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Autora: Maria Inez Matoso Silveira (Universidade Federal de Alagoas)4.o Siget - Simpósio Internacional de Gêneros Texuais, 2007, Tubarão. Anais Proceedings do 4.o Siget. Tubarão - SC: Maxprint, 2007. v. Único. p. 1451-1460.http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/cd/Port/89.pdf

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Page 1: Análise crítica e sócio-retórica dos elementos enunciativos do ofício: Gênero Textual da correspondência oficial. - Maria Inez Matoso Silveira

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ANÁLISE CRÍTICA E SOCIO-RETÓRICA DOS ELEMENTOS ENUN CIATIVOS DO OFÍCIO – GÊNERO TEXTUAL DA CORRESPONDÊNCIA OFICI AL

Maria Inez Matoso SILVEIRA

(Universidade Federal de Alagoas)

ABSTRACT: The official letter is traditionally used in the correspondence of business administration not only in official and governmental institutions but also in private corporations. It is one of the components of the bureaucracy and power networks which exist in those institutions. The author utilizes an adaptation of the rhetorical criticism to analyze the production and reception conditions of official letters. In this perspective, some factors were considered in this analysis: the exigency (the situation that demands a rhetorical action); the audience (the person or institution to whom the text is addressed); the genre (the appropriate type of text) and the credibility of the addressor (his social position in relation to the audience in view). KEYWORDS: official lette; official correspondence; discursive enunciation; rhetorical criticism.

1. Introdução

Os conteúdos, reflexões e análises apresentadas neste artigo fazem parte de um

trabalho mais amplo, ou seja, de uma pesquisa mais abrangente que teve como objetivo principal descrever e analisar, a partir da concepção sócio-retórica, o gênero textual ofício, que é um tipo específico de carta, freqüentemente utilizado na correspondência administrativa oficial e empresarial.

A justificativa do interesse em se estudar esse gênero textual – o ofício – deve-se, primeiramente, ao fato de inexistir, nos estudos e pesquisas lingüísticas realizadas no nosso país, uma preocupação efetiva com os gêneros abrangidos pela chamada redação técnica, também conhecida como redação oficial1. De fato, esse tipo de produção escrita tem sido marginalizado tanto na escola básica como na universidade2.

Com efeito, diga-se de passagem, o estudo dos usos da língua no mundo do trabalho, principalmente no que diz respeito à descrição e análise de gêneros textuais, ainda não despertou um visível interesse por parte dos lingüistas brasileiros. É verdade que os temas “linguagem e trabalho” e “a comunicação no trabalho”, “a comunicação empresarial” e similares têm merecido a atenção de alguns estudiosos, inclusive de alguns lingüistas, mas as perspectivas adotadas variam entre a questão da ética na comunicação e os aspectos organizacionais das corporações. Esses trabalhos, portanto, não se ocupam de uma análise 1 A bem da verdade, deve haver pouquíssima pesquisa sobre a análise de gêneros administrativos no Brasil. O que a autora pode citar em relação a isso é um trabalho acadêmico (dissertação de mestrado defendida na UFPE) que depois foi publicada em forma de livro, mas que, na realidade, não cuida desses gêneros, mas preocupa-se com o “burocratês” e propõe algumas maneiras de se simplificar, ou melhor, adequar essa linguagem. Trata-se da obra Desburocratização lingüística – como simplificar textos administrativos, de autoria da Profa. Neide de Souza Mendonça. (Editora Pioneira, 1987). Um outro trabalho que também pode ser citado nessa linha é outra dissertação de mestrado, A linguagem da comunicação administrativa escrita do Banco do Brasil – Uma interpretação sociolingüística, de Artur Roberto Roman (UFPR, 1993). 2 Há algumas décadas, até mais ou menos os anos 70, as escolas técnicas de comércio de nível médio costumavam colocar a redação técnica comercial e oficial nos programas de língua portuguesa dos seus cursos profissionalizantes. Hoje, com o crescente agravamento da queda de qualidade do ensino e com as indefinições do ensino de português, terminou vigorando como parâmetro apenas a preparação para o vestibular, que terminou contaminando até os cursos técnicos profissionalizantes.

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de discurso aplicada aos gêneros de uso efetivo e corrente nas inúmeras instâncias de trabalho.

Ultimamente, como se sabe, tem havido um interesse considerável no estudo e na análise de gêneros acadêmicos nos cursos de pós-graduação no Brasil, até por conta das influências das pesquisas realizadas por lingüistas estrangeiros, como os que foram citados nos parágrafos anteriores.

Naturalmente, sem desmerecer a importância dos gêneros acadêmicos (resenhas, resumos de dissertações, etc.), cujos estudos e análises deverão contribuir para melhorar a proficiência dos seus usuários, há de se convir que o domínio dos gêneros utilizados na correspondência administrativa e empresarial reveste-se também de uma importância fundamental para melhorar a competência comunicativa e o nível de letramento das pessoas que trabalham ou que se preparam para trabalhar em atividades administrativas, tanto em repartições governamentais, como em empresas privadas.

Uma outra razão que pode ser aventada para o estudo e análise dos gêneros da correspondência oficial e empresarial é a necessidade de se renovarem os chamados “manuais de redação técnica e oficial” que, com raras e honrosas exceções, terminam se concentrando apenas nos aspectos normativos, gramaticais, estilísticos, ortográficos e de formatação. Apesar de existirem vários títulos sobre esse assunto no atual mercado editorial, percebe-se que o tratamento dado aos conteúdos e as abordagens utilizadas não diferem muito entre um manual e outro.

Na realidade, necessita-se de um certo “arejamento”, ou, talvez, uma certa “desmistificação” desses gêneros, principalmente no sentido de se conscientizarem os escreventes dos aspectos enunciativos, ideológicos, argumentativos, pragmáticos e retóricos de que esses gêneros se revestem. Sem dúvida, a tomada de consciência desses aspectos muito contribuiria para uma maior eficácia na escrituração desses gêneros, podendo-se inclusive renová-los e torná-los mais accessíveis, principalmente quando se dirigirem a audiências que não fazem parte da fechada burocracia estatal e empresarial.

No que respeita ao ofício3, especificamente, verifica-se que esse gênero é de uso muito constante nas atividades administrativas; mas, ao mesmo tempo, verifica-se que a habilidade dos servidores para a escritura de ofícios (e, por extensão, de outros gêneros similares) nos ambientes de trabalho é muito rarefeita4. Assim sendo, mesmo convivendo com a real ou potencial necessidade de escrever ofícios, e mesmo fazendo parte de uma cultura disciplinar em que esse gênero circula freqüentemente, o fato é que poucos trabalhadores conseguem enfrentar essa tarefa com uma proficiência razoável, geralmente

3 Convém assinalar algumas definições de ofício (como gênero da língua escrita) que aparecem nos dicionários: “Carta formal, escrita em papel timbrado, de uma entidade pública ou privada” (Biderman, Ma. Tereza. C. Dicionário Didático de Português. S. Paulo, Ática, p.671); “Forma de correspondência no serviço público oficial, entre entidades da mesma categoria, ou de inferiores a superiores hierárquicos” (Houaiss, Antônio, Pequeno Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse. Rio de Janeiro, Editora Larousse do Brasil S.A., p. 599); “Documento formal que estabelece a comunicação entre secretarias ou autoridades.” (Borba, Francisco da S. Dicionário de Usos do Português do Brasil. S. Paulo, Ática, 2002. p.1116). 4 Tendo trabalhado por 22 anos como professora da Escola Técnica Federal de Alagoas, a autora deste artigo teve também a oportunidade de assumir alguns cargos de chefia em setores ligados à administração do ensino, diretamente ligados à burocracia administrativa daquela instituição. Ao longo dessa experiência foi possível observar essa carência de servidores suficientemente competentes para escrever memorandos, ofícios, etc., apesar de a instituição oferecer, periodicamente, “cursos de redação oficial” para seus servidores. Esses cursos são geralmente dados por professores de português que seguem a tradição gramatical. As aulas, portanto, enfatizavam a ortografia, a concordância, os pronomes de tratamento, etc.

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adquirida por esforço próprio. Isso só tem contribuído para reforçar e reproduzir a idéia de que a habilidade de escrever é algo semelhante a um “dom” que poucos possuem, e não como uma competência que pode ser exercitada por qualquer pessoa que tenha um nível de escolarização suficiente para o domínio das habilidades básicas de ler e escrever.

Neste trabalho, pretende-se abordar o ofício, gênero textual tradicionalmente usado no cotidiano da correspondência administrativa oficial e empresarial, considerando o contexto enunciativo de sua produção e recepção. Com isso, pretende-se fornecer alguns subsídios para um ensino instrumental mais autêntico da língua portuguesa, como uma das inúmeras formas de se melhorar o nível de letramento e de consciência crítica do cidadão profissional e do futuro trabalhador nas esferas administrativas estatais e empresariais. 2. O gênero textual ofício: - a montagem do corpus para a análise pretendida.

A coleta do corpus, cerca de 56 exemplares autênticos de ofício, teve como fonte

duas instituições públicas estatais: a Escola Técnica Federal de Alagoas (ETFAL), atualmente Centro Federal de Educação Tecnológica de Alagoas (CEFET-AL) e a Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Nesta última, os exemplares de ofícios foram coletados dos arquivos do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (LCV). Na ETFAL, os exemplares foram oriundos dos arquivos da Secretaria do Gabinete da Diretoria Geral.

A coleta foi feita um tanto aleatoriamente, mas de forma que o corpus contivesse ofícios emitidos e recebidos pelas instituições. Como a coleta foi feita em meados do segundo semestre de 1999, a maioria dos exemplares tem suas datas relativas ao primeiro semestre daquele ano e alguns de 1998, e outros poucos de 1997.

Por ocasião da coleta do material, foram colhidas também algumas informações dos escreventes, ou melhor, dos “escribas”, já que, nessas instituições existem servidores que se ocupam desse mister. Eles recebem a determinação da tarefa de seus chefes, geralmente através de comunicação oral, ou através de uma minuta com os dados sobre o destinatário, o assunto e o propósito; outras vezes, o ofício já vem rascunhado pelo chefe.

Na ETFAL, o ofício é um dos gêneros mais utilizados na correspondência entre aquela instituição educacional e suas congêneres e também com outras instituições da administração pública e do setor empresarial privado. O memorando é também muito freqüente, mas é utilizado internamente, entre os diversos departamentos, coordenadorias e setores dentro da instituição.

Já na UFAL, os ofícios são utilizados entre a reitoria e os diversos centros e também dentro dos centros (atualmente chamados de Unidades acadêmicas), entre as diretorias e seus departamentos, setores e, ainda, entre os departamentos, além de serem usados para outras instituições fora da Universidade. Na UFAL, à época da coleta dos exemplares, os “escribas” eram (e ainda são) servidores do setor administrativo, geralmente ocupando o cargo de secretário.

Na ETFAL, eles, os escribas; ou melhor, elas, eram duas professoras de português que deixaram a sala de aula e foram desviadas para o setor administrativo e trabalham na Secretaria do Gabinete da Diretoria Geral. Isso explica o cuidado e a atenção que essas escribas dão não só à “correção” da linguagem, mas também à apresentação estética dos textos e, principalmente, às normas: elas disseram seguir as orientações das Normas sobre Correspondência e Atos Oficiais do Ministério da Educação e Desporto. Por conterem

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informações de cunho oficial, os ofícios são “lavrados” com cópias para arquivo e recebem numeração controlada ano a ano. 3. Caracterizando o objeto da análise: o ofício como um tipo específico de carta.

O ofício é uma variedade do complexo gênero cartas. Portanto, para estudar este gênero, convém partir-se da carta enquanto “unidade funcional da língua, empregada em situações características – ausência de contato imediato entre emissor e receptor” (Paredes Silva, 1997:119). Assim, deve-se levar em conta que a carta é, antes de tudo, uma forma de comunicação interpessoal. Neste sentido, retoricamente, ela preserva algumas das características interativas da conversação. Afinal, uma carta é uma conversa entre pessoas que estão distantes fisicamente. No entanto, há de se distinguir os vários tipos de carta, considerando-se os campos de atividades em que são usadas e os tipos de relacionamento existentes entre os interlocutores. Desse modo, existem as cartas pessoais, as cartas profissionais, que servem a inúmeros propósitos, e outros tipos de carta utilizadas nas esferas públicas e privadas do mundo do trabalho, que também veiculam uma grande variedade de intenções comunicativas.

Diante dessa imensa diversidade de propósitos a que se prestam, conclui-se que as cartas são gêneros que admitem uma acentuada heterogeneidade nos elementos que configuram as suas organizações retóricas, já que o propósito comunicativo é refletido na estrutura discursiva do gênero. Enquanto nas cartas pessoais pode-se verificar o uso de estratégias que asseguram proximidade, afetividade e envolvimento, estreitando as relações interpessoais; nas cartas profissionais, os escreventes utilizam estratégias que priorizam mais a informatividade (Biber, 1988:133).

Nas cartas comerciais e oficiais, além de se verificar uma ênfase na informatividade, deve-se atentar também, e principalmente, para os atos de fala expressivos e diretivos, por meio dos quais o falante tenta influenciar o comportamento do interlocutor, geralmente utilizando estratégias argumentativas baseadas em elementos que dão legitimidade a esses atos de fala. Nesse caso, as relações interpessoais são mantidas formalmente, e recebem um tratamento de suposta neutralidade, em favor de uma recomendada objetividade.

4. Os variados propósitos comunicativos dos ofícios

Na abordagem sócio-retórica de gênero, abordagem defendida por Swales (1990) e também por Bhatia (1993), o traço distintivo mais importante de um gênero é o seu propósito comunicativo, que é reconhecido, aceito e compartilhado pelos membros da comunidade de discurso em que o gênero se insere. Segundo Swales, além do propósito, os exemplares de um gênero exibem vários padrões de semelhança em termos de estrutura, estilo, conteúdo e audiência pretendida.

O ofício é um tipo de correspondência oficial que se presta a vários propósitos comunicativos, os quais estão geralmente circunscritos a ações corriqueiras na administração pública, visando à comunicação e ao intercâmbio entre instituições públicas e também entre estas e as instituições privadas. (No corpus estudado, foi observado também a emissão de ofícios por instituições privadas para instituições públicas, bem como a emissão de ofícios de um órgão para outro dentro da mesma instituição).

Obviamente, a diversidade de propósitos confere uma certa heterogeneidade aos ofícios, mas, ainda assim, o caráter institucional das audiências, o formato, a formalidade

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da linguagem, o tratamento retórico, a estrutura textual-discursiva e as expressões formulaicas resguardam a sua identidade como gênero exclusivo da burocracia administrativa. No corpus disponível, composto de exemplares colhidos aleatoriamente, dentre os 56 exemplares de ofícios analisados, os propósitos comunicativos se distribuem da seguinte forma:

� solicitar algum préstimo, que vai desde uma informação, um documento, até o empréstimo de equipamento ou a liberação de uma dependência física da instituição (24 exemplares);

� encaminhar documentos para informação, apreciação ou divulgação (08 exemplares);

� convidar para participar de eventos como seminários, encontros, etc. (08 exemplares);

� dar informações (comunicar, prestar esclarecimentos) sobre eventos, sobre liberações, solicitações e consultas feitas, sobre a tramitação necessária, sobre reclamações feitas, etc. (08 exemplares);

� encaminhar servidores para estágios e cursos (02 exemplares); � agradecer convite e atendimento de solicitação (02 exemplares); � colocar a instituição à disposição para sediar evento (01 exemplar) � oferecer serviços de representação (01 exemplar) � notificar juridicamente o diretor da instituição a prestar esclarecimento sobre

processo (01 exemplar) e � prestar solidariedade à instituição diante de denúncia infundada ao MEC (01

exemplar).

Mesmo não sendo objeto da nossa análise neste trabalho, convém dizer-se que os propósitos comunicativos vêm também expressos por atos fala através de verbos performativos expressos em locuções verbais, como se vê nos seguintes excertos:

a. “Vimos, por meio deste, mui respeitosamente, convocar V.Sª a participar de uma Oficina...” b. “Gostaria de contar mais uma vez com a atenção de V.Sª no sentido de autorizar a utilização da Sala de Multimeios...” (pedir autorização) c. “Gostaríamos de que as providências fossem tomadas no sentido de agilizarmos a digitação ...” (pedir providências) d. “Dirigimo-nos a V.Sª para solicitar-lhe a gentileza de verificar a possibilidade de nos conceder uma doação de R$ 2.000,00.(ou prêmios equivalentes) ...” (solicitar ajuda financeira ou em prêmios)

Saliente-se também que esses propósitos aparecem expressos de várias formas, como, por exemplo, através de atos de fala diretos e indiretos, iniciados por verbos modalizados e, às vezes, entremeados de fórmulas de polidez, como se vêem alguns dos excertos acima. 4. Elementos contextuais e enunciativos da produção e recepção dos ofícios

Nesta parte, apresentamos o propósito principal do nosso artigo, que é fazer uma análise retórico-enunciativa do gênero em questão, em que se procura situar o ofício no contexto social e institucional em que se dá a dinâmica de sua produção e recepção.

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Nesse sentido, o aspecto político-ideológico assume grande importância por conta das instâncias hierárquicas de poder que ocorrem nas organizações burocráticas das corporações estatais e empresariais. Como se sabe, os gêneros são ações discursivas que reforçam, legitimam e “naturalizam” o pensamento dominante que está na base das crenças e das práticas culturais e institucionais.

Nesse quadro contextual, portanto, instaura-se a dinâmica enunciativa da produção e recepção dos ofícios, cujos componentes podem ser estudados à luz de alguns construtos da crítica retórica (Gill & Whedbee, 1997). Isso complementa e se identifica com a recomendação de Bhatia (1993) no sentido de que, na análise de determinado gênero textual, seja examinado o contexto institucional em se o gênero circula, através das regras e das convenções historicamente construídas e normalmente aceitas e reproduzidas pelos usuários na comunidade discursiva.

Diante do exposto, conforme a visão sócio-retórica de gênero (Miller, 1984), para se ter uma visão mais completa do ofício como uma das materializações do discurso institucional e como uma ação retórica tipificada, é preciso que se proceda, primeiramente, a uma análise, ainda que sucinta, do contexto de sua produção e recepção.

Essa análise, logo de saída, deve enfatizar alguns pontos importantes sobre o uso da linguagem no mundo do trabalho, especialmente no âmbito da administração empresarial estatal e /ou privada. Assim sendo, vale dizer que nessas organizações, como um todo, o princípio a ser defendido é o do controle social, e a linguagem, principalmente a língua escrita, neste contexto, assume o papel de regulação do trabalho.

A explicitação desse papel se dá via burocracia, cujas marcas principais são o controle, o formalismo, a impessoalidade, a racionalização e o profissionalismo. Com efeito, essas características do contexto em que ocorre a emissão/recepção de ofícios afetam e restringem de maneira acentuada as interações discursivas e seus elementos enunciativos.

Dito de outra forma, sabe-se que, na vida da burocracia institucional, a utilização do discurso é marcada, e mesmo determinada, pelas restrições e relações de força que ali se realizam; daí serem a linguagem e os gêneros administrativos tão regrados e padronizados, tendo a sua escrituração regulada através de normas, manuais oficiais e guias específicos. Enfim, o ofício é um dos componentes das grandes teias burocráticas existentes nas instituições públicas e, por extensão, nas organizações privadas.

No contexto da organização empresarial e burocrática, as relações sociais dão especial relevo às conveniências que preservam a integridade organizacional, cabendo à linguagem o papel de instrumento de trabalho necessário para o cumprimento de tarefas e a manutenção da ordem institucional.

Numa perspectiva sócio-retórica, os atos de linguagem (especificamente os enunciados escritos) que se realizam nesse contexto devem ser vistos como atos responsivos a situações ou problemas no continuum das atividades, instaurando uma dinâmica enunciativa (ou pragmática, se se quer), em que os gêneros desempenham seus papéis de respostas a situações tipificadas.

Diante do exposto, e utilizando-se, de forma adaptada, alguns construtos da crítica retórica (Gill & Whedbee, 1997:162), podem-se analisar, mesmo de forma abrangente, as condições de produção dos ofícios através da apreciação de quatro elementos fundamentais que têm influência considerável nas interações que se realizam no contexto em estudo. São eles: a exigência (o problema ou questão à qual o texto se relaciona), a audiência (a pessoa real ou institucional a quem se dirige o orador ou locutor), o gênero (o tipo de texto

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apropriado para a ocasião) e a credibilidade do orador (a posição social do orador em relação à audiência buscada).

O conceito de exigência explica-se pelo fato de as situações sociais (geralmente tipificadas e recorrentes) sempre demandarem das pessoas nelas envolvidas o uso de determinadas (re)ações discursivas. Como diz Miller (1994:30), “compreender uma exigência é ter um motivo”. Motivo que o indivíduo tem para se engajar numa interação de “forma socialmente reconhecível e interpretável”. Ora, no mundo do trabalho, no dia-a-dia das empresas e das repartições públicas são inúmeras as situações que exigem respostas retóricas, que devem ser adequadas, significativas e pragmaticamente eficazes. Estas ações cumprem, evidentemente, o caráter de respondibilidade constitutiva da linguagem; e no caso das atividades administrativas, muitas dessas ações são concretizadas através da língua escrita, especialmente quando a interação se dá, como no caso dos ofícios, entre instituições. E a propósito da importância do uso da língua escrita nos setores administrativos das instituições, convém frisar o seu caráter documental e sua histórica relação com os mecanismos de poder, como já foi anteriormente discutido. Sem dúvida, nesses contextos, as ações significativas só são consideradas válidas e legitimas através da língua escrita. Isso gera, naturalmente, aquelas clássicas e bizarras pilhas de documentos (onde não faltam carimbos e despachos) e que vão inchando as pastas dos arquivos nas repartições públicas.

Quanto à audiência, é necessário reconhecer-se primeiramente que se trata de um fator determinante nas interações discursivas que são levadas a efeito nos setores da administração pública e privada, pois ela legitima e reproduz as relações de poder que se desenrolam na dinâmica administrativa nas repartições públicas e nas empresas. Com efeito, os ofícios são formas de comunicação entre instituições juridicamente constituídas e, como tal, são revestidos de um status político-social conferido pelos poderes constituídos, sendo, portanto, aceitos e reconhecidos pelas próprias comunidades em que se inserem e a quem pretendem servir. As relações entre os interactantes do processo discursivo são, portanto, jurídico-institucionais por excelência. Por isso, os ofícios são sempre escritos em papel timbrado, são numerados e com cópias destinadas a arquivo5. Desse modo, as pessoas físicas, mesmo se dirigindo a uma instituição pública (e também a uma empresa ou organização particular) não utilizam (ou pelo menos não devem utilizar) ofícios, e sim cartas comerciais, que têm seu uso aberto a todos os cidadãos, assim tenham um nível de letramento suficiente para delas tirar proveito em vários tipos de interação e de situações da vida numa sociedade civil organizada.

Ainda com relação à audiência, e também com base em Gill & Whedbee (1997:167), leve-se em conta a distinção que deve ser feita entre a audiência real (o interlocutor enquanto pessoa física) e a audiência implicada (o interlocutor enquanto produto de formações imaginárias)6, sendo esta última uma espécie de idealização da audiência, pois ela é instanciada pelo texto-gênero, e existe dentro do mundo simbólico que permeia o intercurso comunicativo em que se dá a correspondência oficial e empresarial. No caso da interação mediada pelo ofício e demais gêneros da atividade administrativa, o que se tem, obviamente, é uma audiência implicada, já que a correspondência oficial e 5 Mesmo com o uso cada vez mais disseminado do computador nas esferas administrativas, essa prática continua, como foi constatado nas instituições em que foram coletados os exemplares de ofício do corpus utilizado neste trabalho. Especificamente quanto ao arquivamento, entretanto, é possível que, em alguns escritórios, já se esteja utilizando os meios eletrônicos, substituindo as conhecidas pastas classificadoras. 6 Maingueneau, D. (1976) Initiation aux méthodes de l’analyse du discours. Paris, Hachette. p.144

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empresarial não se dá simplesmente entre locutores e alocutários, como pessoas portadoras apenas de suas subjetividades, mas entre enunciadores/enunciatários, pois eles são idealizados como portadores de outras vozes – as vozes institucionais: as instituições falam pelas bocas dos seus representantes oficiais.

No estudo do contexto das interações sociais, o gênero é um componente essencial, pois as intenções comunicativas manifestadas responsivamente diante das inúmeras situações da vida se dão, como se sabe, através dos gêneros discursivos, que são formas de ação social historicamente convencionalizadas dentro de determinada cultura. Diante disso, falando especificamente, com relação ao caso da correspondência oficial e empresarial, cabe ao escrevente a escolha adequada do gênero à situação, como já assinalava Bakhtin:

“Há toda uma gama dos gêneros mais difundidos na vida cotidiana que apresenta formas tão padronizadas que o querer-dizer individual do locutor quase que só pode manifestar-se na escolha do gênero, cuja expressividade de entonação não deixa de influir na escolha. (...) A diversidade desses gêneros deve-se ao fato de eles variarem conforme as circunstâncias, a posição social e o relacionamento pessoal dos parceiros” (Bakhtin,

1953/1997:302).

A escolha pelo gênero ofício para as situações apresentadas nos exemplares analisados neste trabalho pareceu bem adequada, salvo uma ou outra pequena discrepância neste sentido, mas nada que comprometa a compreensão das intenções comunicativas veiculadas. Afinal, os gêneros devem ser vistos como modelos, mas não são “camisas de força”: eles admitem adaptações e até mesmo uma certa reestruturação criativa, sem perder, contudo, a sua identidade. Aliás, convém lembrar-se aqui que os gêneros são instâncias em que as forças de conservação e de dispersão se mantêm num verdadeiro “equilíbrio instável”.

No que respeita à credibilidade do orador/locutor na análise do contexto enunciativo dos ofícios, há de se reconhecer a sua relevância, na medida em que o lugar social do locutor precisa ser reconhecido como uma posição de prestígio e de representatividade institucional que lhe confere autoridade e poderes para reivindicar ou pleitear ações e atitudes dos seus interlocutores. Já foi dito que não é apropriado às pessoas físicas emitirem ofícios. Isso se explica pelo fato de elas não serem investidas desse poder institucional. Além disso, convém lembrar que o uso do discurso no contexto administrativo, principalmente nas repartições públicas, deve refletir a imagem de “controle”, “hierarquia”, “seriedade” e “zelo” para com a coisa pública, imagem essa que as instituições governamentais (e por extensão as empresas privadas) sempre tentaram construir historicamente. Não é a toa que presidir, dirigir ou coordenar um órgão público ou qualquer outra corporação de renome é um cargo tão disputado: essas posições realmente conferem poder e prestígio a quem os ocupa, diante não só dos subordinados, como também em relação à comunidade e às outras instituições.

Isso posto, dir-se-á, portanto, que o espaço institucional da organização administrativa sempre tem sido por excelência o espaço de uma bem explícita ordem do discurso, no sentido foucaultiano. Desse modo, há restrições sobre o que se pode falar, quem deve falar e para quem e como se deve falar, etc. No caso das instituições de onde provieram os exemplares constantes do corpus em estudo, verifica-se exatamente uma ordem hierárquica em que os contatos com outras instituições só podem ser legitimados se passarem pelo crivo da diretoria do órgão, cujo responsável maior assina os ofícios e,

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assim, controla todas as ações interinstitucionais, já que a pessoa que assume tal cargo está investida de toda a autoridade para representar e falar em nome da instituição.

Ainda com relação ao orador/locutor, a análise enunciativa baseada na crítica retórica preconiza outros construtos. Da mesma forma que se distingue a audiência real da audiência da audiência implicada, distingue-se também o locutor e a persona criada no texto retórico (Trail, 2000:130). Assim, a persona retórica que emerge dos ofícios é sempre portadora da voz institucional, defensora dos interesses da organização e sempre coerente e comprometida com a filosofia política governamental. Não se deve esquecer que os braços desse pensamento dominante em que se apóiam as elites e os quadros hegemônicos nacionais chegam às repartições públicas e às grandes corporações privadas, cujos quadros de dirigentes de todos os escalões rezam pela mesma cartilha ideológica que sustenta a ordem político-institucional vigente em toda a comunidade nacional.

Afora o exposto, atente-se também para as relações de força que se estabelecem entre as instituições ao interagirem por meio de ofícios. No corpus estudado, com exemplares autênticos, verificou-se que algumas instituições privadas, que poderiam, ao se dirigirem às instituições públicas estatais, utilizar a carta comercial, terminam utilizando o ofício, que é mais ao gosto da burocracia estatal. Isto pode ser visto como uma sutil evidência de submissão a uma virtual e conservadora hierarquia que subjaz às relações institucionais no Brasil.

5. Considerações finais

Neste artigo, defendeu-se que, além da necessidade de se estudarem os gêneros textuais do mundo do trabalho, é importante que se ressaltem os aspectos ideológicos veiculados por esses gêneros, no nosso caso, os da burocracia administrativa: eles são formas discursivas que concretizam de uma maneira aparentemente “natural” a dinâmica das forças mantenedoras das estruturas de poder que permeiam as relações sociais nas comunidades organizadas. Isso fica bem evidenciado não só no uso efetivo da linguagem burocrática7, mas é infalivelmente verificada nas práticas reguladas pela hierarquia nos documentos oficiais e empresariais, na correspondência administrativa e comprovadamente presente no gênero aqui estudado.

É evidente que a pesquisa mais abrangente de que este estudo faz parte e muito menos ele próprio, e outros na mesma linha, não têm a pretensão de poder contribuir significativamente para alterar ou modificar essas mencionadas estruturas de poder. Mas, pelo menos, a pretensão de desvelar8 o papel do discurso e dos usos sociais da língua nas esferas do poder, mesmo nas instâncias periféricas, parece perfeitamente possível e desejável. Essa prática precisa ser estimulada pelos educadores lingüísticos, em vista de se pretender vislumbrar quaisquer perspectivas conscientizadoras das ordens hegemônicas que obstruem as práticas mais humanas e mais democráticas.

Nesse sentido da conscientização das pessoas sobre as conexões entre a língua e as práticas sociais, espera-se que o estudo sócio-retórico do ofício, como um gênero de uso freqüente nas atividades administrativas, possa contribuir para uma reflexão nessa linha. 7 Convém frisar que a linguagem burocrática – o burocratês – é caudatário da linguagem jurídica – o conhecido juridiquês. Esses registros refletem de forma bastante evidente as relações de poder e de sutil opressão que essas atividades exercem sobre os cidadãos em todas as comunidades organizadas. 8 “Desvelar” aqui está enfaticamente usado como “tirar o véu”, “afastar as nuvens de fumaça” que encobrem os usos do discurso como grandes mediadores da manutenção das forças reguladoras de poder e opressão.

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Foi, portanto, com essa intenção, que se lançou mão de alguns construtos da crítica retórica para dar conta, mesmo de forma sucinta, dos aspectos institucionais e dos elementos do contexto enunciativo em que se dão a produção e a recepção dos ofícios. A conscientização sobre os dispositivos lingüísticos que marcam e legitimam as relações de poder e de opressão na sociedade pode ser o ponto de partida para a transformação paulatina e positiva das relações sociais. Essa parece ser uma perspectiva próxima à da análise crítica do discurso defendida por alguns estudiosos, a exemplo de Fairclough (1995). Segundo esse autor, a natureza da prática discursiva (e todos os seus componentes socioculturais e ideológicos) modela a produção do texto, e deixa seus traços na superfície textual, determinando também como deve se dar a interpretação desses traços. Referências BAKHTIN, Mikail. (1979/1992) “Os gêneros do discurso”. In: _______. Estética da criação verbal. Tradução feita a partir do francês de Maria Hermantina Galvão G. Pereira. São Paulo, Martins Fontes, pp. 276-326. BIBER, Douglas (1988) Variation across speech and writing. Cambridge, UK, Cambridge University Press. BORBA, Francisco da Silva (1976) Pequeno vocabulário de lingüística moderna. São Paulo, Companhia Editora Nacional. FAIRCLOUGH, Norman. (1995) Discourse and social change. UK : Polity Press/Blackwell Publishers Ltd. GILL, Ann M. & WHEDBEE, Karen. (1997) “Rhetoric”. In: Teun A.van Dijk (Ed.) Discourse as structure and process: a multidisciplinary introduction – Vol. 1. GB, Sage Publications. pp. 157-184. MENDONÇA, Neide R. de Souza (1987) Desburocratização lingüística – como simplificar textos administrativos. São Paulo, Livraria Pioneira Editora. MILLER, Carolyn. (1984/1994) “Genre as social action”. In: Aviva Freedman and Peter Medway. (Eds) Genre and the new rhetoric. GB, Taylor & Francis. pp. 23-42). PAREDES SILVA, Vera Lúcia P. (1997) “Variações tipológicas no gênero textual carta”. In Kock, Ingedore V. e Kazue Saito M. de Barros (Orgs.) Tópicos em lingüística de texto e análise da conversação. Natal, Editora daUFRN. pp. 118-124. SWALES, John. (1990) Genre Analysis – English in academic and research settings. Cambridge University Press. TRAIL, George Y. (2000) Rhetorical terms and concepts – a contemporary glossary. New York, Harcourt College Publishers.