então, na ideia de que a linguagem não é
apenas uma série de símbolos utilizados para se transmitirem mensagens sobre
um mundo exteriormente constituído, mas sim uma prática social que torna
possível a construção de uma visão do mundo e de significados (Codd, 1988).
Neste sentido, somos também „construídos‟ e „falados‟ pela política na medida em
que, ao ser discursiva, a política constrói e muda as possibilidades de pensar a
realidade social (Ball, 2006). Se a política envolve ação (ou falta dela) na seleção
de objetivos, de valores e distribuição de recursos (Codd, 1988), ou seja, se a
política constitui um projeto (ou projetos) de mudança social (Stoer e Magalhães,
2005), a elaboração de políticas constitui-se no exercício de poder através da
linguagem que é utilizada para legitimar determinada ação ou projeto de
mudança.
É por relação às dimensões textuais e discursivas da política que Codd
(1988) estabelece um quadro de referência para análise de políticas, começando
por distinguir entre análise para a elaboração da política e análise das políticas.
Esta, que se consubstancia numa apreciação crítica das políticas existentes (por
oposição à base sobre a qual as políticas são construídas, no caso da análise
para a elaboração de políticas), deverá examinar os processos que influenciam ou
determinam a construção das políticas e os valores, pressupostos, e ideologias na
base da construção das políticas. Poder-se-ia dizer que se trata de uma análise
do conteúdo das políticas, o que, de acordo com o que até agora afirmei e
“As pessoas acima do lucro”
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59
defendi, significa uma análise do discurso e do texto. Mas então o que significa
fazer uma análise do conteúdo das políticas tendo por referência que estas se
constituem enquanto discurso e enquanto texto? Ou seja, o que distingue a
análise de conteúdo e a análise de discurso, concretamente no que concerne à
análise política?
A análise de discurso tem, como principal objetivo de investigação,
analisar as perspetivas em que as relações sociais de poder se constroem no
plano discursivo, enquanto que o objetivo primeiro da análise de conteúdo é o de
captar algo que estará subjacente à superfície textual, desvendando assim o
significado dos textos e as intenções dos autores que o produziram. Segundo
L‟Écuyer (1988), a análise de conteúdo permite “descobrir o significado da
mensagem estudada” (: 50), sendo, antes de mais, uma produção de
interpretações sobre textos, interpretações essas que resultam de uma leitura
orientada e organizada dos textos submetidos a análise, ainda que aquela possa
não se limitar à mera aplicação técnica de procedimentos rotineiros e universais.
Ora, na concordância das perspetivas que até aqui tenho vindo a expor e que
suportam a minha argumentação, a análise de conteúdo, pelas suas
características acima enunciadas, adequa-se mais a uma abordagem técnico-
empiricista da análise de políticas. O trabalho de análise de conteúdo –
nomeadamente a produção de inferências –, ainda que aborde os contextos de
produção dos textos e da própria análise, resulta na construção de um outro
texto interpretativo do primeiro, de modo a compreender, interpretar e/ou
reproduzir uma realidade existente de forma independente dos textos em análise
e centrada nas intenções dos autores – intenções estas que estariam subjacentes
ao texto político –, aproximando-a assim tanto da falácia intencional como do
idealismo linguístico. (Codd, 1988; Olssen, Codd e O‟Neill, 2004). Assim, a análise
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
60
de conteúdo pode ser um recurso metodológico central em trabalhos de
investigação que se insiram em paradigmas interpretativos ou compreensivos, em
estudos que adotem como metodologia, por exemplo, o estudo de caso, a
etnografia ou o método biográfico – situações em que os dispositivos de recolha
de dados (como as entrevistas, recolha documental, observação ou diários de
campo por exemplo), não dispensam a análise de conteúdo enquanto dispositivo
de análise que permite desocultar sentidos, intenções e práticas dos atores.
A análise do discurso concebe a linguagem – e portanto, o discurso – como
um modo de agir no mundo, contribuindo para a manutenção e/ou mudança da
estrutura social e dos modos de conceber o mundo, ou seja, é uma abordagem
que, tal como referem Robertson (2008) e Gomes (1997), procura transcender a
dicotomia entre abordagens interpretativas e estruturais. Desta forma, defendo
que este é um método (e um entendimento) mais adequado para a análise
política. De facto, o objeto que está em análise nas práticas de análise de
conteúdo é o próprio texto enquanto que na análise de discurso é o discurso,
onde o texto se inclui. Como referirei no capítulo acerca da metodologia, o objeto
da análise do discurso, e mais concretamente, da Análise Crítica do Discurso –
perspetiva adotada no meu trabalho –, é mais vasto do que o texto propriamente
dito, sendo que este é uma das dimensões dos atos discursivos passíveis de
análise27.
Se assumo a intenção de estudar as relações discursivas estabelecidas entre
educação e desenvolvimento pelos atores políticos que assumem a educação para
o desenvolvimento como prática central, torna-se fulcral interrogar o discurso e o
seu papel na constituição de representações sociais e na construção social e
política da educação e do desenvolvimento. O facto de estas duas conceções
27 Como também referirei no capítulo metodológico, na terminologia do modelo de Análise de Discurso que adotei, desenvolvido por Fairclough, os textos são uma das dimensões de análise discursiva ou semiótica, ou seja, os textos são eventos discursivos.
“As pessoas acima do lucro”
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61
serem, em si mesmas, polissémicas aumenta a multiplicidade de possibilidades
que a agregação dos dois, numa única expressão, pode indiciar. Por outro lado,
se o discurso político institui “regimes de verdade” ao delimitar um suposto bem
comum universal, através de discursos hegemónicos, é necessário considerar a
existência de “outros” discursos, contra-hegemónicos, que procuram conquistar
algum tipo de centralidade no discurso político. E essa é, como já referi, a
hipótese de trabalho por mim assumida, ao considerar os discursos dos novos
movimentos sociais.
Assim, e voltando, de novo, a Codd (Codd, 1988; Olssen, Codd e O‟Neill,
2004), os discursos a analisar serão considerados, não como discursos com um
significado autêntico ou enquanto planos para a ação política que exprimem
intenções inequívocas, mas como discursos ideológicos, construídos dentro de
contextos históricos e políticos particulares. Isto permitirá uma atitude de
desconstrução dos discursos que permita focalizar os processos da sua
produção, a organização que os discursos assumem e o que permite e delimita os
seus significados, renunciando assim à existência de discursos políticos
provenientes de “lugares brancos” ou de “não lugares” (Magalhães e Stoer,
2006b).
3. Roteiro do trabalho
Tal como a utilização da primeira pessoa do singular na escrita deste
trabalho é um desvio face ao habitual nos textos académicos, também a
organização que este trabalho assume não segue os cânones usuais numa tese
de doutoramento. De facto, esta não é uma dissertação organizada de uma forma
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
62
„clássica‟, isto é, que comece com uma introdução, seguida de um
enquadramento teórico, ou „estado da arte‟, com um posterior enquadramento
metodológico e explanação dos procedimentos usados, para passar de seguida à
análise e conclusão. O método adotado neste trabalho desafiou a ortodoxia da
escrita de teses por duas razões: primeiro, porque as características da
perspetiva metodológica adotada – a análise do discurso – exigiram que a sua
explanação fosse feita logo no início, isto porque a análise de discurso se
constitui num “pacote completo” (Phillips e Jørgensen, 2002), ou seja, assume-se
enquanto perspetiva teórico-metodológica, pelo que se constitui também
enquanto quadro teórico. Segundo, porque sendo uma das dimensões de análise
a Prática Social – o que implica colocar em relação as estruturas sociais e os
eventos –, a existência de um enquadramento teórico na lógica da „revisão da
literatura‟ ou do situar o „estado da arte‟ pareceu-me menos profícuo do que
tecer, de uma forma articulada, os conceitos orientadores da análise com a
própria análise, evitando repetições ou sobreposições, e dando relevo ao papel
heurístico que os conceitos e perspetivas teóricas têm numa pesquisa.
Assim, após esta Introdução em que são explicitados o objeto, a
problemática de investigação e o método – ou seja, como se situa o trabalho do
ponto de vista da sua construção teórico-metodológica –, segue-se o II capítulo,
denominado Da Metodologia. Aqui é explicitado o quadro epistemológico do
trabalho e a conceção metodológica que o orientou. É também neste capítulo que
se apresenta o modelo de análise construído e todas as decisões inerentes ao
modus operandi subjacente à análise produzida.
O III capítulo é dedicado à Análise. Começo com a Análise da Prática
Social, ou seja, a análise da relação dialética entre as estruturas sociais e os
eventos sociais. Deste subcapítulo fazem parte a análise da matriz social do
“As pessoas acima do lucro”
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63
discurso e dos efeitos ideológicos que estes produzem. Este capítulo tem ainda
um outro subcapítulo dedicado à Análise dos Textos. Aqui é considerada a
prática discursiva que os textos evidenciam, quer em termos de
interdiscursividade como de intertextualidade. Uma outra dimensão consta
também deste subcapítulo: o vocabulário. Aqui serão tidos em consideração os
significados que os textos constroem, bem como os lugares comuns neles
presentes e as assunções que produzem o, e são reproduzidas pelo, discurso
enquanto modo de legitimação do mesmo.
O IV capítulo é dedicado à discussão do tipo de mudança social que a
ordem de discurso contra-hegemónica preconiza, discutindo e problematizando
as conceções paradigmáticas e subparadigmáticas que lhe possam estar
subjacentes.
São apresentados, num volume separado – Volume II-Anexos –, os
documentos que estiveram em análise neste trabalho.
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65
IIII DDAA MMEETTOODDOOLLOOGGIIAA
“Uma linguagem que, finalmente, diga o que temos a
dizer. Pois as nossas palavras já não correspondem ao
mundo. Quando as coisas eram um todo, podíamos
confiar nas nossas palavras para as exprimirem. Mas
essas coisas fragmentaram-se aos poucos, rasgaram-
se, ruíram num caos. E, no entanto, as nossas palavras
permanecem as mesmas. Não se adaptaram à nova
realidade. Assim, sempre que tentamos falar do que
vemos, estamos a falar com falsidade, distorcendo
assim precisamente aquilo que tentamos representar. E
agora é tudo uma confusão. Mas as palavras, como
você já sabe, são capazes de modificar. O problema é
como demonstrar isso.”
Paul Auster, A Trilogia de Nova Iorque.
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II DA METODOLOGIA
Paul de Bruyne, Jacques Herman e Marc de Schoutheete (1974), num
trabalho sobre a pesquisa em Ciências Sociais, definem metodologia,
simultaneamente, como uma lógica e como uma heurística na medida em que
“[p]ara ser fiel às suas promessas, uma metodologia deve abordar as ciências sob
o ângulo do seu produto – como resultado em forma de conhecimento científico –
mas também como processo – como génese desse mesmo conhecimento.” (: 27)
não podendo, portanto, confinar-se àquilo que os autores designam como
“«metrologia» ou tecnologia da medida dos factos científicos” (ibidem). Neste
sentido, Bruyne, Herman e Schoutheete (1974) constroem um “espaço
metodológico” quadripolar constituído pelo pólo epistemológico que “é a garantia
da objetivação – isto é, da produção – do objeto científico, da explicitação das
problemáticas da pesquisa” (Bruyne, Herman e Schoutheete, 1974: 35), pelo pólo
teórico, “que guia a elaboração das hipóteses e a construção dos conceitos
[sendo] o lugar da formulação sistemática dos objetos científicos” (ibidem), pelo
pólo morfológico, entendido enquanto “instância que enuncia as regras de
estruturação, de formação do objeto científico” (ibidem) e, finalmente, o pólo
técnico, que é o lugar que “controla a coleta dos dados, esforça-se por constatá-
los para poder confrontá-los com a teoria que os suscitou” (ibidem: 36). Nas
palavras destes autores, toda e qualquer metodologia é construída na interação e
articulação destes quatro pólos, conforme é representado pela figura seguinte:
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68
Figura 1. – Modelo quadripolar a partir de Bruyne, Herman e Schoutheete (1974).
Ora, a visão defendida por vários analistas de discurso (cf., por exemplo,
Wodak e Meyer, 2009; Laclau e Mouffe, 1985; Fairclough, 1989, 1992, 1995,
2003 e 2009; Phillips e Jørgensen, 2002), é a de que a análise de discurso não
pode ser usada como um método de análise separado dos fundamentos teóricos e
metodológicos da própria análise, dado não ser uma técnica de análise de dados,
mas sim um todo, um conjunto teórico-metodológico. Na feliz expressão de
Phillips e Jørgensen (2002), a análise de discurso é um “pacote completo” e,
ainda segundo as mesmas autoras, esse “pacote” contém: “1) premissas
filosóficas (ontológicas e epistemológicas) relativas ao papel da linguagem na
construção social do mundo; 2) modelos teóricos; 3) linhas/orientações
metodológicas de como abordar um domínio de pesquisa; 4) técnicas de análise
específicas.” (Phillips e Jørgensen: 4).
Neste trabalho – e adiantando já o modelo de análise desenvolvido e que
será detalhadamente apresentado nas páginas seguintes –, a relação entre o
“modelo quadripolar” e o conjunto teórico-metodológico – ou o “pacote completo”
que as autoras supracitadas referem –, de que a análise de discurso se reclama,
pode ser antevisto na Figura 2:
Pólo epistemológico Pólo teórico
Espaço
metodológico
Pólo morfológico Pólo técnico
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Pólo epistemológico
Construccionismo
social
Premissas filosóficas
Pólo teórico Estruturalismo/Pós-
estruturalismo Modelos teóricos
Pólo morfológico
Análise do discurso Linhas/orientações
metodológicas
Pólo técnico Análise Crítica do
Discurso
Técnicas de análise específicas
Figura 2. – Relação entre a análise de discurso e o modelo quadripolar de Bruyne, Herman e Schoutheete (1974) neste trabalho.
Não se trata de fazer uma correspondência direta e simplista entre os
pólos enunciados por Bruyne, Herman e Schoutheete (1974) e a análise de
discurso, mas sim, de problematizar esta última enquanto método, no sentido de
organização coerente e criticamente articulada de teorias e práticas de
investigação, ou seja, de que modo a análise de discurso se pode construir no
“espaço metodológico” (Bruyne, Herman e Schoutheete, 1974) que caracteriza a
pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Assim sendo, argumentarei, neste
parte do meu trabalho, que a análise de discurso se constitui num “espaço
metodológico” (Bruyne, Herman e Schoutheete, 1974) próprio, ou seja, é
constituída por cada um dos pólos acima referidos.
Figura 3. – A abordagem dialética-relacional da ACD enquanto espaço metodológico no modelo quadripolar de Bruyne, Herman e Schoutheete (1974).
Construccionismo social
Estruturalismo/Pós-estruturalismo
Abordagem dialética-relacional
Análise do Discurso Análise Crítica do Discurso
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
70
Defenderei, portanto, que a “abordagem dialética-relacional” – modelo de
análise do discurso que uso neste trabalho – é uma abordagem construída na
interação de que Bruyne, Herman e Schoutheete (1974) falam. Uma análise
menos atenta da Figura 3., em contraste com a Figura 1., poderia indiciar que a
Análise Crítica do Discurso se constitui enquanto técnica, mas não é isso, de
todo, o que aqui expresso. Primeiro há que ter em conta que o pólo técnico, e a
sua dimensão de técnicas de análise específicas, não devem ser confundidos com
análises técnicas, ou seja, com uma tecnicidade formatada e de aplicação
rotineira e de caráter meramente procedimental. Para além disso, e conforme
mostra a Figura 3., os pólos, ou premissas no caso da Análise de Discurso, estão
todos relacionados diretamente entre si, inter-influenciando-se, pelo que o pólo
técnico, ou as técnicas de análise específicas, – no caso deste trabalho, a Análise
Crítica do Discurso – são claramente influenciadas, de forma direta, pelos outros
pólos ou premissas.
Neste capítulo metodológico pretendo explorar e apresentar esta ideia. A
argumentação que desenvolverei é, obviamente, heurística: é uma construção
cognitiva e serve para a compreensão situada da construção metodológica do
meu trabalho, não pretendendo ter uma qualquer validade externa a este nem
ser uma tipificação geral da Análise de Discurso enquanto espaço de decisão
metodológica.
“As pessoas acima do lucro”
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71
1. A Análise de Discurso: fundamentos epistemológicos e
teórico-metodológicos
1.1. Premissas filosóficas da análise do discurso ou o pólo
epistemológico
Numa obra clássica em que fazem a análise da construção social da
realidade, Peter Berger e Thomas Luckmann (1973) realçam a relatividade social
daquilo que denominamos „realidade‟ e „conhecimento‟ na medida em que
“aglomerações específicas da «realidade» e do «conhecimento» referem-se a
contextos sociais específicos e que estas relações terão de ser incluídas numa
correta análise sociológica desses contextos.” (Berger e Luckmann, 1973: 13). Na
conceção dos autores, isto não significa que a realidade seja inexistente, ou que
não haja materialidade subjacente aos objetos, factos ou ações, mas sim que a
materialidade desses objetos, factos ou ações é indissociável das significações
que lhes são atribuídas e que permitem transformá-los em objetos, factos e ações
específicos. Deste modo, não é possível pensar a realidade como algo exterior aos
sujeitos, mas, sim, como algo que é construído e, simultaneamente, apreendido
por aqueles através da mediação de símbolos e sinais que lhe conferem
objetivação e significado. A linguagem é um desses mediadores uma vez que
tipifica experiências e as agrupa em categorias em termos das quais a realidade
ganha sentido para um conjunto mais ou menos amplo de pessoas (Bergman e
Luckmann, 1973). Neste sentido, a linguagem não é encarada apenas como
reflexo da realidade e do mundo social mas sim um domínio onde essa mesma
realidade e mundo social são construídos e ganham sentido e significado. É neste
quadro de relativismo epistemológico e ontológico que se insere o
construccionismo social, constituindo-se este como o quadro global de diferentes
“As pessoas acima do lucro”
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72
abordagens de análise do discurso.
Segundo Phillips e Jørgensen (2002), a construção e operacionalização do
discurso enquanto objeto de análise num quadro de construccionismo social
implica:
- uma abordagem crítica ao conhecimento dado como certo e garantido, ou
seja, a compreensão de que o nosso acesso à realidade é feito através de
categorias que não refletem de modo transparente a realidade que “está lá fora”,
mas que é produto da nossa forma de categorizar o mundo, ou seja, produto do
discurso;
- uma visão antifundacionista do conhecimento, na medida em que,
enquanto seres históricos e culturais, as nossas visões do, e conhecimento sobre,
o mundo são produto de interações historicamente situadas. O discurso é um
modo de ação social que tem um papel na produção do mundo social e na
manutenção de padrões sociais. O facto de o mundo ser construído social e
discursivamente significa que o seu caráter não é pré-atribuído ou determinado
por condições externas, ou seja, é uma visão antiessencialista;
- a construção do conhecimento sobre o mundo e o social, bem como a
compreensão que dele fazemos, é feita através de interações segundo as quais
são construídas verdades comuns e que competem sobre o que é verdadeiro e
falso;
- algumas formas de ação tornam-se naturais e outras impensáveis,
dentro de uma particular visão do mundo, pelo que a construção social do
conhecimento e da verdade tem consequências sociais.
Em suma, a análise de discurso discute e analisa o papel que o discurso
tem na construção da realidade social e na constituição do mundo, podendo esse
papel ser representado da seguinte forma:
“As pessoas acima do lucro”
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73
O discurso é constitutivo O discurso é constituído
Figura 4: O papel do discurso na constituição do mundo (adaptado de Phillips e Jørgensen, 2002: 20).
Como mais à frente argumentarei, diferentes abordagens ou métodos de
análise do discurso, ainda que semelhantes quanto à consideração da existência
de um papel da linguagem e do discurso na constituição do mundo – o mesmo é
dizer, convergindo numa abordagem de construccionismo social –, divergem no
grau e intensidade que este papel tem, ou seja, posicionam-se diferentemente no
continuum acima representado.
1.2. Modelos teóricos de conceptualização do discurso ou o pólo
teórico
Se, epistemologicamente, a Análise de Discurso se situa no
construccionismo social, do ponto de vista do “modelo teórico” (Phillips e
Jørgensen, 2002), ou do “pólo teórico” (Bruyne e outros, 1974), ela situa-se no
quadro de referência estruturalista e pós-estruturalista (Phillips e Jørgensen,
2002). Retomando a ideia de que a realidade é construída socialmente, as
abordagens de análise do discurso assumem a proposta teórica da filosofia
estruturalista e pós-estruturalista de que o acesso à realidade é sempre feito
através da linguagem dado ser através desta que criamos representações da
realidade. Assim, a linguagem não é um mero reflexo de uma realidade pré-
existente, mas contribui, ativamente, para a construir dado que o seu significado
só é atribuído e apreendido através do discurso.
Deste modo, a linguagem não é vista apenas como um canal de
comunicação e transmissão de informação mas sim como um “sistema simbólico”
que é, simultaneamente, “estrutura estruturante” (Bourdieu, 2001) e “estrutura
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
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estruturada” (Bourdieu, 2001). Esta compreensão da linguagem como um
sistema não determinado pela realidade a que se refere, que não espelha a
realidade, mas, pelo contrário, que a constrói, tem a sua fundamentação na
linguística estruturalista desenvolvida com base nas ideias de Saussure. Phillips
e Jørgensen (2002) referem a importância da linguística saussuriana na
compreensão da relação entre linguagem e realidade: “Saussure argumentou que
os signos são constituídos por dois lados, forma (significante) e conteúdo
(significado), e que a relação entre os dois é arbitrária.” (Phillips e Jørgensen,
2002: 10). Assim, o significante corresponde à “forma” ou “corpo” que se vê ou
ouve da palavra e o significado àquilo que o conjunto de sons ou letras
representa. Deste modo, um materializa o outro, ou seja, um signo é,
simultaneamente, um conceito e uma “imagem acústica”, e a relação entre estas
duas faces do signo é construída e não natural:
“O sentido que atribuímos às palavras não lhes é inerente mas sim o
resultado de convenções sociais através das quais conectamos determinados
sentidos a determinados sons. (…) Saussure conceptualizou esta estrutura
como uma instituição social e, portanto, variável com o tempo.” (Phillips e
Jørgensen, 2002: 10).
O trabalho de Saussure influenciou, de modo determinante, as conceções
estruturalistas da linguagem, não só pela referida relação, socialmente
construída, entre significante e significado existente nos signos mas também pela
distinção fundamental que o autor fez entre langue – a estrutura da linguagem, a
rede de signos que dá sentido a estes últimos e que é inalterável – e parole – o
uso situado da linguagem, ou seja, o seu uso pelos falantes em situações
específicas. E na teoria saussuriana28, a langue é uma estrutura fixa e imutável
28 Para Saussure, a linguística deveria focar-se no estudo da langue uma vez que a parole estaria desqualificada enquanto objeto principal da linguística, dados os seus “vícios”, como erros, usos incorretos, idiossincrasias, etc. (Phillips e Jørgensen, 2002).
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75
onde a parole é desenhada, ou seja, é onde
“os signos adquirem sentido pela sua diferença com outros signos. Na tradição
Saussuriana, a estrutura da linguagem pode ser vista como uma rede de
pesca na qual cada signo tem o seu lugar como um dos nós da rede. Quando
a rede é esticada, o nó é fixado na sua posição pela distância a que fica de
outros nós, tal como o signo é definido pela sua distância face a outros signos.
A maioria da teoria estruturalista assume que os signos são fechados em
relações particulares uns com os outros: cada signo tem um lugar específico
na rede e o seu sentido é fixo.” (Phillips e Jørgensen, 2002: 11)
E é precisamente nesta conceção da linguagem enquanto estrutura estável
e imutável, característica do estruturalismo, que se dá a “viragem linguística”
protagonizada pelo pós-estruturalismo e que se traduz em duas críticas
essenciais às posições estruturalistas da linguagem. A primeira refere-se a esta
posição fixa que os signos adquiririam na linguagem, e a conceptualização desta
última enquanto estrutura estável e total. Na conceção pós-estruturalista, o
sentido ou significado dos signos pode variar de acordo com o contexto em que
são usados, pelo que as palavras não podem ser fixadas num sentido definitivo.
Isto significa que a própria estrutura da linguagem existe, mas sempre num
estado temporário, o que permite que o pós-estruturalismo dê resposta a uma
das questões insolúveis para os estruturalistas – a mudança: “Com o foco
estruturalista numa estrutura de base fixa é impossível compreender a
mudança. De onde vem a mudança? No pós-estruturalismo a estrutura torna-se
modificável e os sentidos dos signos podem mudar na relação que mantêm com
os outros.” (Phillips e Jørgensen, 2002: 11).
A segunda crítica pós-estruturalista relaciona-se com a distinção entre
langue e parole criada pela teoria do discurso saussuriana. Se, para esta, o
objeto de estudo só poderia ser a langue dado o caráter arbitrário que o uso
situado da linguagem tem (parole), o pós-estruturalismo ultrapassa esta clivagem
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76
na medida em que considera que é no uso concreto da linguagem que a estrutura
é criada, reproduzida e passível de ser modificada. Portanto, na conceção pós-
estruturalista do discurso, é superado o corte entre langue e parole, dado que
aquilo que faz com que os signos mudem, com que a estrutura (langue) mude, é
precisamente o uso situado da linguagem (parole), uma vez que é em atos
específicos do discurso que a estrutura é desenhada, sendo então aí que ela pode
ser reproduzida ou alterada através da introdução de ideias e significados novos.
1.3. Linhas e orientações metodológicas ou o pólo morfológico
Ainda que nem todas as abordagens de análise de discurso subscrevam
explicitamente posições pós-estruturalistas relativamente ao discurso, há
pontos-chave nos quais as diferentes propostas convergem no que diz respeito à
conceção de discurso:
- “ (…) o discurso cria representações do mundo que não são apenas reflexo de
uma realidade pré-existente, mas constrói – ou contribui para construir – a
realidade ao atribuir sentidos ao mundo, de forma a excluir sentidos
alternativos. Neste sentido, os discursos são constitutivos na construção da
realidade, incluindo o conhecimento e as identidades.” (Phillips, 2007: 285);
- uma das qualidades intrínsecas ao discurso é “a sua natureza instável,
efémera e dependente do contexto, baseada na conceção pós-estruturalista do
conhecimento, das identidades e das relações sociais enquanto contingente:
ou seja, enquanto entidades social e historicamente específicas que mudam
no tempo e no espaço.” (Phillips, 2007: 286);
- “(…) os discursos habitam espaços nos quais diferentes discursos são
articulados lado a lado ou competem em lutas para ditar a verdade” (Phillips,
2007: 286). Esta característica opõe-se à “posição Saussuriana, uma visão
estruturalista da linguagem em que esta é uma estrutura estável, imutável e
total. Assim, os discursos são modos particulares de construção do mundo em
termos de sentido, que estão em relações instáveis entre si. A produção
discursiva de sentido pode, então, ser entendida enquanto coprodução, na
qual diferentes discursos são coarticulados pelas pessoas em interações
sociais produtoras de sentido.” (Phillips, 2007: 286).
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
77
Se estas são premissas similares de entre as várias abordagens de análise
de discurso, existem também diferenças importantes que distinguem essas
abordagens. Não sendo o meu objetivo fazer um trabalho sobre a análise do
discurso, apresentando e dissecando cada uma das propostas existentes,
considero, no entanto, útil salientar, ainda que de forma breve e não completa
em termos de extensão de abordagens existentes, algumas das diferenças29. O
facto de terem por base diferentes áreas disciplinares é um dos motivos que leva
a que diferentes abordagens de análise do discurso tenham características
distintivas. Uma diferença importante diz respeito ao desacordo existente quanto
ao âmbito e alcance dos discursos, ou seja, na consideração se os discursos
constituem completamente o social ou se são, eles próprios, também constituídos
por outros aspetos do mundo social. Isto implica a consideração, ou não, de
aspetos extradiscursivos, ou mesmo não-discursivos, do mundo social.
Ernest Laclau e Chantal Mouffe, em 1985, desenvolveram uma abordagem
de análise do discurso na qual os aspetos não-discursivos da realidade social não
são considerados. Isto não significa que não exista nada para além do discurso,
mas que, pelo contrário, o discurso é, em si mesmo, material. Deste modo,
instâncias como a economia, as infraestruturas e as instituições são também
parte do discurso e têm, elas próprias, uma dimensão discursiva que lhes é
constitutiva. Esta posição, ao situar-se num extremo do continuum apresentado
na Figura 1., defende que o discurso é totalmente constitutivo do mundo, sendo,
portanto, diametralmente oposta às conceções mais estruturalistas do discurso.
29 Na verdade, a diversidade de abordagens, conceptualizações, métodos e práticas de Análise de Discurso são imensas. Do mesmo modo, a classificação que delas se faz é também reveladora de uma heterogeneidade que começa, logo, pelos critérios utilizados na construção de referentes de tipologização: o âmbito ou o alcance do discurso, a definição de discurso, os objetos de análise, as correntes teóricas onde se inserem, etc. Maingeneau (1997: 16) chega mesmo a afirmar que “[v]ale dizer que, fazendo variar este ou aquele parâmetro, pode-se construir uma infinidade de objetos de análise. Na realidade, seria melhor questionar o que poderia não ser „discurso‟ ”.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
78
A abordagem de Laclau e Mouffe assenta nas contribuições pós-marxistas e pós-
estruturalistas, com ênfase na crítica ao materialismo histórico. O conceito chave
desta abordagem, o de “luta discursiva” (Laclau e Mouffe, 1985), é concebido
tendo em conta a consideração de uma instabilidade total e fundamental da
linguagem. Nesta perspetiva, diferentes discursos, cada um deles representando
modos particulares de compreender e descrever o mundo social, estão envolvidos
numa luta constante entre si para se tornarem hegemónicos, ou seja, para fixar
sentidos de linguagem de acordo com as suas perspetivas, tornando-se, assim –
ainda que provisoriamente – hegemónicos.
Não é desta forma que os discursos são considerados, neste trabalho. Tal
como Olssen, Codd e O‟Neill (2004), também defendo que a consideração da
relação entre os discursos e os domínios e práticas sociais de onde eles provêm
não é despicienda quando se analisa discursos de política e, especificamente, de
política educativa. Ou seja, na análise discursiva que tem como referência textos
políticos advogo que os discursos não podem ser vistos “simplesmente como
„textos‟, ou como langue e parole, mas sim como o conjunto de fenómenos onde, e
através dos quais, se constrói a produção social de sentido.” (Olssen, Codd e
O‟Neill, 2004: 67). Neste sentido, a perspetiva metodológica do meu trabalho
enquadra-se na Análise Crítica do Discurso (ACD) dado o seu foco na relação
entre o social e o linguístico. Para Wodak e Meyer (2009), as características
distintivas da ACD, relativamente a outras abordagens de análise de discurso,
são: o facto de ser orientada especificamente para um problema (oriented-
problem, no original), ser uma abordagem interdisciplinar no que concerne ao
quadro teórico e/ou à coleta de dados; estar interessada nos usos da linguagem
reais que se tornam naturais (e não em sistemas abstratos de linguagem), e,
portanto, no uso situado da linguagem; o estudo das funções dos contextos de
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
79
uso da linguagem; a extensão da linguística à ação e interação, ou seja, para
além da gramática; e a extensão a aspetos não-verbais da linguagem.
Também Phillips e Jørgensen (2002) salientam características da ACD que
evidenciam a adequabilidade desta aos objetivos e objeto do meu trabalho:
1) a consideração de que as estruturas e processos sociais são
parcialmente discursivos, ou seja, existem aspetos da prática social cuja análise
implica, necessariamente, a convocação de outras ferramentas analíticas, numa
perspetiva transdisciplinar, que pode envolver, por exemplo, lógicas económicas.
Neste trabalho o contributo da abordagem da Economia Política Cultural,
desenvolvida por Bob Jessop (2004) é uma mais valia na análise dos contextos
sociais onde os discursos são produzidos. Para Bob Jessop
“A Economia Política Cultural é uma abordagem pós-disciplinar que adota a
„viragem cultural‟ na investigação económica e política sem negligenciar a
articulação da semiótica com as materialidades inter-relacionadas da
economia e da política, no âmbito de formações sociais mais vastas.” (Bob
Jessop, 2004:1).
Sendo o objeto deste trabalho a construção da relação discursiva entre
educação e desenvolvimento pelos novos movimentos sociais, a “materialidade
económica e política” referida por Jessop, bem como a análise do contexto social
onde os textos são produzidos, não poderia deixar de estar presente. É que tal
como afirma Bourdieu (1998: 151), “[n]ão há ciência no discurso considerado em
si mesmo e para si mesmo; as propriedades formais das obras só deixam
apreender o seu sentido se as reportarmos por um lado, às condições sociais da
sua produção – quer dizer às posições que os seus autores ocupam no campo de
produção – e, por outro lado, ao mercado para que foram produzidas (o qual só
pode ser o próprio campo de produção) e também, em caso de necessidade, aos
mercados sucessivos nos quais foram recebidas”.
2) O discurso é, simultaneamente constitutivo e constituído, isto é, o
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
80
discurso é uma forma de prática social que estabelece uma relação dialética com
outras dimensões sociais. Segundo Wodak e Meyer (2009: 21) “[p]ara a ACD esta
relação não é apenas determinista mas invoca o conceito de mediação30.”. De
facto, ao contrário de Laclau e Mouffe (1985) que, como já referi, consideram que
o discurso é constitutivo do mundo, não considerando dimensões não-
discursivas do mundo social, na ACD o discurso ocupa uma posição intermédia
no contínuum agora representado na Figura 5:
O discurso é constitutivo Relação Dialética O discurso é constituído
Laclau e Mouffe ACD
Figura 5: O papel do discurso na constituição do mundo, na perspetiva de Laclau e Mouffe e da Análise Crítica do Discurso (adaptado de Phillips e Jørgensen, 2002: 20).
A abordagem da ACD permite-me, assim, analisar de que modo o discurso
produzido pelos novos movimentos sociais contribui para moldar e/ou alterar
estruturas sociais mas também como as refletem, ou seja, de que modo os
discursos considerados para análise refletem e/ou moldam e alteram os lugares
de onde eles são produzidos. A atenção a discursos de outros atores políticos,
aqui considerados como tendo uma posição hegemónica, ocupando assim outros
lugares na estrutura social – ou seja, ter em conta diferentes ordens de discurso
existentes no mesmo campo social –, permitirá ponderar a existência de
intertextualidade(s) e de eventuais conflitualidades discursivas, o que poderá ser
um elemento heurístico com um potencial interessante. Não se trata de perceber
ou realçar que afirmações estão certas e/ou erradas sobre a educação, o
desenvolvimento, e as relações que lhes são atribuídas pelos atores: o que
importa é explorar padrões dentro e através dos discursos, identificando as
30 O destaque é dos autores.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
81
consequências sociais de diferentes representações e construções discursivas da
realidade. Não será, certamente, aleatório o modo como a relação entre educação
e desenvolvimento é estabelecida discursivamente: „Educação, Desenvolvimento‟;
„Educação e Desenvolvimento‟; „Desenvolvimento através da Educação‟,
„Educação no Desenvolvimento, „Educação para o Desenvolvimento‟. Tal como
afirma Fairclough (1992),
“a constituição discursiva da sociedade não emana de uma associação livre de
ideias na cabeça das pessoas, mas sim de uma prática social na qual está
firmemente enraizada e orientada para as estruturas sociais materiais reais.
(…) As práticas sociais têm várias orientações – económicas, políticas,
culturais, ideológicas – e o discurso pode estar implicado em todas elas sem
que qualquer uma seja redutível ao discurso.” (: 66).
3) A linguagem deve ser empiricamente analisada no interior do seu
contexto social, dada a assumpção de que todos os discursos são históricos, ou
seja, não podem ser entendidos fora do seu contexto (Wodak e Meyer, 2009). Isto
significa que o trabalho de quem desenvolve análises críticas do discurso é
sempre baseado em análises concretas e linguísticas do uso da linguagem em
interações sociais. O que está em causa na ACD é uma articulação dialética entre
as dimensões sociais e as dimensões linguísticas do discurso, pelo que é
fundamental a distinção entre práticas discursivas e outras práticas sociais.
4) O discurso funciona ideologicamente, isto é, na conceção da ACD as
práticas discursivas têm efeitos ideológicos. Isto significa que o discurso
contribui para a criação e reprodução de relações de poder desigual entre
diferentes grupos sociais. Há aqui uma aproximação às conceções foucaultianas
do discurso, nomeadamente, na conceção de poder, visto como uma força
produtiva – portanto, que produz sujeitos e agentes – em contraste com uma
visão do poder entendido enquanto propriedade dos indivíduos. Neste trabalho,
esta é uma conceção importante, na medida em que o reconhecimento de
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
82
diferentes tipos ideológicos de discurso é uma das características que permite
perceber por que razão a linguagem é importante no domínio político e,
especificamente, no domínio das políticas de educação e de desenvolvimento.
Como afirma Fairclough, “a luta pela linguagem pode manifestar-se como uma
luta entre tipos de discursos ideologicamente diversos.” (1989: 90) e o que está
em causa nessas lutas é qual discurso se torna dominante. Trata-se, portanto, –
e de acordo com a distinção feita por Roland Barthes (referida por Codd, 1988) –
de não „consumir‟ passivamente os textos, encarando-os como “readerly texts”,
mas sim de os tratar como produtos ideologicamente contextualizados,
contribuindo para a sua leitura enquanto “writerly texts”.
5) Por fim, uma última característica distintiva que aproxima as diferentes
abordagens no âmbito da ACD, é o facto de elas serem críticas, ou seja, de se
situarem num modelo de pesquisa crítico. Isto significa, segundo Wodak (2004)
“distanciar-se dos dados, situar os dados no social, adotar uma posição política
de forma explícita, e focalizar a autorreflexão, como compete a estudiosos que
estão fazendo pesquisa.” (: 234). Não obstante a diversidade de noções que o
conceito „crítica‟ pode ter, o que ressalta de comum em bibliografia diversa é este
caráter de implicação e/ou posicionamento que impede a ACD de ser
politicamente neutra, isto é, a „crítica‟ é entendida como a preocupação em
desvendar o papel do discurso na manutenção de relações de poder desiguais. É
esta preocupação que torna a abordagem crítica politicamente comprometida
com a mudança social. Ora, no meu trabalho, este compromisso com a mudança
social, no sentido de perceber o que se mantém nos discursos sobre educação e
desenvolvimento e se, e como, a mudança pode acontecer, é um compromisso
assumido, nomeadamente, quando tenho como hipótese que os discursos dos
novos movimentos sociais se podem constituir como contra-hegemónicos no que
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
83
àquela relação diz respeito, pelo que a designação educação para o
desenvolvimento, usada pelos novos movimentos sociais, pode indiciar uma
redefinição da articulação entre os conceitos.
O caráter crítico da ACD articula-se com dois outros conceitos centrais
desta abordagem: a ideologia e o poder. Não obstante, tal como chamam a
atenção Wodak e Meyer (2009), os conceitos de ideologia e de poder não serem
consensuais entre as diferentes abordagens de ACD31, pode-se genericamente
considerar que a abordagem crítica em ACD pretende revelar estruturas de poder
e desmascarar ideologias dominantes, entendidas enquanto “o tipo de crenças
comuns escondidas e latentes, que, muitas vezes, aparecem disfarçadas de
metáforas conceptuais e analogias” (Wodak e Meyer, 2009: 8). Relativamente ao
poder, a sua centralidade em ACD reside no facto de, “a maior parte das vezes se
analisar a linguagem daqueles que estão no poder. Tipicamente, os
pesquisadores de ACD interessam-se pelo modo como o discurso (re)produz a
dominação social, ou seja, o abuso de poder de um grupo sobre outro
(…)”(Wodak e Meyer, 2009: 9). Assim sendo, qual a pertinência da ACD para
quem, como eu, está interessada em estudar discursos que se preveem contra-
hegemónicos? Através desta abordagem poderei perceber se, e como é que, os
novos movimentos sociais resistem discursivamente a discursos dominantes e
produzidos por quem tem poder, e de que modo estes diferentes discursos
coexistem.
31 Os autores chegam mesmo a afirmar que “é importante sublinhar que a ACD nunca foi, nem nunca tentou ser ou providenciar, uma única e específica teoria. Do mesmo modo, nenhuma metodologia específica é característica de ACD. Pelo contrário, os estudos em ACD são múltiplos, derivados de quadros teóricos bastante diferentes e orientados para diferentes métodos e dados. (…) As definições dos termos „discurso‟, „crítica‟, „ideologia‟, poder‟ e outros são também múltiplos. Assim, qualquer crítica à ACD deve sempre especificar a que pesquisa ou pesquisador se refere.” (Wodak e Meyer, 2009: 5). Neste trabalho dos autores agora referidos é feita, precisamente, uma
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
84
Tal como desenvolverei de seguida, o modelo de ACD que adotei neste
trabalho ancora-se na abordagem dialética-relacional desenvolvida por Norman
Fairclough (2009). Para já, importa referir que, no que às questões de crítica,
poder e ideologia diz respeito, genericamente, Fairclough (2009) considera que a
ACD é crítica no sentido em que
“[a] ciência social crítica tem por objetivo contribuir para chamar a atenção
para os „males‟ sociais32 (em sentido lato – injustiça, desigualdade, falta de
liberdade, etc.) através da análise às suas fontes e causas, às resistências e às
possibilidades de os superar. Podemos dizer que tem, simultaneamente, um
caráter „negativo‟ e „positivo‟. Por um lado, analisa e procura explicar
dialecticamente relações entre a semiótica e outros elementos sociais para
clarificar como é que a semiótica opera no estabelecimento, reprodução e
mudança de relações de poder desiguais (dominação, marginalização,
exclusão de algumas pessoas por outras) e em processos ideológicos, e como,
em termos mais gerais, tem efeitos no „bem-estar‟ humano. Estas relações
requerem análise porque não existem sociedades cuja lógica e dinâmica,
incluindo o modo como a semiótica opera nelas, sejam totalmente
transparentes: as formas segundo as quais aparecem às pessoas são, muitas
vezes, parciais e, em parte, enganadoras. Por outro lado, a crítica é orientada
para analisar e explicar, com foco nestas relações dialéticas, as diversas
formas em que a lógica e dinâmica dominantes são testadas, desafiadas e
corrompidas pelas pessoas, bem como identificar possibilidades que estas
sugerem para superar obstáculos que permitam enfrentar os „males‟ e
melhorar o bem-estar.” (Fairclough, 2009: 163).
interessantíssima análise de diferentes abordagens de ACD tendo em conta as suas semelhanças e, também, as suas diferenças. 32 Social „wrongs‟, no original. Numa conferência proferida em 2008, a que tive oportunidade de assistir, Fairclough explicou que usa o termo „social wrong‟ em detrimento de „social problem‟ uma vez que esta última expressão levaria a procurar identificar „soluções‟ para o „problema‟ referido. No entanto, na sua perspetiva, nem todos os problemas têm solução porque, muitas vezes, o que é identificado como um suposto „problema‟ é funcional à ordem social existente, pelo que, a sua „resolução‟ não é possível sem a alteração dessa mesma ordem. Fairclough (2009:186), em nota de fim de artigo, refere: “(…) penso que construir os males como „problemas‟ que precisam de „soluções‟ – que, em princípio podem ser providenciadas ainda que não estejam ainda em prática – é parte do discurso autojustificativo (e, poderíamos dizer, ideológico) dos sistemas sociais contemporâneos em países como Inglaterra. A objeção a isto é que alguns males são produzidos pelos sistemas e não são resolúveis no seu interior.”.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
85
1.4. Técnicas de análise específica ou o pólo técnico
Um dos precursores da ACD foi Norman Fairclough, cuja obra Language
and power, publicada em 1989, faz uma das primeiras abordagens à ACD33,
focando a linguagem e o discurso enquanto instrumentos de poder, com a
intenção de
“corrigir uma subestimação generalizada do significado da linguagem na
produção, manutenção e mudança das relações sociais de poder [e] ajudar a
aumentar a consciência de como a linguagem contribui para o domínio de
umas pessoas sobre outras, porque a consciência é o primeiro passo em
direção à emancipação.” (Fairclough, 1989: 1).
Nesta obra, Fairclough (1989) especifica que o sentido que atribui à
linguagem é o de “linguagem como modo de prática social”, o que, segundo o
mesmo, implica considerar a linguagem parte da sociedade e não algo exterior a
ela; que a linguagem é um processo social; e que a linguagem é um processo
socialmente condicionado, nomeadamente, por outras partes não-linguísticas da
sociedade (Fairclough, 1989). Isto não significa que a relação entre linguagem e
sociedade seja uma relação simétrica, ou seja, que sejam duas faces equivalentes
de um mesmo processo. Fairclough (1992) considera a linguagem como uma das
vertentes do todo que constitui o social, isto é, o social é constituído por
elementos linguísticos e não-linguísticos. É esta relação entre linguagem e
sociedade como sendo não simétrica que molda a conceção analítica de discurso
de Fairclough a partir da distinção entre texto e discurso:
“Um texto é um produto mais do que um processo – um produto do processo
de produção de texto. Mas usarei o termo discurso34 para referir o processo
global de interação social do qual o texto é apenas uma parte. Este processo
33 Apoio-me em Wodak e Meyer (2009) que fazem uma análise do desenvolvimento da ACD e a sua história referindo três obras como sendo pioneiras: Language and Power (Fairclough, 1989), Language, Power and Ideology (Wodak, 1989) e Prejudice in Discourse (van Dijk, 1984). 34 O destaque é do autor.
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
86
inclui, em adição ao texto, o processo de produção35 do qual o texto é um
produto, e o processo de interpretação36, para o qual o texto é um recurso. A
análise do texto é, correspondentemente, apenas uma parte da análise de
discurso, que inclui também análise dos processos de produção e de
interpretação.” (Fairclough, 1989: 24).
Deste modo, a conceptualização da linguagem enquanto discurso,
pressupõe não só analisar textos e processos de produção e de interpretação mas
também analisar as relações entre estes e suas condições sociais de existência,
seja esta considerada em termos de condições imediatas do contexto ou das
estruturas sociais e/ou institucionais mais remotas. Neste sentido Fairclough
(1989) propõe o seguinte dispositivo de análise:
Figura 6 – Discurso como texto, interação e contexto, segundo Norman Fairclough (1989).
A operacionalização deste dispositivo implica, segundo Fairclough (1989)
três dimensões de análise crítica do discurso: i) descrição – dimensão relacionada
com as propriedades formais do texto, sendo que análise, nesta dimensão,
significa identificar características formais do texto em termos de categorias num
35 O destaque é do autor. 36 O destaque é do autor.
Condições Sociais de Produção
Condições Sociais de Interpretação
Contexto
Processo de produção
Processo de interpretação
Interação
Texto
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87
quadro descritivo; ii) interpretação – considera a relação entre texto e interação,
ou seja, considera, simultaneamente, o texto enquanto produto do processo de
produção e recurso no processo de interpretação, em que a análise se centra nos
processos cognitivos dos participantes; iii) explanação – relativa à relação entre
interação e contexto social, isto é, relativa à determinação social dos processos
de produção e interpretação, bem como os seus efeitos sociais. Aqui a análise
centra-se nas relações entre eventos sociais transitórios e as estruturas sociais
mais duráveis que moldam os, e são moldadas pelos, eventos.
Nos seus trabalhos posteriores, Norman Fairclough foi desenvolvendo a
sua análise em torno da relação entre a linguagem e os processos sociais,
abandonando o uso do termo linguagem substituindo-o por discurso. Com a
publicação, em 1992, de Discourse and Social Change, Fairclough complexifica a
sua abordagem de ACD, situando-a numa perspetiva de mudança social. Para
tal, Fairclough (1992) clarifica o sentido que atribui ao discurso bem como as
dimensões que privilegia de modo a redesenhar o seu dispositivo analítico do
discurso. Assim, Fairclough (1992) usa o termo „discurso‟ para se referir à
„parole‟, ou uso da linguagem, o que significa que, para si, e de acordo com
abordagens mais pós-estruturalistas da linguagem, o uso situado da linguagem
pode e deve ser estudado, na medida em que é através dele que é possível
perceber a mudança e o papel do discurso na mudança social. Fairclough (1992:
63-64) esclarece que
“ao usar o termo „discurso‟ proponho olhar para o uso da linguagem como
uma forma de prática social em vez de uma atividade puramente individual ou
reflexo de variáveis situacionais. Isto tem várias implicações. Primeiro, implica
considerar o discurso um modo de ação, uma forma segundo a qual as
pessoas podem agir sobre o mundo e, especialmente, sobre o outro, assim
como um modo de representação. (…) Segundo, implica considerar que existe
uma relação dialética entre discurso e estrutura social, sendo essa relação,
genericamente, entre prática social e estrutura social: a primeira é,
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
88
simultaneamente, condição para e efeito da segunda. Por um lado, o discurso
é moldado e constrangido pelas estruturas sociais no sentido mais lato a
todos os níveis (…) por outro lado, é socialmente constitutivo.”.
Esta perspetiva do discurso que Fairclough defende já tinha aqui sido
anunciada, no entanto, é a sua dimensão dialética que quero aqui realçar, na
medida em que o dispositivo analítico de Fairclough tem que ser compreendido
em função dessa dimensão. Só assim é possível escapar à armadilha de
sobrevalorizar a determinação social do discurso ou a construção social através
do discurso. Tendo esta dimensão em consideração, Fairclough (1992) defende
que a análise de discurso pressupõe a articulação entre três níveis de análise que
denominou como conceção tridimensional do discurso, elaborada a partir do
dispositivo de análise anterior (ver Figura 6.).
Figura 7. – Conceção tridimensional do discurso de Norman Fairclough (1992).
Para Fairclough (1992: 72), esta conceção tridimensional do discurso é
“uma tentativa de reunir três tradições analíticas, cada uma delas
indispensável para a análise do discurso. Elas são a análise textual e
linguística detalhada da tradição linguística, a tradição macrosociológica de
análise da prática social em relação às estruturas sociais e a tradição
Prática Social
Prática Discursiva
(produção, distribuição, consumo)
Texto
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
89
microsociológica interpretativa que vê a prática social como algo que as
pessoas produzem ativamente e a que atribuem sentido com base em
procedimentos de senso-comum partilhados.”
Assim, Fairclough (1992) sofisticou o dispositivo analítico proposto em
1989, detalhando cada um dos níveis de análise propostos, de modo a, também
assim, promover a articulação analítica de cada uma das três dimensões e a
articulação entre processos de análise macro – de cariz sociológico – e micro – de
cariz mais linguístico. No quadro seguinte apresento as categorias analíticas
propostas por Fairclough (1992) para cada um dos três níveis e dimensões
referidas:
Análise das Práticas Sociais
Matriz social do discurso Hegemonia (orientações económicas, políticas, culturais, ideológicas)
Ordens do discurso
Efeitos ideológicos e políticos
Sentidos
Pressuposições
Metáforas
Análise da Prática
Discursiva
Produção do texto Interdiscursividade
Intertextualidade manifesta
Distribuição do texto Cadeias intertextuais
Consumo do Texto Coerência
Condições da prática
Análise dos
Textos
Controlo Interaccional
Estrutura
Coesão
Polidez
Ethos
Gramática
Transitividade
Tema
Modalidade
Vocabulário
Significado
Criação
Metáfora
Quadro 1. Categorias analíticas no modelo tridimensional de Fairclough (1992).
Este é ainda o modelo mais referido do trabalho de Fairclough, pese
embora em 1999, o autor ter desenvolvido, com Lilie Chouliaraki, uma nova
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
90
abordagem da ACD. De facto, os autores afirmam que
“[e]xistiram várias versões prévias desta forma de ACD (por exemplo,
Fairclough 1989, 1992a, 1995b). Oferecer uma nova versão do quadro
analítico neste momento está de acordo com a visão expressa [aqui nesta
obra] de que a ACD enquanto método deve ser vista como estando
constantemente em evolução à medida que se estende a sua aplicação a novas
áreas da vida social e, correspondentemente, desenvolve a sua teorização do
discurso.” (Chouliaraki e Fairclough, 1999: 59).
A nova “teorização do discurso” a que os autores se referem prende-se com
o relevo que os autores atribuem à ACD na pesquisa crítica sobre a mudança
social nas sociedades contemporâneas, ou seja, na modernidade tardia (Giddens,
1996). As três dimensões conceptualizadas por Fairclough (1992) não são
ignoradas mas é assumido, de forma mais clara, um deslocamento do linguístico
para o social, na medida em que a prática social assume uma centralidade
relativamente ao texto. Este movimento do texto para a prática social visa,
sobretudo, ultrapassar a dificuldade analítica, no modelo anterior, de
operacionalizar a dialética entre as três dimensões consideradas. Chouliaraki e
Fairclough (1999) explicam que é compreensível a tendência para o foco na
linguagem, ou seja, para o „desvio linguístico‟, mas que tal é problemático num
modelo analítico que se pretende dialético. Por outro lado, as características das
sociedades contemporâneas, com todas as alterações políticas que lhes são
reconhecidas, revelam também, na opinião dos autores, a necessidade de
enfatizar o discurso como um momento das práticas sociais, enfatizando, assim,
o papel destas na ACD, na medida em que as práticas sociais são alteradas
também discursivamente:
“Há uma insistente necessidade de teorização crítica e análise da modernidade
tardia que não pode apenas iluminar o novo mundo que está a emergir mas
também mostrar que direções alternativas não realizadas existem – como os
aspetos deste novo mundo que elevam a vida humana podem ser acentuados,
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
91
como aspetos que lhe são prejudiciais podem ser mudados ou mitigados.
Então, a motivação básica de uma ciência social crítica é contribuir para a
consciencialização do que é, de como se tornou, e do que pode vir a ser, com
base na ideia de que as pessoas podem ser capazes de fazer e refazer a sua
vida (Calhoun, 1995). E isto é também uma motivação para a ACD.”
(Chouliaraki e Fairclough, 1999: 4).
Assume-se então, de modo claro, que o discurso é um modo ação social,
que apesar de constrangido pelas estruturas sociais é, simultaneamente, um
processo ativo de produção que pode transformar essas mesmas estruturas.
Deste modo, neste novo modelo, enfatiza-se o papel do discurso na mudança
social ao enquadrar a ACD como um modo de pesquisa social crítica.
Uma outra preocupação é expressa por Fairclough, em 2003, na obra
Analysing Discourse – textual analysis for social research. Aqui o autor preocupa-
se, sobretudo, com um detalhe relativo à análise linguística de textos na medida
em que considera que muitos cientistas sociais descuram esta componente
discursiva em termos de análise. Fairclough (2003), volta a insistir na ideia de
que a sua abordagem tenta ultrapassar a divisão estabelecida entre aqueles cujo
trabalho é inspirado na teoria social e que tendem a não analisar textos, e
aqueles cujo foco principal é na linguagem usada nos textos negligenciando
aspetos de teoria social:
“isto não é, ou não deveria ser um „ou‟. Por um lado, qualquer análise de
textos que pretenda ser significativa em termos de ciência social, tem que se
relacionar com questões teóricas sobre o discurso (por exemplo, os efeitos
socialmente „constitutivos‟ do discurso). Por outro lado, não é possível uma
real compreensão dos efeitos sociais do discurso sem olhar de perto para o
que acontece quando as pessoas falam ou escrevem.” (Fairclough, 2003: 3).
A questão que se coloca é como construir uma abordagem de análise da
linguagem em textos. Fairclough (2003) propõe uma abordagem subsidiária da
Linguística Sistémica Funcional (cf. Fairclough, 2003: 5) enfatizando aspetos
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
92
gramaticais e semânticos. No entanto, chama a atenção para o facto de esta ser
uma abordagem possível de entre outras: segundo Fairclough (2003), é
importante, sobretudo, ter em atenção o projeto mais global que caracteriza a
ACD, e adequar a análise que é feita aos textos a esse quadro mais global,
nomeadamente através da construção de categorias de análise de textos que
permitam dar conta dos efeitos sociais do discurso. Como o próprio Fairclough
refere “este livro centrou-se apenas numa pequena parte daquilo que eu vejo
como um projeto maior – a ACD como um modo de pesquisa social crítica”
(Fairclough, 2003: 202). Nesse sentido, Fairclough (2003) esquematiza a
abordagem da ACD que defende sofisticando-a um pouco mais em 2009.
Esta nova aceção metodológica da ACD (Chouliaraki e Fairclough, 1999;
Fairclough, 2003; Fairclough, 2009), pelas características já enunciadas, e
também pela possibilidade de ultrapassar o que Stephen Ball (2006) refere como
sendo a dicotomia simplista entre estrutura e agência, é a mais produtiva na
minha análise, face ao objeto e objetivo construídos. Apoiando-se em Bourdieu,
Ball (2006) defende que estrutura e agência não são dois pólos distintos
colocados num contínuum mas sim que são implícitos um no outro, ou seja,
“vivemos e pensamos as estruturas mais do que simplesmente somos oprimidos
e limitados por elas.” (Ball, 2006: 44). É exatamente neste quadro, e nas
características da modernidade tardia (Giddens, 1996) que os novos movimentos
sociais podem ser compreendidos e os seus discursos analisados.
O dispositivo analítico do meu trabalho ancora-se na “abordagem
dialética-relacional” apresentada por Fairclough (2009), e que é a sua mais
recente proposta. Antes de o expor, apresentarei os pressupostos base da
“abordagem dialética-relacional”:
- Semiótica: Fairclough (2009) usa este termo para se referir ao discurso
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
93
como produção de sentido enquanto elemento do processo social, o que tem a
“vantagem de sugerir que a análise de discurso é relativa a várias „modalidades
semióticas‟, sendo a linguagem apenas uma de entre elas (outras são as imagens
visuais e a „linguagem corporal‟)” (Fairclough, 2009: 163). Deste modo, o termo
„discurso‟ passa a ser usado para se referir, especificamente, tanto à linguagem
que está associada a um campo ou prática social específica (como o discurso
político, ou o discurso médico, por exemplo), como a um modo de construir
aspetos do mundo associados a uma perspetiva social específica (por exemplo, o
discurso neo-liberal, o discurso managerialista, o discurso assistencialista, etc).
- Dialética: a ACD não se foca apenas nas dimensão semiótica em si
mesma considerada, mas sim nas relações entre a semiótica e outros elementos
sociais. É esta assumpção que caracteriza esta abordagem enquanto dialética-
relacional: as relações entre elementos dos processos sociais (entre os quais, a
semiótica) são dialéticas no sentido em que estes últimos, não sendo redutíveis
entre si, também não são completamente independentes, ou seja, “[p]odemos
dizer que cada um „internaliza‟ os outros sem ser redutível a eles (Harvey, 1996) –
por exemplo, relações sociais, poder, instituições crenças e valores culturais são
em parte semióticos; „internalizam‟ a semiótica sem lhe serem redutíveis.”
(Fairclough, 2009: 163).
- Transdisciplinaridade: a “abordagem dialética-relacional” de ACD é uma
forma particular de pesquisa interdisciplinar, no sentido em que, ao relacionar
disciplinas e teorias na abordagem a assuntos de pesquisa, conceptualiza o
diálogo entre elas enquanto fonte de desenvolvimento teórico e metodológico de
cada uma (Fairclough, 2009).
- Crítica: tal como referi anteriormente (v. página 58-59), o caráter crítico
da “abordagem dialética-relacional”, ao ancorar-se na assumpção de que a
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
94
pesquisa social deve contribuir para enfrentar injustiças sociais, reside na
análise das causas dessas mesmas injustiças e também na análise das
resistências e modos de as ultrapassar (Fairclough, 2009).
- Processo social: neste modelo de ACD o processo social é visto como uma
interação entre três níveis da realidade – estruturas sociais, práticas sociais e
eventos (Fairclough, 2009). As práticas sociais medeiam a relação entre as
estruturas sociais mais gerais e abstratas e os eventos sociais concretos e
particulares.
Sendo estes os pressupostos base da “abordagem dialética-relacional” (cf.
Fairclough, 2009), posso inferir que esta se constitui num modo de análise que
visa, de um ponto de vista crítico e transdisciplinar, compreender as relações
dialéticas que se estabelecem entre diferentes níveis do processo social –
estruturas, práticas e eventos –, com ênfase nos seus aspetos semióticos.
Segundo Fairclough (2009), a “abordagem dialética-relacional” foca-se
essencialmente em duas relações dialéticas:
“entre estrutura (especialmente práticas sociais enquanto nível intermédio de
estruturação) e eventos (ou estrutura e ação, estrutura e estratégia), e, dentro
de cada uma, entre elementos semióticos e outros elementos. Há três modos
principais através dos quais a semiótica se relaciona com outros elementos de
práticas sociais e de eventos sociais – enquanto uma faceta da ação; na
construção (representação) de aspetos do mundo; e na constituição de
identidades.” (Fairclough, 2009: 164).
Ainda segundo o autor, é possível identificar três categorias semióticas que
correspondem aos três modos acima enunciado. Assim, a ação pode ser
analisada através do género, que consiste nos modos semióticos de agir e de
interagir com outros através da fala, escrita ou meios visuais; a construção
(representação) pode ser analisada através do discurso, ou seja, das formas
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
95
semióticas de construir aspetos do mundo (e que podem ser identificados com
posições/perspetivas de diferentes grupos e/ou atores sociais); e a constituição
de identidades através dos estilos, isto é, “ os „modos de ser‟, no seu aspeto
semiótico.” (Fairclough, 2009: 164), modos de identificação, construção ou
enunciação de identidades sociais ou institucionais37. O autor esclarece ainda
que os aspetos semióticos dos eventos são os textos e os aspetos semióticos das
redes de práticas sociais que constituem o campo social são as ordens de
discurso. Uma ordem de discurso consiste numa ordem particular de relações
entre diferentes modos de construção de significado, ou seja, configurações
particulares de diferentes géneros, diferentes discursos e diferentes estilos.
(Fairclough, 1992, 2009).
A abordagem dialética-relacional desenvolvida por Fairclough (2009) pode
ser sintetizada de acordo com o quadro 2., apresentado na página seguinte:
37 O autor apresenta os seguintes exemplos para cada uma das três categorias semióticas: género – notícias, entrevista para um emprego, relatórios, anúncios na televisão ou na internet, etc; discurso – discursos sobre a pobreza são diferentes conforme são construídos no interior de uma prática social específica (política, cientistas sociais, etc.) mas também, em cada um destes consoante diferentes posições ou perspetivas (por exemplo, discurso político assistencialista, de dependência, de autonomia, etc); estilos – formal, informal, público, etc.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
96
Etapa 1
Foco no aspeto
semiótico de um mal social
Passo 1
Selecionar um tópico de pesquisa que relacione com, ou que aponte para, um mal social e que possa ser abordado produtivamente de forma transdisciplinar, com um foco particular nas relações dialéticas entre discurso e outros momentos de prática social.
Passo 2 A partir dos tópicos de pesquisa inicialmente identificados construir objetos de estudo através da sua teorização de modo transdisciplinar.
Etapa 2
Identificar obstáculos para lidar com o mal
social
Passo 1 Analisar relações dialéticas entre discurso e outros elementos sociais: entre ordens de discurso e outros elementos de práticas socais, entre textos e outros elementos ou eventos.
Passo 2 Selecionar textos, bem como focos e categorias para a sua análise, à luz de, e apropriados à, constituição do objeto de pesquisa.
Passo 3 Desenvolver análises de textos, tanto análise interdiscursiva como análise linguística/semiótica.
Etapa 3 Considerar se a ordem
social „necessita‟
do mal social
Considerar se o mal social em foco é inerente à ordem social, se pode ser ultrapassado dentro dessa mesma ordem social ou se tal apenas é possível alterando-a. É um modo de ligar o „ser‟ com o „deveria ser‟: se a ordem social pode ser mostrada como dando inerentemente origem a grandes injustiças sociais, isso é uma razão para pensar que talvez tenha que ser mudada. Esta etapa relaciona-se também com questões de ideologia: o discurso é ideológico na medida em que contribui para sustentar relações de poder e de dominação específicas.
Etapa 4
Identificar formas
possíveis de ultrapassar
os obstáculos
Mudança da análise de uma crítica negativa para uma crítica positiva: identificar, com foco nas relações dialéticas entre semiótica e outros elementos, possibilidades, nos processos sociais existentes, para ultrapassar obstáculos no sentido de lidar com o mal social em questão. Isto inclui desenvolver um „ponto de entrada‟ semiótico na pesquisa sobre as formas através das quais estes obstáculos são atualmente desafiados e objeto de resistência e contestação, seja no âmbito de movimentos ou grupos organizados social ou politicamente, seja mais informalmente por pessoas no curso das suas vidas profissionais, sociais ou domésticas.
Quadro 2. Modelo da abordagem dialética-relacional (a partir de Fairclough, 2009).
É de salientar que este quadro se constitui numa sintetização da
abordagem dialética-relacional e que, apesar de identificar os passos
metodológicos centrais, não pretende constituir-se numa mecanização do
modelo. De acordo com Fairclough (2009: 167), “estas são partes essenciais da
metodologia (uma questão de „ordem teórica‟), e apesar de fazer algum sentido
prosseguir de um [passo e etapa] para o seguinte (uma questão de „ordem
processual‟), a relação entre eles ao fazer a pesquisa não é de uma ordem
sequencial simples.”
De seguida, tendo por base esta abordagem dialética-relacional,
apresentarei o „design‟ – ou seja a articulação do desígnio e do desenho – do meu
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
97
trabalho de investigação.
2. ‘Design’ metodológico
Tal como refere Fairclough (2003), nos trabalhos em que a ACD é
assumida como referência teórica-metodológica, o fundamental é que a análise
elaborada adeque a intenção central da ACD (“pesquisa social crítica”) aos
propósitos da pesquisa realizada. É nesse sentido que o trabalho empírico em
ACD se consubstancia num trabalho de „design‟: o desenho de um modelo ou
dispositivo analítico deve estar intrinsecamente articulado com o desígnio da
ACD e da pesquisa concreta a realizar, dado ser na confluência do desenho e do
desígnio que é possível conceber e configurar um modelo de análise.
Importa, então, referir que este trabalho se assume como um modo de
“estender a aplicação [da ACD] a novas áreas da vida social” (Chouliaraki e
Fairclough, 1999: 59), porque tal acarreta implicações para o „design‟
metodológico. Refiro-me à questão do desvio existente entre o que Wodak e Meyer
(2009) dizem ser, genericamente, o cerne das preocupações de quem trabalha em
ACD, ou seja, a centralidade atribuída aos discursos de poder. Apesar de ter já
referido e sustentado esta questão (cf. página 71) convoco-a para aqui
exatamente por ser um exemplo da necessidade de um „design‟ metodológico
quando se trabalha em ACD. Se se atentar no Quadro 2. facilmente se constata
que a existência da Etapa 4 (Identificar formas possíveis de ultrapassar os
obstáculos) não é adequada a este trabalho. Na verdade, essa etapa constitui
aqui um „pano de fundo‟, na medida em que assumo como hipótese de trabalho
que o discurso do Comércio Justo – enquanto novo movimento social – se
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
98
constitui enquanto discurso contra-hegemónico. Neste sentido, a análise aqui
produzida não recai sobre um discurso de poder e de dominação, mas, pelo
contrário, sobre um discurso que se apresenta como passível de contestar e,
assim, alterar – tendo em conta o papel do discurso na constituição do mundo
social – a estrutura social e os modos de conceber o mundo. Fairclough descreve
a Etapa 4 como sendo o momento em que se
“desloca a análise de uma crítica negativa para uma crítica positiva:
identificar, com foco nas relações dialéticas entre semiótica e outros
elementos, possibilidades, no interior dos processos sociais existentes, de
ultrapassar obstáculos no sentido de lidar com o mal social em questão. Isto
inclui desenvolver um „ponto de entrada‟ semiótico na pesquisa sobre as
formas através das quais estes obstáculos são atualmente desafiados e objeto
de resistência e contestação, seja no âmbito de movimentos ou grupos
organizados social ou politicamente, seja mais informalmente por pessoas no
curso das suas vidas profissionais, sociais ou domésticas. Um foco
especificamente semiótico incluiria modos através dos quais se reage ao
discurso dominante, como é que este é contestado, criticado e contraditado
(na sua argumentação, na sua constituição do mundo, na constituição de
identidades sociais, etc.).” (2009: 171).
Ora, neste trabalho, não cabe esta ideia de deslocamento de crítica
negativa para uma crítica positiva em que esta está associada a discursos de
resistência ou de construção de alternativas. Na verdade, o discurso aqui em
análise é um discurso que se assume como sendo contra-hegemónico e, o que
importa perceber é se, e como, se constrói essa contra-hegemonia. Nesse sentido,
e ainda que apoiando-me na abordagem dialética-relacional de Fairclough (2009),
são inevitáveis alterações a essa mesma abordagem, conforme é possível perceber
no Quadro 3.:
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
99
Etapa 1
Focar um aspeto
semiótico de uma prática
contra-hegemónica
Passo 1
Selecionar um tópico de pesquisa que se relacione com uma prática social assumida como contra-hegemónica e que possa ser abordado produtivamente de forma transdisciplinar, com um foco particular nas relações dialéticas entre discurso e outros momentos de prática social.
Passo 2 Construir um objeto de estudo através da sua teorização de modo transdisciplinar, considerando o tópico de pesquisa inicialmente identificado.
Etapa 2
Identificar modos de resistência
e/ou
contestação
Passo 1 Analisar relações dialéticas entre discurso e outros elementos sociais: entre ordens de discurso e outros elementos de práticas sociais, entre textos e outros elementos ou eventos.
Passo 2 Selecionar textos, bem como focos e categorias para a sua análise, à luz de, e apropriados à, constituição do objeto de pesquisa.
Passo 3 Desenvolver análise de textos, tanto análise interdiscursiva como análise linguística/semiótica, que permita dar conta da argumentação produzida pelo discurso.
Etapa 3
Evidenciar características
contra-hegemónicas dos discursos
analisados
Considerar em que medida o discurso analisado se constitui como contra-hegemónico e de que modo constrói visões alternativas da ordem social existente, tendo em conta, quer o tópico de pesquisa, quer o objeto construído. Ponderar as relações que se estabelecem entre o discurso analisado e discursos hegemónicos e dar conta da(s) contingência(s) que o tornam contra-hegemónico relacionando-o com questões de ideologia e de poder.
Quadro 3. Modelo de Análise Crítica do Discurso neste trabalho (a partir da abordagem
dialética-relacional desenvolvido por Fairclough, 2009).
A análise desenvolvida implicou, naturalmente, a operacionalização do
modelo construído. Assim sendo, apresento, de seguida, essa mesma
operacionalização em cada Passo e correspondente Etapa.
2.1. Focar um aspeto semiótico de uma prática contra-hegemónica
Este é um assunto que foi já apresentado e justificado na Introdução deste
trabalho (cf. 2.1. Objeto de estudo e 2.2. Problemática de investigação). No
entanto, e no sentido de dar unidade a este momento , volto ao que aí foi
referido, mas apresentado sob a forma proposta por Fairclough (2009).
Passo 1: o “tópico de pesquisa”, para usar as palavras de Fairclough
(2009), deste trabalho consubstancia-se na expressão educação para o
desenvolvimento, partilhada por diferentes ONG‟s que corporizam novos
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
100
movimentos sociais. Tal como já referido, esta foi uma “realidade que se tornou
notada” (Bourdieu, 2001) e que conjugou uma pertinência pessoal, social e
científica pois, como afirma Fairclough (2009: 168),
“[u]m tópico pode atrair o nosso interesse por ser proeminente na literatura
académica relevante, ou por ser um foco de atenção no domínio ou campo em
questão (…). Os tópicos são muitas vezes „dados‟, e muitas vezes selecionam-
se virtualmente a si próprios – quem duvida, por exemplo, que a „imigração‟,
„terrorismo‟, „globalização‟ ou „segurança‟ são tópicos contemporâneos
importantes, com implicações significativas para o bem-estar humano, e a que
os investigadores devem atentar?”.
Passo 2: a perspetiva que Fairclough (2009) enuncia neste passo não se
distancia do que Bourdieu (2001) afirma relativamente à construção do objeto de
estudo. O que está aqui em causa é, sobretudo, a necessidade de construir um
objeto a partir da sua interrogação sistemática, ou seja, colocando-o em
interação com perspetivas teóricas que permitam concebê-lo numa dada ordem
epistemológica e teórica, para que assim possa ser analisado. Neste trabalho (e
como também já foi afirmado na Introdução – 2.1. Objeto de estudo e 2.2.
Problemática de investigação), o objeto constitui-se nas relações discursivas
estabelecidas entre educação e desenvolvimento pelo movimento Comércio Justo.
2.2. Identificar modos de resistência e/ou contestação
Passo 1: Este é o primeiro momento de análise do trabalho, onde pretendo
dar conta das relações dialéticas entre discurso e outros elementos do processo
social (instâncias como a economia, as infraestruturas e as instituições). Aqui
será enfatizada, então, a dimensão dialética do processo social (característica
desta abordagem de ACD) ao colocar em evidência a interação entre estruturas e
eventos sociais, o mesmo é dizer, tendo em consideração a sua dimensão
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
101
semiótica, entre ordens de discurso e textos. Para tal, abordarei a politicidade do
discurso, isto é, as características de produção do discurso que permitem
caracterizá-lo enquanto discurso político dada a estrutura social existente. Após
a identificação da politicidade do discurso face à estrutura social, poderei
abordar os efeitos ideológicos que os discursos produzem, nomeadamente, em
termos de orientações económicas e políticas que eles exploram e/ou constroem.
Estes efeitos ideológicos, diretamente relacionados com a estrutura social, na
medida em que contribuem para a sua construção, manutenção e/ou alteração,
permitirão, em termos de discussão, identificar e caracterizar os discursos em
análise como hegemónicos ou contra-hegemónicos.
Passo 2: tendo em conta as ordens de discurso identificadas e
reconhecendo, desde já, a existência de ordens de discurso hegemónicas e
contra-hegemónicas, a seleção de textos foi feita considerando esta dualidade.
Assim, selecionei textos que, à partida, podem caracterizar estas duas ordens de
discurso dado o lugar político e social de onde são produzidos. Tal como afirmei,
tenho como hipótese de trabalho que o discurso do Comércio Justo, dado
constituir-se num novo movimento social, se constitua enquanto discurso
alternativo ou contra-hegemónico. Neste sentido, importa ter em conta, também,
discursos hegemónicos, dado que procuro, entre outras coisas, perceber se, e
como, o discurso do Comércio Justo é contra-hegemónico. Assim, a consideração
dos discursos hegemónicos têm, na pesquisa, o papel de contrastar o discurso
contra-hegemónico, no sentido de dar relevo à construção de modos de
resistência e alternativa. No quadro seguinte os textos selecionados aparecem
identificados segundo a sua possível inclusão nas ordens de discurso referidas:
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
102
Ordem de discurso hegemónico Ordem de discurso contra-hegemónico
United Nations Millenium Declaration (ONU);
Estratégia 2020 para a Educação – Aprendizagem para Todos: investir nos conhecimentos e competências das pessoas para promover o desenvolvimento (BM)
Consenso Europeu sobre o
Desenvolvimento (UE);
Comunicação relativa à Educação e à Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento (CE).
Documentário televisivo “Toda a verdade sobre o Comércio Justo”;
Entrevista de Frans van der Hoff à CBC Radio Canada;
Conteúdos on-line da organização de
Comércio Justo “World Fair Trade Organization”
Quadro 4. Documentos em análise segundo ordens de discurso previamente identificadas.
Os textos para análise foram escolhidos em função de critérios de
pertinência e não de quantidade. Na verdade, o que é importante na seleção de
dados em análise de discurso não é a questão de quantos dados se reúnem e se
estes são representativos da globalidade de dados, mas sim reunir material que
permita penetrar o mais profundamente possível na questão em estudo. Nesse
sentido, e quanto aos discursos hegemónicos, procurei textos provenientes de
organizações transnacionais e de blocos regionais, tendo em consideração a sua
produção discursiva da relação entre educação e desenvolvimento e, também,
dado o seu papel de produção ideológica e elaboração da agenda, no contexto do
“ciclo das políticas” (Bowe, Ball e Gold, 1992). Dentro destes, selecionei os que,
cumulativamente, cumpriam o critério de atualidade e de pertinência face ao
objeto de estudo.
No que diz respeito aos discursos contra-hegemónicos, e tendo já
anteriormente justificado a opção por este movimento em detrimento de outros, a
seleção foi feita com base também em critérios de pertinência. Por um lado,
foram selecionados todos os textos produzidos pela organização internacional
representativa do movimento (WFTO) que fixam significados ao definir valores,
princípios, práticas e ação do Comércio Justo (“Princípios do Comércio Justo”,
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
103
“Carta de Compromissos”, “História do Comércio Justo”), por outro lado, foram
também considerados textos divulgados na comunicação social que têm como
ator central aquele que é (re)conhecido como o „fundador‟ do movimento, e
vencedor do prémio Norte-Sul da Comissão Europeia, e criador do primeiro
rótulo “Comércio Justo” - Frans van der Hoff.
Dadas as características do movimento foi pesquisei documentos onde a
dimensão educativa do Comércio Justo estivesse presente de forma explícita. Nas
organizações de coordenação do movimento, nomeadamente na WFTO, a
presença dessa dimensão aparece nos interstícios do discurso e apenas no que
às ações de lobbying e advocacy diz respeito. Isto exigiu que se alargasse a busca
a outras organizações, de caráter mais restrito, ou seja, que não representam
institucional e internacionalmente o movimento, e onde a dimensão educativa
fosse explícita. No entanto, a existência de centenas de organizações de âmbito
local (e nacional) que têm ações de educação para o desenvolvimento no âmbito
do Comércio Justo impediu a sua consideração.
Há uma característica dos textos selecionados que lhes é comum: todos
são de domínio público, isto é, acessíveis a qualquer cidadão que procure
informar-se sobre o assunto. Esta era, para mim, uma condição importante.
Apesar de a AD, genericamente considerada, não obstar à utilização de textos
privados, no sentido em que são produzidos especificamente para a pesquisa em
causa, a mim importava, sobretudo, como é que os textos produzem
publicamente o discurso. O mesmo é dizer que, dadas as características do
trabalho, não me interessavam textos produzidos especificamente para a análise,
mas sim textos já existentes e públicos, dado que, não é a perceção dos atores
individualmente considerados que está aqui em questão mas sim a construção
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
104
social, a partir do discurso, feita por atores políticos coletivos.
Ao longo da análise a referência aos textos – que constam do Volume II
deste trabalho, organizado, também, de acordo com esta ordenação – será feita
em termos da seguinte codificação:
Documento Codificação
United Nations Millenium Declaration (ONU) D1
Estratégia 2020 para a Educação – Aprendizagem para Todos: investir nos conhecimentos e competências das pessoas para promover o desenvolvimento (BM)
D2
Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento (UE) D3
Comunicação relativa à Educação e à Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento (CE).
D4
Documentário televisivo “Toda a verdade sobre o Comércio Justo” D5
Entrevista de Frans van der Hoff à CBC Radio Canada D6
Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo (WFTO): What is Fair Trade D7
Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo (WFTO): 60 Years of Fair Trade
D8
Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo (WFTO): Charter of Fair Trade Principles
D9
Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo (WFTO): 10 principles of Fair Trade
D10
Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo (WFTO): Fair Tarde Glossary D11
Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo (WFTO): Marks and labels D12
Quadro 5. Codificação dos documentos em análise.
Passo 3: este é o momento em que os textos ganham centralidade, através
da sua análise. Esta recai sobre três dimensões: a prática discursiva, o
vocabulário utilizado e as assunções feitas.
Quanto à primeira, o que estará em causa é a interdiscursividade e a
intertextualidade, ou seja, explorar padrões dentro e através do discurso. A
análise da interdiscursividade permitirá perceber se, e como, diferentes discursos
se relacionam de modo a identificar conexões entre diferentes representações
discursivas da realidade, na medida em que nenhum discurso é uma entidade
fechada, pelo contrário, está constantemente a ser transformado devido ao
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
105
contacto com outros discursos. Dados os diferentes níveis, papéis e funções dos
tipos de atores políticos considerados nesta análise, a conflitualidade discursiva
poderá ser um elemento heurístico com um potencial interessante. A análise da
intertextualidade permitirá apreender se, e de que modo, são convocados textos
para o interior de outros textos, no sentido de perceber a legitimação
argumentativa e/ou retórica dos mesmos. Como é possível perceber, os primeiros
modelos de ACD desenvolvidos por Fairclough (cf. Figura 6., Figura 7. e Quadro
1.), nomeadamente o modelo tridimensional, distinguiam a análise da prática
discursiva da análise textual. Ora, neste trabalho, e à semelhança do que
Fairclough (2009) defende na sua proposta de Abordagem Dialética-Relacional
(ver Quadro 3.), a prática discursiva é integrada na análise dos textos, na medida
em que sendo o texto o produto da prática social que é o discurso, considero que
a análise da prática discursiva é, em si mesma, parte da análise textual, tal como
a linguagem o é.
Relativamente à segunda e à terceira dimensão – o vocabulário e as
assunções – o que se pretendeu foi dar ênfase à análise da linguagem usada
através de categorias que permitissem dar conta dos efeitos sociais do discurso.
Assim, foi dada especial atenção ao vocabulário utilizado, no sentido de
apreender o significado das palavras, aos lugares comuns existentes e diferentes
tipos de assunções existentes nos textos.
As dimensões de análise e as categorias analíticas que permitiram que os
textos “falassem”, ou seja, que permitiram dar relevo aos efeitos sociais do
discurso, encontram-se organizadas e descritas nos quadros seguintes:
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
106
Dimensões de análise
Categorias de análise
Descrição
Análise da
prática social
Politicidade do discurso
De que forma o texto afirma a sua politicidade? Propõe-se a objetivos políticos? Que papel político assume?
Efeitos ideológicos do discurso
Orientações económicas
Se, e quais, indicações económicas estão, explicita ou implicitamente, presentes? Que imaginário económico é privilegiado?
Orientações políticas
Se, e quais, indicações politicas estão, explicita ou implicitamente, presentes? Que objetivos políticos enuncia?
Quadro 6: Dispositivo de análise da prática social.
Dimensões de análise
Categorias de análise
Descrição
Análise
dos
textos
Prática Discursiva
Intertextualidade
Que outros textos são incluídos? O texto pertence
a uma cadeia textual? Que outros textos são,
significativamente, excluídos? Qual a função de
outros textos incluídos?
Interdiscursividade Que outros discursos/vozes são incluídos? Que outros discursos/vozes são excluídos? Qual a função de outros discursos/vozes incluídos?
Vocabulário
Significados
Educação
Que conceção(ões) de educação está(ão) presente(s) no texto? Qual o seu papel no desenvolvimento?
Desenvolvimento
Que conceção(ões) de desenvolvimento está(ão) presente(s) no texto? Que relação estabelece com a educação?
Lugares comuns Que expressões retóricas são utilizadas? De que modo se constituem enquanto meio de persuasão?
Assunções
Que assunções são feitas sobre o que existe, sobre a realidade? Que assunções são feitas sobre o que poderá existir? Que assunções são feitas sobre o que é bom ou desejável?
Quadro 7: Dispositivo de análise dos textos.
No que diz respeito à validade da análise, e especificamente à validade
interna, ou seja, à coerência e consistência da análise produzida, tive em conta
as considerações de Phillips e Jørgensen (2002) no que diz respeito à solidez,
abrangência e transparência dos trabalhos de Análise de Discurso:
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107
“ – A análise deve ser sólida38. É melhor que a interpretação seja baseada num
conjunto de características textuais diferentes do que em apenas uma
característica.
– A análise deve ser abrangente39. Isto não significa que todos os aspetos do
texto tenham que ser analisados de todas as formas possíveis – o que seria
impossível em muitos casos – mas que as questões colocadas ao texto devem
ser plenamente respondidas e que qualquer característica textual que entre
em conflito com a análise deve ser tida em conta.
– (…) A análise deve ser apresentada de modo transparente40, permitindo ao
leitor, tanto quanto possível, „testar‟ as afirmações produzidas. Isto pode ser
conseguido através da documentação das interpretações feitas e dando ao
leitor acesso ao material empírico ou, pelo menos, reproduzindo extratos
longos na apresentação da análise.” (Phillips e Jørgensen, 2002: 173).
A operacionalização desta proposta de validade interna encontra-se
plasmada quer nos Quadros acima apresentados, quer nos capítulos seguintes.
2.3. Evidenciar características contra-hegemónicas do discurso analisado
Este é o momento de articular as considerações produzidas pela análise,
tendo em conta os passos da Etapa 2, e de descrever e caracterizar as ordens de
discurso aqui consideradas: ordem de discurso hegemónica e ordem de discurso
contra-hegemónica.
Fundamentalmente, considera-se se o discurso central em análise se
constitui como discurso de resistência a ordens sociais vigentes, ou seja,
considera-se em que medida o discurso do Comércio Justo se constitui como
contra-hegemónico, tendo em conta, quer os conceitos de educação e de
desenvolvimento, quer a relação estabelecida entre estes. Procura-se ponderar as
38 O destaque é das autoras. 39 O destaque é das autoras. 40 O destaque é das autoras.
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108
relações que se estabelecem entre o discurso do Comércio Justo e discursos
hegemónicos e dar conta da(s) contingência(s) que o tornam contra-hegemónico
relacionando-o com questões de ideologia e de poder e enquadrando-o em
leituras paradigmáticas ou subparadigmáticas de mudança social.
O quadro seguinte sintetiza a operacionalização do modelo de ACD aqui
usado, permitindo uma melhor apreensão desta sobretudo quando confrontado
com o Quadro 2 e com o Quadro 3.
Etapa 1
Focar um aspeto
semiótico de uma prática
contra-hegemónica
Passo 1
O que significa a expressão educação para o desenvolvimento no contexto dos novos movimentos sociais, considerando que a agregação destes dois conceitos, ambos intrinsecamente polissémicos, pode indiciar uma multiplicidade de possibilidades.
Passo 2
As relações discursivas estabelecidas entre educação e desenvolvimento pelos novos movimentos sociais que assumem a educação para o desenvolvimento como prática central, considerando que, num contexto de globalização política e económica e de reescalonamento do Estado, estes discursos se apresentam como contra-hegemónicos.
Etapa 2
Identificar modos de resistência
e/ou contestação
Passo 1 Matriz social do discurso: politicidade do discurso. Efeitos ideológicos e políticos: orientações económicas; orientações políticas.
Passo 2
Seleção de textos representativos das ordens de discurso acima identificadas: - United Nations Millenium Declaration (ONU); - Education Sector Strategy Update – Achieving Education For All, Broadening Our Perspective, Maximizing Our Effectiveness (BM); - Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento (UE); - Comunicação relativa à Educação e à Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento (Comissão Europeia); - Documentário televisivo “Toda a verdade sobre o Comércio Justo”; - Entrevista de Frans van der Hoff à CBC Radio Canada; - Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo.
Passo 3 Análise dos textos: interdiscursividade; intertextualidade vocabulário (significado das palavras; lugares comuns presentes); assunções.
Etapa 3
Evidenciar características
contra-hegemónicas do
discurso analisado
Considerar em que medida o discurso do Comércio Justo se constitui como contra-hegemónico e de que modo constrói visões alternativas da ordem social existente, tendo em conta, quer os conceitos de educação e de desenvolvimento, quer a relação estabelecida entre estes. Ponderar as relações que se estabelecem entre o discurso do Comércio Justo e discursos hegemónicos e dar conta da(s) contingência(s) que o tornam contra-hegemónico relacionando-o com questões de ideologia e de poder e enquadrando-o em leituras paradigmáticas ou subparadigmáticas da mudança social.
Quadro 8. Operacionalização do modelo de Análise Crítica do Discurso neste trabalho (a partir da abordagem dialética-relacional desenvolvido por Fairclough, 2009).
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109
IIIIII DDAA AANNÁÁLLIISSEE
―Pela primeira vez em toda a experiência de escrever
relatórios, descobre que as palavras não funcionam
necessariamente, que elas podem tornar pouco claro as
coisas que tentam dizer. Olha à sua volta e fixa a
atenção em vários objectos, um após outro. Vê o
candeeiro e diz para si mesmo: candeeiro. Vê a cama e
diz para si próprio: cama. Vê o bloco de apontamento e
diz para si mesmo: bloco de apontamentos. Não podia
chamar cama ao candeeiro, pensa ele, ou candeeiro à
cama. Não, estas palavras ajustam-se perfeitamente à
volta das coisas que representam, e no acto de as
proferir sente uma profunda satisfação, como se tivesse
acabado de provar a existência do mundo.‖
Paul Auster, A Trilogia de Nova Iorque.
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111
III DA ANÁLISE
Tendo em mente o modelo de análise presente neste trabalho, baseado nas
últimas abordagens desenvolvidas por Norman Fairclough (Fairclough, 2009) no
que respeita à ACD, este capítulo dará conta da análise efetuada aos discursos
em causa. A sua organização obedeceu, não ao critério de produção da própria
análise – isto é, seguindo os passos que a análise deu, numa lógica de relato –,
mas sim ao critério de sistematização da análise, ou seja, de uma organização
que permitisse dar conta, de modo sistematizado, do que a análise produziu.
Assim, este capítulo encontra-se organizado em torno dos dois níveis de análise –
prática social e textos – e, dentro destes, optei por ter por referente as duas
ordens de discurso. Isto significa que as diferentes dimensões de análise que
constituem cada um dos dois níveis (cf. Quadros 6 e 7) são apresentadas e
discutidas no interior de cada uma das ordens de discurso, na medida em que é
a partir das primeiras que será possível caracterizar estas últimas.
Apoiando-me na proposta de Fairclough (2009) de uma abordagem
dialética-relacional que dê conta do papel do discurso na constituição do mundo
social e, simultaneamente, do modo como aquele é influenciado por este último,
começarei por abordar essa mesma dimensão dialética. Assim, inicio com a
análise da prática social, com o objetivo de colocar em evidência a interação entre
as estruturas sociais e os eventos sociais. Para tal, começo por situar o contexto
político-económico em que esta prática social decorre na medida em que, e de
acordo com Codd (1988, 2004), a primeira dimensão a ter em conta em termos
de análise de discurso político é o contexto da sua produção. O contexto é então
“As pessoas acima do lucro”
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112
entendido, não só como o ‗local‘ de onde provêm os discursos, mas também como
as condições sociais – históricas, políticas e económicas – que o sustentam, ou
seja, as construções materiais e discursivas de diferentes instâncias que
permitiram a emergência de estruturas sociais de produção discursiva. Como
defendi ao longo da fundamentação teórico-metodológica é a consideração dos
contextos sociais de produção dos discursos que permitirá analisar os mesmo em
termos da sua politicidade, isto é, identificar o caráter político dos discursos em
causa, o que implica compreender os processos de elaboração da ―política como
discurso‖ (Ball, 2008) (cf. Introdução).
Na análise da prática social são considerados dois aspetos: a matriz social
do discurso em termos da sua politicidade – isto é, de que forma o texto afirma a
sua politicidade, o que faz com que o discurso em análise seja entendido
enquanto discurso político – e os efeitos ideológicos – ou seja, que imaginário e
representação do mundo está presente no discurso. A análise destas duas
dimensões será apresentada, separadamente, no interior dos discursos
hegemónicos e dos discursos contra-hegemónicos.
A análise dos textos será apresentada também considerando as duas
ordens de discurso e, em cada uma delas, as dimensões já enunciadas – prática
discursiva e vocabulário (onde se incluem significados, lugares comuns e
assunções).
De seguida, será discutida a ordem contra-hegemónica, no sentido de
perceber o que a caracteriza.
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113
1. Da prática social
―«Quando uso uma palavra», disse o Humpty Dumpty
com desdém, «ela significa exactamente o que eu quero
que ela signifique – nem mais nem menos»
«A questão», disse Alice, «é saber se tu podes fazer com
que as palavras tenham significados tão diferentes!».
«A questão é», disse Humpty Dumpty, «quem deve ser o
mestre».‖
Lewis Carrol, Alice do Outro lado do Espelho
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“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
115
A análise da prática social necessita de uma compreensão dos processos
de elaboração política, o que, por sua vez, não pode ser feito, sem ter em
consideração o fenómeno da globalização, não em termos de ―fetichismo espacial‖
(Robertson e Dale, 2007), mas sim enquanto arena social, material e
discursivamente construída, que contribui para a propagação de determinados
modos de agir social e politicamente. Tal como afirmam Robertson et all (2007),
se a globalização é um fenómeno relativamente novo (os autores referem a
emergência do termo ―globalizado‖ e ―globalismo‖ nos anos 1940), a verdade é
que se tornou, a partir dos anos 1980, um conceito teórico e um instrumento
analítico central no estudo, compreensão e explicação de fenómenos de índole
diversa que marcam as sociedades atuais.
Apesar da ‗novidade‘ do conceito, a sua análise leva alguns autores a
afirmarem que o fenómeno da globalização, enquanto relação entre Estados-
nação, sempre existiu (Dale, 2000) remetendo a sua origem para o início de
trocas comerciais a nível internacional a partir do século XVI (Waters, 1999;
Olssen, Codd e O‘Neill, 2004). Hirst e Thompson (2002), num trabalho em que
afirmam que a ―[g]lobalização se tornou num conceito da moda nas Ciências
Sociais‖ (2002: 68), também argumentam que
―[a] atual economia altamente internacionalizada tem precedentes: é uma
entre uma série de conjunturas ou estados distintos da economia
internacional que existem desde que, nos anos 1860, se começou a
generalizar uma economia baseada na moderna tecnologia industrial‖ (Hirst e
Thompsom, 2002: 68).
No entanto, Dicken (1999) faz uma distinção interessante que pode
permitir diferenciar dois períodos nas relações económicas mundiais em termos
de quantidade e qualidade. Segundo este autor, até meados dos anos 1970
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116
poder-se-ia falar de processos de internacionalização que envolveriam
―a simples extensão de atividades económicas através das fronteiras
nacionais. Este é, essencialmente, um processo quantitativo41 que conduz a
atividade económica a um mais extenso padrão geográfico‖ (Dicken, 1999: 5).
E, de acordo com o autor, atualmente encontramo-nos em processos de
globalização que
―são qualitativamente42 diferentes dos processos de internacionalização.
Envolvem não só a extensão geográfica da atividade económica através das
fronteiras nacionais mas também – e mais importante – a integração
funcional43 destas atividades internacionais dispersas.‖ (Dicken, 1999: 5).
Ou seja, uma primeira característica da globalização a ser relevada é o seu
caráter de articulação e de complexidade no que aos fenómenos económicos diz
respeito. No entanto, é hoje em dia claro que o fenómeno da globalização não se
restringe ao plano económico apesar de este ser uma instância fundamental para
compreender o papel e a extensão da globalização.
Se para Giddens (1996) a globalização pode, genericamente, ―ser definida
como a intensificação das relações sociais de escala mundial‖ (:45), na sua
perspetiva ela é intrinsecamente moderna. A razão é que a ligação em rede de
diferentes contextos é uma forma de distensão espácio-temporal, sendo que esta,
por sua vez, é uma das fontes de dinamismo da modernidade, a par da
descontextualização e da reflexividade. Também Waters (1999) acentua a relação
entre modernidade e globalização a partir da organização moderna da vida social
no espaço e no tempo. Paradoxalmente, a designação utilizada por diferentes
sociólogos para analisar o modo como, numa época de globalização, novos modos
41 O destaque é do autor. 42 O destaque é do autor. 43 O destaque é do autor.
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117
de relação espácio-temporais moldam a vida social parece ser contraditória: se
alguns, nomeadamente Giddens (1996), falam de uma distensão espacio-
temporal, outros, como, por exemplo, David Harvey (2000) referem uma
compressão espacio-temporal. Defendo, no entanto, que esta aparente
contradição reside nos termos utilizados para referir o fenómeno e não na
substância do mesmo. De facto, o que parece estar em causa, em ambos os
casos, é uma redução do tempo e espaço necessários às trocas de fluxos
informacionais e de capital que tem como consequência uma maior proximidade
entre pontos diferentes do planeta. Se o uso do termo compressão evidencia, à
partida, esta aproximação, o termo distensão tem que ser contextualizado na
metáfora de rede, usada por Giddens, para melhor se compreender como é que a
distensão permite uma maior ligação e, portanto, aproximação de diferentes
lugares: ―A globalização diz essencialmente respeito a esse processo de distensão,
na medida em que os modos de conexão entre diferentes contextos sociais ou
regiões se ligam em rede através de toda a superfície da Terra.‖ (Giddens, 1996:
45). Numa outra obra Giddens acrescenta que, tendo a globalização a ver com a
transformação do espaço e do tempo, ―[d]efini-la-ia como a acção à distância44,
relacionando a sua intensificação nos anos mais recentes com a emergência de
meios de comunicação global e instantânea e de transporte de massa‖ (Giddens,
1997b: 4).
O incremento e desenvolvimento das tecnologias de informação e
comunicação é um fator decisivo para a construção da ―economia global‖, na
medida em que contribui, de modo significativo, para a remoção de barreiras
―espácio-temporais‖ e a construção de ―redes‖ que permitem aumentar a rapidez
de fluxos e trocas, não só informacionais, mas também comerciais e de capital.
44 O destaque é do autor.
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
118
Segundo Olssen, Codd e O‘Neill (2004) as diferentes formas de globalização têm
sido moldadas pelo progresso tecnológico e o seu rápido desenvolvimento terá
sido determinante para reduzir a possibilidade de os Estados-nação manterem
economias independentes entre si: ―como consequência dessas novas tecnologias
sugere-se que os mercados, governos e grupos políticos independentes no interior
de Estados-nação específicos tornaram-se ‗mais sensivelmente ajustados‘ uns
aos outros‖ (Olssen, Codd e O‘Neill, 2004: 4).
As formas assumidas pela ―economia global‖ quase que tornam, do ponto
de vista económico, desapropriadas as fronteiras dos Estados-nação dada a
crescente internacionalização de trocas comerciais e de transações financeiras
que reconfiguram a noção de espaço e território o que, inevitavelmente, tem
consequências políticas, em termos de instituições, elaboração e implementação.
A primeira dessas consequências é o papel político dos Estados-nação. A
conceptualização política do Estado-nação teve uma importância teórica central
no desenvolvimento das Ciências Sociais, nomeadamente, em Ciência Política e
Sociologia e constitui-se, segundo Giddens (1996) numa das dimensões da
modernidade. A ideia de globalização política apresenta-se como particularmente
desafiadora na medida em que descentra da escala nacional a organização
política dominante (desnacionalização) e descentra do Estado o papel de ator
principal (desestatização) (Robertson et all, 2007). Estas duas características da
globalização política – e que trazem consequências ao nível do governo e da
governação – encontram expressão na famosa frase de Daniel Bell ―o Estado-
nação tornou-se demasiado pequeno para os grandes problemas da vida e
demasiado grande para os pequenos problemas da vida‖ e que é corroborada pela
perspetiva, defendida por Roger Dale, de que a forma que os problemas assumem
neste momento, bem como a capacidade para lhes responder, são globais pelo
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
119
que, os Estados-nação, não têm por si só faculdade para os resolver. Existem
pois
―problemas que são verdadeiramente globais e transnacionais – na verdade a-
nacionais – e que se situam para além do poder de resolução de qualquer
nação individualmente considerada. A particularidade que distingue a
globalização daquilo que acontecia antes é que esta é supranacional‖ (Dale,
2000: 93).
Porém, isto não significa que os Estados-nação se tenham tornado
dispensáveis ou obsoletos. Num trabalho de 1999, Roger Dale analisa os efeitos
da globalização na política dos Estados-nação, com especial ênfase nos seus
mecanismos. O argumento central, com o qual concordo, é o de que apesar da
existência real de uma influência supranacional nas políticas nacionais não há
motivo para afirmar que os Estados-nação não têm já qualquer papel político ou
perderam todo o seu poder. Isto é patente em dois factos: primeiro, os Estados-
nação foram, e são, construtores ativos da globalização política; segundo, a
existência de entidades políticas supraestatais não é sinónimo de total
esvaziamento do Estado-nação. Se Boaventura Sousa Santos (2001) considera
que os poderes dos Estados-nação são diminuídos por razões de aliança
económica e política com outros Estados e/ou organizações – na procura de ter
acesso a novas formas de poder e o exercício de um papel a nível internacional –,
Roger Dale chama a atenção para o facto de estas cedências serem feitas
voluntariamente exatamente para manter ou aumentar uma posição privilegiada
na economia mundial. Este facto não significa que o sistema mundial seja menos
estatizado até porque ―apesar de a sobrevivência do sistema ser mais importante
do que os interesses das nações individuais, o sistema e a sua sobrevivência só
podem ser conduzidos pelos Estados‖ (Dale, 2000: 94).
Por outro lado, se a globalização afeta e influencia as políticas dos
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
120
Estados-nação, nomeadamente através da existência de um conjunto de regras
que emanam de instituições políticas supranacionais, os diferentes países, tal
como afirma Roger Dale (1999), não as interpretam ou aplicam, necessariamente,
de forma igual. Independentemente da diversidade de políticas existentes, o facto
de existir uma multiplicidade de mecanismos através dos quais a globalização
influencia as políticas dos Estados-nação, é, em si mesmo, um fator de
diversidade (Dale 1999). A principal característica da globalização, no que às
questões políticas diz respeito, é o facto de criar ―padrões, genericamente
similares, de desafio para os Estados que moldam as suas possibilidades de
resposta de modo semelhante‖ (Dale, 1999: 1). E um desses padrões é a
prioridade que a dimensão económica assume relativamente a outras dimensões
políticas, de modo a tornar os Estados competitivos, num quadro de modelo
económico capitalista neoliberal. O estabelecimento de padrões que orientassem
a ação governativa dos diferentes Estados-nação foi o propósito do denominado
―Consenso de Washington‖. John Williamson (1993), que assume ter preparado,
em meados de 1989, uma lista das principais reformas económicas que urgia que
a América Latina adotasse45, afirma que não obstante o seu trabalho se
intitulasse ―O que Washington entende por reforma política‖,
―precipitadamente foi apelidado de «Consenso de Washington», um termo
imediatamente contestado [por não ter sido] unanimemente aprovado em
Washington, e, portanto, não ser um consenso, para além de que o âmbito
geográfico ultrapassava a área referida. (…) Tentei descrever o que era
convencionalmente considerado sensato em vez do que eu próprio julgava
45 O Consenso de Washington, tal como foi formulado, consistia na adoção de 10 medidas essenciais para a recuperação económica dos países e que, segundo Robertson et al ―se tornaram globalizadas e se espalharam nos países de baixos rendimentos‖ (2007: 37) através das clausulas condicionantes da ajuda prestada. As 10 medidas eram: disciplina fiscal; novas prioridades nos gastos públicos; reforma dos impostos; liberalização financeira; taxa de câmbio competitiva; liberalização do comércio; aumento do investimento estrangeiro direto; privatização das empresas estatais; desregulação da economia; direitos de propriedade. (a partir de Williamson, 1993: 1332-1333).
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
121
sensato: ou seja, a intenção era que fosse uma lista positiva e não normativa‖
(Williamson, 1993: 1329).
Robertson et all (2007) não partilham desta opinião dado que colocam aquilo que
Williamson denomina como ―convencionalmente sensato‖ num lugar ideológico e,
portanto, retirando-o do ―não-lugar‖ político (Magalhães e Stoer, 2006) que
Williamson parece atribuir-lhe. Robertson et all (2007) afirmam que esta nova
ortodoxia política, que ficou conhecida como ―Consenso de Washington‖, refletiu
uma mudança na trajetória política de duas economias chave dos países
desenvolvidos (os Estados Unidos da América e o Reino Unido) resultante da
crise económica mundial dos anos de 1970 que obrigou a uma reforma
económica estrutural: segundo estes autores, e apoiando-se também em outros,
as políticas económicas neoliberais foram centrais nesta transformação
estrutural, ou seja, há uma clara assunção ideológica no que foi considerado ser
‗o‘ caminho para a reconversão económica mundial e que resulta de uma leitura
e construção política. Também Boaventura Sousa Santos (2001: 33) se refere ao
―Consenso de Washington‖ como o consenso neoliberal subscrito pelos Estados
centrais do sistema mundial ―abrangendo o futuro da economia mundial, as
políticas de desenvolvimento e especificamente o papel do Estado na economia.‖,
atribuindo-lhe a ―paternidade das características hoje dominantes da
globalização‖ (Santos, 2001: 33). Na sua perspetiva, ―[o]s diferentes consensos
que constituem o consenso neoliberal partilham uma ideia-força que, como tal,
constitui um meta-consenso. Essa ideia é a de que estamos a entrar num período
em que desapareceram as clivagens políticas profundas.‖. (Santos, 2001: 33). O
autor salienta ainda que, para este meta-consenso, contribuem as seguintes
ideias:
- o fim das rivalidades entre países hegemónicos dada a ―interdependência entre
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
122
as grandes potências, [a] cooperação e [a] integração regionais.‖ (Santos, 2001:
33);
- a capacidade de controlo, pelos países centrais, de possíveis focos de
instabilidade através de intervenções seletivas, da dívida externa e da ajuda
internacional;
- a redução da transformação social a uma questão técnica, por oposição a uma
questão política, dado o desaparecimento do conflito Leste/Oeste e da
compreensão da relação Norte/Sul enquanto ―campo fértil de interdependências
e cooperações.‖ (Santos, 2001: 34).
Este ―meta-consenso‖ referido por Boaventura Sousa Santos, e que reforça
a análise da globalização enquanto ―fenómeno político-económico.‖ (Dale, 2000:
94), é corroborado pela construção de dispositivos políticos que permitem a
implementação e a disseminação da ortodoxia económica proclamada pelo
―Consenso de Washington‖. Refiro-me especificamente às organizações
transnacionais e aos blocos político-económicos que se constituem enquanto
atores hegemónicos na ordem político-económica mundial e que materializam a
interdependência, cooperação, ajuda internacional e integração regional a que
Santos (2001) se refere e que são, simultaneamente, produtores e produtos da
globalização político-económica, entendida enquanto processo linear e inevitável.
Não obstante a força paradigmática desta noção de globalização Santos
(2001) chama a atenção para a pluralidade de visões existentes sobre a mesma –
ainda que com diferentes graus de impacto – que se traduzem em discursos
contraditórios. O autor identifica uma dessas contradições como sendo de
―natureza político-ideológica, (…) entre os que vêem na globalização a energia
finalmente incontestável e imbatível do capitalismo e os que vêem nela uma
oportunidade nova para ampliar a escala e o âmbito da solidariedade
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
123
transnacional e das lutas anticapitalistas.‖ (Santos, 2001: 61).
Quero, portanto, realçar a ideia de que a globalização ao alterar a escala e
a dimensão espácio-temporal dos fenómenos sociais – económicos, políticos e
culturais –, fê-lo não só em termos de estrutura mas também de agência, tendo-
se transnacionalizado os espaços político-sociais de regulação(ões) mas também
de emancipação(ões). A dicotomia, comummente estabelecida, entre regulação e
emancipação tem vindo a ser discutida e questionada dada a complexidade das
sociedades atuais, sejam elas caracterizadas enquanto sociedades de risco (Beck,
1992; Adam, Beck e van Loon, 2000), de modernidade radicalizada (Giddens,
1996), pós-industrial (Daniel Bell) ou pós-moderna (Harvey, 2000). Stoer e
Magalhães (2005) argumentam que o fim das metanarrativas fundadoras da
ordem social e a sua explosão em ‗pequenas‘ narrativas vêm complexificar os
processos de mudança social e o próprio conceito de ‗emancipação‘ e ‗regulação‘:
―está-se longe de contemporaneamente se poder destacar um actor central e
privilegiado dos processos de mudança social (…). Os ideais emancipatórios
surgem como heterogéneos e, por vezes, mesmo conflituantes entre si (…). Não
é, assim, possível estabelecer um quadro que seja ao mesmo tempo
suficientemente amplo e suficientemente específico para que o «desejável»
congregue os incomensuravelmente diferentes projectos dos múltiplos actores
em presença.‖ (Stoer e Magalhães, 2005: 24).
Na minha perspetiva, estes dois fatores – o alargamento da escala de ação
para um nível global e a impossibilidade contemporânea de vislumbrar uma
metanarrativa (e portanto, um ator) central nos processos de mudança social –
são algumas das características de que se reveste, hoje, a ação coletiva
enquadrada no que se convencionou chamar novos movimentos sociais.
A discussão sobre ‗o que há de novo nos novos movimentos sociais‘ centra-
se sobretudo nas eventuais distinções que estes possam ter relativamente aos
velhos movimentos sociais e, mesmo, à identificação destes. Deste modo, a
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
124
identidade dos primeiros constrói-se pela contraposição a estes últimos e
também pela própria conceção de movimento social46. Esta não é, no entanto,
uma tarefa fácil: a pluralidade de movimentos sociais que são identificados
enquanto novos demonstra uma heterogeneidade tal que, como afirma Scott
(1990), deixa em aberto a possibilidade de consensualizar um conjunto de
características que permitam a sua (auto)identificação. No entanto, Offe (1992)
salienta a novidade dos NMS por referência, não aos valores defendidos por
estes, mas por atuarem dentro de uma nova ordem, pelo caráter eminentemente
político dado o seu objetivo de interferência ao nível institucional e ao nível de
valores e hábitos de vida, e pelos modos de ação interna e externa.
É possível, assim, relevar, pelo menos, cinco modos de novidade de que os
NMS se revestem, por contraponto aos ―velhos‖ movimentos sociais (de que o
movimento operário do século XIX é exemplo):
- são protagonizados por novos atores sociais, isto é, não só a base social
de apoio destes movimentos é transclassista como a sua identificação é
deslocada para novos indicadores de identidade social (Offe, 1992), reconhecida
como híbrida;
- introduzem novos temas de reivindicação, temas esses que não estão
apenas centrados em questões de redistribuição da riqueza, ultrapassando a
cristalização de lugares ideológicos como esquerda e direita e politizando novas
46 Esta é, segundo Touraine (1984) uma questão central da Sociologia. A sua centralidade ganha força pela sua consideração, não apenas enquanto levantamentos populares ou revoluções, mas pelo reconhecimento de todos os momentos de ação da sociedade sobre si própria e em torno de conflitos (Touraine, 1998). Já anteriormente, Touraine estabelecera a seguinte distinção entre ação coletiva, luta e movimento social: ―falar de ações coletivas é considerar que os conflitos são respostas a uma situação que deve ser definida por si mesma, ou seja, em termos de integração ou desintegração de um sistema social definido por um princípio de unidade. Pelo contrário, falar de lutas implica uma conceção estratégica duma mudança social, sem referência a um sistema que seja capaz de manter suficientemente o seu equilíbrio e a sua integração. (…). A transição de condutas coletivas a lutas destroi a referência a uma sociedade, impede a consideração dos conflitos como respostas. A passagem das lutas a movimentos sociais, pelo contrário, reestabelece a relação entre ação coletiva e sistema social, mas em sentido inverso.‖. (Touraine, 1984: 6-7).
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áreas da vida social (Offe, 1992);
- aumentam a escala de ação, fazendo uso das alterações espácio-
temporais, do reescalonamento do Estado e do desenvolvimento das novas
tecnologias de informação;
- criam novas formas de organização, que podem assumir constituições
organizativas e jurídicas diversas – normalmente identificadas com o terceiro
setor, como ONG‘s, associações, ipss47 – , ou mesmo formas que se caracterizam
por ser descentralizadas, difusas, com um funcionamento mais horizontal,
através de redes ou fluxos (Wainright, 2006) com formas de liderança e pertença
menos estruturada e, eventualmente, temporária e múltipla;
- reinventam novas formas de ação, que podem passar por ações
fraturantes, com grande impacto mediático, por um trabalho de bastidores
fundado no lobbying ou por um trabalho de proximidade alicerçado em ações de
advocacy.
É também nesta linha que Boaventura Sousa Santos caracteriza a
novidade destes movimentos:
―A novidade maior dos NMSs reside em que constituem tanto uma crítica da
regulação social capitalista, como uma crítica da emancipação social socialista
tal como ela foi definida pelo marxismo. Ao identificar novas formas de
opressão que extravasam das relações de produção e que nem sequer são
específicas dela, como sejam a guerra, a poluição, o machismo, o racismo ou o
47 Muitas vezes encontra-se, na literatura, uma sobreposição relativa aos termos movimentos sociais (ou novos movimentos sociais) e ONG. Na verdade, estas são coisas e formas distintas: os movimentos sociais, genericamente entendidos enquanto modos de ação coletiva, assumem muitas vezes a formulação organizacional e jurídica de ONG, que é definida pela legislação do país onde esta é sediada. Mas um movimento social não tem que ser uma ONG, esta é apenas uma, de entre outras possibilidades, forma de organização da ação e não a elaboração e definição política da ação em si mesma. Assim, uma ONG pode desenvolver ações no âmbito de um movimento social e pode enquadrar a sua ação num movimento mas ela não totaliza o movimento (por exemplo, a Greenpeace é uma ONG que representa o movimento ambientalista a nível global mas não o esgota, na medida em que outras ONG‘s e outras associações também o representam a nível global ou local). Da mesma forma os movimentos sociais podem não ter nenhuma estrutura organizativa formal na sua base (um exemplo disto é o recentemente criado Movimento dos Indignados, a nível global, ou dos Precários Inflexíveis, a nível nacional). Importa assim distinguir a formulação substantiva (movimento social) da formulação organizacional ou jurídica (ONG‘s, associações,…).
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
126
produtivismo, e ao advogar um novo paradigma social menos assente na
riqueza e no bem-estar material do que na cultura e na qualidade de vida, os
NMSs denunciam, com uma radicalidade sem precedentes, os excessos de
regulação da modernidade. Tais excessos atingem, não só o modo como se
trabalha e produz, mas também o modo como se descansa e vive; a pobreza e
as assimetrias das relações sociais são a outra face da alienação e do
desequílibrio interior dos indivíduos; e, finalmente, essas formas de opressão
não atingem especificamente uma classe social e sim grupos sociais
transclassistas ou mesmo a sociedade no seu todo.‖ (Santos, 1994: 222).
Mas é importante ter em consideração o ‗aviso‘ feito por Castells (2003) de
que
―os movimentos sociais podem ser conservadores, revolucionários, ambas as
coisas ou nenhuma delas. (…) do ponto de vista analítico, não há movimentos
sociais ―bons‖ ou ―maus‖. Todos eles são sintomas das nossas sociedades, e
todos causam impacto nas estruturas sociais, em diferentes graus de
intensidade e com resultados distintos‖ (Castells, 2003: 85-86).
Apresentado o contexto que enquadra as práticas sociais em questão neste
trabalho é possível, agora, analisar de que forma se relacionam as estruturas
sociais e os eventos (Fairclough, 2009).
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
127
1.1. Do discurso hegemónico
1.1.1. Matriz social do discurso: politicidade do discurso
Os textos considerados para análise em termos de discurso hegemónico
são textos provenientes de diferentes organizações mas que têm em comum uma
característica: todas são organizações supranacionais, ou seja, cuja constituição
em termos de escala, está para além dos estados-nação constituindo-se,
portanto, em formas de reescalonamento do Estado. No entanto, como lembra
Roger Dale (2001), é importante não tratar as organizações supranacionais de
forma a-problemática, ou seja, não as ―ver como homogéneas e referentes a
valores mundiais e a políticas mundiais da mesma forma.‖ (Dale, 2001: 163). De
facto, as organizações aqui consideradas – ONU, Banco Mundial, União Europeia
(e nesta, a Comissão Europeia que é o seu órgão executivo) – são diversas quer
quanto à sua constituição, quer quanto aos objetivos e ao seu papel no ―ciclo das
políticas‖ (Bowe, Ball e Gold, 1992).
A ONU e o Banco Mundial têm em comum o facto de serem organizações
transnacionais, ou seja, organizações que, não obstante terem sido criadas por
iniciativa direta dos Estados-nação, operam para além destes. A ONU foi criada
no fim da II Guerra Mundial com a intenção de ―manter a paz e a segurança
internacional, desenvolver relações amigáveis entre as nações e promover o
progresso social, melhores condições de vida e os direitos humanos‖48, tendo-se
dedicado, sobretudo a partir de 1984, a questões relativas ao desenvolvimento
dos países mais pobres. Referindo-se à ONU como uma ―sopa de letras‖, dada a
sua complexa estrutura administrativa e de organização – programas, fundos,
comissões –, Pinto (2010) refere que ―[a]s actividades de desenvolvimento da ONU
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
128
desenrolam-se em três instâncias: 1. a ONU, isto é, os órgãos principais, em
especial o Conselho Económico e Social (CES); 2. as instituições de Bretton
Woods; 3. e, mais recentemente, a Organização Mundial do Comércio (OMC)‖
(Pinto, 2010: 131). A autora estabelece, assim, a ligação entre as duas
organizações aqui consideradas, dado que uma das instituições de Bretton
Woods49, criada na conferência realizada, e que assume o papel de mecanismo de
desenvolvimento, é o próprio Banco Mundial.
É importante referir, no entanto, que o Banco Mundial assume que não é
―um banco no sentido comum mas uma parceria única para reduzir a pobreza e
apoiar o desenvolvimento‖50, sendo constituído por cinco organizações51. Esta
negação desse ―sentido comum‖ significa que o papel do Banco Mundial não é,
apenas, o de empréstimo financeiro a troco de juros – a atividade central do setor
bancário – mas sim um papel político. Na verdade, se o BM fornece ―empréstimos
a juros baixos, créditos sem juros e doações aos países em desenvolvimento‖52
também oferece ―apoio aos países em desenvolvimento através de conselhos de
políticas, pesquisas e análises, e assistência técnica‖53. A contrapartida que os
48 In http://www.un.org/en/aboutun/index.shtml 49 Maria do Céu Pinto esclarece que ―[a]s chamadas ―instituições de Bretton Woods‖ resultaram da conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, realizada na localidade de Bretton Woods (…). Na conferência, foram definidas regras, instituições e procedimentos para as relações monetárias e financeiras entre os países mais industrializados do mundo.‖ (Pinto, 2010: 132). 50 In, http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTABOUTUS/0,,contentMDK:20103838~menuPK:1696997~pagePK:51123644~piPK:329829~theSitePK:29708,00.html 51 As cinco organizações que compõem o Grupo Banco Mundial são o BIRD – Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento; a AID – Associação Internacional de Desenvolvimento; a CFI – Corporação Financeira Internacional; a AMGI – Agência Multilateral de Garantias de Investimentos; e o CIADI – Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos. (http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTABOUTUS/0,,contentMDK:20046292~menuPK:1696892~pagePK:51123644~piPK:329829~theSitePK:29708,00.html) 52 In http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTABOUTUS/0,,contentMDK:20103838~menuPK:1696997~pagePK:51123644~piPK:329829~theSitePK:29708,00.html 53 In, http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTABOUTUS/0,,contentMDK:20103838~menuPK:1696997~pagePK:51123644~piPK:329829~theSitePK:29708,00.html
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
129
empréstimos a juros baixos têm é, então, uma contrapartida política porque o
que é apresentado como sendo um serviço prestado – os ―conselhos de políticas‖,
a ―ajuda técnica‖ – é um modo de fixar orientações políticas:
―[n]os casos dos empréstimos de ajustamento estrutural, pretende-se
encaminhar as economias para as regras de mercado, incluindo a privatização
de serviços empresas públicas e, em geral, a redução da presença do Estado
na economia. No caso de empréstimos de ajustamento sectorial, visa-se a
reestruturação de sectores considerados de importância determinante para a
liberalização das economias. O Banco também presta consultadoria à
preparação de projectos não financiados por si. Trata-se de um apoio dado a
projectos específicos ou à formação de quadros e à divulgação de técnicas de
preparação e análise.‖ (Pinto, 2010: 135).
Há, então, uma intencionalidade política na ação do Banco Mundial que
advém da sua capacidade de financiar os ‗países em desenvolvimento‘ e que
exemplifica aquilo que Roger Dale (2001) denomina de ―poderoso papel das
organizações internacionais enquanto instituições de ‗governação global‘ ‖ (Dale,
2001: 161). Esta ‗governação global‘ é consequência da globalização política que,
segundo Robertson et al (2007), se caracteriza por descentrar da escala nacional
a organização política dominante – desnacionalização – e descentrar do Estado o
papel de ator principal – desestatização. É a constatação deste processo de
desnacionalização que leva Roger Dale (2001) a
―reconhecer que as organizações internacionais não confinam as suas
intervenções apenas à área dos mandatos políticos; elas também, e de uma
forma crescente, tratam de questões quer de capacidade, quer de governação.
A governação tornou-se no objectivo chave de organizações como (…) o Banco
Mundial nos anos mais recentes.‖ (Dale, 2001: 161).
De facto, na Estratégia 2020 para a Educação do Grupo Banco Mundial (D2), o
objetivo de mandato e de capacidade estão bem presentes, ao enfatizar,
assertivamente, o que se vai fazer:
―Para alcançar a aprendizagem para todos, o Grupo Banco Mundial canalizará
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
130
os seus esforços para a educação em duas vias estratégicas: reformar os
sistemas de educação no nível dos países e construir uma base de
conhecimento de alta qualidade para reformas educacionais no nível global.‖
(D2);
―No nível dos países, o Grupo do Banco irá concentrar-se em apoiar reformas
dos sistemas educacionais.‖ (D2).
Mas também a declaração de intenção de governação se encontra plasmada no
texto, nomeadamente, quando é afirmado que
―Melhorar os sistemas de educação significa ir além de fornecer simplesmente
recursos.‖ (D2);
―A abordagem da nova estratégia ao sistema educacional centra-se em maior
responsabilização e resultados como complemento de proporcionar recursos.
Reforçar os sistemas educacionais significa alinhar a sua governação, a gestão
de escolas e professores, regras de financiamento e mecanismos de incentivo,
com o objectivo da aprendizagem para todos. Isto implica uma reforma das
relações de responsabilização entre os vários actores e participantes no
sistema educacional, para que esse relacionamento seja claro, coerente com
as funções, medido, monitorizado e apoiado. Significa também estabelecer um
ciclo claro de retorno entre o financiamento (incluindo a ajuda internacional) e
os resultados. (…) Numa perspectiva operacional, o Banco Mundial
concentrará cada vez mais a sua ajuda financeira e técnica em reformas do
sistema que promovam os resultados da aprendizagem.‖ (D2).
Estas afirmações demonstram a politicidade inerente ao discurso do
Banco Mundial em matéria de educação. Essa politicidade afirma-se no
estabelecimento do mandato e capacidade – ou seja, do que é desejável e possível
alcançar – mas também na intenção de governação54. E é exatamente pelo seu
54 Importa esclarecer o que significa governação uma vez que, segundo Jessop (1998,) originalmente, este termo se referia ―principalmente à ação ou modo de governar, guiar ou conduzir numa direção, sobrepondo-se a ‗governo‘ ‖ (Jessop, 1998: 30) e que o seu uso se tornou popular em muitos contextos, tendo-se tornado numa palavra ‗zumbido‘ (buzzword, no original) que poderia significar qualquer coisa ou nada (Jessop, 1998). Para Jessop, ―o fator chave para o seu renascimento foi, provavelmente, a necessidade de distinguir entre ‗governação‘ e governo‘. Assim, governação referir-se-ia a modos e formas de governar e governo às instituições e agentes
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
131
papel de banco ―não no sentido comum do termo‖ que o Banco Mundial assume
um papel de governação dado que explicita o que e como se deve fazer para
atingir o desejável e o possível e conecta o financiamento atribuído à existência
de resultados e de retorno, e às reformas que o próprio Banco Mundial elencou
como sendo imprescindíveis.
Este papel é também percebido no modo como o Banco Mundial se coloca,
a si próprio, na relação com os governos nacionais, convertendo, assim, a
suposta assistência técnica em governação:
―Numa perspectiva operacional, o Banco Mundial concentrará cada vez mais a
sua ajuda financeira e técnica em reformas do sistema que promovam os
resultados da aprendizagem. Para esse efeito, o Banco irá concentrar-se em
ajudar os países parceiros a consolidar a capacidade nacional para reger e
gerir sistemas educacionais, implementar padrões de qualidade e equidade,
medir o sistema de desempenho com relação aos objectivos nacionais para a
educação e apoiar a definição de políticas e inovação com base comprovada.
(D2)‖;
―Uma detalhada análise de sistema e o investimento em conhecimentos e em
dados permitirá ao Banco e aos decisores políticos ―analisar no nível global e
agir no nível local‖ – ou seja, avaliar a qualidade e a eficácia de muitos
domínios da política, mas concentrarem a acção em áreas onde os
melhoramentos podem trazer uma maior recompensa em termos de
resultados de escolaridade e aprendizagem.‖ (D2).
A partilha de papéis políticos entre o BM e os governos nacionais é
refletida pela referência a ambos em atos de governação – ―o Banco irá
concentrar-se em ajudar os países parceiros a consolidar a capacidade (…) para
reger e gerir (…), implementar (…), medir (…) apoiar a definição de políticas‖;
―permitirá ao Banco e aos decisores políticos analisar (…) concentrarem‖ – apesar
de esta dupla referência ser de iniciativa unilateral. De facto, não obstante os
encarregues de governar‖ (Jessop, 1998: 30).
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
132
dois protagonistas aparecerem, aparentemente, de modo paritário – os países
intervencionados são referidos como ―países parceiros‖; a intervenção do BM é
referida como sendo a de ―ajudar‖ –, a verdade é que neste documento, produzido
apenas pelo BM, é definido o quê, como, quem e o porquê se decide politicamente.
A ONU, sendo também uma organização transnacional, assume um papel
muito mais fluído, „soft‟ – para não dizer inexistente – em termos de governação.
De facto, no seu discurso encontram-se, sobretudo, recomendações, facto a que
não será alheio quer a organização da instituição, quer os seus objetivos e modos
de ação. Não sendo financiadora direta de Estados-nação, e estando até
dependente do pagamento de quotas por parte destes para operar, a ONU
assume cada vez mais um papel de guardiã e vigilante de direitos e valores
supostamente universais. Deste modo, o seu discurso é, enquanto discurso
político, essencialmente de produção ideológica, próprio de quem se encontra
num ―contexto de influência‖ (Bowe, Ball e Gold, 1992):
―We will spare no effort to free our fellow men, women and children from the
abject and dehumanizing conditions of extreme poverty, to which more than a
billion of them are currently subjected. We are committed to making the right
to development a reality for everyone and to freeing the entire human race
from want.‖ (D1);
―We resolve therefore to create an environment – at the national and global
levels alike – which is conducive to development and to the elimination of
poverty.‖ (D1);
We are concerned about the obstacles developing countries face in mobilizing
the resources needed to finance their sustained development. We will therefore
make every effort to ensure the success of the High-level International and
Intergovernmental Event on Financing for Development, to be held in 2001.‖
(D1).
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
133
É que, não obstante a utilização de verbos indiciadores de ação – como ―vamos‖,
―resolvemos‖, ―vamos fazer‖ – eles são logo seguidos de expressões que
transformam a ação em contextualização da ação – ―criar um ambiente que
conduza‖, ―esforços para assegurar‖ – ou em ação de preocupação e não de
mudança ou alteração.
Esta característica é uma constante no documento em análise: nos
momentos em que, no documento, são indicadas resoluções elas transformam-se
em resoluções de intenção e não de ação, uma vez que é indicado o que se resolve
mas não como se vai fazer para cumprir, ou fazer cumprir, essa resolução. Esta
constatação torna-se ainda mais evidente quando essas resoluções de intenção se
referem a temas complexos e que envolvem diversos intervenientes, diversas
variáveis e diversas possibilidades processuais que não são, sequer, referidas, da
mesma forma que não o são eventuais conflitos ou posições díspares que possam
colocar em causa essas resoluções de intenção. Os extratos abaixo citados
exemplificam o que acabo de afirmar, sendo necessário explicitar que, todos eles
se referem a resoluções – ―We resolve therefore‖ (D1) – tomadas no âmbito dos
objetivos considerados mais significativos nesta Declaração – ―7. In order to
translate these shared values into actions, we have identified key objectives to
which we assign special significance. (…) II. Peace, Security and disarmament (…)
III. Development and poverty eradication (…) IV. Protecting our common
environment (…) V. Human rights, democracy and good governance (…) VI.
Protecting the vulnerable(…) VII. Meeting the special needs of Africa (…) VIII.
Strengthening the United Nations‖ (D1):
―To strengthen respect for the rule of law‖ (D1);
To take concerted action against international terrorism, and to accede as
soon as possible to all the relevant international conventions. (D1);
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
134
―To redouble our efforts to implement our commitment to counter the world
drug problem‖ (D1);
―To halve, by the year 2015, the proportion of the world‘s people whose income
is less than one dollar a day and the proportion of people who suffer from
hunger and, by the same date, to halve the proportion of people who are
unable to reach or to afford safe drinking water.‖ (D1);
―To ensure that, by the same date, children everywhere, boys and girls alike,
will be able to complete a full course of primary schooling and that girls and
boys will have equal access to all levels of education.‖ (D1);
―To promote gender equality and the empowerment of women as effective ways
to combat poverty, hunger and disease and to stimulate development that is
truly sustainable.‖ (D1);
―To make every effort to ensure the entry into force of the Kyoto Protocol,
preferably by the tenth anniversary of the United Nations Conference on
Environment and Development in 2002‖ (D1);
―To intensify our collective efforts for the management, conservation and
sustainable development of all types of forests.‖ (D1);
―To respect fully and uphold the Universal Declaration of Human Rights‖ (D1);
―To strive for the full protection and promotion in all our countries of civil,
political, economic, social and cultural rights for all.‖ (D1);
―To strengthen the capacity of all our countries to implement the principles
and practices of democracy and respect for human rights, including minority
rights.‖ (D1);
―To expand and strengthen the protection of civilians in complex emergencies,
in conformity with international humanitarian law.‖ (D1);
―To strengthen international cooperation, including burden sharing in, and
the coordination of humanitarian assistance to, countries hosting refugees
and to help all refugees and displaced persons to return voluntarily to their
homes, in safety and dignity and to be smoothly reintegrated into their
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
135
societies.‖ (D1);
―To give full support to the political and institutional structures of emerging
democracies in Africa.‖ (D1);
―To encourage and sustain regional and subregional mechanisms for
preventing conflict and promoting political stability, and to ensure a reliable
flow of resources for peacekeeping operations on the continent.‖ (D1);
―To reaffirm the central position of the General Assembly as the chief
deliberative, policy-making and representative organ of the United Nations,
and to enable it to play that role effectively.‖ (D1);
―To ensure that the Organization is provided on a timely and predictable basis
with the resources it needs to carry out its mandates.‖ (D1).
Todos os extratos acima constituem ―resoluções‖55. Como se pode verificar,
todas elas são resoluções de intenção, na medida em que estabelecem o quê mas
não o como. ―Como?‖, é aliás, uma pergunta que se poderia colocar no final de
cada uma destas ―resoluções‖, mas à qual não se obteria qualquer resposta, não
obstante elas serem apresentadas como resoluções no âmbito de objetivos chave
que têm como função traduzir ―valores‖ em ―ações‖.
O terceiro discurso identificado como hegemónico foi o discurso da União
Europeia. Como já afirmei ao longo do trabalho, a União Europeia distingue-se
dos outros dois discursos considerados por ser uma organização regional. A
constituição de blocos político-económicos que agregam estados-nação é também
uma forma de globalização política. A história da constituição da União Europeia
evidencia a agregação de interesses económicos a interesses políticos e como os
primeiros foram centrais na constituição da mesma. O início da União Europeia é
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
136
feito através da associação de países com base em critérios económicos e, pela
consulta à história da União Europeia, é facilmente identificável o alargamento
das competências do foro estritamente económico ao foro político-económico e
que a própria evolução da denominação traduz (CECA – Comunidade Europeia
do Carvão e do Aço; CEE – Comunidade Económica Europeia; UE – União
Europeia).
No domínio da cooperação com países terceiros, a União Europeia define a
sua intervenção deste modo:
―Mais de metade dos financiamentos consagrados à ajuda aos países pobres
provêm da UE e dos seus Estados-Membros, que são o principal doador de
ajuda no mundo. A política de desenvolvimento é muito mais do que garantir
o abastecimento em água potável ou a melhorar a rede viária, embora
obviamente este tipo de iniciativas também seja importante. A UE recorre
também ao comércio para fomentar o desenvolvimento, abrindo os seus
mercados às exportações provenientes dos países pobres e incentivando-os a
intensificarem as trocas comerciais entre si.‖56.
Também aqui se encontra, de modo explícito, o papel do financiamento
como promotor da política de desenvolvimento da UE: a primeira afirmação feita
é a do papel da União no financiamento dos países pobres, legitimando, assim,
as orientações políticas que venham a ser privilegiadas, sendo que, a política de
educação da UE para a erradicação da pobreza se
―Constitui [n]uma reorientação dos seus apoios sectoriais no sentido da
redução da pobreza e dos seus compromissos internacionais
recentemente assumidos, em apoio das políticas dos países em
desenvolvimento e em complementaridade com os outros dadores.57‖ (D4)
e
―Tem por objectivo concentrar o conjunto dos seus métodos no apoio à
55 De forma a tornar percetível para o leitor a ideia que estou a defender, selecionei duas ―resoluções‖ – de entre várias no mesmo tom – de cada um dos oito ―objetivos chave‖ identificados. 56 In, http://europa.eu/pol/dev/index_pt.htm 57 O destaque a bold é do documento original.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
137
educação e à formação e apresentar orientações para a Comunidade.58‖
(D4).
Ora, esta ―reorientação dos seus apoios sectoriais‖ e o ―objetivo de
concentrar‖ métodos e ―apresentar orientações‖ evidenciam uma dupla dimensão
política do discurso da Comissão Europeia. Por um lado, uma dimensão política
para dentro, ou seja, organizar os modos de ação dos Estados-membro de forma
concertada. Esta dimensão política para dentro, ou interna, é reforçada pelo facto
de este ser um discurso proveniente da instituição europeia – a Comissão
Europeia – que ―representa os interesses da Europa no seu conjunto (por
oposição aos interesses específicos de cada país)‖59. Por outro lado, é também
patenteada, neste discurso, uma dimensão política para fora, na medida em que
se afirma a complementaridade com outros doadores e também estabelece o
mandato e a capacidade da sua política.
Estas duas dimensões podem ser interpretadas de acordo com a ideia de
Santos (2001) segundo a qual uma das dimensões da globalização política é o
enfraquecimento dos poderes do Estado-nação que o obriga a, paradoxalmente,
―regular a sua própria desregulação‖ (Santos, 2001: 45) o que significa que os
Estados-nação devem ―intervir para deixarem de intervir‖ (Santos, 2001: 45), ou
seja, legislar no sentido de ceder poder a entidades supranacionais. Esta
―regulação da desregulação‖ é visível no discurso da UE tanto na dimensão
política para dentro como na dimensão política para fora: na primeira, ao
estabelecer uma agenda política não só para UE como para cada um dos
Estados-membro – através da expressão da concertação de esforços e
harmonização de iniciativas por parte dos Estados-membro, implicando uma
58 O destaque a bold é do documento original. 59 In http://ec.europa.eu/about/index_pt.htm , consultado em 10/10/2011.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
138
eventual reorientação das suas políticas nacionais de cooperação; na segunda,
ou seja, na dimensão política para fora, ao indicar aos países beneficiários o que
devem privilegiar em termos de decisão e ação política:
―Os países devem, portanto, melhorar a eficiência dos seus sistemas de
ensino. Os países que o conseguem, caracterizam-se por uma combinação de
despesas elevadas no ensino primário, custos unitários razoáveis e uma taxa
de insucesso escolar baixa.
Por conseguinte, os dadores discutirão com os países beneficiários as suas
estratégias de ensino a fim de maximizar os efeitos da ajuda financeira que
poderão consagrar a tais estratégias.‖ (D4).
Para além do estabelecimento do mandato político também se encontram
intenções de governação no documento analisado:
- por um lado, apesar de se reconhecer o papel dos países, são definidas
prioridades pela Comissão que não só são elencadas como são destacadas a
‗bold‘:
―A comunicação reconhece o papel primordial dos países e fixa três
prioridades para o apoio da Comunidade: o ensino básico, em especial o
ensino primário e a formação dos professores, a formação ligada ao
emprego e o ensino superior,60 sobretudo a nível regional.‖ (D4);
- por outro lado, (mas cumulativamente) os países serão recompensados
se seguirem as diretrizes da UE, ou seja se se adaptarem à noção de ‗país como
deve ser‘ que está subjacente ao discurso produzido:
―A comunidade internacional dará preferência aos países que se
mostrarem mais firmemente empenhados no processo da educação para
todos, em especial aqueles que têm em conta as necessidades das
populações mais pobres, que favorecem a escolarização das raparigas e
eliminam os obstáculos de acesso ao ensino como, por exemplo, os
custos associados à educação.‖61 (D4);
60 O destaque a bold é do documento original.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
139
―A adopção, por um país, de um ensino primário gratuito e obrigatório tem
consequências em termos de recursos financeiros suplementares. A
Comunidade deverá, portanto, ajudar os países que demonstraram
determinação em seguir esta via.‖ (D4) .
No ―Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento‖ (D3), apresentado sob a
forma de ―Declaração conjunta do Conselho e dos Representantes dos Governos
dos Estados-Membros reunidos no Conselho, do Parlamento Europeu e da
Comissão sobre a política de desenvolvimento da União Europeia‖, volta a estar
presente a dimensão política para dentro. Começa por afirmar que
―A cooperação para o desenvolvimento é uma competência partilhada entre a
Comunidade Europeia e os Estados-Membros. A política da Comunidade em
matéria de cooperação para o desenvolvimento é complementar das políticas
dos Estados-Membros.‖ (D3)
salientando, então, não só a repartição de responsabilidades, como, sobretudo o
caráter supletivo da política de cooperação da Comunidade face às políticas de
cooperação dos Estados-membros. No entanto, esta suposta complementaridade
é negada imediatamente a seguir quando é afirmado que
―Importa que o nosso [dos Estados-Membros e da Comunidade] esforço de
coordenação e harmonização contribua para uma maior eficácia da ajuda.
Para tal, baseando-se nos progressos realizados nos últimos anos, o
«Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento» oferece, pela primeira vez, uma
visão comum que norteia a acção da UE, tanto a nível dos Estados-Membros
como da Comunidade, no domínio da cooperação para o desenvolvimento.‖
(D3).
Esta ―visão comum‖ reforça o papel político da União Europeia enquanto
bloco político no sentido da constituição de uma unidade forte. Esse reforço
torna-se ainda mais explícito pela adoção do termo ―consenso‖ no título do
61 O destaque a bold é do documento original.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
140
documento, indiciador que ―os textos, eles próprios, são o resultado de lutas e
compromissos. O controlo da representação da política é problemático.‖ (Bowe,
Ball e Gold, 1992: 21). É esta ―visão comum‖ ―consensualizada‖ que permite
passar de ―políticas de cooperação‖, no plural, dos Estados-membros para
―política de cooperação‖, no singular, da União Europeia. Deste modo, esta ―visão
comum‖ que foi ―consensualizada‖ – expressão que lhe atribui força, na medida
em que a legitima através da sua construção partilhada e/ou negociada – é
também uma forma de política para dentro porque constrói uma orientação para
a União e para os Estados-membros numa lógica de unidade de ação. É que o
―consenso‖ não é um documento que fixa apenas uma ―visão comum‖, não se
limita ao mandato, estendendo-se à capacidade e à governação:
―Esta visão comum é explanada na primeira parte da declaração; quanto à
segunda parte, enuncia a política de desenvolvimento da Comunidade
Europeia, em cujo âmbito deve ser concretizada esta visão a nível da
Comunidade, e analisa com mais pormenor as prioridades de acção concreta a
este nível.‖ (D3).
Os discursos hegemónicos aqui considerados, produzidos por três
organizações distintas, têm papéis diferentes no ―ciclo das políticas‖ (Bowe, Ball e
Gold, 1992), abordagem desenvolvida para dar conta da complexidade e
articulação dos processos de elaboração e implementação política. Nesse sentido,
os autores distinguiram três contextos principais de política – contexto de
influência, contexto da produção de texto e contexto da prática –, cuja
representação se constitui num ciclo contínuo dado estarem inter-relacionados
mas não serem lineares nem sequenciais. Segundo Bowe, Ball e Gold (1992: 19),
―O primeiro contexto, o contexto de influência, é onde, normalmente, a política
pública é iniciada. É aqui que os discursos políticos são construídos. É aqui
que as partes interessadas lutam para influenciar a definição e propósitos
sociais da educação, o que significa ser educado. (…) Este contexto de
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
141
influência tem uma relação simbiótica, mas ainda assim difícil, com o
segundo contexto, o contexto da produção do texto político. Porque enquanto
a influência está muitas vezes relacionada com a articulação de interesses
restritos e ideologias dogmáticas, os textos políticos são normalmente
articulados na linguagem de um bem público geral. O seu recurso baseia-se
em afirmações de senso comum populares e razão política. Assim, os textos
políticos representam a política. (…) As políticas são, então, representações
textuais mas também constroem constrangimentos e possibilidades materiais.
As respostas aos textos têm consequências ‗reais‘. Estas consequências são
experienciadas no interior do terceiro contexto, o contexto da prática, a arena
prática à qual a política se refere, à qual é dirigida. O ponto-chave é que a
política não é simplesmente recebida e implementada no interior desta arena,
mas é sujeita a interpretação e é ‗recriada‘.‖.
Num trabalho anterior (Costa, 2001) defendi que estes três contextos
principais têm uma correspondência com os processos de elaboração e
implementação política, ou seja, a produção de ideologias, o estabelecimento da
agenda e a tomada de decisão, apesar de estes poderem coexistir nos diferentes
contextos e níveis políticos. No caso dos discursos aqui em análise, a sua
consideração em temos do cruzamento destas perspetivas é representada no
quadro da página seguinte:
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
142
Ciclo das Políticas
Contexto de influência Contexto de produção do
texto político Contexto da prática
ONU United Nations Millenium Declaration (D1)
United Nations Millenium Declaration (D1)
BM
Estratégia 2020 para a Educação – Aprendizagem para Todos: investir nos conhecimentos e competências das pessoas para promover o desenvolvimento (D2)
Estratégia 2020 para a Educação – Aprendizagem para Todos: investir nos conhecimentos e competências das pessoas para promover o desenvolvimento (D2)
Estratégia 2020 para a Educação – Aprendizagem para Todos: investir nos conhecimentos e competências das pessoas para promover o desenvolvimento (D2)
UE
Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento (D3) Comunicação relativa à Educação e à Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento (D4)
Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento (D3) Comunicação relativa à Educação e à Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento (D4)
Comunicação relativa à Educação e à Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento (D4)
Produção de ideologias
Estabelecimento da agenda
Tomada de decisão
Processo de elaboração política
Quadro 9. Discursos hegemónicos em análise no cruzamento do ciclo das políticas com o processo de elaboração política.
Se a ONU tem um papel, sobretudo, no contexto de influência, e portanto,
na produção de ideologia, não deixa, por esse mesmo motivo, de operar em
termos de estabelecimento da agenda. Isto significa que, através do seu papel de
influência, a ONU não só define que objetivos de desenvolvimento devem ser
fixados para o milénio como também coloca esses mesmos objetivos na agenda
política internacional. Isso é claramente visível, como defenderei mais adiante,
em termos de intertextualidade.
Já o Banco Mundial e a UE agregam a estes contextos um posicionamento
no contexto da prática, o que fica claro na diferença verificada nos discursos em
consideração no que diz respeito à sua intenção, ou não, de governação. De
facto, tanto o Banco Mundial como a União Europeia (sobretudo através da
Comissão), definem o quê, quem, como e porquê, demonstrando a perspicácia de
Roger Dale quando defendeu que a relação dos processos de globalização com a
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
143
educação mostram a existência de uma agenda globalmente estruturada para a
educação (Dale, 2001). Também no que toca às relações entre educação e
desenvolvimento parece haver uma ―agenda globalmente estruturada‖ (Dale,
2001), tornando-se portanto, importante perguntar – com inspiração em Roger
Dale (2001) mas contextualizando no que às questões de educação e
desenvolvimento diz respeito –, ―a quem é ensinado o quê, como, por quem, e em
que circunstâncias?; como, por quem e através de que estruturas, instituições e
processos são definidas estas coisas, como é que são governadas, organizadas e
geridas?‖ (Dale, 2001: 149). É preciso, pois, perceber que efeitos ideológicos estes
discursos têm e que agenda constroem. A consideração desses efeitos é feita de
seguida.
1.1.2. Efeitos ideológicos do discurso – políticos e económicos
Não é consensual a forma como ―ideologia‖ é entendida. Boudon (1986)
expõe várias posições teóricas que, ao longo do tempo, se constituíram desde
que, no final do século XVIII, Destutt de Tracy criou o termo para designar uma
disciplina ―que teria por objeto as ideias, como a mineralogia tem por objeto os
minerais ou a geologia a Terra‖ (Boudon, 1986: 40). Referindo que a ―história da
palavra ideologia mostra que ela foi usada para designar uma ambição, a de
pensar e criar uma base científica62 da ordem social‖ (Boudon, 1986: 41), o autor
sistematiza as diferentes definições do conceito distinguindo-as pela sua
referência, ou não, a critérios de falsidade. Wodak e Meyer (2009) alertam para o
facto de também em ACD, apesar de central, não ser consensual a definição de
ideologia (cf. página 81). Assim, julgo importante esclarecer aqui que uso a noção
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
144
explicitada por Olssen, Codd e O‘Neill (2004: 66), para quem ideologia se refere
―às relações entre sistemas de representação e poder tal como são desigualmente
expressas nos sistemas sociais (…) a sentidos e representações que são parciais,
ou seja, que são verdadeiros mas que ocultam outros sentidos e representações
que são igualmente reais.‖. Assim, os efeitos ideológicos do discurso aqui
considerados referem-se, não à criação de ‗falsas consciências‘, como na aceção
marxista, mas sim a regimes de produção de verdades, de crenças comuns, que
contribuem para a implementação e construção de formas ―corretas‖ de ver o
mundo. Esta consideração é feita deste modo na medida em que o discurso pode
ser
―ideológico no sentido Althusseriano porque pode tornar-se inconsciente, um
‗sistema de representações‘ (Althusser, 1969: 231-6) tomado como garantido.
Esta forma de ideologia é inscrita no discurso em vez de ser simbolizada por
ele, ou seja, não é sinónimo de um conjunto de doutrinas ou de um sistema
de crenças que os indivíduos possam escolher aceitar ou rejeitar.‖ (Olssen,
Codd e O‘Neill, 2004: 65).
Tendo, então, por referência que os efeitos ideológicos – do ponto de vista
político e económico – são aqui considerados por relação ao modo como os
discursos constroem uma noção de verdade e, assim, promovem o bem comum.,
a primeira questão a relevar, porque diretamente relacionada com o que afirmei
no ponto anterior, é o da irreversibilidade do caráter ideológico destes discursos.
Esta irreversibilidade advém, não só do facto de os discursos, nomeadamente os
discursos políticos, serem sempre ideológicos, mas sobretudo pelo lugar de onde
são proferidos. Como afirmei no ponto anterior, os discursos em análise neste
momento são discursos provenientes de instituições com lugares demarcados no
―ciclo das políticas‖ (Bowe, Ball e Gold, 1992) e com um papel no processo de
62 O destaque é do autor.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
145
elaboração política (cf. quadro 9). Isto significa que, inevitavelmente, os discursos
contêm, em si mesmos, uma dimensão ideológica que se caracteriza por defender
e promover uma forma de bem comum, dado que as políticas são sempre
ideologicamente informadas apesar da sua construção retórica lhes atribuir,
quase sempre, um lugar incontestado fundado na promoção de um ‗bem comum‘
universal. Esta suposta universalidade de um ‗bem comum‘ é uma forma de
legitimação do discurso político que não pode deixar de ser lida dentro de uma
narrativa que constrói, ela própria, uma realidade e que concorre com outras
narrativas, também elas construtoras de outras realidades. Magalhães e Stoer
(2006b) caracterizam esses lugares incontestados, enquanto modo de
legitimação, como ―lugares brancos‖ e ―não lugares‖. Os primeiros dizem respeito
a formas de legitimação política que assumem a existência de ―uma instância
ética que os legitima de uma forma inquestionável em termos epistemológicos e
políticos. (…) esse lugar é tão claro que se torna invisível aos próprios olhos
daqueles que o habitam‖ (Magalhães e Stoer, 2006b: 27-28). Já os segundos – os
―não lugares‖ – caracterizam-se pelo facto de os discursos se legitimarem através
de uma suposta neutralidade e recusa de ter em consideração os contextos onde
são produzidos:
―os discursos construídos a partir de ―não lugares‖ também se apresentam
como lugares universais, quer dizer, independentes dos contextos em que se
situam e sobre os quais se debruçam. Os discursos tecnocráticos mostram
muitas destas características: falam como se o ponto a partir do qual dizem
fosse suficientemente neutro para os tornar, de alguma forma,
inquestionáveis.‖ (Magalhães e Stoer, 2006b: 27).
Assim, o discurso da ONU é um claro exemplo de um discurso que se
legitima pela sua produção a partir de um ―lugar branco‖ (Magalhães e Stoer,
2006b):
―1. We, heads of State and Government, have gathered at United Nations
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
146
Headquarters in New York from 6 to 8 September 2000, at the dawn of a new
millennium, to reaffirm our faith in the Organization and its Charter as
indispensable foundations of a more peaceful, prosperous and just world.‖
(D1);
―We reaffirm our commitment to the purposes and principles of the Charter of
the United Nations, which have proved timeless and universal. Indeed, their
relevance and capacity to inspire have increased, as nations and peoples have
become increasingly interconnected and interdependent.‖ (D1);
―We are determined to establish a just and lasting peace all over the world in
accordance with the purposes and principles of the Charter.‖ (D1).
Esta consideração pode ainda ser levada mais longe: a ONU legitima-se, a
si própria, enquanto ‗instituição branca‘ ao iniciar o seu discurso afirmando-se
enquanto instância de valor e importância ética inquestionável e assumindo a
universalidade dos princípios e valores constituintes da Organização das Nações
Unidas e da Carta da Nações Unidas. Essa universalidade dos princípios e
valores da Carta é, então, não só tomada como garantida como também
legitimadora dos discursos da ONU, na medida em que é ela que enquadra o
discurso produzido. É de observar que é esta mesma produção da ONU enquanto
instituição inquestionável e inevitável que encerra o documento. A última
consideração dá conta da indispensabilidade da organização, descrita enquanto
―casa comum de toda a família humana‖ para a consecução de ‗bens comuns‘,
também eles ‗inquestionáveis‘ – paz, cooperação e desenvolvimento:
―32. We solemnly reaffirm, on this historic occasion, that the United Nations is
the indispensable common house of the entire human family, through which
we will seek to realize our universal aspirations for peace, cooperation and
development. We therefore pledge our unstinting support for these common
objectives and our determination to achieve them.‖ (D1).
O uso de expressões como as citadas acima, e que são ―reafirmadas
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
147
solenemente‖, contribui para a construção de um sentido de unidade, de
harmonia e de concórdia, concorrendo assim para construção da ONU enquanto
instituição de valor inultrapassável para o ‗bem comum‘ da humanidade.
Outra marca distintiva deste discurso como ―lugar branco‖ (Magalhães e
Stoer, 2006b) é a seguinte referência feita também no enquadramento,
apropriadamente identificado no documento como ―Valores e Princípios‖ em que
a Declaração do Milénio se ancora:
―we have a collective responsibility to uphold the principles of human dignity,
equality and equity at the global level. As leaders we have a duty therefore to
all the world‘s people, especially the most vulnerable and, in particular, the
children of the world, to whom the future belongs.‖ (D1).
Esta afirmação despoleta uma adesão imediata ao discurso, na medida em que
ninguém negará, não só a importância do papel dos líderes e a responsabilidade
coletiva, como, sobretudo, a referência à dignidade humana, igualdade e
equidade, aos mais vulneráveis e às crianças ―a quem o futuro pertence‖. As
expressões usadas permitem a caracterização deste discurso como ―lugar branco‖
(Magalhães e Stoer, 2006b) na medida em que é um discurso benévolo, com o
objetivo de criação de consensos através da identificação de um ‗bem superior‘,
de uma ética acima de qualquer questionamento ou controvérsia. O mesmo se
pode afirmar quando a ONU define o que considera serem os valores que devem
guiar as relações internacionais no século XXI:
6. We consider certain fundamental values to be essential to international
relations in the twenty-first century. These include:
•Freedom. (…); •Equality. (…); •Solidarity. (…); •Tolerance. (…); •Respect
for nature. (…); •Shared responsibility.63 (…)‖ (D1).
Estes valores, especialmente quando cruzados com os oito objetivos chave
63 O destaque a bold é do documento original.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
148
já enunciados (cf. páginas 131 e 132), enunciam a possibilidade de construção
de um mundo organizado por referência a critérios de justiça e harmonia. Nunca
são referidos os constrangimentos possíveis derivados da ordem político-
económica mundial, da estratificação dos países e do seu posicionamento no
sistema mundial. Mesmo nos momentos em que há referência a problemas – seja
a pobreza, a degradação ambiental, a dívida externa, a insegurança, … – o
discurso é sempre construído por relação à possibilidade de superação desses
mesmos problemas, através de uma postura suave, que oculta as dificuldades de
atingir a harmonia declarada, dado que não tem em conta o conflito e, muito
menos, pondera o papel deste na criação dos problemas enumerados. Por outro
lado, a característica conciliadora do discurso contribui mesmo para esconder
algumas contradições. Por exemplo, como é possível ter como ―valor‖ a
―tolerância‖ defendendo que
―Differences within and between societies should be neither feared nor
repressed, but cherished as a precious asset of humanity‖ (D1)
e, simultaneamente,
―To strive for the full protection and promotion in all our countries of civil,
political, economic, social and cultural rights for all.‖ (D1).
Os direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais que a ONU pretende
defender são de raiz moderna e profundamente ocidentais, ainda que elevados (e
muito por influência da ONU) a valores ‗universais‘. E não estando aqui em
causa o seu valor, per si, a questão que se coloca é como é que, numa perspetiva
de ―tolerância‖ – expressão que já possui em si mesma um valor ideológico – a
ONU concilia, no seu discurso, o relativismo e o etnocentrismo culturais.
Em suma, no seu discurso, a ONU promove a ideologia da harmonia
através de dois mecanismos:
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
149
- ao não ter em consideração, de forma real e clara, a existência de
conflitos que contribuem para os desequilíbrios mundiais, desequilíbrios esses
que são decisivos, porque funcionais, à manutenção da ordem mundial existente;
- ao assumir que os valores e princípios que advoga são partilhados pela
humanidade, ou seja, são universais.
Esta ideologia da harmonia é construída através de um discurso
manifestamente produzido a partir de um ―lugar branco‖ (Magalhães e Stoer,
2006b) e que se caracteriza por ser um discurso suave, benigno, conciliador e
(supostamente) axiologicamente neutro.
O discurso da UE tem também características de discurso elaborado a
partir de um ―lugar branco‖ (Magalhães e Stoer, 2006b), sobretudo no documento
―Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento‖, que se constitui numa declaração
conjunta do Conselho e dos representantes dos governos dos Estados-membros,
do Parlamento Europeu e da Comissão sobre a política de desenvolvimento da
UE. O facto de ser uma Declaração não é despiciendo para o tipo de discurso que
o documento produz: também o documento da ONU é uma Declaração, ou seja,
ambos são discursos provenientes do mesmo género (Fairclough, 2003 e 2009),
ou seja, do mesmo modo semiótico de agir. É por essa razão que este discurso, à
semelhança da Declaração do Milénio das Nações Unidas, se apresenta num
estilo de declaração de intenções, embora de modo mais concretizador
relativamente a este último, dado o posicionamento da UE no ―ciclo das políticas‖
(Bowe, Ball e Gold, 1992). Atente-se nestas afirmações constantes no documento:
―A luta contra a pobreza à escala mundial não é apenas uma obrigação moral:
contribuirá igualmente para a construção de um mundo mais estável, mais
pacífico, mais próspero e mais justo, que reflicta a interdependência entre os
países mais ricos e os países mais pobres — um mundo em que não
permitamos que cada hora veja morrerem de pobreza 1200 crianças, nem
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
150
fiquemos indiferentes enquanto mil milhões de seres humanos lutam para
sobreviver com menos de um dólar por dia e o VIH/SIDA, a tuberculose e a
malária ceifam a vida de mais de 6 milhões de pessoas por ano.‖ (D3);
―Reafirmamos que o desenvolvimento é em si mesmo um objectivo essencial; e
que o desenvolvimento sustentável engloba a boa governação e os direitos
humanos, bem como vertentes políticas, económicas, sociais e ambientais.‖
(D3);
―13. A parceria e o diálogo da UE com os países terceiros visará a promoção de
valores comuns, a saber, o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades
fundamentais, a paz, a democracia, a boa governação, a igualdade entre os
sexos, o Estado de direito, a solidariedade e a justiça. A UE está firmemente
empenhada num multilateralismo efectivo em que todas as nações do mundo
partilhem a responsabilidade do desenvolvimento.‖ (D3).
Encontram-se, aqui, as mesmas características que me levaram a
qualificar o discurso da ONU como construtor de uma ideologia da harmonia.
Também nesta Declaração são ocultadas qualquer tipo de referências ao papel
que a própria UE tem, enquanto bloco político-económico dominante na cena
internacional, nomeadamente no que às questões Norte-Sul diz respeito,
optando-se por realçar o domínio do desejo de um mundo harmonioso. O
discurso é construído em função de um desejo de prosperidade, justiça e paz que
legitima o papel da UE mas que nunca equaciona esse mesmo papel na
existência de disfunções como a pobreza e outras que, não sendo nomeadas, são
subentendidas por relação a esse desejável. Portanto, encontra-se aqui também
um discurso benigno, perpassado por uma neutralidade axiológica, que tem
como função a adesão imediata e acrítica de um qualquer leitor, ao que poderiam
ser as ‗intenções‘ benévolas da UE.
Esta similaridade com o discurso da ONU esgota-se, no entanto, aqui.
Devido ao facto de ser proveniente de uma organização que, para além da
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
151
produção de ideologia e do contexto de influência, tem também o papel de
estabelecimento da agenda e contexto da prática (cf. quadro 9), o discurso neste
documento assume também características de ―não lugar‖ (Magalhães e Stoer,
2006b), ou seja, de uma neutralidade que advém do enunciar da competência
técnica que a Comissão Europeia reconhece a si própria, nomeadamente, quando
elenca o ―Papel específico e vantagens comparativas da Comunidade‖ (D3):
―46. No âmbito das competências que lhe foram conferidas pelo Tratado, cabe
à Comissão desempenhar um vasto papel no domínio do desenvolvimento. A
sua presença mundial, a promoção da coerência das suas políticas de
desenvolvimento, a sua competência e conhecimentos específicos, o seu
direito de iniciativa a nível comunitário, o modo como facilita a coordenação e
a harmonização e o seu carácter supranacional assumem especial significado.
A Comunidade pode distinguir-se pela sua vantagem comparativa e valor
acrescentado, que permitem que se estabeleça uma complementaridade com
as políticas bilaterais dos Estados-Membro e de outros doadores
internacionais.‖ (D3);
―47. Em nome da Comunidade, a Comissão procurará representar uma mais-
valia desempenhando os seguintes papéis:
―48. Em primeiro lugar, uma presença mundial. A Comissão está presente,
como parceiro de desenvolvimento, em mais países do que os Estados-
Membros, mesmo os de maiores dimensões, sendo, em alguns casos, o único
parceiro da UE cuja presença se faz sentir de uma forma significativa. Tem
uma política comercial comum, programas de cooperação que abrangem
praticamente todos os países e regiões em desenvolvimento e conduz o diálogo
político em conjunto com Estados-Membros. Beneficia do apoio de uma vasta
rede de delegações, o que lhe permite dar resposta a uma grande diversidade
de situações, inclusive nos Estados mais frágeis de que os Estados-Membros
se retiraram.‖ (D3);
―49. Em segundo lugar, com o apoio dos Estados-Membros, garante a
coerência das políticas de desenvolvimento nas acções comunitárias,
especialmente nos casos em que as políticas comunitárias têm um impacto
significativo nos países em desenvolvimento, nomeadamente a nível do
comércio, da agricultura e pescas e das políticas de migração, promovendo
este princípio de uma forma mais alargada. Com base nas suas próprias
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
152
experiências e na sua experiência exclusiva no domínio do comércio, a
Comunidade dispõe de uma vantagem comparativa em termos de prestação de
apoio aos países terceiros por forma a integrar o comércio nas estratégias
nacionais de desenvolvimento e a apoiar a cooperação regional, sempre que
possível.‖ (D3);
―50. Em terceiro lugar, promove as melhores práticas de desenvolvimento. A
Comissão, em conjunto com os Estados-Membros, fomentará o debate
europeu sobre o desenvolvimento e incentivará as melhores práticas de
desenvolvimento, como sejam o apoio orçamental directo e a ajuda sectorial,
sempre que adequado, o desligamento da ajuda, uma abordagem baseada em
resultados e na desconcentração da aplicação prática da assistência.
Melhorando as suas capacidades analíticas, dispõe de um potencial que lhe
permite servir de fórum intelectual em determinadas questões ligadas ao
desenvolvimento.‖ (D3);
―51. Em quarto lugar, contribui para facilitar a coordenação e a
harmonização. A Comissão desempenhará um papel activo na implementação
da Declaração de Paris sobre a eficácia da ajuda e constituirá uma das forças
impulsionadoras para promover o cumprimento, por parte da UE, dos
compromissos assumidos em Paris em termos de apropriação, alinhamento,
resultados da harmonização e responsabilização mútua. A Comissão
continuará a promover os 3 cês — coordenação, complementaridade e
coerência — como contributo da UE para uma agenda internacional mais
vasta em prol da eficácia da ajuda. A Comunidade apoiará também uma maior
coordenação da assistência em caso de catástrofe e do nível de preparação
para dar resposta a essas situações, no contexto dos sistemas e mecanismos
internacionais existentes e do papel de liderança da ONU na garantia da
coordenação internacional.‖ (D3);
―52. Em quinto lugar, constitui um executante nos domínios em que a
dimensão e a massa crítica assumem especial importância.‖ (D3).
Estas vantagens de que a Comissão se reclama enquanto promotora do
desenvolvimento resultam de 2 tipos de fatores: o papel da UE enquanto bloco
político-económico – sobretudo com reflexo na sua ―presença mundial‖ e na sua
influência nas políticas comerciais que afetam os países em desenvolvimento –; o
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
153
seu lugar de potência na cena internacional que lhe dá o estatuto de ‗expertise‘
em processos de desenvolvimento. Neste sentido, este é um discurso que constrói
um modelo de desenvolvimento, que tem como função ideológica a formação de
opinião sobre o que é o desenvolvimento, quais são os fatores promotores de
desenvolvimento e o que se deve fazer para o alcançar. À ideologia da harmonia
junta-se, então, uma ideologia desenvolvimentista, que se caracteriza pela
definição das áreas e setores que contribuem para o desenvolvimento em ordem
a alcançar a harmonia que o discurso começa por referir. Essas áreas e setores
estão definidas no documento na sua ―Parte II: A política de desenvolvimento da
Comunidade Europeia‖ (D3) que
―define a política renovada da Comunidade Europeia para o desenvolvimento,
que põe em prática a visão europeia sobre o desenvolvimento definida na
primeira parte no que respeita aos recursos afectados à Comunidade, em
conformidade com o Tratado. Clarifica a mais-valia e o papel da Comunidade e
a forma como os objectivos, princípios, valores, coerência das políticas de
desenvolvimento e compromissos estabelecidos nesta visão comum serão
postos em prática a nível comunitário. Identifica prioridades que se reflectirão
em programas de cooperação para o desenvolvimento eficazes e coerentes a
nível dos países e das regiões. Servirá de orientação ao planeamento e
implementação da componente de ajuda ao desenvolvimento de todos os
instrumentos e estratégias comunitárias de cooperação com países terceiros‖
(D3).
Esta ideologia desenvolvimentista pressupõe, então, a modelação dos
processos de desenvolvimento à imagem do pensamento ocidental. Não obstante
ser referido o propósito de ―Atender às necessidades dos países parceiros‖ (D3)
enquanto título enquadrador das áreas a apoiar, logo de seguida se afirma que
―71. Dando resposta às necessidades manifestadas pelos países parceiros, a
Comunidade desenvolverá a sua acção predominantemente nos seguintes
domínios, considerando-se que alguns deles constituem a sua vantagem
comparativa:‖ (D3),
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
154
ou seja, o discurso transforma os países parceiros em países clientes, na medida
em que a Comissão presta um serviço de consultadoria onde identifica as
―vantagens comparativas‖. Esses domínios de ação comunitária que serão de
―vantagem comparativa‖ são:
―Comércio e integração regional (…); Ambiente e gestão sustentável dos
recursos naturais (…); Infra-estruturas, comunicações e transportes (…); Água
e energia (…); Desenvolvimento rural, ordenamento do território, agricultura e
segurança alimentar (…); Governação, democracia, direitos humanos e apoio
às reformas económicas e institucionais (…); Prevenção de conflitos e
fragilidade dos Estados (…); Desenvolvimento humano (…); Coesão social e
emprego (…)‖ (D3).
A pluralidade de áreas referenciadas espelha os dois efeitos ideológicos – a
ideologia da harmonia e a ideologia desenvolvimentista – que, conforme tenho
vindo a argumentar, emanam deste discurso, e reflete até a articulação entre os
dois: é que a delimitação do campo do desejável, produzido pelo discurso, centra-
se na ideia da consecução de um mundo sem desfasamentos e diferenças
económicas e de poder porque segue um modelo de desenvolvimento ocidental. A
consideração do que significa este modelo de desenvolvimento ocidental será
abordada no ponto referente aos significados que o discurso constrói.
As diferenças discursivas entre o ―Consenso Europeu sobre o
Desenvolvimento‖ (D3) e a ―Comunicação relativa à Educação e à Formação no
contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento‖ (D4) são
abundantes, fator para o qual concorre o facto de serem documentos de género
(Fairclough, 2003 e 2009) diferente. A ―Comunicação relativa à Educação e à
Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento‖
(D4), emanada da CE – órgão executivo da UE –, é um documento que tem como
objetivo ―apresentar um quadro global para os objectivos, as prioridades e os
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
155
métodos da Comunidade e dos seus Estados-membros‖ (D4) e ―Constitui uma
reorientação dos seus apoios sectoriais‖ (D4). Assim, ao contrário do ―Consenso
Europeu do Desenvolvimento‖ (D3) que se constitui numa ―Declaração conjunta‖
e, portanto, enuncia visões comuns de vários órgãos da UE (Conselho,
representantes dos governos, Parlamento Europeu, Comissão sobre a política de
desenvolvimento da UE), o documento agora em causa (D4) tem a forma de
―Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu‖ (D4). Basta
atentar nos títulos dos documentos para perceber diferentes graus de
determinação que cada um deles enuncia: ―Declaração conjunta do‖ remete para
um género discursivo enunciativo consensualizado, ou pelo menos negociado,
entre os órgãos da UE indicados; ―Comunicação da Comissão ao Conselho e ao
Parlamento‖ indicia um género discursivo prescritivo de um órgão da UE a
outros. Sendo, então, formas semióticas de agir distintas, o discurso constrói-se
de modo, também, diferente.
Neste documento (D4) ressalta a utilização de formas verbais compostas,
de voz ativa – ―deverão melhorar‖ (D4); ―deverão ser tidas em conta‖ (D4) –, cuja
função semiótica é a de prescrever ações. Para além desta forma, é também de
realçar o modo afirmativo como é estabelecida a relação entre educação / luta
contra a pobreza / desenvolvimento:
―A educação e a formação desempenham um papel essencial na luta contra a
pobreza e no desenvolvimento‖ (D4);
―A educação e a formação exercem um impacto positivo importante sobre a
saúde, a participação social e política, a igualdade de oportunidades
entre os sexos, as taxas de crescimento económico, os rendimentos e a
produtividade, em especial no âmbito de uma redistribuição equitativa
dos frutos deste crescimento.‖64 (D4);
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
156
―Neste contexto, a educação fornece uma base de competências que facilita o
acesso ao emprego, especialmente para os que não prossigam os estudos no
secundário.‖ (D4);
―a educação exerce efeitos positivos em termos de boa governação‖65 (D4).
Este modo afirmativo caracteriza-se pelo uso de expressões como ―a
educação e a formação desempenham‖, ―a educação e a formação exercem‖, ―a
educação fornece‖ e é conjugado com um modo positivo: ―papel essencial‖,
―impacto positivo‖, ―base de competências que facilita‖, ―efeitos positivos‖. Esta
conexão entre um modo afirmativo e um modo positivo assegura e declara o
caráter benéfico da educação sobre a luta contra a pobreza e na promoção do
desenvolvimento. Neste sentido, constrói e naturaliza uma visão do papel da
educação nestes processos: a educação tem uma função ortopédica nos
processos de desenvolvimento já que é a prescrição receitada para ‗curar‘ a
‗doença‘ da pobreza e do subdesenvolvimento.
Este é, então, um discurso marcado pela ideologia da educação ortopédica,
no sentido em que enuncia o modo de corrigir e evitar a pobreza, entendida
enquanto deformidade do desenvolvimento, modo esse que assenta na educação.
A legitimação desta ideologia é feita pela construção do discurso a partir de um
―não lugar‖ (Magalhães e Stoer, 2006), ou seja, a partir de um lugar
inquestionável, mas agora de um lugar ‗tecnicamente inquestionável‘, e não,
como no caso do discurso da ONU, ‗eticamente inquestionável‘. Esta relação,
entre a ideologia da educação ortopédica e o ―não lugar‖ (Magalhães e Stoer,
2006) como modo de legitimação discursiva e ideológica, é evidente no seguinte
extrato:
64 O destaque a bold é do documento original. 65 O destaque a bold é do documento original.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
157
―Simultaneamente, provou-se que não é possível o desenvolvimento do ensino
primário e o crescimento das economias sem um sistema de educação que
forme tanto os professores como um elevado número de estudantes para além
do ciclo elementar, incluindo os estudos universitários.‖ (D4)
A utilização do termo ―provou-se‖ reforça o caráter afirmativo e positivo do
discurso, referidos anteriormente, através do efeito técnico, da
inquestionabilidade resultante da ‗prova‘ que, supostamente, atribui
neutralidade, dado que o conhecimento ‗provado‘ é um conhecimento neutro e,
por conseguinte, não ideológico. O facto de não haver referência a como, onde,
quando, quem e por que meios se provou poderia causar reticências, mas tem o
efeito contrário: a abstração na enunciação da prova atribui-lhe universalidade.
A declaração do que se ―provou‖ reforça o meu argumento de que estamos em
presença de uma ideologia da educação ortopédica: à semelhança dos extratos
anteriores, também aqui a educação é a solução para o desenvolvimento, neste
caso identificado enquanto crescimento económico.
Também o discurso do Banco Mundial se reveste de características mais
identificáveis com discursos produzidos a partir de ―não lugares‖ (Magalhães e
Stoer, 2006b) e enquadráveis na ideologia da educação ortopédica.
À semelhança do discurso anterior (D4), também este (D2), constrói a sua
legitimação a partir de um lugar ‗tecnicamente inquestionável‘, estabelecido
através do recurso a um ciclo argumentativo composto por três dimensões: as
mudanças sociais identificadas, a ‗expertise‘ do Banco decorrente da sua
experiência de trabalho na área, e os estudos e estatísticas referidas.
As mudanças sociais legitimam o discurso do BM na medida em que
conferem o contexto da ação, que é, não só descrito, mas ativamente produzido
pelo discurso através do recurso a orações curtas, afirmativas e que se
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
158
encadeiam umas nas outras:
―Estamos a viver num período de extraordinária transformação.‖ (D2);
―A expansão e a melhoria da educação são fundamentais para a adaptação à
mudança e para o enfrentamento destes desafios.‖ (D2);
―Além disso, o panorama global para a educação está a mudar. Um conjunto
de mudanças é a demografia: taxas de fertilidade mais reduzidas estão a
alterar os perfis populacionais das populações muito jovens, típicas de muitos
países de baixo rendimento, para ―explosões juvenis‖, mais comuns nos países
de rendimentos médios e cada vez mais concentradas nas áreas urbanas. Ao
mesmo tempo, o aumento impressionante de novos países de rendimento
médio tem intensificado o desejo de muitas nações de aumentar a sua
competitividade mediante a criação de novas forças de trabalho capacitadas e
ágeis. Há um outro conjunto de alterações que é tecnológico: avanços incríveis
nas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e outras tecnologias estão
a mudar os perfis dos empregos requeridos pelos mercados de trabalho, ao
mesmo tempo a oferecer possibilidades de aprendizagem acelerada e melhor
gestão dos sistemas de educação.‖ (D2).
A ‗expertise‘ do BM atribui-lhe autoridade institucional, constituída pelo seu
papel no ―ciclo das políticas‖ (Bowe, Ball e Gold, 1992) discutido anteriormente:
―O Grupo do Banco tem efectuado substanciais contributos para o desenvolvi-
mento da educação em todo o mundo, ao longo dos últimos 49 anos.‖ (D2);
―Desde o lançamento de um projecto de construção de escolas secundárias na
Tunísia, em 1962, o Banco Mundial investiu já, globalmente, 69 mil milhões
de dólares na educação, através de mais de 1.500 projectos. O apoio
financeiro do Banco Mundial foi subindo ao longo da década, desde que as
MDG foram estabelecidas, atingindo mais de $5 mil milhões em 2010. Desde
2001, quando a Sociedade Financeira Internacional (IFC) concentrou a sua
atenção no sector da educação, já ali investiu $500 milhões, em 46 projectos
privados de educação.‖ (D2);
―O Grupo Banco Mundial tem apoiado este esforço – não apenas com
financiamento e assistência técnica, mas também com ideias.‖ (D2).
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
159
Este modo de legitimação é ainda reforçado pela referência a ―consultas‖ feitas e
à experiência do BM no mundo e junto de outros interlocutores:
―Esta estratégia reflecte as melhores percepções e conhecimentos sobre o que
funciona na Educação, a partir de consultas de âmbito mundial aos governos,
professores, estudantes, pais, sociedade civil e parceiros no desenvolvimento
em mais de 100 países. Somos gratos a todos os participantes que se
reuniram para dar forma a esta estratégia com a sua energia, as suas ideias e
as suas experiências. Na realidade, esta é a estratégia deles. Esperamos
trabalhar com eles para alcançar a Aprendizagem para Todos.‖ (D2).
Aqui, a legitimação articula a experiência com a negociação: a menção a
―parceiros‖ que contribuíram com ―ideias e as suas experiências‖, que deram
forma a esta estratégia, torna-os argumentativamente coautores ao ponto de esta
ser ―a estratégia deles‖. No entanto, logo de seguida, o BM afirma que ―espera‖ vir
a ―trabalhar com eles‖ havendo, então, uma inflexão do discurso para o domínio
do desejável ou da ―esperança‖ e da junção, ao invés da partilha e coautoria,
inflexão esta que é mais concordante com a menção feita ao modo como o Banco
desenvolveu a sua atividade desde a última estratégia adotada e que atribui o
estatuto de ―cliente‖ aos países intervencionados:
―Tornou-se mais próximo dos países clientes graças à descentralização das
suas operações, tendo agora 40 por cento do pessoal nas representações
nacionais.‖ (D2).
Já a referência a estudos, números e estatísticas emprestam uma
objetividade à análise que ‗fecha‘ o ciclo argumentativo. O discurso construído por
referência a critérios de objetividade e cientificidade fundamenta a intervenção
passada do BM e reforça a análise efetuada do contexto de ação, tendo assim
uma dupla função legitimadora – fortalecer as duas dimensões já citadas do ciclo
argumentativo e sustentar a estratégia proposta pelo Banco:
―O número de crianças em idade escolar, não escolarizadas, caiu de 106
milhões em 1999 para 68 milhões em 2008. Mesmo nos países mais pobres,
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
160
as taxas médias de matrícula no ensino primário subiram acima de 80 por
cento e as taxas de conclusão, acima de 60 por cento. E entre 1991 e 2007, o
rácio de raparigas para rapazes na educação primária e secundária, nos
países em desenvolvimento, melhorou de 84 para 96 por cento, com ganhos
ainda mais elevados no Médio Oriente e Norte de África e na Ásia Meridional.‖
(D2);
―pesquisas recentes mostram que o nível de competências de uma força de
trabalho – medido pelos resultados de avaliações internacionais de
estudantes, como o Programa Internacional para a Avaliação de Alunos (PISA)
e as Tendências Internacionais no Estudo da Matemática e das Ciências
(TIMSS) – prevêem taxas de crescimento económico muito mais elevadas que
as médias de escolaridade. Por exemplo, um aumento de um desvio-padrão
nas notas de leitura e matemática dos estudantes (equivalente
aproximadamente a uma subida do ranking de desempenho de um país, da
mediana para os 15 por cento do topo), está associado a um aumento muito
elevado de 2 pontos percentuais no crescimento anual per capita do GDP.‖
(D2);
―Nalguns países estudos recentes indicam que de 25% a 50% dos jovens
formados no ensino primário não conseguem ler uma frase simples. As
avaliações internacionais de estudantes revelam também grandes lacunas no
conhecimento entre a maioria dos países em desenvolvimento e os membros
da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).‖
(D2);
―A ciência emergente do desenvolvimento cerebral mostra que para se
desenvolver adequadamente, o cérebro em crescimento de uma criança
precisa ser acalentado muito antes do início do ensino escolar formal, aos 6
ou 7 anos.‖ (D2).
O documento em análise do BM ―estabelece o programa do Grupo Banco
Mundial para alcançar ―Educação para Todos‖ no mundo em desenvolvimento,
ao longo da próxima década.‖ (D2) e, logo no título, se antevê o cariz de
funcionalidade atribuído à educação: ―Aprendizagem para todos – investir nos
conhecimentos e competências das pessoas para promover o desenvolvimento‖. O
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
161
uso da preposição simples ―para‖ exprime a intenção e finalidade da
―aprendizagem para todos‖: a educação tem o papel de promotora do
desenvolvimento. Este modo de relação entre educação e desenvolvimento,
construído numa lógica de funcionalidade da primeira face à segunda, é expressa
em vários momentos do documento:
―Em suma, os investimentos em educação de qualidade produzem
crescimento económico e desenvolvimento mais rápidos e sustentáveis.‖ (D2);
―Indivíduos instruídos têm mais possibilidade de conseguir emprego, de
receber salários mais altos e ter filhos mais saudáveis.‖ (D2);
―É por isto que a nossa Estratégia para o Sector da Educação 2020
estabelece o objectivo de alcançar a Aprendizagem para Todos.66
Aprendizagem para Todos significa a garantia de que todas as crianças e
jovens - não apenas os mais privilegiados ou os mais inteligentes - possam
não só a escola, mas também adquiram o conhecimento e as habilidades de
que necessitam para terem vidas saudáveis, produtivas e obterem um
emprego significativo.‖ (D2);
―A mente humana é que torna possíveis todos os outros resultados de
desenvolvimento, desde os avanços na saúde e inovação agrícola à construção
de infra-estruturas e ao crescimento do sector privado. Para que os países em
desenvolvimento tirem pleno partido destes benefícios – aprendendo com o
manancial de ideias no nível global e através da inovação – é preciso que
possam aproveitar o potencial da mente humana. E não há melhor ferramenta
que a educação para o fazer‖ (D2);
―A nova estratégia centra-se na aprendizagem por uma simples razão: o
crescimento, desenvolvimento e redução da pobreza dependem dos
conhecimentos e qualificações que as pessoas adquirem, não no número de
anos que passaram sentados numa sala de aula‖ (D2);
―No nível pessoal, embora um diploma possa abrir as portas para um
emprego, são as competências do trabalhador que determinam a sua
66 O destaque a bold é do documento original.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
162
produtividade e capacidade para se adaptar a novas tecnologias e
oportunidades. Conhecimento e qualificações contribuem também para que
um indivíduo possa ter uma família saudável e instruída, e participe na vida
cívica.‖ (D2).
Colocar sobre a educação, e mais concretamente sobre a aquisição de
conhecimentos de cada indivíduo, a responsabilidade de crescimento económico,
de desenvolvimento, de redução da pobreza, de produtividade do trabalhador e
da inovação é construir a visão de que a ―escola pode compensar a sociedade‖,
reforçando, assim, a ideologia da educação ortopédica defendida por outras
organizações desta ordem de discurso hegemónica.
A caracterização da ordem de discurso hegemónica, do ponto de vista
ideológico, pode ser sintetizada de acordo com o seguinte quadro:
Ideologia da harmonia
Ideologia desenvolvimentista
Ideologia da educação ortopédica
Características principais
- discurso suave - discurso conciliador
- discurso enunciativo - discurso prescritivo - discurso afirmativo
Racionalidade discursiva
- inquestionabilidade ética
- neutralidade axiológica
- inquestionabilidade técnica
- racionalidade ocidental moderna
- inquestionabilidade técnica
- prova e objetividade
Metáfora ―Prosperidade, justiça e
paz‖
―O desenvolvimento é, em si mesmo, um objetivo essencial‖
―A educação pode compensar a sociedade‖
“Lugar branco” (Magalhães e Stoer,
2006b) “Não lugar” (Magalhães e Stoer, 2006b)
Lugares de legitimação política
Quadro 10. Caracterização ideológica dos discursos hegemónicos em análise.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
163
1.2. Do discurso contra-hegemónico
1.2.1. Matriz social do discurso: politicidade do discurso
A atribuição de ‗político‘ ao discurso do Comércio Justo tem que ser
contextualizada no alargamento da definição de política, que como já referi, é
característico dos novos movimentos sociais. Para tal, importa, antes de mais,
clarificar em que sentido é que o movimento Comércio Justo pode ser
considerado um novo movimento social – por contraponto aos ‗velhos‘
movimentos sociais –, tendo por referência as características já apontadas (cf.
páginas 122-123): novidade de atores sociais; aumento da escala de ação; novas
formas de organização; novas formas de ação e novos temas.
Relativamente à primeira característica, o Comércio Justo é um
movimento que se caracteriza por um ecletismo no que toca aos atores. Tal como
é afirmado pela World Fair Trade Organization (WFTO) o movimento é constituído
por uma cadeia que interliga produção, distribuição, comercialização e consumo,
sendo que, em cada um destes momentos, há um conjunto de atores que
contribui para o desenvolvimento do movimento:
―Fair Trade is a trading partnership‖ (D7);
―Fair Trade organizations have a clear commitment to Fair Trade as the
principal core of their mission. They, backed by consumers, are engaged
actively in supporting producers‖ (D7);
―World Shops, or Fair Trade shops as they are called in other parts in the
world, have played (and still play) a crucial role in the Fair Trade movement.
They constitute not only points of sales but are also very active in
campaigning and awareness-raising.‖ (D8)
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
164
―The Fair Trade movement is the combined efforts of Fair Trade organizations,
campaigners and businesses to promote and activate the Fair Trade principles
of empowering producers, making trade more fair, and sustainable
livelihoods.‖ (D11)
A ideia de um elo ou de uma cadeia, aparece logo na definição do
movimento que se autoidentifica como uma ―parceria‖, constituída pelas
organizações que compõem o movimento, pelos produtores e pelos consumidores.
Diversos entre si, estes elos são também diversos em si mesmos, dando assim
um caráter híbrido ao movimento, em termos de identidade social. Se os
diferentes tipos de atores terão diversas motivações para se constituírem
enquanto parte deste movimento, dentro de cada um destes tipo a diversidade de
motivações e razões será exponencial, não sendo possível identificar um
marcador de classe social na identificação do movimento.
A própria história do movimento demonstra essa hibridez que lhe é
constitutiva desde o seu início:
―It all started in the United States, where Ten Thousand Villages (formerly Self
Help Crafts) began buying needlework from Puerto Rico in 1946, and SERRV
began to trade with poor communities in the South in the late 1940s. (…) The
earliest traces of Fair Trade in Europe date from the late 1950s when Oxfam
UK started to sell crafts made by Chinese refugees in Oxfam shops. (…) At the
same time, Dutch third world groups began to sell cane sugar with the
message ―by buying cane sugar you give people in poor countries a place in
the sun of prosperity‖. (…) During the 1960s and 1970s, Non-Governmental
Organizations (NGOs) and socially motivated individuals in many countries in
Asia, Africa and Latin America perceived the need for fair marketing
organizations which would provide advice, assistance and support to
disadvantaged producers. (…) Parallel to this citizens‘ movement, the
developing countries were addressing international political fora such as the
second UNCTAD conference (United Nations Conference on Trade and
Development) in Delhi in 1968, to communicate the message ―Trade not Aid‖.
(D8).
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
165
Esta característica transclassista do movimento contribui também para
um alargamento da escala de ação que não se confina, apenas, ao local dados os
objetivos de ação do movimento:
―Fair Trade today is a truly global movement. Over a million small-scale
producers and workers are organized in as many as 3,000 grassroots
organizations and their umbrella structures in over 50 countries in the South.
Their products are sold in thousands of World-shops or Fair Trade shops,
supermarkets and many other sales points in the North and, increasingly, in
sales outlets in the Southern hemisphere.‖ (D8)
―During its history of over 60 years, Fair Trade has developed into a
widespread movement. Thanks to the efforts of Fair Trade Organizations
worldwide, Fair Trade has gained recognition among politicians and
mainstream Businesses‖. (D8)
―The movement is engaged in debates with political decision-makers in the
European institutions and international fora‖ (D8)
Este alargamento da escala de ação existe, então, também ao nível da
consideração e interação com atores políticos supranacionais, entendidos em
termos de novas formas de Estado e empresas multinacionais, e que, segundo
Santos (2002), são os principais atores da globalização económica. Este
alargamento da escala influencia também as formas de ação do movimento, na
medida em que o impacto procurado tem que ter em conta as arenas em que o
movimento intervém, tendo por referência que
―Fair Trade organizations (…) are engaged actively in supporting producers,
awareness raising and in campaigning for changes in the rules and practice of
conventional international trade.‖ (D8)
Deste modo, as formas de ação desmultiplicam-se:
- as ―Lojas do Mundo‖ ou ―Lojas de Comércio Justo‖, referidas num extrato
acima, são a face mais visível de ação do movimento, apesar de, paradoxalmente,
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
166
poderem não ser associadas a uma forma de ação de um movimento social dada
a vertente comercial das mesmas. No entanto, se se tiver em conta que as
organizações de CJ estão ―ativamente empenhadas em apoiar os produtores‖ e
em ―mudar as regras e prática do comércio internacional convencional‖, a
existência destas lojas tem que ser considerada uma forma de ação, na medida
em que essas lojas se traduzem no elemento de mediação entre o produtor e o
consumidor, sendo também ―muito ativas em campanhas e conscencialização‖;
- os ―debates com os decisores políticos em instituições europeias e fóruns
internacionais‖, enquanto ação de lobbying político e que exemplifica os novos
modos de ação dos NMS por relação com os novos contextos sócio-políticos em
que se inserem, ou seja, o aproveitamento de margens e espaços de ação criados
pelas novas estruturas e práticas sociais. O movimento Comércio Justo criou
mesmo uma organização dedicada ao lobbying e também à advocacy:
―An important tool was the establishment of a joint Advocacy Office in
Brussels, which focuses on influencing (European) policy-makers. It is
supported, managed and funded by the whole movement, represented in FLO,
WFTO, NEWS and EFTA.‖ (D7).
- o recurso a ações mediáticas, corporizadas num evento que acontece no
mesmo dia, em todo o mundo, sobre o mesmo tema:
―In 1996, NEWS! established the European World Shops Day as a Europe-
wide day of campaigning on a particular issue, often with a goal at the
European level. This initiative has been taken up by WFTO, which brought it
to a worldwide level. The first World Fair Trade Day, which involves the
worldwide Fair Trade movement, was celebrated on May 4, 2002. Now World
Fair Trade Day takes place every year on the second Saturday of May and has
its own Website: www.WFTDay.info.‖ (D8)
Todas estas ações, nomeadamente pela sua organização supranacional,
são possíveis pela existência de estruturas de coordenação que o movimento criou
ao longo do seu tempo de existência:
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
167
―From the mid 70s, Fair Trade Organizations worldwide began to meet
informally in conferences every couple of years. By the mid 80s there was a
desire to come together more formally and the end of the decade saw the
foundation of the European Fair Trade Association (EFTA, an association of
the 11 largest importing organizations in Europe) in 1987 and the
International Fair Trade Association (IFAT), now the World Fair Trade
Organization (WFTO), in 1989. The organizations that are a part of WFTO vary
greatly. They represent the whole chain from producer to sale and also include
support organizations such as Shared Interest, which provides financial
services and support to produces.‖ (D8)
Esta ‗necessidade‘ de criação de estruturas de coordenação a trabalhar em
rede é justificada no sentido de permitir a amplificação do movimento dada a
profusão de arenas, modos de ação e atores envolvidos:
―Networking between Fair Trade Organizations is crucial to their success. All
over the world, networks have been established. Regional networks include
the WFTO Asia (formerly Asia Fair Trade Forum - AFTF), Co-operation for Fair
Trade in Africa (COFTA), WFTO Latin America (formerly the Association Latino
Americana de Commercio Justo - IFAT LA) and WFTO Europe (formerly - IFAT
Europe). National networks include Ecota Fair Trade Forum in Bangladesh,
Fair Trade Group Nepal, Associated Partners for Fairer Trade Philippines, Fair
Trade Forum India, Kenya Federation for Alternative Trade (KEFAT), etc.. FLO,
WFTO, NEWS! and EFTA started to meet in 1998 with the aim to enable these
networks and their members to cooperate on important areas of work, such as
advocacy and campaigning, standards and monitoring of Fair Trade.‖ (D8)
―The first European World Shops conference took place in 1984. This
conference set the beginning of close cooperation between volunteers working
in World Shops from all over Europe. The Network of European World Shops
(NEWS!) was formally established in 1994 and now represents approximately
3.000 World Shops in close to 20 European countries. NEWS! coordinates
European campaigning activities and stimulates the exchange of information
and experiences about development of sales and awareness raising work.‖ (D8)
Este modo de organização, não se identificando completamente com as
formas de organização dos NMS anteriormente descritas, também não é
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
168
necessariamente identificável com formas de organização de ‗velhos‘ movimentos
sociais. Apesar desta estruturação, a WTFO define-se como sendo ―the global
network of Fair Trade Organizations and WFTO associates representing the
supply chain from producer to retailer‖ (D11) e as Organizações de Comércio
Justo do seguinte modo:
―Fair Trade Organizations are organizations of which Fair Trade is part of their
mission and constitutes the core of their objectives and activities. They are
actively engaged in supporting producers, raising awareness for Fair Trade
and in campaigning for changes in the rules and practices of ordinary
international trade.‖ (D9)
O trabalho em rede, a representação de produtores, distribuidores e
retalhistas na mesma organização, e aquilo a que se poderia chamar uma
definição inclusiva de Organizações de Comércio Justo (na medida em que define
‗critérios mínimos para a consideração destas organizações enquanto tal)
contribui, assim, para tornar mais fluído o modo de organização do movimento,
não se podendo mesmo encontrar referência a uma liderança na verdadeira
aceção do termo. De facto, o Glossário do Comércio Justo (D11), criado pela
constatação de que
―The myriad of terms used in the movement leaves many confused. The Fair
Trade Glossary was developed by the WFTO and FLO to clarify confusion.‖
(D9),
revela a existência de múltiplas estruturas, atores e processos com trabalho a
nível de coordenação, distinguindo-se ―Sistema de Comércio Justo‖,
―Stakeholders de Comércio Justo‖, ―Operadores de Comércio Justo‖, ―Termos de
licenciamento e rotulagem‖, ―Termos de definição de critérios‖, ―Termos de
produtos‖, ―Termos de preço‖, ―Termos de certificação‖ e ―Termos de comércio‖
(D11).
A necessidade de explicitação das ações, processos e atores envolvidos no
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
169
movimento advém da complexidade do mesmo mas, também, da questão mais
sensível, na medida em que dela depende, em última instância, o seu sucesso: a
confiança dos consumidores. Como refere o consumidor europeu participante no
documentário exibido e produzido em França,
―JP – A verdadeira questão é saber se o dinheiro vai para o produtor. Essa é a
verdadeira questão e nada mais‖ (D5).
Isto significa que, no limite, o sucesso do movimento está dependente da
confiança que o mesmo adquire junto do último elo da cadeia estabelecida – o
consumidor. Aquela é encontrada através do desenvolvimento de sistemas
abstratos (Giddens, 1996) e de sistemas periciais (Giddens, 1996), ou seja,
através de formas modernas de lidar com o risco e o perigo (Giddens, 1996):
―In 1997 their worldwide association, Fairtrade Labelling International (FLO),
was created. Today, FLO is responsible for setting international standards for
Fair Trade products, certifying production and auditing trade according to
these standards and for the labelling of products.‖ (D8)
―Parallel to the development of labelling for products, the World Fair Trade
Organization (WFTO) developed a monitoring system for Fai Trade
Organizations. In order to strengthen the credibility of these organizations
towards political decision-makers, mainstream business and consumers, the
WFTO Fair Trade Organization Mark was launched in January 2004. The
Mark is available to member organization that meet the requirements of the
WFTO monitoring system and identifies them as registered Fair Trade
Organizations. WFTO is workin with FLO on a Quality Management System
for Fair Trade. WFTO is also developing a third-party certified product label for
Fair Trade Organizations.‖ (D8).
Mas este esforço pode não funcionar de igual modo para todos os
produtos, para todos os consumidores e para todos os riscos:
―JP – (lendo o rótulo de uma lata) ―Cotonetes Max Havelaar. Feitos à mão‖.
Isto não é um pouco duvidoso? Mete algum medo.‖ (D5),
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
170
decorrendo daí a necessidade de afirmar que
―The Fair Trade movement is conscious of the trust placed in it by the public
and is committed to developing and promoting the highest possible standards
of integrity, transparency and accountability in order to maintain and protect
that trust.‖ (D9)
Uma outra característica do CJ que o enquadra enquanto NMS é a
novidade no que diz respeito ao tema de reivindicação:
―The growth of Fair Trade (or alternative trade as it was called in the early
days) from the late 60s onwards has been associated primarily with
development trade. It grew as a response to poverty and sometimes disaster in
the South and focused on the marketing of craft products. Its founders were
often the large development and sometimes religious agencies in European
countries. These NGOs, working with their counterparts in countries in the
South, assisted to establish Southern Fair Trade Organizations that organize
producers and production, provide social services to producers, and export to
the North. Alongside the development trade there was also a branch of
solidarity trade. Organizations were set up to import goods from progressive
countries in the South that were both politically and economically
marginalized‖ (D8)
Se a questão do ‗desenvolvimento‘ não é, em si mesma, nova a sua
vinculação à transformação dos processos de produção, distribuição e consumo,
enquanto modo de ação dos movimentos sociais por contraponto às políticas
existentes, é uma novidade. O próprio movimento o reconhece quando afirma
que
―Fair Trade, fundamentally, is a response to the failure of conventional trade
to deliver sustainable livelihoods and development opportunities to people in
the poorest countries of the world; this is evidenced by the two billion of our
fellow citizens who, despite working extremely hard, survive on less than $2
per day. Poverty and hardship limit people's choices while market forces tend
to further marginalise and exclude them. This makes them vulnerable to
exploitation, whether as farmers and artisans in family-based production
units (hereafter "producers") or as hired workers (hereafter "workers") within
larger businesses.‖ (D10)
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
171
―The Fair Trade movement believes that trade can be a fundamental driver of
poverty reduction and greater sustainable development, but only if it is
managed for that purpose, with greater equity and transparency than is
currently the norm. We believe that the marginalised and disadvantaged can
develop the capacity to take more control over their work and their lives if they
are better organised, resourced and supported, and can secure access to
mainstream markets under fair trading conditions.‖ (D9)
―The Fair Trade movement shares a vision of a world in which justice and
sustainable development are at the heart of trade structures and practices so
that everyone, through their work, can maintain a decent and dignified
livelihood and develop their full human potential.‖ (D9)
O movimento assume, então, o que Santos e Rodríguez (2003) consideram
ser urgente: ―formular alternativas económicas concretas que sejam ao mesmo
tempo emancipatórias e viáveis e que, por isso, dêem conteúdo específico às
propostas por uma globalização contra-hegemónica‖ (Santos e Rodríguez, 2003:
22). Esta é, então, uma das formas de o movimento politizar novas áreas da vida
social – o que segundo Offe (1992) é uma das novidades dos NMS – na medida
em que se desafia o discurso político-económico vigente ―segundo [o] qual «não
há alternativa nenhuma» ao capitalismo neoliberal [que] ganhou credibilidade,
inclusivamente entre os círculos políticos e intelectuais progressistas‖ (Santos e
Rodríguez, 2003: 22).
É exatamente neste quadro que o discurso do Comércio Justo se pode
considerar político, dado que é a possibilidade de reconfigurar ou reconstruir o
mundo social que politiza os movimentos sociais e, portanto, o seu discurso. A
dimensão política do seu discurso é clarificada ao assinalar a necessidade de agir
dentro de uma lógica de reconstrução social em vez de, apenas, constatar as
desigualdades e os problemas:
―A primeira coisa que nos mostra é um romance da literatura holandesa.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
172
O herói, Max Havelaar, vendedor de café, denuncia as explorações nas
colónias.
FVH – Ele foi para a Indonésia, trabalhar para o Governo, e não tardou a
descobrir que as coisas estavam a piorar, cada vez mais, justamente nos
campos de café, onde havia uma enorme exploração. Em cem anos, nada
mudou.
Ele protestou, mas não fez uma única proposta. Ora, no CJ, o objetivo foi criar
propostas. Há que estabelecer regras: ―Eu vendo-o, mas mediante certas
condições. Tenho de sobreviver‖.
E isso é, precisamente, o CJ. As leis de mercado têm de ser diferentes.
Não somos contra o mercado, mas este tem de ter regras.‖ (D5)‖
―A globalização como tal criou não só um número tremendo de…. não só de
pobres, mas também…. miséria… que se tem de responder. Com os
mecanismos de Comércio Justo, nós estamos a criar condições para reais
respostas…para…o capitalismo que…não funciona tal…como se apresenta‖
(D6)
―nós enfrentamos, como tal, o mercado livre (…) e pusemos como regra que o
café devia ser …comprado… sob condições…do preço mínimo de
sobrevivência. Portanto, há um preço mínimo.
Quando o mercado vai…abaixo dele, ele não vai com ele, não o acompanha.
Então, cria uma espécie de segurança para as pessoas‖ (D6)
Por outro lado, a politicidade do movimento afirma-se, também, pela centralidade
que a ação política, em diferentes escalas, assume no movimento:
―The movement is engaged in debates with political decision-makers in the
European institutions and international fora on making international trade
fairer. On top of that, Fair Trade has made mainstream business more aware
of its social and environmental responsibility.‖ (D8)
―In the course of the years, the Fair Trade movement has become more
professional in its awareness-raising and advocacy work.‖ (D8)
Beck (2000a) enquadra o alargamento da noção de política nos processos
de individualização da sociedades que, na sua perspetiva, se fazem sentir não só
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
173
no mundo privado mas também público, considerando que ―os sujeitos
individualizados, improvisadores para com eles mesmos e para com o seu
mundo, já não são os ‗seguidores de papéis‘ da simples sociedade industrial
clássica, tal como era assumido pelo funcionalismo.‖ (Beck, 2000a: 17). É neste
sentido que o autor argumenta ser um erro identificar a política apenas com o
Estado ou com o sistema político e distingue a noção de ‗política‘ da de
‗subpolítica‘. Não obstante não estar de acordo com a nomeação atribuída – no
sentido em que o prefixo ‗sub‘ pode anunciar um qualquer tipo de subalternidade
– a ideia é interessante: à ‗política‘ corresponderia uma definição clássica da
mesma, assente nos aparelhos estatais de governação; à ‗subpolítica‘ a ação de
―configurar a sociedade a partir de baixo. (…) No surgimento da subpolitização
existem oportunidades crescentes para os grupos até aqui afastados do
processo de tecnização e industrialização passarem a ter voz e vez no processo
de organização da sociedade: cidadãos, opinião pública, movimentos sociais,
grupos de peritos, os trabalhadores no seu local de trabalho (…)‖ (Beck,
2000a: 23).
Ora, a politicidade do movimento CJ, para além do já referido, é também
percetível na politização de uma área da vida social que, numa época de
globalização neoliberal, ganhou uma notoriedade sem precedentes: o consumo.
Pelo facto de ser um movimento que se define como uma ―parceria‖ entre elos de
uma cadeia que se inicia nos produtores e termina nos consumidores, a
dimensão política do movimento alarga-se a todos os intervenientes do processo,
incluindo estes últimos. Esse é, aliás, um dos objetivos expressos no discurso do
movimento:
―Fair Trade has led the way in encouraging and enabling consumers to take
regard of the social, economic and environmental consequences of their
purchasing. While other ethical purchasing initiatives are being developed to
respond to the growing interest, the unique approach of Fair Trade continues
to be most successful in terms of producer and consumer support.‖ (D9)
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
174
A compreensão do papel politico dos consumidores, inerente ao ato de
consumo, é reconhecida:
―JP – Há muitas vigarices no café. Se conseguirmos fazer com que ganhem
algum dinheiro ou com que sintam orgulho no trabalho que fazem e que
deixem de ser explorados pelas grandes multinacionais… - A diferença de
preço não é muito significativa.
Os consumidores europeus têm de tomar consciência de que podem ser úteis
a muitos produtores que, sem nós, seriam explorados.‖ (D5)
Mas Frans van der Hoff vai mais longe: para ele
―comprar é votar, comprar é votar para o tipo de mundo que cada um quer‖
(D6).
Na verdade, ele defende a politicidade inerente à compra, a politicidade do poder
dos consumidores, recusando a identificação do ato de comprar com
assistencialismo, caridade ou ajuda:
―Muito brevemente iremos entrar no Norte… e, como sempre,… para corrigir a
abordagem de partilha do Comércio Justo que nós odiamos. Partilha! – Eu
compro… porque…para… o pobre, o barbeiro, possa ter…um pouco de
cerveja. Isso é… ridículo!... Isso nós não queremos.‖ (D6)
Em síntese, a matriz social do discurso contra-hegemónico aqui em
análise é a de um novo movimento social que assume a sua politicidade no que
toca, sobretudo, aos temas de reivindicação, às formas de ação, escala de ação e
atores envolvidos. No quadro seguinte é sistematizada a análise da matriz social
do discurso contra-hegemónico, considerando a sua politicidade:
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
175
Dimensões Características
Atores envolvidos Identidade social híbrida
Escala de ação Global
Formas de ação Múltiplas: concretização de propostas, lobbying, advocacy, politização do consumo
Estruturas de coordenação Organização em rede
Temas de reivindicação Transformação dos processos de produção, distribuição e consumo
Quadro 11.Matriz social do discurso contra-hegemónico em análise.
1.2.2. Efeitos ideológicos do discurso: políticos e económicos
Retomo aqui a conceção de ideologia enquanto sistema de representações
inscrito no discurso e que, apesar de parcial, produz regimes de verdade que
permitem a construção de formas ‗corretas‘ de ver o mundo. Nesse sentido, o
discurso do Comércio Justo é também, necessariamente, um discurso ideológico
na medida em que contribui para a construção de um determinado modo de ver
o mundo e da formulação de um bem comum. No entanto, a sua característica de
discurso contra-hegemónico implica a assunção do lugar a partir do qual fala,
impedindo, portanto, que se construa a partir de ―não lugares‖ ou ―lugares
brancos‖ (Magalhães e Stoer, 2006b). Quero com isto dizer que, tendencialmente,
os discursos hegemónicos assentam nesse modo de legitimação discursiva devido
ao poder consentido que exercem, no sentido Gramsciano, enquanto produtores
de ideologia. Ao surgirem como contestação à ordem social vigente, os discursos
contra-hegemónicos necessitam de afirmar o seu lugar de produção, o mesmo é
dizer, ‗atribuir-lhe uma cor‘ e ‗atribuir-lhe um contexto‘, de modo a desenvolver
uma argumentação que legitime a sua produção e existência.
No discurso em análise essa legitimação é logo feita na definição quer do
movimento, quer do esforço de consensualização e estabilização do conceito
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
176
orientador do movimento. Ao explicitar que
―The term Fair Trade defines a trading partnership, based on dialogue,
transparency and respect, that seeks greater equity in international trade. It
contributes to sustainable development by offering better trading conditions
to, and securing the rights of, marginalized producers and workers –
especially in developing countries.‖ (D11)
―The Fair Trade movement is the combined efforts of Fair Trade organizations,
campaigners and businesses to promote and activate the Fair Trade principles
of empowering producers, making trade more fair and sustainable
livelihoods.‖ (D11)
o movimento define o que é o conceito por relação à sua substância, aos seus
princípios, à sua finalidade, aos seus objetivos, ao modo de os concretizar e aos
destinatários, bem como, o que é o movimento por relação ao conceito e às
organizações que o compõem.
O movimento, ao afirmar que
―Fair Trade is more than just trading: it proves that greater justice in world
trade is possible. It highlights the need for change in the rules and practice of
conventional trade and shows how a successful business can also put people
first.‖ (D7),
deixa claro o ‗lugar‘ de onde fala: é um lugar de contestação, construído a partir
da ―necessidade de mudança das regras e práticas‖ e também um lugar de
constatação dado que ―prova ser possível uma maior justiça no comércio
mundial‖ e ―mostra como‖ essa mudança é possível. Esta constatação é feita não
só através do conteúdo do que é dito mas também da forma verbal usada para o
dizer, nomeadamente, através do uso de expressões que denotam assertividade
como ―é mais do que‖, ―prova que‖, ―é possível‖, ―destaca a‖, ―mostra‖. Esta
assertividade encontra razão de ser numa lógica de argumentação de que o
discurso se reveste: ao contestar o discurso necessita de argumentar para
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
177
constatar.
É a partir desta legitimação discursiva, fundada num ―lugar de
contestação‖ e num ―lugar de constatação‖, que o discurso se situa
ideologicamente, ou seja, que o discurso constrói a sua forma de ver o mundo.
Esta está plasmada, precisamente, no que o movimento afirma ser a sua visão:
―The Fair Trade movement shares a vision of a world in which justice and
sustainable development are at the heart of trade structures and practices so
that everyone, through their work, can maintain a decent and dignified
livelihood and develop their full human potential. (D9).
Esta visão declarada fixa um desejo identificado enquanto ‗bem comum‘ –
―de modo a que toda a gente possa, através do seu trabalho, manter uma vida
decente e digna e desenvolver todo o seu potencial humano‖ – mas não um
desejo no vazio, meramente enunciado: ele é sustentado no desenvolvimento de
uma prática – ―através do trabalho‖ – e num requisito – ―no qual a justiça e o
desenvolvimento sustentável estão no centro das estruturas e práticas de
comércio‖. Neste sentido, este é um discurso que se constrói no campo das
possibilidades desejadas e das condições de efetivação dessas possibilidades. É
através da fixação deste desejo que a ideologia inscrita no discurso ganha
visibilidade:
―The Fair Trade movement believes that trade can be a fundamental driver of
poverty reduction and greater sustainable development, but only if it is
managed for that purpose, with greater equity and transparency than is
currently the norm. We believe that the marginalised and disadvantaged can
develop the capacity to take more control over their work and their lives if they
are better organised, resourced and supported, and can secure access to
mainstream markets under fair trading conditions.‖ (D9)
O extrato citado é composto por duas orações que expressam os princípios
do qual o movimento parte, devidamente identificados enquanto tal: ―o
movimento acredita que‖; ―Nós acreditamos que‖. No entanto, cada uma destas
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
178
orações é seguida de uma conjunção subordinativa condicional – ―mas apenas
se‖; ―se estiverem‖ – e continuada por outra oração indicativa das condições
necessárias para o cumprimento da primeira. O conteúdo expresso por estas
duas orações – ―for gerido para esse fim, com maior equidade e transparência do
que é atualmente a norma‖; ―melhor organizados e apoiados e puderem aceder
aos mercados principais sob condições comerciais mais justas‖ – não só indicia,
uma vez mais, o ―lugar de contestação‖ como ‗ensaia‘, do ponto de vista
ideológico, a solidariedade enquanto forma de resolução do que contesta. Esse
‗ensaio‘ torna-se claro quando, ainda na clarificação da visão comum, é referido o
papel atribuído aos consumidores dos países desenvolvidos:
―We also believe that people and institutions in the developed world are
supportive of trading in this way when they are informed of the needs of
producers and the opportunities that Fair Trade offers to change and improve
their situation. Fair Trade is driven by informed consumer choices, which
provides crucial support for wider campaigning to reform international trade
rules and create a fairer economic system. Fair Trade connects the aims of
those in the developed world who seek greater sustainability and justice with
the needs of those in the South who most need those changes. It enables
citizens to make a difference to producers through their actions and choices
as consumers. Demand for Fair Trade products enables Fair Trade
Organizations and others who adopt Fair Trade practices to extend the reach
and impacts of their work, as well as visibly demonstrating and articulating
public support for changes in international trade rules to governments and
policy makers.‖ (D9)
Deste modo, identifico neste discurso a ideologia da solidariedade que
enforma a ideia de parceria existente entre os elos da cadeia que o movimento
constrói. Esta ideologia da solidariedade é perspetivada no discurso através do
uso de expressões como ―as pessoas e as instituições no mundo desenvolvido,
quando informadas das necessidades dos produtores e das oportunidades que o
Comércio Justo oferece para mudar e melhorar a sua situação, apoiam esta forma
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
179
de comércio‖; ―O Comércio Justo une os objetivos de quem, no mundo
desenvolvido, procura uma maior sustentabilidade e justiça com as necessidades
daqueles que no Sul mais necessitam dessas mudanças‖.
Também os ―Princípios do Comércio Justo‖ dão corpo a esta ideologia da
solidariedade:
―CORE PRINCIPLES
Market access for marginalised producers67
Many producers are excluded from mainstream and added-value markets, or
only access them via lengthy and inefficient trading chains. Fair Trade helps
producers realise the social benefits to their communities of traditional forms
of production. By promoting these values (that are not generally recognised in
conventional markets) it enables buyers to trade with producers who would
otherwise be excluded from these markets. It also helps shorten trade chains
so that producers receive more from the final selling price of their goods than
is the norm in conventional trade via multiple intermediaries.
Sustainable and equitable trading relationships
The economic basis of transactions within Fair Trade relationships takes
account of all costs of production, both direct and indirect, including the
safeguarding of natural resources and meeting future investment needs.
Trading terms offered by Fair Trade buyers enable producers and workers to
maintain a sustainable livelihood; that is one that not only meets day-to-day
needs for economic, social and environmental well-being but that also enables
improved conditions in the future. Prices and payment terms (including
prepayment where required) are determined by assessment of these factors
rather than just reference to current market conditions. There is a
commitment to a long-term trading partnership that enables both sides to
cooperate through information sharing and planning, and the importance of
these factors in ensuring decent working conditions is recognised.
Capacity building & empowerment
Fair Trade relationships assist producer organisations to understand more
about market conditions and trends and to develop knowledge, skills and
resources to exert more control and influence over their lives.
Consumer awareness raising & advocacy
Fair Trade relationships provide the basis for connecting producers with
67 Este destaque a bold e os seguintes são do documento original.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
180
consumers and for informing consumers of the need for social justice and the
opportunities for change. Consumer support enables Fair Trade Organizations
to be advocates and campaigners for wider reform of international trading
rules, to achieve the ultimate goal of a just and equitable global trading
system.
Fair Trade as a “social contract”
Application of these core principles depends on a commitment to a long-term
trading partnership with producers based on dialogue, transparency and
respect. Fair Trade transactions exist within an implicit ―social contract‖ in
which buyers (including final consumers) agree to do more than is expected by
the conventional market, such as paying fair prices, providing pre-finance and
offering support for capacity building. In return for this, producers use the
benefits of Fair Trade to improve their social and economic conditions,
especially among the most disadvantaged members of their organisation.‖ (D9)
Nestes cinco princípios básicos do movimento – ―acesso dos produtores
marginalizados ao mercado‖; ―relações comerciais sustentáveis e justas‖;
―empowerment e capacitação‖; ―conscientização dos consumidores e advocacy‖;
―comércio justo como ‗contrato social‘ ‖ – a ideologia da solidariedade está
presente através:
- da ―promoção de valores que possibilitam‖,
- ao ―ajudar pequenas cadeias comerciais para que os produtores recebam
mais (…) do que é a norma‖,
- ao ―permitir aos produtores e trabalhadores manterem uma subsistência
sustentável‖,
- ao estabelecer que ―os preços e termos de pagamento (incluindo o pré-
pagamento quando necessário) são determinados por esses fatores em vez de
serem referenciados às condições de mercado‖,
- ao assumir ―um compromisso de parceria comercial a longo prazo‖,
- ao ―auxiliar as organizações de produtores (…) a desenvolver
conhecimento, habilidades e recursos para exercer mais controlo e influência
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
181
sobre as suas vidas‖,
- ao ―providenciar as bases para conectar os produtores com os
consumidores‖.
A conceção do Comércio Justo enquanto ‗contrato social‘ resume esta
ideologia solidária, na medida em que ―os compradores (incluindo o consumidor
final) concordam em fazer mais do que é esperado no mercado convencional, tal
como, pagar preços justos, providenciar pré-financiamento e oferecendo apoio à
capacitação. Em troca, os produtores usam os benefícios (…) para melhorar as
suas condições económicas e sociais.‖.
Ao afirmar que
―In this way, Fair Trade is not charity but a partnership for change and
development through trade.‖ (D9)
o movimento responde à reivindicação que o originou:
―the developing countries were addressing international political fora such as
the second UNCTAD conference (United Nations Conference on Trade and
Development) in Delhi in 1968, to communicate the message ―Trade not Aid‖.
This approach put the emphasis on the establishment of equitable trade
relations with the South, instead of seeing the North appropriate all the
benefits and only returning a small part of these benefits in the form of
development aid.‖ (D8)
Neste sentido, o movimento constrói uma visão do mundo que se
caracteriza por ser solidária e não caritativa. Importa, no entanto, ter em conta a
distinção conceptual que Jean-Louis Laville (2009) encontra no termo
solidariedade. Segundo este autor,
―[o] conceito moderno de solidariedade remete a dois projetos diametralmente
opostos, sendo, portanto, impossível apresentar uma acepção unificada. A
solidariedade filantrópica corresponde ao primeiro deles, remetendo à visão de
uma sociedade ética na qual os cidadãos, motivados pelo altruísmo, cumprem
seus deveres uns para com os outros voluntariamente. A segunda forma é a
versão da solidariedade como princípio de democratização societária,
resultando de ações coletivas‖ (Laville, 2009: 310).
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
182
O que parece estar em causa no Comércio Justo é uma ideologia da
solidariedade que se apoia na segunda forma apontada por Laville (2009). É que
se a primeira – a solidariedade filantrópica – assenta em ações paliativas que têm
como objetivo ‗aliviar‘ as bolsas de pobreza, criando vínculos de dependência, a
segunda
―baseia-se tanto na ajuda mútua, como na expressão reivindicativa, tangendo,
ao mesmo tempo, à auto-organização e ao movimento social. Esta segunda
versão supõe haver uma igualdade de direitos entre as pessoas que nela se
engajam. (…) ela se empenha em aprofundar a democracia política mediante
uma democracia econômica e social.‖ (Laville, 2009: 310).
A admiração dos produtores pelo facto de o seu café comercializado
através do CJ ter aceitação por parte dos consumidores, apesar do seu preço
final mais elevado por comparação a outros existentes no mercado, poderia ter
justificação numa forma de solidariedade filantrópica. Mas, não obstante o
caráter de ‗ajuda‘ que possa também estar subjacente a esse ato de compra, essa
não é a única razão justificativa:
―P10 – isto é a sala do Conselho de Administração. Vamos ver o senhor
presidente, Fernando Garcia, …
R – Durante uma conversa, quisemos saber a sua opinião acerca dos
consumidores ocidentais que aceitam pagar um pouco mais pelos produtos
dos pequenos agricultores.
P11 – (Garcia) Surpreende-me, porque, normalmente, os consumidores
querem o mais barato.
R – Quando lhe dizemos que o seu café é mais caro, o padre Francisco irrita-
se:
FVH – Isso não é correto! O produto do CJ tem um valor justo! O resto é que é
injusto, totalmente injusto! É essa a mensagem que temos de transmitir e não
especular com situações de pobreza. A exploração dos pobres é o grande
problema!
Por isso, irrito-me quando confundem o CJ com algo de beneficência. Não é
isso! É um mercado como deve ser. O resto é exploração!‖ (D5)
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
183
A caracterização da ordem de discurso contra-hegemónica, do ponto de
vista ideológico, pode ser sintetizada da seguinte forma:
Ideologia da solidariedade
Características principais
- discurso condicional - discurso das possibilidades e das condições da sua efetivação
- discurso argumentativo
Racionalidade discursiva
- parceria - democracia política através da democracia económica e social
Metáfora ―Por as pessoas primeiro‖
“Lugar de contestação” / “Lugar da constatação”
Lugares de legitimação política
Quadro 12. Caracterização ideológica do discurso contra-hegemónico em análise.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
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“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
185
2. Dos textos
―Consideremos uma palavra que se refere a um objecto: guarda-chuva, por
exemplo. Quando digo a palavra «guarda-chuva», vemos o objecto na
mente. Vemos uma espécie de bengala, com varas de metal que se dobram
e que formam uma armação para um tecido impermeável que, quando
aberto, nos protege da chuva. Este último pormenor é importante. O
guarda-chuva não é apenas uma coisa, é uma coisa que exerce uma
função; por outras palavras, exprime a vontade do homem. Quando
paramos para pensar nisto, verificamos que todos os objectos são
semelhantes ao guarda-chuva, pois também servem uma função. Um lápis
serve para escrever, um sapato para o calçarmos, um automóvel para o
guiarmos. E o que eu pergunto agora é o seguinte: o que acontece quando
uma coisa deixa de cumprir a sua função? Ainda é a mesma coisa ou
transformou-se numa coisa diferente? Quando arrancamos o tecido de um
guarda-chuva, o guarda-chuva ainda é um guarda-chuva? Abrimos a
armação, pomo-la sobre a cabeça e saímos para a chuva e ficamos
completamente encharcados. Será que ainda podemos chamar guarda-
chuva àquele objecto? De uma maneira geral, é isso que as pessoas fazem.
Quando muito, dirão que o guarda-chuva está estragado. Mas para mim
isto é um erro grave, é a causa de todos os nossos problemas. Como já não
pode desempenhar a sua função, o guarda-chuva deixou de ser um
guarda-chuva. Pode parecer-se ainda com um guarda-chuva, pode ter sido
um guarda-chuva, mas agora transformou-se noutra coisa. No entanto, a
palavra empregue é a mesma. Por conseguinte, já não consegue exprimir o
que é o objecto. É imprecisa, é falsa, esconde uma coisa que deveria
revelar. E se nem sequer conseguimos nomear um objecto comum do dia-a-
dia que temos nas mãos, como é que podemos esperar falar das coisas que
verdadeiramente nos preocupam? Continuaremos sempre perdidos, a não
ser que comecemos a incorporar a noção de mudança nas palavras que
usamos.‖
Paul Auster, Trilogia de Nova Iorque
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
186
A análise dos textos foi feita, tal como já referi, tendo em conta dois
aspetos: a prática discursiva e o vocabulário.
Do primeiro – prática discursiva – fazem parte a intertextualidade e a
interdiscursividade (Fairclough, 1992, 1995, 2003, 2009). Fairclough (2003)
define a intertextualidade de um texto da seguinte forma: ―é a presença no seu
interior de elementos de outros textos (e, portanto, de outras vozes para além da
do autor) que podem ser relacionados (dialogadas com, assumidas, rejeitadas,
etc.) de várias formas.‖ (Fairclough, 2003: 218). No que diz respeito à
interdiscursividade, Fairclough (2003) refere que a sua análise ―é a análise de
uma mistura particular de géneros, de discursos e de estilos sobre os quais [o
texto] é desenhado, e como diferentes géneros, discursos ou estilos são
articulados (ou ‗trabalhados‘) juntos no texto‖ (Fairclogh, 2003: 218).
Assim, aqui será dada atenção ao modo como os textos interagem entre si
dentro de uma determinada ordem de discurso e, também, à existência – ou não
– de outros discursos, dentro de uma dada ordem de discurso. A consideração
destas duas dimensões – intertextualidade e interdiscursividade – tem como
objetivo a ponderação, por um lado, da existência de cadeias intertextuais e, por
outro, da influência que diferentes discursos têm entre si.
O segundo aspeto – o vocabulário – pretende, principalmente, entender e
dar conta do modo como os conceitos centrais dos discursos em análise são
construídos em termos de significado, seja em termos dos usos preposicionais –
isto é, de que forma são postos em relação os conceitos –, seja em termos
proposicionais – isto é, qual o modo retórico (sobretudo em termos de lugares
comuns usados) utilizado em termos persuasivos. A consideração do modo
preposicional e do modo proposicional fundamenta-se na ideia de que ambos,
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
187
quando dotados de sentido, constroem um modelo de realidade. Este modo
proposicional inclui ainda as assunções existentes, no sentido de dar conta do
modo como os discursos utilizam ideias ‗feitas‘ quanto à realidade, ao desejável e
ao que se deve atingir, ou seja, que ideias implícitas existem nos textos. Segundo
Fairclough, os ―[i]mplícitos são uma propriedade essencial dos textos e uma
propriedade de considerável importância social‖ (2003: 54). Este aspeto, porque
intersecciona os dois anteriores, é apresentado na sua relação com estes.
À semelhança do capítulo anterior (1. Prática Social), também este
capítulo se organiza em tornos das duas ordens de discurso, isto é, cada um dos
aspetos referidos é apresentado em duas secções diferentes que correspondem às
ordens de discurso em causa.
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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
188
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
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2.1. Do discurso hegemónico
2.1.1. Prática discursiva
Nos documentos considerados para análise relativamente ao discurso
hegemónico a intertextualidade é uma constante. Significa isto que a presença de
outros textos é significativa, textos esses também identificados com o discurso
hegemónico tal como ele aqui é considerado: um discurso produzido por
organizações com um papel ativo no ―ciclo das políticas‖ (Bowe, Ball e Gold,
1992) e que exercem um ―poder consentido‖ dado o seu papel na ordem político-
económica mundial.
No entanto, a análise produzida deu conta de uma particularidade na
dimensão da intertextualidade do discurso hegemónico, particularidade essa que
está relacionada com quem refere quem. Esta particularidade permitiu-me criar
uma distinção entre aquilo que denomino uma forma de ‗intertextualidade
interna‘ e o que identifico ser uma forma de ‗intertextualidade externa‟. A primeira
– intertextualidade interna – refere-se a um tipo de intertextualidade que tem
como caraterística principal o facto de, num dado texto, serem ativamente
incluídos textos que, não só pertencem à mesma ordem de discurso, como são
produzidos pela mesma organização que os refere. Já a segunda –
intertextualidade externa – dá conta de uma intertextualidade que ocorre no
interior de uma mesma ordem de discurso, mas que se estabelece pela referência
a textos produzidos por outras organizações que não a autora do texto em
questão, ou seja, com outros ‗autores‘. Estes dois modos de construir a
intertextualidade podem coexistir num mesmo texto ou pode estar presente
apenas um deles.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
190
Confirmando o seu ‗lugar‘ no ―contexto de influência‖ e o seu papel de
―produção de ideologia‖, o texto da ONU refere-se, sem exceções, a outros textos
produzidos pela organização, criando assim uma ―cadeia intertextual‖
(Fairclough, 2003) em que os textos – e o discurso – se legitimam uns aos outros.
As referências encontradas, no texto da ONU, a outros textos são as seguintes:
―We reaffirm our commitment to the purposes and principles of the Charter of
the United Nations, which have proved timeless and universal. Indeed, their
relevance and capacity to inspire have increased, as nations and peoples have
become increasingly interconnected and interdependent.‖ (D1)
―We also resolve to address the special needs of small island developing States
by implementing the Barbados Programme of Action and the outcome of the
twenty-second special session of the General Assembly rapidly and in full.‖
(D1)
―We reaffirm our support for the principles of sustainable development,
including those set out in Agenda 21, agreed upon at the United Nations
Conference on Environment and Development.‖ (D1)
―To make every effort to ensure the entry into force of the Kyoto Protocol,
preferably by the tenth anniversary of the United Nations Conference on
Environment and Development in 2002‖ (D1)
―To press for the full implementation of the Convention on Biological Diversity
and the Convention to Combat Desertification in those Countries Experiencing
Serious Drought and/or Desertification, particularly in Africa.‖ (D1)
―To respect fully and uphold the Universal Declaration of Human Rights.‖ (D1)
―To combat all forms of violence against women and to implement the
Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against
Women.‖ (D1)
Os extratos apresentados mostram como o texto inclui outros textos,
especificamente identificados ainda que referidos de forma indireta, ou seja, sem
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
191
citações e sem referência ao conteúdo desses outros textos, construindo assim
uma relação entre os textos que é assumida. Como afirmei, todos as referências
feitas são a outros textos produzidos pela mesma organização, ou seja, trata-se
de uma intertextualidade interna, confirmando assim a ‗inquestionabilidade ética‘
(cf. 1.1.2) que a ONU atribui a si própria, dado que este modo de
intertextualidade cumpre a função de reforçar o papel da organização.
Nos outros textos analisados a intertextualidade tem, fundamentalmente,
caraterísticas de intertextualidade externa. É de realçar que o texto da ONU –
―United Nations Millenium Declaration‖ (D1) – é um texto presente em todos os
outros textos analisados e que foram incluídos na ordem de discurso
hegemónica. Isto significa que este texto é assumido como central na construção
desta ordem de discurso dada a sua presença, por vezes até de forma direta, ou
seja, através da citação textual do seu conteúdo:
―5. O objectivo global e essencial da cooperação para o desenvolvimento da UE
é a eliminação da pobreza no contexto do desenvolvimento sustentável, o que
inclui a prossecução dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM).‖
(D3)
―6. Eis os (oito) ODM: erradicar a pobreza extrema e a fome; assegurar uma
educação básica para todos; promover a igualdade dos sexos e a capacitação
das mulheres; reduzir a taxa de mortalidade infantil; melhorar a saúde
materna; combater o VIH/SIDA, a malária e outras doenças; assegurar a
sustentabilidade ambiental e estabelecer uma parceria mundial para o
desenvolvimento.‖ (D3)
―8. A UE está determinada a actuar em prol da realização destes objectivos, e
bem assim dos objectivos de desenvolvimento acordados nas principais
conferências e cimeiras das Nações Unidas.‖ (D3)
―12. A agenda dos ODM e as dimensões económicas, sociais e ambientais da
erradicação da pobreza no contexto do desenvolvimento sustentável
desdobram-se em múltiplas actividades de desenvolvimento, que vão desde a
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
192
governação democrática às reformas políticas, económicas e sociais, à
prevenção de conflitos, à justiça social, à promoção dos direitos humanos e ao
acesso equitativo aos serviços públicos, à educação, à cultura, à saúde,
incluindo a saúde sexual e reprodutiva e os direitos afins, conforme
estabelecido na Agenda da ICPD do Cairo; desde o ambiente e a gestão
sustentável dos recursos naturais a um crescimento económico favorável aos
mais pobres, ao comércio e desenvolvimento, à migração e desenvolvimento, à
segurança alimentar, aos direitos das crianças, à igualdade entre os sexos e à
promoção da coesão social e de um trabalho digno.‖ (D3)
―A UE apoiará as estratégias dos países parceiros centradas nos ODM e que
visem a redução da pobreza, o desenvolvimento e as reformas, e alinhará a
sua actuação pelos sistemas e procedimentos daqueles países.‖ (D3)
―24. A fim de atingir os ODM, continuará a dar-se prioridade aos países
menos desenvolvidos e a outros PBR, como testemunha a elevada proporção
da ajuda da UE que lhes é consagrada‖ (D3)
―Importa que as políticas não relacionadas com o desenvolvimento apoiem os
esforços dos países em desenvolvimento no sentido da realização dos ODM. A
EU terá em conta os objectivos da cooperação para o desenvolvimento na
execução de todas as políticas susceptíveis de afectarem os países em
desenvolvimento. (…) Tal representa um contributo adicional significativo da
UE para a realização dos ODM.‖ (D3)
―Os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio relativos à educação
especificam que, até 2015, todas as crianças (rapazes e raparigas) deverão
concluir pelo menos o ensino primário.‖ (D4)
―embora os países em desenvolvimento tenham feito grandes avanços na
última década em direcção aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio de
educação primária universal e igualdade de género, um sem número de
evidências demonstram que muitas crianças e jovens dos países em
desenvolvimento saem da escola sem terem aprendido muito.‖ (D2)
―O Grupo Banco Mundial está empenhado em consolidar esse progresso e a
incrementar o seu apoio para ajudar todos os países a alcançarem a Educação
para Todos (EFA) e os objectivos de educação das Metas de Desenvolvimento
do Milénio (MDG).‖ (D2)
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
193
―O apoio financeiro do Banco Mundial foi subindo ao longo da década, desde
que as MDG foram estabelecidas‖ (D2)
―Com dezenas de milhares de crianças ainda fora do sistema escolar e a
persistência de discriminações de género, os esforços para alcançar as MDG
para a educação têm de prosseguir.‖ (D2)
―O Fórum de Dacar ("Educação para todos") de Abril de 2000, reiterou e
alargou o compromisso da comunidade internacional relativo ao ensino
primário obrigatório para todos e gratuito em 2015.‖ (D2)
―A estratégia Aprendizagem para Todos promove os objectivos de equidade
subjacentes às MDG para a educação. Ao adoptar o objectivo de aprendizagem
para todos, a nova estratégia eleva as MDG da educação, ligando-as ao objec-
tivo universalmente partilhado de acelerar a aprendizagem.‖ (D2)
―Em muitos países de baixo rendimento e Estados frágeis empenhar-se em
cumprir os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio continua a ser
prioridade.‖ (D2)
Deste modo, o texto da ONU assume um caráter de legitimação na medida
em que ele é referenciado no sentido de contextualizar a ação e o discurso que
cada um dos organismos constrói, ou seja, a ―United Nations Millenium
Declaration‖ serve como legitimadora do discurso produzido por cada um dos
outros textos que o referem. Esse papel de legitimação discursiva através de uma
forma de intertextualidade externa prende-se com o caráter de ‗bem comum
universal‘ de que, tanto a ONU, como texto por ela produzido, se reclamam. Dado
que a relação intertextual que é estabelecida entre o texto produzido pela ONU e
os outros textos é uma intertextualidade assumida, ou seja, a referência que lhe
é feita é no sentido de estabelecer um ponto de partida base para o discurso
construído, estas organizações (BM, CE, UE) reconhecem-lhe, também, esse
papel universal.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
194
Se o texto produzido pela ONU tem um papel de intertextualidade externa
face aos outros textos em análise no discurso hegemónico, ele não é o único.
Outros textos são convocados no interior dos textos analisados (exceção feita ao
D1 que, como já afirmei, apresenta apenas características de intertextualidade
interna):
―O Fórum de Dacar ("Educação para todos") de Abril de 2000, reiterou e
alargou o compromisso da comunidade internacional relativo ao ensino
primário obrigatório para todos e gratuito em 2015.‖ (D4)
―Os países em desenvolvimento comprometeram-se igualmente a reforçar os
recursos consagrados aos sectores sociais na Cimeira Social Mundial de
Copenhaga (1995).‖ (D4)
―A UE tem o maior interesse em que a ronda das negociações de Doha sobre
desenvolvimento e os acordos de parceria económica (APE) UE-ACP sejam
concluídos o mais rapidamente possível e conduzam a resultados ambiciosos
e favoráveis aos países pobres.‖ (D3)
―A Comissão desempenhará um papel activo na implementação da Declaração
de Paris sobre a eficácia da ajuda e constituirá uma das forças
impulsionadoras para promover o cumprimento, por parte da UE, dos
compromissos assumidos em Paris em termos de apropriação, alinhamento,
resultados da harmonização e responsabilização mútua.‖ (D3)
―Aplicará activamente, em toda a programação, os princípios definidos pela
OCDE para um bom compromisso internacional para com os Estados frágeis.‖
(D3)
―É intenção da Comunidade contribuir para a iniciativa «Educação para
Todos».‖ (D3)
―As avaliações internacionais de estudantes revelam também grandes lacunas
no conhecimento entre a maioria dos países em desenvolvimento e os
membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
(OCDE).‖ (D2)
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
195
―Na realidade, os mais recentes resultados (2009) PISA reforçam a lição de que
os países que registam maior sucesso na promoção da aprendizagem são
aqueles que têm as diferenças menos acentuadas nos resultados de
aprendizagem entre os estudantes.‖ (D2)
Este modo de intertextualidade externa tem também como função,
essencialmente, legitimar o discurso produzido em cada um dos textos e a
ideologia preconizada. Constrói-se, assim, um discurso em circuito fechado, isto
é, um discurso que se legitima em espiral, recorrendo a textos de organizações
diversas que produzem e (auto)reproduzem essa mesma ordem de discurso.
No que diz respeito à interdiscursividade, o que esteve em causa do ponto
de vista da análise foi em que medida outros discursos e/ou vozes estão, ou não,
incluídas nos textos e discurso analisados. A análise do discurso hegemónico
deu conta da seguinte presença de outros discursos e vozes:
―Mas este sucesso deu origem a novos desafios, numa altura em que as
condições no mundo mudaram. (…) Os ganhos no acesso fazem incidir agora
a atenção para o desafio de melhorar a qualidade da educação e acelerar a
aprendizagem.‖ (D2)
―A nova estratégia centra-se na aprendizagem por uma simples razão: o
crescimento, desenvolvimento e redução da pobreza dependem dos
conhecimentos e qualificações que as pessoas adquirem, não no número de
anos que passaram sentados numa sala de aula.‖ (D2)
―A educação e a formação exercem um impacto positivo importante sobre a
saúde, a participação social e política, a igualdade de oportunidades
entre os sexos, as taxas de crescimento económico, os rendimentos e a
produtividade, em especial no âmbito de uma redistribuição equitativa
dos frutos deste crescimento.68‖ (D4)
―Paralelamente, a educação exerce efeitos positivos em termos de boa
68 O destaque a bold é do documento original.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
196
governação69: a educação pode desempenhar um papel essencial reforçando a
capacidade para reivindicar uma maior transparência e responsabilidade por
parte das autoridades e, deste modo, permitir a obtenção de um melhor
acesso aos recursos locais e aos serviços públicos.‖ (D4)
―7. Reafirmamos que (…) o desenvolvimento sustentável engloba a boa
governação e os direitos humanos, bem como vertentes políticas, económicas,
sociais e ambientais.‖ (D3)
―• To halve, by the year 2015, the proportion of the world‘s people whose
income is less than one dollar a day and the proportion of people who suffer
from hunger and, by the same date, to halve the proportion of people who are
unable to reach or to afford safe drinking water; • To ensure that, by the same
date, children everywhere, boys and girls alike, will be able to complete a full
course of primary schooling and that girls and boys will have equal access to
all levels of education; • By the same date, to have reduced maternal mortality
by three quarters, and under-five child mortality by two thirds, of their
current rates.; • To have, by then, halted, and begun to reverse, the spread of
HIV/AIDS, the scourge of malaria and other major diseases that afflict
humanity.; • To provide special assistance to children orphaned by
HIV/AIDS.; • By 2020, to have achieved a significant improvement in the lives
of at least 100 million slum dwellers as proposed in the ―Cities Without
Slums‖ initiative.; (…) • To promote gender equality and the empowerment of
women as effective ways to combat poverty, hunger and disease and to
stimulate development that is truly sustainable; • To develop and implement
strategies that give young people everywhere a real chance to find decent and
productive work.; • To encourage the pharmaceutical industry to make
essential drugs more widely available and affordable by all who need them in
developing countries; • To develop strong partnerships with the private sector
and with civil society organizations in pursuit of development and poverty
eradication.‖ (D1).
Os extratos citados revelam que os textos trazem para o seu interior
outros discursos que não os identificados com uma ordem hegemónica. A
referência ao ―desafio de melhorar a qualidade da educação‖, e que não é o
69 O destaque a bold é do documento original.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
197
―número de anos que passaram sentados numa sala de aula‖ que trará
crescimento, articula o discurso do Banco Mundial, produzido numa dimensão
ideológica de educação ortopédica, com discursos que reconceptualizam a
educação, o desenvolvimento e a relação entre ambos, de modo não hegemónico.
Quero com isto dizer que, aparentemente, há uma articulação do discurso do
Banco Mundial com os discursos que atribuem centralidade aos fins e meios da
educação e à sua articulação com modelos de desenvolvimento, que não se
limitam à oferta de mais educação, ou melhor, de mais escola. No entanto, esta,
como disse, aparente, reconceptualização tem que ser enquadrada no campo
mais vasto dos significados que este texto e discurso constroem. É que a palavra
―qualidade‖, para além de polissémica, tem vindo a tornar-se recorrente em
qualquer ordem de discurso, ou seja, ela própria se tem tornado hegemónica,
necessitando, por isso, de o seu contexto de utilização e sentido(s) que assume
serem objeto de análise.
As conceções de desenvolvimento usadas quer pela UE, quer pela ONU,
assumem um grau de interdiscursividade com os discursos que defendem
conceitos de desenvolvimento que não se reduzem ao crescimento económico. Do
mesmo modo, as referências feitas pela CE aos efeitos que a educação terá não a
colocam, exclusivamente, ao serviço da formação da força produtiva, isto é, não
limitam o seu mandato à formação de trabalhadores, tendo também em conta a
formação de cidadãos e o desenvolvimento pessoal. No entanto, uma vez mais,
torna-se necessário perceber de que forma estas aceções são tecidas em
articulação com outros momentos do discurso, ou seja, como constroem,
efetivamente, o significado de tais palavras e expressões.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
198
2.1.2. Vocabulário
Após as referências salientadas na secção anterior relativamente à prática
discursiva e, nomeadamente, no que à interdiscursividade diz respeito, importa
agora dar conta da análise produzida em termos de vocabulário. A análise desta
dimensão centrou-se (cf. Quadro 7) nos significados construídos e nos lugares
comuns usados de modo a realçar, não só as construções conceptuais, mas
também os usos preposicionais – ou seja, a relação conceptual construída – e os
usos proposicionais – ou seja, a utilização de modos retóricos com função
persuasiva.
Em secção anterior (cf. 1.1.2) dei conta do modo como o discurso
hegemónico constrói uma ideologia, também ela hegemónica, no que diz respeito
à educação e ao desenvolvimento, tendo salientado a existência de uma ideologia
da harmonia, uma ideologia desenvolvimentista e uma ideologia da educação
ortopédica. Esta construção ideológica socorre-se de um determinado
entendimento do que significa educação, desenvolvimento e, também, da relação
existente entre os dois.
No documento da ONU, o desenvolvimento é entendido, sobretudo, como
erradicação da pobreza. No documento United Nations Milenium Declaration é
afirmado que são
―our universal aspirations for peace, cooperation and development.‖ (D1)
pelo que a organização afirma como um dos seus objetivos o desenvolvimento e a
erradicação da pobreza, articulando, então, os dois termos através de uma
conjunção coordenativa copulativa. As características desta ligação são
entendidas da seguinte forma:
―11. We will spare no effort to free our fellow men, women and children from
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
199
the abject and dehumanizing conditions of extreme poverty, to which more
than a billion of them are currently subjected. We are committed to making
the right to development a reality for everyone and to freeing the entire human
race from want.‖ (D1)
Não há referência ao modo como estes dois aspetos estão relacionados,
apenas se afirma essa ligação construindo assim uma relação de evidência entre
ambos. Esta relação é construída através do uso de lugares comuns que se
constituem em expressões retóricas de adesão fácil e imediata: ―paz, cooperação e
desenvolvimento‖, ―condições desumanizantes e abjectas‖, ―fazer do direito ao
desenvolvimento uma realidade‖, ―libertar os nossos companheiros homens,
mulheres e crianças‖.
Para a UE o desenvolvimento está também inextrincavelmente associado à
luta contra a pobreza, mas aqui o desenvolvimento é adjetivado como
sustentável:
―1. Nunca, como agora, a erradicação da pobreza e o desenvolvimento
sustentável assumiram tamanha importância.‖ (D3)
Aqui é enunciada a relação estabelecida entre os dois termos:
―A luta contra a pobreza à escala mundial não é apenas uma obrigação moral:
contribuirá igualmente para a construção de um mundo mais estável, mais
pacífico, mais próspero e mais justo, que reflicta a interdependência entre os
países mais ricos e os países mais pobres‖ (D3)
Constrói-se assim uma relação de funcionalidade entre desenvolvimento e
luta contra a pobreza, no sentido em que esta é entendida como a condição para
a existência daquele: ―a luta contra a pobreza contribuirá para‖. Significativo é o
facto de a ação contra a pobreza ser discursivamente construída de modo
distinto pelas duas organizações: a ONU refere a ―erradicação da pobreza‖ e a UE
a ―luta contra a pobreza‖. Na minha perspetiva, esta diferença radica na
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
200
construção ideológica que cada um dos textos promove: a ONU uma ideologia da
harmonia e a UE uma ideologia desenvolvimentista (cf. 1.1.2).
Também aqui as expressões retóricas proliferam e ajudam a fixar a relação
estabelecida entre desenvolvimento e luta contra a pobreza: ―a luta contra a
pobreza não é apenas uma obrigação moral‖, ―construção de um mundo mais
estável, mais pacífico, mais próspero e mais justo‖.
Nestes dois textos, dado o seu objeto e objetivo, a educação é referida
apenas uma vez em cada um. No texto da ONU, a educação é enunciada em
forma de objetivo a alcançar na promoção do desenvolvimento:
―To ensure that, by the same date, children everywhere, boys and girls alike,
will be able to complete a full course of primary schooling and that girls and
boys will have equal access to all levels of education (D1)
e a sua conceção restringe-se à educação escolar. No texto da UE, a educação é
referida enquanto parte do papel da sociedade civil, mencionando-se a intenção
de consagrar
―especial atenção à educação para o desenvolvimento e à sensibilização dos
seus próprios cidadãos.‖ (D3).
Não obstante esta menção à educação por relação a um público e a um modo
não-escolar, é importante recordar que, tal como foi evidenciado ao nível da
intertextualidade, os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio – onde se inclui o
anterior extrato citado de D1 – são a referência da UE para a promoção do
desenvolvimento.
O texto da Comissão Europeia (D4) e o texto do Banco Mundial
concretizam, de um modo mais evidente, as aceções relativas à educação e ao
desenvolvimento e, sobretudo, à relação entre ambos.
Para a CE, o desenvolvimento é também sinónimo de ―luta contra a
pobreza‖ e a relação entre eles – educação e desenvolvimento/luta contra a
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
201
pobreza – é assumido como sendo o objetivo do próprio documento:
―O objectivo da presente comunicação é salientar a importância capital da
educação na luta contra a pobreza e para o desenvolvimento‖ (D4).
Deste modo, todo o documento é construído no sentido de evidenciar essa
relação ou, mais simplesmente, assumi-la, sendo ambas formas semióticas de
construir ‗essa‘ verdade:
―A educação e a formação exercem um impacto positivo importante sobre a
saúde, a participação social e política, a igualdade de oportunidades
entre os sexos, as taxas de crescimento económico, os rendimentos e a
produtividade, em especial no âmbito de uma redistribuição equitativa
dos frutos deste crescimento70. Neste contexto, a educação fornece uma
base de competências que facilita o acesso ao emprego, especialmente para os
que não prossigam os estudos no secundário.‖ (D4)
―Simultaneamente, provou-se que não é possível o desenvolvimento do ensino
primário e o crescimento das economias sem um sistema de educação que
forme tanto os professores como um elevado número de estudantes para além
do ciclo elementar, incluindo os estudos universitários. O desenvolvimento
do ensino deve, por conseguinte, ser equilibrado, ou seja, é necessário
garantir que os sistemas produzam estudantes em diferentes níveis, cujas
qualificações correspondam à procura do mercado de trabalho.‖ (D4)
―Daí resulta a necessidade de apoiar estratégias, sistemas e processos
pedagógicos que favoreçam a procura de ensino e a aquisição das
habilitações necessárias para contribuir para o crescimento económico
de um país e o aumento da produtividade e eficácia dos que dispõem de um
emprego. O corolário deste desenvolvimento é que qualquer estratégia de
desenvolvimento deverá aprofundar as relações complexas entre ensino,
habilitações e emprego no quadro integrado de uma estratégia de redução da
pobreza. (D4)
―De igual modo, a fim de reforçar as taxas de escolarização, as escolas
secundárias deveriam dispor de ligações com o mercado do trabalho. As
empresas deveriam estabelecer parcerias a fim de reforçar as sinergias com a
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
202
escola.‖ (D4)
―Isto implica a aplicação de políticas activas de mercado de trabalho
associando o desenvolvimento das qualificações e o emprego‖ (D4)
Estes extratos evidenciam a noção de desenvolvimento presente, a
conceção de educação subscrita e a relação que deve existir entre os dois. Assim,
o desenvolvimento é entendido, genericamente, como crescimento económico: as
constantes referências a ―taxas de crescimento económico‖, ―rendimentos‖ e
―produtividade‖ confirmam tal entendimento. Este sentido articula-se com a
conceção de educação que está presente: a educação é aqui entendida como
escolarização na medida em que ela ―fornece uma base de competências‖, através
de um ―sistema de educação‖ que deve ―produzir estudantes‖ e favorecer a
―aquisição de habilitações‖. Ora, estas duas aceções que os conceitos aqui
adquirem favorecem um tipo de relação específico entre ambos. Assim, a relação
que a educação (escolarização) estabelece com o desenvolvimento (crescimento
económico) é uma relação de funcionalidade da primeira face à segunda, num
quadro de ideologia da educação ortopédica: as ―qualificações [devem
corresponder] à procura do mercado de trabalho‖, ―qualquer estratégia de
desenvolvimento deverá aprofundar as relações complexas entre ensino,
habilitações e emprego‖, ―as escolas secundárias deveriam dispor de ligações com
o mercado do trabalho‖ e deve-se associar ―o desenvolvimento das qualificações e
o emprego‖. Ou seja, claramente desenha-se aqui uma relação entre educação e
desenvolvimento subsidiária das teorias do capital humano, enfatizando a
educação como investimento individual, mas também coletivo, com reflexos num
desenvolvimento perspetivado numa lógica de modernização.
Também o texto do Banco Mundial enfatiza esta conceção de educação, de
70 Este destaque a bold, e os seguintes, são do documento original.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
203
desenvolvimento e este modo de relação entre ambos:
―os investimentos em educação de qualidade produzem crescimento
económico e desenvolvimento mais rápidos e sustentáveis. Indivíduos
instruídos têm mais possibilidade de conseguir emprego, de receber salários
mais altos e ter filhos mais saudáveis.‖ (D2)
―A educação é fundamental para o desenvolvimento e o crescimento.‖ (D2)
―o motor deste desenvolvimento no entanto será, em última análise o que as
pessoas aprendem, dentro e fora da escola, desde o jardim-escola até ao
mercado de trabalho.‖ (D2)
―Há um outro conjunto de alterações que é tecnológico: avanços incríveis nas
tecnologias de informação e comunicação (TICs) e outras tecnologias estão a
mudar os perfis dos empregos requeridos pelos mercados de trabalho, ao
mesmo tempo a oferecer possibilidades de aprendizagem acelerada e melhor
gestão dos sistemas de educação.‖ (D2)
―o crescimento, desenvolvimento e redução da pobreza dependem dos
conhecimentos e qualificações que as pessoas adquirem‖ (D2)
―No nível pessoal, embora um diploma possa abrir as portas para um
emprego, são as competências do trabalhador que determinam a sua
produtividade e capacidade para se adaptar a novas tecnologias e
oportunidades.‖ (D2)
―Na fase primária, o ensino de qualidade é essencial para dar aos estudantes a
alfabetização e aritméticas básicas, das quais depende a aprendizagem no
resto da vida. (…) Segundas oportunidades e oportunidades de aprendizagem
informais são assim essenciais para garantir que todos os jovens possam
adquirir competências para o mercado de trabalho.‖ (D2)
―As crianças e os jovens não podem desenvolver as competências e valores de
que precisam sem a base educacional fornecida pelas escolas.‖ (D2)
Esta constatação da vinculação da educação à escolarização, é feita
apesar de o BM afirmar ter como
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
204
―Objectivo: aprendizagem para todos, para além da escolarização‖ (D2)
num dos sub-títulos do documento. No entanto, neste âmbito o BM declara que
―O ponto essencial da estratégia para a educação do Grupo do Banco é:
Investir cedo. Investir com inteligência. Investir em todos.‖ (D2)
Ora, esta última afirmação clarifica o sentido de ―para além da
escolarização‖: o que está aqui em causa é ir para além dos públicos em idade
escolar e não, necessariamente, para além dos modelos, fins e meios escolares.
Para além do reforço da relação entre escolarização e crescimento
económico (entendidos enquanto ‗educação‘ e desenvolvimento‘), o Banco
Mundial introduz no seu discurso a noção de aprendizagem, ao distinguir o que é
ensinado do que é aprendido. Considero que isto não se traduz, necessariamente,
numa ‗novidade‘ em termos de conceptualização da educação mas sim uma
continuidade conceptual revestida de novidade de práticas. Isto porque o BM
justifica esta ‗nova abordagem‘ da seguinte forma:
―Mas este sucesso deu origem a novos desafios, numa altura em que as
condições no mundo mudaram. (…) Os ganhos no acesso fazem incidir agora
a atenção para o desafio de melhorar a qualidade da educação e acelerar a
aprendizagem.‖ (D2)
O extrato citado aponta para essa continuidade no sentido da evolução da
estratégia com recurso a modos de legitimação discursiva assentes na utilização
de lugares comuns – como a ―qualidade‖ – e em assunções – como ―as condições
do mundo mudaram‖.
A existência de lugares comuns e assunções é, aliás, uma constante
enquanto estratégia discursiva, tal como se pode constatar nos extratos dos
textos em análise. A utilização de expressões como ―qualidade‖, ―aumento‖
―equílibrio‖, ―eficácia‖, ―investir com inteligência‖, ―investir em todos‖, são modos
semióticos de, através da utilização de lugares comuns, construir uma aceitação
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
205
generalizada das perspetivas veiculadas pelos discursos. Do mesmo modo,
assunções como ―produzem‖, ―é fundamental‖, ―são o motor‖, ―é essencial‖ e
―dependem dos‖ constituem-se enquanto formas de fixar, discursivamente, o que
existe, o que deveria existir e o que seria desejável existir.
Assim, o discurso hegemónico constrói uma conceção de desenvolvimento
que, por ser acoplado à luta ou erradicação da pobreza, se centra, quase
exclusivamente, em questões de crescimento económico. Neste sentido, o
conceito volta a ganhar a dimensão que teve, aquando do seu aparecimento no
contexto do fim da segunda guerra mundial, e com o processo de descolonização.
Roque Amaro (2003), refere que
―boa parte da produção teórica inicial sobre «desenvolvimento» visava a
evolução desses países, pelo que o conceito apareceu quase sempre ligado à
resolução dos chamados «problemas e vícios do subdesenvolvimento»‖ (Amaro,
2003: 40).
A interdependência, e quase justaposição, do ‗desenvolvimento‘ ao
conceito de ‗crescimento económico‘ traduziu-se na utilização de indicadores
económicos para aferir o nível de desenvolvimento dos países, o que teve como
consequências:
―considerar-se frequentemente o crescimento económico (enquanto processo
contínuo de aumento da produção de bens e serviços) como a condição
necessária e suficiente («sine qua non») do desenvolvimento, de que
dependiam as melhorias de bem estar da população, a todos os outros níveis
(educação, saúde, habitação, relações sociais, sistema político, valores
culturais, etc.); utilizar-se sistematicamente (…) os indicadores de crescimento
económico, e em particular o nível de rendimento per capita, para classificar
os países em temos de desenvolvimento.
Esta «promiscuidade» dos dois conceitos alargou-se entretanto a um outro, o
de industrialização, uma vez que, tendo sido o crescimento económico
(condição do desenvolvimento) assente historicamente nos países ditos
desenvolvidos, em processos de industrialização, rapidamente a expressão
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
206
«países industrializados» se converteu em sinónimo de «países desenvolvidos» e
aquela foi apresentada como uma etapa obrigatória na caminhada dos países
do Terceiro Mundo para o desenvolvimento.‖ (Amaro, 2003: 48)
Este é, portanto, um conceito de desenvolvimento claramente apoiado na
teoria da modernização que, de acordo com Fortuna (1987), situa os países, em
termos de desenvolvimento, num momento histórico particular, entre as
economias agrícolas ou entre as economias industriais, ou seja, entre economias
tradicionais (menos desenvolvidas e identificadas com o Terceiro Mundo) ou
Estados modernos (mais desenvolvidos, identificados com a civilização ocidental).
O que permitiria aos países do Terceiro Mundo passar de um estado a outro seria
a adoção de políticas e práticas que possibilitassem a passagem por diferentes
etapas de desenvolvimento até chegarem ao nível dos países ocidentais. Assim, ―o
subdesenvolvimento e a pobreza desaparecerão à medida que aqueles países
melhor conseguirem duplicar a estratégia de desenvolvimento anteriormente
ensaiada pelos países desenvolvidos de hoje (Fortuna, 1987: 175).
O discurso hegemónico em análise reveste-se de algumas das
características principais que So (1990) aponta para descrever a teoria da
modernização: atentar no desenvolvimento dos ‗países em vias de
desenvolvimento‘71; focar aspetos gerais do desenvolvimento, ao invés de ter em
conta a especificidade dos países; identificar as causas dos problemas como
sendo maioritariamente internas; construir a natureza das relações entre as
nações como benéficas; apontar como soluções para o desenvolvimento o
aumento das relações dos ‗países em vias de desenvolvimento‘ com o ocidente;
construir uma visão otimista dos processos de desenvolvimento.
71 Na verdade, a teoria da modernização não se referia a ‗países em vias de desenvolvimento‘ mas sim a ‗países de terceiro mundo‘ ou ‗países subdesenvolvidos‘. Aquela expressão veio substituir estas duas últimas mostrando o poder do discurso na construção e reconstrução do mundo.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
207
Relativamente à conceção de educação presente neste discurso, nota-se
uma clara influência da teoria do capital humano. No âmbito de estudos de
Economia do Desenvolvimento (cf. Cabrito, 2002) tem vindo a ser enfatizado,
como fator preponderante do subdesenvolvimento, a existência de mão de obra
desqualificada: ―um traço comum às comunidades em que se verificam mais
baixos níveis de produção, maiores assimetrias na distribuição da riqueza, taxas
mais elevadas de natalidade e de mortalidade, menores consumos de bens
essenciais e de serviços culturais por habitante, etc., é a incapacidade da mão de
obra em responder às solicitações de novas formas e processos produtivos,
concretizada em elevadas taxas de analfabetismo e em deficiente nível de
formação profissional.‖ (Cabrito, 2002: 46). Ora, esta relação entre
subdesenvolvimento e mão de obra desqualificada tem também tradução em
estudos de Economia da Educação que incidem sobre o investimento em
educação e que ―indiciam para um papel decisivo da educação no
desenvolvimento. Na verdade, são os países onde são maiores os níveis de
produtividade e o ritmo de produção e menores as assimetrias na distribuição de
rendimentos e na fruição de bens de natureza social e cultural, aqueles que
apresentam maior nível relativo de investimento nas atividades de educação
inicial e de formação profissional contínua.‖ (Cabrito, 2002: 46).
O autor chama, assim, a atenção para o facto de esta relação entre
educação e produtividade por parte de alguns economistas, ter naturalizado a
associação feita entre educação e desenvolvimento tanto por parte dos discursos
científicos (sobretudo com as propostas da teoria do capital humano, a partir da
década de 1960), como dos discursos políticos, através da incorporação daqueles
nestes últimos.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
208
Deste modo, o discurso hegemónico sobre a educação, o desenvolvimento
e a relação entre ambos pode ser sintetizado de acordo com o quadro seguinte:
Discurso Hegemónico
Desenvolvimento - luta/erradicação da pobreza
- crescimento económico - aproximação à teoria da modernização
Educação
- escolarização - instrução
-desenvolvimento de competências - formação para o mercado de trabalho - aproximação à teoria da modernização
Relação Educação/
/Desenvolvimento
- funcionalidade da primeira para atingir a última - aquisição de competências para a inovação
Quadro 13. Caracterização do vocabulário no discurso hegemónico em análise.
2.2. Do discurso contra-hegemónico
2.2.1. Prática discursiva
Nos textos do Comércio Justo considerados para análise a
intertextualidade assume características distintas da intertextualidade presente
no discurso hegemónico. Enquanto neste a intertextualidade é manifesta – ao
ponto de se poder, até, distinguir entre intertextualidade interna e externa – aqui
a intertextualidade é latente. Quero com isto dizer que não existem referências
específicas a outros textos produzidos no âmbito desta ordem de discurso, mas
apenas menções a outras estruturas do movimento e à sua produção textual:
―Fair Trade products are goods and services that are produced, traded and
sold in accordance with these Fair Trade principles and, wherever possible,
verified by credible, independent assurance systems such as those operated
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
209
by FLO (―Fairtrade-Certified‖) and WFTO (Sustainable Fair Trade Management
System)‖. (D9)
―It all started in the United States, where Ten Thousand Villages (formerly Self
Help Crafts) began buying needlework from Puerto Rico in 1946, and SERRV
began to trade with poor communities in the South in the late 1940s.‖ (D8)
―The earliest traces of Fair Trade in Europe date from the late 1950s when
Oxfam UK started to sell crafts made by Chinese refugees in Oxfam shops.‖
(D8)
―At the same time, Dutch third world groups began to sell cane sugar with the
message ―by buying cane sugar you give people in poor countries a place in
the sun of prosperity‖. These groups went on to sell handicrafts from the
South, and in 1969 the first ―Third World Shop‖ opened.‖ (D8)
―During the 1960s and 1970s, Non-Governmental Organizations (NGOs) and
socially motivated individuals in many countries in Asia, Africa and Latin
America perceived the need for fair marketing organizations which would
provide advice, assistance and support to disadvantaged producers. Many
such Southern Fair Trade Organizations were established, and links were
made with the new organizations in the North. These relationships were based
on partnership, dialogue, transparency and respect. The goal was greater
equity in international trade.‖ (D8)
―By the mid 80s there was a desire to come together more formally and the
end of the decade saw the foundation of the European Fair Trade Association
(EFTA, an association of the 11 largest importing organizations in Europe) in
1987 and the International Fair Trade Association (IFAT), now the World Fair
Trade Organization (WFTO), in 1989. The organizations that are a part of
WFTO vary greatly. They represent the whole chain from producer to sale and
also include support organizations such as Shared Interest, which provides
financial services and support to produces.‖ (D8)
―FLO, WFTO, NEWS! and EFTA started to meet in 1998 with the aim to enable
these networks and their members to cooperate on important areas of work,
such as advocacy and campaigning, standards and monitoring of Fair Trade.‖
(D8)
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
210
―In the course of the years, the Fair Trade movement has become more
professional in its awareness-raising and advocacy work. It produces well-
researched documents, attractive campaign materials and public events. It
has also benefited from the establishment of European structures that help to
harmonize and centralise its campaigning and advocacy work. An important
tool was the establishment of a joint Advocacy Office in Brussels, which
focuses on influencing (European) policy-makers. It is supported, managed
and funded by the whole movement, represented in FLO, WFTO, NEWS and
EFTA.‖ (D8)
―In 1997 their worldwide association, Fairtrade Labelling International (FLO),
was created. Today, FLO is responsible for setting international standards for
Fair Trade products, certifying production and auditing trade according to
these standards and for the labelling of products.‖ (D8)
―A priest working with smallholder coffee farmers in Mexico and a collaborator
of a Dutch church-based NGO conceived the idea of a Fair Trade label. Coffee
bought, traded and sold respecting Fair Trade conditions would qualify for a
label that would make it stand out among ordinary coffee on store shelves,
and would allow not only Fair Trade Organizations, but any company to sell
Fair Trade products. In 1988, the ―Max Havelaar‖ label was established in The
Netherlands.‖ (D8)
Assim, a intertextualidade é latente no sentido em que o texto remete, ou
menciona, outros textos e vozes. Esta referência tem como função fixar a
credibilidade do movimento por referência a: modos de organização do
movimento (nomeadamente, cooperação em rede entre as estruturas); definição
de critérios de fiabilidade (como a produção de rótulos e marcas identificativas);
história do movimento (dando conta do desenvolvimento que este teve em termos
de crescimento organizativo e geográfico). Esta intertextualidade latente assume
também a forma de menção à existência de ―documentos e materiais‖ produzidos
no âmbito de campanhas.
É, no entanto, de salientar aquilo a que chamo intertextualidade invertida.
Esta forma de intertextualidade caracteriza-se pelo facto de o texto, apesar de
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
211
não citar outros textos, referir textos da sua autoria, textos esses que, pelas suas
características, serão textos citados (direta ou indiretamente) por outras
organizações pertencentes ao movimento. É o caso dos ―Princípios das
Organizações de Comércio Justo‖, prescritos pela WFTO, e que as organizações
de Comércio Justo devem seguir no seu trabalho diário:
―Principle One: Creating Opportunities for Economically Disadvantaged
Producers (…); Principle Two: Transparency and Accountability (…); Principle
Three: Fair Trading Practices (…); Principle Four: Payment of a Fair Price (…);
Principle Five: Ensuring no Child Labour and Forced Labour (…); Principle
Six: Commitment to Non Discrimination, Gender Equity and Freedom of
Association (…); Principle Seven: Ensuring Good Working Conditions (…);
Principle Eight: Providing Capacity Building (…); Principle Nine: Promoting
Fair Trade (…); Principle Ten: Respect for the Environment (…)‖ (D10)
A intertextualidade invertida é, então, a existência de textos, no interior do
texto em análise, que subjazem à criação de outros textos da mesma ordem de
discurso.
No que diz respeito à interdiscursividade, ou seja, à presença, no discurso
em análise, de outros discursos, a análise deu conta da sua existência de duas
formas. Ao longo dos textos analisados são referidos outros discursos,
identificados com uma ordem hegemónica, mas que têm uma função distinta
neste discurso contra-hegemónico.
Um dos discursos referidos é o discurso acerca dos direitos dos
trabalhadores. Segundo a WFTO,
―Fair Trade also adheres to standards (such as ILO conventions) that have
been widely – but by no means universally – adopted in national legal systems
as well as through voluntary codes of conduct by companies. However,
breaches of these principles are commonplace in the developing world, and
even in the most developed countries, ensuring compliance remains a major
challenge. The Fair Trade approach to this problem is based on its
developmental objectives and recognises that exploitation is a symptom of
poverty and inequality rather than the cause. Fair Trade therefore seeks to
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
212
address the underlying causes of poverty through new forms of trading
relationships rather than merely tackling the symptoms by checking
compliance with standards within individual operators and supply chains.
Furthermore, while compliance with legal requirements and respect for basic
human rights are of course important and non-negotiable, they are
insufficient in themselves to achieve the transformation towards long-term
development that is needed. These changes require deeper engagement by
actors in the trading chain, and recognition of the wider social and political
context of their economic relationships and transactions.‖ (D9).
O movimento afirma, então, a sua concordância com os critérios definidos
pela OIT mas assume a ser comum a existência de ―brechas nesses princípios‖
no ―mundo em desenvolvimento‖, pelo que, afirma a necessidade de ―ter em
conta as causas subjacentes à pobreza através de novas formas de relação
comercial‖ em vez de ―apenas combater os sintomas através da verificação do
cumprimento de critérios individuais‖, uma vez que, ―a exploração um sintoma
da pobreza e desigualdade e não a sua causa‖. Assim, o movimento propõe a
inclusão de uma dimensão de Comércio Justo aos direitos laborais (cf. D9)
assumindo uma interdiscursividade negativa, ou seja, contestando o discurso
produzido pela OIT e tentando alterá-lo através da enunciação de alternativas.
Outro discurso está presente neste, assumindo uma outra forma de
interdiscursividade:
―Fair Trade and Fair Trade Organizations have been recognised repeatedly by
European Institutions as well as national and regional governments for its
contribution to poverty reduction, sustainable development and consumer
awareness-raising. The European Parliament passed several resolutions on
Fair Trade (in 1994, 1998 and 2006) and many European ministers and prime
ministers have publicly endorsed Fair Trade. (…) Fair Trade is increasingly on
the agenda of policy makers throughout the world.‖ (D8)
Esta forma de interdiscursividade, que qualifico de interdiscursividade
positiva, caracteriza-se por ser uma interdiscursividade que se apoia numa outra
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
213
ordem de discurso. Isto significa que aqui, o fator hegemónico do discurso
referido não ser tido em conta, na medida em que o estatuto e papel da
organização que o produz, é entendido como benéfico para o movimento. O facto
de uma organização regional como a União Europeia, através do seu Parlamento
e instituições, ―reconhecer repetidamente‖ o contributo do Comércio Justo na
―redução da pobreza, desenvolvimento sustentável e conscientização dos
consumidores‖ é usado como uma forma de legitimação do movimento, não
obstante o discurso hegemónico que a União Europeia produz.
Esta interdiscursividade positiva pode indiciar uma aproximação, ainda
que estratégica, às organizações hegemónicas. De facto, esta é uma situação com
que o movimento lida nesta fase do seu desenvolvimento e que produz uma outra
forma de interdiscursividade: a interdiscursividade interna. Quero com isto
identificar a possibilidade de existência de discursos plurais no interior da ordem
discursiva e que é decorrente da existência de controvérsias no interior do
movimento:
―E1. A maioria das pessoas, penso eu, tende a associar o Comércio
Justo…com… pequenos produtores, com a ―arraia-miúda‖, com produtores do
3º Mundo…Portanto… terá havido alguma surpresa ao encontrar tipos como
Nestlé, Wall-Mart, ou o Starbucks estando neste…clube…do Comércio Justo…
(…) O que sente em relação a isso?
E2. Miserável!… O Comércio Justo … estabeleceu-se como um conjunto de
pequenos produtores. Mas, eles esqueceram-se do…objetivo básico…de
providenciar uma nova oportunidade e uma nova possibilidade de diferentes
mercados para pequenos produtores, deixando entrar os grandes tubarões.
Porque eles estavam interessados em ter…mais, e mais e mais…mercado!...
Starbucks entrou…Nestlé entrou… Cerolee(?) entrou… nós estamos a gritar
dos campos que eles não deviam estar… e, como tirá-los?… Nestlé está… no
México…Nestlé é o nosso…maior inimigo!... 85% do mercado é controlado pela
Nestlé!...É um novo conflito que temos de resolver.‖ (D6)
Esta divergência, ou interdiscursividade interna, é completamente
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
214
excluída dos textos produzidos pela WFTO. Pelo contrário, aquilo que para Frans
van der Hoff é ―Miserável!‖, é entendido pela WTFO como um avanço e um ganho
conseguido pelo movimento:
―The movement is engaged in debates with political decision-makers in the
European institutions and international fora on making international trade
fairer. On top of that, Fair Trade has made mainstream business more aware
of its social and environmental responsibility. In short: Fair Trade is becoming
more and more successful.‖ (D8)
―Thanks to the efforts of Fair Trade Organizations worldwide, Fair Trade has
gained recognition among politicians and mainstream businesses. More
successes are to be expected, as Fair Trade Organizations develop into
stronger players and mainstream companies become more and more attuned
to the demand for Fair Trade in the marketplace. Watch this space!‖ (D8)
Este conflito, que constrói o movimento numa dupla controvérsia – do
movimento face ao exterior e no interior do movimento –, será abordado no
capítulo dedicado à caracterização desta ordem de discurso contra-hegemónica.
2.2.2. Vocabulário
A conceção de desenvolvimento que o discurso do Comércio Justo constrói
encontra-se presente nos diversos documentos em análise, na medida em que, o
movimento se identifica como
―It contributes to sustainable development by offering better trading
conditions to, and securing the rights of, marginalized producers and workers
– especially in the South.‖ (D7)
―Fair Trade is more than just trading: it proves that greater justice in world
trade is possible. It highlights the need for change in the rules and practice of
conventional trade and shows how a successful business can also put people
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
215
first.‖ (D7)
―Fair Trade, fundamentally, is a response to the failure of conventional trade
to deliver sustainable livelihoods and development opportunities to people in
the poorest countries of the world; this is evidenced by the two billion of our
fellow citizens who, despite working extremely hard, survive on less than $2
per day. Poverty and hardship limit people's choices while market forces tend
to further marginalise and exclude them. This makes them vulnerable to
exploitation, whether as farmers and artisans in family-based production
units (hereafter "producers") or as hired workers (hereafter "workers") within
larger businesses.‖ (D9)
―The Fair Trade movement shares a vision of a world in which justice and
sustainable development are at the heart of trade structures and practices so
that everyone, through their work, can maintain a decent and dignified
livelihood and develop their full human potential.‖ (D9)
―The Fair Trade movement believes that trade can be a fundamental driver of
poverty reduction and greater sustainable development, but only if it is
managed for that purpose, with greater equity and transparency than is
currently the norm. We believe that the marginalised and disadvantaged can
develop the capacity to take more control over their work and their lives if they
are better organised, resourced and supported, and can secure access to
mainstream markets under fair trading conditions.‖ (D9)
A definição do movimento fixa o sentido atribuído ao desenvolvimento
também – tal como o discurso hegemónico – por relação à luta contra a pobreza.
No entanto, encontra-se uma diferença fundamental na construção discursiva do
modo de combater a pobreza. Se no discurso hegemónico a ênfase é colocada no
crescimento económico como fator de erradicação ou luta contra a pobreza, aqui
o desenvolvimento, ou a falta dele, é discursivamente relacionado com as
condições do comércio internacional convencional, no sentido em que o
movimento identifica o ―falhanço do comércio convencional em providenciar
meios de subsistência sustentáveis e oportunidades de desenvolvimento para as
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
216
pessoas nos países mais pobres do mundo‖. Assim, a conceção de
desenvolvimento não é alocada ao crescimento económico dos países mas sim à
reformulação das condições de comércio o que, por sua vez, retira a
‗responsabilidade‘ de desenvolvimento das pessoas e dos países colocando-a na
organização do sistema mundial.
Esta é, portanto, uma conceção de desenvolvimento mais consentânea
com a perspetiva de sistema-mundo desenvolvida, a partir dos anos 1970, por
Immanuel Wallerstein. Esta perspetiva caracteriza-se, sobretudo, por questionar
a lógica da unidade de análise centrada nas sociedades e nos Estados,
defendendo que a unidade básica de análise deveria ser o sistema histórico em
vez do Estado/sociedade. Para Wallerstein isto seria mais do que uma
substituição semântica porque o termo sistema histórico liberta da conotação
central que ‗sociedade‘ adquiriu ao ligar-se com ‗Estado‘ e, assim, do pressuposto
acerca do ‗quando‘ e do ‗onde‘ (So, 1990). Esta deslocação do Estado ou da
sociedade para o sistema-mundo, permite, então, focar os processos de
desenvolvimento já não nos países subdesenvolvidos – de acordo com a teoria da
modernização – ou da periferia – de acordo com a teoria da dependência –, mas
sim ―na periferia, como no centro, como na semiperiferia, como na economia
mundo‖ (So, 1990: 357). Os extratos acima referidos permitem uma identificação
da perspetiva de desenvolvimento que o movimento preconiza com as premissas
desenvolvidas por Wallerstein, na medida em que coloca o cerne das questões de
desenvolvimento nos processos e nas condições estruturais da economia
mundial.
Não deixa de ser relevante o uso do termo ―trabalhadores‖ e ―produtores‖ –
conforme extratos acima transcritos –, ao longo dos textos analisados, por
contraposição a ―recursos humano‖ que mais não é do que uma reconfiguração
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
217
discursiva de ―trabalhador‖. Esta reconfiguração dissocia os trabalhadores das
condições de produção, atribuindo-lhe um estatuto idêntico aos dos ―recursos
materiais‖, dessocializando o fator ‗trabalho‘. Para o movimento,
―The term workers usually describes field workers, artisans or other workers
including migrant, temporary, seasonal, sub-contracted and permanent
workers, and all other hired labour personnel. The term, however, is limited to
personnel who are entitled to join unions and therefore normally excludes
middle and senior management‖ (D11)
Da mesma forma, é recorrente o uso do termo ―pessoas‖ que, à exceção do
documento da ONU, não é encontrado no discurso hegemónico. Isto vincula a
conceção de desenvolvimento a conceções diferentes da que o entendem
enquanto crescimento económico. É também a partir dos anos 1970 que,
segundo Roque Amaro (2003), se dá uma viragem nas abordagens e práticas de
desenvolvimento. A ―crença ocidental‖ (Rist, 2001) no desenvolvimento é posta
em questão levando a uma ―adjectivação (…) que procura traduzir uma variedade
de propostas e de conteúdos‖ (Amaro, 2003). Roque Amaro (2003), propõe a
organização destas novas conceptualizações do desenvolvimento em torno de seis
novos conceitos, entre os quais o desenvolvimento integrado que, segundo o
autor, pressupõe uma abordagem interdisciplinar e pode ser entendido como
―o processo que conjuga as diferentes dimensões da Vida e dos seus percursos
de mudança e de melhoria, implicando, por exemplo: a articulação entre o
económico, o social, o cultural, o político e o ambiental; a quantidade e a
qualidade; as várias gerações; a tradição e a modernidade; o endógeno e o
exógeno; o local e o global; os vários parceiros e instituições envolvidas; a
investigação e a acção; o ser, o estar, o fazer, o criar, o saber e o ter (as
dimensões existenciais do desenvolvimento); o feminino e o masculino; as
emoções e a razão...‖ (Amaro: 2003:59)
A consideração da vinculação do conceito de desenvolvimento do CJ ao
―desenvolvimento integrado‖ (Amaro, 2003) prende-se com a relação
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
218
discursivamente construída entre desenvolvimento e
i) sustentabilidade,
―The cost of sustainable production is the cost of producing a product
sustainably and in a socially, economically and environmentally responsible
way that conforms with Fairtrade Standards. The Standards Unit assumes
that the COSP reflects sustainability.‖ (D11)
ii) condições de vida das populações e dos trabalhadores,
―The organization trades with concern for the social, economic and
environmental well-being of marginalized small producers and does not
maximize profit at their expense. It is responsible and professional in meeting
its commitments in a timely manner. Suppliers respect contracts and deliver
products on time and to the desired quality and specifications. Fair Trade
buyers, recognizing the financial disadvantages producers and suppliers face,
ensure orders are paid on receipt of documents and according to the attached
guidelines. (D10)
iii) condições de trabalho,
―The organization seeks to increase positive developmental impacts for small,
marginalized producers through Fair Trade.‖ (D10)
―The organization respects the right of all employees to form and join trade
unions of their choice and to bargain collectively. Where the right to join trade
unions and bargain collectively are restricted by law and/or political
environment, the organization will enable means of independent and free
association and bargaining for employees. The organization ensures that
representatives of employees are not subject to discrimination in the
workplace.‖ (D10)
―A pre payment of at least 50% is made if requested.‖ (D10)
iv) não discriminação,
―The organization does not discriminate in hiring, remuneration, access to
training, promotion, termination or retirement based on race, caste, national
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
219
origin, religion, disability, gender, sexual orientation, union membership,
political affiliation, HIV/Aids status or age. The organization provides
opportunities for women and men to develop their skills and actively promotes
applications from women for job vacancies and for leadership positions in the
organization. The organization takes into account the special health and
safety needs of pregnant women and breast-feeding mothers. Women fully
participate in decisions concerning the use of benefits accruing from the
production process.‖ (D10)
v) recusa da exploração do trabalho infantil mas atendendo às
especificidades sociais e culturais das comunidades
―Fairtrade differentiates between the employment of children below the age of
15 by the producer and members of producer organizations, and children
helping out on family farms. Children sometimes carry out small tasks which
could be beneficial to their development, such as learning a skill, having a
responsibility, and/or contributing to their or their families' well-being or
income. However, if children are helping out on family farms, Fairtrade
requires that they do so only if they work after school or during holidays, the
work they do is appropriate for their age, they do not work long hours and/or
under dangerous or exploitative conditions, and are supervised and guided by
an adult family member. In Fairtrade no child below the age of 18 can
undertake any type of work which, by its nature or the circumstances under
which it is carried out, is likely to jeopardize their health, safety or morals,
and their school attendance. Examples of child work considered to be
unacceptable are work that involves slave-like practices; recruitment into
armed conflict; sex work and/or illicit activities. Examples of activities that are
potentially damaging to a child include work in an unhealthy environment;
excessive working hours resulting in tiredness or lack of sleep; work that
involves handling or any exposure to toxic chemicals; work at dangerous
heights; operation of dangerous equipment; and work that involves abusive
punishment.‖ (D11)
vi) pagamento de um preço justo pelo trabalho, definido como
―The Fairtrade Minimum Price (where it exists) is the minimum price that
must be paid by buyers to producers for a product to become certified against
the Fairtrade Standards. The FMP is a floor price which covers producers'
average costs of production and allows them access to their product markets.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
220
The FMP represents a formal safety net that protects producers from being
forced to sell their products at too low a price when the market price is below
the FMP. It is therefore the lowest possible price that the Fairtrade payer may
pay to the producer.‖ (D11)
―Fairtrade Premium is an amount paid to producers in addition to the
payment for their products. The use of the Fairtrade Premium is restricted to
community (for a small producer organization or contract production set-up)
or to the socioeconomic development of the workers and their community (for
a hired labour situation). Its specific use is democratically decided by the
producers.‖ (D11)
Este modelo de ―desenvolvimento integrado‖ (Amaro, 2003) a que o
Comércio Justo aspira pode ser resumido com as palavras de Frans van der Hoff:
―Francisco leva-nos à grande sala comum para nos mostrar frescos que
retratam o modelo social a que aspiram
[várias imagens de frescos: 3 pessoas em círculo, de mãos dadas, à volta de
um globo terrestre;]
FVH – É, sobretudo, a solidariedade a nível mundial. Todos unidos para
melhorar as coisas.
[imagem 2: uma mulher desenhada até ao busto, nú, de braços abertos em
ligação à Terra – mãe natureza]‖ (D5)
No que à educação diz respeito, o movimento faz também uma inversão no
que toca à sua conceção. Essa inversão é feita, desde logo, pela não vinculação
da educação à escolarização e à preparação para o mercado de trabalho. A ênfase
é colocada nos processos de ―conscientização dos consumidores‖:
―From the beginning, the Fair Trade movement aimed to raise awareness
among consumers of the problems caused by conventional trade, and to
introduce changes to its rules. The sale of products always went alongside
with information on the production, producers and their conditions of living. It
has become the role of World / Fair Trade Shops to mobilise consumers to
participate in campaigning activities for more global justice.‖ (D8)
O ―aumento da conscientização entre os consumidores para os problemas
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
221
causados pelo comércio convencional‖ insere-se na conceção de que a educação
é, acima de tudo, uma forma de ‗transformar‘ os indivíduos em cidadãos:
conscientes, críticos, capazes de intervir socialmente com vista a melhorar a
sociedade. Só assim se atinge verdadeiramente a democracia: ―A noção de
democracia implica a noção de uma cidadania democrática na qual os agentes
são responsáveis, capazes de participar, de escolher os seus representantes e de
monitorizar o seu desempenho‖ (Morrow e Torres, 1998: 147). Esta noção de
democracia implica um processo de aprendizagem, que não se confina às
dimensões escolares e/ou formais, mas que se situa predominantemente na
interação crítica, emancipadora e transformadora dos sujeitos, entre si, e com o
mundo:
―Os indivíduos não se encontram naturalmente prontos para a participação
política. Necessitam de educação em várias vertentes da política democrática,
incluindo a justificação das normas, o comportamento ético, o conhecimento
do progresso democrático e do desempenho técnico. A construção do sujeito
pedagógico é um problema conceptual central, um dilema da democracia‖
(Morrow e Torres, 1998: 147).
Esta ―construção do sujeito pedagógico‖ necessário à formação do cidadão
democrático não pode ser realizada apenas através da educação formal. Neste
sentido, ganha uma relevância especial a ideia de educação não formal e
informal, no sentido em que muitas das aprendizagens fundamentais para o
exercício da democracia e da cidadania se situam fora dos limites das disciplinas
tradicionais e se localizam na interseção de muitas delas.
O termo utilizado pelo movimento – ―conscientização‖ – remete, de modo
quase imediato, para a obra de Paulo Freire. De facto, conscientização é um
conceito central na sua obra, já que congrega em si a dimensão política e a
dimensão individual na relação dos sujeitos com o conhecimento. O processo de
aprender, que na perspetiva de Paulo Freire é eminentemente humano, não é
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
222
neutro, envolve uma componente ideológica que implica um processo de análise,
uma reflexão crítica e uma tomada de posição:
―No processo de produzir e de adquirir conhecimentos, terminamos também
por aprender a ‗tomar distância‘ dos objetos, maneira contraditória de nos
aproximarmos deles. A ‗tomada de distância‘ dos objetos implica a tomada de
consciência dos mesmos (...) A conscientização é o aprofundamento da tomada
de consciência. Não há conscientização sem tomada de consciência, mas nem
toda tomada de consciência se alonga obrigatoriamente em conscientização. É
neste sentido que a pura tomada de consciência a que falte a curiosidade
cautelosa mas arriscada, a reflexão crítica, a rigorosidade dos procedimentos
de aproximação ao objeto fica no nível do ‗senso comum‘.‖ (Freire, 1991: 110)
Algumas vezes referiu que ―conscientização‖ era usada mais como uma
simples palavra ou slogan, do que como um conceito, lamentando esta
manipulação:
―Nos anos 70, com exceções, é claro, falava-se ou se escrevia de
conscientização como se fosse ela uma pílula mágica a ser aplicada em doses
diferentes com vistas à mudança do mundo. ... Me pareceu àquela época ...
que, de um lado, eu deveria de uma vez deixar de usar a palavra, de outro,
procurar, em entrevistas, em seminários, em ensaios – o que fiz realmente –
aclarar melhor o que pretendia com o processo conscientizador, no sentido de
diminuir os riscos abertos às interpretações idealistas, tão funestas quanto as
objectivistas mecanicistas.‖ (Freire, 1991:112).
Na perspetiva de Paulo Freire, a educação enquanto conceito deverá
permitir aos sujeitos uma tomada de consciência de forma a que eles alcancem a
conscientização. Assim, a educação deve ser a ‗educação para a conscientização‘
e a finalidade inerente ao ato educativo é tornar os indivíduos capazes de, mais
do que ler a palavra, ‗ler o mundo‘.
Esta ‗conscientização‘ e ‗leitura do mundo é entendida, no Comércio Justo,
como uma forma de educação tanto dos consumidores como dos produtores.
Para os primeiros, ela terá como objetivo
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
223
―(E1. O que é que você preferia que o Norte pensasse quando os seus consumidores
adquirissem um produto?)
E2. Que… conseguindo… um maior sistema democrático no mercado pode-se
construir um…mundo, onde todos podem viver bem, … para aliviar a
pobreza.‖ (D6).
Para os segundos,
―E2. Empowerment político… como..eu percepciono… uma das coisas mais
importantes.‖ (D6).
Este ‗empowerment político‘ é feito também através da implementação e
desenvolvimento, nas cooperativas de produtores, de sistemas de formação
formalizados:
―R – Aos 66 anos, o padre Francisco apoia-se agora nas jovens gerações para transmitir
a sua mensagem. Um dos resultados concretos do CJ, é a criação desta escola.
[imagens de uma escola e jovens a ter aulas].
Aqui, os filhos dos produtores aprendem não só a faina agrícola, como também os
princípios do CJ. [imagem de jovens a jogar basquetebol]
No futuro, estarão mais preparados para seguir, ou não, aquilo que o padre Francisco
chama de ―Utopia Realista‖ [imagem de um fresco a retratar um mestre-escola em
frente a um quadro de giz com as palavras ―la utopia‖].‖ (D5)
Discurso Hegemónico
Desenvolvimento - luta contra a pobreza
- sustentabilidade económica, social e ambiental - aproximação à teoria do sistema-mundo
Educação - conscientização
- empowerment político
Relação Educação/
/Desenvolvimento - relação simbiótica
Quadro 14. Caracterização do vocabulário no discurso contra-hegemónico em análise.
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
224
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
225
IIVV
DDOO DDIISSCCUURRSSOO CCOONNTTRRAA--HHEEGGEEMMÓÓNNIICCOO,,
OOUU RREEFFLLEEXXÕÕEESS CCOONNCCLLUUSSIIVVAASS
“Tudo mudara para mim, e palavras que antes nunca
havia compreendido começaram subitamente a fazer
sentido. Isto foi como que uma revelação, e quando
finalmente pude absorver isso, espantava-me como fora
possível ter vivido tanto tempo sem ter aprendido algo
tão simples.”
Paul Auster, Trilogia de Nova Iorque
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
226
O discurso contra-hegemónico que esteve em discussão neste trabalho foi
analisado, do ponto de vista da sua politicidade, por referência à sua constituição
enquanto movimento social, termo que remete
“em sentido amplo, a lutas sociais travadas coletivamente, propondo
mudanças em diferentes esferas (política, cultural, económica, social) e níveis
(local, setorial, macrossocial). Este conceito aporta a idéia de uma ação
coletiva que apresenta questionamentos ao sistema ou normas específicas,
designando assim eventos de composições e alcances distintos” (Icaza, 2009:
260).
A análise produzida permitiu identificar a matriz social do discurso e
caracterizá-lo ideologicamente. Esta caracterização, que identificou a construção
de uma ideologia da solidariedade, remete o discurso deste movimento para o
âmbito da economia solidária, entendida enquanto
“uma economia na qual o desenvolvimento social não seja uma preocupação
subsidiária, relegada a mecanismos compensatórios, uma economia cuja
lógica intrínseca implique e estimule a cooperação e a reciprocidade, em
benefício da equidade e da justiça social” (Laville e Gaiger, 2009: 168).
A economia solidária apresenta como traço estruturador a “primazia da
solidariedade sobre o interesse individual e o ganho material” (Laville e Gaiger,
2009: 162) sendo essa solidariedade promovida através de um vínculo social,
estabelecido entre os intervenientes na atividade económica. No Comércio Justo,
esse vínculo é criado entre os diferentes elos da cadeia que compõem o processo,
desde o produtor ao consumidor. Essa ligação dá-se “não tanto pela redução da
distância física, mas pela aproximação ética” (Cotera e Ortiz, 2009: 61). A ideia
da possibilidade de existência de um comércio que é „justo‟ e de uma economia
que é „solidária‟ é desafiante por duas ordens de razão: por um lado, porque
assume o “imaginário económico” (Jessop, 2004; Jessop e Oosterlynck, 2008), e,
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
227
por outro, porque questiona a necessidade de adjetivação da economia. Estas
duas ordens de razão estão inextrincavelmente relacionadas: a necessidade de
adjetivação da economia só é explicável pela cristalização de um conceito de
economia que a afasta da sua origem enquanto ciência social e que agudiza a
necessidade da sua conceptualização em termos políticos. Para Jessop e
Oosterlynck (2008) é necessário “reconhecer as dimensões semióticas da
economia política e, ao mesmo tempo, estabelecer como e porquê apenas alguns
imaginários económicos, entre tantos que atualmente circulam, foram
selecionados e institucionalizados” (Jessop e Oosterlynck, 2008: 1).
Assim, considero que esta reconceptualização da economia através da
ênfase na sua politicidade – construída de acordo com uma ideologia da
solidariedade – é uma das formas de o Comércio Justo, enquanto novo
movimento social, preconizar a mudança social.
Esta não é, no entanto, a única expressão de mudança social presente no
discurso deste movimento. Tal como a análise deu conta, essa mudança estende-
se à conceptualização da educação, do desenvolvimento e da relação entre
ambos.
Krause (2010) constrói uma tipologia de educação para o desenvolvimento
com base em práticas e definições de educação para o desenvolvimento
assumidas por diversos atores:
i) a educação para o desenvolvimento como consciencialização:
“A ED é a disseminação pública de informação sobre um vasto conjunto de
assuntos (ex.: desenvolvimento sustentável, paz e desenvolvimento, comércio e
desenvolvimento, ODM), países em desenvolvimento e políticas de cooperação
para o desenvolvimento; o trabalho de consciencialização foca-se na
informação cognitiva disseminada através de uma abordagem «top-down»”
(Krause, 2010: 7);
ii) a educação para o desenvolvimento como educação global:
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
228
“a ED foca a interdependência local-global; envolve participação da população
alvo; estimula a compreensão crítica de assuntos de desenvolvimento,
ambiente, direitos humanos, interculturalidade, paz e a responsabilidade de
cada um num mundo globalmente interdependente; procura mudar atitudes e
comportamentos e promover o envolvimento e advocacy para a justiça social
global e sustentabilidade” (Krause, 2010: 7);
iii) a educação para o desenvolvimento como promotora de „aptidões de
vida‟:
“a ED relaciona a vida pessoal e local (política/social/económica/ambiental) a
assuntos globais; foca-se em processos de aprendizagem, apoia o pensamento
crítico, a autorreflexão, e as escolhas independentes do aprendente; tem como
objetivo o desenvolvimento de competências necessárias para ter uma vida
plena na complexa e dinâmica sociedade mundial; equipa os indivíduos com
aptidões necessárias à participação em processos de mudança desde o nível
comunitário local ao nível global” (Krause, 2010: 7).
O autor ressalva que esta tipologia não é exaustiva e que é construída
enquanto ideal-tipo, pelo que a mistura de características enunciadas em
práticas reais é, não só possível, como provável. No entanto, e dado que o que
aqui é considerado não são as práticas em si mesmas mas sim os discursos
enquanto prática, parece-me possível enquadrar, com base na análise produzida,
o discurso do CJ na “educação para o desenvolvimento como educação global”. A
enunciação do primeiro tipo de educação para o desenvolvimento feita por Krause
(2010) enquanto “consciencialização” poderia, numa análise menos atenta, fazer
a identificação do discurso do movimento com esse primeiro tipo. Mas as
características identificadas no vocabulário usado pelo CJ (cf. Quadro 14),
remetem para o segundo tipo identificado por Krause (2010).
Assim, a mudança preconizada pelo discurso do CJ, no que às conceções
de educação e de desenvolvimento diz respeito, bem como quanto à relação
anunciada entre estas duas, engloba os fins, os meios e a população alvo da
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
229
educação, a multidimensionalidade do desenvolvimento e o relacionamento
circular entre os dois conceitos. De facto, não só a educação deixa de estar
identificada exclusivamente com a escolarização como deixa de ser um ato do
„Norte‟ sobre o „Sul‟, ou seja, deixa de ser um ato de “modelação da educação nas
sociedades em desenvolvimento” (Dale, 1982). Da mesma forma, a sua finalidade
centra-se, sobretudo, nos processos de cidadania ativa – ou seja, uma cidadania
que não é apenas reconhecida – tanto dos produtores do Sul como dos
consumidores do Norte. A intervenção educativa é, então, discursivamente
construída como uma dupla conscientização: dos produtores no sentido de
ultrapassar os obstáculos produzidos pelas regras do comércio internacional, e
dos consumidores no sentido de perspetivarem o consumo como um ato político.
Não obstante esta dupla conscientização, aquela que é discursivamente
valorizada enquanto tal – pelo uso dessa mesma palavra – é a que é realizada
com os consumidores do Norte.
Também a noção de desenvolvimento advogada aponta para novas formas
de conceber o conceito. Quando Frans van der Hoff afirma
“Aqui não queremos desenvolvimento, nem prosperidade, pois sabemos que
isso se baseia na exploração. Queremos condições de vida dignas, uma
pobreza digna, com casas decentes, acesso a cuidados de saúde, e alimentos
suficientes para comer.” (D5)
está a denunciar os „vícios‟ do desenvolvimento tal como ele é, hegemonicamente,
entendido. É precisamente essa forma hegemónica de conceber o
desenvolvimento que leva Esteva (1992) a afirmar que “[a]o homem moderno foi
oferecida uma expectativa ilusória, implícita na conotação do desenvolvimento e
da sua rede semântica: crescimento, evolução, maturação, modernização.”
(Esteva, 1992:23). Esta “expectativa ilusória” é recusada no discurso do
movimento no sentido em que, ao enfatizar a importância da sustentabilidade
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
230
económica, social e ambiental, recusa a aceção de desenvolvimento conotada
com „crescimento‟.
E é nesse sentido que a relação entre educação e desenvolvimento é
circular. Na verdade, a relação que é desenhada pelo discurso é tanto de
educação para o desenvolvimento como de desenvolvimento para a educação, na
medida em que os dois conceitos se inter-relacionam, não se antevendo uma
relação de subordinação de um face a outro mas sim de complementaridade.
Na Introdução deste trabalho fiz referência à distinção elaborada por
Santos (2000, 2002) entre conceções paradigmáticas e subparadigmáticas de
mudança social, distinção essa que assenta, sobretudo, nas finalidades visadas
pelos atores identificadas, respetivamente, como transformadoras ou
adaptativas. No entanto, esta dicotomização espartilha a conceção de mudança
social de um modo que pode não ser o mais eficaz na medida em que não
pondera, por exemplo, a distinção entre meios e fins. O movimento cujos
discursos estiveram aqui em análise é um exemplo disso mesmo. De facto, se por
um lado a análise do vocabulário deu conta de uma produção discursiva
transformadora, por outro, essa transformação assenta em processos de
produção, distribuição e consumo. Ora, a “expectativa ilusória” que refere Esteva
(1992) assenta, precisamente, nesses processos que, por sua vez, são base da
economia capitalista mundial. Como conciliar então aquilo que parece ser uma
contradição entre uma mudança paradigmática e uma mudança
subparadigmática? Essa parece ser também a questão que se levanta quando se
tem em conta a controvérsia interna ao movimento (cf. página 214). Num
trabalho mais recente, Santos e Rodríguez (2004) parecem querer ultrapassar
essa contradição ao afirmarem que
“[m]ais do que da velha dicotomia entre reforma e revolução, trata-se é de,
como afirma Gorz (1997), aplicar reformas revolucionárias, ou seja,
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
231
empreender reformas e iniciativas que surjam dentro do sistema capitalista
em que vivemos, mas que facilitem e dêem credibilidade a formas de
organização económica e de sociabilidade não capitalista.” (Santos e
Rodriguez, 2004: 26-27).
Este entendimento de alternativas que contemplassem não só os fins, mas
também os meios, tinha já sido explorado no campo da Psicossociologia quando
Langue (1993) afirmou que
“Normalmente simplificamos rapidamente as coisas opondo os extremos. Este
é o caso do exemplo paradigmático da oposição entre patrão e sindicatos. Ao
modo de ação institucional clássico que representa a submissão ao instituído,
opomos a ação anti-institucional do instituinte agressivo e vindicativo. Mas
existe uma terceira via, menos espetacular mas muitas vezes mais eficaz, que
é o modo de ação contrainstitucional. Nesta estratégia de ação já não se trata
de se opor ao poder numa “prova de força” onde as regras (normalmente,
definidas pelo poder estabelecido) são respeitadas, mas sim de agir “à
margem”, onde não se espera, onde o poder instituído não previu que a reação
agisse.” (Langue, 1993: 73).
Este alargamento de possibilidades de enquadramento da ação e da
mudança social considera não só os fins a atingir mas também os meios usados
para o fazer.
Esse parece ser o entendimento que o CJ tem quando se reclama da
penetração conseguida em estruturas e instituições políticas e económicas
hegemónicas. No entanto, esta não é uma posição consensual no movimento (cf.
páginas 213 e 214). A existência desta controvérsia interna, aparentemente de
difícil superação porque enraizada em visões opostas do mundo, parece dar razão
a Chantal Mouffe na defesa de um pluralismo agonístico (por oposição a
antagonista):
“This is why a perspective like “agonistic pluralism” which reveals the
impossibility of establishing a consensus without exclusion is of fundamental
importance for democratic politics. By warning us again of the illusion that a
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
232
fully achieved democracy could ever be instantiated, it forces us to keep the
democratic contestation alive.” (Mouffe: 2000, 17).
“As pessoas acima do lucro”
Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais
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