andrea pozzo e a escrita do arquitetoexplicadas por textos. editado em diversas línguas, o tratado...
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V SEMINÁRIO IBERO-AMAERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO BELO HORIZONTE – DE 24 A 26 DE Outubro de 2017
ANDREA POZZO E A ESCRITA DO ARQUITETO
SILVA, MATEUS ALVES
Doutorando em História (História da Arte)
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Bolsista FAPESP
RESUMO
Andrea Pozzo (Trento, 1642 - Viena, 1709), pintor, arquiteto e tratadista jesuíta, foi um importante difusor dos métodos de construção da perspectiva aplicada às artes. Seu tratado “Perspectiva Pictorum et Architectorum” (Roma, 1693 e 1700) apresenta os principais fundamentos do desenho de perspectiva, de forma didática e progressiva, baseado em uma coleção de imagens (figure) explicadas por textos. Editado em diversas línguas, o tratado de Pozzo conheceu expressiva difusão na Europa e, particularmente na Península Ibérica, tanto por meio de intelectuais que se apropriaram do texto e elaboraram traduções ou outras obras teóricas que dialogavam com o tratado, quanto por artistas que se valeram de seu método de representação. Em função dessa circulação, compreende-se que o tratado de Pozzo pode ser entendido como um importante documento da escrita de um artista que tinha por objetivo não apenas difundir métodos específicos do desenho de perspectiva aplicada, mas também de registrar, valorizar e divulgar a sua própria produção artística, uma vez que a maior parte das obras ali apresentadas são de sua autoria e realizadas durante diferentes estágios da sua carreira. Dotado de grande habilidade técnica, Andrea Pozzo foi responsável pela elaboração de diversos projetos de aparatos efêmeros, “quadratura”, cenografia, altares, fachadas e edificações, nos quais se vale da perspectiva. Uma vez que parte dessas obras é referenciada no tratado de Pozzo, pretende-se analisá-lo pelo viés de uma escrita autorreferente, dotada de caráter autobiográfico, que pressupunha o registro de obras efêmeras ou edificadas de sua autoria, funcionando como exemplo e modelo a ser seguido pelos leitores. Para tanto, objetiva-se: 1) estabelecer a definição de Pozzo como amplo artista, considerando, sobretudo, a sua ação e produção como arquiteto; 2) discutir a importância da escrita, da imagem na forma de gravura e das publicações para a sobrevivência da arquitetura, seja ela edificada, efêmera, fingida ou imaginada; e 3) delinear o processo da mudança do texto face à crítica posterior a sua publicação. Esses pontos denotam a importância do registro dos feitos do autor, tanto pela difusão das obras como também pela utilização delas como modelo. O tratado Perspectiva Pictorum et Architectorum, tomado como referência para muitas obras na Península Ibérica e América Latina, assume também um papel significativo na trajetória de Pozzo, dada a sobrevivência do texto pela sua expressiva difusão.
Palavras-chave: Andrea Pozzo; perspectiva; tratadística.
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Andrea Pozzo e seu tratado
Andrea Pozzo (nascido em Trento, em 1642, morto em Viena, 1709) foi um importante
pintor, arquiteto e tratadista jesuíta. Sua atuação, sobretudo como pintor e construtor de
aparatos efêmeros no norte da Itália, lhe rendeu a possibilidade de se transferir para Roma
durante a década de 80, centro das atividades da Companhia de Jesus e também
importante espaço de irradiação artística. Ali realizaria as suas obras mais singulares, como
a pintura da falsa cúpula (1685) e do teto da nave da Igreja de Santo Inácio (1685-1695
(GLATIGNY, 2009)) e o projeto arquitetônico do altar de Santo Inácio de Loiola na Igreja de
Jesus (1699), o templo central da Companhia. Ao mesmo tempo em que realizava essas
obras, constituía as bases para o tratado que viria a publicar sob o título de Perspectiva
Pictorum et Architectorum (A perspectiva dos pintores e dos arquitetos), publicado em dois
volumes, sendo o primeiro em 1693 e o segundo no ano jubiloso de 1700.
Esse tratado dispunha sobre os fundamentos do desenho da perspectiva para ambas as
artes, inclusive rompendo a barreira entre ambas com o ensino da pintura de simulação
arquitetônica, a quadratura1, que já rendia reconhecimento do autor por sua vasta produção.
Organizado de forma totalmente prática e com uma disposição que privilegiava a gravura
associada a um breve texto explicativo, os volumes do tratado apresentavam os rudimentos
da perspectiva, do mais simples da geometria plana à sólida, passando pelos elementos de
cada uma das ordens arquitetônicas até chegar às estruturas mais complexas que incluíam
aparatos efêmeros, disposições cenográficas para teatro, altares, retábulos, fachadas e toda
uma sorte de projetos a serem efetivamente ou virtualmente construídos, por meio da
arquitetura ou da pintura. A publicação dos volumes rendeu a Pozzo um reconhecimento em
várias partes do mundo, fomentado pela cuidadosa disposição bilíngue (em latim e italiano
na primeira edição) e suas sucessivas edições e traduções para várias línguas, publicadas
ou manuscritas, ao longo da primeira metade do século XVIII (PALMER, 2003, p. 168). Por
meio dessa rápida difusão do tratado, não apenas os preceitos da perspectiva alcançariam
um público mais abrangente, em função da facilidade dos métodos de construção
apresentados, mas também a própria linguagem arquitetônica defendida por Pozzo seria
difundida, uma vez que, por escolha do próprio autor, a maior parte das imagens
apresentadas se refere a obras por ele realizadas. Nesse sentido, o tratado funcionaria
também como um livro de memória, permeado por traços autobiográficos, em que obras
1 A “quadratura” ou “quadraturismo” indica a arte de pintar uma arquitetura em um rigoroso quadro prospético
com intenção de criar uma estrutura ou um conjunto de estruturas em substituição daquela real. Cf. (FILIPPI,
2002, p. XXVI)
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realizadas, efêmeras ou não, ou ainda projetos não construídos, se tornariam perenes e
registrados por meio dessa coleção de imagens.
Antes de passar à análise desses elementos, importa precisar dois pontos específicos: a
ideia de Pozzo como arquiteto e o argumento do tratado como um registro dos feitos do
autor. No que diz respeito à atuação do artista no campo da arquitetura, importa salientar
que a própria historiografia relegou ao segundo plano a discussão sobre essas obras de
Pozzo, uma vez que se concentrou na produção da pintura e da perspectiva, ou ainda nos
aparatos efêmeros para festividades religiosas e projetos relacionados à decoração do
interior dos templos, como os altares. Claro que esses limites são muito tênues, uma vez
que o próprio autor recusa essa barreira em relação à distinção dos dois campos, pintura e
arquitetura, ao propor a associação entre ambas pela prática do desenho. Além disso, a
própria quadratura também se encaixa na interseção dessas artes, por ser pintura ao
mesmo tempo em que pretende prolongar o espaço real orientado e construído pela
arquitetura. Ainda assim, é no terreno conceitual da arquitetura que a obra de Pozzo vai ser
criticada pelos teóricos posteriores que verão nas suas “invenções” deturpações dos
preceitos da arquitetura. A título de exemplo, a falsa Cupola (I, 91) e o Altare Capriccioso (II,
65), apresentados, um como projeto executado e o outro como ideia, ambos no tratado,
seriam os mais criticados, por serem vistos como desvios à regra da arquitetura, por
apresentar “colunas assentadas sobre mísulas” em um e pela construção fantasiosa de
“colunas que se sentam” no outro. Tal crítica, elaborada por importantes arquitetos do
século XVIII, como Francesco Milizia (1725-1798), autor das Memorie degli architetti antichi
e moderni (1781) renderiam ao artista o epíteto de “architetto alla rovescia”, arquiteto às
avessas (MILIZIA, 1781, p. 276). Talvez por esse argumento a obra arquitetônica de Pozzo
tenha ficado em segundo plano e, ainda na atualidade, falta um estudo que organize de fato
toda a obra, inclusive os projetos dispersos pelos arquivos italianos, que seriam de autoria
de Pozzo ou de seus seguidores, “um livro sobre Andrea Pozzo que ainda deve ser escrito”,
nas palavras de Richard Bösel (2011, p. 151).
No que diz respeito à ideia de que o autor registra seus feitos no próprio tratado, de forma a
transformá-lo em um livro de memória dos seus feitos, esse argumento foi recentemente
desenvolvido por Sara Fuentes Lázaro no trabalho que desenvolveu comparando a obra de
Pozzo com a exposta no Liber Veritatis (1777) de Claude Lorrain (1600-1682), em que
analisa o contexto de registro de obras de cunho memorialístico como importantes para a
atuação dos artistas (FUENTES LÁZARO, 2014). Essa comparação é extremamente
importante no sentido de se atribuir a característica da escrita da memória do artista não
apenas a um autor, mas possivelmente no desenvolvimento de um contexto em que essa
prática vai se tornando cada vez mais usual. Nesse momento histórico específico, a escrita
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dos feitos ainda encontraria eco na vasta produção da biografia de artistas, iniciada nas Vite
de Vasari no século XVI e seguida, por exemplo, por Filippo Baldinucci com as Notizie de’
professori del disegno da Cimabue in qua (1681) no século XVII2. Mas nesse caso o nosso
objeto se distancia de ambas as práticas por ser escrito pelo próprio autor e, principalmente,
não se apresentar com o intuito de uma obra autobiográfica, uma vez que o interesse,
expresso, é o de se valer das próprias obras como exemplo, tendo como foco principal o
aprendizado da perspectiva para ser aplicado às artes. Isso não impede, contudo, que
traços autobiográficos, inclusive aqueles relacionados a uma espécie de teoria da
permanência das imagens, estejam ali presentes.
Perspectiva Pictorum et Architectorum, volume I
Passemos então à análise das obras. Pozzo abre seu tratado com uma dedicatória ao
Imperador Austríaco Leopoldo I, a quem endereça a sua obra visando a possibilidade de se
representar o triunfo de seu governo. Para tanto, utiliza-se de um topos específico que se
associa à prevalência dos registros escritos sobre a efemeridade da própria arquitetura.
Pozzo assim dedica a obra:
Eis-me, AUGUSTÍSSIMO CÉSAR, ao Imperial Trono de VOSSA
MAJESTADE CESÁREA com o tributo de uma Obra que, por sua natureza,
almeja empregar-se em todas as glórias de Vosso Altíssimo Nome. Ela não
possui outro intento que descrever Arcos e Colunas, com os quais, por
instituto e costume dos Antigos, se adornavam as pompas dos mais dignos
Triunfos. (...) Erigir-vos Estátuas, Arcos e Colunas não é, ÍNCLITO CÉSAR,
empresa apropriada à minha capacidade: que seja dada a outros, a quem
não falte a autoridade e, sobretudo, a habilidade. Por mim, já estimaria
atribuir qualquer mérito a esta obra, se ao menos delineasse em meus
papéis tais instrumentos de Glória: sendo que frequentemente ocorre que a
durabilidade dos Papéis sobreviva à longevidade dos monumentos, ainda
que marmóreos (I, Alla Sacra Maestà...)
O único exemplo de “Triunfo” que, de fato, é apresentado por Pozzo, é a imagem que abre o
volume, junto à dedicatória. E a ideia que apresenta sobre a sua incapacidade de atuar
como arquiteto é mais um exercício de humildade e reverência ao imperador do que
propriamente revela algo da sua atuação. Pozzo já havia trabalhado em uma série de
situações como consultor para remodelação de interiores ou mesmo para projetos inteiros.
Em pouco tempo, durante o seu período romano, após 1687, seria alçado à posição de
2 Filippo Baldinucci havia inclusive dado a uma biografia do próprio Pozzo, ainda seu contemporâneo,
que foi finalizada pelo seu filho Francesco Saverio Baldinucci, porém não publicada e permanecendo
em manuscrito até o século XX. Cf. (BALDINUCCI, 1975).
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Consiliarius Aedificorum (Conselheiro das Edificações) da Companhia de Jesus, cargo esse
pelo qual se pretendia que passassem todas as obras a serem construídas pela Companhia,
não com o intuito de estabelecer uma organicidade estética, mas para se ter o controle
sobre os materiais e emprego dos recursos destinados à construção (BÖSEL, 2010). Em
seguida também executaria importantes obras de arquitetura como as Igrejas do Colégio
Germânico (Santo Apolinário) e do Colégio Inglês (São Tomás de Canterbury), ambas em
Roma (BÖSEL, 2011). Mas ainda mais importante é a ideia de que a imagem sobrevive à
arquitetura. Essa noção retoma o lugar comum da prevalência do desenho, da Idea sobre a
execução, por ser exercício intelectual. Seguindo a mesma ideia, Pozzo inclui a ação do
tempo sobre as obras construídas e faculdade da memória que a preserva no registro em
papéis:
E assim sucederá que em toda parte se represente algum Monumento do
Vosso Triunfo, e que ao menos se conserve alguma Imagem, após as
Colunas, os Arcos e os Colossos terem sido arruinados pelos
incontrastáveis choques do tempo. Pois, ainda que o tempo, com tácito e
invisível dente, triture, devore e, por fim, consuma o mais sólido e
diamantino Monumento (como aqueles que singularmente vemos nesta
Cidade [Roma], outrora Senhora do Mundo), não terá, porém, essa mesma
autoridade voraz sobre todas as suas Imagens, embora trabalhadas em
matéria mais frágil. (I, Alla sacra Maestà...)
O registro das obras permite tanto a difusão do Triunfo, em toda a parte, dada a facilidade
da circulação das imagens, como também supera a ação do tempo, mesmo com a
fragilidade explícita do material.
Após apresentar os fundamentos da perspectiva através das figuras planas e sólidas, além
dos elementos das ordens arquitetônicas, na figura 30 Pozzo inicia a narrativa das suas
obras, começando por aquelas de caráter efêmero como os aparatos para as festividades
religiosas, sobretudo a Exposição das Quarenta Horas, que ele próprio já havia realizado em
diversas localidades e com grande apreço público (BÖSEL e SALVIUCCI INSOLERA,
2010).
Se o Leitor é um Pintor e, por ocasião do aparato das 40 horas ou da
Semana Santa, ocorrer-lhe de modificar por um breve tempo a forma
arquitetônica de alguma Igreja, unindo o fictício ao real (como a mim
ocorreu várias vezes em Milão e Roma, com grande deleite e maravilha dos
espectadores, mostrar-lhe-ei brevemente o modo como se deve proceder.
(I, 30).
Essa forma do aparato efêmero, já anunciada nessa figura 30 abre caminho para a
disposição das ordens arquitetônicas em sua totalidade (31-53) e é coroada por duas
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estruturas de fato construídas pelo autor, sendo a primeira delas sem referência a uma
ocasião ou localidade específica. Compondo as figuras 54 a 60, o Tabernacolo Ottangolare
é precedido de cada uma das etapas do projeto arquitetônico, a saber: a planta, a elevação,
ambas em perspectiva, a junção destas com as linhas acessórias para a construção de
parte do edifício, a metade da obra já sombreada, a planta de todo o tabernáculo e, por fim,
sua visão em perspectiva. “Deste tabernáculo me servi algumas vezes para a exposição das
40 horas. Se for bem pintado e adaptado sobre dois planos de telas contornadas, enganará
àquele que o observa e parecerá feito em relevo” (I, 61), diria Pozzo numa alusão não
apenas à obra realizada, como também ao efeito ótico gerado por sua criação e a relação
direta com seus espectadores.
Curiosamente, os dois exemplos imediatamente a seguir ao exposto por Pozzo (I, 63-66)
não são tão detalhadamente expostos. Apenas com a planta e sua redução, o autor já parte
para a apresentação da perspectiva do todo, sombreada e com os elementos figurativos já
incluídos. De fato, essa ação sugere que o modelo não estaria apto a ser plenamente
reproduzido - com exceção da execução a partir da sua planta - mas apenas a sua imagem
final registrada. Ainda assim, refletem expressamente os aparatos efêmeros criados pelo
autor, sendo que a primeira não possui uma localização específico e a segunda já indica a
sua execução na Igreja de Santo Inácio, em Roma.
Fechando a sessão das máquinas efêmeras, Pozzo apresenta aquela que parece ter
atingido o grau máximo da sua execução, ao conseguir expô-la na Igreja central dos
Jesuítas, a Igreja de Jesus em Roma, no ano de 1685 (figura 1). Por ser emblemática,
Pozzo se permite apresentar a obra de forma detalhada incluindo também a possibilidade de
sua construção “em pedra”:
Fez-se com belo efeito, e do mesmo modo enganou os olhos, uma estrutura
que pus à obra no ano de 1685 para a exposição das 40 horas no Gesù de
Roma, que procurei, para contentar aos curiosos, publicar o desenho não
apenas de todo o edifício, mas também os da planta e da elevação, e os fiz
com toda a diligência, como se a obra não tivesse de ser colorida com
pincéis, mas devesse realmente ter sido fabricada em pedra. (I, 71)
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Fig. 01. Teatro das Bodas de Caná. Perspectiva Pictorum et Architectorum, vol I, fig. 71.
Importa observar que esse conjunto de imagens não é fortuito, mas poderia ter sido
reduzido como exemplo, se um possível intuito da obra não fosse o de apresentar os feitos
do autor. A estrutura das máquinas efêmeras segue um relativo padrão, composto por
sucessões de telas dispostas e iluminadas de modo a dar a sensação de uma obra
construída em pedra. Se considerarmos o total de figuras do primeiro volume (100), quase
vinte delas são dedicadas especificamente ao tema, o que denota a importância desses
aparatos na trajetória do autor e para a composição de seu tratado.
Outro exemplo bastante significativo contempla as figuras finais da obra, nas quais Pozzo
apresenta a execução de perspectiva em planos horizontais, a base para obras de
quadratura nos tetos dos edifícios. E, para a discussão em questão, importa perceber o
argumento que apresenta para justificar a inclusão de uma obra sua, executada e ainda
presente no local, a Falsa Cúpula da Igreja de Santo Inácio, em Roma (fig. 02):
A cúpula que aqui se vê terá, sem dúvida, uma vida mais longa que
aquela que eu, sobre uma tela gigantesca, pintei no ano de 1685, na
Igreja de Santo Inácio do Colégio Romano. Por isso, se aquela
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desgraçadamente se arruinar, por meio desta poder-se-á refazê-la
melhor que a primeira. (I, 91)
Fig. 02. Cúpula. Perspectiva Pictorum et Architectorum, vol.I, fig. 92..
A possibilidade de que o “tempo devore a pintura” faz com que o autor justifique a inserção
da obra em seu tratado, visando a sua possível reconstrução. Por essa forma, acaba por
justificar também o seu interesse na exposição daquela que foi um marco na passagem de
Pozzo por Roma, tanto pela impressão positiva dos espectadores quanto pela crítica mordaz
dos detratores de sua obra.
Por fim, Pozzo apresenta não apenas obras já concluídas, como também aquelas em
processo, como o caso da famosa nave da Igreja de Santo Inácio, que só viria a ser
finalizada no ano de 1695, portanto dois anos após a publicação do primeiro volume. Nas
edições posteriores, como aquela do primeiro volume que foi reescrita para ser lançada
junto com o segundo, em 1700, parte dos textos seria modificada e incluída ali uma nova
figura, que contemplasse toda a obra (GLATIGNY, 2009, p. 17).
Estava determinado em terminar este Livro com a figura 92. Contudo, para
satisfazer às súplicas dos amigos que clamavam por entender a maneira de
desenhar a quadrícula perspéctica (...) empenhei-me em publicar o modo de
fazê-la. Com a ajuda desta, desenhei em tamanho maior não apenas a
Arquitetura que lhes mostro, mas também as figuras que atualmente estou
pintando na abóbada da Igreja de Santo Inácio. (I, 94).
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Perspectiva Pictorum et Architectorum, volume II
Ao apresentar o segundo volume de Perspectiva Pictorum et Architectorum, Pozzo propõe
uma nova regra para dispor os elementos em perspectiva, e, mais uma vez, pontua algumas
de suas figuras com realizações dele próprio. Esse volume condensa parte das discussões
apresentadas no primeiro e, além de apresentar o novo método, torna mais compreensível
alguns aspectos, sobretudo ligados à terminologia arquitetônica. Por isso é reconhecido
como um volume mais prático e didático em relação ao primeiro (GLATIGNY, 2009, p. 17). A
primeira metade do volume é destinada a reexplicar os fundamentos da perspectiva, dessa
vez segundo a lógica da nova regra, com a inserção de elementos diversos da arquitetura.
Retoma também os princípios da perspectiva aplicados à cenografia, bem como da
perspectiva em planos horizontais (sobretudo para ser aplicada nos tetos).
Com a explicação dos fundamentos, o autor passa a se dedicar às suas obras. Das
realizações de Pozzo destaca-se o altar de Santo Inácio para a Igreja de Jesus em Roma
(fig. 03), obra disputada em concurso por diversos artistas que pretendiam obter o prestígio
e a visibilidade da sua execução. Pozzo vence o polêmico concurso, realiza o altar e,
posteriormente, o inclui no tratado, tanto a obra finalizada quanto a sua planta e elevação
(BÖSEL e PAPOTTO, 2010). Com a escusa de que apresentava esse altar para explicar
melhor a sua nova regra de perspectiva, não esconde o intuito de “tornar mais nobre” o
volume que publicava.
Para tornar mais nobre esse livro, e para que dê um destaque maior a esta
regra da perspectiva, fiz obliquamente o desenho desta Capela, feita por
mim em Roma, executada em 1700 para a honra de Santo Inácio de Loiola.
(II, 60).
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Fig. 03. Teatro das Bodas de Caná. Perspectiva Pictorum et Architectorum, vol .II, fig. 71.
O mesmo irá ocorrer com o Altar de São Luís Gonzaga (naquela altura ainda não
canonizado) que Pozzo também realizou, desta vez na Igreja de Santo Inácio do Colégio
Romano (II, 62). Daí em diante, Pozzo irá apresentar outras diversas propostas de
construção de altares, a saber: dois projetos diferentes e anteriores para o altar de São Luís
Gonzaga; um altar pintado na Igreja de Santo Inácio; um altar também pintado na Igreja de
Frascati, próximo a Roma; dois projetos para compor o altar-mor da Igreja de Jesus; o
“altare capriccioso”, invenção com a ideia das colunas que se sentam sobre os pedestais;
um altar em Verona na Igreja de São Sebastião, dois projetos de altares e a representação
do altar-mor da Igreja de Santo Inácio, mesmo não sendo realizado por ele, por ter em sua
parte superior uma pintura de falsa arquitetura feita pelo próprio Pozzo.
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Sendo a Igreja de Santo Inácio estimada por ser uma das mais belas
de Roma, e tendo eu a sorte de pintá-la como fiz ver em vários
desenhos deste livro, não poderia deixar de mostrar-lhes em
desenho a parte mais nobre que é o altar-mor. (II, 81)
Essa série de altares apresenta as mais diversas invenções para diferentes lugares, em
obras construídas ou pintadas, ou mesmo projetos não executados. Todas essas invenções
para altares são permeadas do mesmo caráter de apresentação de obras do próprio autor,
levadas a cabo ou não, perfazendo as figuras 61 até 82 deste volume.
Para finalizar, Pozzo vai além dos elementos arquitetônicos para serem dispostos no interior
dos templos: representa grandes fachadas como, por exemplo, as suas propostas para a
nova fachada da Igreja de São João de Latrão, em Roma, que havia sido remodelada por
Borromini no século XVI mas cujos desenhos para a fachada se perderam (KIEVEN, 2010).
Pozzo apresenta assim, três invenções, seguidas de uma projeção em perspectiva das três,
para a nova fachada da Igreja (II, 81-84). E na mesma lógica, apresenta um projeto, de sua
autoria, de uma igreja não construída em Roma em função da alta despesa, que não coloca
em perspectiva para que o Leitor “considerando-a, abra-se a mente para inventar coisas
semelhantes, tanto pela possibilidade de fabricá-la quanto por pintar a perspectiva” (II, 88).
Fig. 04. Fachadas de São João de Latrão. Perspectiva Pictorum et Architectorum, vol .II, fig. 87.
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Conclusão
Com essa série de exemplos aqui apresentados pretendemos abarcar ao máximo as
propostas apresentadas por Pozzo que configuram a obra como um registro dos seus feitos
e suas proposições. É interessante perceber como determinados temas são repetidamente
levantados pelo autor, tais como: a importância da produção de imagens como fundamento
para o trabalho do pintor e do arquiteto; a sobrevivência da gravura em relação à arquitetura
(ou mesmo a pintura) construída; a disputa existente entre as artes (e como a perspectiva
quebra a barreira entre a pintura e a arquitetura); e os embates que sobressaem para a
execução ou não de uma determinada obra. Se o intuito do autor era o de construir uma
obra que pudesse vir a se tornar não só exemplo, mas também modelo para a execução de
obras, seu objetivo se alcança na medida em que se podem perceber vários elementos
dessa linguagem pozziana que, com a circulação efetiva do tratado, alcançaram diversas
partes do mundo. Para o nosso estudo, reconhecer a forma da escrita do autor, para além
da circulação de suas gravuras, ajuda a compreender o longo processo de instituição da
arquitetura como uma arte intelectual, que valoriza a representação da ideia por meio da
imagem e que, com o auxílio da imprensa, consegue promover uma difusão de formas cada
vez mais rápida e eficaz.
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