anselm jappe - as aventuras da mercadoria

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  • 5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria

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    flVEflfcURflS

    onfRERCRDORIRpRRR umn nova cmticn d o v a l o rh i s e l i t i j a p p ebRRDUO JO S miROnDfl JU 5bO

    ANTGONA

  • 5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria

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    LTIMOS TTULOS

    O COMBATE COM O DEMNIO

    Stefan Zweigtrad, dejos Miranda Justo

    DESOBEDINCIA CIVIL/DEFESA DE JOHN BROWN (2 aed.)

    Henry David Thoreautrad, de Manuel Joo Gomes

    A TRAFICANTE DE CRIANAS

    Gabrielle Wittkoptrad, de Lus Leito

    OS AMERICANOS

    Henry Louis Menckentrad, de Fernando Gonalves

    IN VINO VERITAS

    S0 ren Kierkegaardtrad, dejos Miranda Justo

    SETE LIVROS ILUMINADOS

    William Blaketrad, de Manuel Portela

    A ANESTTICA DA ARQUITECTURA

    Neil Leachtrad, de Carla Oliveira

    A MINHA VIDA UMA ARMA

    Christoph Reutertrad, de Manuela Gomes

    A INVASO DO MAR

    Jlio Verne

    trad. Lus Leito

    A LTIMA SADA PARA BROOKLYN

    Hubert Selby Jr.trad. Paulo Faria

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    O u v r a g e p u b l i a v e c l e c o n c o u r s d u m in i st r e f r a n a i s c h a r g

    d e l a C u l t u r e - C e n t r e N a t io n a l d u L iv r e .

    [O br a pu b l i c a d a COM 0 APO IO DO m in is t r io d a C u l t u r a f r a n c s

    - C en t r o N a c i o n a l d o L iv r o ]

    Ttulo original

    Autor

    Traduo

    Reviso

    Capa

    Paginao

    Impresso

    Copyright

    I a edio portuguesa

    Antgona

    Depsito legal

    ISBN

    L es A v e n t u r e s d e l a m a r c h a n d is e

    - P o u r u n e n o u v e l l e c r it iq u e d e l a v a l e u r

    flnselm Jappe

    Jos Miranda Justo

    Carla da Silva Pereira

    Ricardo Tadeu Barros / TTdesign

    Leonel Matasd Carla da Silva Pereira

    Guide - Artes Grficas

    2003. ditions Denol2006. Antgona para Portugale pases africanos de expresso portuguesa

    Maro de 2006

    editores refractarios

    Rua da Trindade, n. 5 -2. fte.1200-467 Lisboa | Portugaltel. 213244170 | fax. [email protected]

    n. 239029/06

    972-608-176-9

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    SER O MUNDO UMA MERCADORIA?

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    H a l guns anos muita gente estava disposta a acreditar no fim da

    histria e na vitria definitiva da economia de mercado e da democracia liberal. Considerava-se que a dissoluo do imprio sovitico

    era uma prova da inexistncia de alternativa para o capitalismo oci

    dental. Partidrios e inimigos jurados do capitalismo estavam igual

    mente convencidos desse facto. E, segundo essa opinio dominante,

    a partir da a discusso deveria girar apenas em torno de questes de

    pormenor acerca da gesto da realidade existente.

    De facto desapareceu completamente da poltica oficial toda e

    qualquer luta entre concepes divergentes e, salvo algumas excep

    es, passou tambm a estar ausente a prpria ideia da possibilidade

    de imaginar uma maneira de viver e de produzir que fosse diferente

    da que se imps. Esta ltima parece ter-se convertido por toda a parte

    no nico desejo dos homens. Porm, a realidade verga-se s ordens

    com menos facilidade do que os pensadores contemporneos. Nosanos que se seguiram vitria definitiva da economia de mercado,

    esta mostrou mais fragilidade do que durante as cinco dcadas pre

    cedentes, como se na verdade a derrocada dos pases de Leste no

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    tivesse sido mais do que o primeiro acto de uma crise de propor

    es mundiais. O desemprego real cresce por toda a parte, e urna vez

    que a causa reside no enorme salto de produtividade decorrente da

    revoluo informtica, nada poder inverter essa tendncia nem a dedesmantelamento do Estado social. Estas duas tendncias, em con

    junto, geram a marginalizao de uma parte crescente da populao,

    mesmo nos pases mais ricos, que entram em regresso relativamente

    aos padres vigentes durante um sculo de evoluo social.

    Quanto ao resto do mundo, encontram-se umas quantas ilhas

    de bem-estar e de democracia new look no meio de um oceano de

    guerras, de misria e de trficos abominveis. E no se trata de uma

    ordem que, sendo injusta, fosse pelo menos estvel: a prpria riqueza

    encontra-se constantemente sob ameaa de desmoronamento.

    As Bolsas financeiras, com movimentaes cada vez mais irracionais

    e sujeitas a colapsos cada vez mais frequentes em pases-modelo

    como a Coreia do Sul, a Indonsia ou a Argentina, anunciam aos

    olhos de qualquer observador, mesmo do mais leviano, um cataclismo a breve prazo. Enquanto se vai esperando, h uma espada de

    Dmocles suspensa sobre a cabea de todos, ricos ou pobres: a des

    truio do ambiente. Neste domnio, cada pequeno melhoramento

    da situao que se consegue levar a cabo num determinado stio

    acompanhado por uma dezena de novas loucuras praticadas em

    outros locais do mundo.

    No necessrio prolongar este rol de constataes que todos os

    dias est disposio de qualquer telespectador minimamente atento.

    Afinal, o fim da histria durou muito pouco tempo. A desordem

    reinante volta a ser contestada por todo o lado, e por vezes em luga

    res onde no seria previsvel, por parte de pessoas com que no se

    contaria e por motivos razoavelmente inesperados. Poder-se-iam citar

    as lutas camponesas em pases do Sul, como a ndia ou o Brasil, osmovimentos de resistncia em pases europeus contra o desmantela

    mento do Estado social e a precariedade laboral, a rapidez com que

    se difundiu em pases to diferentes como a Tailndia ou a Frana a

    recusa de novas biotecnologas de efeitos incalculveis, a formao de

    ser o mundo uma mercadoria?

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    uma nova sensibilidade moral em relao a questes como a explora

    o do trabalho de menores nos pases pobres ou o endividamento do

    chamado terceiro mundo. Assiste-se ao surgimento de exigncias

    como a de comer alimentos dignos desse nome, crescente desconfiana em relao aos media, criao em Itlia de uma rede de espa

    os ocupados e consagrados a actividades antagonistas - os Centri

    sociali ao mesmo tempo que se v tambm uma recuperao da

    ideia de voluntariado e de outras actividades no orientadas para o

    lucro. Mesmo os sucessos eleitorais dos partidos ditos de extrema

    esquerda em Frana podem ser interpretados neste sentido. As con

    testaes que, desde Seattle, acompanham quase todas as cimeirasdos pases ricos ou das respectivas instituies econmicas, represen

    tam - embora de uma maneira sobretudo espectacular e meditica

    - a convergncia desses diferentes movimentos de protesto no plano

    mundial. O denominador comum dos protestos, para j, a luta con

    tra o neoliberalismo. E, se os activistas so por enquanto pouco

    numerosos, a verdade que por vezes criam-se vastos movimentos

    de opinio pblica em torno de um ou outro desses temas.

    Seria portanto muito pouco sria a pretenso de ver o estado

    actual do mundo como algo que desfrutasse universalmente das

    boas graas dos que so constrangidos a ser seus contemporneos.

    Mas seria tambm difcil afirmar que esse descontentamento sabe

    sempre o que efectivamente quer. No a revoluo ou a ideia de

    uma sociedade radicalmente diferente que anima os que protestam.E tambm no se trata de reivindicaes de uma classe social bem

    definida. Tirando a vaga oposio universal ao neoliberalismo, cada

    movimento permanece limitado ao seu sector especfico e prope

    remdios fragmentrios sem se dar ao trabalho de procurar compre

    ender as razes profundas dos fenmenos que combate. E contudo

    o sucesso que obteve um livro intitulado 0 mundo no uma mer-

    cadoria parece testemunhar uma preocupao menos superficial.No entanto, todos aqueles que repetem este sloganparecem interpre

    t-lo sobretudo no sentido de que certas coisas como a cultura, o

    corpo humano, os recursos naturais ou as capacidades profissionais

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    no so coisas que possam simplesmente ser reduzidas a objecto de

    compra e venda, no devendo portanto estar submetidas ao poder

    nico do dinheiro. Uma tal interpretao releva da esfera dos bons

    sentimentos e no pode substituir-se a uma efectiva anlise da sociedade que produz os monstros que se pretende exorcizar. Gritar que o

    que se passa um escndalo porque tudo se tornou vendvel no

    propriamente uma atitude nova e, na melhor das hipteses, o resul

    tado expulsar os vendilhes do Templo para v-los instalarem-se

    no passeio do outro lado da rua. Uma crtica puramente moral, que

    recomenda que no se submeta tudo ao dinheiro e que se pense

    tambm no resto, no pode ir muito longe: acaba por assemelhar-se

    aos discursos solenes do presidente da Repblica e das comisses

    de tica.

    A desorientao terica dos novos contestatrios o espelho

    do completo desmoronamento da crtica social nas duas ltimas

    dcadas. A ausncia de uma verdadeira crtica, coerente e de vasto

    alcance, quando no mesmo a recusa explcita de toda e qualquerteoria totalizante, impede que os indivduos que pretendem assu

    mir uma posio crtica tenham um conhecimento real das causas

    e das consequncias daquilo que criticam. Correm assim o risco de

    ver a sua crtica, muitas vezes ao arrepio das suas melhores inten

    es, degenerar no exacto contrrio de toda e qualquer perspectiva de

    emancipao social. De facto vemos por vezes a oposio ao impe

    rialismo americano converter-se num nacionalismo vulgar, a crtica da

    especulao financeira adoptar coloraes de anti-semitismo, a luta

    contra a reestruturao neoliberal transformar-se em simples corpo

    rativismo, a crtica do eurocentrismo desembocar na aceitao dos

    piores aspectos daquilo a que se chama alteridade cultural, ou a

    m-f levar alguns dos que lutam contra a mundializao a defender

    que o combate contra a imigrao. Quase toda esta gente pareceacreditar que seria possvel extirpar as ervas daninhas, sejam elas o

    milho geneticamente manipulado ou o desemprego, sem modificar

    profundamente a prpria sociedade.

    No h dvida, porm, de que se faz sentir a necessidade de

    ser o mundo uma mercadoria?

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    explicaes mais aprofundadas. Afinal, o que uma mercadoria?

    Que significado tem o facto de uma sociedade se basear na merca

    doria? Basta colocar este gnero de perguntas para se perceber muito

    rapidamente que inevitvel voltar a pegar nas obras de Karl Marx.

    Precisamente a propsito da mercadoria podem ler-se nos textos de

    Marx consideraes que no se encontram em mais lado nenhum.

    Aprende-se em Marx que a mercadoria a clula germinal de todas

    as sociedades modernas, mas que no representa contudo nada de

    natural. Que a mercadoria, em virtude da sua estrutura bsica, torna

    impossvel a existncia de sociedades conscientes. Que a mercadoria

    conduz necessariamente os indivduos a trabalharem cada vez mais,ao mesmo tempo que priva quase toda a gente de trabalho. Que a

    mercadoria contm uma dinmica interna que s pode levar a uma

    crise final. Que ela d lugar a um fetichismo da mercadoria que

    cria um mundo invertido em que tudo o contrrio de si mesmo.

    De facto a crtica da economia poltica de Marx toda ela uma

    anlise da mercadoria e das suas consequncias. Quem fizer o esforo

    de seguir os raciocnios do autor, que por vezes so efectivamentedifceis, encontrar uma quantidade de surpreendentes ideias capazes

    de iluminar a compreenso do trabalho, do dinheiro, do Estado, da

    comunidade humana ou da crise do capitalismo.

    Trata-se, pois, de encarar a necessidade de uma crtica das cate-

    gorias de baseda modernizao capitalista, e no apenas de uma cri

    tica da respectiva distribuio ou aplicao. Porm, durante mais de

    um sculo, o pensamento de Marx serviu sobretudo como teoria da

    modernizao,no intuito de fazer avanar essa mesma moderniza

    o. Guiando-se por essa teoria, os partidos e os sindicatos operrios

    contriburam para integrao da classe operria na sociedade capita

    lista, libertando assim a prpria sociedade capitalista de muitos dos

    seus anacronismos e deficincias estruturais. Na periferia capitalista,

    desde a Rssia Etipia, o pensamento de Marx serviu para justificar

    a modernizao tardia ensaiada por esses pases. Os marxistas

    tradicionais - fossem eles leninistas ou sociais-democratas, acad

    micos ou revolucionrios, terceiro-mundistas ou socialistas ditos ti

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    cos - colocaram no centro dos seus raciocnios a noo de conflito

    de classe, entendendo-o como luta pela repartio do dinheiro, da

    mercadoria e do valor, sem pr em causa estas trs realidades em si

    mesmas. Retrospectivamente pode dizer-se que todo o marxismo

    tradicional e as suas aplicaes prticas mais no foram do que um

    factor do desenvolvimento da sociedade mercantil. A crise global do

    capitalismo - e diga-se desde j que a globalizao apenas a fuga

    para a frente que o capitalismo efectua depois de a revoluo infor

    mtica ter levado ao paroxismo a sua contradio de base - constitui

    tambm a crise do marxismo tradicional, que foi afinal uma sua parte

    integrante, tal como a derrocada dos pases do socialismo real foiuma etapa da decomposio do capitalismo global.

    Marx, contudo, para alm desse tipo de consideraes, deixou

    tambm outras de natureza muito diferente: as que dizem respeito

    crtica dos prprios fundamentos da modernidade capitalista. Durante

    muito tempo esta crtica foi completamente negligenciada tanto pelos

    partidrios de Marx como pelos seus adversrios. Porm, com o declnio do capitalismo, vem luz do dia precisamente a crise desses

    fundamentos. A partir daqui a crtica marxista da mercadoria, do tra

    balho abstracto e do dinheiro deixa de ser uma espcie de premissa

    filosfica alcanando plena actualidade. E precisamente isso que

    se passa bem frente dos nossos olhos. Sendo assim, podemos dis

    tinguir duas tendncias na obra de Marx, ou eventualmente falar de

    um duplo Marx:por um lado, o Marx exotrico, que toda a genteconhece, o teorizador da modernizao, o dissidente do liberalismo

    poltico (Kurz), um representante das Luzes que queria aperfeioar

    a sociedade industrial do trabalho sob a direco do proletariado: por

    outro lado, um Marx esotrico cuja crtica das categorias de base

    - difcil de compreender - visa mais alm do que a civilizao capi

    talista1. preciso contextuallzar historicamentea teoria de Marx e omarxismo tradicional, em vez de ver simplesmente erros tanto numa

    coisa como na outra. No pode dizer-se que o Marx esotrico tem

    razo e que o Marx exotrico est errado. preciso p-los em

    correlao com duas etapas histricas distintas: a modernizao, por

    ser o mundo uma merc ado r ia?

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    um lado, e a respectiva superao, por outro. Marx no se limitou a

    analisar a sua poca, antes previu tambm certas tendncias que s

    viriam a realizar-se um sculo mais tarde. Mas, justamente porque

    Marx foi capaz de reconhecer com tanto rigor os traos mais salien

    tes do capitalismo numa altura em que este se encontrava ainda em

    gestao, tomou os primeiros estdios de desenvolvimento do capi

    talismo pela respectiva maturidade e acreditou que estava iminente

    o seu fim.

    Hoje em dia s o Marx esotrico pode constituir a base de um

    pensamento capaz de captar os desafios actuais e de compreender

    simultaneamente as origens mais recuadas desses mesmos desafios.Neste alvorecer do sculo XXI, toda a contestao que no assente

    num tal pensamento corre o risco de ver nas transformaes actu

    ais uma mera repetio de estdios anteriores do desenvolvimento

    capitalista. Este risco bem visvel na convico muito vulgarizada

    de que possvel regressar a uma etapa precedente desse desenvolvi

    mento, em particular ao welfare Statekeynesiano e ao proteccionismo

    nacional. Mas este desejo piedoso ignora tudo o que diz respeito dinmica do capitalismo. No possvel explicar o triunfo do neoli-

    beralismo por intermdio de uma espcie de conspirao dos maus

    sequazes do capitalismo internacional que o bom povo poder sem

    pre destituir. E estes desejos piedosos andam de mo dada com uma

    desoladora moderao dos contedos, pese embora a militncia por

    vezes demonstrada no plano dos mtodos. Restabelecer o Estado-

    -providncia como reaco barbrie neoliberal, regressar agricultura

    industrial de h vinte anos como alternativa manipulao gentica

    dos alimentos, reduzir a poluio em I % por ano, limitar a explorao

    aos maiores de dezasseis anos, abolir a tortura e a pena de morte:

    eis um belo programa que parece querer evitar o pior e que pode at

    revelar-se justo em certos casos concretos. Mas uma coisa certa,

    um programa destes no pode em caso algum ser tido por uma crtica anticapitalista e emancipatria. Quem se contenta em querer um

    capitalismo de rosto humano ou um capitalismo ecolgico perde

    o que de melhor havia nas revoltas iniciadas em Maio de 68, ou seja,

    l i

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    o desejo de tudo transformar em objecto de crtica, a comear pela

    vida quotidiana e pela loucura quotidiana da sociedade capitalista

    que coloca os indivduos perante a absurda alternativa entre sacrificar

    a vida ao trabalho (perder a vida a ganh-la) e sofrer as consequncias de no ter trabalho. Os horrores que escandalizam os actores da

    nova contestao - desde a pobreza s mars negras - so simples-

    mente as consequncias mais visveis do funcionamento quotidiano

    da sociedade de mercado. Tais horrores existiro enquanto existir a

    sociedade que os produz, pela simples razo de que decorrem da

    prpria lgica dessa sociedade.

    portanto necessrio desocultar essa lgica; e o Marx esot

    rico, com a sua crtica da lgica basilar da sociedade moderna, o

    nico ponto de partida que se nos oferece para uma tal investigao.

    Por exemplo, sem o conceito de trabalho abstracto corre-se a todo

    o momento o risco de voltar a cair na oposio entre a m espe

    culao financeira e o trabalho honesto, oposio que se presta

    a ser explorada por todos os populismos, desde a extrema direitaaos marxistas tradicionais e aos nostlgicos do keynesianismo. Se

    no se retomar essa crtica dos fundamentos, a necessidade de uma

    completa oposio sociedade actual - que a nica opo realista

    facilmente se ver atolada ou num existencialismo subjectivo, em

    geral recupervel no plano cultural, ou numa pseudo-radicalizao

    de velhos esteretipos marxistas (o imperialismo) que apenas con

    duzem a um militantismo vazio e ao sectarismo.Assim, retomar a crtica marxiana esotrica da mercadoria um

    pressuposto de qualquer anlise sria que, por seu turno, condio

    prvia de toda a prxis. Todavia, ningum fala da crtica da mercado

    ria, nem os rgos oficiais da reflexo poltica, nem os supostamente

    marxistas. certo que na ideologia eclctica at agora prevalecente

    no seio da nova contestao se encontra uma quantidade de restosfragmentrios do marxismo tradicional, frequentemente transfigura

    dos e dificilmente reconhecveis. Mas precisamente o marxismo

    tradicional que impede o recurso ao conjunto da riqueza contida no

    pensamento do prprio Marx. Desembaraarmo-nos de mais de um

    ser o mundo uma merca dor ia?

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    sculo de Interpretaes marxistas uma primeira condio para reler

    a obra marxiana 2.Outra condio libertarmo-nos da concepo

    segundo a qual h que aceitar ou recusar em bloco a obra de Marx,

    mas rejeitando igualmente a ideia de que cada um possa retirar dela

    os fragmentos que mais lhe agradem para depois os misturar com

    migalhas diversas oriundas de outras teorias e cincias.

    Numa parte central - embora menor quanto ao nmero de pgi

    nas - da sua obra da maturidade, Marx esboou os traos gerais de

    uma crtica das categorias de base da sociedade capitalista: o valor, o

    dinheiro, a mercadoria, o trabalho abstracto, o fetichismo da merca

    doria. Uma tal crtica do ncleo central da modernidade hoje maisactual do que na poca em que Marx a concebeu, uma vez que esse

    ncleo existia ento apenas em estado embrionrio. Para fazer res

    saltar este aspecto da crtica marxiana - a crtica do valor - no

    necessrio forar os textos por meio de interpretaes rebuscadas:

    basta l-los com ateno, coisa que quase ningum fez durante um

    sculo.

    Ao mesmo tempo necessrio admitir que uma boa parte da obrade Marx est hoje amplamente ultrapassada: designadamente a des

    crio muito rigorosa do aspecto emprico da sociedade do seu tempo

    e de toda a fase ascendente do capitalismo, quando este se encontrava

    ainda em grande medida entrelaado com factores pr-capitalistas.

    O marxismo tradicional, alis com razo, podia reclamar-se com fre

    quncia dessa parte, mesmo sem necessidade de desfigurar os textos.

    O Marx exotrico, que pregava a transformao dos operrios em

    cidados de pleno direito, no era de facto uma inveno dos sociais-

    -democratas. No se tratar aqui, pois, de regressar a uma qualquer

    ortodoxia marxista restabelecendo a pureza da doutrina originria,

    como tambm no se trata de rever a teoria marxiana para a adaptar

    ao mundo contemporneo. O que pretendemos em primeiro lugar

    reconstruir de maneira bastante precisa a crtica marxiana do valor.No porque acreditemos que ao estabelecer o que Marx verdadeira

    mente disse se prove ipso factoalguma coisa acerca da realidade de

    que ele fala. Mas para se poder julgar a pertinncia da crtica marxiana

    13

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    preciso comear por conhec-la. E provavelmente haver mesmo

    entre os leitores declaradamente marxistas desta nossa reconstruo

    quem possa encontrar nela factores que lhe haviam escapado.

    A obra de Marx no um texto sagrado, e uma citao de

    Marx no constitui uma prova. Mas preciso sublinhar que a sua obra

    continua a ser a anlise social mais importante dos ltimos cento e

    cinquenta anos. Trata-se, quanto a este ponto, de uma deliberada

    inclinao nossa cuja validade procuraremos demonstrar. Marx foi

    exorcizado e declarado morto inmeras vezes, a ltima das quais em

    1989. Mas como pode ento acontecer que passados alguns anos

    Marx tenha voltado, e sobretudo num estado de sade capaz de fazerinveja aos seus coveiros da vspera? Infelizmente tal sucede porque

    - preciso que se diga - h quem preferisse viver num mundo em

    que as obras de Marx estivessem efectivamente ultrapassadas e j

    no constitussem seno uma recordao de um mundo totalmente

    passado!

    Apesar de todos os nossos esforos, a apresentao que fazemosda teoria marxiana do valor no de leitura fcil; contm muitas cita

    es e pode por vezes dar a impresso de perder-se na filologia. Mas

    preciso atravessar um tal deserto, porque todos os desenvolvimentos

    posteriores regressaro sempre a essas pginas de Marx que so a

    respectiva fonte. Sem uma explicao prvia das categorias de base

    - trabalho abstracto, valor, mercadoria, dinheiro - os raciocnios ulte

    riores no teriam sentido. Este no de facto um livro ps-moderno:no se pode l-lo de modo fragmentrio ou invertendo a ordem dos

    captulos. Pretende seguir um desenvolvimento coerente que vai do

    abstracto ao concreto e do simples ao composto; antes de o julgar

    seria bom que o leitor tivesse a certeza de ter captado a lgica sub

    jacente.

    Depois dessa explicao inicial tentaremos extrair as consequncias das categorias de base assim estabelecidas, consequncias que

    muitas vezes vo ao arrepio de tudo o que habitual no marxismo

    tradicional e por vezes mesmo da teoria do prprio Marx, designada

    mente no que diz respeito ao trabalho. Para o fazer apoiar-nos-emos

    ser o mundo uma merca dor ia ?

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    nos raros autores que, a partir dos anos vinte, mas sobretudo nas

    ltimas dcadas, contriburam para o desenvolvimento da crtica

    do valor. De incio lmitamo-nos a fazer uma parfrase do texto de

    Marx. As crticas que se podem fazer a propsito do texto, tanto

    quanto a exposio de eventuais contradies internas, so depois

    enunciadas no decurso do livro. Por outro lado, quando procedemos

    ao resumo do texto de Marx, utilizamos certos conceitos, por exem

    plo, valor de uso e trabalho concreto, tal como Marx os utiliza,

    mesmo se posteriormente exprimimos reservas acerca do emprego

    desses conceitos.

    De seguida, o que tivermos estabelecido como ncleo vlido

    da anlise marxiana no ser combinado de maneira eclctica com

    outras anlises no intuito de colmatar pretensas lacunas. Tentaremos

    antes mostrar que as leis que regulam a sociedade fetichista foram

    igualmente objecto de outras investigaes, nomeadamente no

    mbito da antropologia. Utilizando uma abordagem distante da de

    Marx, autores como mile Durkheim, Mareei Mauss ou Karl Polanyi

    contriburam com anlises muito importantes em domnios que escaparam aos marxistas tradicionais: a crtica do fetichismo e a crtica da

    economia. No atingem, porm, o nvel de compreenso das formas

    de base que distingue a obra de Marx.

    Por outro lado, trataremos de colocar a crtica marxiana do valor

    em oposio no apenas com o marxismo tradicional, mas tambm

    com muitas teorias dos nossos dias que pretendem dizer verdades

    crticas sobre o mundo moderno desprezando as categorias de Marx.

    Esperamos, sobretudo, demonstrar que a teoria de Marx no uma

    teoria puramente econmica que reduza a vida social aos seus

    aspectos materiais sem levar em conta a complexidade da sociedade

    moderna. Quem lana a acusao de economismo, tantas vezes

    levantada contra Marx, inclusivamente esquerda, admite a con

    tragosto que Marx pode ter razo na sua anlise do funcionamento da

    produo capitalista. Mas ao mesmo tempo, quem assim fala afirma

    que a produo material no seno um aspecto da vida social na

    sua totalidade, enquanto Marx nada teria dito de vlido no que toca

    15

  • 5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria

    16/286

    aos restantes aspectos. Para defrontar este subterfgio, caro a autores

    como Bourdieu e Habermas, demonstraremos que Marx desenvol

    veu uma teoria das categorias fundamentais que regulam a sociedade

    capitalista em todosos seus aspectos. No se trata da distino bem

    conhecida entre base e superestrutura, mas sim do facto de o

    valor ser uma forma social total - para empregar uma formulao

    antropolgica - que d ela mesma luz as diferentes esferas da socie

    dade burguesa. No h, pois, necessidade de completar as ideias

    econmicas de Marx sobre as classes com consideraes relativas

    aos temas supostamente por ele negligenciados: a raa, o gender,

    a democracia, a linguagem, o simblico, etc. Importa antes por emrelevo o facto de a crtica da economia poltica levada a cabo por

    Marx, centrada na crtica da mercadoria e do respectivo fetichismo,

    descrever a forma de base da sociedade moderna que existe antes

    de toda e qualquer distino entre a economia, a poltica, a socie

    dade e a cultura. Marx muitas vezes acusado de tudo reduzir

    vida econmica e de negligenciar o sujeito, o indivduo, a imaginao

    ou os sentimentos. Na verdade, porm, o que Marx fez foi simples-mente fornecer uma descrio implacvel da realidade capitalista. a

    sociedade mercantil que constitui ela mesma o maior reducionismo

    alguma vez visto. Para sair deste reducionismo preciso sair do

    capitalismo, no da crtica do capitalismo. No a teoria do valor

    concebida por Marx que se encontra ultrapassada, mas sim o prprio

    valor.

    No faz parte das nossas intenes propor uma releitura integral de

    Marx. No obstante, esperamos contribuir para eliminar certos mal-

    -entendidos muito difundidos, em parte responsveis pela pouca

    atraco que o pensamento de Marx actualmente exerce sobre muita

    gente que, pelo contrrio, deveria muito naturalmente procurar a a

    sua inspirao. Refutar-se- a afirmao segundo a qual a teoria deMarx, sendo materialista e economista, seria incapaz de ler um mundo

    dominado pela comunicao e pelo virtual. igualmente necessrio

    escapar s limitaes impostas pela convico amplamente difundida

    ser o mundo uma me rcado r ia?

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    de que existe urna fractura entre o Marx cientfico e o Marx revo

    lucionrio. Houve quem prodigalizasse elogios a Marx, enquanto

    sbio, e ao mesmo tempo aplicasse todo o seu zelo na tentativa de

    demonstrar que tal facto no implica que se haja de saltar para cima

    das barricadas, e que cada qual pode tirar das investigaes dele as

    concluses que entender. Quem assim procede procurou em geral

    adaptar a teoria de Marx aos critrios supostamente objectivos da

    economia poltica e da teoria da cincia burguesas. Por seu turno a

    opo revolucionria cr igualmente na existncia dessa fractura, mas

    para criticar uma suposta contradio entre a descrio cientfica e a

    luta prtica. Na verdade, porm, precisamente o Marx do Capitalque pode ser entendido como o mais radical. Enquanto o Manifesto

    Comunista, reputadamente muito radical, desemboca em reivin

    dicaes frequentemente reformistas, a crtica da economia pol

    tica do Marx tardio (mas tambm a Crtica do Programa de Qotha)

    demonstra que toda a transformao social v se no chega a abolir

    a troca mercantil.

    Este livro pode ser lido em dois nveis: o texto principal esboa os pon

    tos essenciais da teoria da mercadoria e do seu fetichismo resumindo

    os escritos de Marx sobre essa matria e desenvolvendo a respec

    tiva lgica at anlise do mundo contemporneo. Prope-se ser um

    ensaio completo e pode ser lido por si s, sem as notas. As citaes,

    excepo feita s do prprio Marx, e as referncias a outros autoresno so, no texto principal, muito numerosas. As notas no final de

    cada captulo procuram ento aprofundar os desenvolvimentos con

    tidos no texto: ou citando as passagens de Marx parafraseadas com

    brevidade no texto principal, no intuito de demonstrar aos marxistas

    tradicionais que no violentamos os textos sagrados: ou dando a

    palavra aos autores que contriburam para estabelecer a crtica do

    valor, para o que utilizamos sobretudo textos no publicados em

    lngua francesa mas que merecem ser conhecidos: ou colocando em

    contraste diferentes opinies sobre um qualquer assunto, para assim

    melhor fundamentar a nossa: ou desenvolvendo, maneira de peque

    17

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    nos excursos, pontos no abordados no texto principal. Esperamos

    que tais notas carreiem material novo para os leitores que desejem um

    aprofundamento terico; contudo, a leitura das notas no indispen

    svel para a apreenso do contedo essencial do texto.

    O presente livro no pretende apresentar descobertas inditas.

    A crtica do valor tem os seus antecedentes nos anos vinte com dois

    trabalhos: Histria e conscincia de classe,de Gyrgy Lukcs, e os

    Estudos sobre a teoria do valor, de Isaak Rubin. Continua depois

    por entre as linhas dos escritos de Theodor Adorno, para encontrar

    o seu verdadeiro nascimento por volta de 1968, quando em dife

    rentes pases (Alemanha, Itlia, EUA) autores como Hans-JrgenKrahl, Hans-Georg Backhaus, Lucio Colletti, Roman Rosdolsky ou

    Fredy Perlman trabalham em torno do mesmo assunto. Desenvolve-

    -se posteriormente, a partir da segunda metade dos anos oitenta,

    com autores como Robert Kurz, na Alemanha, Moishe Postone,

    nos Estados Unidos, e Jean-Marie Vincent, em Frana, os quais,

    sem contacto entre si, chegaram, por vezes literalmente, s mes

    mas concluses. Como evidente, este facto no se explica por

    um crescimento da inteligncia dos tericos, mas sim pelo fim do

    capitalismo clssico: esse fim significou ao mesmo tempo o fim do

    marxismo tradicional, desbloqueando assim a possibilidade de uma

    perspectiva sobre um outro terreno da crtica social. Deste modo,

    sucede que na sua maior parte as teses do presente livro j foram

    sendo expostas aqui e ali ao longo das ltimas dcadas por diferentes autores, sobretudo na Alemanha, mas tambm em Itlia, nos

    Estados Unidos e noutros locais. Se, apesar disso, este livro houver

    de suscitar um certo interesse, ser pelo facto de tentar resumir de

    um modo acessvel a um pblico no especializado um conjunto

    de pesquisas que at aqui permaneciam dispersas em obras eru

    ditas ou em revistas de circulao limitada. Cada um dos autores

    que se ocuparam da crtica do valor examinou um aspecto parti

    cular da questo, e quase sempre dirigindo-se a um pblico que se

    pressupunha conhecer j a teoria marxiana do valor. Alguns deles

    aplicaram-se em dissecar algumas pginas de Marx para delas extra

    ser o mundo uma mercadoria?

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    rem todos os frutos possveis; outros analisaram as actuais con

    vulses econmicas ou a histria do sculo XX utilizando a crtica

    do valor como uma espcie de pressuposto mudo que explica

    vam em meia dzia de frases. No existe nenhum texto que pro

    cure apresentar a crtica do valor na sua integralidade, comeando

    pela anlise mais simples, a da relao entre duas mercadorias, para

    progredir depois gradualmente do abstracto ao concreto e chegar

    actualidade e s temticas histricas, literrias ou antropolgicas.

    A teoria do fetichismo apresentada neste livro deve muito

    revista Krisis e a alguns dos seus colaboradores. O autor participou

    pessoalmente no desenvolvimento dessa teoria, e nas pginas queaqui se oferecem ao leitor ela encontra-se presente com maior fre

    quncia do que possa julgar-se com base meramente nas citaes

    explcitas. Contudo, o presente livro no representa de modo algum

    uma condensao oficial das posies do grupo Krisis, que alis

    entretanto se cindiu em dois grupos e duas revistas. Nenhum dos

    autores que constituram o grupo Krisis responsvel pelo uso que

    aqui feito das respectivas teses.

    garantidamente mais fcil escrever sobre as multinacionais do

    que sobre o valor, e mais fcil sair rua para protestar contra a

    Organizao Mundial do Comrcio ou contra o desemprego do que

    faz-lo para contestar o trabalho abstracto. No preciso grande

    esforo mental para exigir uma distribuio diferente do dinheiro ou

    um maior nmero de empregos. infinitamente mais difcil algumlevar a cabo uma crtica que recai sobre si prprio, enquanto sujeito

    que trabalha e ganha dinheiro. A crtica do valor uma crtica do

    mundo, mas uma crtica que no permite que se acusem de todos

    os males do mundo as multinacionais ou os economistas neoli-

    berais, continuando-se ao mesmo tempo a viver a prpria existncia

    pessoal no seio das categorias do dinheiro e do trabalho, sem ter

    a ousadia de as pr em causa por receio de se perder a aparncia

    de razoabilidade. Tornou-se, porm, um absurdo acusar o sistema

    capitalista de no fornecer trabalho e dinheiro suficientes. O tempo

    das solues fceis passou. Este livro no se furta questo Que

    19

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    fazer?, mas simultaneamente no renega a sua condio de texto

    terico que no constitui um guia para a aco.

    Este livro ter alcanado o seu objectivo se conseguir transmitir

    ao leitor a paixoque o seu autor sente pela temtica, aparentementeto abstracta, do valor. a paixo que nasce no instante em que se

    tem a impresso de ter entrado na cmara onde esto guardados os

    segredos mais importantes da vida social, os segredos de que depen

    dem todos os outros.

    Nas notas, cada citao identificada por uma sigla ou abreviatura que se encon

    tra explicada na bibliografia final. No caso de todas as obras de Marx contidas nos

    MarxEngelsWerke,das edies Dietz, indicamos tambm o nmero do volume

    e o nmero da pgina dessa edio alem (por exemplo, M EW 23/49). O mesmo

    acontece no caso de algumas citaes extradas da MarxEngelsQesamtausgabe

    (por exemplo, MEGA, 11.5, pg. 643).

    ser o mundo uma mercad or ia?

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    NOTAS

    1 Foi o prprio Marx quem aplicou os termos esotrico e exotrico a Adam

    Smith (M EW 26.2/163, 166; Thories II, 185, 188 - trata-se da questo de

    saber se Adam Smith penetra at essncia do processo global, ou se se

    coloca do ponto de vista do capitalista individual), j antes Heinrich Heine e

    os jovens hegelianos tinham aplicado estes termos a Hegel, e outros autores

    aplic-los-iam mais tarde a Plato.2 Ser necessrio integrar tambm no conjunto dessas interpretaes marxistas

    uma grande parte daquilo que ficou conhecido com o nome de marxismo

    crtico. Os respectivos representantes limitaram-se em geral crtica e refu

    tao - sem dvida, meritrias - da interpretao ortodoxa ou estalinista

    da obra de Marx, por exemplo, nos livros de M. Rubel (Marx critique du

    marxisme,Paris, Payot, 1974) e K. Papaioannou (Marx et les marxistes.Paris,

    J'ailu, 1965, posteriormente Paris, Flammarion, 1972, 1984, L'ldologie froide.

    Essai sur te dprissement du marxisme, Paris, Jean-jacques Pauvert, 1967).

    Esses autores interessaram-se sobretudo pelo aspecto poltico da teoria de

    Marx e pela sua crtica da ideologia, ao passo que concebiam a sua crtica

    da economia poltica exactamente como o fazia a interpretao ortodoxa, ou

    seja, acreditando que o respectivo fulcro se identificava com os conceitos de

    classe, propriedade privada e trabalho vivo. Por vezes os tericos mais radi

    cais acentuavam ainda mais estas noes, designadamente a luta de clas

    ses, acusando os ortodoxos de as haverem adoado. A partir do momento

    em que rejeitavam essas prprias noes (como a ontologia do trabalho

    que julgavam poder reconhecer em Marx), tais intrpretes - por exemplo C.

    Castoriadis ou Cl. Lefort - rejeitavam tambma crtica marxiana da economia

    poltica, sem fazerem qualquer tentativa para criticar Marx por intermdio de

    Marx, e sem sequer imaginarem que a chave para ultrapassar os conceitos

    marxistas poderia encontrar-se no prprio Marx. Outros queriam conservar

    a economia de Marx na sua interpretao tradicional, combinando-a porm

    com os resultados de outras disciplinas particulares, como a lingustica, aantropologia ou a sociologia emprica. Dentro deste quadro, existe tambm

    uma forte tendncia para rever a teoria de Marx luz da concepo burguesa

    da democracia. O resultado ltimo de tais eclectismos foi em geral o aban

    dono puro e simples das prprias categorias marxianas. Todas estas teorias

    21

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    tm em comum o facto de nunca encontrarem a sua referncia na crtica

    marxiana quer do valor, quer da mercadoria, sendo incapazes de lhes atribuir

    qualquer papel central. E por muito frequente que fosse em certa poca o

    emprego dos termos fetichismo e alienao, a verdade que estes fen

    menos nunca eram postos na dependncia da estrutura da mercadoria.

    ser o mundo uma merca dor ia?

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    2

    A MERCADORIA, ESSA DESCONHECIDA

    A dupla natureza da mercadoria

    Que uma mercadoria? A questo parece estpida uma vez que

    qualquer um sabe como responder. Uma mercadoria um objecto

    vendido ou comprado que muda de mos mediante um pagamento.

    Quanto se paga por ela coisa que depende do seu valor, e o valor

    determinado pela oferta e pela procura. Paga-se a mercadoria com

    dinheiro porque a troca directa s possvel nas sociedades muitoprimitivas. Se algum pergunta: quanto valem vinte metros de

    tecido? A resposta ser: 20 Euros. A mercadoria, o dinheiro e o valor

    so coisas bvias que se encontram em quase todas as formas

    conhecidas de vida social a partir da pr-histria. P-las em discus

    so pode parecer to insensato como contestar a fora da gravidade.

    A discusso s possvel no que respeita ao capital e mais-valia, aos

    investimentos e aos salrios, aos preos e s classes, ou seja, quando

    se trata de determinar a distribuiodessas categorias universais que

    regulam as trocas entre os homens. esse o terreno em que podem

    manifestar-se as diferentes concepes tericas e sociais.

    23

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    Tais afirmaes so partilhadas por toda a gente, tanto por aque

    les que consideram o sistema econmico contemporneo como

    sendo algo de natural e a melhor soluo possvel, quanto pelos

    que contestam a distribuio actual das mercadorias e do dinheiro.

    Os que se reclamam de Marx no constituem excepo. E, contudo,

    o prprio Marx tinha uma opinio diferente. O Capitalcomea com

    uma anlise pormenorizada da estrutura da mercadoria, do valor e

    do dinheiro. Claro est que se pode defender a ideia de que Marx

    no faz mais do que resumir a coisas banais, j estabelecidas pelos

    seus predecessores burgueses, como Adam Smith e David Ricardo,

    e de que a sua prpria contribuio s comea com a anlise datransformao do dinheiro em capital. Contudo, o prprio Marx

    sublinhou explicitamente que a sua anlise da mercadoria era a parte

    mais fundamental e a mais revolucionria das suas investigaes.

    precisamente com essa parte da sua teoria que Marx entende ter

    feito uma das grandes descobertas da histria humana e ter resolvido

    um enigma milenar: A forma valor, cuja configurao acabada a

    forma moeda, muito simples e desprovida de contedo. Contudo,

    h mais de dois mil anos que o esprito humano se esfora por pene

    trar o respectivo segredo.1Seja como for, negligenciar as anlises

    que Marx havia colocado no incio da sua principal obra foi uma

    caracterstica constante de todas as variantes do marxismo tradicio

    nal; as runas dessa tendncia constituem hoje mais uma razo que

    deve incitar-nos a interessarmo-nos por aquilo que ela negligenciou.Poder-se-ia igualmente contra-argumentar que, de entre os milha

    res de pginas que Marx escreveu dando corpo crtica da econo

    mia poltica, a anlise da mercadoria e da forma valor ocupa apenas

    uma parte relativamente pequena. Mas Marx chamou forma valor a

    clula germinal de toda a sociedade burguesa, e toda a sua crtica da

    economia poltica mais no do que uma explicao, uma demons

    trao, um desenvolvimento daquilo que j est contido nessa anliseaparentemente anodina. Sem ela, Marx no teria escrito uma crtica

    da economia poltica, mas simplesmente mais uma doutrina da eco

    nomia poltica.

    a mercador ia , essa de sconhec ida

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    Poder-se-ia, enfim, afirmar que a anlise marxiana do valor no

    clara e que obscurecida pela sua linguagem hegeliana, que a sua

    gnese foi difcil, que existe em diferentes verses e que Marx, ao

    longo de vinte e cinco anos, nunca conseguiu dar-lhe uma formadefinitiva2. Efectivamente, dentro da anlise a que Marx submete o

    capital, a teoria do valor a parte cuja elaborao lhe custou maio

    res esforos. Os textos, neste particular, apresentam obscuridades

    e contradies que mesmo as melhores tentativas de interpretao

    filolgica no puderam resolver completamente. Mas isso demons

    tra precisamente que Marx se encontrava aqui na presena de um

    terreno completamente novo, frente a um aspecto da vida social,um mistrio (como ele prprio lhe chama) to fundamental e to

    pouco explorado que mesmo um esprito to subtil como o seu tinha

    dificuldade em capt-lo e explic-lo. Mais uma razo para que tente

    mos finalmente fazer com que essas intuies frutifiquem, sobretudo

    porque esse mistrio , de algum modo, mais fcil de compreender

    hoje do que na poca de Marx.

    Na verso definitiva do captulo sobre a mercadoria, a que consta

    da segunda edio do Capital (1873), Marx analisa a estrutura da

    mercadoria da maneira mais simples possvel. Examina somente a

    relao entre cinco ou seis mercadorias, abstraindo aparentemente

    de tudo o resto, sobretudo dos respectivos proprietrios e de tudo o

    que diga respeito ao contexto histrico ou social. Quase se fica com

    a impresso de estarmos perante uma operao matemtica ou uma

    exemplificao lgica. Contudo, no se trata nem da descrio de um

    estado arcaico ou embrionrio que tivesse realmente existido, nem de

    uma simples hiptese ou de um modelo que devesse ser posterior

    mente verificado. Marx pretende ter identificado a forma celular3

    da sociedade burguesa (ou capitalista, ou moderna). Esta forma no

    existe em estado puro, in vitro,e s dificilmente se pode dissoci-ladas suas manifestaes empricas e concretas. Mas ela configura o

    prprio tecido de todos os actos que, repetidos milhes de vezes por

    dia em todo o mundo, constituem a vida social que conhecemos.

    Na primeira frase do Capital, Marx chama mercadoria a forma

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    elementar da riqueza das sociedades nas quais reina o modo de

    produo capitalista4. A mercadoria elementar, no no sentido

    de um pressuposto neutro, mas porque encerra j os traos essen

    ciais do modo de produo capitalista. Essa clula germinal, como

    Marx lhe chama tambm, contm contradies de base difceis de

    reconhecer primeira vista, mas que depois se encontram em todas

    as formas da vida econmica e social da sociedade moderna. Marx

    tinha plena conscincia de que a sua anlise da forma valor era uma

    novidade quase incompreensvel, tanto na forma como no contedo,

    mesmo por parte de leitores bem intencionados e avisados. No pre

    fcio primeira edio do Capital,escreve: portanto a compreenso do primeiro captulo, sobretudo na seco que contm a anlise

    da mercadoria, que causar maior dificuldade [...]. Assim, portanto,

    excepo feita seco sobre a forma valor, no se poder acusar este

    livro de ser de difcil compreenso.5

    A mercadoria no idntica ao bem ou ao objecto trocado.

    antes a forma particular que uma parte, maior ou menor, dos bensassume em certas sociedades humanas. A mercadoria antes de mais

    um objecto que no tem apenas um valor de uso, mas tambm um

    valor de troca. Cada objecto que satisfaz uma qualquer necessidade

    humana tem um valor de uso, o qual, contudo, enquanto tal, no

    uma categoria econmica. Mas, na medida em que um objecto tro

    cado em quantidades determinadas por outros objectos, possui tam

    bm um valor de troca. Enquanto valores de troca, as mercadorias sconhecem determinaes quantitativas. Se algum troca uma camisa

    por 30 quilos de batatas - no sentido de que as duas coisas tm o

    mesmo preo estas mercadorias so tratadas como quantidades

    diferentes de algo idntico que devem ter em comum. Enquanto valor

    de uso, as mercadorias so totalmente incomensurveis: a camisa e

    as batatas nada tm em comum. As relaes no interior das quais

    as mercadorias so trocadas esto sujeitas a variaes contnuas e

    portanto os respectivos valores de troca tambm. Mas num momento

    dado, o mesmo produto trocado contra diferentes valores de troca

    que so iguais entre si: uma camisa pode trocar-se por um grama

    a mercador ia , essa desconhec ida

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    de ouro, ou por dez quilos de trigo ou por um par de sapatos, etc.

    portanto necessrio que estes diferentes valores de troca tenham,

    em ltima anlise, algo em comum: o seu valor.

    Esta substncia comum das mercadorias no pode ser seno o

    trabalho que as criou: ele a nica coisa que h de idntico em mer

    cadorias que de resto so incomensurveis6. O trabalho tem a sua

    medida na respectiva durao, portanto na respectiva quantidade: o

    valor de cada mercadoria depende da quantidade de trabalho que foi

    necessria para a produzir. Nesta perspectiva pouco importa qual o

    valor de uso em que esse trabalho se realiza. Uma hora utilizada para

    fazer um vestido ou uma hora utilizada para fabricar uma bomba sempre um hora de trabalho. Se para fabricar a bomba foram neces

    srias duas horas, o respectivo valor7 o dobro do valor do vestido,

    sem levar em conta o valor de uso de cada um. A diferena quantita

    tiva a nica que pode existir entre valores: se os diferentes valores

    de uso que as mercadorias possam ter no contam para determinar

    o respectivo valor, os diferentes trabalhos concretos que as criaram

    tambm no contam. O trabalho que compe o valor no conta por

    tanto seno como puro dispndio de tempo de trabalho, sem consi

    derao pela forma especfica em que o tempo foi despendido. A esta

    forma do trabalho, na qual se abstrai de todas as formas concretas

    que lhe digam respeito, Marx chamou trabalho abstracto. Os valo

    res das mercadorias no so ento outra coisa seno cristalizaes

    dessa geleia que o trabalho humano indiferenciado8. O valor- que no dever confundir-se com o valor de troca - uma quanti

    dade determinada de trabalho abstracto contido numa mercadoria.

    A mercadoria assim a unidade do valor de uso e do valor, bem como

    do trabalho concreto e do trabalho abstracto que a criaram.

    Neste contexto, no se fala do trabalho que o indivduo concreto

    empregou efectivamente para produzir a sua mercadoria. O valor

    antes determinado pelo tempo que, numa certa sociedade e num

    certo grau de desenvolvimento das foras produtivas, em mdia

    necessrio para produzir a mercadoria em causa. Se uma hora sufi

    ciente para fazer um vestido em condies mdias, ento o respectivo

    27

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    valor de uma hora, e o produtor que empregue uma hora e meia ser

    remunerado somente por uma hora de trabalho. Marx chama a este

    tempo o tempo de trabalho socialmente necessrio. Assim sendo,

    qualquer alterao da produtividade do trabalho afecta o valor das

    mercadorias. Se um novo invento permite que numa hora se produ

    zam dez camisas em vez de uma, depois da difuso desse invento

    cada camisa j s contm seis minutos de trabalho social, mesmo se

    os indivduos que no podem recorrer ao dito invento continuam a

    empregar uma hora para fazer uma camisa.

    Como evidente, no se trabalha duas vezes para produzir uma

    mercadoria, executando-se uma vez um trabalho concreto para produzir um valor de uso, e depois uma outra vez para produzir um valor

    de troca. antes o mesmo trabalho que tem um duplo carcter:por

    um lado trabalho abstracto e por outro lado trabalho concreto.

    Enquanto trabalho concreto a infindvel diversidade de todos os tra

    balhos que, em qualquer sociedade onde reine a diviso do trabalho,

    produzem os diversos objectos. Este trabalho tem as suas diferenas

    qualitativas: umas vezes trata-se de tecer, outras de conduzir um veculo, outras de cavar a terra, e assim por diante. Enquanto trabalho

    abstracto, todos os trabalhos contam somente como dispndio pro

    dutivo de matria cerebral, de msculo, de fora anmica, de fora

    manual, etc., que consequentemente so em qualquer dos casos

    trabalho humano9. O trabalho abstracto, o trabalho enquanto tal,

    s conhece diferenas quantitativas: umas vezes trata-se de trabalhar

    uma hora, outras vezes trata-se de trabalhar dez horas. Os trabalhos

    mais complexos contam como uma forma multiplicada do trabalho

    simples: uma hora de trabalho de um trabalhador muito especiali

    zado pode valer dez horas de trabalho de um servente ou ajudante.

    Esta contabilidade produz-se automaticamente dentro da vida econ

    mica.

    O trabalho abstracto e o valor que ele cria nada tm, portanto,de material e de concreto, antes so estritamente abstraces sociais.

    O tecido fabricado pelo trabalho concreto do tecelo visvel, mas o

    trabalho abstracto que o mesmo tecido contm no pode exprimir-se

    a mercador ia, essa d esconhe c ida

  • 5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria

    29/286

    directamente. O valor que cria no tem existncia emprica, antes

    existe apenas na cabea dos homens que vivem numa sociedade em

    que os bens tomam habitualmente a forma mercadoria10. somente

    o valor enquanto substncia comum das mercadorias que as torna

    susceptveis de serem trocadas, precisamente porque as torna comen

    surveis. Porm, esta substncia comum, ou seja, o tempo de traba

    lho abstracto, uma abstraco que no pode manifestar-se, adquirir

    uma forma sensvel, seno de modo indirecto: nas relaes de uma

    dada mercadoria com outras mercadorias. Nada se diz quando se

    afirma que vinte metros de tecido valem vinte metros cie tecido.

    Mas pode exprimir-se o respectivo valor no valor de uma outra mercadoria, por exemplo se dissermos: vinte metros de tecido tm o valor

    de um fato. Nesta equao, a primeira mercadoria, que exprime o seu

    prprio valor, desempenha um papel activo e apresentada como

    valor relativo; a segunda mercadoria, na qual a primeira exprime o

    seu valor, funciona como equivalente".A mercadoria que est na

    forma de valor relativo no pode ser ao mesmo tempo o equivalente

    e vice-versa: a mercadoria que exprime o seu prprio valor no pode

    ser a matria para a expresso da outra mercadoria. Mas nesta forma

    simples ou acidental do valor, em que s esto presentes duas mer

    cadorias, a relao ainda susceptvel de ser invertida. A equao

    exprime o facto de as duas mercadorias terem a mesma substncia.

    O ser-valor de uma mercadoria encontra portanto a sua forma na

    forma natural, no valor de uso, de uma outra mercadoria. O valordo tecido, que enquanto tal uma abstraco, toma a forma do fato.

    O trabalho abstracto, indistinto, que criou o valor do tecido, exprime-

    -se no trabalho concreto que criou o fato. portanto na sua forma

    concreta de valor de uso que o fato exprime o valor do tecido: para o

    tecido, o valor, essa abstraco, toma a forma de um fato. No se trata

    de uma qualidade que coubesse naturalmente ao fato, ao contrrio do

    que se passa, por exemplo, com a respectiva capacidade de manter a

    temperatura do corpo; o fato s possui essa outra qualidade na rela

    o de valor com o tecido. Enquanto valor, o tecido perdeu as suas

    caractersticas prprias e igual ao fato. O respectivo valor exprime-

    29

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    -se como sendo diferente do seu prprio valor de uso. preciso ter

    sempre em mente a diferena entre valor e valor de troca: o valor, que

    permanece abstracto, no perceptvel, exprime-se num valor de troca

    perceptvel, designadamente a mercadoria com a qual a primeira mer

    cadoria trocada. Em termos filosficos, ser-se-ia tentado a encarar

    o valor enquanto substncia e o valor de troca enquanto a respectiva

    forma fenomnica, apesar de, como veremos, a identificao do valor

    com uma substncia colocar problemas.

    Entretanto a verdade que no existem apenas duas mercadorias.

    Os mesmos vinte metros de tecido podem igualmente trocar-se por

    quantidades determinadas de todas as outras mercadorias. Chegamos

    assim forma valor total ou desenvolvida: 20 metros de tecido = I

    fato, ou = 10 libras de ch, ou = 40 libras de caf, ou = 2 onas de

    ouro, ou Zitonelada de ferro, etc. Chegados aqui, o tecido exprime o

    seu valor em todas as outras mercadorias, e torna-se evidente que o

    respectivo valor indiferente forma particular de valor de uso sob a

    qual surge12. E assim torna-se tambm mais fcil verificar que todos

    os trabalhos representados nas diferentes mercadorias so iguais, sotrabalho abstracto, sem considerao da forma concreta na qual se

    objectivam.

    A forma valor total ou desenvolvida funciona de maneira difcil:

    a sequncia de comparaes de valor sempre incompleta, uma vez

    que aparecem constantemente novas mercadorias. Mais ainda: dessa

    maneira, cada mercadoria tem uma forma de valor relativo diferente

    da de qualquer outra mercadoria, e existe um nmero igual de formas

    de equivalncia das quais nenhuma completa e vlida para todas as

    mercadorias. Contudo, possvel inverter simplesmente a frmula: se

    o tecido exprime o seu valor no ch, no caf, no ouro, etc., tambm

    verdade que um fato, 10 libras de ch, 40 libras de caf, 2 onas de

    ouro, etc., tm o mesmo equivalente em 20 metros de tecido. Obtm-

    -se assim a forma de valor geral.As mercadorias exprimem agora o

    seu valor: de maneira I ) simples, pois que o fazem numa s e nica

    mercadoria e 2) unitria, pois que o fazem na mesma mercadoria.

    A respectiva forma valor ao mesmo tempo simples e colectiva; em

    a mercador ia, essa desconhec ida

  • 5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria

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    consequncia, geral.13Cada mercadoria exprime agora o seu valor

    por intermdio da respectiva igualdade com o tecido, e dessa maneira

    manifesta-se tambm a igualdade quantitativa de todas as mercado

    rias que se trocam por 20 metros de tecido. O tecido, agora tornado

    equivalente geral, tornou-se imediatamente trocvel contra todas

    as outras mercadorias: A sua forma corprea passa por incarnao

    visvel, por crislida social universal de todo o trabalho humano.14

    A forma de valor geral pressupe que todas as mercadorias agem da

    mesma maneira: as mercadorias tm que excluir uma de entre si da

    forma valor relativa e fazer dela a forma equivalente geral, ou seja,

    a matria da sua forma valor geral e unitria. Teoricamente toda equalquer mercadoria pode desempenhar este papel, mas necess

    rio que uma tal excluso se fixe de maneira permanente sobre uma

    dada mercadoria especfica. Em termos histricos foi o ouro que con

    quistou esse lugar. Basta que substituamos o tecido pelo ouro para

    obtermos a quarta forma, a forma dinheiro:20 metros de tecido, um

    fato, 10 libras de ch, 4 0 libras de caf, etc., valem 2 onas de ouro.

    Diferentemente do que se passava na transio da forma simples para

    a forma desenvolvida e na transio da forma desenvolvida para a

    forma geral, pode dizer-se que quase nada distingue a forma dinheiro

    da forma geral. A possibilidade de troca, imediata e universal, toma

    agora a forma do ouro. Se agora pusermos em vez de 2 onas de

    ouro a respectiva forma preo, 20 Euros, obtm-se uma frmula

    que toda a gente conhece: 20 metros de tecido = 20 Euros. A formadinheiro portanto uma simples consequncia do desenvolvimento

    da forma mercadoria e encontra a sua razo de ser ltima na frmula:

    20 metros de tecido = I fato, ou: x mercadoria A = y mercadoria B.

    Desta maneira Marx entende ter resolvido ao mesmo tempo o enigma

    da forma dinheiro que os seus predecessores (mas tambm os suces

    sores) burgueses nunca haviam compreendido.

    Esta anlise da mercadoria pode aparentar ser enfadonha e insig

    nificante. Nela nada parece existir que se preste a contestaes, e,

    por outro lado, nada parece decorrer dela que diga respeito especifi-

    31

  • 5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria

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    camente sociedade capitalista ou que permita critic-la. De facto,

    os marxistas no viram nada de explosivo nessas pginas em que

    primeira vista Marx se limita a resumir o fundamento que a sua teoria

    tem em comum com a economia poltica clssica que a antecede.

    Mas, se a teoria do valor em Marx mais no fosse do que a doutrina

    do valor trabalho da economia poltica burguesa clssica, sobre

    tudo de David Ricardo, no se poderia compreender por que motivo

    o prprio Marx considera precisamente a sua teoria do valor como a

    mais importante das suas descobertas15.

    De facto, o captulo sobre a mercadoria contm uma parte final

    que, de modo algo enigmtico, se intitula: O carcter fetiche damercadoria e o seu segredo. Marx retira a algumas consequncias

    daquilo que foi estabelecendo ao longo das pginas precedentes.

    Nas quatro primeiras pginas deste subcaptulo utiliza as seguintes

    expresses: segredo, subtilezas metafsicas, argcias teolgi

    cas, misterioso, caprichos, forma bizarra, carcter mstico,

    carcter enigmtico, quiproquo,forma fantstica, regio nebu

    losa, enigma, hierglifos, misticismo. Torna-se evidente que

    para Marx a mercadoria no algo de propriamente banal, mas bem

    pelo contrrio um objecto que desafia a compreenso em termos

    comuns. Chama-lhe uma coisa sensvel supra-sensvel, na qual as

    relaes entre os homens se apresentam como coisas, e as coisas

    como seres dotados de uma vontade prpria: O que h de misterioso

    na forma mercadoria consiste, pois, simplesmente no facto de eladevolver aos homens a imagem dos caracteres sociais do seu pr

    prio trabalho como caracteres objectivos dos prprios produtos do

    trabalho, como qualidades sociais que essas coisas possuiriam por

    natureza.16Na produo mercantil o processo de produo que

    governa os homens, e ainda no o inverso17, e o seu movimento

    social prprio tem para os indivduos que procedem a trocas a forma

    de um movimento de coisas que eles no controlam, mas das quais,pelo contrrio, sofrem o respectivo controlo18. O fetichismo reside

    desde logo no prprio facto de a actividade social tomar uma apa

    rncia de objecto19na mercadoria, no valor e no dinheiro. E contudo

    a mercador ia , essa desconhec ida

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    os homens no tm conscincia dessa aparncia; produzem-na, sem

    o saber, com os seus actos de troca, nos quais se impe constante

    mente, como se fora uma lei natural, o tempo de trabalho socialmente

    necessrio, enquanto elemento regulador. a forma dinheiro que faz

    desaparecer a verdadeira relao das mercadorias por trs de uma apa

    rncia de coisa: o facto, aceite por toda a gente, de que uma camisa

    vale 20 Euros mais no do que um desenvolvimento da forma

    valor simples, segundo a qual uma camisa vale 3 quilos de ch,

    porque o ch representa nessa equao o trabalho humano abstracto.

    Dito de outra maneira, um primeiro significado do termo fetichismo

    o seguinte: os homens pem em relao os seus trabalhos privados, no directamente, mas somente numa forma objectiva, sob uma

    aparncia de coisa, a saber, como trabalho humano igual, exprimido

    num valor de uso. Contudo, no o sabem e atribuem os movimentos

    dos seus produtos a qualidades naturais dos mesmos.

    Marx compara explicitamente o fetichismo da mercadoria ao feti

    chismo religioso, no qual os homens adoram os fetiches que eles pr

    prios criaram e atribuem poderes sobrenaturais a objectos materiais.

    Os marxistas tradicionais, tanto quanto os no-marxistas, quando

    no preferiram simplesmente ignorar esta temtica marxiana ou

    liquid-la como se de galimatas filosfico se tratasse, quase sem

    pre interpretaram o fetichismo como uma mistificao,no sentido de

    que a estrutura real da produo capitalista produz necessariamente

    representaes falsas que lhe escondem o verdadeiro aspecto. Essamistificao existe, sem dvida, e por vezes (em particular no final

    do terceiro volume do Capital)Marx utiliza a expresso fetichismo

    sobretudo nesse sentido. Mas o breve captulo sobre o fetichismo que

    citvamos h pouco, bem como outras observaes espalhadas ao

    longo da sua obra, permitem chegar a uma concluso inteiramente

    diversa: para Marx, o fetichismo no apenas uma representao

    invertida da realidade, mas uma inverso da prpria realidade20.

    E, neste sentido, a teoria do fetichismo o centro de toda a crtica

    que Marx dirige aos fundamentos do capitalismo. Muito para l do

    uso explcito da palavra fetichismo, o conceito de fetichismo como

    33

  • 5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria

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    inverso atravessa toda a crtica da economia de Marx e encontra os

    seus antecedentes nas obras filosficas de juventude. O carcter

    fetichista da sociedade capitalista no um aspecto secundrio,

    antes reside na sua prpria clula germinal. O fetichismo, o facto,

    portanto, de para os homens as suas prprias relaes de produo

    tomarem uma figura de coisa material, escapando ao seu controlo,

    independente da sua actividade individual consciente, manifesta-se

    em primeiro lugar no facto de os produtos do trabalho dos homens

    tomarem universalmente a forma de mercadoria21. Longe de ser uma

    superestrutura pertencente esfera mental ou simblica da vida

    social, o fetichismo reside nas prprias bases da sociedade capitalista

    e impregna todos os seus aspectos. Pode-se de pleno direito falar de

    uma identidade entre a teoria do valor e a teoria do fetichismo em

    Marx.O valor e a mercadoria, longe de serem esses pressupostos

    neutros de que falvamos inicialmente, so categorias fetichistas que

    do fundamento a uma sociedade fetichista. Para Marx, o homem

    moderno, cuja actividade reveste a forma de uma mercadoria ou serepresenta num valor, corresponde ao selvagem que adora um dolo

    de madeira, e um quilo de batatas comprado num supermercado

    no mais racional do que um totem. A categoria do fetichismo,

    originariamente tomada de emprstimo histria da religio, surge

    - esperamos demonstr-lo - como muito mais capaz do que todas as

    doutrinas econmicas acadmicas de explicar, por exemplo, as crises

    financeiras contemporneas. Convm, pois, regressar anlise mar-

    xiana da mercadoria e pr em relevo o carcter fetichista da mercado

    ria enquanto tal22.

    7\ abstraco real

    A dupla natureza da mercadoria no coisa muito difcil de

    compreender. J Aristteles a havia analisado: Assim, uma sandlia

    pode servir de calado, mas tambm de objecto de troca.23Mesmo a

    dupla natureza do trabalho incorporado numa mercadoria foi reco-

    a mercador ia, essa desconhec ida

  • 5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria

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    nhecida, embora de maneira imperfeita, pela economia poltica cls

    sica. Uma mercadoria singular relativamente fcil de compreender.

    O fetichismo s comea na relao entre duas mercadorias24.

    Segundo Marx, todos os aspectos essenciais esto j contidos na

    forma valor simples: 20 metros de tecido = I fato. Continua depois

    dizendo que o segredo de toda a forma valor reside nessa forma

    valor simples. portanto a anlise dessa forma simples que apre

    senta a verdadeira dificuldade.25 a essa anlise que Marx consagra

    maior nmero de pginas; a forma valor total, a forma geral e a forma

    dinheiro decorrem depois rapidamente como meras consequncias.

    O facto de se colocar em equivalncia duas mercadorias, que apa

    rentemente a coisa mais evidente deste mundo, contm j todo o

    modo de socializao que distingue o capitalismo. Na primeira edi

    o do Capital,Marx diz que a forma primeira ou simples do valor

    relativo um pouco difcil de analisar porque simples, acrescen

    tando em nota de rodap: Ela , por assim dizer, a forma celular ou,

    como diria Hegel, o emsi do dinheiro.26

    A mercadoria contm em si mesma uma contradioque vem luz do dia na respectiva relao de troca com uma outra mercadoria:

    o seu valor de uso e o seu valor - consequentemente a existncia da

    mercadoria enquanto representao de uma quantidade de trabalho

    abstracto - no existem pacificamente um ao lado do outro, antes

    entram numa relao de conflito. A oposio interior a cada merca

    doria no se pode exprimir seno constituindo dois plos: torna-se

    uma oposio exterior, uma relao entre duas mercadorias, das quais

    uma conta apenas como valor de uso, a outra (o equivalente) apenas

    como valor de troca. A forma valor simples tambm a forma mais

    simples e menos desenvolvida em que esta oposio aparece. por

    isso que difcil de compreender, e por isso tambm que nela se

    encontra j encerrado todo o segredo do modo de produo capita

    lista. O desenvolvimento dessa forma tambm o desenvolvimento

    dessa oposio interna.

    Na forma valor, o trabalho abstracto contido numa mercado

    ria manifesta-se no corpo de uma outra mercadoria, no valor de uso

    35

  • 5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria

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    desta outra mercadoria. Mas a igualizao do produto do trabalho

    com uma outra mercadoria na qual se exprime imediatamente o tra

    balho social no de maneira alguma um processo inocente ou um

    procedimento puramente tcnico. Trata-se antes de uma inverso,da

    qual Marx enumera as trs manifestaes mais importantes, logo na

    anlise da forma valor simples. O valor de uso torna-se a forma feno

    mnica do seu contrrio, o valor27: uma coisa sensvel, o corpo de

    uma mercadoria, representa uma coisa sobrenatural, supra-sensvel,

    puramente social: o valor. O trabalho concreto torna-se a a forma

    fenomnica do seu contrrio, do trabalho humano abstracto28: o tra

    balho abstracto, que no criou o tecido, mas sim o valor do tecido,utiliza para exprimir esse valor o trabalho concreto do alfaiate que fez

    o fato. Neste exemplo, o trabalho do alfaiate o equivalente imedia

    tamente trocvel com todas as outras mercadorias. Por fim, escreve

    Marx, o trabalho privado torna-se a a forma do seu contrrio, torna-

    -se trabalho sob forma imediatamente social29: o trabalho privado,

    no momento em que entra na troca, torna-se o mesmo trabalhoqueo de todos os participantes na troca.

    A mercadoria portanto a unidade de duas determinaes da

    mesma coisa, determinaes estas que no so simplesmente dife

    rentes, mas das quais uma exclui a outra: o valor de uso o contrrio

    do valor, o trabalho concreto o contrrio do trabalho abstracto, o

    trabalho privado o contrrio do trabalho social. Assim, a mercadoria

    contm um conflito perptuo e dinmico; ela tem portanto de procurar formas que permitam a essas contradies existir sem a fazerem

    explodir imediatamente. Na forma valor, uma mercadoria serve para

    exprimir de modo sensvel o valor de uma outra mercadoria. Isto

    significa que a forma concreta de uma mercadoria, o seu valor de uso,

    o seu corpo sensvel, incarnam a qualidade supra-sensvel de uma

    outra mercadoria. Contudo, os sujeitos atribuem mercadoria comose fosse uma qualidade natural o facto de ela ter um certo valor ou

    um outro valor30. Os sujeitos no executam conscientemente um

    tal processo; por trs das costas dos sujeitos que se passa a inverso

    na qual o objecto concreto e sensvel no conta seno como incarna-

    a mercador ia, essa desconhec ida

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    o do valor abstracto e supra-sensvel. Na inverso que caracteriza

    logo a mercadoria singular, o concreto tornase um simples portador

    do abstracto. Oconcreto s tem existncia social na medida em que

    serve ao abstracto para que este d a si mesmo uma expresso sen

    svel31. E se a mercadoria a clula germinal de todo o capitalismo,

    isso significa que a contradio entre o abstracto e o concreto nela

    contida regressa em cada estdio da anlise, constituindo de algum

    modo a contradio fundamentalda formao social capitalista.

    Se a mercadoria uma categoria fetichista, porque o trabalho

    que constitui o respectivo valor trabalho abstracto: Este carcter

    fetiche do mundo das mercadorias, como a nossa precedente anlise j demonstrou, provm do carcter social prprio do trabalho

    que produz mercadorias.32 Mas - poder-se-ia objectar -, por que

    motivo a abstraco ter de ser entendida como coisa negativa?

    O pensamento, dir-se-ia, no pode existir sem resumir os elementos

    que vrias coisas tm em comum, ou seja, sem abstrair da respectiva

    diversidade. Nada h de mal em colocar os ces, os gatos, as lebres

    e os cavalos na mesma categoria, a do animal, mesmo se o animal

    enquanto tal no existe. De igual modo, poder-se-ia ainda continuar,

    impossvel que os homens troquem os seus produtos sem que redu

    zam, no plano do pensamento, os seus diversos trabalhos concretos

    ao facto de haver sido empregue trabalho; esta abstraco um sim

    ples meio auxiliar, tcnico.

    De facto neste ltimo sentido que o conceito de trabalho abs

    tracto foi empregue pela economia poltica clssica. Esta, depois de

    ter ultrapassado as teorias que atribuam a qualidade de criar valor

    apenas a um certo tipo de trabalho - os mercantilistas atribuam-na

    exclusivamente ao trabalho de extraco de metais preciosos, a dou

    trina dos fisiocratas ao trabalho na agricultura -, reconheceu no tra

    balho, sem qualquer qualificativo, a fonte do valor. Mas ao faz-lo

    a economia poltica clssica seguiu um procedimento analtico noqual se retiram gradualmente a um objecto todas as suas determina

    es para o reduzir ao seu elemento mais simples, como quando se

    reduzem todos os homens, na sua diversidade, a uma certa estrutura

    37

  • 5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria

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    qumica que comum a todos, tanto ao bosqumano como ao impe

    rador do Japo. No propriamente um erro, mas seria impossvel

    explicar a diferena (cultural, histrica, social) entre o bosqumano

    e o imperador do Japo com base na estrutura qumica que lhes

    comum. De igual maneira, por intermdio de um processo puramente

    mental possvel chegar concluso de que todas as mercadorias

    so constitudas por alguma forma de trabalho. Esta digresso do

    complexo ao simples, resume-a Marx nos dois primeiros subcaptulos

    da anlise a que submete a mercadoria. Mas seria um enorme erro

    - embora frequente - pensar que Marx partilha desse ponto de vista

    e que o seu conceito de trabalho abstracto o mesmo que Smith eRicardo haviam obtido mediante a sua reductio ad unum.De facto o

    trabalho sem mais que se obtm pela via desta reduo indepen

    dente de toda a determinao social e existe em todas as sociedades.

    Trata-se de um puro facto fisiolgico: o dispndio de trabalho fsico

    ou mental.

    Com a sua anlise da forma valor no terceiro subcaptulo do

    primeiro captulo do Capital, Marx toma o caminho inverso, que

    muito mais difcil, um caminho em que se mostra totalmente hege-

    liano e em que abandona completamente o mtodo da economia

    poltica. Marx quer agora explicar agneselgica - no a gnese his

    trica - das categorias encontradas na realidade emprica, em vez de

    as aceitar como meros dados. Trata-se, para Marx, de explicar como

    e por que razo as formas de base abstractas se tornam os fenmenos visveis superfcie. Desta maneira desvela a respectiva relao

    de pertena a uma certa formao social, em vez de ver nelas dados

    naturais presentes em toda a parte, como sucede com a economia

    poltica burguesa.

    O trabalho abstracto analisado por Marx no um pressuposto

    indeclinvel sem consequncias especficas, como porventura o factode ser preciso respirar para viver. Pelo contrrio, o trabalho abstracto,

    no sentido marxiano, existe somente no capitalismo e a sua carac

    terstica principal. Marx refere-se a ele como sendo todo o segredo

    e o ponto axial: Fui o primeiro a por o dedo, de maneira crtica,

    a mercador ia, essa desconhec ida

  • 5/24/2018 Anselm Jappe - As Aventuras Da Mercadoria

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    sobre essa natureza bfida do trabalho contido na mercadoria. Como

    em torno deste ponto axial que gira a compreenso da economia

    poltica, convm esclarec-lo um pouco mais neste contexto.33

    O trabalho abstracto, cujo conceito Marx estabelece, no a gene

    ralizao mental de que falvamos h pouco, mas sim uma realidade

    social, uma abstraco que se torna realidade. Vimos acima que, se

    todas as mercadorias devem ser trocveis entre si, o trabalho contido

    nas mercadorias deve igualmente ser imediatamente trocvel. S o

    pode ser se for igual em todas as mercadorias, ou seja, se se tratar

    sempre do mesmo trabalho. O trabalho contido numa mercadoria

    dever ser igual ao trabalho contido em todas as outras mercadorias. Na medida em que se representam no valor, todos os trabalhos

    valem somente enquanto dispndios da fora humana de trabalho.

    O respectivo contedo concreto apagado; os trabalhos equivalem-

    -se todos entre si. No se trata aqui de uma operao puramente

    mental: de facto, o valor dos diferentes trabalhos representa-se numa

    forma material, o valor de troca, que nas condies mais evoludas

    toma a forma de uma quantidade determinada de dinheiro. O dinheiro

    representa algo de abstracto - o valor -, e representa-o enquanto

    algo de abstracto. Uma soma de dinheiro pode representar qualquer

    valor de uso, qualquer trabalho concreto. Onde a circulao de bens

    for mediada pelo dinheiro, a abstraco tornou-se algo de bastante

    real. Podemos ento falar de uma abstraco real34. A abstraco de

    toda e qualquer qualidade sensvel, de todos os valores de uso, no uma espcie de resumo mental, como sucede quando se abstrai

    dos diferentes gneros de animais para falar de o animal, que con

    tudo no existe enquanto tal. A melhor expresso da essncia desta

    abstraco real encontra-se numa passagem da primeira edio que

    Marx, infelizmente, no reproduziu nas edies seguintes: como

    se a par e margem dos lees, dos tigres, das lebres e de todos os

    outros animais reais que em grupo constituem os diferentes gneros,espcies, subespcies, famlias, etc., do reino animal, existisse ainda

    o animal, a incarnao individual de todo o reino animal. Uma tal

    singularidade, que compreende em si mesma todas as espcies real-

    39

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    mente existentes da mesma coisa, um universal,como por exemplo

    animal, Deus,etc.35

    A mistificao contida na abstraco mercantil bem real; ela

    constitui a verdadeira natureza deste modo de produo: O facto

    de uma relao de produo social se apresentar sob a forma de um

    objecto existente fora dos indivduos e de as relaes determinadas

    nas quais estes entram no processo de produo da sua vida social se

    apresentarem como propriedades especficas de um objecto constitui

    essa inverso, essa mistificao no imaginria, mas de uma prosaica

    realidade,que caracteriza todas as formas sociais do trabalho criador

    de valor de troca. No dinheiro ela limita-se a aparecer de maneiramais notria do que na mercadoria.36O dinheiro no representa os

    valores de uso na sua multiplicidade, antes a forma visvel de uma

    abstraco social, o valor. Na sociedade mercantil, cada coisa tem

    uma dupla existncia, enquanto realidade concreta e enquanto quan

    tidade de trabalho abstracto. este segundo modo de existncia que

    se exprime no dinheiro, que merece portanto ser chamado abstraco

    real principal. Uma coisa uma camisa ou uma ida ao cinema e ao mesmo tempo 10 ou 20 Euros. Esta qualidade do dinheiro no

    pode ser comparada com nenhuma outra coisa; ela situa-se para l

    da dicotomia tradicional entre o ser e o pensamento, dicotomia para

    a qual uma coisa ou existe somente na cabea, sendo pois imaginria

    - esse o sentido habitual do termo abstraco -, ou, pelo contrrio,

    efectivamente real, material, emprica37. Trata-se de uma forma de

    realidade para cuja anlise a dialctica hegeliana constitui o melhor

    instrumento, como teremos ainda ocasio de sublinhar.

    Enquanto o trabalho concreto se realiza sempre em alguma coisa

    - material ou imaterial, num bem ou num servio38 -, o trabalho

    abstracto no pode exprimir-se de modo directo porque produz uni

    camente uma forma social. Tem pois necessidade de se exprimir deuma maneira indirecta no valor de troca: em termos prticos, no

    dinheiro. Nas trocas sociais, os actores no tm conscincia do facto

    de que os valores das coisas mais no so do que representantes de

    a mercador ia, essa desconhec ida

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    unidades de trabalho. O valor de troca esconde o facto de que so

    as quantidades de trabalho incorporadas que determinam os valores

    das mercadorias, e no as respectivas qualidades naturais. Aqui pode

    falar-se efectivamente de uma dissimulao. Mas Marx coloca tam

    bm uma outra questo, uma questo mais radical: por que razo o

    trabalho, a actividade produtiva, toma a forma do valor? O valor j

    uma forma de abstraco, por confronto com a actividade real. No

    apenas a representao do valor na forma valor - o valor de troca

    - que fetichista, mas tambm, a montante, a representao do tra

    balho vivo no valor. Se todo o valor se dissolve em trabalho, ento

    parece lgico concluir-se, como faz a economia poltica burguesa,que todo o trabalho se representa em um valor. Estes dois termos

    seriam equivalentes, e ento a nica questo seria a de saber quanto

    valor contm uma mercadoria, e no sob que forma o trabalho se

    tornou valor. Mas Marx censurava a economia poltica clssica por

    ter chegado a esta concluso interessando-se exclusivamente pelo

    aspecto quantitativo do valor: A economia poltica analisou de facto,

    ainda que de maneira imperfeita, o valor e a dimenso do valor, e des

    cobriu o contedo escondido sob estas formas. Mas nunca colocou

    ao menos a simples questo de saber por que motivo este contedo

    toma aquela forma, e portanto por que razo o trabalho se exprime

    no valor e a medida do trabalho pela respectiva durao se exprime

    na dimenso do valor do produto do trabalho.39Os marxistas, por

    seu turno, tambm prestaram muito pouca ateno a esta questo.Acharam normal que o trabalho se tornasse valor e concentraram a

    sua crtica na representao infiel do trabalho no dinheiro. Porm, h

    que admitir que o prprio Marx nem sempre separou rigorosamente

    estes dois nveis: a passagem do trabalho ao valor e a passagem do

    valor ao valor de troca.

    A diferena entre o Marx exotrico e o Marx esotrico existe

    mesmo no interior da anlise que faz do valor e visvel nas suas

    flutuaes no que respeita determinao do valor40. Para refutar a

    concepo segundo a qual um facto natural, comum a todas as

    sociedades, a criao do valor por parte do trabalho, preciso criticar

    41

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    tambm a concepo segundo a qual o trabalho est contido no

    valor, valor, cria o valor. Mas Marx, ele prprio, utiliza frequen

    temente estas expresses tpicas de Smith e de Ricardo, para quem

    o trabalho cria o valor como o padeiro faz o po (Kurz). Noutros

    contextos Marx diz antes que o trabalho se representa no valor,

    o que coisa bastante diferente. Mas no presta ateno suficiente

    necessidade de se demarcar da concepo naturalista dos seus

    predecessores. At aqui temos vindo a reproduzir essas hesitaes

    na nossa parfrase do discurso de Marx, simplesmente porque fazem

    parte desse discurso. Daqui em diante passaremos a levar em linha

    de conta a diferena entre o valor contido e o valor representado,diferena a que havemos de regressar.

    absolutamente necessrio eliminar um outro mal-entendido muito

    divulgado nestes ltimos anos, segundo o qual o trabalho abstracto

    e o trabalho concreto de que Marx fala seriam dois tipos diferentes

    de trabalho. Em Marx, estas categorias nada tm a ver com o con-

    tedo do trabalho, e nem sequer com a organizao do trabalho.

    E menos ainda se trata de dois estdios diferentes do processo de

    trabalho. O trabalho no comea por ser concreto, para depois se

    tornar abstracto. O trabalho abstracto, no sentido de Marx, nada

    tem a ver com a parcelarizao do trabalho, com a sua fragmentao

    em unidades destitudas de sentido, ou com a respectiva desmate

    rializao - recentemente tem havido quem com frequncia tenhaposto a noo de trabalho abstracto em relao com a importncia

    crescente do trabalho imaterial. O trabalho abstracto no nem o

    trabalho fragmentado na linha de produo, nem o trabalho do infor

    mtico. Consequentemente falso dizer-se que o trabalho abstracto

    substitui cada vez mais o trabalho concreto, ou que o trabalho se

    torna cada vez mais abstracto. Logo no primeiro texto que retomou

    o conceito marxiano de trabalho abstracto, ou seja, em Histria e

    conscincia de classe, de Gyrgy Lukcs (1923), esta interpretao

    do conceito de trabalho abstracto desempenha um papel importante.

    A tnica que Lukcs coloca sobre a abstraco produzida pela

    a mercador ia, essa desconhec ida

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    parcelarizao do trabalho decorre do facto de, nesse livro, o autor

    atribuir diviso do trabalho uma importncia muito maior do que

    aquela que o prprio Marx, na sua obra tardia, lhe conferiu. Marx

    escreveu, por exemplo, o seguinte: Ora, tanto quanto exacto dizer

    que a troca privada supe a diviso do trabalho, inexacto dizer que

    a diviso do trabalho supe a troca privada.41A diviso do trabalho

    seria portanto uma categoria mais vasta do que a da troca privada, a

    base do capitalismo, e em consequncia a diviso do trabalho no

    conduz necessariamente ao capitalismo.

    Segundo a teoria marxiana da duplicao, na produo de mer

    cadorias todo o trabalho ao mesmo tempo abstracto e concreto:

    Do que precede resulta que, se no existem dois tipos de trabalho

    na mercadoria, o mesmotrabalho recebe nela contudo determinaes

    diferentes e opostas entre si, segundo se reporte o trabalho ao valor

    de uso dessa mercadoria enquanto respectivo produto, ou ele seja

    reportado ao v