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QUALIDADE DE ENSINO: É POSSÌVEL UMA DEFINIÇÃO? Prof. Dr. Antonio Sales Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul Nova Andradina, MS [email protected] Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar o conceito de ensino de qualidade na perspectiva de documentos oficiais e não oficiais que contribuem para formar opinião sobre qualidade de ensino. A teoria de análise adotada é a teoria dos modelos docentes propostos por Josep Gascón. Em todos os documentos analisados o modelo docente preconizado é o modelo construtivista que equidista do tecnicismo e do modernismo e o que se concebe como qualidade de ensino é o equilíbrio entre envolvimento do aluno e a sistematização do professor. Palavras-chave: Qualidade de Ensino, Modelos Docentes, Construtivismo, Tecnicismo. Qualidade de ensino é uma expressão que se faz presente no discurso de toda instituição educacional esteja ela ligada diretamente ao ensino ou seja apenas um órgão gestor. Tanto é assim que Cassiano (2007), em sua tese de doutorado, analisa a questão do investimento e da implantação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e destaca o objetivo do Programa como sendo: proporcionar atendimento escolar de qualidade ao maior número possível de alunos. Diante da ênfase que se dá a essa expressão entendemos que ela requer maiores esclarecimentos. Supomos também que o seu sentido pode variar de uma época para outra, ou de um contexto para outro ou até de um sujeito para outro. De forma geral nos parece que qualidade de ensino embora seja frequentemente utilizada, na maioria das vezes ou para um bom número de sujeitos, é uma expressão vaga, apenas mais uma palavra de ordem que, como tantas outras, passam sem que ninguém saiba o que realmente se quis dizer com ela (CHEVALLARD, 1994). Às vezes é também confundida com educação de qualidade. Observações empíricas dos discursos de professores sugerem que, para alguns, essa qualidade é sinônimo de quantidade. Quantidade de conteúdo, especificamente conceitos e algoritmos, porque as relações nem sempre estão incluídas. Para esses, ensino de qualidade é aquele que cumpre a ementa do curso. Nessa concepção para ser bom professor basta que não falte às aulas e não “divague” com questionamentos e informações que não estejam diretamente ligados a modos de fazer e definição de conceitos.

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  • QUALIDADE DE ENSINO: POSSVEL UMA DEFINIO?

    Prof. Dr. Antonio Sales

    Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul

    Nova Andradina, MS

    [email protected]

    Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar o conceito de ensino de qualidade na

    perspectiva de documentos oficiais e no oficiais que contribuem para formar opinio

    sobre qualidade de ensino. A teoria de anlise adotada a teoria dos modelos docentes

    propostos por Josep Gascn. Em todos os documentos analisados o modelo docente

    preconizado o modelo construtivista que equidista do tecnicismo e do modernismo e o

    que se concebe como qualidade de ensino o equilbrio entre envolvimento do aluno e a

    sistematizao do professor.

    Palavras-chave: Qualidade de Ensino, Modelos Docentes, Construtivismo, Tecnicismo.

    Qualidade de ensino uma expresso que se faz presente no discurso de toda

    instituio educacional esteja ela ligada diretamente ao ensino ou seja apenas um rgo

    gestor. Tanto assim que Cassiano (2007), em sua tese de doutorado, analisa a questo do

    investimento e da implantao do Programa Nacional do Livro Didtico (PNLD) e destaca

    o objetivo do Programa como sendo: proporcionar atendimento escolar de qualidade ao

    maior nmero possvel de alunos.

    Diante da nfase que se d a essa expresso entendemos que ela requer maiores

    esclarecimentos. Supomos tambm que o seu sentido pode variar de uma poca para outra,

    ou de um contexto para outro ou at de um sujeito para outro.

    De forma geral nos parece que qualidade de ensino embora seja frequentemente

    utilizada, na maioria das vezes ou para um bom nmero de sujeitos, uma expresso vaga,

    apenas mais uma palavra de ordem que, como tantas outras, passam sem que ningum

    saiba o que realmente se quis dizer com ela (CHEVALLARD, 1994). s vezes tambm

    confundida com educao de qualidade.

    Observaes empricas dos discursos de professores sugerem que, para alguns, essa

    qualidade sinnimo de quantidade. Quantidade de contedo, especificamente conceitos e

    algoritmos, porque as relaes nem sempre esto includas. Para esses, ensino de qualidade

    aquele que cumpre a ementa do curso. Nessa concepo para ser bom professor basta que

    no falte s aulas e no divague com questionamentos e informaes que no estejam

    diretamente ligados a modos de fazer e definio de conceitos.

  • 2

    oportuno esclarecer neste ponto que estamos falando diretamente do ensino da

    matemtica, porque este o nosso campo de atuao profissional e fonte de nossas

    preocupaes como pesquisador.

    Para outros professores um ensino de qualidade um ensino contextualizado.

    Deixando para outra oportunidade a discusso sobre o que significa contextualizar

    entendemos que, para esses, o termo est relacionado com as conexes da matemtica

    escolar com as questes sociais e econmicas que envolvem o aluno. Portanto, desse ponto

    de vista o bom professor aquele que elabora a sua organizao didtica recheada de

    exemplos prticos extrados do contexto social prximo do aluno. O ensino atravs do

    ldico como sendo um ensino de qualidade tambm se enquadra nessa perspectiva e se faz

    presente em alguns discursos (ARTIGONAL, 2009?).

    Mas essa qualidade tambm concebida por outros como ter domnio da matria e

    uma aula bem preparada 1. De alguma forma esta concepo tem uma interface com o

    primeiro caso citado. Aqui tambm o bom professor domina o palco e mostra a sua

    competncia como discursador cientfico e pela capacidade de fazer com que os alunos se

    mantenham ocupados anotando as suas palavras ou embevecidos com o seu discurso.

    Para alguns um ensino de qualidade medido pelo nmero de aprovados em

    concurso ou vestibulares2. uma vertente que desconsidera o preparo para a ao

    autnoma, para o exerccio de uma profisso liberal. Ignora tambm que, de longa data, o

    preparo para concursos e vestibulares tem sido encampado pelos cursinhos preparatrios.

    Nessa perspectiva, ensino de qualidade aquele em que o professor revisa toda matria

    seguindo o modelo de repetio e macetes. Como veremos, esse um modelo tecnicista.

    H ainda quem veja qualidade de ensino na perspectiva das polticas pblicas

    relacionadas com a democratizao da educao. Uma educao de qualidade, nessa

    vertente, uma educao para todos (CARVALHO, 2007). Em nossa anlise de qualidade

    de ensino, ou de educao, nos deteremos nos aspectos didticos da questo. Estamos

    preocupados com o processo didtico.

    Uma Teoria de Modelos Didticos

    1 De uma atividade de reflexo proposta a acadmicos de Licenciatura em Matemtica que se preparavam

    para o Estgio Curricular. 2 A propaganda de algumas escolas revela essa viso de qualidade de ensino. Qualidade mede-se pela

    quantidade de aprovados.

  • 3

    Do nosso ponto de vista no se pode julgar essas concepes como sendo falsas.

    Entendemos que elas so parciais e esto prximas ora do tecnicismo puro, ora do

    teoricismo puro e ora de uma viso modernista. Esses termos foram extrados de Gascn

    (2003) que concebe o modelo docente, a prtica do professor, como modos de conceber e

    elaborar uma organizao didtica. Apropriamo-nos dessa concepo a partir de um

    trabalho produzido por Gascn sobre organizaes didticas (OD). Conforme ele teoriza

    (GASCN, 2003), uma forma didtica de compreender as OD situ-las,

    esquematicamente, em trs planos constitudos a partir dos trs eixos coordenados numa

    perspectiva tridimensional. Os eixos representam os casos extremos: teoricismo,

    tecnicismo e modernismo.

    Representao grfica do modelo de Gascn:

    Os teoricistas centram a ateno no bloco terico da organizao: definies,

    demonstraes e nas propriedades operatrias do conceito matemtico, nessa ordem. H

    nessa organizao didtica muito diretivismo porque as normas so dadas prioritariamente,

    a verdade estabelecida no meio acadmico ocupa espao privilegiado na sala de aula. Os

    problemas so pr-elaborados porque o aprender depende do ensino e este est centralizado

    no professor. Esses problemas so modelos de aplicao. Normalmente so elaborados

    para esse fim. So problemas triviais.

    Ensinar matemtica, nessa perspectiva, trabalhar com teorias cristalizadas.

    Estudar centralizar-se na teoria. O processo didtico consiste em apresentar a teoria para

    Teoricismo

    Modernismo

    Tecnicismo

    Empirism

    o

    Esquema dos modelos docentes descritos por Gascn

  • 4

    o aluno e propor problemas. difcil o aluno estudar porque a nfase na inculcao3 de

    um modelo e a memorizao da norma culta.

    A resoluo de problemas uma atividade secundria e utilizada para aplicar a

    teoria, motivar o estudo da mesma, auxiliar a compreenso. No h razo para a

    elaborao de atividades de resoluo de problemas complexos. Os problemas so

    formulados para serem modelados e no para serem explorados. No teoricismo no se

    discute as dificuldades de aprendizagem, porque elas no existem. O que existe, nesse

    modelo, a falta de estudo, a falta de motivao, a falta de vontade, a falta de tempo ou a

    falta de uma boa definio.

    Entendem os teoricistas que se a cincia que est sendo estudada est solidamente

    edificada, a aprendizagem ou no-aprendizagem resultado de conceitos bem ou mal

    apresentados e da quantidade de manipulao desses conceitos atravs de exerccios. O

    processo mecnico e controlvel.

    Os tecnicistas, por outro lado, oferecem modelos prontos para serem seguidos. Do

    nfase nas tcnicas, na resoluo de exerccios. O foco deles est na imitao, na repetio.

    Aprender, na perspectiva tecnicista, fazer. O tecnicista treina tcnicas. Os

    problemas so trivializados e reduzidos a um simples manejo de tcnicas e memorizao

    de palavras-chave ou regras particulares (macetes). So profundamente diretivistas.

    Segundo Gascn, o tecnicismo tende a aparecer depois de algum perodo de

    domnio do teoricismo. Aps o fracasso deste, como aconteceu com o Movimento da

    Matemtica Moderna, o tecnicismo surge com fora conservando caractersticas daquele.

    Sendo assim, um professor tecnicista possivelmente seja resultado de um esforo teoricista

    fracassado. Ele, tendo dificuldade de aprender em um ambiente em que predominou o

    teoricismo, procura simplificar para o seu aluno atravs de um ensino mecnico,

    centrado na memorizao de tcnicas.

    No tecnicismo o trabalho com a tcnica o momento didtico privilegiado e o que

    difere os teoricistas dos tecnicistas que nos primeiros cada fazer justificado pela teoria

    levando em conta as estruturas da cincia, as definies e a explicitao das propriedades

    utilizadas4. No trabalho dos tecnicistas cada fazer simplesmente um fazer. O domnio da

    tcnica o objetivo. Porm, ambos tm algumas caractersticas em comum: o diretivismo

    3 Termo derivado de Chervel (1990, p. 224, nota 49.) para o qual Consagrada reproduo das relaes

    sociais, a escola v-se essencialmente encarregada de inculcar uma ideologia suscetvel de pereniz-las ou de refor-las. 4 No significa dizer que essa exposio esteja sendo entendida ou valorizada pelo estudante.

  • 5

    didtico e a trivializao da resoluo de problemas (so meros exemplos ilustrativos). So

    problemas previamente elaborados e distantes do contexto social.

    Os modernistas, por sua vez, focalizam as exploraes e as contextualizaes. A

    sistematizao no est no centro da sua organizao didtica.

    O modernismo valoriza a criatividade, combate a trivializao dos problemas e a

    excessiva algoritmizao. Os problemas triviais so explorados para formar as conjeturas e

    contribuir na resoluo de outros problemas. O procedimento didtico vivenciado o da

    explorao de tcnicas (busca de alternativas de resoluo).

    Evidentemente que na prtica dificilmente encontraremos um exemplo de puro

    tecnicismo, teoricismo ou modernismo. O que se vivencia a interao entre duas dessas

    organizaes com predominncia de uma delas.

    O construtivismo, por exemplo, resulta da interao entre teoricismo e modernismo,

    podendo ser um construtivismo mais modernista ou mais teoricista. Podendo concluir cada

    atividade com uma sistematizao, pouca sistematizao ou com nenhuma sistematizao.

    Pode explorar a constituio de um entorno terico, o trabalho com a tcnica ou a

    explorao de tcnicas e tarefas.

    Da articulao entre o teoricismo e o tecnicismo surgem as organizaes clssicas.

    As organizaes clssicas so constitudas de definies seguidas de exemplos de

    ilustrao (aplicao) e os exerccios de repetio que consistem no trabalho com a

    tcnica. Os matizes nessas organizaes so numerosos, variando da nfase na teoria e

    exposio do professor, as longas listas de exerccios repetitivos de aplicao e fixao

    ou nas revises de contedo para a prova.

    Nessas organizaes clssicas o aluno levado tambm a vivenciar os processos do

    primeiro encontro com a tarefa, ou seja, o primeiro contato com a teoria e alguns

    problemas, e do entorno terico-metodolgico que so as justificativas.

    O empirismo ou procedimentalismo resultado da articulao entre as organizaes

    modernistas e tecnicistas. Predominam nessas organizaes os jogos de treinamento, as

    manipulaes de material, as discusses sem uma concluso formal.

    Privilegia o contato com a tarefa, a tcnica e o treino com a tcnica. Os empiristas

    conferem importncia ao uso de problemas de aplicao, todos do mesmo tipo e que se

    modelam do mesmo jeito. Trabalham com exerccios de fixao a partir de um modelo.

    Nas proximidades dos eixos os modelos se confundem. O clssico e o empirismo,

    por exemplo, quando muito prximos do eixo tecnicista se identificam. O construtivismo

  • 6

    ao se aproximar do teoricismo se apropria do modelo clssico terico e ao se aproximar do

    eixo modernista se confunde com o empirismo modernista. Um construtivismo

    equidistante dos eixos modernista e teoricista, explora tcnicas, tarefas, situaes abertas

    (que permitem mltiplas interpretaes e aplicaes) e tambm sistematiza e teoriza.

    Entendemos que existe uma organizao didtica ideal. Posta em prtica ela

    contemplaria os trs eixos cannicos: teoria, tcnica e criao. Resoluo de problemas,

    sistematizao, definies, institucionalizao de resultados, aperfeioamento da tcnica,

    argumentao racional e (auto)avaliao do que foi aprendido seriam dimenses

    exploradas nessa organizao.

    Tambm nessa organizao ideal considera-se que a apropriao de um conceito

    matemtico produto de mltiplos fatores, de uma organizao didtica ou de uma

    atividade matemtica complexa em que muitos objetos ostensivos (escrita, gestos,

    desenhos, oralidade) intervm e em que mltiplos recursos so mobilizados.

    Dessa forma nos propomos analisar as recomendaes dos documentos relativos

    qualidade de ensino, nessa perspectiva.

    Qualidade de Ensino

    Conforme j foi dito em pargrafos precedentes o nosso entendimento que ensino

    de qualidade uma expresso que requer maiores esclarecimentos. vasta a sua gama de

    significados. No entanto, pode-se supor que qualidade em educao significa adequao ao

    contexto sociocultural que se quer forjar ou manter.

    J em 1854 um Decreto Imperial estabeleceu que os delegados de distrito embora

    no pudessem exercer o magistrio pblico ou particular, primrio ou secundrio tinham

    a responsabilidade de visitar trimestralmente os:

    estabelecimentos particulares desse genero [escolas] que tenho sido autorisados,

    observando se neles so guardados os preceitos da moral e as regras hygienicas;

    se o ensino dado no he contrario Constituio, moral e s Leis; e se

    cumprem as disposies deste Regulamento (BRASIL, 1854)

    Estava explcito na lei o significado de qualidade de ensino para a poca:

    conformidade com a moral e com as leis e aprendizagem das regras bsicas de higiene.

    nessa perspectiva tambm que o autor do livro didtico cumpria e deveria cumprir a sua

    tarefa patritica: promover o cumprimento das leis enaltecendo a moral e orientando nos

    princpios bsicos do viver saudvel. Nesses primrdios do sculo XIX, segundo

  • 7

    Bittencourt (2004), o governo idealizou os autores de obras didticas como sbios e

    empenhados no cumprimento de uma tarefa patritica.

    O professor, supostamente, deveria ditar as regras de conduta, corrigir

    comportamentos e orientar o cuidado com a sade atravs de lies e frequentes

    recomendaes. Embora no seja prudente comparar pocas diferentes supomos que esse

    ensino se enquadraria no modelo empirista ou clssico, porm, muito prximo do eixo

    tecnicista. Nas proximidades dos eixos os modelos se confundem.

    A suposio acima tem com o suporte o fato de o Mtodo do Ensino Mtuo ou

    Lancasteriano ter sido implantado oficialmente no Brasil em 1827 e estava em vigor nessa

    poca. Esse mtodo foi formulado no incio do sculo XIX pelos ingleses Andrew Bell e

    Joseph Lancaster. O mtodo segundo (NEVES, 2005) tinha por caracterstica ser

    disciplinador tendo em vista que

    a Monarquia e suas elites tinham conscincia da existncia perigosa das massas populares que foi se constituindo entre aqueles que foram ficando

    margem da produo colonial, centralizada nos senhores e nos escravos. Estes

    contingentes cresceram muito desestabilizando o sistema (NEVES, s.d., p. 1).

    Era um sistema cuja organizao, a ordem e a disciplina da sala de aula do Ensino

    Mtuo eram mantidas por meio de um sistema de prmios e punies e a sua implantao

    no Brasil tinha por objetivo a instruo das classes subalternas, a fim de promover sua

    transformao, para serem reconhecidas pelas elites como fazendo parte de uma nao

    civilizada (NEVES, 2005, p. 9).

    Roxo (1937) em sua anlise do papel da Matemtica na Educao Secundria

    considera que h trs perspectivas para o estudo da Matemtica. A perspectiva A, o modelo

    grego, tem por base uma concepo particularista da cincia, cujo campo procura

    decompor em uma srie de regies bem delimitadas (ROXO, 1937, p. 33). A perspectiva

    B valoriza as relaes entre as diversas regies da cincia e a perspectiva C que

    compreende todo processo formal do clculo seguindo o modelo dos hindus (ROXO,

    1937, p. 34).

    Os gregos concebiam a cincia como algo harmonioso, nico e com preceitos

    preestabelecidos. Os modernos no acreditam em harmonia preestabelecida entre a

    matria e a forma das teorias, ela tem de apanhar, alguma coisa no meio de uma matria

    estranha, infinitamente complexa, como um qumico que analisa (ROXO, 1937, p.32).

    Ao inverso das descobertas diretas da antiguidade, baseadas na contemplao, as aproximaes sucessivas marcam um ponto de vista novo, que permite por

  • 8

    assim dizer, apertar mais o cerco soluo que se procura, utilizando, ao mesmo

    tempo, o mtodo indutivo e o dedutivo [...] (ROXO, 1937, p. 32)

    Admitindo que todos os trs processos definidos como perspectivas A, B e C,

    contriburam para o progresso da cincia tendo inclusive produzido grandes pensadores,

    ele afirma que as grandes descobertas do sculo XVII foram um produto quase exclusivo

    do processo B e que o processo A consiste em um crculo de pensamento rigorosamente

    fechado em si mesmo (ROXO, 1937, p. 35). Ento ele conclui que:

    Do ponto de vista pedaggico, contrariamente tradio que, por comodismo,

    submetia o ensino concepo rigidamente sistemtica e algbrico-lgica,

    muito mais aconselhvel a predominncia dos processos que se tem mostrado

    mais fecundos nos crescimento da prpria cincia matemtica (ROXO, 1937, p.

    36)

    De forma clara o autor citado se ope ao ensino que parte da sistematizao para o

    exerccio de aplicao das regras, porque nega ao aluno a oportunidade de intuir e de se

    aproximar sucessivamente da estrutura da cincia. Citando Klein ele lembra o

    desenvolvimento humano em todos os aspectos, e em particular o intelectual, que no

    consiste em comear pelas idias mais gerais. Klein afirma que:

    E, entretanto, tal cousa nunca foi certa: ensino cientfico s se pode chamar

    aquele que conduz o homem a pensar cientificamente, mas no o , de modo

    algum, aquele que desde o incio se lhe apresenta com uma sistemtica fria,

    ainda que mui cientificamente organizada (ROXO, 1937, p. 70, grifos do autor).

    Para Euclides Roxo, o defensor de uma reformulao no ensino da matemtica nas

    primeiras dcadas do sculo XX, um ensino de qualidade estava relacionado com o

    envolvimento do aluno no processo. Um envolvimento que iria alm da cpia e do estudo

    de modelos prontos ou resoluo de tarefas predefinidas para memorizar a tcnica. Visto

    por essa tica os modelos teoricistas e tecnicistas no conduzem o aluno a pensar

    cientificamente.

    Hoje supomos que ensino de qualidade aquele que est em conformidade com os

    documentos oficiais, tais como os Parmetros Curriculares Nacionais (PCN), PNLD e

    Diretrizes Curriculares, que norteiam a poltica de ensino porque, supostamente, atendem

    aos anseios da sociedade. Supomos tambm que fontes no oficiais, como algumas revistas

    que discutem questes educacionais, tambm expressam esse mesmo anseio ou induzem a

    ele e, portanto, contribuem para a compreenso do que seja essa qualidade.

    Igualmente entendemos que os livros didticos (LD) elaborados em conformidade

    com essa proposta, devidamente avaliados e recomendados, contm ressalvadas as

  • 9

    fragilidades apresentadas pelos avaliadores em cada coleo, de forma implcita esse

    ensino de qualidade que a sociedade espera da escola. Os avaliadores expressam, muitas

    vezes, de forma bem direta as fragilidades da proposta didtica de algum autor ou dos

    autores de determinada coleo.

    Com relao aos LD os avaliadores frequentemente denunciam a diretividade que

    no envolve o aluno no processo de conjeturar e argumentar como deficiente em qualidade.

    Do mesmo modo denunciam a sistematizao precoce com nfase nos procedimentos e

    algoritmos em detrimento da dimenso conceitual da matemtica (BRASIL, 2007, p.

    106). Ao mesmo tempo h, nesse documento, pronunciamentos elucidativos sobre qual

    seria uma organizao didtica recomendada.

    Alm disso, [os alunos] so chamados a observar, explorar e investigar diferentes

    situaes, muitas vezes para estabelecer relaes ou generalizar as idias

    exploradas e tomar decises. Tambm pedido a eles para argumentar e criticar

    os resultados obtidos, oralmente ou por escrito. Na coleo, so valorizadas

    diferentes estratgias para resoluo de problemas e verificao de resultados, o

    que contribui para o desenvolvimento da autonomia do aluno (BRASIL, 2007, p.

    118).

    Como se pode ver qualidade para os avaliadores do PNLD significa no centrar no

    teoricismo e tambm no cair no empirismo da simples memorizao de frmulas e regras.

    Embora saibamos que memorizar um fator fundamental no processo de aprendizagem,

    essa memorizao deve estar vinculada a um sentido, a uma compreenso da dimenso

    conceitual da matemtica. Ensino de qualidade, nessa perspectiva, aquele que

    instrumentaliza o aluno para ser capaz de argumentar, estimula a formulao de conjeturas

    e a crtica das solues encontradas na resoluo de problemas. Os avaliadores parecem

    validar o modelo construtivista, que no fique muito prximo dos eixos extremos.

    De acordo com os PCN um ensino de qualidade no deve ter preocupaes

    excessivas com formalizaes, distanciando-se das questes prticas [...] e no deve

    perder de vista os caracteres especulativo, esttico no imediatamente pragmtico do

    conhecimento matemtico sem os quais se perde parte de sua natureza (BRASIL, 1998, p.

    19-24).

    Cumpre destacar dois pontos neste pargrafo. Primeiramente falemos do no

    distanciamento das questes prticas. Supomos que isso no significa que todo conceito

    matemtico a ser estudado deva emergir de um problema social ou econmico, como

    veremos em pargrafo posterior, mas que se devem indicar possveis relaes dele com

    outros conceitos. Isto , estabelecer relaes com a tica, com outras cincias, com a

  • 10

    possvel prtica profissional de muitos. Por exemplo: em que essa forma de pensar, ou de

    relacionar os fatos, ajuda no meu relacionamento com outros temas da Matemtica ou no

    estudo da Fsica ou no estudo (e ensino) da Matemtica? Ou ainda: em que aspectos essa

    forma de raciocnio utilizada na resoluo deste problema tem relao com determinados

    problemas sociais e equvocos da vida? Se o professor no souber fazer essa relao, quem

    saber fazer?5

    O segundo ponto a ser destacado que no se deve perder de vista os caracteres

    especulativos, esttico. Entendemos que h aqui uma indicao de que a Matemtica

    escolar no deve se perder numa prtica mecanizada, em uma preocupao imediata com

    os resultados de um exerccio. Deve desafiar o pensamento, no sentido de conduzir a

    formulao de conjeturas conforme j foi visto em pargrafos precedentes. Na observao

    de regularidades est a esttica da Matemtica. uma esttica que emana do encadeamento

    lgico das idias, da articulao entre os conceitos, da relao causal e da possibilidade de

    se produzir modelos.

    Novamente aqui o modelo construtivista est em evidncia. Um construtivismo

    equilibrado onde modernismo e teoricismo se mesclam em pores equivalentes.

    Continua inda o referido documento afirmando que um conceito matemtico se

    constri articulado com outros conceitos, por meio de uma srie de retificaes e

    generalizaes (BRASIL, 1998, p. 41).

    E ainda mais este pargrafo:

    o ensino de Matemtica deve garantir o desenvolvimento de capacidades como:

    observao, estabelecimento de relaes, comunicao (diferentes linguagens),

    argumentao e validao de processos e o estmulo s formas de raciocnio

    como intuio, induo, deduo, analogia, estimativa; o ensino-aprendizagem

    de Matemtica tem como ponto de partida a resoluo de problemas [...] a

    aprendizagem em Matemtica est ligada compreenso, isto , atribuio e

    apreenso de significado; apreender o significado de um objeto ou

    acontecimento pressupe identificar suas relaes com outros objetos e

    acontecimentos. Assim, o tratamento dos contedos em compartimentos

    estanques e numa rgida sucesso linear deve dar lugar a uma abordagem em que

    as conexes sejam favorecidas e destacadas. O significado da Matemtica para o

    aluno resulta das conexes que ele estabelece entre ela e as demais reas, entre

    ela e os Temas Transversais, entre ela e o cotidiano e das conexes [...] a seleo

    e organizao de contedos deve levar em conta sua relevncia social e sua

    contribuio para o desenvolvimento intelectual do aluno e no deve ter como

    critrio apenas a lgica interna da Matemtica; (BRASIL, 1998, p.56- 57)

    5 Valladares (2003) produziu um trabalho com exemplos de aplicao do raciocnio matemtico a problemas

    do cotidiano. Segundo o autor, muitas vezes a pessoa que o emprega nem sequer imagina que est usando um

    raciocnio matemtico.

  • 11

    Este pargrafo, ou melhor, estes pargrafos trazem uma riqueza de informaes que

    praticamente impossvel analisarmos todas de uma nica vez. Destaquemos algumas

    expresses:

    Desenvolvimento da capacidade de observao tem a ver com a formulao de

    conjeturas a partir de certa regularidade. Diferentes linguagens nos conduzem ao no

    apressamento da sistematizao. Isto , primeiro o aluno deve conversar (expressar-se

    oralmente) sobre, gesticular sobre, opinar sobre e, depois, o professor deve dar a palavra

    final sobre.

    Compartimentos estanques. Aqui supomos que um exemplo esclarece melhor do

    que as palavras. Pensemos no estudo das fraes (no primeiro bimestre), depois no estudo

    dos nmeros decimais (segundo ou terceiro bimestre) e, por ltimo, j no final do ano, as

    porcentagens. Seria possvel estudar todos esses conceitos juntos?

    Relevncia social. Para que o aluno est estudando Matemtica? Para pesquisa (ser

    matemtico)? Para ensinar (ser professor)? Para aplicar (ser economista, administrador)?

    Para atender a uma exigncia social (aluno do ensino fundamental e mdio)? Uma reflexo

    sobre essas perguntas poder direcionar melhor a organizao didtica do professor.

    Outro documento que nos propusemos analisar em relao ao tema o

    Referenciais para Formao de Professores. Segundo esse documento a qualidade na

    educao est relacionada com a garantia de aprendizagens bastante diversificadas que

    lhe possibilite transitar pelos diferentes campos do saber, aprendendo procedimentos,

    valores e atitudes imprescindveis para o desenvolvimento de suas diferentes capacidades

    (SEF, 1999, p.24).

    Nesse documento consta ainda que

    preciso que todos aprendam a valorizar o conhecimento e os bens culturais e a

    ter acesso a eles autonomamente; selecionar o que relevante, investigar,

    questionar, e pesquisar; a construir hipteses, compreender, raciocinar

    logicamente; comparar, estabelecer relaes, inferir e generalizar; a adquirir

    confiana na prpria capacidade de pensar e encontrar solues (SEF, 1999,

    p.24).

    Mais uma vez somos colocados diante do modelo construtivista. Insistimos que no

    estamos entendendo construtivismo como um modelo centrado unicamente na explorao.

    Conforme os modelos estudados por Gascn, o construtivismo que imaginamos equidista

    do modernismo e do teoricismo. Parece ser este o modelo proposto neste documento.

  • 12

    O Guia da Educao em Famlia no item Opte por escolas que comprovadamente

    ofeream uma Educao de Qualidade orienta:

    No se deixe impressionar pelas instalaes do colgio. Escola boa a que

    prioriza o aprendizado. Auditrios bonitos e salas de informtica no garantem

    que o seu filho aprender o que precisa. bom que a escola oferea atividades

    extracurriculares, mas o que deve ser avaliado se seu filho vai aprender de

    verdade, portugus, matemtica, histria, geografia, cincias. Ou seja, se ele

    consegue resolver problemas, analisar textos, ter uma viso crtica do mundo ao

    seu redor (MONTEIRO, 2009, p. s/n, grifos nossos).

    Nessa perspectiva um ensino de qualidade em matemtica aquele que contribui

    para que o aluno resolva problemas. No h explicitao de que tipo de problemas. No

    possvel inferir diretamente se est se tratando de problemas triviais, modelos como os

    propostos pelos teoricistas e tecnicistas, ou problemas provenientes de uma situao aberta

    que focalizem exploraes e as contextualizaes ou, ainda, se trata de problemas triviais

    propostos com o fim de explorar propriedades e formular conjeturas. O contexto parece

    sugerir esta ltima hiptese na medida em que defende que o ensino da Lngua Portuguesa

    deve explorar anlise de textos e o ensino da Histria e da Geografia devem contribuir para

    uma viso crtica do mundo ao seu redor. Supomos, a partir dessa complementao do

    texto, que no ensino da Matemtica se trata de resolver problemas no triviais ou de uma

    aplicao no trivial de tais problemas.

    Consideraes Finais

    Na perspectiva didtico-metodolgica um ensino de qualidade envolve o aluno em

    aes de resoluo de problemas que no sejam somente os triviais, que no se prestam

    apenas para exemplificar um raciocnio ou servir de modelos simples ou hipotticos de

    aplicao da teoria. Ele no trabalha somente com modelos prontos ou exerccios de

    repetio com a finalidade nica de treinar uma tcnica. Mas este ensino de qualidade

    tambm no permanece na explorao infindvel e no encerra um tema de estudo sem

    antes proporcionar ao aluno um retorno, isto , sem um parecer tcnico do professor sobre

    as fragilidades e consistncias das tcnicas utilizadas. Todo tema desenvolvido ser, no

    final, objeto de sistematizao e o aluno presenciar uma exposio organizada das

    melhores tcnicas utilizadas durante o processo e participar de uma discusso sobre os

    princpios tericos que as referendam.

    Os documentos, oficiais ou no, que foram analisados contribuem para que vejamos

    o que a sociedade atual espera da escola em termos de qualidade de ensino. nessa

  • 13

    perspectiva que os cursos de licenciatura devem nortear as suas aes didticas na

    formao do professor da Educao Bsica.

    A luta por uma definio de ensino de qualidade a partir de uma perspectiva

    didtico-metodolgica e pela definio e implementao desse modelo um movimento

    que vem atravessando dcadas. Por essa razo fica evidente que este assunto no est

    esgotado e que este trabalho apenas mais uma contribuio. De qualquer forma, o

    exposto no pargrafo anterior relevante tendo em vista que no podemos ignorar um

    movimento que dura tanto tempo e nossos cursos de licenciaturas no podem simplesmente

    descuidar do que est em debate e contido em documentos oficiais.

    Referncias

    ARTIGONAL. Qualidade de Ensino. Disponvel em: < http://www.artigonal.com/

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    formateurs organises par lIUFM dAix-Marseille sur le thme Individualisation de la

    formation et diffrenciation de la formation dans les groupes de formation professionnelle

  • 14

    (Digne, 2 & 3 septembre 1994). Paru dans Didaskalia, no 6, pp. 115-131, postado em <

    http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip/article.php3?id_article=69 em 1995> Acesso em 19

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    de abril de 2005, no Evento COMUNICAES EM HISTRIA DA EDUCAO, como

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