anais -publicações- maged el gebaly

428
5/18/2018 Anais-Publicaes-MagedElGebaly-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/anais-publicacoes-maged-el-gebaly 1/428

Upload: drmaged-el-gebaly

Post on 02-Nov-2015

420 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Trata-se de um conjunto de trabalhos sobre literatura amazonica

TRANSCRIPT

  • 2

    Anais do III Colquio Internacional Poticas do Imaginrio

    Amaznia: Literatura e Cultura

    Realizado de 16 a 18 de maio de 2012 Manaus AM

    Brasil

    Universidade do Estado do Amazonas

    Reitor Jos Aldemir de Oliveira

    Comisso organizadora Allison Leo (Coordenador Geral)

    Universidade do Estado do Amazonas

    Roberto Augusto Ferro (Co-organizao) Universidad de Buenos Aires

    Maged El Gebaly (Co-organizao)

    Universidade Ain Shams

    Gabriel Arcanjo dos Santos Albuquerque UFAM Gleidys Maia UEA

    Juciane Cavalheiro UEA Lorena Nobre UEA

    Mauricio Matos UEA Michele Brasil UFRJ/UFAM

    Nicia Zucolo UFAM Otvio Rios UEA

    Renata Nobre UEA

    Os conceitos, as afirmaes e os erros gramaticais contidos nos artigos so de inteira responsabilidade dos autores, assim como

    quaisquer imagens inseridas nos textos. De igual modo, os organizadores restringiram a reviso formal dos textos apenas formatao

    estabelecida nas circulares. Assim, as incorrees quanto s normas da ABNT que extrapolam esse referencial so de inteira

    responsabilidade dos autores.

    Anais do III Colquio Internacional Poticas do Imaginrio: Amaznia:

    literatura e cultura / Allison Leo, Juciane Cavalheiro, Mauricio Matos (orgs.). Manaus: UEA Edies, 2012.

    428 p.

    ISBN 978-85-7883-203-2

    1. Ensaios Brasileiros. 2. Literatura Brasileira. 3. Cultura amaznica I. Ttulo. II. Leo, Allison. III. Cavalheiro, Juciane. IV. Matos, Mauricio.

    CDD B869.4

  • 3

    APRESENTAO

    Nesta terceira edio do Colquio Poticas do Imaginrio, a comisso organizadora

    regozija-se com a participao de pesquisadores de graduandos a doutores debruados

    sobre as mais diversas culturas da Amaznia. Novamente, reunimo-nos na Universidade do

    Estado do Amazonas (UEA), de 16 a 18 de maio de 2012, com o intuito de trocar

    informaes, dar a conhecer resultados de pesquisas, revisitar autores e obras, entre

    manifestaes culturais de diversa ordem, do artesanato ao rock, do erudito ao popular, do

    cannico ao perifrico, do conhecido ao desconhecido.

    O presente volume contm 69 artigos assinados por 77 autores, parte significativa

    da totalidade dos trabalhos apresentados durante o colquio Amaznia: Literatura e

    Cultura. A diversidade amaznica to propagada pelo mundo globalizado no mbito da

    fauna e da flora que margeiam, por assim dizer, a maior bacia hidrogrfica do planeta

    ganha aqui amplitude ainda maior, ao contemplar culturas to diversas e, ao mesmo tempo,

    to identificveis, quanto as da Colmbia e do Peru, de Roraima e de Rondnia, do Acre,

    do Amazonas e do Par.

    Da banda de rock Madame Saatan ao culto dos encantados, do urbano

    contemporneo s tradies dos Sater-Maw, dos Bois-Bumbs de Parintins aos de Fonte

    Boa, de Luiz Bacellar a Efraim Medina Reyes, do teatro poesia, das artes plsticas aos

    terreiros, o conjunto dos trabalhos aqui publicados traz em sua multiplicidade a amplitude

    amaznica, em sua dimenso tanto material quanto imaterial, arquivada em vozes e ecos.

    Sobre um mesmo elemento cultural, como a obra de Milton Hatoum ou o Boi-Bumb de

    Parintins, diversas vozes analisam, com enfoques diferentes, seus objetos de estudo,

    convergindo, divergindo ou complementando-se, como de se esperar de uma saudvel

    troca de experincias.

    Finalmente, desejo dos organizadores deste volume que os leitores possam

    desfrutar de uma leitura desmistificadora, em cujas pginas a Amaznia est longe de ser

    apenas o habitat natural de jacars, tartarugas e botos.

    Allison Leo / Juciane Cavalheiro / Mauricio Matos

    Organizadores

  • 4

    NDICE DE AUTORES

    drea Gizelle Morais Costa 5 dria Fabola Pinheiro de Sousa 11 Adriana Aguiar 17 Adriana Gonzaga de Moura 23 Aline Cavalcante Ferreira 29 Andria M. dos Santos Lima 358 Ane Caroline Rodrigues de Souza 36 Auricla Oliveira das Neves 41 Camila Bylaardt Volker 49 Camila Freire 56 Carla Monteiro de Souza 267 Carlos Rogerio Duarte Barreiros 62, 70 Claudete do Socorro Q. da Silva 77 Cludia Clia Duarte de Souza 83 Cristiana Mota 90 Dbora de Lima Santos 97 Dbora Renata de Freitas Braga 103 Delma Pacheco Sics 83, 109 Deuzilene de Lima Costa 239 Dilce Pio Nascimento 16, 113, 120 Edison Farias 56, 377 Elaine Pereira Andreatta 126 Elton Emanuel Brito Cavalcante 133 Estrela Dalva Amoedo Viotto 139 Fabricio M. Souza 144 Fadul Moura 152 Giele Vieira dos Santos 158 Gislaine Regina Pozzetti 164 Gleidys Meyre da Silva Maia 36, 109 Helenice Aparecida Carvalho Silva 170 Herica Maria Castro dos Santos 175 Isadora Desterro e Silva Xavier 179 John Fletcher 56, 184, 377 Jos Afonso Medeiros 184 Jos Benedito dos Santos 190 Josy Magno de Deus e Silva 195 Juliana Bevilacqua Maioli 201 Leidejane Machado S 213 Leonardo Lucas Britto 219

    Lucila Bonina Teixeira Simes 226 Manoel Domingos de C. Oliveira 416 Marcelo Sabino Martins 219, 233 Mrcio Roberto Vieira Cavalcante 239 Maria Alice Sabaini de Souza 244 Maria Celeste de Souza Cardoso 250 Maria da Luz Soares da Silva 255 Maria das Graas Vieira da Silva 262 Maria Georgina dos S. P. e Silva 267 Maria Helena V. Duca Oyama 274 Maria Lcia Tinoco Pacheco 279 Maria Luiza Germano de Souza 286 Marilina Conceio O. B. S. Pinto 291 Marinilce Oliveira Coelho 296 Mrio Geraldo Rocha da Fonseca 303 Mary Ellen Rivera Cacheado 308 Matthews Carvalho Rocha Cirne 316 Miguel Nenev 358 Mnica do Corral Vieira 321 Natasha de Queiroz Almeida 327 Nazar Cristina Carvalho 77 Neila da Silva de Souza 333 Priscila Gomes Rodrigues 338 Priscila Oliveira Ramos 345 Rafael Voigt Leandro 351 Regiani Leal Dalla Martha Couto 358 Rita Barbosa de Oliveira 365 Roberto Mibielli 393 Roseli Anater 371 Samantha Raissa Cunha da Silva 377 Sheila Praxedes Pereira Campos 383 Snia Maria Vasques Castro 389 Sunia Kdidija Arajo Feitosa 393 Telma Borges 398 Valquria Luna Arce Lima 405 Werner Borges 409 Yomarley Lopes Holanda 416 Zemaria Pinto 423

  • 5

    CUIAS DE SANTARM A BELEZA GRAFADA POR MOS DE ARTESS DA ASARISAN

    drea Gizelle Morais Costa (UFOPA) 1

    RESUMO: Os primeiros registros sobre as cuias de Santarm foram feitos no final do XVII por naturalista que visitaram a regio amaznica, e atualmente so conhecidas como artesanato de tradio, e como importante tradutor da identidade daquele que o produziu seja como individuo ou como coletividade. Abordo neste trabalho o estudo sobre as famosas cuias de Santarm, As cuias estudadas so procedentes da regio do Aritapera, as peas foram analisadas durante o processo de criao, por meio do registro fotogrfico. A pesquisa foi desenvolvida em maro de 2011, nesta pesquisa procurei analisar a iconografia das cuias e a forma que desenvolvida pelas artess da Asarisan, tendo por objetivo descrever as etapas do processo de confeco da cuia, e principalmente as diferentes formas de grafismo utilizadas na iconografia das cuias, analisando os mais recorrentes, grafismos este feito pelas habilidosas mos das artess da Asarisan, cooperativa de mulheres que confeccionam cuias pretas, tendo como decorao a tcnica da inciso. As cuias de Santarm retratam no somente o modo cultural da regio, mas a identidade de mulheres que por meio do artesanato contribuem com o suporte econmico de suas famlias. PALAVRAS-CHAVE: Cuias, Icnografia, Asarisan.

    1. Introduo

    O conceito de patrimnio imaterial passou a ser mais difundido no Brasil a parti da CF 1988 com o Art. 216 ao qual relata que constituem como patrimnio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, no qual se inclui os modos de criar, fazer e viver.

    As cuias de Santarm podem ser so conhecidas como artesanato de tradio, onde se agregar a expresso de sua prpria origem estando presente em si sua forte marca de cultura, sendo capaz de traduzir sua identidade tanto do individuo, como da coletividade que o produziu.

    No processo de confeco das cuias, sero abordadas neste trabalho as vrias formas de grafismo feito artesanalmente pelas artess da Asarisan, cooperativa de mulheres que confeccionam cuias pretas, tendo como decorao a tcnica da inciso.

    Este trabalho tem por objetivo descrever as etapas do processo de confeco da cuia, e principalmente as diferentes formas de grafismo utilizadas na iconografia das cuias, analisando os mais recorrentes.

    2. Sobre a ASARISAN

    A leste de Santarm, aproximadamente trs horas de barco, banhada pelo Rio amazonas, est localizada a Regio do Aritapera que abrange as comunidades de Enseada do Aritapera, Centro do Aritapera, Carapanatuba, Surubim-a e Cabea do ona, comunidades essas que nos anos de 2002 e 2003 foi implantado o projeto cuias de Santarm.

    O projeto procedeu ao levantamento de padres decorativos de cuias e outros artefatos de procedncia do baixo amazonas pertencentes ao acervo de vrios museus (Carvalho, 2003). Este levantamento resultou na confeco da apostila Padres

    1 Acadmica de Especializao em Direitos Humanos e Polticas Pblicas PPDHPP pela Universidade Federal do Oeste do Par, graduada em Cincias Sociais, atualmente atua na rea de arqueologia, antropologia e patrimnio cultural.

  • 6

    Tapajnicos, onde foi entregue as artess como fonte de pesquisa para a criao dos grafismos das cuias, onde se aplicado tcnica de incises.

    Com o fomento do projeto e as artess capacitadas para criao destas diversas formas de iconografia foi criada em maio do ano de 2003 a Associao das Artess Ribeirinhas de Santarm ASARISAN.

    A tcnica artesanal uma tradio que vem atravessando sculos, e por outro lado a continuidade do modo de fazer vem resistindo ao tempo pelo importante papel das mulheres da Asarisan, que no decorrer dos anos transmitem esta tcnica. (MADURO, 2009, p. 47). 3. Modo de Criar e Fazer cuias

    O fruto da cuieira (crescentia cujete) a matria prima para a confeco das cuias de Santarm. O modo de se preparar as cuias utilizado pelas artess da Asarisan se desenvolve em diversas etapas, primeiramente se faz a colheita dos frutos maduros que so cortados e se retirado o miolo, aps cortado o fruto j apresenta o formato de cuia que so mergulhadas em gua fervente, em seguida colocadas em recipientes com gua para que ocorra o amolecimento, este processo dura em torno de cinco dias.

    Mas vento no vinha e ca em mim: Ah... cuia de Santarm no serve de abano. Naturalmente, de primeiro, os ndios estavam precisando de recipientes, repararam no fruto de casca dura, criaram a primeira cuia. Mas era spera por dentro e facilmente atacada do bicho. E os ndios levaram anos, centenas de anos, com a cuia servindo mal, at que um dia descobriram o verniz de cumat. E a cuia envernizada apresentava agora um bonito polido negro e era objeto duradouro, impossvel de bicho atacar. A cuia servia. Integralmente! Mas um diabo de piaga interessado quis contentar melhor o Curupira escondedor da caa; ou foi um rapago mais amoroso que como prova de maior habilidade quis render depressa a virgem; ou ndia malandra que, adormentado o filho, quis matar o tempo, quem foi?... certo que um dia a cuia aparece com uns rabiscos de cor e uns sulcos que a pedra cortante fizera, destruindo em sua passagem o verniz 2.

    As artess confeccionam as peas nos mais variados modelos alm do formato

    tradicional da cuia, como travessa, copos, jarros, tigelas. Aps definido a forma, ocorre raspagem da parte interna, e para que a cuia

    tenha um perfeito alisamento usada a escama de pirarucu e em seguida a folha de embaba, depois ocorre o processo de limpeza onde se retirado os resduos restantes, logo depois so dispostas ao sol para secar, e aps este processo passam a apresentar uma colorao marrom clara.

    O processo de tingimento feito com o cumat, onde com o auxilio de um pincel de penas as artess passam a tintura em ambos os lados das cuias, sendo repetido este procedimento diversas vezes para que assim as peas adquiram a colorao vermelha escura aps secagem, e para que a tintura fixe perfeitamente as peas so dispostas em uma espcie de cama chamada puanga, permanecendo por algumas horas para que se atinja uma colorao enegrecida. No tratamento e acabamento as cuias so lavadas com folhas aromticas e postas para secar a sombra, evitando assim um provvel ressecamento das peas. 4. A Tcnica da inciso e exciso Iconografia das cuias de Santarm

    2 Trecho retirado da obra de Mrio de Andrade contido no suplemento Literrio de Diretrizes.

  • 7

    A palavra iconografia deriva do termo grego eikon imagem, graphia escrita ou

    descrio, ou seja, arte de representar e descrever por intermdio da imagem, grafismo ou gravuras como uma forma linguagem escrita.

    Na iconografia das cuias de Santarm usado o grafismo que por meio da tcnica da inciso se traa ou desenha vrios tipos de linhas, que formam diversos tipos de decorao com padres florais, e tambm padres indgenas, estes inspirados na cermica arqueolgica de Santarm.

    Neste processo de criao cada artes desenvolve conforme sua criatividade, mas, em se tratando de uma cooperativa o trabalho final apresentado de forma coletiva.

    Os processos inventivos e criativos de tais populaes so, por essncia, coletivos, e a utilizao das informaes, idias e recursos gerados com base em tais processos amplamente compartilhada. Portanto, a concepo de um direito de propriedade pertencente a um indivduo ou a alguns indivduos determinados estranha e contrria aos prprios valores e concepes que regem a vida coletiva em tais sociedades. Por tal razo, que se defende a adoo do conceito de direitos intelectuais coletivos ou comunitrios. (BARROS, 2006, p.124).

    Na Asarisan, este trabalho se d pela coletividade, realizado nos ncleos de produo das comunidades que fazem parte da cooperativa, onde as artess se renem para a socializao de idias.

    Segundo Santos (1983, p.35), o carter artesanal e a organizao da produo

    fazem com que as cuias de Aritapera se articulem nos interstcios de um mercado bem diversificado em Santarm e em todo o pas. Neste caso a iconografia das cuias um fator crucial para que isso ocorra.

    Os traos incisos nas cuias anteriores ao ano de 2002 eram predominantes o uso de padres florais, tal como flores, ramas, anans, cesta e bandeiras. Sendo que a partir da criao da apostila de levantamento de Padres Tapajnicos encontrados nos livros de Barata, Palmatary e Gomes, onde se utilizados como base, sendo a partir deles criados novos grafismos.

    A tcnica de inciso das cuias, relatado anteriormente desenvolve padres florais e traos inspirados na cermica arqueolgica, utilizando linhas retas, paralelas, perpendiculares, ziguezague e formas geomtricas.

    4.1 Padres florais

    Nos padres florais o grafismo feito por meio de incises, com linhas retas, escalonadas, espirais interconectadas, crculos e semicrculos, e tambm com tcnica de excises, onde os padres florais foram inspirados na decorao da faiana portuguesa.

    A B C Figura 1: Tipo de decorao Cesta, Bandeiras e Anans3

    3 Fotografia da autora.

  • 8

    As peas acima foram decoradas com linhas incisas paralelas verticais onde no seu interior podemos ver bastonetes inclinados que se intercalam entre si, e por meio de linhas semi - espirais, formando uma cesta com detalhes florais e ramagens (A); Cuia pintada, com bandeiras grafadas atravs de excises de motivos geomtricos em forma de losango, e incises com linhas retilneas inclinado sendo o suporte das bandeiras, nota se bastonetes interligados a uma linha reta incisa onde se forma vrias folhagens (B); e decorao com forma de um Anans, onde os traos so feitos com tcnica da inciso, predominando linhas paralelas e escalonadas semicirculares, e crculos excisos com contorno arredondado que se repetem (C).

    Figura 4: Tipo de decorao Flores 4

    Nas peas acima a decorao em motivo floral predominante, onde flores foram grafadas no centro e em toda a pea por meio da exciso. Sendo utilizadas tambm linhas incisas paralelas que se intercalam formando folhagens, e em uma das peas nota se um suporte decorado com crculos ligados por pequenos bastonetes onde se ocasiona o desenho de uma rama. 4.2 Padres da cermica arqueolgica

    A cermica arqueolgica constitui o resto material formado pelos artefatos de barro queimados em fogueiras ou fornos tambm chamados de terracota. (BARRETO, 2010, p. 169).

    Na regio de Santarm foi desenvolvida a cermica de distintos estilos, sendo na produo cermica tapajnica, onde sua decorao fundamentava-se em figuras antropormofas, zoomorfas, modeladas, incises com diversas variaes de traos, e ponteados. Baseado nesta cermica foi confeccionado a apostila de Levantamento de Padres Tapajnicos.

    Padres inspirados no estilo Tapajnico.

    A B C

    D E F

    Figura 5: Cuias formato Tradicional 5

    4 Idem. 5 Idem.

  • 9

    Cuias pintadas com formato tradicional, que segundo (CASCUDO, 1980), trata

    se de um recipiente cncavo, de forma hemisfrica, e cor preta sendo incorporado aos usos e costumes da regio amaznica.

    Este tipo de decorao apresenta motivos com linhas incisas retas e verticais, onde se percebe motivos cruciformes dentro de quadrados concntricos (A); excises que formam semicrculos no interior de quadrados concntricos (B); linhas espirais incisas escalonadas formando crculos interligados, e motivos em zigue zague, onde se representa uma estrela de oito pontas (C); linhas retilneas, incises que formam motivos cruciformes inscritos dentro de quadrados concntricos, onde as excises em forma triangular se assemelha a uma cruz de malta (D); linhas paralelas incisas que se intercalam e excises que formam um losango (E); linhas incisas interligadas formando losangos, dentro de incises retilneas prximas a borda da pea, e mais ao centro linhas em espirais interligadas, e no fundo nota se linhas formando quadrados concntricos (F). Este tipo de decorao apresenta os padres da cermica arqueolgica estilo Tapajnico. 5. Mtodos Aplicados

    Para o desenvolvimento da presente pesquisa foram utilizada pesquisa de campo

    nas comunidades ncleos da cooperativa Asarisan no perodo de 02 a 09 de maro de 2011, bem como conversas com as artess sobre o processo produtivo nos ncleos de produo, onde por meio de registros fotogrficos, e vdeos onde foi registrada cada etapa do processo, desde a retirada da matria prima, o fruto da cuieira, at o desenho dos traos nas peas j enegrecidas.

    6. Consideraes Finais

    As cuias de Santarm retratam no somente o modo cultural da regio, mas a

    identidade de mulheres que por meio do artesanato contribuem com o suporte econmico de suas famlias.

    Devido ao forte contexto cultural a ASARISAN, solicitou junto ao IPHAN o pedido de registro dos modos tradicionais de fazer cuias como patrimnio cultural imaterial Brasileiro, por meio do Inventrio dos Modos de Fazer Cuias no Baixo Amazonas, com o apoio e a interveno da antroploga Luciana Carvalho que desde 2002 acompanha as artess do Aritapera.

    Este trabalho procurou relatar a beleza iconogrfica das cuias, descrevendo as formas de grafismos, criados pelas artess que retratam a sua viso da cermica arqueolgica de estilo Tapajnica, bem como arranjos florais da faiana portuguesa retratados nas cuias desde o sculo XVIII, alm da fauna e flora da regio adaptados a esses arranjos.

    7. REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS ANDRADE, M. A cuia de Santarm. In:___. Suplemento Literrio de Diretrizes, Rio de Janeiro, Ano 2, n20, nov.1939. BARRETO, Mauro Viana. Abordando o passado; uma introduo arqueologia. Belm: Paka-Tatu,2010.

  • 10

    BARROS, Benedita da silva; garcs, Claudia Leonor Lopes; Moreira, Eliane Cristina pinto; pinheiro, Antonio do socorro ferreira. Proteo aos conhecimentos das sociedades tradicionais. Belm: museu paraense Emilio goeldi: centro universitrio do Par, 2006. BRASIL. CONSTITUO DA REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, Edio Administrativa do Texto Constitucional promulgado em 05.10.998, com as alteraes adotadas pelas EC na 1/1992 a 52/2006 e pelas EC de Reviso n.s 1 a 6/1994, Braslia - DF, Senado Federal, 2006. CARVALHO, Luciana Gonalves. Cuias de Santarm. Centro Nacional de Folclore e cultura Popular. FUNARTE, Rio de Janeiro 2003. CASCUDO, Luiz da Cmara. Dicionrio do Folclore Brasileiro. So Paulo: Global, 2001. FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa. Coord. Maria baird ferreira; margarida dos anjos. 4. Ed. Curitiba: Ed. Positivo, 2009. MADURO, Rbia Goreth Almeida. Histria natural da cuia e sua importncia scia econmica, cultural e ambiental para a regio de Aritapera Santarm Par. Trabalho de concluso de curso. Santarm, 2009. SANTOS, Antonio Maria de Souza. Aritapera: uma comunidade de pequenos produtores na vrzea amaznica. Boletim do museu paraense Emilio Goeldi, Nova Serie Antropologia, Belm, 1983.

  • 11

    HISTRIAS DE MULHERES E ENCANTADOS NA VRZEA AMAZNICA

    dria Fabola Pinheiro de Sousa (UFOPA)

    RESUMO: Este trabalho prope analisar o imaginrio amaznico nas narrativas de vida de mulheres ribeirinhas da Regio do Aritapera, localizada s margens do Rio Amazonas, que tem como sede a cidade de Santarm. Por meio de registros orais das histrias de vida dessas mulheres, pretendemos analisar como o sistema de crena em encantados (sobrenaturais, botos, visagens) e em curadores, pajs, benzedeiras, dentre outros elementos, configuram o espao e a identidade feminina numa localidade de vrzea. Tambm buscamos entender at que ponto esse sistema de crenas influi no modo de organizar, entender, tomar conscincia e, enfim, de se representar como mulher ao narrar para si e para outros suas histria de vida como uma srie de acontecimentos encadeados nos quais aqueles entes aparecem fortemente ligados a fatos e passagens da vida.

    PALAVRAS-CHAVE: Imaginrio amaznico, histria de vida, registros orais.

    1. Introduo

    H muito tempo, a Amaznia tem sido alvo de estudos em diferentes reas do conhecimento, que chamam ateno para a forte presena de elementos naturais e sobrenaturais no repertrio cultural e regional (GALVO, 1976). Neste trabalho trataremos de expresses do imaginrio amaznico na histria de vida das mulheres ribeirinhas das comunidades: Enseada, Carapanatuba, Cabea dOna e Surubim-A.

    Estudaremos relatos sobre acontecimentos enquadrados por elas como relevantes, que perpassam desde sua infncia at os dias atuais. Buscamos, assim, identificar o que mudou e o que ainda preservado em seu modo de viver, no que diz respeito a trabalho, famlia, comunidade. Procuraremos analisar como essas mulheres se compreendem depois de passar por processos de transformao em suas trajetrias. 2. Sobre a comunidade

    Aritapera uma regio situada na vrzea de Santarm, s margens do Rio

    Amazonas, caracteristicamente composta por igaraps, lagos restingas e rios. marcada pelas cheias de inverno e estiagens de vero, sendo essas passagens distribudas em perodos de semelhante durao ao longo do ano. Aqui todo tempo a gente vive seis meses dentro dgua a terra, sete meses em terra quando fica vero.

    A regio engloba vrias comunidades dispostas ao longo do rio e nas beiras de lagos e igaraps, sendo os cursos d'gua elementos estruturantes da organizao social. Dessa forma j descreve Galvo (1976, p. 14), num dos pioneiros estudos de comunidades amaznicas: a maior parte da populao amaznica est distribuda ao longo dos rios e seus tributrios, onde se constituem pequenas comunidades rurais. Essas comunidades se constituem em pequenos povoados chamados stios.

    A base da economia das famlias ribeirinhas do Aritapera encontra-se na pesca, no artesanato de cuias, na agricultura de subsistncia e na pecuria de pequeno porte. Na pecuria, vale observar muitas famlias tm algumas rezes, mas poucas fazem delas um meio de economia por meio da venda do gado para corte. Comercializam o queijo, mas sempre em pouca quantidade, geralmente para clientes j conhecidos e que habitualmente compram o produto. O leite basicamente utilizado para o consumo dirio. Contudo, isso

  • 12

    s feito no perodo da estiagem, quando o gado est na comunidade. Passado isto, se faz a subida do gado para fazendas alugadas em terra firme, longe do perigo da enchente.

    As edificaes dessas comunidades de vrzea apresentam arquitetura bastante especfica, caracterstica da regio, so usualmente feitas de madeiras sobre palafitas beira do rio. Contudo, j foram bem mais rsticas:

    No tempo que eu era pequena, a nossa casa era coberta com palha, o assoalho era de pau rolio (esses paus cortado no motor), com as estacas afincadas na terra mesmo. Foi a enchente que j meteu o assoalho (quer dizer, o aterro), que

    era aterro, as casas no tinham assoalho. Quem podia fazer embarreada fazia, quem no podia fazia com palha, cobria e fazia as paredes de palha, apertava tudo pelos cantos pra ela no ficar voando, e botava terra, fazia aquele aterro! A gente carregava terra! Fazia aquelas sapatas ao redor com esse paus do mato e se passava. (Maria Pereira)

    Essa arquitetura preserva os padres descritos h aproximadamente 60 anos por

    Galvo (1976, p.13) a respeito das casas da fictcia It (Gurup, na verdade): As habitaes, exceto nos centros urbanos, so construdas de madeira e palha, obtidas de palmeira como a paxiba o buriti e o caran. Geralmente a habitao se eleva sobre estacas para ficar a salvo das inundaes peridicas.

    Quando a enchente brava, os moradores fazem marombas em suas casas, uma

    espcie de suspenso do assoalho para que dessa maneira possam proteger o mobilirio e utenslios domsticos das alagaes, e, assim, permanecer na moradia. Porm, nem sempre lhes garantindo esse ltimo recurso, sendo s vezes necessria a sada temporria de suas casas, at que o nvel do rio comece a descer. Enquanto isso, procuram abrigo na casa de parentes na cidade e fazem visitas frequentes sua comunidade para verificarem como se encontra o estado de suas casas.

    Com relao alimentao, tambm nota-se um padro de continuidade em observncia ao estudo de Galvo, e os alimentos tidos como bsicos, que so o pescado e a farinha de mandioca, ainda so essenciais.

    O principal produto cultivado a mandioca, a variedade chamada comumente brava, que se presta melhor para o fabrico da farinha-dgua, o alimento bsico. O pescado, e em escala muito reduzida, a carne de caa ou de pequenas criaes de animais domsticos suplementam a parca dieta (GALVO, 1976, p. 13).

    A relao dos moradores dessas comunidades com o rio bastante ntima, conforme se pode depreender das notas sobre sua vida econmica e domstica, em grande parte determinada pela dinmica das guas. Cabe ressaltar, ainda, o aspecto simblico ou material dessa relao, que no deve ser minimizado diante dos usos e sentidos materiais atribudos ao rio e aos recursos que disponibiliza para as comunidades (gua , pescado, transporte). Afinal, concebidas como moradas ou paragens preferenciais de inmeros seres naturais e sobrenaturais dotados de poderes e intervenincia na vida das pessoas do lugar, principalmente das mulheres.

    3. O imaginrio amaznico na vida das mulheres ribeirinhas

    frequente presena de elementos sobrenaturais nos relatos de vida mulheres Aritapera. Em registros orais realizados recentemente durante etapa de trabalho de campo, nos deparamos com inmeras passagens em que botos, encantes, pajs, curadores aparecem como marcadores de experincias de vida individuais, atuando na organizao

  • 13

    das trajetrias sociais individuais. Queiroz (1988 apud, CARVALHO 2011, p. 311) nos ajuda a compreender essa atuao:

    [...] neste caso, o aproveitamento da biografia ou da autobiografia se faz no sentido de buscar como esto ali operantes as relaes do indivduo com seu grupo, com sua sociedade [...] o que se quer captar, atravs de seus comportamentos, o que se passa no interior das coletividades de que participa.

    A intervenincia do imaginrio amaznico se revela, nas histrias de vida,

    acontecimentos sobrenaturais, de encantaria e pajelana, que as mulheres entrevistadas afirmam ter vivido.

    A crena nos elementos acima referidos muito intensa, e as mulheres, principalmente as mais velhas, ainda se resguardam de certas atitudes por terem medo de sofrer algum mal provocado por eles. O elemento mais recorrente em suas histrias de vida so eventos que envolvem o boto. Como rege a lenda, o boto sai do rio e se transforma em homem, sempre vestido de branco, com chapu de palha, moo bem afeioado, e, em geral, aps uma dana nas festas do interior em noite de luar, seduz as moas e depois volta ao rio em sua forma original.

    Tem uma menina que ela falou que foi judiada pelo boto. Ele usou ela, e agora disque ele fica perseguindo ela. A a gente no sabe mesmo se isso verdade. Ela falou que ele tipo adormece ela, e quando ela fica assim, tipo adormecida ele vai e senta na rede. Isso acontece mais quando ela t menstruada. (Rosymari)

    Tido por muitos como um animal maligno, o boto se enquadra, em algumas

    perspectivas, na categoria de visagens, como sugere Galvo (1976, p. 4) em suas referncias aos bichos visagentos de It: Os bichos visagentos no recebem qualquer culto ou devoo. A atitude do caboclo de evit-los tanto quanto possvel ou de recorrer a tcnicas de imunizao ou de neutralizao de seus poderes malignos. - O mesmo autor ressalta que existe uma diferenciao entre as espcies de botos: boto vermelho, tido como perigoso, e o boto preto, considerado inofensivo.

    Existem duas espcies de boto, o grande, avermelhado, mais perigoso, e o pequeno, preto, o tucuxi. Desse ultimo, repete-se a crena generalizada que ajuda os afogados empurrando-os para as praias. Acredita-se tambm que tenha poder de afugentar os vermelhos quando estes atacam canoas ou nadadores. (GALVO, p. 67).

    Partindo, pois, do temor malinesa que o boto vermelho pode oferecer s mulheres

    ribeirinhas, que elas se precaveem das atitudes tidas como inapropriadas, principalmente quando menstruadas como: tomar banho, lavar roupa, ou fazer qualquer outra atividade na beira, andar na estrada a partir das 18 horas, andar na estrada menstruada frente de outras mulheres, principalmente crianas, pois, nessa situao acredita-se que o encantado no judia da mulher menstruada, mas sobretudo da criana ou de outra mulher que esteja atrs.

    Contudo, hoje em dia, as mulheres jovens no tm mais tanto cuidado em evitar a judiaria do boto, elas no mais se resguardam nem quando esto menstruadas. Tudo que antes no lhes era permitido, agora praticam sem preocupao. Mas mesmo no seguindo risca as recomendaes dadas pelas mes, avs ou moradoras antigas, elas sabem da possibilidade de algum acontecimento sobrenatural, e, nesse sentido, o boto e outras visagens permanecem no seu horizonte.

    Essa percepo de mudanas de comportamento entre as mulheres das comunidades foram observadas e narradas por interlocutoras mais velhas que compem o nosso recorte de informantes. Percebendo ento que:

  • 14

    Num sentido mais imediato, as experincias individuais relatadas revelariam o mundo social do narrador na medida em que ele no se limitar a contar sobre si, contando tambm sobre os outros, fazendo aparecer a imagem de si, mas tambm a imagem que ele faz do seu grupo, de seu meio e de seu tempo. Pereira ( 1988 apud CARVALHO, 2011, p. 310-311).

    Essa mudana de comportamento pode ser considerada como a quebra de uma

    srie de ritos antigos, observados no ncleo domstico e na coletividade da comunidade. Por exemplo: antigamente, quando a moa ficava menstruada, sua me quem lhe auxiliava, desde a preparao dos panos para o forro, no asseio. A gua para o banho era buscada na beira e levada para o quintal, e as mes cuidavam de manter suas filhas longe

    de qualquer atividade que exigisse esse percurso ou caminhadas pela estrada, resguardando-as at mesmo de irem s aulas por estarem nos seus dias. Agora, por fazerem o que no lhes era permitido, no se sabe mais quando a mulher est ou no menstruada, e, desse modo, tambm as pessoas da comunidade no podem se precaver de eventuais prejuzos imputados pela quebra dos ritos de cuidado com o boto. Contudo, qualquer ato proscrito ainda pode atrair a ira do boto e fazer com que ele maline das mulheres.

    A partir dessa noo de quebra de ritos, entendemos que essas mulheres escolhem ou podem escolher seus caminhos, nos remetendo ao conceito de projeto estudado por Velho (1994 apud CARVALHO 2011) a prpria existncia de projeto a afirmao de uma crena no indivduo-sujeito. Nessa perspectiva, essas jovens mulheres passam a atuar como sujeitos de suas prprias histrias nas vrias possibilidades que lhes so apresentadas para essas escolhas.

    Desde muito cedo as mulheres ribeirinhas convivem com essa relao de mulher e boto, o que pode e o que no pode. Na maioria das vezes, para quem de fora, so apenas fatos imaginados e que no tm nenhum fundo de verdade. Boto, para muitos, s existe em lenda, e no possvel virar homem, muito menos emprenhar mulher.

    Aqui no pretendemos discutir se boto existe ou no existe, mas, apresentamos elementos dos relatos orais que atestam a permanncia social desse elemento, interferindo na organizao da prpria noo de vida individual com uma trajetria construda em relao a um contexto social, que opera tambm como normatizador das experincias do sujeito. Acreditamos, pois, que uma vida no pode ser compreendida unicamente atravs de seus desvios ou singularidades, mas, ao contrrio, mostrando-se que cada desvio aparente em relao s normas ocorre em um contexto histrico que o justifica (FERREIRA; AMADO, 2002).

    Os relatos orais produzidos revelam que, o boto, , ainda, parte integrante da vida de mulheres que acreditam e respeitam as proscries, ou que acreditam, mas j no do tanta importncia s regras, embora saibam que por isso podem ser acometidas por malefcios.

    Quando eu parava com meus pais (eu parei mais com meu irmo). Quando eu tava junto dos meus pais, me aconteceu uma coisa verdica, porque eu fui judiada pelos botos e a aqueles botos se representavam igualmente uma pessoa pra mim, eu enxergava ele, todo de branco, se eu no enxergasse eu no chamava a minha gente pra me acudirem. O rosto dele era igualmente o nosso, igual de um homem mesmo, ele se representava de chapu, vestido de branco. Eu dizia que queria ficar com os meus pais, que no queria ir. Eu tinha parece que 10 anos. E a eu fiquei bem dizer quase maluca. Eles chegavam comigo, que eles queriam me levar, eu dizia que no, que eu no queria ir. Quando foi um dia eu pedi pra um irmo meu que me tirasse de l de onde eu estava porque eles iam me levar n? (Luiza)

  • 15

    Mulheres como dona Luiza, afirmam que vivenciaram judiaria de boto e at hoje tm medo desse bicho.

    A depois eu no facilitei eu tinha medo e tenho at agora, eu tenho medo de boto! Quando ns morava em outra casa, ele saiu pra pescar (seu pai), a eu fiquei, uma hora dessa (aproximadamente 18 h), eu disse assim, mas eu j vou tomar banho, tava eu com ela (sua filha), a quando eu vi aquele cardume de boto chegou em baixo do assoalho, a eu disse, meu Deus, eu gritava o av dela, gritava, gritava, at que ele veio, que ele tava l pra trs pescando (Luiza).

    As mulheres que passaram por alguma situao como a de Dona Luiza, ou semelhante, at hoje tomam cuidados necessrios para no passarem por isso outra vez. Ainda se recordam com medo e recomendam a qualquer pessoa que no desrespeitem a natureza, pois ela tem proteo e, no gostando de certas atitudes, pode se vingar. [...] os acidentes geogrficos tm me, os rios, os igaraps, as lagoas, os poos e at os portos onde atracam as canoas (GALVO, 1976, p. 77).

    Nesse sentido, as histria de vida do presente remetem tambm a uma memria coletiva traduzida em imagens da prpria gnese do meio em que vivem os. Essa memria no s referencia a um passado (vivido ou imaginado), mas tambm uma srie de projees no presente. Pois o conhecimento do passado no so aqueles remanescentes mortos e quase mortos de uma cultura oral passada [...] mas est relacionada com a inteligncia crtica e a utilizao ativa do conhecimento (FERREIRA; AMADO, 2002). As mulheres do Aritapera, referenciadas nesse trabalho, vivem no presente experincias que remetem a momentos e conceitos que vivenciaram, elas prprias ou seus ancestrais no passado.

    A memria um termo extremamente abrangente [...] Aqui, estou usando o termo especificamente para designar o processo de reconstruo e organizao das experincias vividas por um indivduo sobre um eixo temporal, em um passado mais ou menos prximo do momento da evocao dessas experincias como lembranas. (CARVALHO, 2011, p. 317).

    6. Consideraes finais

    Estas reflexes, em fase inicial, buscam compreender, como o imaginrio amaznico interfere na histria de vida de mulheres ribeirinhas da Regio do Aritapera, a partir de registros orais de suas histrias de vida. Entendemos ainda, que essas mulheres vm reconstruindo suas histrias de vida sobre o pano de fundo da memria.

    Percebemos mudanas que vm ocorrendo em sua organizao e tentamos compreender como as mulheres se identificam socialmente, no presente.

    Levar a srio os relatos orais no significa considerar que eles falam por si mesmos de uma forma simples ou que seus significados so auto-evidentes. [...] o significado no fixo: ele precisa ser estudado na prtica (FERREIRA; AMADO, 2002, p. 155).

    Referncias Bibliogrficas: CARVALHO, Luciana Gonalves de. A graa de contar: um pai Francisco no bumba meu boi do Maranho. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2011.

  • 16

    GALVO, Eduardo. Santos e visagens: Um estudo da vida religiosa de It. 2 ed. Braslia: Nacional, 1976. FERREIRA, Marieta, AMADO, Janana: usos & abusos da Histria Oral. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. RONDELLI, Beth. O narrado e o vivido. Rio de Janeiro: FUNART/IBAC, Coordenao de Folclore e Cultura, 1999. SANTOS, Antnio. Aritapera: Uma comunidade de pequenos produtores na vrzea amaznica (Santarm PA). Belm: Museu Paraense Emilio Goeldi, vol. 23, n 83 maio, 1982.

  • 17

    A AMAZNIA ILUSTRADA: O QUE SE CAMUFLA POR ENTRE O VERDE DA SELVA 6

    Adriana Aguiar (UFAM/FAPEAM) 7

    RESUMO: Um passeio pelas pinturas no interior do Teatro Amazonas ou pelas quase mil obras da Pinacoteca do Estado revelam os muitos olhares que artistas lanaram sobre a Amaznia. Por mos de estrangeiros e brasileiros, o espao toma a forma de um colorido mosaico de percepes. As temticas que permeiam essas imagens so quase sempre providas de um imaginrio construdo pelo europeu e intensificado pelos diferentes e reforados conceitos que se lanavam sobre a regio, fundando o que se pode chamar de uma tradio imagtica da Amaznia. No raramente, a extensa rea localizada ao norte da Amrica do Sul arquivada como selva, como massa verde, camuflando realidades subjacentes no interior do ecossistema. Quando tais imagens so produtos do texto literrio, que Amaznia metaforizada? So questionamentos como este que se deseja problematizar nesse artigo. Partindo das relaes entre literatura e pintura, buscar-se analisar a Amaznia ilustrada no romance A Selva, especificamente nas edies de 1939, encomendada por Roberto Nobre, e de 1955, realizada por Cndido Portinari. Dessa forma, pensa-se no apenas a relao de fidelidade entre os contextos semiticos, mas, sobretudo, as relaes entre os efeitos que o texto literrio efetua no pintor, e ambos (literatura e pintura), no leitor. PALAVRAS-CHAVE: Amaznia; Literatura; Pintura; A Selva.

    Um passeio pelas pinturas no interior do Teatro Amazonas ou pelas quase mil obras da Pinacoteca do Estado revela os muitos olhares que artistas plsticos lanaram sobre a Amaznia. Por mos de estrangeiros e brasileiros, o espao toma a forma de um mosaico de percepes. As temticas que permeiam essas imagens so quase sempre providas de um imaginrio construdo pelo europeu e intensificado pelos diferentes e reforados conceitos que se lanavam sobre a regio, fundando o que se pode chamar de uma tradio imagtica da Amaznia. O livro Viagem pelo rio Amazonas, de Paul Marcoy, por exemplo, traz diversas ilustraes da aventura que o viajante europeu realizou durante o sculo XIX. As anotaes, desenhos e aquarelas que compem a obra expem a viso de Marcoy sobre a geografia amaznica, ao estilo da poca: o Outro como extico, brbaro, fortemente marcado pela viso do europeu civilizado. Os relatos e pinturas de Viagem pelo rio Amazonas so apenas uma amostra de como a extensa rea localizada ao norte da Amrica do Sul foi, e em certa medida continua sendo, arquivada: como massa verde, camuflando realidades subjacentes no interior do ecossistema. Da herana deixada pela tradio, poder-se-ia falar em Amaznias: dos colonizadores, dos religiosos, dos naturalistas, dos viajantes. Todas perpassadas por um aspecto em comum: o imaginrio ocidental e certa dose de fico. Se possvel mencionar, em textos tidos como no-literrios, termos como fico e imaginao, suportes e categorias tradicionalmente atribudas ao artstico, cabe aqui uma pergunta: quando a Amaznia produto do texto literrio, que espao metaforizado?

    A narrativa castriana contou, ao longo de suas publicaes, com quatro edies ilustradas. Aqui, analisaremos a edio de 1939 e a de 1955. A primeira edio ilustrada correspondeu a um projeto de encomenda. Roberto Nobre pretendia que oito ilustradores traduzissem pictograficamente A Selva a partir de uma geografia imaginria que o livro lhes desse a ver. A edio tinha como encomenda o seguinte tema genrico: de que modo os pintores portugueses veem a selva, depois de terem lido o romance de Ferreira de Castro (Carvalho, 2007, p. 258). De antemo, importante destacar que embora as ilustraes devessem partir das ideias advindas do livro, como sugere Nobre, anterior a isso os artistas j estavam carregados de conceitos sobre a floresta, sendo as suas pinturas um constructo entre o livro e o imaginrio anterior literatura.

    Acerca das ideias sobre a floresta, Roberto Damatta, ao investigar as representaes de natureza na sociedade brasileira, afirma que os discursos envoltos desse tema se caracterizam por

    6 Por questes de espao, o texto uma verso reduzida de um estudo mais amplo que realizamos como parte da dissertao de mestrado, em andamento. 7 Mestranda em Letras, Estudos Literrios, na Universidade Federal do Amazonas. Bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Amazonas.

  • 18

    uma viso ednica e dadivosa, necessitada de um povo com carter para transformar e dominar os obstculos naturais (1994, p. 100, grifos nossos). Por essa lgica, ou seja, a natureza como obstculo, o homem estaria sempre dependendo de uma determinada capacidade de transformao do natural. No caso da representao portuguesa, segundo o antroplogo, a natureza um cenrio fortemente visual, no qual os atrativos so maiores do que as dificuldades (p. 101). Assim, a floresta torna-se lugar a ser explorado pelo homem, princpio que deu origem aos ciclos econmicos brasileiros. Damatta, ainda no mesmo texto, expe as diferenas entre a representao de natureza para os colonizadores portugueses e os puritanos colonizadores ingleses, pois para esses ela surge como espao inspito e cruel, humanamente desolado, porm habitado por animais e seres selvagens (1994, p. 110) cenrio que devia ser domado pelos homens. A Amaznia de Castro, como tambm a de alguns naturalistas que viajaram pela selva at o incio do sculo XX, guarda afinidades com essa viso.

    Numa das ilustraes do romance, feita por Martins Barata, presente na edio de 1939, a viagem de Alberto, protagonista do romance, pintada com tons coloridos e marcada pelo vazio demogrfico que o mesmo experimenta na descida do rio. Ao fundo do quadro um navio minsculo navega nas guas. A pintura parece construir-se a partir da perspectiva da selva, que observa o navio e o viajante que passa. Mas no se pode ver nem o que est para dentro do verde, nem quem passa sobre o rio. como se a selva observasse atentamente e escondesse o homem, conforme descreve Alberto em certa altura da narrativa: assustava com o seu segredo, com o seu mistrio flutuante e as suas eternas sombras, que davam s pernas nervoso anseio de fuga (AS, 1989, p. 84). Adiante, o protagonista confirmaria a viso de que para ele o rio, juntamente com a floresta, comporia a selva oscura, como na Divina Comdia de Dante, onde o caminhante se perde na entrada para o inferno (cf. Schama, 1996, p. 149).

    Conforme tese defendida por Allison Leo, Castro tentou investir numa perspectiva humanista, de maneira que sua literatura pudesse ultrapassar o descritivismo-paisagista. No obstante, observa-se que os efeitos causados no leitor-ilustrador da edio de luxo de A Selva (1939) revelam os limites do romance, que no chega a alcanar de todo a empreitada do escritor. Logo que se observam as pinturas, um aspecto chama ateno: a ausncia do humano. Na literatura ilustrada, a Amaznia pintada como o lugar da continuidade da massa verde, sem qualquer cesura visual (Leo, 2011, p. 13). E nesse cenrio o homem dilui-se ou diludo.

    O projeto de Roberto Nobre no seria de todo to simples. Correspondncia trocada entre o pintor e Ferreira de Castro, em 10 de outubro de 1938, revela o problema enfrentado diante do desafio de publicar uma primeira edio ilustrada. Nobre afirma na carta:

    a publicao do seu livro tem sido uma tragdia to grande que a falta de notcias ainda para si um mal menor do que se V. fosse posto dia a dia ao corrente dos dissabores e arrelias que tm surgido. [...] Depois das 7 pragas do Egito so os pintores a pior praga que existe. [...]. Se V. soubesse o que apareceu entre as Selvas pintadas! Ora eu estava ainda sob a terrvel impresso do quadro do Carlos Reis... que at lees metia. Se algum daqueles fosse fazer os quadros, metia com certeza o Jardim Zoolgico. [...] Falei-lhes em tom condicional e incitei-lhes o brio. Consegui assim que um deles fizesse para mim o melhor quadro que vem no livro, o de Manuel Lapa. (2007, p. 84-85)

    A recusa de Roberto Nobre aos quadros d-se no somente pelos exageros que aparecem em alguns, mas tambm porque este j tinha uma percepo idealizada de representao da Amaznia e desejava encontr-la nas ilustraes. Alm disso, possvel que o romance, como no raramente acontece, tenha sido processado como um quadro real, que enforma a geografia, sendo rejeitvel alterar a realidade agenciada pela narrativa de Castro.

    Em palestra proferida durante o XXIII congresso da ABRAPLIP, em setembro de 2011, a professora Helena Carvalho Buesco afirmou: a paisagem literria constitui uma das mais interessantes manifestaes da natureza histrica do lugar. [] Uma paisagem nunca se limita a estar a. Ela constitui-se como um acontecimento que o sujeito constri na histria (cf. Caderno de resumos do evento, 2011, p. 184). A assertiva da pesquisadora vem ao encontro da paisagem arquitetada em A Selva, uma paisagem na qual a geografia e a histria encontram-se, cruzam-se na

  • 19

    floresta. De tal modo, o que se processa literariamente, alm de fico, uma Amaznia historicamente criada, cuja paisagem fruto de construes humanas, portanto, no naturais, como assevera Renan Pinto:

    Se durante muito tempo o atraso era explicado por fatores desfavorveis do clima, do meio fsico, das raas e povos inferiores, do tipo de ocupao territorial, hoje apesar do conhecimento suficiente para evidenciar que o subdesenvolvimento econmico e o atraso cultural so produtos histricos bem definidos, as concepes correntes, entretanto, terminam reafirmando a crena de que h regies e povos que nasceram para ocupar posies em desvantagem e subordinadas. (2006, p. 31)

    As primeiras ilustraes de A Selva tambm compem, apesar de vincularem-se fico, as ideias apresentadas pelo socilogo. A imagem mais bonita, conforme percepo de Nobre, a de autoria de Manuel Lapa, vai reforando a aquarela de nico tom, um tom esverdeado de incio ao fim, algumas vezes pincelado pelo marrom dos caules das rvores ou pelo negro das sombras. A floresta interpretada por Lapa pintada como um emaranhado indestrinvel, com espcies de braos monstruosos, tal qual Adamastor, monstro natural no caminho dos portugueses.

    Ainda na carta enviada a Castro, referindo-se ao trabalho de Carlos Reis, Nobre afirma: ele pintou uma horta com um leo e uma serpente e supe que isto a Selva... Lees no Brasil! Isto que cultura! Ao gravar matamos-lhe o leo... O Dr. Magnus preferiu isto a recusar o trabalho de S. Majestade (p. 85). O absurdo com o qual se assusta Nobre, no , contudo, novo quando se pensa a mata. Em Paisagem e Memria, Simon Chama faz um elaborado estudo sobre as representaes da natureza. Inclusive aponta que ainda no sculo XVII havia verses dramticas de alguns espaos naturais como cenrios de terror (1996, p. 448). J naquela poca, e mesmo se tratando de regies como a Inglaterra, a paisagem relacionava-se runa, ao caos, catstrofe.

    Lilian Dias Carvalho, ao analisar as ilustraes de 1939, num texto que se intitula Paisagens sem rosto para o estudo da primeira edio ilustrada de A Selva, relaciona a qualidade das pinturas resumidamente a dois fatores: 1) falta de uma memria afetiva e emprica dos pintores em relao Amaznia; 2) capacidade do prprio artista de parafrasear, traduzir, interpretar ou recriar coerentemente a obra num trabalho que serve como complemento a outro contexto semitico. Para a autora, a primeira obra ilustrada nem traduz nem complementa a narrativa de Castro. As ilustraes, afirma, so de uma neutralidade que no encontra correspondncia nas descries que surgem no romance, to cheias de vida (2007, p. 264). E continua: a edio ilustrada de 1939 no cria uma relao de coerncia relacional com o livro (p. 264). Nesse sentido, dissentimos da autora, pois a primeira parte do romance carregada de descries da paisagem como anomalia, espao selvagem. A natureza como monstro intransponvel acaba aliando-se s ideias preconcebidas do verde amaznico em comparao com a paisagem europeia, como relata Alberto: A rvore solitria, que borda melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graa e romntica sugesto e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaadores, que espiavam de todos os lados (AS, p. 84).

    Sobretudo a selva da primeira parte da obra narrada como grandeza aniquiladora do homem. Entendemos, portanto, os resultados das ilustraes como efeitos do romance no artista, aliados tambm ao imaginrio de floresta que precede a leitura de A Selva. No obstante, so inegveis os excessos das ilustraes, que abdicam de dar figura humana sequer uma pincelada. Por certo, o narrador do romance, medida que transcorre a narrativa, faz diminuir a grandiosidade da paisagem e torna mais central a presena humana. Conforme Allison Leo, Ferreira de Castro parece ter percebido esse complexo entre linguagem e natureza antes de terminar de escrever A Selva. Mas, at certa altura, ele reproduz a linguagem monumental (2008, p. 183). Consequentemente a selva da primeira parte da obra que persistir no imaginrio e na ilustrao dos pintores, mais fortemente na pintura de Carlos Reis, ainda que para Roberto Nobre vincule-se

  • 20

    apenas falta de compreenso e de cultura por parte dos artistas contratados. A floresta, antes mesmo que Alberto tome contato fsico com ela, ainda na fase visual, descrita como pr-histrica, repetitiva, perigosa. A verso iconogrfica de 1939 pincela descries recorrentes no romance, de modo que as pinturas geram no apenas uma, mas vrias selvas a percorrer o livro, s quais os artistas do formas.

    Pelas mos de Cndido Portinari, A selva ganha um preenchimento plstico distinto da edio de luxo. O trabalho do artista brasileiro compe-se de doze pinturas: 1) O Seringueiro; 2) Boi no Guindaste; 3) Os Brabos; 4) A rede; 5) A Inspeo; 6) A Clareira; 7) Os Retirantes; 8) A Ona; 9) O Cemitrio; 10) O ndio Morto; 11) Os ndios; 12) O Incndio. A j temos o primeiro corte em relao de 1939: a nomeao das pinturas. Portinari tambm avana em relao temtica da primeira, que, como vimos, se fixou na ideia de floresta como espao em que o humano est ausente. O artista brasileiro, como os ttulos das ilustraes sugerem, pe como tema principal de seu trabalho a condio humana na selva.

    Diferente da recepo que teve o projeto de Roberto Nobre, a edio de 1955 foi recebida com elogios e interesse pelo pblico especialista. A correspondncia enviada por entre Portinari a Castro revela j o tom de satisfao pelo trabalho:

    estou muito contente com o xito do nosso trabalho. Feito com entusiasmo e admirao pela sua obra. Desejava agradecer tambm ao Almada Negreiros, Pamplona e a Joo de Barros; Deste ltimo apareceu aqui esplndido artigo. Do Porto pediram-me permisso para exibirem ali o nosso trabalho; respondi que de minha parte dou permisso contanto que consultem o querido amigo. (2007, p. 177)

    A que se deve tamanho sucesso: tcnica artstica? temtica explorada? Em 1955 Cndido Portinari j desfrutava de um considervel reconhecimento artstico em nvel internacional. Inclusive, no mesmo ano em que se publica a edio ilustrada, recebia medalha de ouro, como melhor pintor, concedida pelo International Fine Arts Council. Um ano aps a ilustrao do romance, entregava os murais Guerra e Paz sede da ONU. possvel que, alm de seu comprovado talento, o prestgio tenha colaborado para a boa recepo das ilustraes.

    As ilustraes de 1955 seguem de modo geral o tom desenvolvido em outros trabalhos do artista. O gosto de Portinari pelo social j havia se relevado desde a dcada de 1930. Conforme Annateresa Fabris, a partir de Caf, o humano, compreendido em termos sociais e histricos, torna-se a tnica da arte de Portinari, voltada para a captao da realidade natural e psicolgica, para uma expressividade, ora serena e grave, ora desesperada e excessiva (1990, p. 78). Esse gosto pela causa humana, por uma pintura que revelasse os tipos sociais perifricos do Brasil, torna-se elo entre a concepo de arte de Portinari e a de Ferreira de Castro.

    Dizamos que uma das rupturas da edio de 1955 para com a primeira refere-se s formas como o romance explorado, especificamente ao que Portinari acrescenta s tonalidades verdes. Mas gostaramos ainda de pensar e problematizar como o homem da floresta interpretado por Portinari a partir de A Selva. Conforme Allison Leo, duas ideias sobre a natureza vinculam-se representao das condies materiais do trabalhador amaznico:

    a primeira, estreitamente conectada aos fatores scio-econmicos, de que a natureza seria um dos elementos do processo produtivo, isto , matria-prima, representada em especial pelo ltex extrado da seringueira; a segunda, que acentua o aspecto da dificuldade e do sofrimento na vida cotidiana daqueles homens, a intransponibilidade da natureza, a representao de uma anti-me-natureza. (2008, p. 150)

    Os apontamentos do pesquisador tecem afinidades com as ideias apresentadas no texto de Damatta, comentado anteriormente: ora a natureza tida como ddiva ora como obstculo. Nesse sentido, quais concepes seriam possveis apreender da arte de Portinari, advindas de A Selva? Pensemos essas relaes a partir de duas figuras: A Ona e O Seringueiro.

  • 21

    primeira vista, a natureza imponente da edio de 1939 cede ao homem a posio de protagonista. Na pintura de Portinari o verde diludo: a topologia, sendo assinalada por laivos em tons escuros e claros, no apenas nos matizes da flora. A aquarela da Amaznia como espao nico do natural-selvagem torna-se desfocada para trazer ao primeiro plano o humano, em ambos os casos, caracterizado com vestes na cor branca. O homem que habita a selva interpretada por Portinari o seringueiro, que ocupa o plano principal da pintura em oposio ao fundo com recortes esverdeados e distorcidos. Como explica Annateresa Fabris, o predomnio da figura humana sobre a paisagem est igualmente presente nos afrescos de Portinari [...] como consequncia do amadurecimento de uma viso pictrica e social a um s tempo (2005, p.99).

    Analisando as duas pinturas em relao ao pensamento de Leo, ou seja, natureza como matria-prima e natureza como anti-me, possvel notar em A Ona, que homem e natureza compem a mesma paisagem. No obstante, pode-se dizer que o homem aparece em oposio floresta, como se um fosse inimigo do outro. No h a percepo do humano que interage com o meio natural, retirando dele o seu sustento. A imagem reproduz a ideia de homem como vtima. Em O Seringueiro, a interao acontece, porm, mais uma vez reaparece o tema da explorao: o homem que explora o meio e ao mesmo tempo vtima do dono do seringal. Em nenhuma das duas pinturas apresentada a face humana. Fabris, ao observar que a mesma figura fsica do trabalhador se repete nas pinturas de Portinari, conclui: esttico e ensimesmado, o trabalhador de Portinari uma figura reificada e destituda de identidade. Seu anonimato, antes de evocar a ideia de uma totalidade abrangente (povo ou nao, por exemplo), evoca o processo de mercantilizao do trabalho e, logo, a ciso entre o trabalhador e a atividade produtiva (2005, p. 101-102). Embora tenha feito opo por retratar o trabalhador brasileiro, no caso especfico de nosso artigo, o trabalhador do ciclo da borracha, o ilustrador esbarra nos limites da representao realista e homognea, que o impede de alcanar mais profundamente a condio do seringueiro.

    Simon Schama (1996, p. 153) ressalta que a origem do termo floresta, deriva de foris, e significa fora. No Brasil, como corrobora Damatta, quanto mais prximo da natureza, mais inferiorizado (1994, p. 113). Espao s margens, habitar o verde , portanto, estar parte da sociedade. Nesse sentido, o trabalho do artista plstico ganha em qualidade por tornar perceptvel o fato de que camuflada sob a selva h marcas de homens verdes (expresso utilizada por Schama) que participaram da histria de um ciclo econmico no meio da floresta. Considerados os desacertos, importante destacar que o pintor tornou perceptvel o que o mundo esqueceu-se de olhar: o fato de que havia gente na floresta amaznica, gente habitando, vivendo, trabalhando. Gente com uma vivncia sociocultural (cf. Schama, 1996, p. 151).

    Renan Freitas Pinto sugere que as concepes de Amaznia unicamente como topografia do verde devem ser revistas, de maneira que se possa pensar diversidade natural e diversidade cultural como partes do cenrio amaznico (2006, p. 235). Seguindo essa lgica de pensamento, a noo de floresta verde iria alm de uma utopia imaginria, mas incluiria tambm uma vigorosa sociedade trabalhadora (Schama, 1996, p. 153). As edies ilustradas de 1939 e 1955 parecem balancear a dualidade que compe o romance, que oscila entre a reproduo de noes estereotpicas a respeito das populaes amaznicas, especialmente aquelas noes ligadas ao determinismo geogrfico, e posturas mais crticas frente aos temas amaznicos (Leo, 2009, p. 9).

    Destarte, a selva castriana que impregna os pintores europeus e, em menor grau o brasileiro, relaciona-se chave interpretativa que em certa altura do romance o narrador d ao leitor: a selva dominava tudo. No era o segundo reino, era o primeiro em fora e categoria, tudo abandonando a um plano secundrio. E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino a aquele despotismo (AS, 1989, p. 84). No obstante a paisagem no interior da floresta tenha figurado como perturbadora para os estrangeiros, para os habitantes locais possui um complexo sistema de comunicao. E a mesma paisagem repetitiva e uniforme, aos olhos de quem a vislumbra de fora, transmuda-se, aos olhos do homem local, no hbitat diversificado e carregado de significados culturais e histricos.

  • 22

    Referncias

    ALVES, Ricardo Antnio. 100 Cartas a Ferreira de Castro. 2. ed. Sintra: Cmara Municipal / Museu Ferreira de Castro e Instituto Portugus de Museus, 2007.

    CARVALHO, Liliana Dias. Paisagens sem rosto para o estudo da primeira edio ilustrada de A Selva. In: Actas do Congresso Internacional dos 75 anos de A Selva. Ossela: Centro de Estudos Ferreira de Castro, 2007. p. 257-264.

    CASTRO, Jos Maria Ferreira de. A selva. 37. ed. Lisboa: Guimares, 1989.

    DAMATTA, Roberto. Em torno da representao de natureza no Brasil: pensamentos, fantasias e divagaes. In: Conta de mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 91-123.

    FABRIS, Annateresa. Portinari e a arte social. In: Estudos Ibero-Americanos. Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, v. 31, n. 2, p. 79-103, dez. 2005. Disponvel em: . Acesso em: 5 jan. 2012.

    ______. Portinari, pintor social. So Paulo: Editora Perspectiva, 1990.

    LEO, Allison. Representaes da natureza na fico amazonense. 2009, 194f. Tese (Doutorado em Letras: Estudos Literrios) Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008. Disponvel em: . Acesso em: 5 out. 2010.

    ______. Euclides da Cunha da Amaznia: margens da histria e reformulao do pensamento. In: RIOS, Otvio (org.). Arquiplago contnuo: literaturas plurais. Manaus: UEA Edies, 2011. p. 9-16.

    MARCOY, Paul. Viagem pelo rio Amazonas. Traduo, introduo e notas de Antonio Porro. 2. ed. Manaus: Editora da Universidade do Estado do Amazonas, 2006.

    PINTO, Renan Freitas. Viagem das ideias. Manaus: Valer; Prefeitura de Manaus, 2006.

    SCHAMA, Simon. Paisagem e memria. Traduo Hildegard Feist. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.

  • 23

    A (DE)GRADAO DO EU EM A AGONIA DA ROSA DE ASTRID CABRAL

    Adriana Gonzaga de Moura (PPGLA-UEA)8

    RESUMO: Pudesse recolher o perfume que espalhara despreocupada, prdiga, no hlito do vento! Mas onde andaria esse vento de antes de ontem? Fora para onde ela iria daqui a pouco?. Assim o desfecho de A agonia da rosa, que tem como personagem principal, uma flor. O trabalho abordar as facetas inerentes condio da existncia desse ser, que atravs de quatro momentos dispostos em diferentes eus, demonstra o acmulo de reflexes que decrescem e culminam na degradao da personagem do conto. Tratando-se, portanto, de uma anlise em anticlmax, baseada em conceitos psicanalticos de Alfred Adler e existenciais de Jean-Paul Sartre, demonstraremos a angstia vivida pela flor. PALAVRAS-CHAVE: Astrid Cabral; Ser; Existncia; Morte.

    1. Introduo

    O conto A agonia da rosa estrutura-se com base numa gradao que, conforme

    Tavares (2002, p. 355), uma figura de pensamento que consiste na acumulao progressiva de uma ideia, pensamento ou tema. Ou seja, a gradao permite que se faa um encadeamento de uma ideia em sentido crescente, ascendente (at um clmax) ou decrescente, descendente (em direo a nada, um anticlmax), em aumento ou diminuio gradual de intensidade. J a palavra degradao, como assinala Holanda (1990), tem os sentidos de desgaste, deteriorao. As duas palavras gradao e degradao derivam da mesma matriz latina gradu- (grau em portugus). Se na gradao pode haver a distribuio de uma ideia em graus ascendentes ou descendentes, a palavra degradao, por sua vez, veicula o sentido de descer graus, coincidindo, nesse aspecto, com a gradao em anticlmax. Conclui-se, ento, que todo esse pensamento descendente expressa uma degradao e este o tema que permear toda a narrativa.

    Como ser demonstrado na anlise, o que se desgasta o Eu em confronto com o Outro. E essa degradao dispe-se nos quatro momentos que seguem:

    2. Eu maior que os Outros (o desdm da rosa legtima frente s suas irms de mentira)

    Alfred Adler, primeiro discpulo de Freud e tambm o primeiro a romper com o

    mesmo, foi quem desenvolveu os complexos de inferioridade e superioridade que acompanhariam o indivduo pelo resto de suas vidas.

    Sendo um sintoma no qual o sujeito no sabe conviver com suas potencialidades e limitaes harmoniosamente, a superioridade um trao caracterstico da inferioridade, que segundo Adler, no passa de uma insuficincia quantitativa ou qualitativa de trabalho, que determinada por um critrio padronizado de eficincia requerida. (MULLAHY, 1965, p. 143). Indica, na verdade, que no mago do seu ser esse indivduo se sente inferiorizado, fazendo com que tenha a necessidade e a importncia da compensao, um ato de se reafirmar constantemente, aparentando superioridade, mais para si mesmo at do que para as demais pessoas.

    possvel perceber o complexo de superioridade eminente da personagem principal deste conto quando o narrador d rosa o discurso direto como recurso de menosprezo do outro, uma vez que, interrompendo a narrativa, coloca-a em cena e cede-lhe a palavra:

    8 Aluna do Programa de Ps-graduao em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas.

  • 24

    Estou parecida com as rosas de couro que se estatelam durinhas, compenetradas de sua elegncia nas vitrines dos magazines. Ora que destino, esse percurso da novidade enaltecida de altos preos liquidao mais humilhante! (p. 91)

    Existe na passagem acima, uma espcie de comparao desenvolvida como resultado de sentimentos de inferioridade, fazendo com que tal faculdade seja evidenciada pelo ser aflito (a rosa) e levada a exercer uma supercompensao, que neste caso seria o desprezo pelo destino de suas irms de mentira, (as rosas de couro), j que elas esto fadadas a um ambiente montono, pois dentro das caixas de celofane plstico, arrumadas em pilhas, que as aguardava? (idem). Talvez o desdm de alguma mulher, experimentando-as como um simples acessrio na blusa que desejava comprar, ou quando necessrio fosse complementar a toilette (ibidem), servindo deste modo como simples adorno de ambientao para mero deleite?

    Adler afirma em seus estudos que existe a necessidade de ajuste dos que se encontram emocionalmente deficientes em decorrncia do complexo de inferioridade. E esse ajuste a precisa definio do que vem a ser a segurana pessoal (confundida com a superioridade do ser), pois segundo Demosthenes a possibilidade permanente do no-ser, fora de ns e em ns, condiciona nossas perguntas sobre o ser (CARMIN, 2003, p. 21), o que faz com que encontremos seu valor. A rosa faz indagaes a seu prprio respeito e nas respostas que obtm encontra condies ora de superioridade ora de inferioridade. Como vemos na citao abaixo, onde o narrador deixa transparecer o ar de vantagem da rosa legtima s rosas de couro:

    No, essas suas irms de mentira, nascidas de tesouras e ferrinhos eram de fato muito tolas, idiotas, podia afirmar. Duravam mais, certo, mas para qu? Se a vida postia no lhes permitia gozar a carcia de um chuvisco, o sol brincando de esconde-esconde em seus corpos, ou ainda o embalo do vento alvoroando folhas e vergando hastes. (p. 91-92)

    O maior incmodo do narrador era saber que as rosas de couro dispunham de mais tempo para viver, fazendo com que surgisse no discurso da rosa legtima, uma espcie de angstia perante algo que se desejado e no se pode ter. Mas para qu almejar uma vida dessas, sem liberdade, sem vontade prpria? Pontos de vista, pensou (ela), mas logo um novo pensamento deixou-a sem concluso... (p. 92).

    Por que seria ela uma rosa legtima, nascida da terra, do mesmo cho que gerara as avs de suas avs, enfim toda a dinastia das rosas cor de sangue, e no simplesmente uma rosa improvisada, feita sua semelhana como uma sombra? (idem)

    Devido a isso, que para Adler, a pedra fundamental da teoria da personalidade a capacidade que um indivduo pode ter de ultrapassar o sentimento de inferioridade sem precisar chegar ao de superioridade, para atingir assim uma espcie de domnio de si. Porm, o ser emocionalmente incapacitado continua a sentir-se nfimo e refora sua posio atravs da falta de empenho, o que se ver na gradao que segue. 3. Eu menor que os Outros (a inveja da rosa legtima ante s suas irms legtimas e felizes)

    A partir daqui, a percepo de alteridade se reverte surgindo o complexo de

    inferioridade em relao ao outro. Adler ressaltava que a agresso e a luta pelo poder eram cruciais para a

    sobrevivncia individual e das espcies, e no equiparava agresso hostilidade, ele se

  • 25

    referia agresso como incentivo para a superao de obstculos, pois o processo vital deve ser encarado como uma luta cujo objetivo sempre a adaptao s exigncias do mundo (MULLAHY, 1965, p. 145).

    O empecilho a ser superado pela rosa legtima era justamente o da incompreenso de ter nascido assim. Fato experimentado aps se deparar com um boto de junquilho que nascera ao seu lado, invadindo o espao que numa primeira reflexo da rosa era dedicado apenas sua espcie. A inveja encontra-se presente, na busca pela perfeio, observado naquilo que vinha depois, era invejvel como cresciam os amores-perfeitos e as hortnsias, livremente vizinhos um do outro (p. 92) e est evidenciada na hiptese de eles serem mais felizes, por estarem nascendo livremente prximos, para um crescimento natural e perfeito.

    A nsia em busca dessa preciso um dos principais estmulos para o comportamento humano. Confirma Adler: a luta pela autoconservao e pelo equilbrio corporal e mental, o crescimento fsico e mental, a nsia de perfeio, corroboram a opinio de que a lei fundamental da vida superar deficincias e inadequaes (MULLAHY, 1965, p. 143). J para Sartre, o homem s vive o momento presente, ele no tem nem passado e nem futuro, o sujeito nasce como se fosse uma folha em branco e conforme sua vivncia, vai construindo sua essncia, pois partimos em busca do ser e parece que somos levados a seu ncleo pela srie de nossas indagaes (CARMIN, 2003. p. 21). Partindo desse contexto, a rosa volta a ter profundas certificaes existenciais:

    Por que no nascera ali no campo, onde era mais simples respirar e continuar sem que mo nenhuma viesse colh-la? Continuar sem sobressaltos, sem medo da prpria beleza, sempre cobiada pelos homens. (p. 93)

    Na citao acima demonstrado com clareza o instinto de autopreservao da rosa. Ela parece querer outro mundo no to distante de sua realidade, uma vez que era tambm legtima, porm, tinha medo da prpria beleza e esse medo transformava o mundo em que vivia num espao repleto de cargas energticas de humilhao, pois lhe faltava a liberdade de suas irms legtimas e felizes. Com relao a essa emergncia de liberdade, Mafalda de Faria afirma:

    A vida uma fora que explode e se fragmenta em indivduos e espcies, evoluindo segundo direces divergentes, em natureza e no apenas de grau, de onde resultam os trs reinos: vegetal, animal e humano. As causas desta ramificao so de duas ordens: a resistncia externa do meio, que sempre estmulo e condio de evoluo na medida em que fora o esforo adaptativo, mas, sobretudo, as tendncias potencialmente divergentes que a vida comporta em si e que tem de, ao agir, explicitar em linhas distintas de evoluo. (Blanc, 1998, p. 230)

    Devido a essas duas faces de uma mesma realidade que o direito de ser do eu (identidade) e o direito de ser do outro (alteridade) se complementam e se interpenetram, pois s sabemos quem realmente somos porque existe o outro que no somos. Compreendido o direito que o outro tem de ser o que , temos o direito de sermos ns mesmos. 4. Eu conjunto vazio (a nulidade da rosa aos olhos dos humanos)

    Era agora uma rosa de floricultura (rosa de corte), rotulada para exportao,

    antes tranquilamente aguardar, sem lancinantes talhos e arames impiedosos, a velhice mansa (p. 93), mas como sua existncia tinha propsitos comerciais, esperar a velhice no fazia sentido, pois no viera bela ao mundo toa.

  • 26

    Por isso, sua percepo com relao ao humano, como o outro no qual no daria a ela o direito alteridade, pois, quem plantaria rosas para o deleite nico dos olhos, amando-as por elas mesmas? (idem). Afirma, portanto, Demosthenes:

    H milnios que o mundo humano se comunica, tenta o dilogo e procura um sentido para tudo, encontrando no outro a parceria e a estruturao para o seu

    estar-no-mundo e, atravs desse dilogo, impor limites sua liberdade, na eterna batalha pela sobrevivncia e o domnio do Poder. (CARMIN, 2003, p. 69)

    Porm, para os humanos, as plantas parecem ter uma vida sem sentido, e isso perceptvel no conto, quando a rosa recomea sua inquietude existencial por supor servir apenas como simples acessrio. E no somente as rosas de couro como ela achava ser nas suas primeiras indagaes, mas ela prpria compreende agora que tambm sofre com isso. So as segundas intenes que as cercam e a faz com que se sinta um ser nulo.

    Neste particular, intrigava-a uma pequena questo: Teriam sido os jarros inventados por causa das flores ou as flores para lhes fazerem jus? (p. 93)

    de fcil entendimento um objeto concreto como um jarro ter sido inventado para receber flores; no entanto, como julgar adequado um ambiente to inspito? A personagem que aparece na sequncia dos fatos uma mulher chamada apenas de senhora, o que faz com que a identifiquemos como todo e qualquer ser humano. essa senhora quem prossegue tal ao ao chegar casa e retirar a rosa da cesta de juncos onde viera, espartilhada e entaniada... e deposit-la em uma porcelana de gargalo estreito. Assim foi matando-a aos poucos, j que para ser colocada na devida porcelana foi preciso encurtar o talo repetidas vezes (idem).

    O narrador percebe, no entanto, que num vaso de cristal encontravam-se palmas de Santa Rita, melhor ambiente que um jarro de porcelana, aonde s chegava a luz do sol em partes do corpo da rosa que estavam para fora dele. Estava ela ento sem tanta sorte assim? Desventura? Pensar que a morte rondava de mais perto se a tratavam mal... Definhava, sem dvida, desde o corte que a trouxera para longe do cho, seu bero e morada de terra (p. 94).

    Para Sartre todas as relaes humanas concretas esto, em princpio, determinadas: ou o outro me rejeita e me reduz a ser uma coisa em seu mundo,

    ou mantenho em meu poder sua subjetividade, tornando-a um objeto-para-mim. (LUIJPEN, 1973, p. 292)

    evidente que os humanos negam rosa o direito alteridade. Compreendida essa questo, bvio afirmar que a identidade nos faz diferentes dos outros e se colocar no lugar deles, com considerao, valorizao e identificao fundamental. Mas,

    que poderia afinal contra as obrigaes da empregada que pontualmente recolhia o lixo? Que pudera contra a mo que do jardim arrancara-a, ainda sonolenta, a corola entrefechada sob confetes de orvalho? Ou contra o florista que a recebeu sem enternecimento, mercadoria para consumo? (p. 94)

    5. Eu igual a menos EU (a iminncia da morte pressentida)

    A rosa retoma o sentimento de angstia, agora com a iminncia da morte, havia a

    esperana de novas folhas, intacto o ncleo de vida (p. 95). Mas tudo no passava de um eterno vazio, nem mesmo as novas folhas que de fato vieram a nascer com fora redobrada lhes tiravam da cabea a ideia de que no conseguia mais pensar no futuro. Nem folhas, nem galhos, nem ptalas o que se resumia em ausncia de si mesma (idem). Gary expressa o ser-para-si da seguinte forma:

  • 27

    O puro ser tudo de uma s vez. imediato. Mais ainda, o puro ser no tem regies com relaes de identidade ou diferena entre si. O puro ser no pode ser externo em si como partes de um objeto so externas s outras partes, pois isso significaria que ele possui diversidade dentro de si. O puro ser no possui interno oposto ao no-interno; internalidade total. O ser, portanto, no tem contedo. Mas, no , porm, vazio, assim como um container vazio. um

    vazio total. (COX, 2006, p. 18)

    A rosa faz vir memria agora, num ar de saudosismo, os botes vizinhos que moravam ao seu redor no canteiro:

    Imaginariam eles o quanto era triste as derradeiras horas transcorridas em mesas de banquete onde os convivas raramente tinham olhos para o que no fosse iguarias e taas de champanha? (p. 95)

    Sabemos de fato que tudo o que belo e perfeito tem tendncia decadncia. Mas essa transitoriedade da vida deve nos levar ao desnimo? De certo que no. Mas a rosa j assim se sentia. Para ela, o mundo de suas sensaes e o mundo externo realmente viria a se desfazer em nada. Foi quando imprevisivelmente uma mosca veio lhe fazer companhia, porm a visita foi to rpida e de tal modo destituda de afeto que no conseguia comov-la. A morte nesse instante pressentida pela rosa e o ato epifnico se confirma, era chegado o instante de comover-se sozinha desde que diante da morte era como nunca solitria (idem). E essa experincia arriscada que faz com que ela tenha a sbita sensao de realizao e compreenso de sua essncia. Como diz Sartre:

    A conscincia do meu ser-no-mundo no pode, por conseguinte, reduzir-se unicamente alteridade de um nico eu e das outras coisas e tambm dos

    seres humanos como puros objetos, mas necessria e primordialmente inclui outros eus como sujeitos pensantes e viventes como eu no mundo de muita

    experincia. (p. 36)

    Pensara ela: pudesse voltar ao passado e contemplar o despertar para a vida? Pois uma flor que dura ao menos uma noite no ser por isso, nem menos bela, nem mais vazia.

    6. Concluso

    Ao final desta anlise foi notado que destino e acaso esto associados realidade

    da rosa. A degradao do eu diante dos outros e da morte em espreita, interceptou todos os projetos desse ser no humano, gerando a angstia oculta pelas sutilezas das metforas que personificaram as contingncias humanas no conto. A proposta justificou-se plenamente, pela imerso nos recnditos profundos dessa narrativa curta contempornea, que em suas tcnicas mais apuradas explorou as imagens literrias nos quatro momentos pelos quais passaram a existncia da personagem principal.

    Referncias

    BLANC, Mafalda de Faria. Estudos sobre o ser. Fundao Calouste Gulbenkian, 1998. CABRAL, Astrid. Alameda. Coleo Resgate. 2. Ed. Manaus: Valer, 1998. CARMIN, Demosthenes. Filosofia e Existncia Reflexes filosficas sobre o mundo hoje. Manaus: Valer, 2003.

  • 28

    COUTINHO, Afrnio e SOUZA, J. Galante de. Enciclopdia de Literatura Brasileira. Vol. 1, Ministrio da Cultura/Fundao Biblioteca Nacional-DNL (Departamento Nacional do Livro) Global Editora/Academia Brasileira de Letras, So Paulo, 2001. COX, Gary. Compreender Sartre. Trad. Hlio Magri Filho. Petrpolis: Vozes, 2007. HOLANDA, Aurlio Buarque de. Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. LUIJPEN, W. Introduo fenomenologia existencial. Trad. Carlos Lopes Matos. So Paulo: Editora Pedaggica e Universitria Ltda., 1973. MULLAHY, Patrick. dipo: Mito e Complexo Uma crtica da Teoria Psicanaltica. Trad. lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1965. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada Ensaio de ontologia fenomenolgica. Trad. Paulo Perdigo 2. Ed. Petrpolis: Vozes, 1997. TAVARES, Hnio ltimo da Cunha. Teoria Literria. Belo Horizonte/MG: Itatiaia, 2002.

  • 29

    REFLEXES SOBRE A NARRATIVA CONTEMPORNEA EM ERA UMA VEZ O AMOR MAS TIVE QUE MAT-LO

    Aline Cavalcante Ferreira - IFRR/PPGL-UFRR9

    RESUMO: A presente comunicao tem o intuito de refletir sobre os elementos constitutivos da estrutura narrativa contempornea a partir da anlise do romance Era uma vez o amor mas tive que mat-lo, do escritor Efraim Medina Reyes. Para tanto, verifica-se como o autor vai desconstruindo o texto, abalando as caractersticas do romance tradicional por meio do emprego de novos recursos literrios, prprios do romance contemporneo. Esta anlise procura se efetivar tendo como fundamentao terica as consideraes de Anatol Rosenfeld e Erwin Theodor Rosenthal sobre o romance moderno.

    PALAVRAS-CHAVES: Efraim Medina Reyes; Romance Moderno; Identidade; Fragmentao; Polifonia.

    Uma anlise do romance Era uma vez o amor mas tive que mat-lo que de acordo com o escritor Efraim Medina Reyes10 deve ser lido acompanhado das msicas de Sex Pistols e Nirvana poderia iniciar-se pela estrutura narrativa, em grande parte fragmentada, apresentada de forma intensa, que subverte os valores morais e sociais e, tambm, os personagens reais, alm de ser permeada pelo humor, ironia e palavras sem medidas.

    A narrativa traspassada pela frustrada histria de amor entre Rep um machista confesso que conta entre outras a histria de um amor que bate mais forte que o Tyson, se mexe melhor que o Ali, mais rpido que o Ben Johnson dopado. (REYES, 2006, p. 113) e uma certa garota, por crnicas dos membros da empresa Fracasso Ltda. e por entrevistas e tentativas cinematogrficas (o roteiro dos filmes inserido entre os captulos), alm de apresentar o desenlace fatdico do assaltante de bancos John Dillinger e das estrelas de rock, Sid Vicious e Kurt Cobain, lderes dos grupos Sex Pistols e Nirvana.

    Para iniciar o meu percurso de anlise, torna-se necessrio informar que por fragmentao compreendo um texto em que a estrutura narrativa se apresenta sem linearidade, ou melhor, sem comeo, meio e fim delineados e, oferece histrias incompletas, em pedaos.

    Na literatura contempornea, a narrao por partes descontnuas, que se misturam e justapem-se, mostra uma nova forma de dispor os fatos, as percepes e as perspectivas narrativas, conforme um mosaico de uma diferente sintaxe literria. Assim, a fragmentao configura-se na ausncia de linearidade dos fatos do cotidiano e da vida, mediante a tcnica de cortes, na ordem no cronolgica, como se observa no romance em anlise.

    A literatura geralmente propende retratao da realidade, mas, sendo a realidade atual to diferente daquela que caracterizava tempos passados, intensificou-se busca de

    9 Aline Cavalcante Ferreira professora de Lngua Portuguesa do Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de Roraima e aluna do Mestrado em Letras da Universidade Federal de Roraima. 10 Efraim Medina Reyes nasceu em Cartagena, Colmbia, em 1967. Apresenta-se como escritor experimental, entretanto um dos mais autnticos representantes do realismo urbano movimento literrio que apresenta uma crtica social s temticas contemporneas. Fez sua estria literria em 1988 com o romance Seis Informes. Foi premiado pelos livros: Cine rbol (Prmio Nacional do Conto do Ministrio da Cultura da Colmbia) e Era uma vez o amor mas tive que mat-lo (Prmio Nacional de Novela do Ministrio da Cultura da Colmbia, em 1997). Publicou tambm os romances Sexualidade da Pantera Cor-de-Rosa, Tcnicas de masturbao entre Batman e Robin; o livro de textos e poemas Pistoleiros/Putas e Dementes (Greatest Hits); o romance infanto-juvenil Sarah e as baleias e Viajando atravs do tempo.

  • 30

    novas possibilidades de romances que constitussem o produto e reflexo desta poca

    cindida, fermentada, nervosa e enervante. (RANG, apud ROSENTHAL, 1975, p. 01). A partir do sculo XX, no que diz respeito aos elementos constitutivos da estrutura

    narrativa, o romance ganhou um novo perfil. O advento da modernidade do romance d-se a partir do momento em que se permite a existncia de um romance sem tema, sem estrutura fixa e sem composio, ou seja, ele prescinde de comeo e de fim, comea e acaba onde for conveniente. (BAROJA, apud ROSENTHAL, 1975, p. 07).

    Nesse arqutipo de narrativa, verifica-se o incio de uma nova evoluo do romance, onde vrios temas, realidades, tcnicas narrativas, vozes, espaos e tempos se interpenetram. Sendo possvel expressar a realidade do mundo e do homem contemporneo como realmente ela : composta de mltiplas facetas.

    Erwin Theodor Rosenthal (1975) explica que o romance atual reproduz uma surpreendente imagem de realidades atuais, na medida em que, simultaneamente, focaliza e mistura estados de conscincia e aspectos concretos do mundo circundante. Ainda que tenha em vista redescoberta do universo humano, considerado, frequentemente, como oposto a seu prprio gnero literrio, por desprezar os elementos constitutivos que deveriam ser respeitados por todo e qualquer romance. Sendo assim, ele no precisa, necessariamente, seguir um tempo regular, com comeo fixo e concluso lgica e aceitvel, tampouco seguir apenas uma nica temtica definida.

    O romance moderno pem em dvida todas as teorias do saber e os prprios processos de conscientizao que pareciam agregados de forma incontestvel ao mundo humano, bem como revoga o desenrolar supostamente lgico dos acontecimentos e as acepes correntes de tempo e lugar. No pretende chegar a nenhuma observao exata, da mesma forma como no deseja oferecer pontos de referncia definitivos ou seguros; procura, isto sim, uma diretriz, a fim de exortar os leitores e seus consumidores, coparticipao, induzindo ao raciocnio, de sua capacidade de combinao e conscincia crtica. (ROSENTHAL, 1975, p. 02)

    Observa-se que esse romance no representa mais o mundo lgico, cientfico,

    factual, mas projeta um mundo de novas possibilidades e, assim, cria para si uma nova roupagem, a exemplo das diversas formas de narrar, para nelas produzir e mostrar suas prprias verdades conforme as novas concepes da realidade.

    As incertezas que permeiam o mundo e a existncia humana atual so espelho para a narrativa contempornea. O mundo se liberta das questes espaciais e temporais e se fragmenta em diversas facetas e, consequentemente, a narrativa tambm se liberta dos modelos tradicionais, procurando representar expressivamente essa nova realidade. Desta maneira, o escritor pretende aproxim-la da existncia humana, que feita no somente de um momento, de uma situao, mas de vrios. E o leitor, consciente da realidade flutuante de seu mundo, obrigado a adaptar-se, a passar pela experincia dessa realidade.

    Alguns tericos criaram as expresses anti-romance, a-literatura e antiliteratura para caracterizar o romance moderno. Isso porque os escritores contemporneos utilizavam alguns recursos que at ento eram alheios ao romance tradicional. (ROSENTHAL, 1975). Contudo, importante ressaltar que a negao da estrutura do romance tradicional no constitui um modelo a ser seguido pelo romance moderno, pois no se trata de uma tcnica nova a ser aprendida e sim de configuraes criadas, exclusivamente, para cada romance, que deve apresentar-se de maneira espontnea. A dissoluo da estrutura tradicional indica a natureza fluida e indeterminvel do romance, demonstrando o carter transcendente desse gnero e refletindo com fidelidade a existncia de uma poca e da conscincia moderna.

  • 31

    Na literatura contempornea, registram-se as mais diversas experincias. Nada, nenhum mtodo proibido - tudo assunto adequado para o romance, cada sentimento e cada pensamento. (WOOLF, apud ROSENTHAL, 1975, p. 138). Percebe-se que o romance moderno busca fazer um novo movimento dentro das consagradas regras, ou seja, um ataque s tcnicas de escrever tradicionais. Para Rosenthal,

    O romance de hoje, adaptando-se s condies de nossa vida e ao caos moderno, questiona a nossa posio perante a realidade, e a maneira como se realiza o processo criador vem a ser mais importante do que a realidade visvel; convenes vigentes, tacitamente aceitas em romances passados, so agora submetidas a uma anlise. (ROSENTHAL, 1975, p. 70)

    No entanto, esse romance no pretende ser apenas um mero relato da realidade, como os romances tradicionais do sculo XIX em que a realidade era representada de forma objetiva, minuciosa; havia um narrador onisciente; as personagens eram inteiras, perfeitas; tempo e espao apresentavam-se de forma coesa e delineada. Ao contrrio disso, ele sonda a realidade ao invs de copi-la; questiona a posio do ser diante dela e aponta os enigmas da vida sem a preocupao de desvend-los. De acordo com Anatol Rosenfeld,

    Nota-se no romance do nosso sculo uma modificao anloga da pintura moderna, modificao que parece ser essencial estrutura do modernismo. A eliminao do espao, ou da iluso do espao, parece corresponder no romance a da sucesso temporal. A cronologia, a continuidade temporal foram abaladas, os relgios foram destrudos. O romance moderno nasceu no momento em que Proust, Joyce, Gide, Faulkner comeam a desfazer a ordem cronolgica, fundindo passado, presente e futuro. (ROSENFELD, 1976, p. 80)

    A anlise, ainda que no muito detalhada, de Era uma vez o amor mas tive que mat-lo permite supor que o referido romance se insere no contexto da literatura contempornea por apresentar uma narrativa fragmentada e descontnua, rejeitar a representao linear e o desenvolvimento cronolgico, alm de desprez