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QUALIDADE DE ENSINO: POSSVEL UMA DEFINIO?
Prof. Dr. Antonio Sales
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
Nova Andradina, MS
Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar o conceito de ensino de qualidade na
perspectiva de documentos oficiais e no oficiais que contribuem para formar opinio
sobre qualidade de ensino. A teoria de anlise adotada a teoria dos modelos docentes
propostos por Josep Gascn. Em todos os documentos analisados o modelo docente
preconizado o modelo construtivista que equidista do tecnicismo e do modernismo e o
que se concebe como qualidade de ensino o equilbrio entre envolvimento do aluno e a
sistematizao do professor.
Palavras-chave: Qualidade de Ensino, Modelos Docentes, Construtivismo, Tecnicismo.
Qualidade de ensino uma expresso que se faz presente no discurso de toda
instituio educacional esteja ela ligada diretamente ao ensino ou seja apenas um rgo
gestor. Tanto assim que Cassiano (2007), em sua tese de doutorado, analisa a questo do
investimento e da implantao do Programa Nacional do Livro Didtico (PNLD) e destaca
o objetivo do Programa como sendo: proporcionar atendimento escolar de qualidade ao
maior nmero possvel de alunos.
Diante da nfase que se d a essa expresso entendemos que ela requer maiores
esclarecimentos. Supomos tambm que o seu sentido pode variar de uma poca para outra,
ou de um contexto para outro ou at de um sujeito para outro.
De forma geral nos parece que qualidade de ensino embora seja frequentemente
utilizada, na maioria das vezes ou para um bom nmero de sujeitos, uma expresso vaga,
apenas mais uma palavra de ordem que, como tantas outras, passam sem que ningum
saiba o que realmente se quis dizer com ela (CHEVALLARD, 1994). s vezes tambm
confundida com educao de qualidade.
Observaes empricas dos discursos de professores sugerem que, para alguns, essa
qualidade sinnimo de quantidade. Quantidade de contedo, especificamente conceitos e
algoritmos, porque as relaes nem sempre esto includas. Para esses, ensino de qualidade
aquele que cumpre a ementa do curso. Nessa concepo para ser bom professor basta que
no falte s aulas e no divague com questionamentos e informaes que no estejam
diretamente ligados a modos de fazer e definio de conceitos.
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oportuno esclarecer neste ponto que estamos falando diretamente do ensino da
matemtica, porque este o nosso campo de atuao profissional e fonte de nossas
preocupaes como pesquisador.
Para outros professores um ensino de qualidade um ensino contextualizado.
Deixando para outra oportunidade a discusso sobre o que significa contextualizar
entendemos que, para esses, o termo est relacionado com as conexes da matemtica
escolar com as questes sociais e econmicas que envolvem o aluno. Portanto, desse ponto
de vista o bom professor aquele que elabora a sua organizao didtica recheada de
exemplos prticos extrados do contexto social prximo do aluno. O ensino atravs do
ldico como sendo um ensino de qualidade tambm se enquadra nessa perspectiva e se faz
presente em alguns discursos (ARTIGONAL, 2009?).
Mas essa qualidade tambm concebida por outros como ter domnio da matria e
uma aula bem preparada 1. De alguma forma esta concepo tem uma interface com o
primeiro caso citado. Aqui tambm o bom professor domina o palco e mostra a sua
competncia como discursador cientfico e pela capacidade de fazer com que os alunos se
mantenham ocupados anotando as suas palavras ou embevecidos com o seu discurso.
Para alguns um ensino de qualidade medido pelo nmero de aprovados em
concurso ou vestibulares2. uma vertente que desconsidera o preparo para a ao
autnoma, para o exerccio de uma profisso liberal. Ignora tambm que, de longa data, o
preparo para concursos e vestibulares tem sido encampado pelos cursinhos preparatrios.
Nessa perspectiva, ensino de qualidade aquele em que o professor revisa toda matria
seguindo o modelo de repetio e macetes. Como veremos, esse um modelo tecnicista.
H ainda quem veja qualidade de ensino na perspectiva das polticas pblicas
relacionadas com a democratizao da educao. Uma educao de qualidade, nessa
vertente, uma educao para todos (CARVALHO, 2007). Em nossa anlise de qualidade
de ensino, ou de educao, nos deteremos nos aspectos didticos da questo. Estamos
preocupados com o processo didtico.
Uma Teoria de Modelos Didticos
1 De uma atividade de reflexo proposta a acadmicos de Licenciatura em Matemtica que se preparavam
para o Estgio Curricular. 2 A propaganda de algumas escolas revela essa viso de qualidade de ensino. Qualidade mede-se pela
quantidade de aprovados.
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Do nosso ponto de vista no se pode julgar essas concepes como sendo falsas.
Entendemos que elas so parciais e esto prximas ora do tecnicismo puro, ora do
teoricismo puro e ora de uma viso modernista. Esses termos foram extrados de Gascn
(2003) que concebe o modelo docente, a prtica do professor, como modos de conceber e
elaborar uma organizao didtica. Apropriamo-nos dessa concepo a partir de um
trabalho produzido por Gascn sobre organizaes didticas (OD). Conforme ele teoriza
(GASCN, 2003), uma forma didtica de compreender as OD situ-las,
esquematicamente, em trs planos constitudos a partir dos trs eixos coordenados numa
perspectiva tridimensional. Os eixos representam os casos extremos: teoricismo,
tecnicismo e modernismo.
Representao grfica do modelo de Gascn:
Os teoricistas centram a ateno no bloco terico da organizao: definies,
demonstraes e nas propriedades operatrias do conceito matemtico, nessa ordem. H
nessa organizao didtica muito diretivismo porque as normas so dadas prioritariamente,
a verdade estabelecida no meio acadmico ocupa espao privilegiado na sala de aula. Os
problemas so pr-elaborados porque o aprender depende do ensino e este est centralizado
no professor. Esses problemas so modelos de aplicao. Normalmente so elaborados
para esse fim. So problemas triviais.
Ensinar matemtica, nessa perspectiva, trabalhar com teorias cristalizadas.
Estudar centralizar-se na teoria. O processo didtico consiste em apresentar a teoria para
Teoricismo
Modernismo
Tecnicismo
Empirism
o
Esquema dos modelos docentes descritos por Gascn
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o aluno e propor problemas. difcil o aluno estudar porque a nfase na inculcao3 de
um modelo e a memorizao da norma culta.
A resoluo de problemas uma atividade secundria e utilizada para aplicar a
teoria, motivar o estudo da mesma, auxiliar a compreenso. No h razo para a
elaborao de atividades de resoluo de problemas complexos. Os problemas so
formulados para serem modelados e no para serem explorados. No teoricismo no se
discute as dificuldades de aprendizagem, porque elas no existem. O que existe, nesse
modelo, a falta de estudo, a falta de motivao, a falta de vontade, a falta de tempo ou a
falta de uma boa definio.
Entendem os teoricistas que se a cincia que est sendo estudada est solidamente
edificada, a aprendizagem ou no-aprendizagem resultado de conceitos bem ou mal
apresentados e da quantidade de manipulao desses conceitos atravs de exerccios. O
processo mecnico e controlvel.
Os tecnicistas, por outro lado, oferecem modelos prontos para serem seguidos. Do
nfase nas tcnicas, na resoluo de exerccios. O foco deles est na imitao, na repetio.
Aprender, na perspectiva tecnicista, fazer. O tecnicista treina tcnicas. Os
problemas so trivializados e reduzidos a um simples manejo de tcnicas e memorizao
de palavras-chave ou regras particulares (macetes). So profundamente diretivistas.
Segundo Gascn, o tecnicismo tende a aparecer depois de algum perodo de
domnio do teoricismo. Aps o fracasso deste, como aconteceu com o Movimento da
Matemtica Moderna, o tecnicismo surge com fora conservando caractersticas daquele.
Sendo assim, um professor tecnicista possivelmente seja resultado de um esforo teoricista
fracassado. Ele, tendo dificuldade de aprender em um ambiente em que predominou o
teoricismo, procura simplificar para o seu aluno atravs de um ensino mecnico,
centrado na memorizao de tcnicas.
No tecnicismo o trabalho com a tcnica o momento didtico privilegiado e o que
difere os teoricistas dos tecnicistas que nos primeiros cada fazer justificado pela teoria
levando em conta as estruturas da cincia, as definies e a explicitao das propriedades
utilizadas4. No trabalho dos tecnicistas cada fazer simplesmente um fazer. O domnio da
tcnica o objetivo. Porm, ambos tm algumas caractersticas em comum: o diretivismo
3 Termo derivado de Chervel (1990, p. 224, nota 49.) para o qual Consagrada reproduo das relaes
sociais, a escola v-se essencialmente encarregada de inculcar uma ideologia suscetvel de pereniz-las ou de refor-las. 4 No significa dizer que essa exposio esteja sendo entendida ou valorizada pelo estudante.
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didtico e a trivializao da resoluo de problemas (so meros exemplos ilustrativos). So
problemas previamente elaborados e distantes do contexto social.
Os modernistas, por sua vez, focalizam as exploraes e as contextualizaes. A
sistematizao no est no centro da sua organizao didtica.
O modernismo valoriza a criatividade, combate a trivializao dos problemas e a
excessiva algoritmizao. Os problemas triviais so explorados para formar as conjeturas e
contribuir na resoluo de outros problemas. O procedimento didtico vivenciado o da
explorao de tcnicas (busca de alternativas de resoluo).
Evidentemente que na prtica dificilmente encontraremos um exemplo de puro
tecnicismo, teoricismo ou modernismo. O que se vivencia a interao entre duas dessas
organizaes com predominncia de uma delas.
O construtivismo, por exemplo, resulta da interao entre teoricismo e modernismo,
podendo ser um construtivismo mais modernista ou mais teoricista. Podendo concluir cada
atividade com uma sistematizao, pouca sistematizao ou com nenhuma sistematizao.
Pode explorar a constituio de um entorno terico, o trabalho com a tcnica ou a
explorao de tcnicas e tarefas.
Da articulao entre o teoricismo e o tecnicismo surgem as organizaes clssicas.
As organizaes clssicas so constitudas de definies seguidas de exemplos de
ilustrao (aplicao) e os exerccios de repetio que consistem no trabalho com a
tcnica. Os matizes nessas organizaes so numerosos, variando da nfase na teoria e
exposio do professor, as longas listas de exerccios repetitivos de aplicao e fixao
ou nas revises de contedo para a prova.
Nessas organizaes clssicas o aluno levado tambm a vivenciar os processos do
primeiro encontro com a tarefa, ou seja, o primeiro contato com a teoria e alguns
problemas, e do entorno terico-metodolgico que so as justificativas.
O empirismo ou procedimentalismo resultado da articulao entre as organizaes
modernistas e tecnicistas. Predominam nessas organizaes os jogos de treinamento, as
manipulaes de material, as discusses sem uma concluso formal.
Privilegia o contato com a tarefa, a tcnica e o treino com a tcnica. Os empiristas
conferem importncia ao uso de problemas de aplicao, todos do mesmo tipo e que se
modelam do mesmo jeito. Trabalham com exerccios de fixao a partir de um modelo.
Nas proximidades dos eixos os modelos se confundem. O clssico e o empirismo,
por exemplo, quando muito prximos do eixo tecnicista se identificam. O construtivismo
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ao se aproximar do teoricismo se apropria do modelo clssico terico e ao se aproximar do
eixo modernista se confunde com o empirismo modernista. Um construtivismo
equidistante dos eixos modernista e teoricista, explora tcnicas, tarefas, situaes abertas
(que permitem mltiplas interpretaes e aplicaes) e tambm sistematiza e teoriza.
Entendemos que existe uma organizao didtica ideal. Posta em prtica ela
contemplaria os trs eixos cannicos: teoria, tcnica e criao. Resoluo de problemas,
sistematizao, definies, institucionalizao de resultados, aperfeioamento da tcnica,
argumentao racional e (auto)avaliao do que foi aprendido seriam dimenses
exploradas nessa organizao.
Tambm nessa organizao ideal considera-se que a apropriao de um conceito
matemtico produto de mltiplos fatores, de uma organizao didtica ou de uma
atividade matemtica complexa em que muitos objetos ostensivos (escrita, gestos,
desenhos, oralidade) intervm e em que mltiplos recursos so mobilizados.
Dessa forma nos propomos analisar as recomendaes dos documentos relativos
qualidade de ensino, nessa perspectiva.
Qualidade de Ensino
Conforme j foi dito em pargrafos precedentes o nosso entendimento que ensino
de qualidade uma expresso que requer maiores esclarecimentos. vasta a sua gama de
significados. No entanto, pode-se supor que qualidade em educao significa adequao ao
contexto sociocultural que se quer forjar ou manter.
J em 1854 um Decreto Imperial estabeleceu que os delegados de distrito embora
no pudessem exercer o magistrio pblico ou particular, primrio ou secundrio tinham
a responsabilidade de visitar trimestralmente os:
estabelecimentos particulares desse genero [escolas] que tenho sido autorisados,
observando se neles so guardados os preceitos da moral e as regras hygienicas;
se o ensino dado no he contrario Constituio, moral e s Leis; e se
cumprem as disposies deste Regulamento (BRASIL, 1854)
Estava explcito na lei o significado de qualidade de ensino para a poca:
conformidade com a moral e com as leis e aprendizagem das regras bsicas de higiene.
nessa perspectiva tambm que o autor do livro didtico cumpria e deveria cumprir a sua
tarefa patritica: promover o cumprimento das leis enaltecendo a moral e orientando nos
princpios bsicos do viver saudvel. Nesses primrdios do sculo XIX, segundo
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Bittencourt (2004), o governo idealizou os autores de obras didticas como sbios e
empenhados no cumprimento de uma tarefa patritica.
O professor, supostamente, deveria ditar as regras de conduta, corrigir
comportamentos e orientar o cuidado com a sade atravs de lies e frequentes
recomendaes. Embora no seja prudente comparar pocas diferentes supomos que esse
ensino se enquadraria no modelo empirista ou clssico, porm, muito prximo do eixo
tecnicista. Nas proximidades dos eixos os modelos se confundem.
A suposio acima tem com o suporte o fato de o Mtodo do Ensino Mtuo ou
Lancasteriano ter sido implantado oficialmente no Brasil em 1827 e estava em vigor nessa
poca. Esse mtodo foi formulado no incio do sculo XIX pelos ingleses Andrew Bell e
Joseph Lancaster. O mtodo segundo (NEVES, 2005) tinha por caracterstica ser
disciplinador tendo em vista que
a Monarquia e suas elites tinham conscincia da existncia perigosa das massas populares que foi se constituindo entre aqueles que foram ficando
margem da produo colonial, centralizada nos senhores e nos escravos. Estes
contingentes cresceram muito desestabilizando o sistema (NEVES, s.d., p. 1).
Era um sistema cuja organizao, a ordem e a disciplina da sala de aula do Ensino
Mtuo eram mantidas por meio de um sistema de prmios e punies e a sua implantao
no Brasil tinha por objetivo a instruo das classes subalternas, a fim de promover sua
transformao, para serem reconhecidas pelas elites como fazendo parte de uma nao
civilizada (NEVES, 2005, p. 9).
Roxo (1937) em sua anlise do papel da Matemtica na Educao Secundria
considera que h trs perspectivas para o estudo da Matemtica. A perspectiva A, o modelo
grego, tem por base uma concepo particularista da cincia, cujo campo procura
decompor em uma srie de regies bem delimitadas (ROXO, 1937, p. 33). A perspectiva
B valoriza as relaes entre as diversas regies da cincia e a perspectiva C que
compreende todo processo formal do clculo seguindo o modelo dos hindus (ROXO,
1937, p. 34).
Os gregos concebiam a cincia como algo harmonioso, nico e com preceitos
preestabelecidos. Os modernos no acreditam em harmonia preestabelecida entre a
matria e a forma das teorias, ela tem de apanhar, alguma coisa no meio de uma matria
estranha, infinitamente complexa, como um qumico que analisa (ROXO, 1937, p.32).
Ao inverso das descobertas diretas da antiguidade, baseadas na contemplao, as aproximaes sucessivas marcam um ponto de vista novo, que permite por
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assim dizer, apertar mais o cerco soluo que se procura, utilizando, ao mesmo
tempo, o mtodo indutivo e o dedutivo [...] (ROXO, 1937, p. 32)
Admitindo que todos os trs processos definidos como perspectivas A, B e C,
contriburam para o progresso da cincia tendo inclusive produzido grandes pensadores,
ele afirma que as grandes descobertas do sculo XVII foram um produto quase exclusivo
do processo B e que o processo A consiste em um crculo de pensamento rigorosamente
fechado em si mesmo (ROXO, 1937, p. 35). Ento ele conclui que:
Do ponto de vista pedaggico, contrariamente tradio que, por comodismo,
submetia o ensino concepo rigidamente sistemtica e algbrico-lgica,
muito mais aconselhvel a predominncia dos processos que se tem mostrado
mais fecundos nos crescimento da prpria cincia matemtica (ROXO, 1937, p.
36)
De forma clara o autor citado se ope ao ensino que parte da sistematizao para o
exerccio de aplicao das regras, porque nega ao aluno a oportunidade de intuir e de se
aproximar sucessivamente da estrutura da cincia. Citando Klein ele lembra o
desenvolvimento humano em todos os aspectos, e em particular o intelectual, que no
consiste em comear pelas idias mais gerais. Klein afirma que:
E, entretanto, tal cousa nunca foi certa: ensino cientfico s se pode chamar
aquele que conduz o homem a pensar cientificamente, mas no o , de modo
algum, aquele que desde o incio se lhe apresenta com uma sistemtica fria,
ainda que mui cientificamente organizada (ROXO, 1937, p. 70, grifos do autor).
Para Euclides Roxo, o defensor de uma reformulao no ensino da matemtica nas
primeiras dcadas do sculo XX, um ensino de qualidade estava relacionado com o
envolvimento do aluno no processo. Um envolvimento que iria alm da cpia e do estudo
de modelos prontos ou resoluo de tarefas predefinidas para memorizar a tcnica. Visto
por essa tica os modelos teoricistas e tecnicistas no conduzem o aluno a pensar
cientificamente.
Hoje supomos que ensino de qualidade aquele que est em conformidade com os
documentos oficiais, tais como os Parmetros Curriculares Nacionais (PCN), PNLD e
Diretrizes Curriculares, que norteiam a poltica de ensino porque, supostamente, atendem
aos anseios da sociedade. Supomos tambm que fontes no oficiais, como algumas revistas
que discutem questes educacionais, tambm expressam esse mesmo anseio ou induzem a
ele e, portanto, contribuem para a compreenso do que seja essa qualidade.
Igualmente entendemos que os livros didticos (LD) elaborados em conformidade
com essa proposta, devidamente avaliados e recomendados, contm ressalvadas as
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fragilidades apresentadas pelos avaliadores em cada coleo, de forma implcita esse
ensino de qualidade que a sociedade espera da escola. Os avaliadores expressam, muitas
vezes, de forma bem direta as fragilidades da proposta didtica de algum autor ou dos
autores de determinada coleo.
Com relao aos LD os avaliadores frequentemente denunciam a diretividade que
no envolve o aluno no processo de conjeturar e argumentar como deficiente em qualidade.
Do mesmo modo denunciam a sistematizao precoce com nfase nos procedimentos e
algoritmos em detrimento da dimenso conceitual da matemtica (BRASIL, 2007, p.
106). Ao mesmo tempo h, nesse documento, pronunciamentos elucidativos sobre qual
seria uma organizao didtica recomendada.
Alm disso, [os alunos] so chamados a observar, explorar e investigar diferentes
situaes, muitas vezes para estabelecer relaes ou generalizar as idias
exploradas e tomar decises. Tambm pedido a eles para argumentar e criticar
os resultados obtidos, oralmente ou por escrito. Na coleo, so valorizadas
diferentes estratgias para resoluo de problemas e verificao de resultados, o
que contribui para o desenvolvimento da autonomia do aluno (BRASIL, 2007, p.
118).
Como se pode ver qualidade para os avaliadores do PNLD significa no centrar no
teoricismo e tambm no cair no empirismo da simples memorizao de frmulas e regras.
Embora saibamos que memorizar um fator fundamental no processo de aprendizagem,
essa memorizao deve estar vinculada a um sentido, a uma compreenso da dimenso
conceitual da matemtica. Ensino de qualidade, nessa perspectiva, aquele que
instrumentaliza o aluno para ser capaz de argumentar, estimula a formulao de conjeturas
e a crtica das solues encontradas na resoluo de problemas. Os avaliadores parecem
validar o modelo construtivista, que no fique muito prximo dos eixos extremos.
De acordo com os PCN um ensino de qualidade no deve ter preocupaes
excessivas com formalizaes, distanciando-se das questes prticas [...] e no deve
perder de vista os caracteres especulativo, esttico no imediatamente pragmtico do
conhecimento matemtico sem os quais se perde parte de sua natureza (BRASIL, 1998, p.
19-24).
Cumpre destacar dois pontos neste pargrafo. Primeiramente falemos do no
distanciamento das questes prticas. Supomos que isso no significa que todo conceito
matemtico a ser estudado deva emergir de um problema social ou econmico, como
veremos em pargrafo posterior, mas que se devem indicar possveis relaes dele com
outros conceitos. Isto , estabelecer relaes com a tica, com outras cincias, com a
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possvel prtica profissional de muitos. Por exemplo: em que essa forma de pensar, ou de
relacionar os fatos, ajuda no meu relacionamento com outros temas da Matemtica ou no
estudo da Fsica ou no estudo (e ensino) da Matemtica? Ou ainda: em que aspectos essa
forma de raciocnio utilizada na resoluo deste problema tem relao com determinados
problemas sociais e equvocos da vida? Se o professor no souber fazer essa relao, quem
saber fazer?5
O segundo ponto a ser destacado que no se deve perder de vista os caracteres
especulativos, esttico. Entendemos que h aqui uma indicao de que a Matemtica
escolar no deve se perder numa prtica mecanizada, em uma preocupao imediata com
os resultados de um exerccio. Deve desafiar o pensamento, no sentido de conduzir a
formulao de conjeturas conforme j foi visto em pargrafos precedentes. Na observao
de regularidades est a esttica da Matemtica. uma esttica que emana do encadeamento
lgico das idias, da articulao entre os conceitos, da relao causal e da possibilidade de
se produzir modelos.
Novamente aqui o modelo construtivista est em evidncia. Um construtivismo
equilibrado onde modernismo e teoricismo se mesclam em pores equivalentes.
Continua inda o referido documento afirmando que um conceito matemtico se
constri articulado com outros conceitos, por meio de uma srie de retificaes e
generalizaes (BRASIL, 1998, p. 41).
E ainda mais este pargrafo:
o ensino de Matemtica deve garantir o desenvolvimento de capacidades como:
observao, estabelecimento de relaes, comunicao (diferentes linguagens),
argumentao e validao de processos e o estmulo s formas de raciocnio
como intuio, induo, deduo, analogia, estimativa; o ensino-aprendizagem
de Matemtica tem como ponto de partida a resoluo de problemas [...] a
aprendizagem em Matemtica est ligada compreenso, isto , atribuio e
apreenso de significado; apreender o significado de um objeto ou
acontecimento pressupe identificar suas relaes com outros objetos e
acontecimentos. Assim, o tratamento dos contedos em compartimentos
estanques e numa rgida sucesso linear deve dar lugar a uma abordagem em que
as conexes sejam favorecidas e destacadas. O significado da Matemtica para o
aluno resulta das conexes que ele estabelece entre ela e as demais reas, entre
ela e os Temas Transversais, entre ela e o cotidiano e das conexes [...] a seleo
e organizao de contedos deve levar em conta sua relevncia social e sua
contribuio para o desenvolvimento intelectual do aluno e no deve ter como
critrio apenas a lgica interna da Matemtica; (BRASIL, 1998, p.56- 57)
5 Valladares (2003) produziu um trabalho com exemplos de aplicao do raciocnio matemtico a problemas
do cotidiano. Segundo o autor, muitas vezes a pessoa que o emprega nem sequer imagina que est usando um
raciocnio matemtico.
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Este pargrafo, ou melhor, estes pargrafos trazem uma riqueza de informaes que
praticamente impossvel analisarmos todas de uma nica vez. Destaquemos algumas
expresses:
Desenvolvimento da capacidade de observao tem a ver com a formulao de
conjeturas a partir de certa regularidade. Diferentes linguagens nos conduzem ao no
apressamento da sistematizao. Isto , primeiro o aluno deve conversar (expressar-se
oralmente) sobre, gesticular sobre, opinar sobre e, depois, o professor deve dar a palavra
final sobre.
Compartimentos estanques. Aqui supomos que um exemplo esclarece melhor do
que as palavras. Pensemos no estudo das fraes (no primeiro bimestre), depois no estudo
dos nmeros decimais (segundo ou terceiro bimestre) e, por ltimo, j no final do ano, as
porcentagens. Seria possvel estudar todos esses conceitos juntos?
Relevncia social. Para que o aluno est estudando Matemtica? Para pesquisa (ser
matemtico)? Para ensinar (ser professor)? Para aplicar (ser economista, administrador)?
Para atender a uma exigncia social (aluno do ensino fundamental e mdio)? Uma reflexo
sobre essas perguntas poder direcionar melhor a organizao didtica do professor.
Outro documento que nos propusemos analisar em relao ao tema o
Referenciais para Formao de Professores. Segundo esse documento a qualidade na
educao est relacionada com a garantia de aprendizagens bastante diversificadas que
lhe possibilite transitar pelos diferentes campos do saber, aprendendo procedimentos,
valores e atitudes imprescindveis para o desenvolvimento de suas diferentes capacidades
(SEF, 1999, p.24).
Nesse documento consta ainda que
preciso que todos aprendam a valorizar o conhecimento e os bens culturais e a
ter acesso a eles autonomamente; selecionar o que relevante, investigar,
questionar, e pesquisar; a construir hipteses, compreender, raciocinar
logicamente; comparar, estabelecer relaes, inferir e generalizar; a adquirir
confiana na prpria capacidade de pensar e encontrar solues (SEF, 1999,
p.24).
Mais uma vez somos colocados diante do modelo construtivista. Insistimos que no
estamos entendendo construtivismo como um modelo centrado unicamente na explorao.
Conforme os modelos estudados por Gascn, o construtivismo que imaginamos equidista
do modernismo e do teoricismo. Parece ser este o modelo proposto neste documento.
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O Guia da Educao em Famlia no item Opte por escolas que comprovadamente
ofeream uma Educao de Qualidade orienta:
No se deixe impressionar pelas instalaes do colgio. Escola boa a que
prioriza o aprendizado. Auditrios bonitos e salas de informtica no garantem
que o seu filho aprender o que precisa. bom que a escola oferea atividades
extracurriculares, mas o que deve ser avaliado se seu filho vai aprender de
verdade, portugus, matemtica, histria, geografia, cincias. Ou seja, se ele
consegue resolver problemas, analisar textos, ter uma viso crtica do mundo ao
seu redor (MONTEIRO, 2009, p. s/n, grifos nossos).
Nessa perspectiva um ensino de qualidade em matemtica aquele que contribui
para que o aluno resolva problemas. No h explicitao de que tipo de problemas. No
possvel inferir diretamente se est se tratando de problemas triviais, modelos como os
propostos pelos teoricistas e tecnicistas, ou problemas provenientes de uma situao aberta
que focalizem exploraes e as contextualizaes ou, ainda, se trata de problemas triviais
propostos com o fim de explorar propriedades e formular conjeturas. O contexto parece
sugerir esta ltima hiptese na medida em que defende que o ensino da Lngua Portuguesa
deve explorar anlise de textos e o ensino da Histria e da Geografia devem contribuir para
uma viso crtica do mundo ao seu redor. Supomos, a partir dessa complementao do
texto, que no ensino da Matemtica se trata de resolver problemas no triviais ou de uma
aplicao no trivial de tais problemas.
Consideraes Finais
Na perspectiva didtico-metodolgica um ensino de qualidade envolve o aluno em
aes de resoluo de problemas que no sejam somente os triviais, que no se prestam
apenas para exemplificar um raciocnio ou servir de modelos simples ou hipotticos de
aplicao da teoria. Ele no trabalha somente com modelos prontos ou exerccios de
repetio com a finalidade nica de treinar uma tcnica. Mas este ensino de qualidade
tambm no permanece na explorao infindvel e no encerra um tema de estudo sem
antes proporcionar ao aluno um retorno, isto , sem um parecer tcnico do professor sobre
as fragilidades e consistncias das tcnicas utilizadas. Todo tema desenvolvido ser, no
final, objeto de sistematizao e o aluno presenciar uma exposio organizada das
melhores tcnicas utilizadas durante o processo e participar de uma discusso sobre os
princpios tericos que as referendam.
Os documentos, oficiais ou no, que foram analisados contribuem para que vejamos
o que a sociedade atual espera da escola em termos de qualidade de ensino. nessa
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perspectiva que os cursos de licenciatura devem nortear as suas aes didticas na
formao do professor da Educao Bsica.
A luta por uma definio de ensino de qualidade a partir de uma perspectiva
didtico-metodolgica e pela definio e implementao desse modelo um movimento
que vem atravessando dcadas. Por essa razo fica evidente que este assunto no est
esgotado e que este trabalho apenas mais uma contribuio. De qualquer forma, o
exposto no pargrafo anterior relevante tendo em vista que no podemos ignorar um
movimento que dura tanto tempo e nossos cursos de licenciaturas no podem simplesmente
descuidar do que est em debate e contido em documentos oficiais.
Referncias
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educacao-artigos/qualidade-do-ensino-1118917.html (2009?)> Acessado em: 20/6/2010
BRASIL. Secretaria de Educao Fundamental. Parmetros Curriculares Nacionais:
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BRASIL. Ministrio da Educao. Guia de livros didticos PNLD 2008: Matemtica.
Braslia: MEC, 2007.
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leitura (1810-1910). Educ. Pesqui. vol. 30 no.3, So Paulo, Sept./Dec. 2004.
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