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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA – UniCEUB FACULDADE DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO E SAÚDE – FACES
ANDRÉ GUEDES DE SOUSA
DROGAS: DO CONTROLE À SAÚDE PÚBLICA
BRASÍLIA 2012
ANDRÉ GUEDES DE SOUSA
DROGAS: DO CONTROLE À SAÚDE PÚBLICA
Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências da Educação e Saúde – FACES Centro Universitário de Brasília– UniCEUB Orientadora Profa. Dra. Tânia Inessa
Brasília
2012
ANDRÉ GUEDES DE SOUSA
DROGAS: DO CONTROLE À SAÚDE PÚBLICA
Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências da Educação e Saúde – FACES Centro Universitário de Brasília– UniCEUB Orientadora Profa. Dra. Tânia Inessa
Brasília, 4 julho de 2012
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Orientador
Profa. Dra. Examinadora
Profa. Dra. Examinadora
Menção Final: _______
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, meus pais e de forma especial e diferenciada,
à Juliana por compartilhar de vários momentos dessa etapa com cumplicidade,
paciência, carinho, atenção e tranquilidade tornando-os assim mais agradáveis.
Agradeço à minha orientadora, Tânia Inessa, por ter me apresentado outras
possibilidades teóricas, ampliado minha visão sobre o tema. Sua gentileza e atenção
foram fundamentais.
Todos participaram de alguma forma dessa etapa e agradeço enormemente a
todos e todas!
RESUMO Este trabalho de monografia é resultado de um estudo sobre drogas, cuja proposta fundamenta-se em proporcionar a percepção das drogas, considerando aspectos individuais, sociais, políticos e, sobretudo, econômicos. Diante disso, portanto, ampliar a discussão sobre o controle de drogas em âmbito nacional e global, compreendendo o impacto das políticas globais sobre drogas no indivíduo e na sociedade. Além disso, nesse estudo, frisa-se problematizar o tratamento e a atenção dada aos usuários de substâncias psicoativas a fim de tratar sobre as novas políticas públicas adotadas pelo Governo Federal com o Plano de Enfrentamento ao uso de Crack e outras Drogas, e implantado pelos estados, municípios e Distrito Federal. Tais políticas têm ensejado uma atuação agressiva e de cunho compulsório, com estratégias de internações compulsórias aos usuários de drogas em extrema exclusão social, cujas práticas têm sido criticadas por diversos atores sociais como conselhos, movimentos sociais, militantes da luta antimanicomial e dos direitos humanos. Nesse estudo foi possível aprofundar o debate sobre drogas e as atuais políticas em saúde pública relacionadas ao tema. Palavras-chave: Drogas, Saúde Pública, Internação Compulsória, Controle de drogas.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO................................................................................................................................. 8
CAPÍTULO 1-DROGAS E SUAS REPRESENTAÇÕES............................................................... 11
1.1 HISTÓRIA DAS DROGAS E SUA UTILIZAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE.......................................... 11
1.2 DROGAS LÍCITAS E DROGAS ILÍCITAS..................................................................................... 18
1.3 TOXICOMANIA E SUBJETIVIDADE.................................................................................................................... 25
CAPÍTULO 2- DOS MODELOS DE CONTROLE DE DROGAS................................................... 28
2.1 MODELO PROIBICIONISTA..................................................................................................... 28
2.1.1 Aprisionamento do Corpo e Confinamento............................................................................................ 37
2.2 MODELOS ANTIPROIBICIONISTAS.................................................................................................................... 46
CAPÍTULO 3-DAS POLÍTICAS DE SAÚDE PARA ATENÇÃO A USUÁRIOS DE DROGAS. 52
3.1 DOS PLANOS DE ENFRENTAMENTO AO CRACK E OUTRAS DROGAS...................................................... 52
3.1.1 Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack..................................................................... 52
3.1.2 Plano Distrital de Enfentamento ao Crack e outras Drogas............................................. 57
3.2 INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA................................................................................................. 60
3.3 DA ATUAL POLÍTICA DE ATENÇÃO A USUÁRIOS DE DROGAS................................................................. 66
3.3.1 CAPS AD, POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS, CONSULTÓRIOS DE RUA E REDES DE ATENÇÃO.. 67 3.3.2 DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA......................................................................................... 70
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................................. 73
REFERÊNCIAS.................................................................................................................................... 75
APRESENTAÇÃO
Diante da veemente discussão sobre o tema das drogas, alçada pela problematização
social, marginalização e a criminalização da pobreza noticiadas pela mídia, novas políticas
públicas de enfrentamento ao crack e outras drogas tem sido adotadas pelo Governo Federal,
estados, municípios e DF, de forma que estratégias simplistas de tratamento, como as políticas
de internação compulsória de crianças, adolescentes e adultos, voltadas ao cuidado de pessoas
que consomem drogas em situação de completa exclusão social tem provocado grande
repercussão social.
A recente criação do Plano de Enfrentamento ao Crack e outras drogas levantou o
debate sobre as políticas públicas adotadas pelo governo, frente ao uso da violência e a
internação compulsória como a principal estratégia para o enfrentamento do uso e abuso de
drogas lícitas ou ilícitas.
A internação compulsória é a internação a qual o indivíduo não aceita ser internado
para que o seu tratamento ocorra e, por isso, tal tipo de internação suscita uma série de
questões éticas, devido à privação de liberdade do paciente e pelo fato do tratamento ser
coercitivo.
Com essa política, o Estado brasileiro está afirmando que os usuários na rua são
incapazes de decidir se querem ser internados. Ao transformar em política a abordagem
truculenta dada aos usuários de drogas, aniquilam-se a cidadania e os direitos fundamentais,
além de ser uma afronta aos direitos humanos, à luta antimanicomial e à reforma psiquiátrica.
No cerne desse ponto, o plano representa, para uns, um retrocesso na consolidada
política de atenção aos usuários de drogas, além de contrariar princípios da política pública de
Saúde Mental e a da reforma psiquiátrica, ao passo que, para outros, essa internação é vista
como o melhor meio de tratamento para o uso abusivo de drogas, especialmente o crack.
Além disso, demonstra o combate ao avanço do crack e outras drogas, do tráfico e
das organizações criminosas, bem como representa um “pacto” para “vencer o crack’, ao
ampliar a oferta de tratamento de saúde e atenção aos/às usuários/as de drogas e aumentar a
prevenção.
Logo, em face da problemática social das drogas constituir um fenômeno complexo
que envolve questões psicológicas, sociais, políticas e sobre direitos humanos e cidadania,
justifica-se uma discussão rebuscada acerca do tema.
A política sobre drogas tem sido tratada como uma questão de segurança pública
e não com foco na saúde, o que, sorrateiramente, criminaliza o usuário e torna o crack e outras
drogas um dos principais vilões da sociedade.
Este trabalho busca estabelecer uma reflexão sobre as políticas nacionais e globais
sobre drogas, a internação compulsória e levantar a discussão sobre a atenção aos usuários de
drogas ao problematizar a real situação destinada a eles no DF.
Para isso, a ida ao Fórum: Drogas, Justiça e Redes Sociais, realizado pelo Tribunal
de Justiça do Distrito Federal e Territórios, nos dias 29 e 30 de março de 2012 e ao Seminário
Dependência Química em Debate, realizado pelo Conselho Federal de Psicologia- 01, em 2 de
maio de 2012, foi preponderante para discutir a Política Nacional Anti-Drogas e os Direitos
Humanos, dentre outros assuntos.
No desenrolar dos capítulos, três elementos foram fundamentais e harmoniosos para
que a pesquisa pudesse ser esmiuçada de forma a prover o requintado entendimento acerca do
tema em destaque.
Primeiramente, compreender as drogas e suas representações na atualidade a fim de
provocar a incorporação da história dessas substâncias psicoativas e sua utilização na
contemporaneidade, bem com a diferenciação entre drogas lícitas e ilícitas. A partir desses
aspectos, estabelecer a conexão entre a toxicomania e a subjetividade levantando pontos
importantes acerca da atualidade e da cultura do consumo.
Em um segundo momento, tratar sobre os modelos de controle de entorpecentes,
destacando o modelo proibicionista e as principais consequências dessa política sobre
indivíduos e sociedades foi primordial. O que torna inteligível o processo de aprisionamento
do corpo e aprisionamento que, historicamente, atravessa a questão dos regimes disciplinares,
permeando o constructo da loucura/doença mental até alcançar o uso e o comércio de drogas.
Em sequência, trazer à tona os principais modelos antiproibicionistas europeus,
novas formas de controle sobre estupefacientes em contraponto à visão exclusivamente
repressiva do modelo proibicionista, apresentando estratégias que possam alavancar a
discussão, como é o caso da política de redução de danos.
Por fim, em um terceiro capítulo, discorrer acerca das políticas de saúde para atenção
a usuários de drogas estabelecendo uma discussão sobre a recente implementação do Plano de
Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, em âmbito nacional e distrital.
Nesse mérito, dissertar sobre a internação compulsória já que é esse o ponto mais
dissonante e controverso de ambos os planos, apresentando elementos que venham a
contribuir para o entendimento desse tipo de internação, a diferenciação das outras formas de
internação, assim como diversos outros fatores que possibilitem o debate.
Em contrapartida, expor a atual política de atenção a usuários de drogas, seus
princípios direcionados aos direitos humanos, bem como o conjunto articulado de idéias
antimanicomiais e valores sociais. Nesse sentido, dispor os mecanismos integrados de atenção
a esses usuários e as estratégias dessa política, mostrando o entrelaçamento dos direitos
humanos e da cidadania nessa política pública sobre drogas.
Capítulo 1 – DROGAS E SUAS REPRESENTAÇOES NA ATUALIDADE
1.1 História das drogas e sua utilização na atualidade
Embora o consumo de drogas provoque alterações fisiológicas e psicológicas, o uso
desse tipo de insumos em contextos culturais e históricos diversos vem atravessando séculos.
Muitos são os dilemas em relação a elas na medida em que permeiam questões sociais, morais
e individuais.
Como Labate at al (2008) coloca, denota-se a concepção da compreensão
antropológica sobre o tema levando em conta características culturais, comportamentais e
simbólicas.
Neste capítulo busca-se, sobretudo, tratar de algumas das principais substâncias
estupefacentes/psicotrópicas lícitas e ilícitas. Haja vista a abrangência do assunto e os limites
desse estudo não há como discorrer acerca de todos os tipos de drogas.
O uso de substâncias como maconha, a cocaína, bebidas alcoólicas e tabaco percorre
milênios, sendo a relação do Estado com determinada droga e sua aceitabilidade social
variável de acordo com a época e vêm sofrendo profundas alterações ao longo da história.
Como coloca Ribeiro (2006), essas drogas estão presentes e são consumidas pelo
homem, todavia, o controle penal desempenhado pelo Estado somente foi desencadeado nas
primeiras décadas do século XX. As drogas ilícitas mais populares atualmente, portanto, eram
utilizadas livremente bem como sua circulação e porte.
Sob a forma recreativa ou medicinal a cocaína, ópio e a cannabis eram usados e
foram banidos sob o discurso médico oficial, notadamente, percebido nos pronunciamentos
atuais sobre o controle sobre drogas.
Para Scheerer (1993), a história de proibição da maconha, do ópio e da cocaína
demonstra uma confluência complexa de processos de estigmatização de populações e de
conflitos geopolíticos entre potências capitalistas e coloniais na expansão de formas de
controle internacional compulsório e cooperativo destinado a erradicar todos os usos de
psicoativos que não fossem considerados médicos ou científicos.
No estudo das ciências sociais brasileiras de 1970 em diante, baseado no clássico
estudo de Howard Becker sobre o processo de construção de usuários de maconha entre
músicos de jazz nos EUA (Becker, 1996 apud LABATE at al, 2008), os pioneiros trabalhos de
Velho (1981, 1998 apud LABATE at al, 2008) abordaram o uso de drogas fazendo parte de
um estilo de vida e uma visão de mundo característicos de segmentos das classes médias
urbanas.
Integrando esse cenário, Coelho (1976 apud LABATE, 2008) cria uma
coletânea reunindo estudos relacionados aos usos de psicoativos em grupos indígenas e traz
novas construções acerca da história indígena e da etnologia.
Longe de se limitar a um vínculo com o problema da violência ou da criminalidade
social, o consumo de drogas, desde sempre, remeteu a várias esferas da vida humana, ligando-
se a fenômenos religiosos, movimentos de construção (ou reconstrução) de identidades de
minorias sociais, étnicas, geracionais, de gênero, ou ainda a produções estéticas, segundo
Labate at al (2008).
Por outro lado, aspectos religiosos, econômicos e sociais atravessaram as origens
proibicionistas o que levou, na década de 20, por fortes influências brancas e puritanas, à
proibição do álcool nos EUA (RIBEIRO, 2006).
Viala-Artigues e Mechetti (2003) relatam que a partir de um processo de fermentação
natural ocorrido há aproximadamente 10.000 anos o homem já transformava intencionalmente
parte de sua produção agrícola em bebida alcoólica, passando a consumir e atribuir diferentes
significados ao uso do álcool. Os celtas, gregos, romanos, egípcios e babilônios registraram de
alguma forma o consumo e a produção de bebidas alcoólicas.
Carneiro (2005 apud LABATE at al, 2008) salienta que o vinho é citado no Antigo
Testamento, no Livro do Eclesiastes, como gozo do coração e alegria dos homens. No Novo
Testamento, há a consagração do vinho como sangue de Cristo.
No contexto brasileiro atual, substâncias ilícitas como maconha, cocaína e o crack
tem gerado grande repercussão e traz a tona o discurso sobre o controle das drogas.
Internações compulsórias feitas no Rio de Janeiro e São Paulo têm criado alarde na
mídia, na sociedade e no Poder Público (NETTO, 2012) de sorte que expressões no plano da
segurança pública contrastam, paradoxalmente, por discursos de direitos humanos e saúde
mental dividindo o cenário de debate sobre drogas.
Rodrigues (2006) aduz que o termo droga, provavelmente, foi originado do antigo
termo holandês. Como hipótese mais provável, considera-se o termo originado do holandês
antigo“droog”, o que se refere a folha seca, pelo fato de que, antigamente, a maioria dos
medicamentos/ fármacos eram fabricados a partir de vegetais.
Outrossim, Labate at al (2008) recorda que, de acordo com a etimologia do termo
“fármaco” que designa tanto remédios quanto venenos, não há de se falar em drogas
referindo-se somente a tóxicos ou venenos em abstrato.
Diferentemente das atuais significações de “medicamento” e “psicoativo”, nas
línguas europeias utilizavam-se tais termos em referência não só a medicina, mas também a
tinturaria e culinária de terras distantes no Oriente.
Dessa forma, surgiram as especiarias que seriam utilizadas, posteriormente, em
grande escala mercantil como o açúcar, o chá, o café e o chocolate. (GOODY, 2001, apud
LABATE at al, 2008, p. 16). Assim que se desenvolveu o moderno mercado mundial
(MINTZ, 1986; SAHLINS, 2004 apud LABATE al at, 2008).
É comum na atualidade designar “droga” ao fazer alusão a substâncias psicoativas
ilícitas como maconha, cocaína, LSD1, crack, ectasy, ópio, dentre outros. Definir uma
substância como droga independe de suas propriedades farmacológicas, porém varia
conforme a forma como o Estado decide tratá-la,
ratifica o sociólogo Howard Becker (BECKER, 2001 apud LABATE, 2008).
Sendo assim, intrinsecamente ligado às decisões e escolhas do Estado está um
complexo entrelaçamento de esferas morais, mercantis, religiosas, criminais e,
principalmente, econômicas. Isso faz emergir um debate público sobre o assunto, bem como
são feitas associações imediatas com violência e criminalidade, realidade que assola as
sociedades contemporâneas.
Nos Estados Unidos, a proibição de psicoativos como a maconha, o ópio e cocaína
está entrelaçada diretamente com aspectos discriminatórios e com grupos sociais minoritários
visto que havia uma propaganda oficial relacionando o tipo de droga com o tipo de pessoa:
negros, mexicanos, chineses, tarados, desempregados e criminosos (RODRIGUES, 2006).
Por considerações raciais e não médicas, no início do século XIX, os norte-
americanos já associavam o ópio com a imigração chinesa ocorrida após a Guerra Civil,
visando a construção de ferrovias e trabalho nas minas de carvão e ouro. O uso de ópio e o
grupo foram relacionados a uma ameaça à sociedade americana. Assim, sentimentos gerais
anti-chineses levaram as primeiras leis contra o ópio (RODRIGUES, 2006).
Rodrigues (2006) relata que, a partir de 1900, após a proibição do ópio, campanhas
de amedrontamento da população norte-americana ligando os “perigos” de determinada droga
a grupos étnicos específicos demonstrando a reprovação moral ao uso de estupefacientes por
minorias e imigrantes que, teoricamente, não representavam os clássicos valores da América
branca e puritana.
A cocaína foi associada aos negros em decorrência do pânico racista do Sul dos EUA
e, em 1901-1902, uma campanha relacionando o uso de cocaína pelos negros antes de
estuprarem mulheres brancas foi lançada. O impacto foi tamanho que até mesmo a Coca Cola
Company decidiu retirar a cocaína dos ingredientes do seu refrigerante mais famoso. Além
1 De acordo com Rodrigues (2006) com a evolução da farmacologia, a partir de meados do século XX, foram descobertas as primeiras drogas sintéticas. Em 1943, o químico Albert Hofmann, o “pai” do LSD, teria sido o
disso, o consumo de cocaína passou a se vinculado a minorias que circulavam em zonas
mais carentes como prostitutas, rufiões e a pessoas da jogatina (RODRIGUES, 2006).
Para essa mesma autora, o medo produzido pela droga não era resultado dos
problemas relacionados ao uso de ópio e cocaína, mas sim do pânico da elite branca e
protestante, além das rebeliões das minorias contra a segregação e opressão.
Com a Depressão Norte Americana dos anos 1930, os imigrantes mexicanos,
habituais fumantes de marijuana, também se tornaram uma minoria não mais bem-vinda por
disputarem os escassos empregos com os norte-americanos. A campanha pela proibição da
maconha vinculou atos violentos dos mexicanos ao fumo da erva, levando os estados da costa
oeste dos EUA a pressionarem sua intolerância, como ressalta Rodrigues (2006).
De acordo com o Relatório da Comissão Global de Políticas sobre Drogas da ONU
(2011) 2, atualmente, a maconha é a droga ilícita mais consumida no Brasil e no mundo, cerca
de 160 milhões de usuários globais. Hoje, é cultivada em diversos locais do mundo pela fácil
adaptação a uma grande variedade de climas e altitudes, garantindo sua difusão ao redor do
mundo.
Na pré-história, há indícios de que já havia o cultivo de cannabis sativa, sendo
“remotas as origens da utilização do cânhamo (ou hemp- fibra vegetal extraída do caule da
planta), bastante utilizada em medicamentos, temperos e, principalmente, tecer roupas de
fibras resistentes”, bem como o óleo de suas sementes serviam como componentes de tintas e
vernizes (RODRIGUES, 2006, p. 30).
Diferentemente do cânhamo, o tetrahidrocanabiol (THC) é um princípio ativo
alucinógeno encontrado nas folhas e frutos da mesma planta. Como frisa Courtwright (2002,
apud RODRIGUES 2006) especula-se que, no Brasil, o hábito de fumar maconha tenha vindo
dos primeiros escravos que traziam a erva consigo da Angola com destino a plantações de
açúcar no Nordeste do Brasil, onde o cultivo se estabelecera após 1549. O nome maconha,
inclusive, diz-se ter origem angolana.
Em 2003, uma cesta cheia de couro com folhas e sementes de cannabis foi
encontrada no noroeste da Região Autônoma de Xinjiang Uygur, China. O material
encontrado datava, aproximadamente, de 2500 a 2800 anos3.
primeiro a ingerir uma quantidade mínima da dietilamida do ácido lisérgico (LSD) e experimentado seus efeitos alucinógenos. 2 A ONU instituiu a Comissão Global de Política sobre Drogas, chefiada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e com a participação dos ex-presidentes do México Ernesto Zedillo e da Colômbia César Gaviria, além do ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan, entre outras autoridades. Em junho de 2011, a Comissão Global de Política sobre Drogas divulgou um documento intitulado Relatório
da Comissão Política sobre Drogas que trata sobre as políticas de repressão à produção e oferta de drogas. 3 Disponível em: http://english.peopledaily.com.cn/200612/23/eng20061223_335258.html Lab work to identify
2,800-year-old mummy of shaman. Diário do Povo (2006). Acesso em 28.05.2012.
Consumida pelos povos pré-incaicos e pré-colombianos há mais de 1200 anos, a
coca é uma planta nativa do Peru, bastante cultivada na região dos Andes. Pelo efeito
excitante e estimulante e, principalmente, para reduzir os impactos da altitude, o uso da
mastigação das folhas de coca para suportar a fome, a sede e revigorar as energias pelos incas
tornou-se tradição. Até hoje, é um hábito popular mantido nos países andinos, como afirma
Rodrigues (2006).
Conforme a autora, descoberta por volta de 1855, a cocaína é, por sua vez, um
alcalóide extraído das folhas da planta Erythroxylon coca e utilizada na forma de cloridrato de
cocaína, um sal hidrossolúvel, que se cristaliza em pequenas agulhas que assumem o aspecto
de pó amorfo podendo ser aspirado ou injetado.
Rodrigues (2006) relata que, nos século XIX, esse componente popularizou-se na
Europa e Estados Unidos introduzida em tônicos gaseificados e vinhos. Até o início do século
XX, cocaína e derivados do ópio eram vendidos legalmente em qualquer farmácia dos EUA
para uso medicinal ou recreativo. Grande parte da população utilizavam esse produtos devido
ao efeito estimulante do sistema nervoso central (DUAILIBI at al, 2008).
No século XIX, mudanças estruturais na perspectiva dos americanos sobre drogas
provocaram uma forte alteração de atitude institucional, o que culminou em um movimento
proibicionista influenciada por fortes raízes puritanas (RIBEIRO, 2006).
Atualmente, os EUA são os maiores consumidores de cocaína do mundo e tem a
estimativa de consumo de 157 toneladas em 2009, o que equivale a 36% do consumo global
conforme o Relatório Mundial sobre Drogas de 2010 da UNODC- United Nations Office on
Drugs and Crime. Brasil e Argentina constituem os maiores mercados de cocaína na América
do Sul em termos absolutos (mais de 900 mil e 600 mil usuários, respectivamente) de acordo
com o mesmo.
A UNODC (2011) apresenta parâmetros tais quais a corrupção e a lavagem de
dinheiro que impulsionados pelo comércio das drogas pervertem os políticos e distorcem as
economias locais por gerar lucros homéricos.
No mesmo ano, o mercado internacional de cocaína teve seu lucro bruto estimado em
US$85 bilhões dos quais somente US$1 bilhão permaneceram com os plantadores de coca, na
região do Andes, de acordo com UNODC (2011).
Isso ocorre devido ao fato que, como sobressalta Coggiola (1997), o grosso dos
camponeses e operários pisadores de coca que se vêem forçados a cultivá-la e processá-la não
só permanecem em condição de superexplorados, como sofrem a renovada pressão do aparato
do Estado e dos cartéis, associados em "esquadrões da morte" e em bandos de pistoleiros do
latifúndio. Os mesmos beneficiários do tráfico criaram o fantasma do "narcoterrorismo" e
da narcoguerrilha" para encobrir sua ação criminal.
Outrossim, ainda nesse relatório citado, a maior parte do lucro bruto é gerado na
América do Norte (US$35 bilhões) e no Oeste Europeu e na Europa Central (US$26 milhões).
O alcance da interceptação da lavagem de dinheiro global permanece baixa.
Mundialmente, menos de 1% (provavelmente 0.2 %) dos procedimentos dos crimes de
lavagem monetária via sistema financeiro são apreendidos ou congelados (UNODC, 2011).
Para Coggiola (1997), o sistema financeiro, cada vez mais, necessita de capital
“livre” para girar, e o tráfico de drogas promove o “aparecimento mágico” desse capital de
acumulação rápida e movimentação veloz.
A cocaína não gera somente dependência nos indivíduos, mas também em grupos
econômicos e nas economias de alguns países, como bancos da Flórida, algumas ilhas do
Caribe e nos principais países produtores, como levanta Coggiola (1997).
Esse autor relata que grande parte dos lucros do narcotráfico são recebidos pelos
grandes bancos, por depósitos dos produtores e dos intermediários, e por comissões pela
"lavagem" do dinheiro.
De acordo com ele, as medidas tomadas pelas autoridades dos EUA contra essas
operações bancárias em cumplicidade com os traficantes são risíveis. Entre os bancos que
sofreram sanções por não terem declarado transações figura o First National Bank of Boston,
que expediu para o exterior US$ 1,2 bilhão em notas pequenas.
A comissão de 3% paga pelos traficantes (US$ 36 milhões) tornou irrisória a multa
de US$ 500 mil imposta ao banco. O que se multa, no caso, é a ilegalidade da operação, não a
origem criminosa do dinheiro protegido pelo sacrossanto sigilo bancário (COGGIOLA,1997).
Como afirma Caggiola (1997) a "narcoeconomia" não é, portanto, um âmbito
delituoso socialmente homogêneo como enfatiza a distorcida propaganda da polícia
imperialista.
Dados da ONU (2011) mostram que, em 2008, 17 milhões eram os consumidores de
cocaína no mundo. Sendo assim, mostra-se que a oferta de coca latino-americana é uma
simples resposta à demanda mundial que utiliza a droga para evadir-se da alienação laboral,
da falta de horizontes sociais, ou pela destrutiva competição hiperindividualista imposta pelo
mercado.
A narcoeconomia, pois, representa um mercado incomensuravelmente maior que o
do álcool e o do tabaco tradicionais. A UNODC (2011) estima que, no globo, algo em torno
de 210 milhões de pessoas utilizam drogas ilícitas a cada ano e quase 200.000 destas morrem
pelas mesmas.
Consequentemente, complicações agudas e crônicas em massa geraram a
proibição desta droga nos principais países ocidentais. Sua utilização emergiu novamente nos
anos 80 devido à intensa rotina, o ambiente "workaholic" das metrópoles das sociedades
ocidentais.
Com o proibicionismo, a repressão da oferta e de produtos utilizados na preparação
desse entorpecente só conseguiu elevar o preço da cocaína pura e elitizada nos EUA, e pôr em
circulação um produto superdegradado para consumo popular: o mortal crack
(COGGIOLA,1997).
O nome deriva do verbo "to crack", que, em inglês, significa quebrar. Há
apresentações alcalinas, voláteis a altas temperaturas que podem ser fumadas em cachimbos.
É o caso do crack, da pasta base da cocaína e da merla (SENADO FEDERAL, 2011).
Este contexto, no qual a cocaína se tornara a principal atração, foi contrastado menos
de dez anos depois, pelo surgimento do crack. Os consumidores de crack vivem em grandes
cidades e pertencem a grupo étnicos minoritários apresentando, geralmente, altos níveis de
desemprego e péssimas condições de vida (COGGIOLA,1997).
Para esse autor, o capitalismo, pois, só pode oferecer o crack para quem não emprega,
exclui e segrega. No Brasil, em meados dos anos 80, o crack se expandiu em locais
socialmente excluídos tendo os meninos em situação de rua e os usuários de drogas injetáveis
(UDIs) seus principais adeptos (DUAILIBI et al, 2008).
Assim, Dualibi et al (2008) comenta que o impacto desse novo cenário de uso desse
entorpecente foi refletido no serviço de atendimento nos anos 90. Dessa forma, os usuários de
cocaína e crack passaram a ser o grupo de usuários de drogas ilícitas que mais procuravam
tratamento ambulatorial e serviços de internação para dependência química.
Oliveira et al (2008) afirma que o primeiro relato de crack foi em 1989 na cidade de
São Paulo. Atualmente, devido ao seu baixo custo, fácil acesso e alto poder de dependência, o
crack vem se disseminando pelas grandes capitais brasileiras, sendo associado à violência e a
marginalidade.
Devido ao fato do Brasil ser rota de tráfico de cocaína o consumo do crack vem
crescendo por conta da vulnerabilidade social de grande parcela da população, sobretudo dos
mais jovens (SENADO FEDERAL, 2011).
No tópico seguinte, será debatida a diferença entre drogas lícitas e ilícitas, bem como
a questão das drogas como mercadorias, considerando seus aspectos econômicos, políticos e
sociais que atravessam o entendimento acerca do assunto.
1.2 Drogas Lícitas e Ilícitas
O consumo de drogas é um tema polêmico, uma prática milenar, todavia se mantém
como um assunto permanentemente atual por constituir um fenômeno complexo, com origem
e consequências biológicas, psicológicas e sociais.
Para a Organização Mundial da Saúde (1995), as drogas são substâncias psicoativas,
ou seja, elementos que agem no sistema nervoso central e causam modificações nas emoções,
humor, pensamentos e comportamento.
Rodrigues (2006) afirma que tem sido uma prática comum a modificação de
comportamento de humor e emoção pelo uso das drogas. De sorte que, em larga escala, todas
as sociedades distinguiram o uso médico e o abuso não medicinal.
Essa autora alerta que, sob a perspectiva médica, o consumo de drogas não é
novidade ou um mal contemporâneo, mas sim algo que sempre esteve na história da
humanidade, assim como a busca do prazer e da satisfação dos instintos.
No Brasil, o Ministério da Saúde (1995) cita que a procura por substâncias ilícitas
parece ser maior em populações com níveis elevados de desemprego entre os jovens,
dificuldades de moradia, oportunidades educacionais limitadas, serviços de saúde deficientes
e em bairros desassistidos e com elevada criminalidade. O atual contexto de desigualdade
social brasileiro, por conseguinte, apresenta-se como forte candidato a produzir consumidores
em potencial.
As drogas são divididas em dois grandes grupos, segundo o critério de legalidade:
drogas lícitas e ilícitas. São drogas lícitas aquelas que têm sua produção e comercialização
legalizadas e são aceitas socialmente.
Já as drogas ilícitas são proibidas pela legislação e o seu uso, produção e
comercialização, que não são aceitos socialmente, podem acarretar em sanções penais de
acordo com a legislação brasileira, Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006, que institui o
Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e representa um controle proibicionista
moderado sobre drogas devido ao fato de que a posse de drogas ilícitas não enseja em pena
privativa de liberdade.
Este modelo de política sobre drogas é baseado no modelo proibicionista4, o qual
pretende eliminar as drogas da sociedade, com o discurso de “guerra” às drogas, e tratar os
sujeitos vulneráveis através da criminalização e penas “alternativas”, devido à utilização de
4 O modelo proibicionista criminaliza o uso, produção e venda de drogas. Tema discutido no tópico 2.1.
drogas ilícitas, ou através do tratamento visando à diminuição ou à abstinência do uso de
qualquer substância.
Contudo, ao criminalizar a utilização e o comércio de drogas, tais insumos não
deixaram de existir e ter status de bens de consumo como qualquer outra mercadoria. Mesmo
com a proibição, ampliou-se a utilização de drogas e elas se inseriram em um amplo mercado
ilegal, e, como fundamenta Rodrigues (2006), reflete o posicionamento de um grupo que não
compartilha do mesmo ideal representado pela norma proibitiva.
Como Marx (1978b, apud LAURENTI E BARROS 2000, p.7) aponta:
O consumo cria o impulso da produção; cria também o objeto que atua na produção como determinante da finalidade... o consumo põe idealmente o objeto da produção, como imagem interior, como necessidade, como impulso e como fim. Sem necessidade não há produção. Mas o consumo reproduz a necessidade.
Santos (2007) afirma que, como qualquer produto ou mercadoria, a droga tem valor
e função na sociedade que a produz e comercializa a fim de servir a propósitos e finalidades
do sistema e não como algo que apresente riscos relacionados às suas propriedades
farmacológicas.
Nessa direção, Santos (2007) aponta que, por tais razões, se constata o aumento do
consumo de drogas lícitas e ilícitas de modo que ao perceber a droga como uma mercadoria a
serviço do lucro indiscriminado, estampa-se os valores do capital.
O comércio de drogas sempre existiu, mesmo ele sendo lícito ou ilícito ao passar dos
tempos. Tal qual ocorre com a “pirataria” e o mercado negro de produtos legalizados, ao
tornar determinado comércio um crime a procura não se extingue.
Como mostra o Labate at al (2008), a proibição do consumo do álcool na década de
20, nos Estados Unidos, não foi suficiente para transparecer a íntima relação da proibição
oficial com a violência social crescente. Fonte de lucros intermináveis, o negócio clandestino
juntamente com a corrupção e o crime nutrem o tráfico, criando mundos de delinquência.
Cabe ressaltar que o critério de legalidade ou não de uma droga é historicamente
variável e não está relacionado, necessariamente, com a gravidade de seus efeitos.
De forma que o critério de legalidade é fruto de um jogo de interesses políticos, e,
sobretudo, econômicos em escala mundial, como defende Coggiola (1997). No caso do Brasil,
os diversos tipos de substâncias psicoativas ilegais são delimitados pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária- ANVISA.
Nesse viés, Carneiro (2002 apud SANTOS, 2007) referem que, a partir do início do
século XX, as drogas passaram a ser objeto de grande interesse internacional adquirindo o
papel de principal ramo do comércio mundial quando se considera os 500 bilhões de dólares
do narcotráfico e engloba os capitais das drogas legais, dentre eles o álcool, o tabaco, o
café, o chá e também aquelas drogas da indústria farmacêutica.
Esse autor acrescenta, ainda, que no século XX o consumo alcançou o maior
proibicionismo oficial, por um lado, e sua maior extensão mercantil, por outro. Rodrigues
(2005, apud SANTOS e COSTA-ROSA, 2007) expõe que drogas proibidas, na
contemporaneidade, como a cocaína e a heroína foram disputadas no mercado lícito de
diversos países.
Os autores destacam que essas substâncias faziam parte de um lucrativo comércio
legal e envolviam interesses de potências na época, indústrias farmacêuticas e suas estratégias
geopolíticas no globo.
De fato, questionam-se os critérios utilizados na distinção de drogas lícitas e ilícitas
no sentido de que eles não se apoiam no dano/prejuízo potencial da substância em si, apesar
do discurso médico veemente.
Nesse sentido, a aceitação de determinadas drogas por parte da sociedade é
questionada, já que criminaliza algumas drogas e legaliza outras baseadas em um forte
moralismo arraigado socialmente e estigmatização, que é tradicionalmente criado como uma
tendência acusatória aos usuários de drogas ilícitas.
Um dos motivos das atuais políticas globais sobre drogas serem extremamente
criticadas é manter legais drogas de alto poder ofensivo à saúde como álcool, cigarro e várias
outras drogas da indústria farmacêutica.
Para Santos (2010) observam-se as várias manifestações do consumo de psicoativos
como produto e resultado da vida e do mal-estar contemporâneo: a compulsividade como
resposta primordial, o consumo abusivo de anfetaminas e a relação com o ideal da busca de
um corpo perfeito, além de ansiolíticos, antidepressivos e estimulantes.
De acordo com Santos e Costa-Rosa (2007, p. 488):
Mesmo quando a questão é o usuário de drogas, também há parcialidade, pois a tendência é focalizar o olhar nele como protagonista principal do rompimento com a norma, associando-o à delinquência e ao narcotráfico. Antes de tudo é necessário lembrar que nossa sociedade é uma voraz consumidora de drogas, desde o consumo mais banalizado, como o cigarro e o café, passando pelos diferentes tipos de drogas consideradas ilícitas, até o uso de álcool, que permanece como o mais fecundo objeto de prazer quando o assunto é festejar. Os novos objetos da ciência que trazem a promessa de felicidade, os psicofármacos, também vêm alcançando grande destaque. Sua utilização, inicialmente proposta para o tratamento das doenças mentais através da prescrição médica, compõe um novo cenário do uso ilícito, ou pouco discriminado, de drogas lícitas.
De fato, o próprio Estado fomenta determinadas drogas em função do aspecto
econômico-financeiro e político que a questão envolve, sendo que não há interesse em conter
alguns tipos de drogas como álcool e diversas outras drogas psicotrópicas da indústria
farmacêutica.
Abrangendo a discussão da utilização de substâncias psicoativas na
contemporaneidade, tal fenômeno é parte integrante da lógica capitalista de mercado que, ao
utilizar-se de avanços tecnocientíficos, fomenta a industrialização de determinados
entorpecentes, bem como a distribuição e venda de tais substâncias de forma a gerar lucros
gigantescos aos grupos que se encarregam deste comércio, que está inteiramente inserido na
racionalidade do nosso sistema econômico.
Sob esta ótica, citar o álcool é indispensável para continuar abordando o assunto.
Novos paradigmas em relação ao álcool foram se enraizando na sociedade ao passo que a
estruturação do sistema capitalista trouxe grande visibilidade a este entorpecente, eis que o
álcool é o entorpecente mais utilizado em nossa sociedade quando o assunto é comemorar.
Como destaca Babor et al (2003 apud ALIANE et al, 2006) ao beber excessivamente
as principais consequências, as quais representam um grande prejuízo econômico para o país
estão relacionadas a violência, término de relacionamentos, absenteísmo, desemprego,
hospitalizações, incapacitações por períodos prolongados, além de morte prematura.
Atualmente, a mídia desempenha papel preponderante ao incentivar o consumo do
álcool, droga mais consumida mundialmente5, e ao mesmo tempo inserir representações
sociais errôneas a respeito do mesmo.
As propagandas veiculadas na mídia, que ostentam o uso de bebidas alcoólicas como
forma de integração social e diversão, são apelativas e contém alto grau de sensualidade em
suas campanhas publicitárias, gerando um estereótipo de que o consumo de bebidas alcoólicas
é sinônimo de descontração, euforia e conquista, ou seja, é a causa de práticas aceitas
socialmente. Nesse sentido, MINISTÉRIO DA SAÚDE- M.S.(2004, p. 19) discorre :
O eixo norteador de campanhas pela redução dos problemas provocados pelo álcool deve ser a estratégia de redução de danos, devendo haver a crítica de estereótipos relacionados ao uso do álcool, e incentivados pela propaganda de bebidas alcoólicas, como a associação do uso do álcool com a virilidade, a sensualidade, a diversão etc.
5 De acordo com a OMS, em um relatório publicado no ano de 2004 e intitulado Global Status Report on Alcohol em Geneva 2004. http://www.who.int/substance_abuse/publications/global_status_report_2004_overview.pdf
Considerando-se que, de acordo com a ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE
SAÚDE- OMS (2011), “[...] o uso prejudicial do álcool é um problema mundial resultando
em aproximadamente 2,5 milhões de mortes por ano, não só o fator-causa de muitas doenças,
mas também o percussor de muitos prejuízos e violência”, o álcool pode ser um entorpecente
muito custoso para comunidades e sociedades.
Ao criar uma imagem distorcida do álcool, a mídia desempenha um importante papel
ao enaltecer seu uso e aceitação social e de obscurecer os danos provocados pela utilização de
bebidas alcoólicas, como os efeitos provocados pela abstinência da droga e a relação de
dependência estabelecida pelo usuário com o álcool em momentos comemorativos ou de
sofrimento, tornando seu uso uma necessidade, o que amplia os efeitos e consequências
devastadoras provocadas pelo alcoolismo, o que é reforçado por Gualberto (2010, p. 11):
O alcoolismo é apontado como um dos principais problemas de saúde mundial, e a mídia tem papel influenciador neste fato, seja pelo uso de propagandas massivas na TV, seja pelo apelo erótico associado a essas campanhas; mas, principalmente, pela falta de advertências adequadas sobre as consequências de seu consumo. A propaganda de bebidas alcoólicas no Brasil é regulada pela Lei nº. 9.294, de 1996, e, segundo essa lei, que também regulamenta a propaganda de cigarros e outros produtos, é considerada bebida alcoólica aquela com mais de 13 GL, o que exclui cervejas e vinhos.
Isto acaba por se tornar um grave problema, pois se sabe que a cerveja é uma bebida
alcoólica e ocupa papel muito importante em muitos distúrbios relacionados com o consumo
de álcool, em especial no que diz respeito aos jovens. Pode-se afirmar que a utilização da
imagem da mulher na publicidade de cervejas no Brasil é um estímulo para a compra e
consumo desses produtos, o que agrava ainda mais este cenário.
Além do mais, também é possível afirmar que a publicidade e o marketing
associados às bebidas alcoólicas giram sempre sobre o eixo beleza – sensualidade -alegria,
associando-as a momentos de lazer, de conquista e de prazer (GUALBERTO, 2010).
Portanto, não é pelo fato de serem lícitas, que essas drogas são pouco ameaçadoras.
De acordo com a OMS (2002), as drogas ilícitas respondem por 0,8% dos problemas de saúde
em todo mundo, enquanto o cigarro e o álcool, juntos, são responsáveis por 8,1% desses
problemas.
Os vários problemas sanitários e sociais associados ao consumo e à dependência do
tabaco, do álcool e de substâncias ilícitas exigem uma maior atenção por parte da comunidade
de saúde pública e exigem respostas e políticas apropriadas para resolver tais problemas em
distintas sociedades, segundo OMS (2002).
Na maioria dos casos, as pessoas consomem substâncias psicoativas porque
esperam o beneficio de tal consumo, seja por prazer ou para evitar dores, incluindo o consumo
social. Mas o seu consumo também implica potencial de dano, em curto ou longo prazo, tanto
para o usuário quanto para a sociedade.
No que cerne ao usuário, Santos e Costa-Rosa (2007, p. 13) destacam que “[...] a
relação dos sujeitos com a droga não é linear, pois pode compreender várias categorias, como
o uso experimental, recreativo, social, abusivo e a adicção6”.
De acordo com o ONU (2011, 13), a maioria das pessoas que usam drogas não se
encaixa no estereótipo de “dependentes imorais e lastimosos”. Dos cerca de 250 milhões de
usuários de drogas no mundo, as Nações Unidas estimam que menos de 10% podem ser
classificados como dependentes ou “usuários de drogas problemáticos”.
Os fatores que contribuem para o desenvolvimento de padrões de uso problemático
ou para a dependência têm mais a ver com traumas ou negligências na infância, duras
condições de vida, marginalização social e problemas emocionais, antes do que com
fragilidade moral ou hedonismo (ONU, 2011).
Portanto, existem modos distintos de relação do sujeito com as drogas como trata
Bertolote (1997). Para ele, o uso experimental se dá no episódio de uso extremante
infrequente ou não persistente de uma droga específica. Já o uso recreativo refere-se ao uso de
uma droga, geralmente ilícita, em circunstâncias sociais ou relaxantes, sem implicações com
dependência e outros problemas relacionados.
Ademais, o uso social consiste na manutenção de um uso regular, não compulsivo e
que não interfere com o funcionamento habitual do indivíduo. O uso social pode ser
entendido, de forma literal, como uso em companhia de outras pessoas e de maneira
socialmente aceitável, mas também é usado de forma imprecisa querendo indicar os padrões
acima definidos.
Bertolote (1997) cita a CID-10 (10ª Revisão da Classificação Internacional de
Doenças da OMS) e o DSM-IV(4ª edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais, da Associação Psiquiátrica Americana- APA) para comentar sobre o uso
nocivo/abusivo de substâncias psicoativas.
O uso nocivo/abuso e dependência são padrões de uso que estão representados nos
sistemas classificatórios CID-10 e o DSM-IV sendo entendido como um padrão de uso onde
6 Para Santos e Costa-Rosa (2007, p. 13), a adicção é “uma situação limite que implica a escravidão do indivíduo diante da droga, que se torna o objeto de um prazer sentido como necessidade, e que assume o comando das ações do sujeito”.
aumenta o risco de consequências prejudiciais para o usuário. Na CID-10, o termo “uso
nocivo” é utilizado como aquele que resulta em dano físico ou mental.
Na DSM-IV, utiliza-se o termo “abuso”, definido de forma mais precisa e
considerando também consequências sociais de um uso problemático, na ausência de
compulsividade e fenômenos como tolerância e abstinência.
A partir dos critérios da CID-10 e do DSM-IV é possível compreender cada forma de
categorizar e definir os termos utilizados para definir “uso nocivo”, “abuso”, e de uso de
drogas.
De acordo com o DSM-IV (APA, 1993), a definição de abuso baseia-se na
ocorrência de um ou mais dos seguintes critérios no período de 12 meses: 1. Uso recorrente
resultando em fracasso em cumprir obrigações importantes relativas a seu papel no trabalho,
na escola ou em casa; 2. Uso recorrente em situações nas quais isso representa perigo físico;
3. Problemas legais recorrentes relacionados à substância; 4. Uso continuado, apesar de
problemas sociais ou interpessoais persistentes ou recorrentes, causados ou exacerbados pelos
efeitos da substância.
Já a definição de “uso nocivo” pela décima edição da Classificação Internacional das
Doenças– CID-10 (OMS, 1993) baseia-se nos seguintes critérios: 1. Evidência clara de que o
uso foi responsável (ou contribuiu consideravelmente) por dano físico ou psicológico,
incluindo capacidade de julgamento comprometida ou disfunção de comportamento 2. A
natureza do dano é claramente identificável; 3.O padrão de uso tem persistido por pelo menos
um mês ou tem ocorrido repetidamente dentro de um período de 12 meses; 4. Não satisfaz
critérios para qualquer outro transtorno relacionado à mesma substância no mesmo período
(exceto intoxicação aguda).
Portanto, fatores como o dano, o uso recorrente e os problemas legais e sociais são
determinantes para caracterizar o consumo e a dependência de substâncias psicoativas já que
abrangem a esfera individual e social. No tópico 1.3, a toxicomania será abordada a fundo
devido à forma de uso nocivo à saúde do sujeito.
1.3 Toxicomania e Subjetividade
Ao analisar a subjetividade no processo de socialização contemporâneo e a relação
que é estabelecida pelo sujeito com as drogas nessa sessão consideram-se os diferentes tipos
de uso de entorpecentes. Contudo, o uso eventual, recreativo ou habitual das drogas não serão
aprofundados aqui a fim de que haja o enfoque na toxicomania, por causa das consequências
desse tipo de uso.
Para Pacheco Filho (1997-1998 apud RIBEIRO 2009), diversas terminações
foram criadas para expressar o consumo mórbido de entorpecentes como drogadição,
dependência, vício ou toxicomania (QUINET, 2006 apud RIBEIRO, 2009).
A toxicomania é considerada, consoante Conte (2000, apud RIBEIRO, 2009), a
relação intensa e exclusiva com o uso de drogas na qual já se tenha estabelecido também uma
função na vida psíquica do sujeito.
A prática clínica com toxicômanos carrega muitas peculiaridades, as quais podem
tornar-se obstáculos ao tratamento. Conforme Chaves (2009), os toxicômanos geralmente não
chegam ao consultório por si só, mas sim pelos pais, polícia e etc.
Ribeiro (2009) cita que o recurso às drogas, para a psicanálise, é entendido como
uma possível resposta do sujeito ao mal-estar inerente ao processo de formação das
sociedades e cultura. Freud relata que as drogas são métodos para evitar o sofrimento.
(FREUD 1930/1996 apud RIBEIRO, 2009).
Lacan utiliza a descrição discurso do capitalista para relatar a anulação do sujeito
que é consumido (desaparece) para dar lugar ao objeto, que no caso presente é o objeto-droga
(RIBEIRO, 2009).
Como aponta Baratta (1994 apud Santos, 2010), a demanda pelo consumo de drogas
estaria estritamente ligada aos mecanismos do consumismo, sendo tributária a necessidade de
evadir-se das angústias advindas da realidade do sujeito faltante contemporâneo.
Birman (1999) relata que dentre os aspectos fundamentais do mal-estar na atualidade
está presente à toxicomania e, sobretudo, o alcoolismo. Utilizando-se de conceitos como
“cultura do narcisismo” e “sociedade do espetáculo” para destacar a pós-modernidade, esse
autor discorre que tanto a indústria farmacêutica quanto a do narcotráfico se complementam
de maneira harmoniosa, pois, em ambas, é a evitação de qualquer sofrimento psíquico que
está em pauta.
Como consequência da ênfase dada à exterioridade (na sociedade do espetáculo) e ao
autocentramento (na cultura do narcisismo), observa-se a articulação entre duas operações
sociopolíticas: os processos de medicalização e psiquiatrização do social, mediados pelas
neurociências e pela psicofarmacologia, e a construção exorbitantemente empresarial do
narcotráfico (BIRMAN, 1999).
Segundo o mesmo autor, nessa sociedade pós- moderna a fragmentação da
subjetividade - pelo paradoxo entre autocentramento e exterioridade - ocupa posição
fundamental.
E aqui se encontram os destinos do desejo: numa direção marcadamente
exibicionista e autocentrada, que tem como contrapartida o esvaziamento do intersubjetivo e o
desinvestimento nas trocas inter-humana.
De acordo com Birman (1999), é esse o trágico cenário para a implosão e a explosão
da violência que põe em grande consternação assola a atualidade e que se fazem acompanhar
da crescente volatilização da solidariedade. Este é o ethos da atualidade, como conclui o
autor.
No âmago dessa sociedade narcísica do espetáculo, como afirma Birman (1999) o
individualismo e o autocentramento atingiram seu ponto máximo, com o consequente
apagamento da alteridade e da intersubjetividade ao lado de um enaltecimento exacerbado de
si mesmo.
Assim sendo, esse autocentramento é desprovido de interioridade e caracteriza-se
pelo excesso de exterioridade, de exibicionismo. Institui-se, assim, a hegemonia da aparência,
a qual o sujeito vale pelo o que parece ser (BIRMAN, 1999).
Trata-se de uma nova forma de subjetivação, por meio da qual são forjadas outras
modalidades de subjetivação na atualidade, o que constitui o fundamento da atual
psicopatologia. Essa sociedade pós-moderna construiu um modelo de subjetividade em que as
possibilidades de reinvenção do sujeito e do mundo se silenciam (BIRMAN, 1999).
A psicopatologia da pós-modernidade define-se justamente, pelo fracasso de muitos
sujeitos - deprimidos, toxicômanos, etc - em realizar a glorificação do eu e a estetização da
existência. Essas patologias têm recebido maciço investimento financeiro de grandes
laboratórios farmacêuticos internacionais para a realização de pesquisas predominantemente,
de ordem biológica e psicofarmacológica (BIRMAN, 1999).
Birman afirma que há um processo de produção social das toxicomanias, pelas vias
medicamentosas da psiquiatria e do mercado de drogas pesadas, que encontram suas
condições de possibilidade na ética da sociedade do espetáculo e do narcisismo.
A expansão e o consumo de drogas no Ocidente representam, segundo o autor, o
sucesso global do narcotráfico, que não pode ser desarticulado da difusão massiva dos
psicotrópicos pela psiquiatria e pela medicina, pois ambos se inserem no mesmo vazio
existencial que produz as novas formas de mal-estar na civilização (BIRMAN, 1999).
Como retrata Ribeiro (2009), essa concepção apresenta as substâncias tóxicas como
estando a serviço da economia de mercado e tem como exemplo máximo as pessoas que delas
fazem uso como uma forma de ficarem mais adaptadas às exigências do mundo
contemporâneo: afastando o cansaço, produzindo mais e melhor, aguçando a criatividade,
suportando as frustrações etc.
Nessa lógica, Carneiro (2002 apud SANTOS, 2010, p. 9) diz que o consumo das
mercadorias fetiches é estimulado por complexos e cada vez mais poderosos mecanismos de
criação de comportamentos de consumo compulsivo, como os veículos midiáticos. De acordo
com esse autor, é estabelecido um ideal de sociedade cada vez mais viciada em comida,
compras, carros, jogos e, sobretudo, drogas.
Capítulo 2 – DOS MODELOS DE CONTROLE SOBRE DROGAS
Nesse capítulo serão apresentadas as formas de controle de drogas ao passo que,
além do clássico modelo proibicionista de drogas que prevê a repressão ao uso e venda desses
entorpecentes, o que provocou o encarceramento de grande quantidade de pessoas e muitas
outras consequências discutidas à frente, conforme Ribeiro (2006) aponta, novos modelos
surgem contrapondo o antigo modelo de controle e vem trazendo estratégias inovadoras.
2.1 Modelo Proibicionista
Para que haja o entendimento sobre o controle sobre drogas vigente no Brasil e em
diversos países do mundo, a compreensão do que é o modelo proibicionista, suas implicações
e o impacto provocado por ele a partir de sua implementação, tornam-se necessárias.
O modelo proibicionista advém do radicalismo punitivo norte-americano de controle
de drogas, que reprime o uso, produção e distribuição de drogas criminalizando o indivíduo e,
além disso, preconiza o máximo controle penal sobre a venda e o consumo de substâncias
incluídas no rol de ilícitos, preferencialmente mediante o uso da pena de prisão como meio de
coerção, e que tem como meta a abstinência (RODRIGUES, 2009).
Como relata Rodrigues (2006), ao impor um determinado tipo de moral sem que essa
expectativa represente necessariamente um valor, ou um sistema de valores partilhado pela
sociedade cria-se um modelo proibicionista de controle de drogas que é sustentado por
fundamentos morais e sanitário-sociais.
Logo, como afirma Rodrigues (2006), uma das consequências do proibicionismo é a
marginalização de um número cada vez maior de pessoas que não se enquadram ao modelo de
controle sobre drogas imposto pela norma, por não compartilharem dos mesmos valores
morais da abstinência defendidos pela norma proibitiva.
Provocados pelo controle proibicionista, o preconceito e a exclusão social
relacionados ao uso de drogas ilícitas tem extrema importância ao se tratar das consequências
advindas desse tipo de controle, como relata a ONU (2011):
As políticas e estratégias de drogas continuam sendo fortemente influenciadas por preconceitos e visões ideológicas ou de conveniência política, que não levam em conta a crescente complexidade do mercado de drogas e das questões relativas ao uso e à dependência das mesmas (ONU, 2011, p. 8).
Para Santos (2010), se faz presente no proibicionismo a aliança entre práticas
moralistas e de controle social no trato com as drogas, relacionando determinados psicoativos
a minorias que eram consideradas perigosas por seus hábitos e procedências. Portanto,
“[...] relações entre etnias e o uso abusivo de substâncias foram sendo erroneamente
produzidas, sendo os chineses relacionados ao uso abusivo de ópio, negros ao de cocaína,
irlandeses ao de álcool, hispânicos ao de maconha” (RODRIGUES, 2005, p. 294).
Nesse vértice, lançam-se as bases que justificam os principais argumentos oficiais
para dar contorno político e social ao campo das substâncias psicoativas: as drogas como
ameaça moral, como questão de saúde pública e como problema de segurança pública
(SANTOS, 2010).
O controle internacional sobre drogas há pouco tempo se estabeleceu. Foram criadas
rigorosas políticas repressivas contra a produção, distribuição e o consumo de drogas a fim de
que houvesse a redução do mercado de drogas ilícitas como maconha, cocaína e heroína e,
consequentemente, ver o mundo livre das drogas (ONU, 2011).
Como destaca Rodrigues (2006, p. 47):
No aspecto político, o modelo proibicionista é amparado pelos tratados internacionais [...], em vigor na grande maioria dos países do mundo, e defendido pela ONU. Diversas autoridades e políticos apoiaram essa política, em especial os Presidentes Norte-americanos (Nixon, Reagan, Bush pai e Bush filho), além do Presidente francês Jacques Chirac. Notadamente, o assunto “droga” transcende os limites da saúde pública e da moral, marcando terreno na esfera da política internacional e passa a se constituir tópico relevante na política externa das grandes potências.
Investigar as origens históricas desse modelo é necessário para que se entenda o atual
controle sobre drogas. Afinal, diferentemente de outros delitos tradicionais como o homicídio,
a criminalização do uso e do comércio de drogas é relativamente recente (RODRIGUES,
2006).
O expansionismo marítimo-comercial europeu em meados do século XIV, entendido
como um elemento fundamental no processo de transição do Feudalismo ao Capitalismo
provocou diversas transformações no comércio de mercadorias valiosas, o que atingiu,
principalmente, as famigeradas especiarias.
Incluídas no rol de especiarias, a papoula da Índia (ópio), a coca e a cannabis eram
livremente comercializadas pelos países colonizadores e preenchiam as grandes embarcações.
Tais insumos tiveram grande importância estratégica internacional, tanto política quanto
econômica, sendo que a proibição da circulação e do consumo de tais substâncias nem era
cogitada.
Conforme Rodrigues (2006), o comércio internacional de substâncias hoje
consideradas ilícitas somadas às especiarias, tiveram um importante papel na economia
internacional, tanto no apogeu do período colonial, como daí em diante, em especial no
decorrer do século XIX, caracterizado pela rota do ópio. (RODRIGUES, 2006).
Além da atuação dos colonizadores na expansão comercial dessas especiarias, a
Igreja Católica exerceu um papel fundamental nas origens de proibição das drogas na
modernidade. Ao impor a doutrina cristã aos povos colonizados, preconizava-se o catolicismo
como um pilar religioso.
Todavia, tais povos nativos tinham cultura e crenças religiosas típicas, as quais
utilizavam “plantas sagradas” em seus cultos e adorações como forma de aproximação com o
divino em seus rituais religiosos tanto nas Américas como na Europa. Como mostra
Rodrigues (2006) os antropólogos afirmam que o uso de drogas pode ser considerado
universal, já que são pouquíssimas as culturas que não se utilizam de alucinógenos.
Com a colonização do Novo Mundo, sob forte influência da Igreja Católica, a
proscrição das “plantas sagradas” passou a fazer parte da imposição da cultura do
descobridor-colonizador, e da afirmação do catolicismo como religião oficial, por meio da
catequese dos índios, habitantes nativos das terras americanas como demonstra Rodrigues
(2006). Para essa a mesma:
Esse aspecto da religiosidade deve ser necessariamente incluído como um dos elementos básicos para se compreender as origens da proibição das drogas no mundo moderno, especialmente porque que um dos pilares da política proibicionista veio da influência do protestantismo norte-americano, e de seu ideal religioso de abstinência, pregado pelas proeminentes figuras de formação religiosa que atuaram como influentes arquitetos do proibicionismo (RODRIGUES, 2006, p. 27).
Do ponto de vista econômico, o controle moral do cristianismo foi, paradoxalmente,
confrontado por novas culturas que também exerciam grande influência sobre a civilização
europeia. Notadamente, a descoberta de espécies de plantas nativas, especiarias e novos
fármacos provocou forte impacto no comércio internacional ao serem consideradas
mercadorias valiosas e levarem ao incremento de viagens e rotas comerciais a terras
longínquas (RODRIGUES, 2006).
É de se ver que não havia a proibição do uso de drogas na Idade Média, apesar das
prescrições morais advindas da doutrina cristã (RODRIGUES , 2006). A distinção do uso
médico e o abuso não médico de drogas, contudo, ocorria em todas as sociedades, em larga
escala.
Como afirma Rodrigues (2006), os historiadores sociais identificaram dois tipos de
uso social de drogas na transição entre a Baixa Idade Média e Renascimento: nas classes
baixas, um uso desesperado, famélico, escapista, e nas classes altas, um consumo de
especiarias que se confunde com a busca de remédios exóticos, cuja eficácia costuma ser
medida pelo preço das substâncias empregadas na confecção da drogas.
Isso mostra que o uso e o abuso de drogas, historicamente, estão relacionados a
um contexto que envolve desigualdades econômico-sociais e um cenário de abandono social
como mostra a autora:
No século XVI, a Europa assistiu a uma intensificação do fornecimento de especiarias asiáticas, e do consumo de drogas, em especial do ópio, devido provavelmente ao aumento das massas nômades expulsas do campo, corroídas dos velhos laços sociais da servidão e da ausência ainda dos novos laços sociais. Nessas circunstâncias, aumentavam a fome e as doenças, assim como o consumo generalizado de plantas, não só para alimentação como para o consolo ou escapismo da realidade (RODRIGUES, 2006, p. 28).
O ópio, umas das drogas mais usadas no mundo antigo como analgésico e
eutanásico, teve um papel fundamental para que as políticas proibicionistas internacionais
fossem criadas. Era uma mercadoria amplamente comercializada e integrada às economias de
muitos países.
Entre 1839 e 1842, a Guerra do ópio foi travada por chineses e ingleses e mostrou a
relevância da questão político-econômica por trás das discussões sobre controle das drogas.
Estima-se que, no século XVIII, um milhão de chineses eram viciados em ópio, o que
inicialmente atraiu grupos que lutavam contra o tédio e o estresse.
Os ingleses, por sua vez, exploravam esse largo mercado consumidor chinês com o
ópio originado do Sudeste asiático, o que gerava um enorme lucro para a Coroa Inglesa. Logo,
a liberação comercial do produto, bem como a quantidade de consumidores e a venda
estabilizada dependiam do Império Chinês para prosperar. O comércio de ópio passou então a
constituir um elemento central da política externa inglesa (RODRIGUES, 2006).
Contudo, diversas transformações socioeconômicas e culturais fizeram a China
passar a ter uma preocupação maior sobre a utilização e o comércio de ópio. Isso fez com que,
em 1729, a venda e o consumo dessa substância fossem banidas do território asiático pelo
Imperador, após ter sido constatada a ampla difusão de seu consumo pelos chineses. De
acordo com Rodrigues (2006):
Com tal proibição, apesar de os mercadores chineses (cohongs) responsáveis pela venda de ópio no país terem parado de comercializar diretamente o produto, isso não impedia que estrangeiros ancorassem seus navios em locais distantes, e continuassem a vender suas mercadorias de forma ilícita. Os esforços do governo chinês para combater essa distribuição ilegal não foram suficientes para impedir o comércio da droga, pois mesmo com a ameaça de severa punição e o intenso interrogatório imposto aos usuários para que revelassem seus fornecedores, os envolvidos no milionário negócio ilícito cobriam todos os seus rastros por meio de numerosos intermediários, sem que nunca se conseguisse chegar aos responsáveis principais (RODRIGUES, 2006, p. 35).
O que mostra, historicamente, a dificuldade de lidar com um produto consumido
socialmente que é tornado ilegal e, principalmente, lidar com o poder exercido pelo
narcotráfico, que provoca profundas transformações sociais onde quer que ele esteja
estabelecido, devido ao alto teor lucrativo e à propagação do consumo.
A venda de ópio medicinal, todavia, continuou sendo permitida. Por outro lado, em
1838, o governo chinês decidiu banir o comércio de ópio por achar que estava tendo prejuízo
econômico em decorrência dos interesses da Coroa Britânica em manter o comércio do
produto na China. Proibições severas foram impostas aos ingleses e sanções para quem
utilizasse o ópio foram criadas (RODRIGUES, 2006).
Além de serem aceitos pela Igreja, o álcool e o tabaco, bem como o ópio na China,
foram amplamente comercializados e tinham extrema importância econômica para os países
envolvidos. Inclusive, foi justamente a motivação econômica que levou a um novo regime de
drogas na modernidade (RODRIGUES, 2006).
Para a autora supracitada, pela importância estratégica comercial internacional, esses
estimulantes tornaram-se as drogas de uso mais frequente pela população mundial.
Principalmente, o ópio que retomou ao papel de principal fármaco na Europa, enquanto que os
alucinógenos estavam proibidos devido à característica peculiar dos cultos indígenas
americanos.
Isso exemplifica a discrepância entre vigências temporais de repressão e/ou
tolerância, perseguição e/ou permissividade enquanto o próprio indivíduo, enquanto
consumidor, sendo ora visado como enfermo, ora tratado como delinquente.
Coggiola (1997) afirma categoricamente que o tráfico internacional de drogas ata-se,
estreitamente, à crise econômica mundial. De acordo com seus estudos, ao mesmo tempo em
que contribui principalmente para o sistema financeiro mundial, o narcotráfico determina as
economias dos países produtores de coca (mesmo que a maior parte do lucro não permaneça
neles), que sofreram com as sucessivas quedas de preço em seus principais produtos de
exportações (RODRIGUES, 2006).
Como relata a ONU (2011), a maioria das pessoas envolvidas nos cultivos ilícitos de
coca, papoula ou cannabis são pequenos agricultores que lutam para ganhar a vida e manter
suas famílias. Como explicita Coggiola (1997), o que a transmutação das economias
monoprodutoras em narcoprodutoras, acrescido do abrupto consumo nos EUA e na Europa
refletida nos 80.
O mesmo autor categoriza que da mesma forma como ocorreu no passado com a
borracha, o guano e o açúcar, a monoexportação de coca é mais um episódio da devastação
agrária, do empobrecimento campesino e do desperdício da região.
Para ele, estes são índices objetivos da decomposição das relações de produção
imperantes: o mercado mundial, que é a expressão mais elevada da produção capitalista, está
dominado, primeiro, por um comércio da destruição e, segundo, por um tráfico
declaradamente ilegal.
Uma análise feita por Kaplan (1997, apud SANTOS 2010) sobre tráfico de drogas,
soberania e segurança nacional permite traçar correlações entre o fenômeno atual do
narcotráfico e a crise global gerada pelo capitalismo. No contexto global, o narcotráfico é um
componente representado pelo alto grau de concentração de poder em escala mundial.
Confira-se:
Considerando a mutação do neocapitalismo nos centros desenvolvidos, a transnacionalização, a nova divisão mundial do trabalho e a terceira revolução industrial e técnico-científica observa-se que a globalização trouxe aos países periféricos inseridos no capitalismo uma poderosa restrição externa a seus interesses nacionais e à sua transformação progressiva. Se forem consideradas as crises estruturais desses países, os limites encontrados e os fracassos e efeitos negativos de seus esforços de desenvolvimento no contexto socioeconômico mundial nota-se que é nesse cenário de insuficiência de crescimento econômico que o narcotráfico encontra um terreno propício para o seu fortalecimento e desenvolvimento. (KAPLAN, 1997 apud SANTOS, 2010, p. 6).
Segundo Coggiola (1997), é incontestável a análise num aspecto diminuto. O mineiro
boliviano ao se tornar um cultivador de coca e substituir as melhores áreas agrícolas pela
matéria-prima da droga invariavelmente provocou o pavoroso estancamento econômico da
Bolívia.
No Peru, a coca representa a única saída de sobrevivência para os peruanos
desempregados das cidades ou migrantes da desertificação rural. Isso é outra evidência no
mesmo processo de regressão econômica (COGGLIOLA, 1997).
Como resultado desse panorama, ainda que os traficantes colombianos tenham
produzido, nos últimos anos, a maior parte da cocaína do mundo, entre 2000 e 2009, a área
sob cultivo de coca na Colômbia diminuiu 58%, principalmente devido à erradicação. No
mesmo período, o cultivo de coca aumentou 38% no Peru e mais do que dobrou no Estado
Plurinacional da Bolívia (aumento de 112%), acompanhado do fato de que os traficantes
desses dois países aumentaram sua própria capacidade de produzir cocaína (ONU, 2010).
No mesmo vértice, Rodrigues (2006) considera que o caso desses três países
produtores merece destaque especial e estudos aprofundados, diante das agressivas políticas
de erradicação e substituição do plantio de substâncias proibidas, determinadas e sustentadas
pelos EUA.
A explosão do consumo e a popularização da droga, em especial nos países
desenvolvidos, formam a base desse fenômeno. Ao tratar de uma mercadoria que pode
provocar a autodestruição da pessoa, o consumo atinge setores inteiros da sociedade.
Os mais afetados são precisamente os mais golpeados pela falta de perspectivas: a
juventude condenada ao desemprego crônico e à falta de esperanças e, no outro exemplo, os
filhos das classes abastadas que sentem a decomposição social e moral (RODRIGUES, 2006).
Conforme a ONU (2011) expõe, a maioria das pessoas presas por venda de drogas
em pequena escala não são bandidos ou criminosos organizados; são jovens explorados para
fazer o trabalho de risco da venda nas ruas, usuários de drogas dependentes tentando sustentar
seu próprio consumo ou ‘mulas’ obrigados ou intimidados a transportar drogas através das
fronteiras. Em geral, estas pessoas são processadas com as mesmas disposições legais que os
criminosos violentos e organizados que controlam o mercado, tendo como resultado a
aplicação indiscriminada de severas penas.
No mundo todo, a maioria das prisões são destes “peixes pequenos” não violentos e
de baixo escalão no mercado de drogas. Eles são mais visíveis e fáceis de prender, e não tem
os meios para pagar fiança. O resultado disso, é que os governos lotam as prisões com
pequenos infratores que cumprem longas penas, a um alto custo, e sem nenhum impacto sobre
a escala ou rentabilidade do mercado (ONU, 2011).
Consoante Franch (2003, apud Santos, 2010) as motivações para o envolvimento dos
jovens no comércio clandestino de armas e drogas são usualmente atribuídas ao impacto da
sociedade de consumo entre os jovens de periferia (embora não apenas entre estes) e à perda
de importância do trabalho como referencial moral, entre outros aspectos (FRANCH, 2003
apud SANTOS, 2010).
De acordo com a UNODC (2010), a América Latina é a maior produtora mundial de
cocaína, o que significou a degradação de países inteiros ao simples papel de apêndice do
narcotráfico (COGGIOLA, 1997).
Conforme Coggiola (1997), nestes países, a corrupção é generalizada. Os
narcotraficantes controlam o governo, as forças armadas, o corpo diplomático e até as
unidades encarregadas do combate ao tráfico. Não há setor da sociedade que não tenha
ligações com os traficantes e até mesmo a Igreja recebe contribuições destes.
No Peru e na Bolívia, parte da produção de coca é legal e destina-se ao consumo
tradicional (mastigação das folhas para combater os efeitos da altitude), à indústria (chás e
medicamentos) e à exportação (o Peru exportava 700 toneladas de folhas de coca por ano para
a Coca-cola) (COGGIOLA, 1997).
Coggiola (1997) destaca que, na década de 80, o consumo de drogas
universalizado e massificado pelo capitalismo em cada época em grupos sociais e nacionais
diferentes, esteve diretamente associado à extensão da marginalidade, da pobreza e da
desocupação.
Para o autor, o capitalismo só pôde oferecer o crack, cocaína e heroína aos jovens
que não emprega, aos emigrantes que expulsa, às minorias que discrimina ou aos
trabalhadores que destrói (COGGIOLA, 1997).
Nesse sentido, conforme dito no capítulo anterior, não ocorreu a distinção de drogas
lícitas e ilícitas por meios médicos, mas por meios meramente morais ou por conveniência
política, confira-se:
O controle penal atual sobre as drogas tem por base a proibição do uso e da venda de substâncias rotuladas como “ilícitas”, por meio de um discurso de proteção da saúde pública e de intensificação da punição. Porém, essa distinção entre drogas lícitas e ilícitas deu-se por conveniência política, sem que houvesse conclusões médicas definitivas quanto à graduação e à avaliação concreta dos riscos de cada substância a ser controlada, ou mesmo sem que se tivesse proposto ou experimentado nenhum outro modelo intermediário, ou menos repressivo. O modelo proibicionista de controle de drogas sustenta-se em dois fundamentos básicos: o fundamento moral e o fundamento sanitário-social, e a proibição repousa sobre a premissa da supressão da oferta por meio da interdição geral e absoluta de todo o uso, comércio e produção, que passaram a ser previstos como crime, e sancionados com pena de prisão (RODRIGUES, 2006, p. 46).
Portanto, esta guerra global contra as drogas está fracassando, deixando
consequências devastadoras para pessoas e sociedades em todo mundo (ONU, 2011).
Conforme Soares (2007 apud SANTOS, 2010), explicar o consumo de drogas inserido na
dinâmica social, na sua dimensão estrutural, requer, em primeiro lugar, demarcar a condição
histórica que inscreve a droga como uma mercadoria, ora lícita – proveniente de uma indústria
com lucros aviltantes, ora ilícita – produzida e distribuída pelo narcotráfico.
Em seguida, é necessário compreender o processo contemporâneo de produção e
distribuição da mercadoria droga como consequência das formas atuais de acumulação
capitalista.
Inseridas na dinâmica do capitalismo e no cenário contemporâneo, as substâncias
psicoativas ou drogas vem, continuamente, tendo seu caráter resgatado como potentes
mercadorias que respondem às necessidades atuais de valorização do fugaz e do
enaltecimento do prazer imediato.
É nesse sistema capitalista que mercantiliza de maneira selvagem toda e qualquer
coisa e, ainda, que tem suas relações de produção baseadas na lógica de reprodução do
próprio em detrimento das necessidades reais dos homens que a relação capitalismo-
droga é estabelecida (BARATTA, 1994 apud SANTOS, 2010).
Conforme a ONU (2011), a estimativa sobre o consumo anual de drogas, de 1998 a
2008, mostra que os Opiáceos passaram de 12.9 milhões para 17.35 milhões de consumidores
(34,5% de incremento). A Cocaína passou de 13,4 milhões para 17 milhões (27% de
incremento). Já a Cannabis passou de 147,4 milhões para 160 milhões (8,5% de incremento).
Juntamente com o aumento do consumo, consequências negativas da guerra às
drogas foram geradas em sociedades de países produtores, de trânsito e consumidores. De
acordo com a ONU (2011, p.11), cinco grandes categorias foram estabelecidas:
1.O crescimento de um enorme mercado negro criminoso, financiado pelos lucros gigantescos obtidos pelo tráfico que abastece a demanda internacional por drogas ilícitas. 2. Deslocamento extensivo de políticas, resultado do uso de recursos escassos para financiar as ações repressivas para controlar o mercado ilegal de drogas. 3. Deslocamento geográfico da produção de drogas que migra de uma região ou país para outro – o chamado efeito balão – para iludir a repressão sem que a produção e o tráfico diminuam. 4. Deslocamento dos consumidores de uma substância para outra, na medida em que a repressão dificulta o acesso a uma determinada droga mas não a outra, por vezes de efeito ainda mais nocivo para a saúde e a segurança das pessoas. 5. A estigmatização e marginalização dos usuários de drogas tratados como criminosos e excluídos da sociedade.
A contemporaneidade observa o problema com o narcotráfico em políticas
proibicionistas de controle das drogas. A proibição do ópio na China, a proibição do álcool
nos EUA mostraram a dificuldade com esse mercado ilegal que produz um lucro absurdo.
De acordo com a ONU (2011), os imensos recursos gastos na erradicação da
produção, repressão aos traficantes e criminalização dos usuários não foram capazes de
reduzir a oferta nem de reduzir o consumo de drogas. Pequenos êxitos, obtidos com a
eliminação de uma determinada fonte de produção foram invariavelmente compensadas pelo
surgimento de outras organizações criminosas e pela migração da produção para outras áreas.
Além de não fazer com que o consumo e o comércio de drogas sequer reduza, a
implementação da proibição produziu a criminalização, estigmatização e marginalização dos
usuários de drogas. Assim, o fundamento sanitário-social e o moral se fazem presentes e são a
base do modelo proibicionista.
Baseado no discurso de proteção da saúde pública, a proibição é, na realidade,
perpetuada e sustentada predominantemente por questões políticas, morais, e, principalmente,
econômicas.
Como discorre Coggiola (1997), se os EUA tivessem vontade política de combater o
narcotráfico poderiam exercer um severo controle das exportações de produtos químicos para
fabricação da PBC (Pasta de Base da Cocaína), que provém da Shell e da Móbil Oil,
como constatou a própria DEA (The Miami Herald, edição de 8 de fevereiro de 1990); agir
contra os bancos norte-americanos que lavam os narcodólares; e estender um cordão de
radares e barcos para impedir a entrada da droga, em vez de fazer isso nos países da América
do Sul.
Como cita Rodrigues (2006), deixa-se de lado o discurso oficial, que fundamenta a
proibição na questão da saúde pública, para estudá-la sob perspectivas diversas. São elas: a
droga como um problema socioeconômico, que interage com a violência e a corrupção ao
circular em um mercado ilícito absolutamente integrado na economia, por meio da lavagem de
capitais; e como um problema penal e penitenciário, na medida em que a criminalização
desfigurou o direito penal e lotou as penitenciárias.
Na prática, além do consumo de drogas ilícitas ter aumentado no mundo,
consequências devastadoras para pessoas e sociedades foram ocasionadas por essa forma de
controle de drogas. Profundos problemas socioeconômicos, aprisionamento de classe,
exclusão social, dentre outros. Para o melhor entendimento desses problemas, comentar sobre
o histórico processo de aprisionamento e exclusão e o reflexo disso na sociedade, no sujeito e
no pensamento contemporâneo será relevante a seguir, no próximo tópico.
O empobrecimento maciço de grande parte da população mostra que o capitalismo,
juntamente com o narcotráfico, seca cada vez mais o campo que parasita e, que vale-tudo
onde a lei é a do mercado e a obtenção de capital. O mercado de drogas provocou crises
estruturantes na economia de diversos países na medida em que a expansão da desigualdade
social assola em escala mundial (COGGIOLA, 1997).
Portanto, contribuir para o desafiante e polêmico estudo crítico sobre drogas, propor
alternativas racionais que respeitem a dignidade e a subjetividade dos sujeitos, promovam a
cidadania, bem como ajudem na mudança para um modelo de controle de drogas mais
humano, são necessários.
2.1.1 Aprisionamento do corpo e confinamento
Tratar sobre aprisionamento do corpo e confinamento remete a abordar aspectos
como poder disciplinar, subjetividade e privação de liberdade. Explicitar o elo entre o estudo
da disciplina e da subjetividade foi uma grande contribuição de Foucault (RIBEIRO, 2006).
Para o campo da Psicologia, a investigação do fenômeno da subjetividade e a
interferência, sob diversas formas, da disciplina nesse constructo são objetos de estudo. O
conhecimento psicológico atua em distintas frentes: uma que examina a interioridade do
ser humano e outra que analisa as formas de submissão do indivíduo as normas sociais
(FIGUEIREDO & SANTI, 1991 apud RIBEIRO, 2006).
Ao longo dos séculos, a punição tornou-se velada no processo penal provocando
diversas consequências. Entrar no campo da consciência coletiva, na qual a certeza de ser
punido é que deve desviar o homem do crime, é uma delas.
De acordo com Foucault (1987):
A execução da pena vai-se tornando um setor autônomo, em que um mecanismo administrativo desonera a justiça, que se livra desse secreto mal-estar por um enterramento burocrático da pena. (FOUCAULT, 1987, p. 14).
A privação de liberdade foi uma forma simples empregada com a prisão, a cerca e o
enquadramento já que a liberdade é um bem empregado a todos da mesma maneira e ao qual
cada um está ligado por um sentimento universal e constante (FOUCALT, 1987).
Esse autor destaca que o essencial da pena não é punir, mas sim procurar corrigir,
reeducar, “curar”, de maneira que punir torna-se uma técnica de aperfeiçoamento recalcada na
pena como a estrita expiação do mal, bem como liberta os magistrados desse papel de
castigadores.
Para Foucault (1987), considerada um aparelho de transformação de indivíduos, a
prisão e sua obviedade se fundamentaram e foram imediatamente aceitas ao encarcerar,
retreinar, tornar dócil e reproduzir todos os mecanismos do corpo social.
Ribeiro (2006) afirma que, para Foucault, o poder disciplinar não decorre do Estado.
Ele transpassa e se aproveita do poder estatal, mas não coincide com ele, constituindo-se
como uma malha difusa de controle social.
De acordo com Foucault (1987), a disciplina procede em primeiro lugar à
distribuição dos indivíduos no espaço. Para isso, utiliza diversas técnicas como, por exemplo,
a “cerca” usada para especificar um local heterogêneo e fechado em si mesmo.
O princípio da “clausura” como tática de antideserção, antivadiagem e
antiglomeração para, em qualquer momento, poder vigiar o comportamento individualmente,
seja para apreciar, seja para sancionar. Nas palavras de Foucault (1987, p. 169),
“procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar”.
Na escola, na família, na penitenciária, no manicômio e na essência de todos os
sistemas disciplinares funciona um pequeno mecanismo penal, como apresenta Foucault
(1987). Essa repressora micropenalidade atinge o tempo, as atitudes, a maneira de ser, os
discursos, o corpo, a sexualidade e etc.
A partir da obra Vigiar e Punir é possível compreender como o corpo é alvo de
práticas punitivas. Todavia, a maneira de punir o corpo foi sendo modificada ao ponto em que
o não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, com o intuito de atingir nele algo que não é
do corpo propriamente dito foi sendo estabelecido pela Justiça.
De fato, o corpo é um intermediário ou instrumento da prática de enclausuramento,
cujo objetivo é privar o sujeito de sua liberdade considerada um direito e um bem. Sobretudo,
por isso, a relação castigo-corpo foi sofrendo alterações. Aliás, a instauração da
psicofarmacologia e seus diversos “desligadores” fisiológicos correspondem explicitamente
no que tange essa penalidade “incorpórea”, como frisa Foucault (1987).
Para o ser humano moderno, o corpo é tido como suporte de estabelecimento do
indivíduo ao se delimitar o que é subjetivo (interior) e o que é realidade objetiva (exterior).
Assim, o corpo é concebido como contorno da subjetividade, de modo que ele atua como
fronteira de si com o mundo, centro da identidade e ponto de concentração dos desejos do
indivíduo (RIBEIRO, 2006).
Foucault (1987) descreve que limitações, proibições ou obrigações são impostas ao
corpo em qualquer sociedade, não sendo atuais tais atos. O corpo, então, está preso no interior
de poderes muito estreitos.
O sofrimento físico e a dor do corpo que se apresentavam nos suplícios não mais
constituem a pena. Em contrapartida, o corpo é inserido em um sistema de coação e de
privação, de obrigações e de interdições.
Como causa desse direcionamento, houve a substituição do carrasco por outros atores
sociais que serviram de âncora para a atuação dessa ação punitiva. Conforme Foucault (1987,
p. 15):
Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado”. Por efeito dessa nova retenção, um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples presença ao lado do condenado, eles cantam à justiça o louvor de que ela precisa: eles lhe garantem que o corpo e a dor não são os objetos últimos de sua ação punitiva.
Assim, a psiquiatria torna-se um instrumento de domesticação e “se firma como uma
das táticas disciplinares de padronização da subjetividade a partir da interiorização das normas
sociais.” (RIBEIRO, 2006, p. 52).
O controle da individualidade parte da patologização da loucura, sendo que delimitar
a aceitabilidade do comportamento humano e o distanciamento da normalidade, ou seja,
identificar um comportamento como doença coube à psiquiatria. Nesse viés, Foucault
(1987) aduz que:
O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação “ideológica” da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a “disciplina”. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. (FOUCAULT, 1987, p. 218).
Dessa maneira, a subjetividade é sobrepujada na medida em que a disciplina como
forma de ajuste da individualidade ao sistema mercantil de produção é estabelecida na
modernidade. Diante disso, tal constructo entra em crise. Diante dessa seara, Figueiredo e
Santi (1991) destacam que:
A subjetividade privatizada entra em crise quando se descobre que a liberdade e a diferença são, em grande medida, ilusões, quando se descobre a presença disfarçada, das Disciplinas em todas as esferas da vida, inclusive nas mais íntimas e profundas (FIGUEIREDO e SANTI, 1991, p. 47-48).
Sob essa ótica, Ribeiro (2006) coloca que como resultado das relações de poder entre
os indivíduos, a qual constitui o poder disciplinar, a modernidade inaugura a subjetividade
como uma forma peculiar do ser humano de lidar com o tempo, o corpo e a morte.
Nesse sentido, sob o aspecto psiquiátrico, ocorre a articulação entre tornar a loucura
em doença mental e a gênese do indivíduo moderno, submetido ao poder disciplinar e
constituído por ele. Ribeiro (2006) salienta que a análise do intuito disciplinar da psiquiatria
moderna revela que há a conjugação de um saber acerca do indivíduo com um poder que visa
sujeitá-lo.
Na perspectiva do poder, Martins (2003) cita Foucault em sua obra Microfísica do
Poder (1979/1984) alertando que não é viável colocar aqueles que tem e outros que não tem
poder. Martín-Baró (1989 apud Martins, 2003, p. 212) diz que um dos aspectos mais
importantes do poder “é sua tendência a ocultar-se, inclusive a negar-se como tal, ou seja,
como poder, e apresenta-se como exigência natural ou razão social”.
Nessa linha, Martín-Baró (1989, apud Martins, 2003, p. 214) apresenta três
características do poder:
1. Se dá nas relações sociais, o que significa dizer que as relações sociais tem um caráter de oposição e conflito; 2. Baseia-se na posse de recursos, ou seja, um dos sujeitos da relação, pessoa ou grupo, possui algo que o outro não possui ou possui em menor grau (quantitativo e/ou qualitativo)”, o que evidencia uma relação de desequilíbrio em relação a determinado objeto, e 3. Produz um efeito na mesma relação social, que se dá tanto sobre o objeto da relação como sobre as pessoas ou
grupos relacionados, podendo implicar na obediência ou submissão de um, o
exercício da autoridade ou do domínio do outro. O poder configura assim o que fazer de pessoas e grupos.
Nos estudos sociológicos, o poder demonstra essa tendência sobre a socialização.
Afinal, a aprendizagem na socialização, preferencialmente, deve ser sutil, a fim de que haja a
assimilação das normas e regras sociais por parte dos indivíduos como próprias e naturais.
(MARTINS, 2003).
Assim, ao não considerá-las impostas, tornam-se reprodutores das mesmas com
muita facilidade, pelo fato de não considerá-las impostas, mas sim como o que deve ser.
Por conseguinte, como alega Martín-Baró (1997, apud Martins, 2003, p. 213), o
poder “é um objeto social de que dispõe o estado como gerente do bem comum e que distribui
entre os membros da sociedade a fim de por em execução as exigências e regras do sistema
estabelecido”.
Na obra A ideologia Alemã, de Marx e Engels (1980 apud Martins, 2003, p. 214), a
ideia trazida pelo pensamento marxiano sobre o poder aparece quando afirmam que:
Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante num dada sociedade é também a potência dominante espiritual. [...] Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem entre outras coisas uma consciência disso que pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinam uma época histórica em toda a sua extensão, é lógico que esses indivíduos dominem em todos os sentidos, que tenham, entre outras, uma posição dominante como seres pensantes, como produtores de ideias, que regulamentem a produção e a distribuição dos pensamentos de sua época; as suas ideias são, portanto, as ideias dominantes de sua época. (MARX E ENGELS, 1980, p. 55-56 apud MARTINS , 2003, p. 214)
Para Martín-Baró (1997 apud Martins, 2003, p. 212), a análise dos processos de
socialização “requer examinar como variáveis fundamentais em que sociedade, em que classe,
em que grupo, em que época, em que situação, em que conjuntura tem lugar esses processos.”
De acordo com Ribeiro (2006), uma nova construção de subjetividade advinda de
novos requisitos socioculturais que definiram a modernidade como palco de privatização e
crise da subjetividade humana e a emergência de um saber sobre experiência subjetiva dos
indivíduos adveio como objeto de estudo da Psicologia.
Como descreve Amarante (1995), Foucault em sua obra História da Loucura na
Idade Clássica foi fundamental para reescrever a história da loucura, da psiquiatria e de toda a
forma da sociedade moderna em lidar, não apenas com a loucura, mas, ainda, com todas as
formas de diferenças, desvios e divergências sociais e culturais.
De acordo com o mesmo autor:
A doença mental, objeto construído há duzentos anos, implicava o pressuposto de
erro da Razão. Assim, o alienado não tinha a possibilidade de gozar da Razão plena e, portanto, da liberdade de escolha. Liberdade de escolha era o pré-requisito da cidadania. E se não era livre não poderia ser cidadão. Ao asilo alienista era devotada a tarefa de isolar os alienados do meio ao qual se atribuía a causalidade da alienação para, por meio do tratamento moral, restituir-lhes a Razão, portanto, a Liberdade. (AMARANTE, 1995, p. 491).
Nota-se que o mesmo discurso que confinou e perpetuou os doentes mentais nos
manicômios permeia o debate sobre a internação compulsória de indivíduos com transtornos
mentais e comportamentais devido ao uso de substâncias psicoativas. Nesse viés, tais grupos
foram considerados desempoderados de Razão.
Esse discurso da impossibilidade da plenitude racional como pré-requisito de
pertencimento social embasado em questões morais resultou no confinamento, exclusão social
e segregação do indivíduo considerado incapaz de gozar da Razão.
Conforme Basaglia (1991, p. 107-108) salienta, ao confinar um paciente em uma
instituição, cria-se “um homem sem direitos, submetido ao poder da instituição, à mercê,
portanto, dos delegados da sociedade (os médicos) que o afastou e excluiu.” Tal exclusão ou
expulsão da sociedade resulta antes da ausência de poder contratual do doente (ou seja, de sua
condição social e econômica) que da doença em si.
Além disso, outro discurso que rodeia a discussão tanto da loucura quanto da
toxicomania está pautada na insegurança social que ambos trazem à tona. Dessa forma, o
louco e o dependente químico são perigosos para si e para os outros e objeto de escândalo
público. Contudo, não seria mais adequado concluir, de acordo com Basaglia (1991, p. 108),
que:
Estes doentes, devido exatamente ao fato de serem sócioeconomicamente insignificantes, são vítimas de uma violência original (a violência de nosso sistema social), que os joga para fora de produção, à margem da vida em sociedade, confinando-os nos limites dos muros do hospital? Não seriam eles, definitivamente, o refugo, os elementos de desordem desta sociedade que se recusa a reconhecer-se em suas próprias contradições? (BASAGLIA, 1991, p. 108).
Nesse sentido, revela-se uma realidade invertida, a qual o problema não gira em
torno da doença em si, mas, sobretudo, a relação que é estabelecida com ela. (BASAGLIA,
1991). Nota-se que essa relação integra o “doente com sua doença, o médico e, através deste
último, a sociedade, que julgam e definem a doença” (BASAGLIA, 1991, p. 109).
Sob o disfarce da necessidade e da terapia, a defesa e a insegurança “transmutaram-
se inevitavelmente numa imensa agressão, aumentando a violência diante de um doente já
violentado” pela família, pela pobreza e pela sociedade. (BASAGLIA, 1991, p. 109).
Alves at al (2009, p. 88) citam Goffman (1961) ao tratar das instituições de
confinamento no que diz respeito ao controle, punição e afastamento do convívio social em
detrimento da subjetividade, o que provoca severas consequências ao indivíduo em
situação de isolamento social. De acordo com o autor:
Goffman (1961), em ‘Manicômios, Prisões e Conventos’, a partir de uma análise microssociológica do Manicômio, revela parte da dinâmica do Hospital Psiquiátrico, enquanto Instituição Total. Todo este processo de isolamento e controle, nomeado pelo autor de ‘Mortificação do Eu’, promove uma espécie de desaculturamento, devido à distância das rotinas e transformações culturais ocorridas no mundo externo, gerando dependência da instituição e medo de reinserir-se no convívio social. A prisão/isolamento, assim como as técnicas de controle, passam do aspecto físico para o simbólico, causando verdadeiras mutilações no ser, algumas delas irreversíveis (ALVES; et al, 2009, p. 88).
Portanto, há um impasse: ao tornar o louco um enfermo mental, concedendo o direito
de assistência médica e de cuidados terapêuticos, “a psiquiatria, em contrapartida, retirou dele
a cidadania. Sendo assim, o universo da loucura foi excluído definitivamente do espaço
social” (ALVES, 2009, p. 87).
Neste contexto, ocorre a associação do desprovido de Razão com a periculosidade,
haja vista a representação do não-controle, da ameaça social e, por conseguinte, o perigo.
Ambos, a loucura e o uso de substâncias ilícitas ganham um caráter moral, passando a ser algo
que desqualifica o sujeito, e agrega um conjunto de vícios, como preguiça e
irresponsabilidade.
Aliado a esse panorama, com o Mercantilismo no século XVII adveio a ideia de que,
pelo lucro que produzia, a população representava o bem maior da nação. Logo, diante da
prerrogativa do controle social a tudo que fosse desviante, aquela parte da população que
englobava velhos, mendigos, aleijados, crianças abandonadas, loucos, dentre outros, por não
contribuírem para a produção, comercialização e consumo, começaram a ser encarcerados,
passando a ocupar verdadeiros depósitos humanos (ALVES at al, 2009).
Sob esse viés, Ornellas (1997) afirma que existe uma ligação entre os costumes e
crenças da sociedade e a loucura que ela apresenta. Sendo assim, o louco e o são advém de
uma mesma sociedade que produz o homem e desenvolve as condições que produzem o
louco.
Como ocorre atualmente sob a perspectiva do uso de drogas, principalmente, o crack,
a busca de soluções por parte dos governantes torna-se presente em relação à parcela não
produtiva da sociedade. De acordo com Alves (2009):
Evidencia-se por toda a parte a preocupação dos governantes em encontrar solução para abrigar e alimentar a elevadíssima percentagem de incapazes, de mendigos, de criminosos, de anormais de todo gênero que dificultam e oneram pesadamente a parte sã e produtiva da sociedade. (ALVES, 2009, p. 86).
Percebe-se que a exclusão do convívio social e a internação prolongada, que
levam a perda de vínculos familiares e sociais, são ferramentas utilizadas ao longo da história
para promover normatização e controle.
Dessa maneira, como alega Foucault (1987), o Estado desempenha um papel de
“assistência e repressão, onde os ritos de hospitalidade e a preocupação burguesa de por em
ordem o mundo da miséria; o desejo de ajudar e a necessidade de reprimir; o discurso da
caridade e a vontade de punir se misturam” (FOUCAULT, 1987, p. 52).
Como relata Ornellas (1997), “quando se dá a reforma da justiça, a consciência
pública, representada pelo juiz, assume a forma de instituição, e o crime, diante dos tribunais,
revela seu parentesco com a loucura” (ORNELLAS, 1997, p. 101).
Sob uma perspectiva histórica, “a segregação do século XVII e os significados
políticos, sociais, religiosos, econômicos e morais que ela contém”, foram formados ao longo
dos anos. Tornando-se um “sentimento compartilhado, comum à cultura burguesa,
disseminado entre as pessoas, de que aquelas categorias de indivíduos poderiam ou deveriam
ser segregadas” (ORNELLAS, 1997, p. 91).
Como alega Foucault (1987), o “gesto” que traçou o espaço do internamento, o qual
lhe conferiu um poder de segregação, atribuiu uma nova prática à loucura. Nesse sentido,
como discorre Ornellas (1997):
Esse gesto organiza uma nova sensibilidade à miséria e aos deveres de assistência, uma nova forma de reagir diante dos problemas econômicos, do desemprego, da ociosidade; uma nova ética do trabalho e, também, o sonho de uma sociedade onde a moral se uniria à lei civil, coonestando as formas autoritárias de coação. E, assim, a segregação se institucionaliza (ORNELLAS, 1997, p. 91).
Diante dessa ótica, para essa autora, “o internamento oculta a miséria e, na prática,
constitui uma ação de polícia” (ORNELLAS, 1997, p. 91). Pertencentes a essa categoria, os
loucos que perambulavam pelas estradas também foram recolhidos porque interferiam na
ordem e no espaço social.
Ademais, da mesma forma que, ao final do século XVII, o internamento adquire uma
conotação médica e política. Atualmente é visto que a higienização, baseado em um discurso
de assistencialismo, parece se repetir.
Torna-se evidente a relação entre o saber e o poder, e como mostra Foucault, o
vínculo entre o conhecimento e a normalização. Assim, o conhecimento é disposto como um
instrumento político. Na sintaxe disciplinar, tempo e espaço são manipulados de forma a
estabelecer a norma da subjetividade, a ordem e a moral. (RIBEIRO, 2006).
Diante disso, Tenório (2001) aduz que há uma tensão fundamental de qualquer
iniciativa que pretenda tratar sem segregar: a tensão entre a tutela e o cuidado. Nessa linha
tênue, entre o mandato terapêutico e mandato social de exclusão se dá novas formas de
aproximação com as psicopatologias.
É importante destacar que, para Tenório (2001), é importante que instituições que
atuem no território social sejam fonte de sociabilidade e intermediários de trocas sociais
bloqueadas. Para esse autor, ao invés de utilizar práticas homogeneizantes das instituições
tradicionais deve-se garantir que cada paciente tenha a atenção e a conduta singularizadas.
De acordo com Tenório (2001, p. 75):
Combater as internações, portanto, significa superar uma situação em que elas são o recurso prioritário, senão único, de tratamento, atendem a interesses tanto de segregação social da diferença quanto de enriquecimento privado e não correspondem a nenhum investimento de desejo e terapêutica. Em outras palavras, superar uma situação em que internação é rotina e destino e reduzi-la a um recurso eventualmente necessário, sobretudo, investido de desejo de tratamento por parte da equipe, que se implica responsavelmente nesse ato.
Por isso, a reabilitação psicossocial é um dos pilares da Reforma Psiquiátrica, pois é
uma estratégia global, a qual culmina em uma alteração total e legítima de toda a política de
atenção em saúde mental. (SARACENO 2001 apud MUSSE 2009, p. 97).
Para a OMS (2002, p. 116 apud Musse, 2009, p. 97):
A reabilitação psicossocial é um processo que oferece aos indivíduos que estão debilitados, incapacitados ou deficientes, devido à perturbação mental, a oportunidade de atingir o seu nível potencial de funcionamento independente na comunidade. Envolve tanto o incremento de competências individuais como a introdução de mudanças ambientais (OMS, 1995). A reabilitação psicossocial é um processo abrangente, e não uma técnica.
Tenório (2001, p. 54) também destaca que o paradigma da reabilitação psicossocial
além de ter “um caráter pedagógico e de educação para a vida social, ela traz para o primeiro
plano a questão da existência: tratar e ajudar a recuperar a competência social”.
Portanto, com vistas à emancipação e autonomia do usuário com transtorno mental,
inclusive, incluindo o sofrimento psíquico decorrente do uso abusivo de entorpecentes,
diferentes estratégias como redes de reabilitação, reabilitação educacional, profissional,
emprego, moradia e apoio social podem surgir a partir da reabilitação psicossocial. (MUSSE,
2009). Como Lobosque (1997) aponta, trata-se de um movimento em prol da cidadania.
Sendo assim, com base em estratégias focadas na prevenção, na saúde pública e com
vistas à reabilitação psicossocial, novos modelos de controle de drogas estão sendo criados e
serão expostos no tópico seguinte.
2.2 Modelos Antiproibicionistas
Esta sessão refere-se aos vários modelos antiproibicionistas criados em contraposição
ao modelo proibicionista. Neste trabalho serão abordados somente os principais modelos já
que os limites deste impossibilitam uma discussão mais rebuscada acerca de todas as linhas
antiproibicionistas.
Deve-se frisar que independentemente da estratégia utilizada para o controle sobre
drogas, tal medida deve estar moldada em situações concretas e consoante às diferentes
culturas e sociedades.
Para Rodrigues (2006), ao focar na repressão e no uso do direito penal como força
coercitiva, o proibicionismo, cujo fundamento é moral e simbólico deixa de lado a proteção da
saúde pública (RODRIGUES, 2006).
Conforme apontado na sessão 2.1, ao mesmo tempo em que o proibicionismo atingiu
seu ápice nos anos 80, o consumo e a produção de entorpecentes ilícitos aumentaram
profundamente desencadeando danos a saúde publica cada vez mais alarmantes decorrentes
do uso de drogas sem controle sanitário e prevenção adequados (RODRIGUES, 2006).
Em contraste ao modelo proibicionista, novas estratégias de controle às drogas estão
sendo implantadas na maioria dos países europeus. Por se tratarem de substâncias que
provocam alterações de humor, bem como podem ser causadoras de dependência e, inclusive,
podem acarretar riscos concretos à saúde pública e individual, torna-se desafiador estabelecer
um modelo alternativo e viável de controle às drogas7.
Rodrigues (2006) defende o controle médico-sanitário sobre as drogas por meio da
prevalência de uma estratégia com foco na prevenção e na saúde pública, em oposição à visão
exclusivamente repressiva, policial e militar do proibicionismo.
Ademais, dispor de um modelo que pretenda respeitar os direitos e liberdades
individuais e, ao mesmo tempo, salvaguardar os interesses sociais se faz necessário em face
das consequências do modelo proibicionista.
Para Rodrigues (2006), faz-se necessário uma nova perspectiva ou uma política
criminal sobre drogas alternativa para abarcar esse polêmico tema, o que compreende
questões sociais, morais, econômica, jurídicas, médicas e sanitárias.
7 Como foi mostrado na sessão 2.1, de acordo com a ONU (2011, p.2), “é urgente e imperativa uma revisão completa das leis e políticas de controle de drogas no plano nacional e mundial”.
Nessa linha, são diversos os modelos antiproibicionistas ou alternativos e as
mais variadas propostas de acordo com Rodrigues (2006). A autora define “alternativo” em
sentido amplo:
[...] como estratégias que apresentam instrumentos críticos e soluções alternativas de controle social com o objetivo de diminuir o impacto do sistema penal, reduzir seu alcance punitivo, ou acabar com qualquer tipo de controle. (RODRIGUES, 2006, p. 81).
Para reduzir as consequências adversas do consumo de drogas, as estratégias de
prevenção norteiam princípios relacionados à saúde, aspectos sociais e econômicos. Enfatiza-
se a prevenção e o tratamento voluntário dos usuários de drogas, incluindo as drogas lícitas
(cigarro, álcool e medicamentos).
Reduz-se, assim, o alcance do direito penal na medida em que se ratificam as
clássicas considerações sobre o fracasso da prisão, além do alto custo de manutenção da
mesma (RODRIGUES, 2006).
Com a desnecessidade de encarceramento do usuário e a importância de se
concentrarem esforços a fim de aumentar a repressão ao grande tráfico, esses modelos
intermediários justificam-se por razões econômicas e vem sendo seguidos pela maioria dos
países europeus.
Nesse sentido, Rodrigues (2006) destaca que:
[...] essas medidas vêm como consequência da crítica aos efeitos danosos da prisão, e do reconhecimento de seu caráter criminógeno, em especial quando envolve condenados primários e especialmente usuários de droga, muito embora ainda mantenha a essência das características repressivas do controle penal de drogas (RODRIGUES, 2006, p. 83).
Sendo assim, as estratégias alternativas variam entre modelos que vão desde a
despenalização do usuário, que pouco altera a estrutura de controle penal, à descriminalização
deste, estratégia mais ousada por envolver a retirada de determinadas condutas do rol de
crimes.
Adiante se situam algumas condutas ligadas ao comércio de drogas, como é o caso
da Holanda, que toca dois pontos marcantes: o comércio e o cultivo8 de cannabis
8 Consoante Rodrigues (2006), a cultura da cannabis para finalidades industriais no Estados Unidos é legal em seis estados: Arkansas, Califórnia, Kansas, North Dakota, Vermont e o Estado de Washington, sendo que quatorze estados admitem o uso médico da cannabis: Alaska, Arizona, Califórnia, Colorado (o texto da lei é contestado), Connecticut, Flórida, Geórgia (o texto não é aplicado), Louisiana, New Hampshire, Nevada, Oregon, Vermont, Estado de Washington, Washington DC (o texto está bloqueado pelo Congresso).
(RODRIGUES, 2006). Mesmo mantidos na lei como crime o uso, a venda e plantio de
cannabis não geram punição.
Rodrigues (2006) observa que a tendência europeia é bem marcada no sentido de dar
um tratamento menos repressivo a drogas tidas como “leves”9, comparativamente às demais,
como cannabis e seus derivados.
Nesse diapasão, Rodrigues (2006) esclarece que a diferença entre drogas leves e
drogas pesadas é obsevada na legislação dos países: Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha,
Holanda, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Reino Unido e Portugal.
Essa tendência de tolerância europeia prima três aspectos: acesso a erva para
finalidade terapêutica, fim da perseguição policial ao usuário e a permissão do cultivo em
residências.
Nesse sentido, Rodrigues (2006) mostra em seu trabalho que a maconha tem sido
descriminalizada na maioria dos países europeus, dentre eles, destacam-se Portugal, Espanha,
Itália, Bélgica, Irlanda, Luxemburgo e, recentemente, o Reino Unido, que desclassificou a
cannabis.
De acordo com a ONU (2011), despenalizar o plantio de cannabis, droga ilícita mais
consumida mundialmente, constitui outra experiência única de regulamentação. Esta
estratégia afasta os consumidores de drogas leves do mercado ilícito.
Esta alternativa calca-se no pressuposto de que se os consumidores forem
autorizados a plantar a cannabis para uso próprio, além de afastar o usuário do mercado
ilícito, se estará reduzindo o lucro do traficante, que explora o risco da proibição.
Consoante essa autora, ressalte-se que a retirada do uso do direito penal no que tange
ao consumo, porte e plantio devem vir acompanhadas pela implementação de “políticas de
redução de danos, campanhas de esclarecimento e de prevenção, devendo ser disponibilizado
ao usuário gratuitamente o acesso a serviços de saúde e ao tratamento da dependência”
(RODRIGUES, 2006).
Dos países europeus ocidentais, Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Holanda,
Irlanda, Reino Unido e Suíça despenalizaram o uso e a posse de drogas, enquanto que Itália,
9 De acordo com Rodrigues (2006), a Opium Act é a principal lei de drogas da Holanda, que sofreu algumas modificações até 1976, quando entrou em vigor a lei atual. A principal alteração foi a introdução na lei da distinção entre drogas “leves” e “pesadas”, seguindo as sugestões de um grupo de trabalho formado por experts
do governo, que propôs a introdução de uma “escala de risco”, baseada em dados médicos, farmacológicos, sociológicos e psicológicos. A Lei de 1976 distingue entre drogas que apresentam “riscos inaceitáveis” oficialmente chamadas de drogas pesadas, e os produtos relacionados a cannabis (considerados como drogas leves) (RODRIGUES, 2006). A posse de quantidade “de usuário” é tratada de forma diferenciada da posse com intenção de venda da droga, de acordo com a quantidade. O Opium Act Directive indica as linhas a serem seguidas pela polícia, pelo Ministério Público e pelos juízes na sentença, de acordo com o tipo ou a quantidade de substâncias (RODRIGUES, 2006).
Espanha e Portugal foram mais além e descriminalizaram a mesma conduta.
(RODRIGUES, 2006). Diante disso, esta autora destaca que:
A descriminalização de todos os tipos de drogas hoje é uma realidade em Portugal,
Itália e Espanha; enquanto que Bélgica, Irlanda, Luxemburgo descriminalizaram somente a
maconha, e o Reino Unido recentemente desclassificou a cannabis, cujo usuário passou a ser
controlado apenas pela polícia, sem possibilidade de prisão (RODRIGUES, 2006).
Importante salientar que a despenalização exclui a aplicação da pena privativa de
liberdade. No entanto, mantém-se a aplicação do direito penal e proibição. Já a
descriminalização retira determinada conduta do rol de crimes (RODRIGUES, 2006).
A despenalização configura uma singela oposição ao modelo proibicionista, eis que
os aspectos mais questionáveis deste modelo permanecem, além de continuar atribuindo à
norma uma questionável função simbólica. Além disso, para Ribeiro (2006), não impede a
estigmatização do usuário e do dependente, que continuam em contato com a polícia e com o
sistema judicial, ainda que não cumpram penas com restrição de liberdade.
A descriminalização, por sua vez, traz a retirada do uso e do porte do rol de crime
contrariando a repressão e a violência do sistema penal, e vem de encontro à redução dos
efeitos perversos da criminalização, além dos efeitos secundários do trafico e da
criminalidade.
A perspectiva da descriminalização do usuário é considerada pragmática, humana e
respeitadora das liberdades individuais, e está baseada em fortes argumentos. A
descriminalização do uso, por sua vez, não deixa de ser uma etapa transitória e necessária para
a superação do modelo proibicionista (RIBEIRO, 2006).
Ainda que se crie um sistema liberal em prol do usuário, tal perspectiva não deixa de
ser alvo de críticas, visto que se deixa de lado a problema do tráfico ao passo que o mercado
ilícito da droga é mantido e, sobretudo, trata-se de um fornecimento de mercadoria cujo
consumo é autorizado, em contrapartida não a venda.
No Brasil, apresenta-se um tipo de proibicionismo moderado, com a Lei
11.343/2006, que apresenta distinção entre o usuário, o qual tem sua conduta praticamente
despenalizada e está sujeito a penas que não restringem sua liberdade como prestação de
serviço à comunidade e comparecimento a programa de reeducação, curso ou atendimento
psicológico. Contudo, o traficante permanece com pesadas penas de encarceramento.
Por sua vez, o século XXI, para Rodrigues (2006, p. 167), “marca uma mudança de
rumos na política brasileira de controle de drogas, com a admissão oficial de políticas de
redução de danos”.
Na Espanha, a descriminalização do uso de qualquer droga foi adotada com o
suporte de um controle administrativo sobre algumas condutas consideradas mais graves, e
também por um extenso rol de políticas de redução de danos. Conforme discorre Rodrigues
(2006), “o que a torna um dos mais liberais países europeus em política de drogas, junto a
Portugal, Itália e Holanda”.
Em Portugal, o modelo de descriminação das drogas foi implementado de forma
cautelosa e racional substituindo-se o controle penal por um controle administrativo não
punitivo, fazendo com que tal modelo tem sido considerado hoje como umas das propostas
mais avançadas sobre políticas sobre drogas (RODRIGUES, 2006).
Nesse sentido, no modelo português o controle sobre o uso de drogas foi transferido
para um sistema do tipo administrativo, exercido pela Comissão para a Dissuasão de
Toxicodepenência (CDT), criada especialmente para o processamento de contra-ordenações
específicas de consumo de drogas. Trata-se de um órgão especializado de caráter
interdisciplinar, composto por três membros (sendo um advogado e os outros dois médicos,
assistentes sociais ou psicólogos, apoiados por um grupo de técnicos).
O novo regime aplicável ao consumo de estupefacientes previsto na Lei portuguesa
de 30.11.2000 entrou em vigor em 01.07.01 e descriminalizou o uso e a posse de pequena
quantidade de droga para uso pessoal, que não mais constituem infração penal, mas sim
contra-ordenação10, prevista no art. 2o, n. 1 da referida lei. A proposta de descriminalização
foi realizada com base nos princípios de humanismo, pragmatismo e eficiência (RIBEIRO,
2006).
Nesse sentido, os usuários de drogas podem ser eventualmente multados (entre € 25 e
um total equivalente ao salário mínimo nacional), todavia esse sistema só será utilizado em
último recurso. Via de regra, na ausência de sinais de dependência, sendo desnecessária outra
ação (ajuda psicológica, por exemplo). Caso o uso seja manifestamente ocasional, a
imposição da multa é suspensa e a pessoa é colocada em probation por certo período.
No caso de delitos subsequentes, uma multa ou outra medida administrativa
coercitiva pode ser imposta aos usuários. Entretanto, se a pessoa é dependente, a lei exige que
o caso seja referido aos serviços de saúde ou de serviço social.
Todas essas medidas implementadas em diversos países apresentaram-se como forma
de apaziguar os efeitos causados pelo controle proibicionista. Todavia, mesmo que o usuário
tenha sido afastado do controle penal, o problema do tráfico de drogas, a lavagem de dinheiro
10 Consoante Ribeiro (2006), o sistema das contra-ordenações é previsto em Portugal, na Alemanha e na Áustria. No direito português, configura um ilícito de mera ordenação social, que se situa entre o direito penal
e a corrupção ainda não foram solucionados, eis que a questão da venda e do mercado de
drogas não sofreram modificações.
No próximo capítulo, serão discutidos temas relevantes acerca das atuais políticas
públicas brasileiras relacionadas a usuários de álcool e droga, os novos planos de
enfrentamento ao crack e outras drogas e a internação compulsória.
e administrativo, e sujeita o autor do ato à aplicação de uma coima, que possui características próprias e se diferencia tanto da pena criminal, como da multa, administrativa ou penal.
Capítulo 3– DAS POLÍTICAS DE SAÚDE PARA A ATENÇÃO INTEGRAL A
USUÁRIOS DE DROGAS
Imersas em um universo de possibilidades de atuação, as políticas de saúde para
atenção integral a usuário de drogas vem tomando rumos divergentes no Brasil de sorte que
diretrizes relacionadas à desinstitucionalizacao e a ideologia anti-manicomial contrastam com
recentes medidas que demonstram um imenso retrocesso na reforma psiquiátrica brasileira.
Nesse capítulo, primeiramente, serão delineados tópicos relacionados os Planos
Nacional e Distrital de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas. Lançados pelo Programa
Nacional de Combate ao Crack, tais Planos citam a internação compulsória em instituições
privadas como meio de tratamento de dependentes químicos e, logo, serão apresentados
adiante.
A seguir, com profundo esmero, percorrem desde a compreensão da internação
compulsória e suas minúcias ao entendimento acerca do processo de desinstitucionalizacao,
que perpassa a concepção de um modelo de atenção a usuários de entorpecentes aberto, com
direito a cidadania com que propõe a autonomia do sujeito.
Para isso, serão trazidos alguns componentes da atual política de saúde, bem como
seus mecanismos e estratégias de atuação. E, sendo assim, o tópico derradeiro é pautado nos
direitos humanos e na cidadania, haja vista a atenção e o cuidado voltados a não violação de
direitos que possam viabilizar o tratamento.
3.1 Dos Planos de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas
No final de 2011, o Ministério da Saúde lançou o Plano Integrado de Enfrentamento
ao Crack e Outras Drogas, que terá como ações voltadas ao atendimento do dependente
químico e a seus familiares, o combate ao tráfico de drogas e a prevenção ao uso dessas
substâncias.
A responsabilidade também será compartilhada com estados e municípios que terão o
compromisso de oferecer apoio. Adiante, serão expostos o Plano Integrado de Enfrentamento
ao Crack, criado pelo Governo Federal, e o Plano Distrital de Enfrentamento ao Crack e
outras Drogas, produzido pelo Governo do Distrito Federal.
3.1.1 Do Plano Integrado de Enfrentamento ao crack -Decreto n° 7.637, de 2011
Criado pelo Governo Federal, o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack foi
instituído pelo decreto n° 7.637, de 8 de dezembro de 2011, que altera o decreto n° 7179, de
20 de maio de 2010 e visa a prevenção do uso, o tratamento e a reinserção social de
usuários, além do enfrentamento do tráfico de crack e outras drogas ilícitas (BRASIL, 2011).
Como fundamento11, o que o Plano de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas
prevê, de acordo com (BRASIL, 2011) a integração e articulação permanente entre as
políticas e ações de saúde, assistência social, segurança pública, educação, desporto, cultura,
direitos humanos, juventude, entre outras, em consonância com os pressupostos, diretrizes e
objetivos da Política Nacional sobre Drogas.
Portanto, observa-se que o Plano de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas entra
em harmonia com a Política Nacional sobre Drogas. A partir disso, aduz-se a ideia de que
haverá um tratamento igualitário, digno e humanitário dos usuários de crack e outras drogas,
em alusão aos pressupostos da Política Nacional sobre Drogas. Assim, de acordo com o
CONSELHO NACIONAL SOBRE DROGAS- CONAD (2005) são pressupostos, dentre
outros:
- Reconhecer as diferenças entre o usuário, a pessoa em uso indevido, o dependente e o traficante de drogas, tratando-os de forma diferenciada. - Tratar de forma igualitária, sem discriminação, as pessoas usuárias ou dependentes de drogas lícitas ou ilícitas. - Buscar a conscientização do usuário e da sociedade em geral de que o uso de drogas ilícitas alimenta as atividades e organizações criminosas que têm, no narcotráfico, sua principal fonte de recursos financeiros. - Garantir o direito de receber tratamento adequado a toda pessoa com problemas decorrentes do uso indevido de drogas. - Não confundir as estratégias de redução de danos como incentivo ao uso indevido de drogas, pois se trata de uma estratégia de prevenção. - Reconhecer a corrupção e a lavagem de dinheiro como as principais vulnerabilidades a serem alvo das ações repressivas, visando ao desmantelamento do crime organizado, em particular do relacionado com as drogas (CONAD, 2005, p. 1).
Embora seja previsto o tratamento igualitário, adequado e sem discriminação nos
pressupostos da Política Nacional sobre Drogas, de acordo com o noticiado pela mídia, o
tratamento dado por parte da segurança pública aos moradores de rua em situação de
drogadição no Rio de Janeiro e em São Paulo, após a criação desse Plano, não partiu de tais
premissas, visto que a violência empregada e a discriminação foram visíveis e excessivas.
Ademais, o CONAD (2005) elenca alguns objetivos descritos na Política Nacional
sobre Drogas:
- Conscientizar a sociedade brasileira sobre os prejuízos sociais e as implicações negativas representadas pelo uso indevido de drogas e suas consequências. - Educar, informar, capacitar e formar pessoas em todos os segmentos sociais para a ação efetiva e eficaz de redução da demanda, da oferta e de danos, fundamentada em
11 Retirado do Decreto n° 7.179/10, art. 1°, § 2°, que trata sobre o fundamento do Plano de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas.
conhecimentos científicos validados e experiências bem-sucedidas, adequadas à nossa realidade.
- Conhecer, sistematizar e divulgar as iniciativas, ações e campanhas de prevenção do uso indevido de drogas em uma rede operativa, com a finalidade de ampliar sua abrangência e eficácia. - Implantar e implementar rede de assistência integrada, pública e privada, intersetorial, para pessoas com transtornos decorrentes do consumo de substâncias psicoativas, fundamentada em conhecimento validado, de acordo com a normatização funcional mínima, integrando os esforços desenvolvidos no tratamento (CONAD, 2005, p. 3)
É importante frisar que a integração entre as redes de assistência pública e privada
está elencada na Política Nacional sobre Drogas. Partindo daí, observa-se que tal precedente
ressalta a discussão sobre a participação de entidades privadas no tratamento de usuários de
drogas, devido ao criticado tratamento “especializado” dado aos internos e aos interesses
econômico-financeiros provenientes da permanência dos usuários em suas instalações, dentre
outros.
Retomando o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, segundo
BRASIL (2011) são objetivos elencados no artigo 2°, incisos de I até VI, do referido Plano:
I - estruturar, integrar, articular e ampliar as ações voltadas à prevenção do uso, tratamento e reinserção social de usuários de crack e outras drogas, contemplando a participação dos familiares e a atenção aos públicos vulneráveis, entre outros, crianças, adolescentes e população em situação de rua; II - estruturar, ampliar e fortalecer as redes de atenção à saúde e de assistência social para usuários de crack e outras drogas, por meio da articulação das ações do Sistema Único de Saúde - SUS com as ações do Sistema Único de Assistência Social - SUAS; III - capacitar, de forma continuada, os atores governamentais e não governamentais envolvidos nas ações voltadas à prevenção do uso, ao tratamento e à reinserção social de usuários de crack e outras drogas e ao enfrentamento do tráfico de drogas ilícitas; IV - promover e ampliar a participação comunitária nas políticas e ações de prevenção do uso, tratamento, reinserção social e ocupacional de usuários de crack e outras drogas e fomentar a multiplicação de boas práticas; V - disseminar informações qualificadas relativas ao crack e outras drogas; e VI - fortalecer as ações de enfrentamento ao tráfico de crack e outras drogas ilícitas em todo o território nacional, com ênfase nos Municípios de fronteira. (BRASIL, 2011, p. 1)
É de se ver que no inciso I deste artigo está prescrita a atenção aos públicos
vulneráveis como crianças, adolescentes e população em situação de rua. Tratando-se desses
grupos, a vulnerabilidade é um fator importante a ser considerado, pois há características que
podem induzir ao consumo de drogas como, por exemplo, a falta de presença familiar e de
recursos primários de subsistência.
Ao se tratar das ações que compõem o Plano de Enfrentamento ao Crack e outras
Drogas, as quais se dividem em ações imediatas e estruturantes, estão descritas no art. 5°,§1°
as ações imediatas, como ampliar o número de leitos para o tratamento de usuários de drogas
e a rede de assistência social voltada ao acompanhamento sócio-familiar:
Art. 5 O Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas será composto por ações imediatas e estruturantes. § 1o As ações Imediatas do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas contemplam: I - ampliação do número de leitos para tratamento de usuários de crack e outras drogas; II - ampliação da rede de assistência social voltada ao acompanhamento sóciofamiliar e à inclusão de crianças, adolescentes e jovens usuários de crack e outras drogas em programas de reinserção social; III - ação permanente de comunicação de âmbito nacional sobre o crack e outras drogas, envolvendo profissionais e veículos de comunicação; IV - capacitação em prevenção do uso de drogas para os diversos públicos envolvidos na prevenção do uso, tratamento, reinserção social e enfrentamento ao tráfico de crack e outras drogas ilícitas; V - ampliação das ações de prevenção, tratamento, assistência e reinserção social em regiões de grande vulnerabilidade à violência e ao uso de crack e outras drogas, alcançadas por programas governamentais como o Projeto Rondon e o Projovem; VI - criação de sítio eletrônico no Portal Brasil, na rede mundial de computadores, que funcione como centro de referência das melhores práticas de prevenção ao uso do crack e outras drogas, de enfrentamento ao tráfico e de reinserção social do usuário; VII - ampliação de operações especiais voltadas à desconstituição da rede de narcotráfico, com ênfase nas regiões de fronteira, desenvolvidas pelas Polícias Federal e Rodoviária Federal em articulação com as polícias civil e militar e com apoio das Forças Armadas; e VIII - fortalecimento e articulação das polícias estaduais para o enfrentamento qualificado ao tráfico do crack em áreas de maior vulnerabilidade ao consumo. (BRASIL, 2011, p. 1)
Nesse sentido, nota-se que todas as ações imediatas norteiam a prevenção do uso e o
tratamento dos usuários de drogas. Contudo, é de suma importância analisar a situação em que
os usuários de crack e outras drogas se encontram.
Por exemplo, aqueles em situação de rua, um segmento social específico que
costuma ser isolado e esquecido que necessitam de políticas que norteiem âmbitos que vão
além das drogas.
Então, é preciso reconhecer que o enfrentamento ao crack incide também na luta
contra desigualdade social e privação de direitos como concerne o CFP (2011):
(...) faz-se igualmente urgente a ampliação de ofertas de acesso a direitos como educação, moradia, assistência social, trabalho e cultura, entre outros, recursos potentes na busca da redução da demanda por drogas, eixo de atuação de uma política pública consistente de tratamento desta questão (CFP, 2011, p. 194).
Portanto, necessidades fisiológicas (básicas) relacionadas com alimentação, abrigo,
excreção, sono e repouso se apresentam como a base da hierarquia das necessidades humanas
(MASLOW, 1954).
Quando as necessidades não são realizadas, sobrevém a frustração do indivíduo,
o que implica em várias atitudes que o indivíduo poderá assumir como agressividade, moral
baixo, resistência à modificação, passividade, má vontade e etc.
O interessante é que, caso as situações descritas acima não sobrevenham, o indivíduo
não permanecerá eternamente frustrado. Assim sendo, de alguma maneira a necessidade será
transferida ou compensada (MASLOW, 1954). Nesse caso, uma das possíveis formas de
transferência ou compensação é através do uso de drogas.
Isso quer dizer que o recurso às drogas é entendido como uma resposta possível do
sujeito ao mal-estar que é inerente tanto ao processo de formação das sociedades e culturas
como também à própria constituição psíquica do ser humano (FREUD, 1930/1996 apud
RIBEIRO, 2009).
Noutra vertente, expostas no §2°, incisos I à IX do referido art. 5°, se apresentam as
ações estruturantes do Plano de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas que contemplam:
I - ampliação da rede de atenção à saúde e assistência social para tratamento e reinserção social de usuários de crack e outras drogas; II - realização de estudos e diagnóstico para o acúmulo de informações destinadas ao aperfeiçoamento das políticas públicas de prevenção do uso, tratamento e reinserção social do usuário e enfrentamento do tráfico de crack e outras drogas ilícitas; III - implantação de ações integradas de mobilização, prevenção, tratamento e reinserção social nos Territórios de Paz do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania - PRONASCI, e nos territórios de vulnerabilidade e risco; IV - formação de recursos humanos e desenvolvimento de metodologias, envolvendo a criação de programa de especialização e mestrado profissional em gestão do tratamento de usuários de crack e outras drogas; V - capacitação de profissionais e lideranças comunitárias, observando os níveis de prevenção universal, seletiva e indicada para os diferentes grupos populacionais; VI - criação e fortalecimento de centros colaboradores no âmbito de hospitais universitários, que tenham como objetivos o ensino, a pesquisa e o desenvolvimento de metodologia de tratamento e reinserção social para dependentes de crack e outras drogas; VII - criação de centro integrado de combate ao crime organizado, com ênfase no narcotráfico, em articulação com o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia - CENSIPAM, com apoio das Forças Armadas; VIII - capacitação permanente das polícias civis e militares com vistas ao enfrentamento do narcotráfico nas regiões de fronteira; e IX - ampliação do monitoramento das regiões de fronteira com o uso de tecnologia de aviação não tripulada. (BRASIL, 2011, p. 1)
Logo, nota-se que ampliar o número de leitos para tratamento de usuários de crack e
drogas é descrita como uma medida imediata. A portaria n º 121, de 31 de janeiro de 2012,
regulamenta o Serviço Hospitalar de Referência para atenção aos usuários de crack e outras
drogas e no artigo 6º trata sobre leitos:
Art. 6º A configuração do Serviço Hospitalar de Referência para atenção a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas observará os seguintes parâmetros: I - no caso de até 10 (dez) leitos implantados, o Serviço Hospitalar de Referência
para atenção a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de
crack, álcool e outras drogas poderá funcionar em: a) leitos de clínica médica qualificados para o atendimento destinado a pessoas adultas em sofrimento ou transtorno mental e com necessidades de saúde decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas; ou b) leitos de pediatria qualificados para o atendimento destinado a crianças e adolescentes em sofrimento ou transtorno mental e com necessidades de saúde decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas; II - no caso de mais de 10 (dez) leitos implantados, o Serviço Hospitalar de Referência para atenção a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas funcionará em enfermaria especializada destinada ao atendimento de pessoas em sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas (BRASIL, 2012, p. 1).
Por fim, e não menos importante, o art. 7°-A dispõe sobre a possibilidade de serem
firmados convênios, contratos de repasse, termo de cooperação, dentre outras formas de
vínculo, entre entidades privadas e órgãos e entidades da administração pública federal, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, confira-se, de acordo com (BRASIL, 2011):
Art. 7o-A. Para a execução do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas poderão ser firmados convênios, contratos de repasse, termos de cooperação, ajustes ou instrumentos congêneres com órgãos e entidades da administração pública federal, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com consórcios públicos ou com entidades privadas. (Incluído pelo Decreto nº 7.637, de 2011) (BRASIL, 2011, p. 1)
Ao possibilitar o vínculo entre entidades públicas e privadas, esse artigo é alvo de
duras críticas dos conselhos, movimentos sociais, militantes, entre outros, ao Plano de
Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, pois ao ensejar tal discricionariedade abre-se espaço
para clínicas particulares que lucram com a permanência do usuário e não com a sua
recuperação.
Além disso, o repasse de dinheiro público para essas entidades privadas, nomeadas
comunidades terapêuticas, também é motivo de repúdio por ser uma forma de privatização da
saúde pública ao utilizar verbas públicas em entidades sem transparência.
3.1.2 Do Plano Distrital de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas -Decreto n° 33.164
de 2011
Instituído pelo Decreto n° 33.164, de 31 de agosto de 2011, o Plano de Distrital de
Enfrentamento ao Crack e outras Drogas visa à prevenção, ao tratamento e à reinserção social
de usuários de drogas e ao enfrentamento do tráfico de crack e outras drogas ilícitas.
(DISTRITO FEDERAL- DF, 2011).
De acordo com o art. 1° §1°, o Plano tem por fundamento “[...] a integração e a
articulação permanente entre as políticas e ações de saúde, assistência social, segurança
pública, educação, desporto, diretrizes e objetivos da Política Distrital sobre Drogas”
(DF, 2011, p. 5).
Os objetivos previstos no art. 2° do Plano Distrital de Enfrentamento ao Crack e
outras Drogas, prevêem diversas ações:
Art. 2º São objetivos do Plano Distrital de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas: I - estruturar, integrar, articular e ampliar as ações voltadas à prevenção do uso, ao tratamento e à reinserção social de usuários de crack e outras drogas ilícitas, contemplando a participação dos familiares e a atenção aos públicos vulneráveis, como crianças, adolescentes e população em situação de rua; II - estruturar, ampliar e fortalecer as redes de atenção à saúde e de assistência social para usuários de crack e outras drogas ilícitas, por meio da articulação das ações do Sistema Único de Saúde - SUS com as ações do Sistema Único de Assistência Social - SUAS; III - capacitar, de forma continuada, os gestores governamentais e não governamentais envolvidos nas ações voltadas à prevenção do uso, ao tratamento e à reinserção social de usuários de crack e outras drogas ilícitas e ao enfrentamento do tráfico de drogas ilícitas; IV - promover e ampliar a participação comunitária nas políticas e ações de prevenção do uso, de tratamento, de reinserção social e ocupacional de usuários de crack e demais drogas ilícitas e fomentar a multiplicação de boas práticas; V - disseminar informações qualificadas relativas ao crack e outras drogas ilícitas; VI - fortalecer as ações de enfrentamento ao tráfico de crack e outras drogas ilícitas no Distrito Federal e Região Integrada de Desenvolvimento do Entorno - RIDE; e VII - promover a articulação de ações do Governo Federal e do Governo do Distrito Federal com ações dos Governos Estaduais e Municipais que compõem a RIDE (DF, 2011, p.6).
As ações presentes no Plano Distrital de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas
abrangem medidas de prevenção, tratamento/reinserção social, capacitação, mobilização
social, pesquisa e redução da oferta. Tais medidas estão dispostas em quadros no Anexo I do
referido Plano, de acordo com o art. 4° do Plano12.
De acordo com o DF (2011), estão apresentadas ações de prevenção ao uso de Crack
e outras Drogas. Dentre elas, estão descritas:
(...) a implementação de projetos, como o Projeto Viva a Vida! Droga Comigo Não Rola e projetos de arte e cultura, o fortalecimento e ampliação do projeto Picasso Não Pichava e do Projeto Esporte à Meia Noite, projetos para o sistema socioeducativo e de atenção integral à saúde, além da realização de palestras e oficinas, elaboração e veiculação de campanhas, ampliação de ações preventivas, dentre outros (DF, 2011, p.6).
Ademais, são apresentadas ações que visam o tratamento/reinserção do usuário de
crack e outras drogas, dentre outras, segundo (DF, 2011):
[...] a implementação de Consultórios de Rua, de equipes das Escolas de Redutores de Danos, implementação de projetos de tratamento, abertura de novos Centros de
12 Decreto n° 33.164, de 31 de agosto de 2011-Art. 4º As ações a serem desenvolvidas estão expressas no Anexo
I, sem prejuízo de outras que se mostrem necessárias ao longo da implantação do Plano Distrital de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas (DF, 2011).
Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas- Caps AD, abertura de Casas de Acolhimento Transitório
para adultos, crianças e adolescentes, Centros de Referência em Assistência social – Cras e para População em Situação de Rua.
Seguindo conforme Anexo I do Plano Distrital, cujas ações estão voltadas para a
capacitação de pessoal sobre Álcool e outras Drogas, há a realização de cursos de
Especialização, capacitação para educadores, palestrantes e monitores de Comunidades
Terapêuticas, bem como a implementação do Centro Regional de Referência (DF, 2011).
Ainda, estão presentes ações que se destinam à mobilização social, que englobam, de
acordo com (DF, 2011):
(...) o I Seminário Direitos da Criança e do Adolescente X Enfrentamento do Crack e outras Drogas Ilícitas, o I Seminário de Avaliação de Ações sobre Drogas Ilícitas, o I Fórum Distrital sobre Drogas Ilícitas e, dentre outras, o I Encontro da Rede de Redução da Demanda por Drogas do Distrito Federal.
Abrir espaços para discussão e debate sobre um tema tão polêmico quanto às drogas
é de suma importância visto a precariedade do sistema de saúde mental do DF e o aumento
anual de consumo de drogas pela sociedade. O movimento de ideias pode trazer mudanças em
paradigmas previamente estabelecidos e provocar a reflexão sobre as atuais políticas sobre
drogas.
Consoante (DF, 2011, p.7), expõe-se ações sobre pesquisas, dentre outras:
(...) a realização de pesquisa para avaliar as metodologias utilizadas no tratamento e reinserção social dos usuários de crack e outras drogas ilícitas no DF, a realização de estudo epidemiológico do uso de crack e outras drogas no DF e entorno, o mapeamento e georreferenciamento das cenas de uso de drogas no DF e entorno.
Nesse sentido, uma pesquisa que traga a tipificação de usuários de crack alvo das
ações emergenciais e não baseada na segregação social provocada pelo uso do crack e outras
drogas é essencial. Baseado nisso, conforme o MS (2010):
É imprescindível contar com essa tipificação das pessoas que usam crack, não no sentido de criar categorias diagnósticas, mas de construir estratégias intersetoriais diversificadas para um problema de complexidade tão mutante. A rede não pode ser construída sob o teto do imaginário social e sem a consideração de uma diversidade de padrão. Os usuários disfuncionais e em condição de extrema vulnerabilidade pessoal e social (por se encontrarem, na maior parte das vezes, em situação de rua), num processo de ampla ruptura das relações sociais e com pouco acesso ao cuidado constituem hoje um grupo de 15 a 25 mil pessoas. Por outro lado, a população de usuários de crack é de 0,1% a 0,2% da população geral (CEBRID, 2005 apud MS, 2010, p. 7).
Outrossim, ainda estão previstos o credenciamento de Comunidades Terapêuticas
que atendam a dependentes químicos, visando a oferta de leitos de internação prolongada (até
12 meses) e a abertura de leitos em hospitais gerais para atendimento de dependentes
químicos em programas de reabilitação (DF, 2011).
Como se vê, consta o credenciamento para participação de Comunidades
Terapêuticas no tratamento de usuários de crack e outras drogas em consonância ao Plano
Nacional Integrado de Enfrentamento ao Crack.
Assim sendo, encaminhar um sujeito já desintoxicado para internação prolongada é
um desafio muito grande para a equipe de atendimento e para quem organiza tais serviços de
tratamento prolongado, pois se não forem serviços bem montados, com boa estrutura predial,
fatalmente levará a revolta e possivelmente fuga do local de tratamento.
No próximo tópico, será debatida a questão da internação compulsória no tratamento
de usuário de drogas, principalmente, o crack, haja vista a repercussão dessas internações
gerada pela mídia, pela sociedade e por diversos atores sociais preocupados com o tema.
3.2 Da Internação Compulsória
Tratar sobre esse assunto suscita em fortes dissidências que estimulam o debate e a
discussão. Em primeiro lugar, devem-se diferenciar as três possibilidades de internação
psiquiátrica de usuários de drogas.
De acordo com a Lei 10216/01, a internação voluntária se dá com o consentimento
do usuário. A internação involuntária é pedida por terceiros, mas sem o consentimento do
usuário. Por último, a internação compulsória é aquela que é determinada pela Justiça.
De fato, tal acolhimento transpassa o direito à liberdade do indivíduo tendo em vista
que o mesmo não é um direito absoluto. Nessa égide, o direito coletivo prevalece ao
individual, seja no âmbito da saúde pública, seja à segurança pública (Seminário, 2012).
Conforme José Theodoro Correia, promotor do Ministério Público do DF e
Territórios e palestrante no Seminário do Conselho Regional de Psicologia CRP-01
Dependência Química em Debate (2012), ressalta-se que essa medida de acolhimento
compulsório só deve ocorrer em casos extremos, ou seja, somente quando um psiquiatra
indicar que não há outra medida.
Esse entendimento é aceito em outros setores do governo. Como coloca Joao Netto
(2012), o diretor de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do DF, Augusto César Farias,
afirma que a internação compulsória é assegurada pela lei. No entanto, ao invés da internação
maciça, deve haver um projeto amplo para cuidar de dependentes químicos.
No mesmo sentido, o mesmo autor acrescenta que o subsecretário de Políticas sobre
Drogas, Mario Gil Guimarães, afirma que a medida não pode ser apenas um mero instrumento
de varredura social. De acordo com ele, o posicionamento do Governo do Distrito Federal
(GDF) é que cada caso seja tratado individualmente e que deve ser multidisciplinar o
atendimento ao usuário.
Nota-se que, em larga escala, não há intenção declarada do Poder Executivo local em
internar compulsoriamente indivíduos com dependência química, especialmente usuários de
crack.
Nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo essa prática tem sido aplicada
frequentemente, o que tem levantado polêmica (NETTO, 2012). O público alvo desses
acolhimentos compulsórios são moradores de rua em situação de pobreza.
Para Carneiro (2009), a desigualdade social vai além do comportamento dos sujeitos,
das relações estabelecidas e do tratamento que é destinado aos pobres, invisíveis sociais.
Essa invisibilidade pública, como destaca Costa (2004 apud CARNEIRO, 2009, p.
11) desponta como “um fenômeno psicossocial, definido como o desaparecimento de um
homem entre outros homens”.
O mesmo autor discorre que o resultado desse processo de humilhação social é a
invisibilidade, construído durantes séculos e sempre determinante no cotidiano dos indivíduos
das classes pobres. Como acrescentam Bandeira e Batista (2002), a pobreza como produto da
dinâmica perversa do sistema socioeconômico acentuou o preconceito com relação ao
estado/condição de ser pobre.
A permanência da desigualdade nos espaços urbanos, traçada por Souza (2003, apud
CARNEIRO, 2009), mostra a dimensão geográfica da desigualdade através da divisão e da
ocupação dos espaços habitados por negros/pobres e brancos/ricos, o que reforça a divisão de
territórios e de indivíduos.
De acordo com o mesmo autor, elucida-se, por conseguinte, o processo histórico
existente entre a casa-grande e a senzala até hoje nos bairros burgueses e favelas/periferias.
Como salienta o Senado Federal (2011), o mercado do crack nasceu rodeado pela
violência do tráfico, agravada pelos efeitos causados pela droga nos consumidores, que se
tornam mais agressivos e vulneráveis. Com isso, veio o surgimento de cracolândias em
grandes centros urbanos, locais de reunião de usuários e traficantes para uso e venda de crack.
Ao mesmo tempo, o preconceito, a discriminação e a exclusão social como forma de
violência afastam o usuário do tratamento e dificultam o acesso dos mais vulneráveis ao
serviço de saúde.
Os efeitos perversos desse processo são conflitos sociais geradores de violência
simbólica e física. Aspectos envolvidos nos relacionamentos sociais decorrentes dessas
diferenças provocam o preconceito e a discriminação como expressões de violência, conforme
Bandeira e Batista (2002).
Sendo assim, ao se falar de usuários de crack, é necessário levar em
consideração aspectos socioeconômicos. Como mostra Uchoa (1996, apud ANDRADE e
CORRÊA, 2011), o valor médio de cada pedra de crack varia entre R$ 5,00 a R$ 20,00, o que
torna elevada a acessibilidade pela droga. Para o Senado Federal (2011), devido ao fato do
Brasil ser rota de tráfico de cocaína e a vulnerabilidade social de grande parte da sociedade o
consumo aumentou.
O dependente químico em condições socioeconômicas desfavoráveis pode criar
possibilidades para obter a droga devido a sua compulsão e ao passageiro efeito do crack
como roubar ou se prostituir (SENADO FEDERAL, 2011). Logo, vê-se o aumento da
violência e da criminalidade com pequenos furtos como resultado da dependência. Assim,
cria-se um clima de tensão e medo constantes no meio urbano (SEMINÁRIO, 2012).
Ademais, a partir do estudo feito por Andrade e Corrêa (2011), intitulado
Caracterização da cultura do crack, acessibilidade e formas de uso nos Centros de Atenção
Psicossocial de álcool e drogas do Distrito Federal, mostrou que o crack já atinge a classe
média, o que provoca uma alarmante veiculação midiática de epidemia social do consumo de
crack.
No que trata da epidemiologia do crack, para o Seminário (2012) e o Fórum (2012), e
o Senado Federal (2011), 1,2% da população brasileira usa ou já pode ter usado o crack, o que
representa 2,3 milhões de brasileiros, sendo que o consumo quase dobrou em quatro anos no
Brasil.
De acordo com Araújo (2011 apud ANDRADE e CORRÊA, 2011), a Polícia Civil
do Distrito Federal (2010) recolheu em 2006 2,90kg da droga, em 2007 562,50kg, em 2008
4.324,64kg, em 2009 11.967kg e em 2010 35.60kg. Para o autor, a curva ascendente retrata
um problema crônico.
Todavia, para o Seminário (2012), o Fórum (2012) e o Senado Federal (2011), o
grande problema de Saúde Pública no Brasil e no Mundo ainda é a dependência do álcool.
Devido ao grande número de consumidores, bem como seus efeitos (2,5 milhões no mundo e,
aproximadamente, 4% das mortes em todo mundo estão associadas ao consumo de álcool,
além de violência, danos físicos e psicológicos) e o aspecto econômico e social da droga.
Conforme o Seminário (2012), não há unanimidade no tratamento de dependentes
químicos. Não há como tratar todos os usuários em um mesmo protocolo. A dependência
química é uma doença biopsicossocial sendo, por conseguinte, multideterminado o processo
de adoecimento.
Por outro lado, a falta de consenso e a desarticulação impedem a expansão do
programa de redução de danos. Para o Senado Federal (2011), o Brasil não se preparou para
tratar seus dependentes. A rede de tratamento é pequena, precária e com poucos
profissionais qualificados.
No Distrito Federal, de acordo com o Seminário (2012), só há doze CAPS ao invés
de quarenta e seis, como consta no Plano Diretor de Saúde Mental. Afinal, quando a rede de
apoio social encontrar-se desestruturada ou descrente da capacidade de ajudar, dificulta-se a
possibilidade de garantir o direito a oferta de serviços que possibilita o tratamento e a
reinserção social.
Para o Seminário (2012) surge a necessidade de se conhecer o que já existe de
aparato para a atenção aos usuários de álcool e outras drogas, de fazer um planejamento sólido
dos próximos passos das políticas públicas e promover a integração à rede.
Nessa linha, os componentes da Rede de Atenção Psicossocial norteiam a Atenção
Básica, que tem várias ferramentas como a Unidade de Saúde, Núcleos de Apoio a Saúde da
Família, Centros de Convivência, Consultórios de Rua e os Centros de Atenção Psicossocial
delineadas no tópico 3.4.
Nesses locais de atenção a saúde a equipe de atendimento procura respeitar a
cidadania dos usuários e trazer formas de inserção social, bem como reunir-se com a família
ou cuidadores para que estes sejam vinculados ao tratamento da dependência do crack.
Ao criar medidas emergenciais privando a liberdade do sujeito e direcionar as verbas
públicas da assistência em saúde mental para entidade privadas, frisa-se que, deve haver o
cuidado de que os danos relacionados a políticas públicas não sejam maiores do que os danos
das drogas em si, conforme o Seminário (2012).
No que cerne a comunidades terapêuticas, que são instituições totais, há um regime
de tratamento médico em que o paciente fica restrito ao serviço de atenção a saúde, sem ter
liberdade de locomoção social (FÓRUM, 2012).
No Distrito Federal, a maioria das comunidades terapêuticas tem práticas sociais de
cunho religioso (SEMINÁRIO, 2012). É importante salientar que o Brasil é um Estado laico,
da mesma forma que o tratamento de usuários de álcool e outras drogas por políticas públicas
deve ser.
Uma Inspeção Nacional nas comunidades terapêuticas, coordenada pela Comissão
Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia- CFP, foi executada em
setembro de 2011, envolvendo os atuais vinte Conselhos Regionais de Psicologia, que
simultaneamente, em 25 unidades federativas do país, inspecionou 68 unidades.
Para o CFP (2011, p. 190):
A maioria dessas práticas sociais adota a opção por um credo, pela fé religiosa, como recurso de
tratamento. Além da incompatibilidade com os princípios que regem as políticas públicas, o caráter republicano e laico delas, esta escolha conduz, inevitavelmente, à violação de um direito: a escolha de outro credo ou a opção de não adotar nem seguir nenhuma crença religiosa. Na prática desses lugares, conforme nos foi relatado, os internos são constrangidos a participar de atividades religiosas, mesmo quando sua crença e fé são outras13.
Consoante o CFP (2011), há poucos profissionais de saúde (médicos, psicólogos,
assistentes sociais, enfermeiros, técnicos de enfermagem) e na maioria dos locais não existem
funcionários, somente religiosos, pastores, obreiros (quase sempre ex-usuários convertidos).
Sendo assim, pode-se afirmar que não há cuidado nem promoção da saúde, mas sim uma
prática social.
Nessa inspeção, observou-se a violação de direitos humanos em todos os relatos.
Interceptação e violação de correspondências, violência física, castigos, torturas, exposição a
situações de humilhação, imposição de credo, exigência de exames clínicos, como o anti-HIV
(exigência esta inconstitucional), intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista
vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras, são ocorrências registradas.
Além de tudo isso, notou-se a ruptura total dos laços afetivos e sociais ou, ainda, no
impedimento de qualquer forma de comunicação com o mundo externo. De acordo com o
CFP (2011, p.11):
Tema (locais de internação para usuários de drogas) que insiste em vincular “tratamento” à noção de castigos ou penas advindos de um ideal normativo que não suporta a transgressão como parte de um devir humano, reduzindo à condição de objeto e privado da cidadania os sujeitos-alvos das ações impostas.
Como discorre o representante da Organização Pan-Americana de Saúde no Fórum
Drogas, Justiça e Redes Sociais (2012) os princípios das políticas de saúde para álcool e
outras drogas devem abranger o direito universal ao tratamento, abordagem singular de cada
caso, o respeito aos direitos humanos e a promoção da inclusão social.
Assim, uma determinada estratégia, como a internação compulsória, não pode se
constituir como a resposta para uma questão tão complexa como o consumo de drogas. No
Seminário (2012) apontou-se que deve haver o cuidado de que os profissionais da Saúde não
se tornem mecanismo de controle social.
13 Frisa-se que, diferentemente, da escolha do sujeito, tais instituições expostas no Relatório do CFP impõe ao interno essa participação em atividades religiosas, o que afronta os direitos humanos. De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada pela ONU, em 1948, no que cerne ao artigo XVIII: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião”.
Ainda, remeteu-se ao modelo psiquiátrico de internação ao salientar que, por
medo e a partir do direito coletivo carregado de amedrontamento e estereotipagem,
aprisionaram-se pessoas.
É preciso que se formulem propostas que orientem a construção de políticas publicas
efetivas e democráticas de tratamento para que não haja o retorno à segregação como modo de
tratar o problema da adição de drogas (CFP, 2011).
Para esse Conselho, a Lei n 10.216 prevê a internação compulsória como medida a
ser adotada por juiz competente, devendo assim fazer parte de um processo judicial, ou seja,
em decorrência da adoção de uma medida de segurança, devido ao cometimento de um ato
infracional pelo usuário. Para o mesmo:
O que se vê na prática, com os usuários de álcool e outras drogas, contraria o disposto na lei, na medida em que introduz a aplicação de uma medida jurídica fora de um processo judicial. É o recurso à lei, o uso do aparato jurídico para segregar e não para mediar as relações do sujeito com a justiça e com a sociedade (CPF, 2011, p. 191).
Como acentua o Seminário (2012), àqueles usuários em situação de pobreza deve
haver a garantia e a construção de políticas públicas mais solidárias e amplas que norteiem
habitação, segurança pública, cultura, trabalho e renda, assistência social.
É papel da Psicologia contribuir para que haja um modelo de políticas públicas sobre
drogas democrático a fim de que atinjam minorias desempoderadas e não norteiem apenas
determinadas classes ou interesses.
Nesse viés, no próximo tópico, será discutido o atual modelo de atenção a usuários
de álcool e outras drogas, que preconizado pelo Ministério da Saúde, tem suas estratégias,
mecanismos e inovações de atuação pautados na Reforma Psiquiátrica.
3.3 Da Atual Política de Atenção a Usuários de Drogas
Nesta sessão, propostas atuais que procuram delinear possibilidades na área da saúde
mental e atenção psicossocial que defendam a construção de uma política de saúde mental
para usuários de álcool e outras drogas serão expostas.
O clássico modelo hospitalar psiquiátrico centralizado na internação entende a crise
como um momento de disfunção grave que acontece somente em decorrência da doença.
Por causa dessa concepção e como exemplifica o filme O Bicho de Sete Cabeças14,
as consequências permeiam, conforme descreve Amarante (2007), amarrar o sujeito, aplicar-
14 Bicho de Sete Cabeças é um filme de drama brasileiro de 2001 dirigido por Laís Bodanzky e com roteiro de Luiz Bolognesi baseado no livro autobiográfico deAustregésilo Carrano Bueno, Canto dos Malditos. O filme conta a história de Neto, um jovem que é internado em um hospital psiquiátrico, após seu pai descobrir
lhe potentes medicamentos que afetam o sistema nervoso central com o intuito de dopá-
lo e, até mesmo, utilizar a eletroconvulsoterapia (ETC) ou eletrochoque.
A Lei Basaglia, na Itália de 1978, fortaleceu o movimento de reforma psiquiátrico e a
antipsiquiatria. Países como Itália (em várias regiões), Estados Unidos, Canadá, Inglaterra,
França adotaram reformas consistente por justificativas ideológicas e financeiras
(AMARANTE, 2007).
No Brasil, a partir de 1978, inicia-se o movimento social em prol dos direitos dos
pacientes psiquiátricos e da reforma psiquiátrica. Apoiada pela lei 10.216/01, a Lei Paulo
Delgado, que impõe novo ritmo e impulsiona o processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil
(MS, 2005).
Essa política preconiza um modelo que conte com uma rede de serviços e
equipamentos variados que garanta a livre circulação de indivíduos com transtornos mentais e
ofereça cuidados na comunidade.
A atual política psicossocial em saúde mental visa à consolidação de um modelo de
atenção à saúde mental aberto e de base comunitária. Para isso, foram criados mecanismos
como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos
(SRT), os Centros de Convivência e Cultura e os leitos de atenção integral (em Hospitais
Gerais, nos CAPS III) (MS, 2005).
De acordo com o Ministério da Saúde (2004), os CAPS representam a principal
estratégia do processo de Reforma Psiquiátrica. São instituições que acolhem pacientes com
transtornos mentais oferecendo atendimento medico e psicológico, estimulam a integração
social e familiar apoiando a iniciativa de busca da autonomia.
A principal característica do CAPS, como salienta o MS (2004), é a procura por
integrar os usuários a um ambiente social e cultural concreto. O processo de
desistitucionalização de pessoas com longo histórico de internação e a redução de leitos, nos
anos 90, torna-se política pública no Brasil.
Dessa forma, ocorreu nos últimos vinte anos uma grande redução do número de
leitos psiquiátricos em virtude da grande mudança na Política Nacional de Saúde Mental.
Neste contexto, a implementação de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT)
surgem como componentes para concretizar as diretrizes de superação no modelo de atenção
centrado no hospital psiquiátrico (MS, 2005).
um cigarro de maconha em seu casaco. Lá, Neto é submetido a situações abusivas. O filme além de abordar a questão dos abusos feitos pelos hospitais psiquiátricos, também aborda a questão das drogas e a relação entre pai e filho.O filme abriu portas para uma nova maneira de pensar sobre as instituições psiquiátricas no Brasil. Disponível em: bichodesetecabecas.com.br Acesso em: 16.06.2012.
Essas residências terapêuticas ou moradias são casas inseridas no espaço urbano
tem por objetivo responder as exigências de moradia de pessoas portadoras de transtornos
mentais graves (MS, 2005).
O Ministério da Saúde (2010) salientou a imprescindibilidade de abordagens de
caráter intersetorial e de serviços de saúde facilitadores da construção do cuidado em rede.
Por fim, a atenção a usuários de crack no âmbito do SUS está fundamentada nos
referenciais de atenção em rede, acesso universal e intersetorialidade (MS, 2010). Essa
atenção em rede é o princípio que visa à necessidade de que diferentes dispositivos de atenção
estejam articulados de forma complementar, solidária e funcional, onde se busque garantir a
continuidade da assistência.
3.3.1 CAPS-ad, Políticas de Redução de Dano, Consultórios de Rua e Redes Sociais
Nesse tópico, procurasse desenvolver uma perspectiva ampla sobre as abordagens
terapêuticas no Sistema Único de Saúde referente aos modelos antiproibicionistas
recentemente criados e os diversos mecanismos articulados para que o cuidado ofertado aos
usuários de drogas seja efetivado por uma rede.
Partindo desse ponto, o Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e
drogas presta para atendimento diário à população com transtornos decorrentes do uso e
dependência de substâncias psicoativas, como álcool e outras drogas.
Dessa forma, o CAPSad deve realizar o acolhimento universal e incondicional a
usuários de drogas. (MS, 2010). Esse tipo de CAPS possui leitos de repouso com a finalidade
exclusiva de tratamento de desintoxicação ambulatorial e repouso de pacientes que necessitem
desse tipo de cuidados e que não demandem por atenção clínica hospitalar, permitindo o
planejamento terapêutico dentro de uma perspectiva individualizada de evolução contínua
(MS, 2004).
Possibilita ainda intervenções precoces, limitando o estigma associado ao tratamento.
Assim sendo, a rede proposta se baseia nesses serviços comunitários, apoiados por leitos
psiquiátricos em hospital geral e outras práticas de atenção comunitária (ex.: internação
domiciliar, inserção comunitária de serviços), variando conforme com a demanda da
população-alvo dos trabalhos (MS, 2004).
Nesse vértice, o CAPSad deve oferecer apoio e suporte aos familiares. Ainda, aos
usuário que desenvolveram processos de ruptura de sua rede de relações sociais, deve-se
constituir como um espaço de convivência de usuários, que se desenvolvam oficinas
terapêuticas (MS,2010).
Os CAPSad desenvolvem uma gama de atividades que vão desde o atendimento
individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação, entre outros) até atendimentos em
grupo ou oficinas terapêuticas e visitas domiciliares (MS, 2004).
Esse componente da rede do SUS deve acolher usuários de drogas que demandem
ajuda, mas não desejam, necessariamente, interromper o consumo e apoiar um trabalho dentro
da perspectiva da Redução de Danos, incluindo sempre que preciso toda a rede de apoio e de
familiares.
Além disso, desenvolver redes intersetoriais em articulação com a atenção básica
com objetivo de promoção de vida, socialização, e oferta de atividades de esporte, cultura,
lazer, inserção no mercado de trabalho e outras (MS, 2010).
Os CAPSad 24 horas surgem a partir da necessidade existente na rede de dispositivos
de atenção contínua e cuidado integral. Partindo de um projeto terapêutico individual, o tempo
de utilização do leito do CAPSad 24h, em geral, restringe-se ao período de 7 dias corridos ou
10 intercalados em um período de 30 dias (MS, 2010).
Os leitos de atenção integral em CAPS não constituem espaços que disponham da
presença de médicos durante todo o terceiro período (noturno), não são locais, portanto, de
atendimento a usuários que apresentem quadro clínico grave, devendo estes serem utilizarem
leitos em hospitais gerais.
O acolhimento noturno tem por objetivo a prevenção à recaída, redução de danos,
proteção em condições de riscos sociais e de extrema vulnerabilidade, tratamento de
abstinências leves e abrigamento em caso de fissuras intensas (MS, 2010).
A redução de danos é uma estratégia sanitária utilizada desde a década de 80, época
da (pan) epidemia do vírus HIV, sob a perspectiva da prevenção e da epidemiologia
(RODRIGUES , 2006).
A prevenção ganhou importância prática e emergencial no âmbito do controle de
drogas, como forma de intervenção dirigida à diminuição dos riscos associados a seu consumo
indevido. Já a epidemiologia possibilitou que se identificassem dentro dos grupos de risco, os
consumidores de drogas injetáveis, um dos mais afetados pela AIDS (RODRIGUES, 2006).
Essa autora relata que essas estratégias de prevenção incluíam a informação sobre os
grupos de risco; as formas de contaminação da nova doença; as formas de prevenir o contágio,
e ainda a distribuição de insumos preventivos, como preservativos, e seringas limpas para os
usuários de drogas.
Mesmo sendo oficializada no Brasil, a redução de danos não gera consenso entre os
atores sociais, sendo que um dos maiores obstáculos à sua implantação é o entendimento de
que ela incentivaria o consumo de drogas, com gastos desnecessários, quando o objetivo
deveria ser a desintoxicação total (SENADO FEDERAL, 2011).
Atualmente, essa política foi sendo ampliada caracterizando-se por um conjunto de
ações que envolvem indivíduos e coletividades, médicas e sociais e tem como objetivo
minimizar os efeitos e os riscos decorrentes do uso de drogas em geral.
Para o Senado Federal (2011), Entre os riscos a serem minorados estão: suicídio,
overdose, acidentes, prejuízos cerebrais irreversíveis e doenças transmissíveis, como Aids e
hepatite.
Apontam-se ações como fornecimento de preservativos, seringas, cachimbos
descartáveis, etc., para evitar a transmissão de doenças e as queimaduras na boca e mãos do
dependente, além da substituição da cocaína ou crack pela maconha, para evitar danos
cerebrais mais graves, a qual é uma opção muito criticada pelos médicos, que discordam da
substituição de uma droga por outra (SENADO FEDERAL, 2011).
Prosseguindo, na busca por reduzir a lacuna assistencial histórica das políticas de
saúde voltadas para o consumo prejudicial de álcool e outras drogas por pessoas em situação
de rua, por meio da oferta de ações de promoção, prevenção e cuidados primários no espaço
da rua, os Consultórios de Rua são parte integrante da rede SUS e constituem importante
dispositivo público componente da rede de atenção substitutiva em saúde mental (MS, 2010).
Visa à substituição de um modelo assistencial pautado na hegemonia do modelo
biomédico e da abordagem única de abstinência. Propõe uma abordagem de oferta
programada a usuários que apresentem alguma demanda, ainda que não formulada através de
uma procura espontânea às instituições de cuidado.
A abordagem preventiva e de cuidado em saúde do Consultório de Rua permite a
redução dos danos potenciais do uso de substâncias psicoativas, bem como o respeito às
diferenças, a promoção de direitos humanos e da inclusão social, o enfrentamento do estigma,
as ações de redução de danos e a intersetorialidade (MS, 2010).
Sua característica mais importante é oferecer cuidados no próprio espaço da rua,
preservando o respeito ao contexto sócio-cultural da população. De acordo com (MS, 2010),
os Consultórios de Rua apresentam resultados satisfatórios, com relevante produção de
assistência primária, de prevenção, de melhora do acesso aos serviços de saúde e de promoção
de qualidade de vida.
Todos esses instrumento possibilitam a atenção destinada a usuários de álcool e
outras drogas interligada em rede, sendo que o trabalho itinerante amplia as estratégias de
acessibilidade ao serviço, aumentando a proximidade às redes sociais e considerando as
especificidades dos vários territórios.
Dessa forma, estabelece-se o fomento da rede social na comunidade para a
promoção de saúde e cidadania. Por conseguinte, há a cobrança de investimento estatal, como
salienta o Fórum (2012), para que haja a ampliação da estrutura de Saúde Mental com o
intuito de que se forme uma Rede integrada de Operadores da Justiça e Agentes da Saúde,
pois a recuperação envolve do médico ao juiz.
Por fim, deve haver a mudança de paradigmas também na sociedade, pois se trata de
um passo fundamental, sobretudo, para a luta pela garantia à assistência, à saúde pública e de
qualidade e à proteção aos Direitos Humanos de um grupo social que há séculos é vítima de
exclusão e preconceito. Por isso, o último tópico trata sobre os Direito Humanos e Cidadania.
3.3.2 Direitos Humanos e Cidadania
Quando se trata de direitos humanos e cidadania logicamente remete-se a ideia
central de democracia. Partindo dessa premissa, há o entendimento de que a questão dos
direitos humanos deve ser entendida na perspectiva não de algo pronto e estabelecido, mas na
perspectiva da luta por direitos a serem conquistados (SILVA, 2003).
Pinto (2004) problematiza a questão da crise de representação na democracia ao
afirmar que a construção de interesses coletivos está obscurecida por interesses particulares,
privados. O que demonstra uma questão mais ampla, a atual constituição social e a construção
de identidades.
Desde 1824, data da primeira Constituição brasileira, a cidadania percorre um longo
e tortuoso caminho (SILVA, 2003). Aliás, cidadania é um dos principais enfoques da Reforma
Psiquiátrica no Brasil.
A pessoa portadora de transtornos mentais vê-se impedida de exercer a sua
cidadania, pois com a institucionalização, mais do que com a doença, sofre com a
discriminação, proibida pelo artigo primeiro da Lei nº 10.216/2001, já que, por ser
institucionalizado, torpemente excluído da comunidade, o ser humano com sofrimento mental
vê seus direitos e a proteção afastados, violados (LIMA E CASTELLO BRANCO NETO,
2011).
A cidadania deve ser vista, conforme aponta e Lima e Neto (2011) como poderoso
instrumento para a conquista dos direitos dos usuários e familiares. De acordo com os autores,
a cidadania apresenta-se como uma forma de compartilhamento de uma cidade, convivendo
com outros cidadãos em busca do bem comum, com direitos e deveres.
A ideia da cidadania é eminentemente política e não está necessariamente ligada a
valores universais, mas a decisões políticas. Portanto, a ordem jurídico-política de um país
define e garante quem é cidadão, seus direitos e deveres Logo, os direitos do cidadão e a
própria ideia de cidadania não são universais (BENAVIDES, 1998).
Entretanto, alguns direitos do cidadão coincidem com os direitos humanos, cujo
âmbito é mais amplo e abrangente. Nesse sentido, como discorre a mesma autora, os direitos
humanos são vistos como universais são aqueles direitos e liberdades comuns a todos os seres
humanos sem distinção de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra
condição.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um marco histórico dos
direitos humanos. Elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de
todas as regiões do mundo, a Declaração foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas em Paris, em 10 de Dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III) da
Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela
estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos.
Os direitos humanos incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e
de expressão, o direito ao trabalho e à educação, dentre muitos outros. Todos merecem estes
direitos, sem discriminação.
No Brasil, persistiram violações graves aos direitos humanos, produzidas por uma
violência endêmica, que se manifesta seja no comportamento de grupos da sociedade civil,
seja no de agentes incumbidos de preservar a ordem pública e está radicada nos costumes e
nas estruturas sociais (ADORNO, 1995).
Lembra-se, como ressalta Silva (2003), que a tradição dos costumes e a segregação
social servem para silenciar vozes que denunciam uma realidade social controversa, vem daí,
por conseguinte, a criação de tantas instituições repressivas.
A afirmação dos direitos humanos como um pilar ético que deve mediar o
relacionamento entre todos os integrantes da sociedade esbarra, no caso brasileiro, no desafio
da superar o abismo de desigualdades que separam grupos sociais privilegiados, da imensa
massa dos deserdados dos benefícios de uma sociedade industrial relativamente desenvolvida
(OLIVEIRA, 2003).
Para Oliveira (2003) a desigualdade é a escravidão atual, o novo tumor que impede a
constituição de uma sociedade democrática. Para esse autor, embora seja inegável o fato de ter
havido progressos, o Brasil não foi capaz de produzir resultados que impliquem na redução da
desigualdade e no fim da divisão dos brasileiros em castas separadas pela educação, pela
renda, pela cor e etc.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A recente criação do Plano de Enfrentamento ao Crack e outras drogas pelo Governo
Federal levantou o debate sobre as políticas públicas adotadas pelo governo, frente ao uso da
força e da internação compulsória como a principal estratégia para o enfrentamento do uso e
abuso de drogas lícitas ou ilícitas.
Para uns, o plano representa um retrocesso na consolidada política de atenção aos
usuários de drogas, além de contrariar os princípios da atual política pública de Saúde Mental
e a da reforma psiquiátrica ao passo que, para outros, representa o combate ao avanço do
crack e outras drogas, do tráfico e das organizações criminosas, bem como representar um
“pacto” para “vencer o crack”, ao ampliar a oferta de tratamento de saúde e atenção aos/às
usuários/as de drogas e aumentar a prevenção.
Logo, em face da problemática social das drogas constituir um fenômeno complexo
que envolve questões psicológicas, sociais, político-econômicas e levanta a discussão sobre o
direito à liberdade e a autonomia dos indivíduos, o que remete aos direitos humanos,
justificou-se uma discussão rebuscada acerca do tema.
O primeiro capítulo deste estudo procurou delinear a história das substâncias
psicoativas, cujo consumo acompanha a humanidade desde o primórdio de sua existência,
bem como frisar o controle estatal sobre drogas que é modificado, historicamente, por
questões morais, religiosas e étnicas provocando a diferenciação entre drogas lícitas e ilícitas.
No mesmo capítulo, apresentaram-se as distinções do uso de drogas como parâmetro
para distinguir o uso social, recreativo ou ocasional da utilização nociva e toxicológica que a
dependência química provoca aprofundando a discussão acerca da toxicomania ou adicção.
No segundo capítulo, salientaram-se os modelos de controle sobre drogas
diferenciando o modelo proibicionista, criado há mais de cinquenta anos atrás, dos atuais
mecanismos antiproibicionistas utilizados na maioria dos países europeus, sendo difundido
pelo globo.
Ainda nesse capítulo, houve a discussão acerca do aprisionamento do corpo e o
confinamento de indivíduos que, considerados desviantes, seja pelo uso de drogas, seja pela
loucura ou pela pobreza, preenchem cadeias, manicômios e comunidades terapêuticas.
O terceiro capítulo traz considerações acerca das políticas públicas em saúde mental
no que tangem aos entorpecentes, levando em conta a atual política de atenção aos usuários de
álcool e outras drogas, bem como suas estratégias e componentes, em contraposição à recente
criação da política de enfrentamento ao crack criado pelo Estado Brasileiro.
Nesse sentido, discussões que permeiam a internação compulsória e
desencadeiam elementos concretos para o debate através das políticas públicas sobre drogas
compõem esse capítulo.
Esse inextricável campo de discussões engendrou na atual política de atenção a
usuários de drogas e na destrinchada discussão sobre os direitos humanos e a cidadania como
fundamentos no tratamento da dependência química.
Frisa-se, em desdobramentos futuros, a importância da família e das redes e laços
sociais como essenciais no tratamento dos usuários de drogas merecem ser energicamente
salientadas. Além disso, novas pesquisas podem propor a discussão acerca dos diversos
modelos antiproibicionistas que estão sendo criados a fim de apaziguar os problemas
relacionados a drogas na atualidade.
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