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Anais do III Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 28 de novembro a 2 de dezembro de 2011

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Anais do III Seminário de

Graduandos e Pós-Graduandos em

História da Universidade Federal de

Juiz de Fora.

28 de novembro a 2 de dezembro de 2011

Anais do III Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade

Federal de Juiz de Fora.

ISSN: 2317-045X

28 de novembro a 2 de dezembro de 2011

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III Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da

Universidade Federal de Juiz de Fora

Centro Acadêmico de História

Gestão “Construindo Diálogos” (2011-2012)

Anais do III Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de

Fora. Juiz de Fora, 2012. ISSN: 2317-045X.

105 p.

1-Anais; 2-Seminário de História; 3-Comunicações

Comissão Organizadora:

Antonio Gasparetto Júnior – mestrando (UFJF)

Carine Muguet – graduanda (UFJF)

Filipe Queiroz de Campos – graduando (UFJF)

Laíz Perrut Merendino – graduanda (UFJF)

Luiz César de Sá Júnior – mestrando (UFJF)

Renata Silva Fernandes – graduanda (UFJF)

Diagramação e Formatação:

Antonio Gasparetto Júnior

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ISSN: 2317-045X

28 de novembro a 2 de dezembro de 2011

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Sumário

Arte e Cultura

Do Manifesto à Utopia: a reabilitação jesuítica.

Raíssa Galvão ........................................................................................ Pág. 5

Mito e Ciência em Aby M. Warburg: uma análise da influência de Tito Vignoli na obra de

Warburg.

Serzenando Alves .................................................................................. Pág. 11

A Tempestade de Shakespeare: aproximações entre História e Literatura.

Daiana Pereira Neto ............................................................................... Pág. 21

E agora, Zsoze? Adaptação, fidelidade e intertextualidade em Budapeste.

Diego Schaeffer de Oliveira .................................................................. Pág. 31

Historiografia em Foco: um estudo sobre Richard Morse sob a perspectiva da Nova

História das Ideias.

Mariane Ambrósio Costa ....................................................................... Pág. 40

Alejo Carpentier por Richard Morse: notas do historiador norte-americano sobre o escritor

cubano no alvorecer de uma América em transformação.

Pedro Henrique Leite ............................................................................. Pág. 50

Brasil Colônia

A Expulsão dos Religiosos nas Minas: uma questão de poder entre Igreja e Estado.

Cristiano Sousa ...................................................................................... Pág. 55

História Econômica

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O Mercado de Bens Rurais e Urbanos do Termo de Mariana: espaços de produção e

hierarquia social, 1711-1780.

Quelen Lopes ......................................................................................... Pág. 63

Brasil Império

O Diário do Rio de Janeiro à Luz da Historiografia: algumas reflexões (1821-1834).

Laiz Perrut Merendino ........................................................................... Pág. 72

História Política

O Movimento Higienista do Início do Século XX e a Discussão dos Grupos Escolares de

Juiz de Fora.

Anderson Narciso .................................................................................. Pág. 79

Os Neo-Institucionalismos e as Teorias Sociológicas de Ação: um debate teórico-

metodológico.

Felipe Araújo Xavier ............................................................................. Pág. 88

Um Conflito de Difícil Solução: a atuação diplomática do Ministro dos Negócios

Estrangeiros Silvestre Pinheiro Ferreira na questão da Cisplatina (1821-1823).

Sandra Rinco Dutra ............................................................................... Pág. 97

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Arte e Cultura

Do Manifesto à Utopia: a reabilitação jesuítica.

Raíssa Varandas Galvão

Introdução

Esse artigo apresenta como objetivo primordial a análise da clara mudança de julgamento

dos jesuítas por parte de Oswald de Andrade, mudança essa que podemos identificar na

comparação entre o “Manifesto Antropófago”, lançado pelo modernista na década de 20, e

os seus diversos textos reunidos em “A Utopia Antropofágica”, datados dos anos 50.

Acreditamos que em “A marcha das utopias”, Oswald empreende uma reabilitação dos

jesuítas assim como da Contra-Reforma, enxergando uma plasticidade, uma flexibilidade

em ambos, que não havia notado nos tempos de manifesto.

Como base para essa análise, usaremos, além dos próprios escritos de Oswald, as

explanações de Benedito Nunes sobre o modernista, assim como os artigos de Beatriz

Domingues e Sonia Lino, onde, através das interpretações desses autores, poderemos

melhor entender a reavaliação sofrida pelos jesuítas.

Desenvolvimento

Inicialmente, acredito ser importante esclarecer que ao compararmos o manifesto de 1928,

com seus escritos da década de 50, estamos tratando não do mesmo Oswald, e sim da

comparação de um rebelde e irreverente, que junto com seus colegas modernistas causou

polêmica na semana de 1922, com um Oswald amadurecido e marcado por elementos de

sua fase marxista anterior. Durante sua fase de militância política, confessa ter sido uma

espécie de palhaço da burguesia, atingido pelo “sarampão antropofágico”. No entanto,

mesmo nessa fase, como Benedito Nunes nos adverte, Oswald de certa forma não

consegue abandonar de fato a antropofagia, pois parece sempre submeter o próprio

marxismo a uma espécie de “filtragem antropofágica”. Ao romper com o marxismo, em

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1945, o próprio Oswald anuncia o seu retorno à antropofagia, no entanto, a meu ver, uma

antropofagia mais madura que a de sua primeira fase. Com seus textos dos anos de 1950 e

sua conversão filosófica, buscará uma formulação da antropofagia como filosofia. Apóio

Beatriz Domingues quando essa diz discordar daqueles que acreditam serem os escritos

dessa fase mais moderados, e até mesmo capitulações, em relação a seus escritos da época

dos manifestos. Como diz a historiadora, a nova fase seria mais flexível e menos

hierárquica, daí a sua reavaliação dos jesuítas, mas também tomada de algo subversivo e de

uma maturação e maior teorização. A antropofagia, diferente da anterior, estaria agora

tomada por alguns elementos que o intelectual havia incorporado de sua fase militante,

pois apesar de ter abandonado o marxismo, Oswald não abandonará totalmente o

pensamento de Marx.

Em seu Manifesto Antropófago, Oswald declara-se “Contra todas as catequeses. E

contra a mãe dos Gracos.” 1

. Para Oswald, a catequese, empreendida pelos jesuítas, teria

sido nossa primeira censura, um órgão de repressão que representaria o superego coletivo.

Assim, seria a Companhia de Jesus responsável pela coibição da antropofagia ritual,

fazendo da sociedade brasileira, uma sociedade traumatizada pela repressão colonizadora.

Ao afirmar, em seu manifesto, ser contra nomes como Vieira, Anchieta, assim como

Goethe, a Mãe dos Gracos e D. João VI, Oswald estaria se colocando contra emblemas,

tabus intocáveis, que representariam justamente essa repressão da sociedade brasileira que

tanto nos traumatizou. Padre Vieira, além de missionário jesuíta, se associaria à retórica e à

eloqüência; Anchieta representaria todo o fervor apostólico e a catequese geradora da

censura; Goethe estaria ligado ao senso de equilíbrio, enquanto a Mãe dos Gracos e D.

João VI seriam símbolos da moral severa, o primeiro, e da dominação estrangeira, o

segundo. Dessa forma, o modernista opõe a esses tabus símbolos míticos como Jacy,

Guaracy e Jaboti, que sairiam do inconsciente primitivo, catalisando a operação

antropofágica e transformando o tabu em totem.

A transformação do tabu em totem, defendida por Oswald, significaria a libertação

de nossos recalques e a possibilidade de vivermos novamente em uma “realidade sem

complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de

Pindorama.”. Baseando-se em um pensamento freudiano, essa transformação libertaria a

consciência coletiva de seu Superego, resgatando as energias psíquicas reprimidas, de

forma que poderíamos novamente seguir os roteiros do instinto caraíba gravado nos

1ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago.

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arquétipos do pensamento selvagem: o pleno ócio, a livre comunhão amorosa, a vida

lúdica.

Contudo, ao escrever “A Marcha das Utopias”, em 1953, percebemos uma mudança

de posicionamento por parte do autor em relação à Companhia de Jesus. Essa teria nos

trazido a “religião de caravelas” e a cultura da Contra-Reforma em lugar da Reforma. Algo

que para Oswald de Andrade seria positivo, pois ao invés de nos transformarmos em

expressão da fria e mecânica concepção calvinista e de sua apologia ao trabalho e ao

negócio, nos tornamos fruto de uma concepção mais humana e igualitária da vida, de uma

cultura de predominância do ócio sobre o negócio, trazida pela Contra-Reforma através

dos jesuítas. Assim, para ele, apesar do calvinismo ser incontestavelmente superior no que

se refere ao incentivo para o progresso técnico, atingido o clímax da técnica, o calvinismo

deveria ceder espaço à concepção mais humana da Contra-Reforma.

Ainda creio que nossa cultura religiosa venha a vencer no mundo moderno a

gélida concepção calvinista, que faz da América do Norte uma terra inumana,

que expulsa Carlitos e cultiva McCarthy. 2

Para o escritor, os jesuítas passam a ser vistos como uma ordem plástica e

compreensiva, dona de uma cultura de larga visão e flexível, a tal ponto, que de acordo

com o próprio Oswald, “estava levando aos limites pagãos dos ritos malabares o seu afã de

ecletismo e de comunicação humana e religiosa.”. Essa postura pode ser vista na política

de sincretismo adotada pelos jesuítas na catequização dos indígenas. Aqueles buscavam

estabelecer uma “ponte”, uma via de comunicação entre o mundo indígena e o cristão,

procuravam aprender as línguas nativas e os costumes locais, de modo a facilitarem suas

pregações e tentativas de conversão. Analisando os costumes indígenas conseguiam, então,

elaborar inúmeras táticas e estratégias mais efetivas, como por exemplo, em alguns casos

em que os jesuítas, percebendo a grande autoridade dada aos pajés por parte dos índios,

procuraram assumir o papel desses e passaram muitas vezes a se dedicarem aos

atendimentos médicos. Através dessa política sincretista, expressavam o desejo da

Companhia de Jesus pela universalização.

Assim, sendo inevitável a colonização do Brasil, o que Oswald parece dizer é que é

preferível termos sido colonizados pela Contra-Reforma, que por sua maior plasticidade se

apresentava como mais tolerante às comunidades indígenas matriarcais, do que pela

2ANDRADE, Oswald. A marcha das utopias In: A Utopia Antropofágica. Rio de Janeiro: Globo, 1995,

p.163

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Reforma, que embora talvez nos possibilitasse maior progresso técnico, por sua

intolerância, seria ainda mais devastadora para a sociedade matriarcal de Pindorama. De

certo modo, a Contra-Reforma, ainda que patriarcal, seria um empecilho menor para a

concretização do novo Matriarcado anunciado por Oswald, onde o homem civilizado seria

substituído pelo terceiro termo de sua equação, o homem natural civilizado.

Ao tratar da oposição entre Reforma e Contra-Reforma, Oswald recorre de maneira

brilhante a uma oposição ainda mais antiga, a existente entre judeus e árabes, ambos povos

semitas, que acabaram por dividir o monoteísmo em dois grandes ramos. Enquanto os

judeus sustentariam a idéia da eleição, julgando-se o povo escolhido por Deus, criando

assim um racismo esterilizador e uma cultura fechada e endógena, os árabes, um povo

exogâmico e aberto para contatos com o exterior, criaram a miscigenação e uma cultura

baseada na flexibilidade, na absorção e na rica mistura.

De acordo com Oswald, essas duas culturas teriam produzido as duas concepções

de vida opostas tão conhecidas nossas, a Reforma e a

Contra-Reforma. Do sistema exclusivista e fechado dos judeus, da noção de povo eleito

que estes carregavam, surge o Protestantismo com a sua crença na eleição, dessa vez não

de um povo, mas do indivíduo. Da plasticidade política, da flexibilidade, da cultura

exógena aberta à miscigenação, que caracterizavam os árabes, abriu-se caminho para a

Contra-Reforma e para os seus maiores representantes aqui no Brasil, os jesuítas.

A grande presença árabe na Península Ibérica, faz de nós, brasileiros, um povo mais

miscigenado que qualquer outro. Não só somos produtos da miscigenação entre a cultura

indígena, africana e européia, como a própria cultura portuguesa que chegou até nós, já era

uma cultura miscigenada. Apesar da ocorrência da Reconquista, como o próprio Oswald

nos adverte, a arabização já havia se concretizado na península, e de certa forma se

transferido para os jesuítas, que são classificados pelo autor como “os maometanos de

Cristo”. É de se imaginar o escândalo que tal classificação causaria em Inácio de Loiola,

no entanto, para Oswald a comparação nada mais foi do que um elogio, pois, é devido às

raízes árabes que a cultura jesuítica se assinalou por tamanha plasticidade e lassidão

compreensiva, características responsáveis pela reabilitação dos jesuítas por parte de

Oswald. Assim, metamorfoseando o “deus de caravana” dos árabes no Cristo, o “deus de

caravela”, os jesuítas sairiam para conquistar a América.

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Vinda da Arábia petrificada e saída do deserto, a gente sarracena se mesclaria na

Península para continuar pelos caminhos do oceano o seu impulso exógamo e

conquistador, que trazia em si o errático e o imaginoso, a aventura e a fatalidade.

E que só havia de estacar nos verdes da Descoberta. Na Ilha de Vera Cruz, Ilha

de Santa Cruz, Ilha de Utopia, Brasil (p.170). 3

A essas idéias até aqui apresentadas podemos ligar as de Sérgio Buarque de Holanda, em

seu livro “Raízes do Brasil”. De acordo com ele, o domínio europeu entre nós foi mais

brando, menos obediente: “A vida parece ter sido aqui incomparavelmente mais suave,

mais acolhedora das dissonâncias sociais, raciais, e morais”4. Para Sérgio Buarque, essa

plasticidade social associava-se diretamente a inexistência de orgulho racial entre os

portugueses, o que os diferenciava do povo do Norte.

Essa modalidade de seu caráter, que os aproxima das outras nações de estirpe

latina e, mais do que delas, dos muçulmanos da África, explica-se muito pelo

fato de serem os portugueses, em parte, e já ao tempo do descobrimento do

Brasil, um povo de mestiços. 5

Desse modo, vemos que não é apenas Oswald quem enxerga nas raízes árabes boa parte

dos aspectos que caracterizariam a concepção mais flexível e exógena que seria trazida

para a colônia brasileira.

Contudo, é fundamental esclarecermos que, apesar de reabilitar os jesuítas e demonstrar

uma postura mais favorável à cultura da Contra-Reforma, Oswald não procura assumir um

compromisso religioso ou ideológico.

Quando exalto os jesuítas, de modo algum assumo para com eles um

compromisso religioso ou ideológico. Entendendo como entendo o sentimento

religioso universal, a que chamo sentimento órfico, o qual atinge e marca todos

os povos civilizados como todos os agrupamentos primitivos, isso de nenhuma

forma toca minha equidistância. 6.

Seu elogio à Contra-Reforma está ligado a essa ser oposta à visão de mundo árida e

mecânica que caracteriza a Reforma, por não ter rompido a cultura do ócio de forma tão

ferrenha quanto a religião de Calvino, e ter possibilitado que o Brasil se tornasse “a utopia

realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e marcante do Norte”. E como

3 ANDRADE, Oswald. A marcha das utopias. In: A Utopia Antropofágica. Rio de Janeiro: Globo, 1995,

p.170 4 HOLANDA. Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p.22

5 HOLANDA. Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p.22

6. ANDRADE, Oswald. A marcha das utopias. In: A Utopia Antropofágica. Rio de Janeiro: Globo, 1995,

p.166

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maior expressão dessa concepção de mundo contra-reformista, Oswald enxerga a cultura

jesuítica, que passa a ser exaltada por esse não em termos de uma devoção religiosa, mas

sim por ser ela responsável por trazer até nós a larga visão de mundo e a plasticidade que

têm como origem raízes sarracenas.

Referência Bibliográfica

ANDRADE, Oswald. A marcha das utopias. In: A Utopia Antropofágica. Rio de Janeiro:

Globo, 1995.

__________, Oswald. Manifesto Antropófago. Disponível em: <

www.fafich.ufmg.br/manifestoa/html/textos.htm>.

DOMINGUES, Beatriz Helena e LINO, Sonia. Utopia e religiosidade em Oswald de

Andrade. In: AMARAL, Leila e GEIGER, Amir. In vitro, In vivo, in silício: ensaios sobre

a relação entre arte ciência, tecnologia e o sagrado. São Paulo: CNPq/Pronex/Attar

Editorial, 2008, pp.34-56

DOMINGUES, Beatriz Helena. Modernismo e Religião: um estudo da abordagem de

Oswald de Andrade sobre o papel da Contra-Reforma no Brasil.

HOLANDA. Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

NUNES, Benedito. A Antropofagia ao alcance de todos. In: A Utopia Antropofágica. Rio

de Janeiro: Globo, 1995.

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Mito e Ciência em Aby M. Warburg: uma análise da influência de Tito Vignoli na

obra de Warburg.

Serzenando Alves

Aby Warburg (1866 – 1929) foi um dos mais proeminentes historiadores da cultura

do século XX. Sua obra é, em grande parte, dedicada ao estudo do Renascimento Italiano

juntamente com um contexto cultural mais amplo, percebendo as influências e recepções

culturais de lugares longínquos como o oriente árabe e de regiões vizinhas como os países

baixos e os países de língua alemã. Sua obra é uma importante contribuição ao estudo da

cultura especialmente dos séculos XV e XVI e mais ainda, uma importante contribuição a

uma perspectiva historiográfica que busca compreender a cultura em consonância com

diversas manifestações do espírito humano, como a arte.

Ao longo de sua vida, apesar de não ter sido professor universitário até seus últimos

anos, manteve um contato próximo com vários pensadores contemporâneos importantes.

Em especial, durante sua formação universitária passou por diferentes universidades,

conheceu pensadores importantes ou que haveriam de se tornar e teve contato com

correntes do pensamento ocidental que foram cruciais para a elaboração posterior seu

pensamento e obra.7 Desta forma Warburg está inserido em um contexto de produção

científica e intelectual das mais importantes da história. O final do século XIX e início do

século XX testemunha um avanço científico e intelectual nunca antes visto e presencia o

vigor do pensamento filosófico alemão que teve grandes avanços desde o século XVIII.

Apesar da importância da obra de Warburg e do contexto em que está inserido, ele

foi por muito tempo conhecido principalmente pelo Instituto que carrega seu nome,

transferido para Inglaterra e incorporado na década de 40 à universidade de Londres. O

instituto reuniu importantes nomes do século XX ao seu redor. Em 1970 com a publicação

7 A biografia intelectual de Warburg escrita por Gombrich (GOMBRICH: 1992) é a discussão mais completa

sobre as influências que Warburg teve em sua formação e ao longo de sua vida como pesquisador. Outros

trabalhos, no entanto, têm sido desenvolvidos a partir de então articulando a obra de Aby Warburg com

outros pensadores, cito aqui alguns trabalhos notáveis. Para relação entre Aby Warburg e Jacob Burckhardt,

ver: FERNANDES: 2006. Para a influência do seu professor, Karl Lamprecht, em sua formação, ver:

BRUSH: 2001. Para a aproximação das teorias de sobrevivência de Aby Warburg e E. P. Tylor ver: DIDI-

HUBERMAN: 2002. Para a influência da teoria dos símbolos de Vischer em Warburg ver: RAMPLEY:

1997.

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de sua biografia, pelo renomado historiador da arte E. H. Gombrich, este quadro inverte de

forma que o interesse pela vida e obra de Aby Warburg vem aumentando desde então. Não

obstante, Warburg é ainda pouco conhecido no Brasil.8 Este trabalho tem, portanto, o

objetivo de discutir este importante historiador do princípio do século XX que é ainda

pouco divulgado no meio acadêmico brasileiro, compreender a relação da obra de Warburg

com o contexto intelectual do final do século XIX, especificamente a partir da influência

exercida pelo filósofo italiano Tito Vignoli, aprofundando com isso a discussão em torno

de um problema central na obra de Warburg: o conflito entre o racional e o irracional.

Uma reflexão sobre a obra Mito e Ciência de Tito Vignoli

O filósofo italiano Tito Vignoli nasceu em Rosignano Marittimo no ano de 1829.

Sua carreira como intelectual foi construída nos círculos eruditos da cidade de Milão. Sua

primeira obra foi publicada em 1876 e se intitulou Delle condizioni morali e civili d’Italia.

Em 1877 Vignoli publicou a obra Della legge fondamentale dell’intelligenza nel mondo

animale, nesta obra o filósofo elaborou uma reflexão sobre os processos cognitivos na

inteligência animal. Apesar da qualidade do trabalho, obteve pouca repercussão, de fato, o

problema central presente em “Da lei fundamental da inteligência no mundo animal” vai

ser ampliada em sua obra seguinte, momento em que o filósofo elabora com mais

maturidade seu pensamento. Desta forma, em 1879 Vignoli publicou sua grande obra Mito

e Scienza. “Mito e Ciência” alcançou grande repercussão, extrapolando os limites

geográficos da Itália. No ano seguinte ao lançamento do livro saiu publicado a versão

alemã. Em 1882 a obra alcançou o público Inglês com sua primeira tradução para o

idioma. Essas traduções foram responsáveis pela divulgação da obra de Vignoli, em

especial nos meios intelectuais evolucionistas de finais do século XIX. De fato, “Mito e

Ciência” consagrou Tito Vignoli como um importante filósofo evolucionista do século

XIX. Vignoli viveu até o ano de 1914 na cidade de Milão.

A partir das discussões evolucionistas do final do século XIX, Vignoli propôs suas

ideias que eram por si só muito audaciosas. O filósofo italiano parte de questões abertas em

Tylor e Spencer. Em Spencer, tomando como válida toda sua teoria fica uma pergunta

8 Ainda não existem traduções dos trabalhos de Warburg para o português. O primeiro ensaio sobre Warburg

que apareceu no Brasil em língua portuguesa está numa coletânea de Carlo Ginzburg, ver: GINZBURG:

1989. Recentemente a obra de Warburg tem despertado a atenção do meio acadêmico brasileiro e vem

surgindo os primeiros trabalhos publicados no Brasil, ver: FERNANDES: 2004, 2006; MATTOS: 2007;

TEIXEIRA: 2010.

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pendente: como é processado o irracional no homem? (VIGNOLI: 1882, p.15-16) Para

Tylor, Vignoli pergunta: o que faz com que o homem dê vida aos objetos que o circunda?

(VIGNOLI: 1882, p.16-17) A partir destas perguntas Tito Vignoli defende que em ambos

os pensadores a natureza do processo irracional no homem não está analisada, portanto,

sua proposta é compreender o processo irracional da mente humana (daqui para frente

chamado de mito) em sua gênese. Como manifesta Vignoli, o avanço de sua teoria é a

percepção do mito em sua origem, a saber, no reino animal, o que não foi feito por Comte,

Darwin, nem mesmo por Spencer. (VIGNOLI: 1882, p.161-162) Não adentrando em

demais aspectos conceituais da obra, cabe aqui discutir o que Vignoli entendia por mito e

como ele está integrado no homem. Esta é a questão central da visão do filósofo sobre o

homem e o processo histórico.

Na teoria de Vignoli o mito é pensado como uma faculdade própria do homem. Na

primeira página de sua obra há uma boa definição do mito que permite compreender a

percepção do filósofo quanto a esta faculdade. Aqui cito suas próprias palavras;

Nós sustentamos que o mito é, em sua mais geral e compreensível natureza, a

forma espontânea e imaginária em que a inteligência e as emoções humanas

concebem e representam tanto elas mesmas quanto as coisas em geral; é o modo

físico e psíquico em que o homem se projeta em todos os fenômenos que ele é

capaz de compreender e perceber.9

Para Vignoli o mito é uma faculdade presente em todos os homens independente da

sobrevivência ou não dos antigos costumes mitológicos. (VIGNOLI: 1882, 3) O que

Vignoli mostra ao longo da história que escreve do mito é que ele persiste mesmo nos

momentos de racionalização mais extrema. No entanto, seu pensamento é marcado por um

otimismo de caráter teleológico em relação ao triunfo final da ciência e consequente

aniquilação do mito, tal otimismo provém de outra faculdade inerente ao homem: a

ciência. A ciência aparece no pensamento de Vignoli como uma faculdade do homem

oposta à faculdade do mito, que de uma forma simples, pode ser definida como “a gradual

exaustão e dissolução do mito em objetos que são cientificamente investigados”.

(VIGNOLI: 1882, p.113) Embora o mito seja uma faculdade tanto dos homens quanto dos

animais, Vignoli estabelece uma diferença fundamental que esta faculdade assume em

ambos tendo como premissa a evolução do homem em relação aos animais. Enquanto nos

animais o mito é o responsável pela personificação dos fenômenos naturais, esta mesma

9 Tradução livre de: VIGNOLI: 1882, p.1-2.

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personificação quando feita pelo homem permanece na sua memória, ou seja, enquanto a

personificação não avança para outro estado nos animais, ela “é transformada pelo homem

em fetish”. (VIGNOLI: 1882, p.93) A faculdade da ciência como definida acima é,

portanto, a responsável por romper com estes fetishes criado pelo homem. Com estas

reflexões chegamos finalmente ao caráter dialético que o homem possui na visão de

Vignoli: composto por duas faculdades em eterna oposição, o homem é pensado a partir

deste conflito entre duas faculdades inerentes à sua natureza, o mito e a ciência. Vejamos

agora como a história humana está marcada por este caráter dialético.

Em consonância com o projeto manifesto em “Mito e Ciência” a narrativa história

assume um lugar central na obra, pois é através desta que é tecido a origem e o

desenvolvimento do mito e da ciência.10

Antes de tudo é preciso salientar que a perspectiva

histórica presente na obra é marcada por um evolucionismo e por um caráter generalizante.

Está presente até mesmo certo fatalismo. Em Vignoli a história é regida por certas leis, leis

que constituem a base da sociedade e possuem uma natureza metafísica. Vignoli afirma

que “As verdadeiras e eternas leis que fazem a sociedade possível, e consequentemente a

base de sua moralidade, são resultados inatos e genuínos das leis universais, sendo

impossível para a ciência destruir tal inevitável ordem das coisas e reduzir a humanidade

ao puro caos”. (VIGNOLI: 1882, p.37) Ou seja, para o autor, paira acima da ciência uma

ordem estabelecida por leis universais que direcionam a história da humanidade. Mas é

nessa história que Vignoli traça o desenvolvimento do mito e da ciência, história marcada

em sua essência pelo conflito. Desta forma a História assume um caráter dialético onde em

diferentes momentos dois polos opostos coexistem: o mito e a ciência. Vejamos como esta

perspectiva é pensada em um exemplo concreto: a civilização grega.

Ao tratar da civilização grega o primeiro momento de entrave entre o mito e a

ciência se dá na construção da poesia grega, vista como a transformação do mito em

direção ao ensino moralizante. (VIGNOLI: 1882, p.200) Com o surgimento da filosofia

pré-socrática este caráter dialético permanece à medida que um pensador como Tales de

Mileto é visto como fortemente influenciado pelas perspectivas mitológicas, fato

constatado pela eleição da água como princípio de todas as coisas. (VIGNOLI: 1882,

p.212) Mais adiante, mesmo Platão e Aristóteles em suas sistematizações filosóficas

geniais não fugiram da influência do mito, expressando assim de maneira característica a

dialética fundamental da história da humanidade. (VIGNOLI: 1882, p.220) A dialética,

10

Tito Vignoli destina o mais longo capítulo de “Mito e Ciência”, “A evolução histórica do mito e da

ciência”, para descrever em detalhes este processo. Ver: VIGNOLI: 1882, p.155-240.

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portanto, não ocorre somente no âmbito o indivíduo, mas é também vista como parte

integrante de toda uma civilização. Os dois trechos a seguir falam por si quanto o conflito

do mito e da ciência na civilização grega:

A partir desta breve descrição é evidente que enquanto o pensamento envolvia

uma sistematização mais racional do conhecimento universal, os antigos ídolos e

as interpretações mitológicas não foram abandonadas, ainda que assumindo uma

forma abrangente e mais científica.11

E consequentemente é fácil ver como muito da teoria de Platão sobre o físico e o

psicológico estão relacionadas ao necessário e histórico curso do mito, e às

escolas nas quais o mito foi modificado antes de seu tempo.12

No curso da história surge desta forma um importante elemento constituidor desta

dialética mito-ciência, este elemento é a sobrevivência dos antigos hábitos. Alguns hábitos

permanecem em diferentes contextos e civilizações, reaparecendo até em momentos de

elevado desenvolvimento racional e científico. Este processo garante a sobrevivência de

certos aspectos mitológicos que, ao encontrarem respaldo na faculdade do mito inata ao

homem, faz com que este conflito persista. Finalizo esta parte do estudo com o trecho em

que Vignoli expõe de maneira clara e direta este questão:

No discurso comum, mesmo nos dias de hoje, todos homens, letrados e não-

letrados, falam das coisas inanimadas como se elas tivessem consciência e

inteligência. Enquanto esta forma de expressão carregar o testemunho das

origens extremamente remotas da personificação geral dos objetos naturais, ela

permanecerá mostrando que mesmo agora nossa inteligência não está totalmente

emancipada de tal hábito, e que o nosso discurso inconscientemente retêm este

antigo costume.13

O conflito na obra de Warburg

Em 1866 nasceu Aby Warburg, filho primogênito do banqueiro judeu Moritz

Warburg. Aby Warburg nasceu e foi criado na cidade de Hamburgo. Ainda em sua

adolescência teve experiências marcantes: uma delas é o episódio em que vendeu sua

primogenitura ao seu irmão Max em troca promessa de sempre prover o suporte financeiro

para a compra de seus livros. Este episódio revela o seu amor pelo conhecimento que

culminará mais tarde em sua opção, feita aos vinte anos de idade, de se dedicar a estudos

da história da arte na universidade de Bonn. Até o ano de 1896 Warburg passou

11

Tradução livre de: VIGNOLI: 1882, p.213. 12

Tradução livre de: VIGNOLI: 1882, p.226. 13

Tradução livre de: VIGNOLI: 1882, p.125-126.

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temporadas em diferentes lugares. Este período é importante para a formação de Warburg,

pois durante estes anos conheceu e manteve contato com diferentes pensadores da Europa

e dos Estados Unidos. É deste período também a sua tese de doutoramento onde estudou os

quadros “Nascimento de Vênus” e “Primavera”. Sua tese, publicada em 1893, revela a

essência das discussões que Warburg aprofundou em trabalhos posteriores. Ao regressar da

América em 1896 viveu em Florença e depois em Hamburgo até o ano de 1918. Neste

período Warburg publicou a maior parte de seus trabalhos, é neste também que o seu

fascínio pelo colecionismo de livros fez com que iniciasse o projeto de uma biblioteca

particular. Durante os anos de 1918 e 1924 Warburg enfrentou diversos problemas e crises

interiores, chegando a perder a sanidade mental. Após sua recuperação viveu até o final de

sua vida em Hamburgo. Neste período sua biblioteca particular já havia virado um centro

de estudos que reunia importantes nomes da recém-criada universidade de Hamburgo. Até

sua morte em 1929, Warburg continuou seu trabalho proferindo palestras e cursos, e

elaborando um projeto que deixou inacabado, o “Atlas Mnemosyne”.

A obra de Warburg compreende uma série de escritos não sistemáticos, de fato,

seus escritos são em maioria palestras que conferia ao público especializado. Sua obra é

fragmentária quanto ao aspecto formal, no entanto, possui um eixo que a interconecta,

podendo ser vista como uma importante contribuição à história da cultura, sobretudo, no

que se refere aos problemas que examina e ao método que adota. O primeiro trabalho de

Warburg, sua tese sobre os quadros mitológicos de Botticelli, pode ser tomado como um

exemplo sintético dos problemas que perseguiu em sua vida de pesquisador. Neste trabalho

Warburg analisou a composição dos quadros “Nascimento de Vênus” e “Primavera”

através das relações e do contexto cultural que envolvia o pintor Sandro Botticelli. Neste

contexto, uma figura central é Poliziano, mentor de Botticelli responsável por fornecer o

conhecimento clássico fundamental para a elaboração dos quadros através de uma relação

pintor-poeta, poeta-pintor. Essa tese pode ser vista como um primeiro esforço de

compreensão do círculo de Lorenzo, o Magnífico, que foi aprofundada em estudos

posteriores como “Arte flamenca e florentina no círculo de Lorenzo de Médici” (1901), “A

arte do retrato e a burguesia florentina” (1902), “Os últimos desejos de Francesco Sasseti

aos seus filhos” (1907). Mas pode ser pensada também a partir da presença de problemas e

perspectivas que constituem a o eixo central do pensamento presente em todos seus

escritos.

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A tese de Warburg já mostra uma metodologia de estudo da história que privilegia

o lugar do indivíduo.14

De fato, Warburg foi um grande erudito. As questões a que procura

responder em sua tese passa pela realidade empírica e o confronto com acontecimentos

reais. Outro aspecto notável é o lugar central da cultura. Aby Warburg pretendeu ao longo

de sua obra compreender o universo cultural, ou seja, o que estava em jogo era sempre a

maneira de pensar e compreender o mundo de determinada época histórica. O lugar central

dado ao universo cultural aparece em sua tese quando declara que o seu objetivo é

compreender através do estudo dos quadros “quais elementos da ‘antiguidade’

interessavam aos artistas do Quatrocento”. (WARBURG: 1999, p.89) Desta forma a

história da arte aparece na obra de Warburg integrada à história da cultura, uma vez que as

produções artísticas são entendidas como produtos e expressões da mentalidade de um

determinado contexto histórico.15

O elemento antigo é, em Warburg, outro eixo de

reflexão. Este aparece em sua tese, é formulado através do conceito “das Nachleben der

Antike”16

no seu ensaio de 1905 “Dürer e a antiguidade italiana” e repercute em seu último

projeto, o “Atlas Mnemosyne”, onde Warburg pretendia traçar um mapa a partir de

imagens que demonstrariam a sobrevivência das formas ao longo das diferentes épocas.

Contudo, sua obra também é marcada por uma visão dialética.17

Dois polos antagônicos,

mas coexistentes aparece em vários de seus escritos. É neste aspecto de sua obra que nos

deteremos.

Em sua tese Warburg mostrou os elementos antigos que apareceram na arte de

Sandro Botticelli, quebrando assim a concepção naturalista que este período adquiriu na

concepção de Vasari. Em seu estudo sobre a arte do retrato de Ghirlandaio, “A arte do

retrato e a burguesia florentina”, Warburg percebeu através da arte um ponto conflitante

daquela época: a mistura de uma visão secular e pagã com uma concepção cristã da vida.

Desta forma, Warburg assinalou que as obra de arte do período são “resultantes do

compromisso entre Igreja e mundo, entre antiguidade clássica e cristianismo”.

14

O lugar central ocupado pelo indivíduo na obra de Warburg foi muito bem assinalado por Gombrich, numa

tradição que privilegiava a interação individual em círculos individuais, que perpassa por Burckhardt, Carl

Justi e, finalmente, Aby Warburg. Ver: GOMBRICH: 1991, p.120. e GOMBRICH: 1992, p.39-40. 15

Esta postura de Warburg contrapunha sua obra à visão formalista da história da arte. Edgar Wind em 1931

inaugura este debate destacando a convicção basilar de Warburg da relação entre arte e cultura. Ver: WIND:

1997. 16

“Das Nachleben der Antike” ou pós-vida da antiguidade. Para uma breve discursão sobre o conceito e sua

tradução para o português, ver: TEIXEIRA: 2010, p.136. 17

Michael Steinberg faz uma análise crítica da interpretação do conflito na obra de Warburg elaborada a

partir de uma perspectiva popperiana por Gombrich. O mais importante aqui, no entanto, é, além desta

discursão, perceber que Warburg ressalta em seus escritos a presença na história de elementos que mesmo

opostos na teoria, assumem uma existência concomitante em determinados indivíduos e contextos culturais.

Ver: STEINBERG: 1995, p.67-68.

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(WARBURG: 1999, p.191) Em “Os últimos desejos de Francesco Sasseti aos seus filhos”

este conflito toma forma na personalidade de um importante banqueiro florentino na época

de Lorenzo de Médici. Warburg mostra Sasseti como um homem que conciliava em si dois

ideais antagônicos, mas não excludentes. Através da crença na deusa do destino, existia em

Sasseti uma visão cristã de mundo típica do período medieval que consistia na dependência

do Deus absoluto, e a crença tipicamente renascentista em si mesmo:

Nós agora percebemos porque a deusa do vento, Destino, repercutiu na mente de

Sasseti em sua crise mental de 1488 como um sistema para suas próprias tensões:

Tanto para Rucellai e quanto para Sasseti, ela funciona como uma fórmula

iconológica de reconciliação entre a crença medieval em Deus e a crença

renascentista em si mesmo.18

Em seu trabalho posterior onde Warburg já desenvolve seu pensamento de forma

mais madura, “Profecia pagão-antiga em palavras e imagens na era de Lutero” (1920), esta

temática do conflito aparece como fundamental. De fato, Warburg vê este período,

essencialmente religioso, onde se buscava o retorno às origens do cristianismo, como

marcado pela crença, essencialmente oposta ao cristianismo e à razão, na astrologia. Neste

sentido Warburg aponta para o paradoxo intrínseco a esta era:

Mesmo aqui, onde os sentimentos foram tão intensos contra o paganismo cristão

de Roma, tanto a astrologia babilônica-helenista quanto o augúrio romano

ganharam repercussão e – com certas reservas curiosas – assentamento. As

razões para o envolvimento com os remanescentes do arcanismo pagão – um

paradoxo em termos com qualquer visão linear da história – emerge das

diferentes respostas dadas por Lutero e Melanchton às crenças supersticiosas nos

signos e profecias.19

Os exemplos poderiam, de certo, serem ampliados e a análise aprofundada. No

entanto, o analisado acima é suficiente para perceber a visão dialética da história na obra

de Warburg e apontar para a notável semelhança com a obra “Mito e Ciência”, obra esta

que Warburg adquiriu no inverno de 1886 e que “lhe causou uma impressão tão profunda

que a maior parte de seu pensamento posterior deriva desta”. (GOMBRICH: 1992, p.76)

Desta forma, o conflito mito e ciência elaborado por Vignoli de forma essencialmente

teórica, pode ser visualizado na obra de Warburg através dos conflitos que percebeu em

situações reais, indivíduos específicos, onde dois polos coexistiram: paganismo e

cristianismo, individualismo e confiança em Deus, razão e profecia.

18

Tradução livre de: WARBURG: 1999, p.242. 19

Tradução livre de: WARBURG: 1999, p.603.

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A Tempestade de Shakespeare: aproximações entre História e Literatura.

Daiana Pereira Neto*

Introdução

É muito difícil ou talvez impossível encontrar um indivíduo que nunca tenha

ouvido falar em Shakespeare ou em seus famosos personagens Hamlet, Romeu e Julieta ou

a Megera Domada. Esse trabalho especificamente trabalhará com sua peça A Tempestade,

considerada um de seus últimos trabalhos, a peça foi escrita em 1611. Suas páginas contam

a história de um nobre chamado Próspero, duque de Milão, que traído pelo irmão é lançado

ao mar, junto de sua filha Miranda, indo encontrar-se na ilha onde a história se passa.

No decorrer dos séculos diferentes interpretações foram dadas ao texto. No entanto,

é inegável que A tempestade é fruto de seu tempo. Claro que também é necessário

acrescentar a isso o gênio de Shakespeare, por que como afirma Bárbara Heliodora, se toda

a sua obra se devesse somente a influências externas, teríamos hoje centenas de

Shakespeares, no entanto, existiu apenas um.

A Tempestade foi apropriada por diferentes escritores, no decorrer dos séculos,

destacando- se as discussões em torno da questão colonial, e no século XX, o debate entre

América Latina e Estados Unidos. As personagens vem sendo apropriadas por esses

escritores de acordo com o seu tempo e sua geografia. Concordo com a vertente explicativa

que enxerga no texto uma alusão ao processo de colonização do Novo Mundo, sendo clara

as alusões a textos como Dos Canibais de Montaigne e a Utopia de Tomas More.

O objetivo do presente artigo é, portanto, analisar A Tempestade, compreendendo-a

dentro de seu tempo, para posteriormente compreender como foi possível sua incorporação

por escritores tão distantes temporalmente do início do século XVII.

O autor e seu tempo

Considero como esclarecedora para o início dessa reflexão uma fala de Bárbara

Heliodora sobre Shakespeare, escreve ela:

* Mestranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Beatriz

Helena Domingues. Contato: [email protected]

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Sempre consideramos que Shakespeare se assemelha a um desses espelhos de

parque de diversões que alteram a imagem refletida: como espelho de sua época

ele observa, absorve e reflete, em sua obra, uma imagem filtrada a qual sua

mente deu forma e significação. Se com o passar dos anos nem sempre a imagem

refletida continue a revelar o mesmo tipo de alteração, restará aceitarmos a idéia

de que houve transformações no próprio espelho.20

Dessa forma, entendemos que a obra literária do grande dramaturgo carrega em si o

espírito de sua época, ou como o chamou os românticos alemães Zeitgeist. O texto de

Shakespeare é rico em metáforas, não somente a suas obras chamadas históricas, mas todo

o conjunto da produção. A Tempestade não é fruto de uma imaginação alheia a seu redor.

Roger Chartier levanta uma questão muito interessante em relação a autoria de

textos literários, a função autor, ou seja a distância entre o autor como identidade

construída e o sujeito concreto. Para exemplificar essa questão magistralmente ele recorre

a um texto de Jorge Luis Borges, presente em uma coletânea de textos chamada El fazedor,

onde o eu do criador pode ser ninguém ou nada21

. Quando Borges se refere a Shakespeare

ao iniciar seu texto escreve: “Ninguém houve nele; atrás de seu rosto (que ainda através

das más pinturas da época não se parece com nenhum outro) e de suas palavras, que eram

copiosas, fantásticas e agitadas, não havia mais que um pouco de frio, um sonho não

sonhado por ninguém.” 22

Para Borges é precisamente a grandeza de buscar uma identidade, que engrandece a

função do autor:

A história acrescenta que, antes ou depois de morrer, soube-se diante de Deus e

lhe disse: ‘Eu, que tantos homens fui em vão, quero ser um e eu’. A voz de Deus

lhe respondeu de um torvelinho: ‘Eu tampouco sou; eu sonhei o mundo como tu

sonhaste tua obra, meu Shakespeare, e entre as formas de meu sonho estavas tu,

que como eu és muitos e ninguém23

.

Discussões aparte nos enveredemos brevemente pela identidade construída por

Shakespeare, pelo menos dos dados passíveis de serem conhecidos. Afirma G. B. Harrison

“no mundo anglo-saxão nenhum lar é completo se não contém um exemplar da Bíblia e

20

HELIODORA, Bárbara. A expressão dramática do homem político em Shakespeare. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1978. p. 21. 21

CHARTIER, Roger. Debate: literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, n 1, p. 197-216. 22

CHARTIER, Roger. Debate: literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, n 1, p. 197-216. Apud. BORGES,

Jorge Luis. “Borges y yo”, em El hacedor, (1960), Madrid, Alianza Editorial, 1997, p. 52-55. 23

CHARTIER, Roger. Debate: literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, n 1, p. 197-216. Apud. BORGES,

Jorge Luis. “Borges y yo”, em El hacedor, (1960), Madrid, Alianza Editorial, 1997, p. 52-55.

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23

outro das obras completas de Shakespeare”24

, mas isso nem sempre foi assim. O inglês foi

ator e dramaturgo em uma época em que nenhuma das duas carreiras possuía grande

prestígio. A idéia de gênio inglês só surgiu passado um século de sua morte.

São poucos os dados sobre a vida íntima de Shakespeare. Os biógrafos dos

dramaturgos do século XVII contam com pouquíssimo material para compor o seu texto.

Os registros das paróquias guardam datas de batizado, casamento e morte, mas nem todos

esses documentos resistiram aos séculos. Jornais não existiam, e poucos são os que

escreveram cartas sobre os dramaturgos, que como já mencionado não eram pessoas de

muito prestígio. Os detalhes realmente interessantes da vida dos escritores desaparecem

com a morte daqueles que o conheceram, e é raro encontrar diários ou documentos que

mostrem que esses autores se envolveram com a política ou com a polícia, como foi o caso

de Christopher Marlowe.

Como afirma Harrison, no caso específico de Shakespeare, existem muito mais

fontes do que se poderia esperar. Temos registros paroquiais de Stratford-on-Avon, com

datas do batismo do poeta e de outros membros da família e a data de seu enterro. Ações

judiciais como autor, como réu e como testemunha, livros da Corte com somas pagas pela

família, e a tradição, embora, nem sempre confiável não deixa de ser uma fonte. Existe

também a fonte literária, há inúmeras referências a Shakespeare e a seus personagens em

textos de seus contemporâneos, por fim a própria obra do autor constitui uma fonte sobre a

sua vida.

Resumidamente, nasceu em Stratford-on-Avon, sendo batizado na igreja paroquial

em 26 de abril de 1564, terceiro filho do casal de um total de oito. Nada se conhece ao

certo sobre a sua infância, a não ser que estudou na escola local. Casou-se com Ann

Hathaway em 1582, o dramaturgo contava então com dezoito anos e a noiva com vinte e

seis anos, cinco meses depois em 26 de maio de 1583 a filha primogênita do casal foi

batizada, em 22 de fevereiro de 1585 seus filhos gêmeos. Sobre sua mocidade nada mais é

mencionado nos registros.

Não se sabe quando Shakespeare veio a Londres pela primeira vez, somente em

1592 se tornou uma personalidade no centro da vida inglesa. Daí em diante existem muitos

documentos que trazem o nome de Shakespeare. Em 25 de março de 1616 o dramaturgo

24

HARRISON, G. B. Shakespeare: traços da vida e aspectos da obra. São Paulo: Edições melhoramentos,

s/d. p. 7.

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faz seu testamento, que está atualmente em Londres, morre um mês depois em 25 de abril

de 1616 em sua cidade natal.

Como afirma G. Harrison depois da mocidade do poeta, uma maior gama de

documentos, nos revelam que em 1592 o dramaturgo já obtivera sucesso na capital, já em

1594 fazia parte da Companhia do Lord Chamberlain, reconhecida em 1603 como a

Companhia Real, e para esta companhia escreveu peças que obtiveram sucesso popular.25

Aliado ao gênio de Shakespeare existem outros fatores que podem ter influenciado

a sua produção, o primeiro deles é o aumento da produção de textos tipográficos, que foi,

sobretudo, facilitado pelo rompimento de Henrique VIII com Roma. Mesmo que a grande

maioria das peças de Shakespeare não tenham sido impressas, a questão é que a tipografia

possibilitou a circulação de outros textos, sobretudo, os que narravam as aventuras

provindas dos Descobrimentos. O Novo Mundo exerceu grande influência no Teatro

Elisabetano. Acredita-se ainda que a expansão da imprensa tenha estreita ligação com a

consolidação das línguas nacionais, o latim perdeu seu espaço quando da Reforma

Anglicana, e a língua vernácula ganhou cada vez mais espaço. Nesse sentido Shakespeare

ao escrever A Tempestade, peça que nos ocuparemos aqui, encontrava-se nesse turbilhão

de mudanças, sendo essas políticas, religiosas e econômicas, mudanças também motivadas

pelo encontro com Outro, com o Novo Mundo.

A Tempestade

A Tempestade foi escrita em 1611, sendo encenada pela primeira vez na Corte, no

mesmo ano. Suas páginas contam a história de um nobre chamado Próspero, homem culto

e amante dos livros, que teve seu ducado em Milão roubado por seu irmão Antônio.

Juntamente com sua filha Miranda, ainda uma criança, é abandonado ao mar a sua própria

sorte. Desta maneira Próspero vai se achar na ilha onde a história se passa. A ilha é então

habitada por um único ser humano, Caliban, definido no texto como um escravo selvagem

e deformado. Ao encontrar Caliban, Próspero o ensina a falar e o submete a sua magia, o

que obviamente causa uma grande revolta neste que é transformado em servo. Nesta

mesma ilha encontra-se o outro personagem ícone desta história, Ariel, um espírito do ar,

um ser com numerosos poderes também transformado em servo por Próspero dado a magia

deste. É Próspero quem liberta Ariel do feitiço que o mantinha preso a uma árvore, feitiço

25

HARRISON , G. B. Shakespeare: traços da vida e aspectos da obra. São Paulo: Edições melhoramentos,

s/d.p 28-29.

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25

este lançado pela mãe de Caliban, uma bruxa chamada Sicorax26

, banida e destinada a

viver e dar a luz sozinha na ilha.

Todavia, a história inicia-se com uma cena de naufrágio em uma poderosa

tempestade, arquitetada por Próspero com a ajuda de Ariel, para trazer a ilha a comitiva de

seu irmão Antonio, que também contava com a presença do rei de Nápoles e de seu filho,

além de outros nobres e marinheiros. A trama arquitetada pelo protagonista acontece de

forma a fazer com que o filho do rei se apaixone por sua filha e seu irmão pague por tê-lo

traído. Caliban nosso outro personagem ícone durante a peça tenta enganar Próspero sem

sucesso, passando a ter como senhor um dos bêbados do navio, tramando para que

Próspero seja morto, o que Ariel evita.

No fim da história, Próspero assume novamente seu ducado, sua filha torna-se

noiva do príncipe e Ariel é libertado para que possa juntar-se em liberdade aos elementos.

Quanto a Caliban é deixado na ilha.27

Não é possível definir uma fonte específica na qual Shakespeare se baseou para

escrever o texto da peça. Segundo Fernando Rodrigues é possível estabelecer relações

entre a peça e os textos Die schöne Sidea, de Jakob Ayrer (escrita antes de 1605), ou,

igualmente, com as obras espanholas Noches de Invierno (1609), de Antonio de Eslava, e

Espejos de Príncipes y Caballeros (1562), de Diego Ortuñez de Calahorra, todavia,

nenhum destes três textos pode explicar a sua trama geral28

.

No entanto, é clara a referência a diversos textos não ficcionais na peça

shakespeariana, o primeiro é o ensaio Dos canibais de Montagne, esse ensaio foi traduzido

para o inglês por John Florio em 1603, e era familiar a Shakespeare. Outro acontecimento

muito divulgado na Londres do inicio do século XVII é o naufrágio de Sir Thomas Gates

nas Bermudas, também conhecida como ilha dos Demônios devido a violência das

tempestades ali encontradas, quando tentavam alcançar a colônia da Virgínia, diversos

documentos circularam narrando a aventura dos sobreviventes29

. A história causou enorme

interesse não somente na metrópole, mas também na colônia, sendo o primeiro relato

publicado por Sylvester Jourdain, intitulado “Uma descoberta das Bermudas”, dado texto

circulou em forma de panfleto em 1610. Seguido pelo manuscrito da carta de Willian

26

É interessante o fato de Caliban ter ascendência africana, já que Sicorax é expulsa da Argélia. 27

SHAKESPEARE, Willian. A Tempestade. Tradução Geraldo Carneiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará,

1991. 28

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N.5. julho-dezembro, 2008. Disponível em: www.revistaviso.com.br Acesso em outubro de 2011. 29

RODRIGUES, Fernando. A Tempestade e a questão colonial. In:__ Viso. Cadernos de estética aplicada.

N.5. julho-dezembro, 2008. Disponível em: www.revistaviso.com.br Acesso em outubro de 2011.

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Federal de Juiz de Fora.

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Stracher, datada de 15 de julho do mesmo ano. E o conselho da Virgínia publicou sua True

Declaration of the state of the Colonie in Virginia. Dessa forma é inegável que a Londres

de Shakespeare sofreu influência dos relatos do Novo Mundo, tão presentes no teatro

elisabetano. 30

Outro texto não ficcional que merece destaque na narrativa de Shakespeare é a

Utopia de Thomas More, mesmo tendo sida escrita em 1516, o texto de More influenciou

essa sociedade marcada pelo descobrimento do Outro e por seus próprios vícios. Diante de

sua realidade compreendia por um emaranhado de vícios, More contrapõe uma sociedade

ideal, repleta de virtudes, onde todos são iguais. Na peça de Shakespeare a personagem

Gonçalo quando questionada sobre uma sociedade perfeita deixa entrever em sua fala

partes completas da Utopia. Vejamos:

Em minha república eu faria tudo pelo avesso. Não

Permitiria nenhum tipo de comércio, nem nomearia

juizes. Ninguém saberia ler ou escrever. Nada de ri-

queza, pobreza ou servidão. Nem contratos, heranças,

limites, demarcação de terra, nem lavouras, nem vinhedos.

(...) Nada de governo.

(...) Todas as coisas seriam partilhadas. A natureza daria tudo,

sem suor, nem esforço(...)31

No entanto, mesmo fazendo referência A Utopia de More, A Tempestade, não

constitui-se em texto utópico. Fátima Vieira, apresenta a literatura utópica como formas

alternativas de organização social, onde a ilha e o naufrágio são alegorias recorrentes.

Mesmo apresentando esses aspectos, A Tempestade através de seus três personagens

humanos cerne, sendo eles Próspero, Caliban e Miranda, não rompem com a organização

social vigente no exterior da ilha.32

Cabe então destacar que A Tempestade faz parte de um contexto de mudanças, das

quais a descoberta do Novo Mundo faz parte incomensuravelmente. Segundo Serge

Gruzinski, Caliban encarna o esfacelamento dos sonhos de Tomas More, ele é o selvagem

expulso de seus domínios por homens mais inteligentes. Caliban encarna a imagem bestial

que os ingleses fazem do ameríndio, enquanto na mesma época indígenas são recebidos na

Corte dos Médicis, vestidos a moda européia. Nesse sentido os selvagens apresentados nos

30

HOLDEN, Anthony. William Shakespeare. Trad. Beatriz Horta. São Paulo: Ediouro, 2003. 31

Ibiden. p.69. 32

VIEIRA, Fátima. O espaço da Utopia em A tempestade de William Shakespeare. In:__Estudos de

Homenagem ao professor doutor Antonio Ferreira de Brito. Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Porto, s /e, 2004.

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ensaios de Montaigne comoviam muito pouco os elisabetanos protestantes, tanto quanto os

conquistadores católicos33

.

A Tempestade na América

É inegável e recorrente o uso das personagens shakespearianas em diversos

contextos e lugares. De uma forma abrangente o texto que atravessou quatro séculos, foi

utilizado em diversas geografias para retratar diferentes relações. Dessa forma, sabemos

existir textos na Europa, África, Austrália e Américas.

Nosso trabalho se foca na compreensão dos autores que utilizaram-se de três dessas

personagens, Próspero, Ariel e Caliban, no período que se estende de 1898 a 1988, na

América Latina, para explicarem sua visão acerca do momento histórico no qual viviam. A

Tempestade tem sido vista por leituras pós-coloniais como uma metáfora da relação

colonizado colonizador. No decorrer do século XX, elas foram utilizadas no conflito entre

Estados Unidos e América Latina, algo também que não se opõe a visão Europa América,

uma vez que, a figura da dominação se transfere do Europeu para o norte-americano.

Comecemos então nossa pequena viagem dentre esses autores. Em 1898 tendo

como principal motivo a Guerra Hispano-Americana, travada entre Estados Unidos e

Espanha, tendo como cerne do conflito o domínio sobre as últimas colônias da segunda, a

Espanha perde Cuba, Porto Rico e Filipinas. Em 2 de maio do mesmo ano Paul Groussac

discursa em Buenos Aires, estabelecendo o primeiro uso da metáfora da qual temos

notícia. No discurso Groussac, apresenta as seguintes palavras: “Desde a brutal invasão do

Oeste, tem-se desprendido livremente o espírito iankee do corpo informe e calibanesco, e o

velho mundo tem contemplado com inquietude e terror a novíssima civilização que

pretende suplantar a nossa, declarada caduca”34

.

Seguidas as palavras de Groussac, o poeta e jornalista Rubén Darío, publica em

1898, o texto chamado “El Triunfo de Calibán”. O primeiro trabalho em texto por nós

descoberto. Seu artigo é uma confirmação da ideologia proveniente dos acontecimentos de

1898. Nele vemos a expressão da idealidade da herança latina, da defesa da antiga

metrópole colonizadora e da necessidade de união dos latino-americanos contra o inimigo

comum: OS Estados Unidos.

33

BERNAND, Carmen; GRUZINSK, Serge. História do Novo Mundo 2: As Mestiçagens. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 2006. p. 636-637. 34

RODÓ. José Enrique. Obras completas. Madri: s/e, 1957.

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O segundo autor a ser destacar é José Enrique Rodó. Intelectual uruguaio Rodó

publicou em 1900, Ariel. Segundo Fábio Muruci, a obra de Rodó, precisamente suas

concepções acerca da História, convidavam os intelectuais para estreitar laços culturais

entre os países latinos europeus e os hispano-americanos, buscando restaurar laços

rompidos com as lutas pela independência. Dessa maneira todo o ideário latino serviria

como fonte de exemplaridade melhor do que os utilitarismos e mecanicidade norte-

americanos.35

Esse primeiro grupo ao contrário dos trabalhos que virão posteriormente, enxergam

em Caliban o perigo dominador, ele representa os Estados Unidos. Do contrário, Próspero

é para Rodó a figura do mestre e Ariel da intelectualidade.

O segundo grupo de intelectuais escreve já na década de 1960. Esses intelectuais

inverterão as perspectivas dessa primeira geração. Caliban é agora visto com características

positivas. A revolta de Caliban tem sido utilizada principalmente através da frase do

mesmo em que ele diz que a única vantagem de ter aprendido a língua do colonizador foi

poder amaldiçoá-lo, dessa forma é uma revolta também lingüística. Essa geração na

América Latina é representada principalmente por George Laming, Aimé Césaire e

Roberto Fernández Retamar.

A obra de Laming escrita em 1960, The pleasures of exile, foi escrita quando o

Caribe dito britânico ainda encontrava-se sob domínio da Inglaterra. Seu Caliban é o negro

escravo introduzido na Caribe, que também possui características do indígena caribenho.

Para o autor o escravo negro e o indígena possuem o espírito de revolta calibanesco que

Próspero busca dominar. Caliban é em sua perspectiva o exilado de sua cultura, aspecto

com o qual Laming se identifica, um a vez que também considera-se exilado de sua terra.

Próspero em sua perspectiva é um velhaco tomado pelo espírito de vingança e inveja, um

“imperialista” pelas circunstâncias.

Dado o pequeno espaço que esse artigo comporta, gostaríamos de destacar ainda a

peça de Aimé Césaire, Una Tempestad, escrita em 1969, a peça de Césaire é uma releitura,

uma adaptação do texto shakespeariano para o teatro negro. Onde Caliban é um escravo

negro, que ameaça Próspero com a possibilidade de revolta, e Ariel um escravo mulato,

que consegue sua liberdade no espaço de tempo prometido. Em seu famoso Discurso sobre

o colonialismo, escrito em 1955, afirma:

35

SANTOS, Fábio Murici dos. O Arielismo nos escritos históricos de José Enrique Rodó. In:_ Anais

eletrônicos do VIII encontro internacional da ANPHLAC. Disponível em:

www.anphlac.org/periodicos/anais/encontro8/fabio_muruci_santos.pdf Acesso em 18 de setembro de 2011.

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Chegou a hora do bárbaro. Do bárbaro moderno. A hora estadunidense.

Violência, desmesura, desperdício, mercantilismo, exagero, gregarismo, a

estupidez, a vulgaridade, a desordem. (...) Ouçam que as grandes finanças

estadunidenses julgam que chegou a hora de saquear todas as colônias do

mundo. Então queridos amigos, atenção para este fato!36

Outro intelectual a ser destacado é Roberto Fernández Retamar, seu ensaio Caliban

de 1971, defende Caliban como símbolo latino-americano. Ele é aquele subjugado em sua

própria terra, obrigado a se comunicar através da língua do colonizador.

Por fim cabe destacar o texto do norte-americano Richard Morse, O Espelho de

Próspero, em todos os textos por mim localizados que trabalham A Tempestade, Morse

nunca é mencionado. Todavia, consideramos Morse o coroamento da visão positiva em

relação a Caliban. No texto de Morse é Próspero (representado pelos Estados Unidos) o

convidado a repensar suas ações, enxergando na América Latina uma opção cultural, que

pode servir de inspiração aos vizinhos do Norte.

Referências bibliográficas

HELIODORA, Bárbara. A expressão dramática do homem político em Shakespeare. Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

CHARTIER, Roger. Debate: literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, n 1, p. 197-216.

HARRISON, G. B. Shakespeare: traços da vida e aspectos da obra. São Paulo: Edições

melhoramentos, s/d. p. 7.

SHAKESPEARE, Willian. A Tempestade. Tradução Geraldo Carneiro. Rio de Janeiro:

Relume Dumará, 1991.

RODRIGUES, Fernando. A Tempestade e a questão colonial. In:__ Viso. Cadernos de

estética aplicada. N.5. julho-dezembro, 2008. Disponível em: www.revistaviso.com.br

Acesso em outubro de 2011.

HOLDEN, Anthony. William Shakespeare. Trad. Beatriz Horta. São Paulo: Ediouro,

2003.

VIEIRA, Fátima. O espaço da Utopia em A tempestade de William Shakespeare.

In:__Estudos de Homenagem ao professor doutor Antonio Ferreira de Brito. Faculdade de

Letras da Universidade do Porto. Porto, s /e, 2004.

36

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Letras Contemporâneas. Ilha Santa Catarina , 2010. p.

82-83.

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30

BERNAND, Carmen; GRUZINSK, Serge. História do Novo Mundo 2: As Mestiçagens.

São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. p. 636-637.

SANTOS, Fábio Murici dos. O Arielismo nos escritos históricos de José Enrique Rodó.

In:_ Anais eletrônicos do VIII encontro internacional da ANPHLAC. Disponível em:

www.anphlac.org/periodicos/anais/encontro8/fabio_muruci_santos.pdf Acesso em 18 de

setembro de 2011.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Letras Contemporâneas. Ilha Santa

Catarina , 2010.

RODÓ. José Enrique. Obras completas. Madri: s/e, 1957.

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Federal de Juiz de Fora.

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E Agora, Zsoze?

Adaptação, fidelidade e intertextualidade em Budapeste.

Diego Schaeffer de Oliveira*

"Chico Buarque ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um arame e

chegou ao outro lado. Ao lado onde se encontram os trabalhos executados com

mestria, a da linguagem, a da construção narrativa, a do simples fazer. Não creio

enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro." — José

Saramago, Folha de S. Paulo.

Francisco Buarque de Holanda, mais conhecido como Chico Buarque, nasceu no

Rio de Janeiro, em junho de 1944. Suas atividades começaram na música, mas trabalhou

também no teatro, cinema e escreveu até hoje 4 romances, sendo Budapeste, de 2003, o

terceiro, e Leite Derramado o último, publicado em 2010. Na carreira literária, foi

ganhador de três Prêmios “Jabuti”: “Melhor Romance” em 1992 com Estorvo, além de

“Livro do Ano”, tanto por Budapeste, em 2004, como por Leite Derramado, em 2010.

Como percebemos no prefácio do livro Budapeste, este se trata da “história de um

escritor dividido entre duas cidades, duas mulheres, dois livros, duas línguas”.

Em Budapeste, o narrador e também personagem principal José Costa é um ghost-writer,

um “escritor fantasma”: pessoa especialista em escrever cartas, artigos, discursos ou livros

para terceiros, sob a condição de permanecer anônimo. Costa escreve os textos na “Cunha

& Costa Agência Cultural”, firma em que é sócio com seu amigo Álvaro Cunha, este

especializado em promover o trabalho de José Costa.

Apesar de anônimos e desconhecidos, estes escritores realizam encontros e

conferências. E na volta de um desses congressos de autores anônimos, Costa é obrigado a

fazer uma escala imprevista na cidade título do romance, o que desencadeia uma série de

eventos que constituem o centro da trama: “Fui dar em Budapeste graças a um pouso

imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio” (HOLANDA,

2003, p. 6).

Casado com a apresentadora de telejornal Vanda, José Costa conhece Kriska na

Hungria, que lhe batiza de Kósta Zsoze, pois lá o sobrenome vem anterior ao primeiro

nome (e pela diferença de pronúncia). Com Kriska, ele tem aulas de húngaro , segundo o

narrador, "a única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita". Entre

* Graduando em História pela UFJF. Email: [email protected]

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idas e vindas entre Budapeste e o Rio de Janeiro, a trama se alterna entre o seu

enfeitiçamento pela língua húngara e o seu fascínio em ver seus escritos publicados por

outros, bem como o seu envolvimento amoroso com Vanda e Kriska.

Assim que entra em contato com o húngaro, rapidamente, estes sons e novas

palavras “estranhas” tornam-se uma obsessão a dominar o mais rapidamente possível. No

Rio, José trabalha com Álvaro numa pequena agência, onde produz e escreve textos, mas

quem os assina são outros. “Confidenciabilidade” é o seu ofício. Ele é o pensamento e a

mão por detrás da cara e do sucesso de conhecidos talentos. Mas isto, que para qualquer

pessoa seria motivo de embaraço e até frustração, provoca em José um sentimento de

orgulho e vaidade ao saber que outros “somam vitórias” com os seus escritos.

Num vaivém entre duas cidades, duas identidades, vive também entre duas

mulheres: no Rio de Janeiro ama Vanda, mas (re)lembra Kriska; em Budapeste ama

Kriska, mas sente saudades de Vanda. E esse é seu drama, se escolhe um ou outro, e o peso

dessa escolha, ou “escolhas” entre esses dois mundos de inúmeras possibilidades. E é

como se a todo momento, uma voz exterior perguntasse a Costa, ou Kósta: E agora, José?

– como no célebre poema de Carlos Drummond de Andrade.37

Já Budapeste filme é uma produção cinematográfica húngaro-brasileira de 2009

dirigida por Walter Carvalho, com roteiro de Rita Buzzar, “aprovado” por Chico Buarque.

Na adaptação, Walter Carvalho, que afirmou em várias entrevistas não ter sido

completamente fiel ao livro, omite algumas cenas e acrescenta outras, como veremos mais

a frente nos argumentos de Robert Stam (no artigo Teoria e Prática da Adaptação: da

fidelidade à intertextualidade), “complementando” o livro. Há a falta de ligação coerente

entre algumas cenas, mas isso se deve ao fato da própria mistura narrativa de sonho e

realidade. Ao mesmo tempo, o diretor captou deslumbrantes imagens de Budapeste, e deu

vida a uma Kriska feita à medida da imaginação ao ler o livro.

No filme, José Costa, Vanda e Kriska são representados por Leonardo Medeiros,

Giovanna Antonelli e Gabriella Hamori, respectivamente. Ele não começa da mesma

forma que o livro, não é referida a irmã gêmea de Vanda e Álvaro ganha um novo físico,

porém estes pormenores em nada afetam a própria história. Aliás, ela está lá, só que o

percurso que acompanhamos ao longo da leitura, as interrogações e questionamentos que

sentimos da parte de José, não nos chegam talvez tão arrebatadores através da tela. Porém

37

Apesar da coincidência do nome dos personagens, essa relação que se tornou o título do artigo não se deu

por acaso: muitas vezes, enquanto pensava sozinho (nos quartos de hotel, em casa, na agência), era o

sentimento do poema de Drummond que se sente prespassando a vida de José Costa, e consequentemente, a

narrativa da obra.

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isso não faz do romance uma linguagem superior ao filme, mas sim é exatamente nisso que

se difere esse outro viés narrativo, onde devemos exaltar o que foi “ganhado”, ao invés de

lamentar “perdas”, como afirma Stam: “A literatura e o romance não mais ocupam um

lugar privilegiado; a adaptação, por implicação, assume um lugar legítimo, ao lado do

romance, como apenas mais um meio narratológico” (STAM, 2006, p. 24).

Dessa forma, só quem leu as páginas de Chico Buarque percebe que quando Álvaro

contrata um novo assistente e passado algum tempo outros tantos, o estilo próprio de José

deixa de o ser. Estes foram treinados para escrever da mesma forma que este escrevia,

fingindo ser outro. E a partir daí, o que José dava como a única certeza em si, fica abalada.

No filme, a agência Cunha & Costa nem chega a contratar novos “escritores fantasmas”.

Além disso, no livro, para além de estar dividido entre o Rio de Janeiro e Budapeste, Costa

está claramente com metade do coração em Vanda e com a outra em Kriska. Até o fim fica

a dúvida onde terminará o protagonista. No filme, a escolha fica clara bem mais cedo: o

coração de José pouco ou nada está dividido, mostrando sua escolha pela húngara.

Em contrapartida, só no filme temos a sequência da visita de Costa à estátua do

“Escritor Anônimo”, que realmente viveu séculos atrás na cidade húngara. A partir dessa

estátua, nos deparamos com o dilema interno do protagonista de querer ser reconhecido ou

continuar no anonimato para sempre. E ainda só no filme, temos a cena de um embate

corporal entre um José mais velho e “travestido” de húngaro com um José ainda com o

coração brasileiro: cena de muita significação, onde o diretor nos mostra a difícil luta

interna de José que precisa escolher entre esses “dois mundos”. Há ainda inúmeras outras

semelhanças e diferenças, algumas que serão citadas à frente, outras que só novas

interpretações permitirão.

Por conseguinte, o essencial em Budapeste, tanto livro como filme, é o jogo de

claro-escuro entre os dois idiomas, o português e o húngaro, “a única língua do mundo que,

segundo as más línguas, o diabo respeita”. José é capaz de escrever sobre qualquer assunto,

desde que seja sob a forma de prosa. Atinge o cume de sua carreira ao criar O ginógrafo,

autobiografia erótica de Kaspar Krabbe, um executivo alemão que “zarpou de Hamburgo e

adentrou a Guanabara”. Na pele de Zsoze, ele só escreve em versos. Assim que começa a

dominar o idioma magiar, cria um livro de poemas, Titkos Háramsoros Versszakok, ou

Tercetos secretos, que sai assinado pelo famoso Kocsis Ferenc, poeta húngaro em franca

decadência. São referências cruzadas e cenas que vão e voltam que se repetirão pelo livro.

Mas tanto no livro quanto no filme, muito bem estruturadas, muito bem colocadas. Em

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certo momento, José abandona Vanda no Rio de Janeiro para descobrir-se Zsoze nos

braços de Krista, em Budapeste, e vice-versa. Sempre que está na capital húngara ou na

capital fluminense, hospeda-se no Hotel Plaza, nome genérico que como afirma o narrador,

existe um em qualquer cidade do mundo.

Sobre a estruturação linguística e a problemática de Budapeste, o professor de

Teoria Literária da USP, José Miguel Wisnik, afirmou:

Tecnicamente, Budapeste é um romance do duplo, tema clássico na literatura

ocidental desde que a identidade do sujeito tornou-se problema e enigma. A

questão desfila nas narrativas do século XIX, através dos motivos da sombra, do

sósia, da máscara, do espelho, e evolui para a indagação dessa esfinge

impenetrável e desencantada que é a própria pessoa como persona e ninguém. Na

criação literária, no entanto, o escritor é o duplo de si mesmo, por excelência e

por definição, aquele que se inventa como outro e que escreve, por um outro, a

própria obra. Aos que se identificam mais com histórias do que com estruturas,

porém, a liberdade de José-Zsoze em lidar com seus devaneios guarda ecos de

Phillip Roth e Rubem Fonseca nos seus melhores momentos. A diferença é que o

personagem de Chico Buarque se revela voyeur de si próprio e de seus delírios.38

Além dessa questão do duplo e de José ser um “observador” de sua própria história,

é curioso lembrar que ao fim de Budapeste, o narrador conta essa história depois de tê-la

vivido, porém já na derradeira página, sua própria narrativa e sua vida se fundem numa só,

como percebemos nessa passagem, em que Costa lê o próprio Budapeste para sua amada

húngara (e ele termina como O Ginógrafo, mais uma peculiaridade dessa intensa e bem-

acabada narrativa):

E no instante seguinte se encabulou, porque agora eu lia o livro ao mesmo tempo

que o livro acontecia. Querida Kriska, perguntei, sabes que somente por ti noites

a fio concebi o livro que ora se encerra? Não sei o que ela pensou, porque fechou

os olhos, mas com a cabeça fez que sim. E a mulher amada, de quem eu já

sorvera o leite, me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa

(HOLANDA, 2003, p. 174).

E ainda, há uma curiosidade: pouco antes do final, Chico Buarque “brinca” com

esse dilema dos ghost-writer. No livro, Costa que sempre negou a fama, se torna conhecido

e bem recebido na Hungria por conta de uma autobiografia sua escrita por um “escritor

anônimo” como ele (no caso o ex-marido de Kriska), autobiografia esta que se chama

Budapeste, ou seja, é o próprio livro. E no filme, o próprio Chico Buarque aparece fazendo

uma participação como ator, e essa intertextualidade é bem interessante, pois é como se o

próprio autor fosse um ghost-writer de seu personagem.

38

Artigo de Wisnik completo em: http://www.chicobuarque.com.br/critica/crit_budapeste_wisnik.htm.

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35

Seguindo com a argumentação de Robert Stam, temos a enumeração dos

preconceitos pelos quais a adaptação passa, e entre os citados pelo autor, como a

“antiguidade” (o pressuposto de que as artes antigas são necessariamente melhores) ou a

“dicotomia” (o pressuposto de que os ganhos do cinema representam perdas para a

literatura). Considero que Budapeste enquanto filme pode sofrer o preconceito gerado pela

“incorporação”, ou seja, que os personagens do livro de Chico Buarque ganhando um

“rosto”, sendo interpretados e encarnados por atores, pode causar um efeito negativo no

leitor, como quem diz: “não era assim que imaginava”, ou “esperava um personagem

melhor”, etc. Acredito que isso possa acontecer não por atuações ruins ou mal

selecionadas, mas sim pelas diferenças de opiniões e interpretações literárias ao vê-las

representadas na película. Como bem avaliado por Stam: Conforme a teoria descobre a

“literaridade” de fenômenos não-literais, qualidades consideradas como literárias se

revelam cruciais para o discurso e prática não literários (STAM, 2006, p. 23).

Essa frase se encaixa muito bem em Budapeste, pois o filme segue a linha do livro

nesse sentido, e temos um “narrador de fundo”, o próprio José Costa (como no livro).

Dessa forma, o ritmo fílmico tenta se aproximar do literário, e esse é um recurso essencial

para o transcorrer da história. Por conseguinte, Stam vem centrar seu trabalho no enfoque

do presente artigo: a “fidelidade”, a “intertextualidade”, o “dialogismo” de Bakhtin e

outras categorias denifidas por Genette, que veremos a seguir.39

Sobre a questão da “fidelidade”, Stam considera tal termo inadequado, pois carrega

um significado “moral” que não se encaixa para adaptações. Para o autor, devemos

substituir esse termo tão comumente usado por outras expressões, pois a adaptação é como

se o romance fosse “trazido a vida”, quando o filme “empresta voz” aos personagens

literários, ou como Stam afirma, um “modelo ventriloqual”. Inserindo a adaptação

estudada aqui, Budapeste pode ser considerada uma obra “ventriloqual”, na medida que o

filme segue a história do romance com bastante proximidade, retirando, claro, algumas

cenas e implementando outras, porém sem perder sua essência fundamental. Assim,

acredito ser importante utilizarmos os termos “transfiguração” e “recriação”, onde o

prefixo “trans” enfatiza as mudanças feitas pela adaptação e o prefixo “re” enfatiza a

função recombinante, complementar da mesma.

39

STAM, 2006, p. 26.

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36

Na questão da “intertextualidade”, Stam se concentra em conceitos de Mikahil

Bakhtin e Gerar Genette.40

No primeiro temos seu “dialogismo”, baseado na ideia de uma

“disseminação” de textos e culturas, de forma que todo texto é na verdade uma

“combinação”, um “troca-troca” de ideias de outros textos. Ou seja, em todo texto ou

filme, há uma intertextualidade intrínseca, afirmando que esse “dialogismo” nos ajuda a ir

além das contradições do que chamamos “fidelidade”, pois as expressões comunicativas,

como livro e filme, são muito mais amplas do que comumente vemos. E claro, Budapeste

não estaria fora dessas concepções, visto que a obra é trespassada por vários outros textos e

“dialogismos”, como o próprio personagem principal, José Costa, que escreve textos para

outros, porém confunde sua própria realidade com esse textos, e sendo ele mesmo o

narrador, faz uma “intertextualidade” com sua própia história que é “vivida” por ele mas

escrita à sua revelia, o próprio livro Budapeste, por um escritor-fantasma como ele próprio.

Chegamos então no segundo autor citado, Genette, que segundo Stam propõe o

termo “transtextualidade” ao invés de “intertextualidade”, referindo dessa forma a “tudo

aquilo que coloca um texto em relação com outros textos, seja essa relação manifesta ou

secreta”. (STAM, 2006, p. 29). Genette postula cinco tipos de relações transtextuais, todas

elas importantes na análise da adaptação: a “intertextualidade” (o efeito de co-presença de

dois textos); a “paratextualidade” (relação, dentro da totalidade de uma obra literária,entre

o próprio texto e seu “paratexto” – títulos, prefácios, entrevistas, no caso dos DVDs de

hoje, etc); “metatextualidade” (a relação crítica entre um texto e outro, seja quando o texto

comentado é citado explicitamente ou quando é evocado silenciosamente);

“arquitextualidade” (as taxonomias genéricas sugeridas ou refutadas pelos títulos e

subtítulos); e o quinto tipo, a “hipertextualidade” (se refere à relação entre um texto, que

Genette chama de “hipertexto”, com um texto anterior ou “hipotexto”, que o primeiro

transforma, modifica, elabora ou estende). Considero interessante relacionar Budapeste,

entre esses cinco tipos, a “paratextualidade”, que é o complemento da adaptação. E nesse

quesito, Budapeste pode ser bem aproveitado, pois podemos citar entrevistas com o próprio

Chico Buarque, ou com o diretor Walter Carvalho, que complementam e esclarecem

muitos aspectos da obra41

. Além disso, o DVD inclui sequências que foram gravadas mas

não incluídas na versão final. Dessa forma, segundo Stam: “Esse recurso paratextual

40

Idem, 2006, p. 27. 41

Entrevistas encontradas em: http://cinema.terra.com.br/noticias/0,,OI3714713-EI1176,00Por

+dentro+do+filme+Budapeste.html.

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permite ao espectador do DVD literalmente “visionar” versões alternativas da adaptação,

podendo lamentar (ou aplaudir) a perda de uma seqüência filmada” (STAM, 2006, p.30).

Finalmente, chegamos então às propostas de Stam para se lidar com a narrativa e a

adaptação em geral. Em primeiro lugar, ele cita a importância da “afinidade” entre o

romancista e o cineasta. Nesse sentido, Budapeste tem êxito, pois o autor Chico Buarque

não só “ajudou” com dicas e sua aprovação o roteiro e seleção de cenas, como participou

de uma delas (como já foi aqui explicitado). Depois disso, Stam levanta outras questões

cruciais sobre adaptações, baseado em Genette, que nos são muito úteis para a análise da

obra aqui analisada:

Outras questões sobre adaptação têm a ver com as modificações e permutas da

história. Aqui nós entramos no campo da narratologia, ou do estudo da mecânica

da narrativa. Os narratologistas do cinema se apóiam especialmente na análise

narratológica de Genette do tempo do romance. Em seu trabalho literário,

Genette enfatiza o duplo esquema do qual o romance de ficção faz parte, ou seja,

a relação entre os eventos narrados e a maneira ou seqüência pela qual são

contados. Os narratologistas do cinema extrapolaram três das principais

categorias de Genette: ordem (que responde à pergunta “quando” e “em que

seqüência”), duração (que responde à pergunta “quanto tempo”) e freqüência

(que responde à pergunta “com que freqüência”) (STAM, 2006, p. 36).

Desse ponto de vista, podemos “destrinchar” Budapeste. Na questão da “Ordem”,

que toca na sequência linear em contraposição com a não-linear, o filme Budapeste em

relação ao livro, para olhos desatentos, pode se tornar confuso pela sequência das cenas

(nem sempre na ordem que são narradas no livro). Porém, considero que isso se deve ao

próprio fluxo do romance: Budapeste é um livro de fôlego intenso, linguagem rápida e

constante mistura do que o escritor José Costa, ou Kósta Zsoze, vive, narra ou sonha.

Destarte, penso que a adaptação conseguiu seguir uma “Ordem” sem alterar o

sentido da obra. Já no quesito “Duração”, que tem haver com o tempo do discurso, ou com

o conceito de “velocidade” temporal, a adaptação de Budapeste deixa a desejar. Pois no

livro temos a nítida sensação do passar de muitos anos: um exemplo é que Joaquinzinho,

filho de Costa, que até meados do livro tem apenas 5 anos, chega ao fim do romance

adulto, fato que nem é mostrado no filme. Mas o que se percebe é que a adaptação

cinematográfica talvez “limitou” o tempo do livro para narrar a história mais facilmente,

por opção do diretor ou por dificuldades técnicas (e aí entramos em aspectos que não são

problemas na literatura, mas que podem se tornar empecilhos no cinema, como a questão

do “envelhecimento” dos personagens, etc).

Por último, no quesito “Frequência”, Stam nos mostra que esta se refere à relação

entre quantas vezes um evento ocorre na história e quantas vezes ele é narrado (ou

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mencionado) no discurso textual. Genette postula variantes principais: “narração

singulativa” (um único evento é contado uma única vez, a norma na maioria dos filmes de

ficção); “narração repetitiva” (um evento é relatado muitas vezes, nas narrações multi-

perspectivas; “narração iterativa” (um evento que ocorreu diversas vezes é relatado uma

vez); e um evento que ocorreu diversas vezes é relatado diversas vezes, o que é chamado

de “narração homóloga”. Mas tanto o cinema quanto o romance oferecem uma

possibilidade não mencionada por Genette que poderia, segundo Stam, ser chamada de

“narração cumulativa”, ou seja, casos onde um único evento casual é gradualmente

detalhado através de memórias repentinas (flashbacks) mostradas repetidamente ao longo

do filme. Nessa linha, podemos considerar Budapeste entre a narração “homóloga” e a

“cumulativa”, pois ao mesmo tempo que o narrador-personagem conta passagens que

acontecem algumas vezes, sem se importar em repetir, pois o estilo da linguagem do livro

é exatamente “embaralhado”; o mesmo narrador tem memórias repentinas, como um

“retorno” (flashbacks mesmo) de seu passado.

E para continuar essa análise, chegamos a uma ferramenta indispensável para

analisarmos certos aspectos das adaptações ao cinema: a “narratologia”. Ferramenta esta

que pode ser dividida em contextos; um deles, como nos mostra Stam, é o “temporal”, pois

em alguns casos, como afirma o autor, “a publicação do romance e a produção do filme

ocorrem em momentos muito próximos e diretos” (STAM, 2006, p. 42); que é o caso de

Budapeste, que da publicação do livro (2003) até adaptação em filme (2009) são apenas

seis anos de diferença (além da participação de Chico Buarque na produção).

Num segundo contexto relevante para nosso trabalho, é a questão da “localidade”.

Stam faz a seguinte pergunta: “As adaptações se situam no mesmo local que o romance ou

a localidade muda?”; e dá o exemplo de Coppola no Apocalipse Now, que transfere a

“floresta africana” do Coração das Trevas de Conrad para o Vietnã em guerra. Nesse caso,

Budapeste é peculiar, pois a “localidade” que alterna entre o Rio e a capital húngara é

fundamental na história, se seria difícil ou mesmo impossível a mudança (idem, 2006, p.

47).

Outro contexto imprescindível na adaptação, como argumenta Stam, é a “língua”.

Na adaptação de Budapeste, essa questão é fundamental, e muito bem realizada no filme,

pois assim como no livro, o personagem principal aprende húngaro aos poucos, e a

“língua” é um ponto central no livro, que ajuda a mostrar a “divisão” nos “dois mundos”

de José Costa.

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Por último, Stam vem dissertar, com base em Bakhtin, sobre a questão das

possíveis e múltiplas “aculturalidades” e “temporalidades”:

Já que as adaptações fazem malabarismos entre múltiplas culturas e múltiplas

temporalidades, elas se tornam um tipo de barômetro das tendências discursivas

em voga no momento da produção. Cada recriação de um romance para o

cinema desmascara facetas não apenas do romance e seu período e cultura de

origem, mas também do momento e da cultura da adaptação. Os textos evoluem

sobre o que Bakhtin chama de “o grande tempo” e freqüentemente eles passam

por “voltas” surpreendentes. “Cada era”, escreve Bakhtin, “reacentua as obras

[do passado] de sua própria maneira. A vida histórica de trabalhos clássicos é de

fato o processo ininterrupto de sua reacentuação” (STAM, 2006, p. 48).

E baseado nessa afirmação, podemos dar o exemplo de que, se daqui a 30 anos

Budapeste for novamente adaptado, ele pode ser realizado como “de época”, no caso os

anos 2000, ou “aculturado” a seu tempo, no caso a década de 2030, e esta nuance pode

acarretar mudanças concretas e fundamentais na adaptação.

Como conclusão, podemos citar o próprio arremate de Stam, por entender que é o

mesmo que chegamos no estudo ao qual se propôs o artigo: “Mas as adaptações, de certa

forma, tornam manifesto o que é verdade para todas as obras de arte – que elas são todas,

em algum nível, “derivadas”. E, nesse sentido, o estudo das adaptações causa

potencialmente um impacto na nossa compreensão de todos os filmes” (idem, 2006, p. 49).

Chegando ao final desse trabaho de análise, só podemos concluir que a Teoria e

Prática da Adaptação de Robert Stam possibilitou enriquecer ainda mais o já valioso

romance Budapeste, de Chico Buarque, bem como sua também valiosa adaptação, de

Walter Carvalho. Ou novamente nas palavras de José Miguel Wisnik: “Budapeste, no

exato momento em que termina, transforma-se em poesia”.

Referências bibliográficas

BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

STAM. Robert. Teoria e Prática da Adaptação: da fidelidade à intertextualidade.

Florianópolis, Revista Ilha do Desterro, n° 51, p. 019-053, 2006.

Filmografia

Budapeste. Direção: Walter Carvalho. 113 min. DVD. Imagem Filmes, 2009.

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Historiografia em Foco: um estudo sobre Richard Morse sob a perspectiva da Nova

História das Ideias.

Mariane Ambrósio Costa*

Introdução

Nos anos 1970 o fazer historiográfico passou por uma série de revisões com a

queda de muitos paradigmas. Jacques Revel afirma que o modelo tradicional da História

Social entrou em crise nesse período, exatamente no momento em que parecia triunfar

infindavelmente. Uma série de fatores contribuiu para a crise, a informatização de dados e

a especialização dos campos dentro da história mostravam que o fazer do historiador não

era tão unificado quanto pensavam. Soma-se a isso a crise de paradigmas dentro das

ciências sociais. As inquietações nesse período abriram também novas perspectivas para a

História Política, Intelectual e também para a História Social da qual a Micro-História é

um poderoso resultado. É também nesse momento de efervescência intelectual que a

chamada História das Idéias vai começar a revisar suas mtodologias.

O debate sobre as formas metodológicas válidas para a História das Idéias se

acendeu quando em 1969 Quentin Skinner publicou “Meaning and understanding in the

history of ideas” (SKINNER, 2000), criticando diversos campos da história das idéias

políticas acusando-os sobretudo de incorrerem no erro de anacronismo (JASMIM, 2005, p.

27-38). A partir desse programa básico uma pujante produção historiográfica foi

produzida, geralmente identificada sob o título de Escola de Cambridge e representada pela

coleção Ideas in context.

A chamada história dos conceitos, que tem em Koselleck seu principal expoente,

embora tenha iniciado seus desenvolvimentos metodológicos anteriormente aos trabalhos

da tradição skinneriana, ganhou destaque nas últimas duas décadas. Essa história como a

conhecemos hoje se iniciou com o historiador Otto Brunner e se concretizou no léxico

Geschichtlichte Grundbegriffe.42

* Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, orientada

pela Profª. Doutora Beatriz Helena Domingues. Contatos: [email protected] 42

Usaremos também a sigla GG.

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Esse trabalho tem como objetivo inicial realizar considerações acerca do debate

travado entre a História dos Discursos ou Contextualismo Lingüístico, compreendida por

grandes nomes dentre os quais, Quentin Skinner e Jonh Pocock e a chamada História dos

Conceitos (Begriffsgeschichte) que tem como nome de destaque Reinhart Koselleck,

ambas vertentes da chamada Nova História das Idéias, e posteriormente, demonstrar uma

forma de aplicabilidade do método, na analise da obra O Espelho de Próspero, de Richard

Morse.

Contextualismo Linguístico, História dos Discursos, História das Linguagens...

O campo da História das idéias em geral não apresenta um metodologia específica e

única. No entanto, a metodologia defendida por Skinner tornou-se muito respeitada,

sobretudo no campo de estudo dos discursos políticos. John Pocock enfatiza que uma

linguagem ou um discurso é no uso dele e de Skinner uma estrutura complexa que abrange

um vocabulário, uma gramática, uma retórica e um conjunto de usos, pressupostos e

implicações, que existem juntos no tempo e são empregáveis por uma comunidade semi-

específica de usuários de linguagem para propósitos políticos, que permite, e por vezes se

prolonga até, a articulação de uma visão de mundo ou de uma ideologia (POCOCK, 2006).

Em seu famoso texto de 1969, “ Meaning and understanding in the history of

ideas”, estão presentes as idéias chave da que ficou conhecida como Escola de Cambridge.

Já de início Skinner afirma que a grande dúvida quando se quer trabalhar um texto é: Quais

os procedimentos adequados que devemos tomar, quando intentamos alcançar a

compreensão de uma obra? Um balanço entre as duas ortodoxias vigentes é então traçado:

a história que preza o contexto como a chave de interpretação de um texto e a que defende

que o texto é a chave para seu próprio entendimento.

As duas ortodoxias correm o risco de cair no erro máximo do anacronismo

histórico. Pois é impossível considerar os textos, principalmente os clássicos sem levar em

conta nossas próprias expectativas sobre o que este texto deve ter dito. O pressuposto de

que as idéias necessitam de agentes, de homens para criá-las é descartado muito

facilmente, “dado que estas se levantam e combatem em seu próprio nome”. Corre-se

assim o risco de cair em absurdos históricos, como colocar na boca de um autor algo que

este não desejou transmitir. O primeiro destes absurdos históricos para Skinner é buscar

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aproximações entre textos que muitas vezes não dialogam entre si, e o segundo é dizer que

uma idéia determinada nasceu em um momento determinado.

Deve-se levar em conta que a obra de um autor não é homogênea. Geralmente o

historiador da idéias se prende em características definidoras de determinada disciplina

para a qual o autor estudado contribui, sem levar em conta os desenvolvimentos da própria

carreira do estudado, sua mudanças ideológicas, etc. O observador pode fazer uso de sua

perspectiva privilegiada incorrendo no perigo “de que la familiaridad mesma de los

conceptos que usa o historiador enmascare alguna inaplicabilidad fundamental al material

histórico” (SKINNER, 2000). A explicação da obra de determinado autor não pode se

basear em elementos nos quais este não tinha acesso.

Ao apresentar a perspectiva de que a obra explica-se por si mesma, Skinner afirma

que: “Lo cierto es que, cualquiera sera la opinión que ahora abracemos, el texto em si

mismo prueba ser insuficiente como objeto de nuestra investigación y compreensión.” Para

ele se desejamos entender uma idéia dada, ainda dentro de uma cultura e época

determinadas, não podemos nos concentrar apenas nas formas das palavras implicadas, por

que essas palavras podem ter intenções diversas e incompatíveis e nem podemos esperar

que o contexto de enunciação resolva necessariamente esse problema (SKINNER, 2000).

Debemos estudiar em su totalidad las diversas situaciones, que pueden cambiar

de maneras complejas, em las que la forma dada de las palavras puede usarse

logicamente: todas las funciones que las palavras pueden cumplir, todas las

variadas cosas que pueden hacerse com ellas (SKINNER, 2000, p. 30).

Dessa maneira, ainda, que o estudo do contexto social do texto possa servir para

explicá-los, isso não equivale a proporcionar os meios para sua compreensão. Assim, de

uma maneira mais ampla é necessário também recuperar as intenções do autor. Nas

palavras de Souza:

Neste sentido, deslocando a atenção do texto para o contexto e, ainda, para o

criador do texto, Skinner esforçou-se por demonstrar que são nos atos de fala dos

autores, em seu mundo mental e no repertório lingüístico de sua época que o

historiador das idéias deve buscar a interpretação de textos (SOUZA, 2007, p.

161).

No entanto a perspectiva skinneriana também sofre críticas. A primeira do

antiguarismo ou inutilidade desse tipo de história contextualista para a elaboração teórica:

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Nessa direção, se os significados dos conceitos anteriores não são transponíveis

para o presente senão por mecanismos ilegítimos de atualização, porque

produtores de deformação dos sentidos originais, melhor seria, ou deixá-los a si e

partir para uma elaboração da teoria sem referência histórica às idéias, ou

assumir como inevitável a traição da tradução para o contemporâneo e operar

como se (a título de ficção heurística) os autores do passado fossem parceiros

nos temas do debate contemporâneo (JASMIM, 2005).

Marcelo Jasmin oferece a resposta para essa crítica levando em conta

principalmente o trabalho de Jonh Pocock, “o centro de sua reflexão metodológica desloca-

se para a relação entre várias linguagens políticas que no seu confronto sincrônico,

conformam as tessituras lingüísticas na qual as diversas performances se tornam possíveis

e inteligíveis” (JASMIM, 2005).

Nesse ponto Pocock realiza a desnaturalização da

conceituação e dos horizontes teóricos contemporâneos.

A segunda linha de crítica defende que o Contextualismo Lingüístico tem

inviabilidade cognitiva, dado que o significado original é inapreensível. Skinner responde

essa crítica da seguinte maneira: a primeira é distinguindo os vários tipos de significado

que uma proposição pode ter: “o significado das palavras enunciados na frase, o

significado da proposição para mim ou para a comunidade contemporânea de intérpretes, e

o significado da proposição como ato de fala daquele que a proferiu” e é somente para esse

ultimo que o seu método foi desenvolvido, e que trata-se de reconhecer através das

convenções lingüísticas publicamente reconhecíveis em uma época, a intenção do autor do

texto em questão. Um segundo caminho para responder essa crítica, passa em amenizar a

certeza do método cientifico que é proposto, uma vez, que o que se obtém com a pesquisa

é um grupo de hipóteses plausíveis, que não pretendem ser resultados finais e

inquestionáveis (JASMIM, 2005).

História dos Conceitos ou Begriffsgeschichte

Um campo que se difere do anterior, mas que possui várias semelhanças é a

História dos Conceitos Alemã. Falamos em História dos Conceitos, mais o que constitui

um conceito na perspectiva koselleckana? Todo conceito se prende a uma palavra, mas

nem toda palavra é um conceito. Toda palavra possui um sentido, mas não são todos os

sentidos atribuídos a uma palavra interessante para a História dos Conceitos, para esta

interessam conceitos passíveis de uma teorização e cujo entendimento é também reflexivo

(KOSSELECK, 1992, p. 134-146). Os conceitos sociais e políticos contém uma exigência

concreta de generalização, ao mesmo tempo que são sempre polissêmicos. O conceito é

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mais que uma palavra, e esta só se torna um conceito na medida em que as circunstâncias

totais político-sociais se agregam a ela, como no caso do conceito de “Estado”, que

engloba em si a idéia de um governo, um exército, cidadãos, etc. A História dos Conceitos

nas palavras de Koselleck “tem por tema a confluência do conceito e da história”

(KOSSELECK, 2006).

Em Futuro Passado, Koselleck afirma que sem conceitos comuns não pode haver

uma sociedade e sobretudo não pode haver unidade na ação política. Por outro lado os

conceitos se fundamentam em sistemas político-sociais, em complexas comunidades

lingüísticas organizadas sob conceitos-chave. No entanto, a História dos Conceitos é uma

disciplina a parte da História Social.

Assim é interessante compreendermos os métodos utilizados. Koselleck afirma que

a especialização da História dos Conceitos teve grande influência sobre as investigações da

História Social. A exigência metodológica mínima é a obrigação de compreender os

conflitos sociais e políticos do passado por meio de delimitações conceituais e da

interpretação dos usos da linguagem feitos pelos contemporâneos do período estudado.

Constituindo assim um método especializado da crítica de fontes, que atenta para termos

relevantes do ponto de vista sócio- político (KOSSELECK, 2006).

Esse procedimento parte do objetivo de traduzir significados lexicais em uso no

passado para nossa compreensão atual. Na segunda etapa os conceitos são separados de seu

contexto situacional e seus significados lexicais investigados ao longo de uma seguência

temporal, para serem depois ordenados em relação aos outros, de modo que as análises

históricas de cada conceito isolado agregam-se a uma história do conceito. Nesse estágio o

método histórico filológico sobressai. Dessa forma a História dos Conceitos se afirma

como campo de pesquisa histórica (KOSSELECK, 2006).

O Geschichtlichte Grundbegriffe, léxico considerado a consolidação da História

dos Conceitos Alemã, abarca 120 conceitos e mais de 7 mil páginas, que busca estabelecer

uma correlação entre conceitos políticos e sociais e a continuidade ou descontinuidade das

estruturas políticas, sociais e econômicas. O tema desse projeto é o que eram esses

conceitos e como foram debatidos, se foram constantes ou se alteraram no tempo

(RICHTER, 2006).

Richter ainda enumera contribuições do GG, sendo as três principais: oferecer

descrições de como os conceitos-chave surgiram, se modificaram ou foram transformados,

o que facilita o trabalho dos interessados em política e pensamento político. Em segundo,

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ajuda a evitar o anacronismo para esses estudiosos, evitando más interpretações. Em

terceiro, permite aos especialistas em filosofia política perceber entre usos pretéritos e

atuais (RICHTER, 2006).

No entanto, assim como o Contextualismo Lingüístico, a História dos Conceitos

também sofre suas críticas. A mais famosa delas provém do próprio Skinner, ou seja, a

incapacidade de se existir uma História dos Conceitos. Dessa forma a História dos

Conceitos se afirma no campo do fazer historiográfico, como uma escola que ainda tem

muito a oferecer aos estudiosos da história e como um método único na crítica de fontes

escritas.

Possíveis aplicações dos métodos: Richard Morse e O Espelho de Próspero

Diante dessas duas vertentes apresentas, que resumem o debate acerca da nova

história das idéias surgido nos anos 1970, fazemos a opção de adotar um método

semelhante ao proposto por Skinner, tentando analisar o ato de fala de autor para buscar a

interpretação mais aproximada de sua intenção no momento de criação da obra, e

conseguir compreender, desta forma, suas idéias e intencionalidades acerca do tema

analisado. No caso deste artigo, a obra analisada foi O Espelho de Próspero, de Richard

Morse. A idéia proposta é analisar de que maneira Morse explicou como correntes

religioso-filosóficas influenciaram na constituição das identidades ibero e anglo-

americanas, contrapondo as concepções jesuítica e puritana de colonização. Para dar forma

a seu argumento, Morse retorna aos fins da Idade Média para mostrar como correntes

religiosas que vigoravam na Inglaterra e na Espanha moldaram o caráter de pensamento

que foi transportado para as colônias americanas.

Quando publicado no Brasil em 1988, o Espelho de Próspero desencadeou um

cerco de polêmicas, tendo sido visto como a palavra de um norte-americano supostamente

encantado com a pobreza do Sul. Mas a intenção de Morse jamais foi esta. Após mergulhar

de cabeça na cultura brasileira, devorando-a e deglutindo-a, e saindo completamente

modificado de tal experiência, escreveu as considerações que demonstra no livro. Se nos

atermos ao contexto no qual a obra está inserida, devemos pensar que esse é um momento

marcado no Brasil por profundas mudanças políticas e culturais, no qual o país saía de um

período ditatorial implementado pelos militares desde 1964 e enfrentava sobretudo graves

crises econômicas, assim como um momento em que seu país de origem, os Estados

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Unidos, passava também por uma intensa crise de paradigmas. Para basear suas propostas

de um novo olhar da cultura do norte para a cultura do sul, identificando-a como algo

positivo, escreve sua primeira parte chamada Pré História, onde demonstra as origens da

tradição ibérica, mostrando que a América Latina é fruto de uma opção cultural (MORSE,

1988).

A análise do texto de Morse começa com a constatação do mesmo de que a pré-

história européia tornou-se o pano de fundo da colonização do Novo Mundo, onde a

Inglaterra vivia a primavera do poder mundial, e Portugal e Espanha, o outono. O que antes

era uma parte da missão de se construir uma “história mundial” passou a se tornar uma

obrigação, uma espécie de corrida para ver quem conquistaria o Novo Mundo. A

civilização passou a ser um encargo, onde a preocupação geral era com a evolução, não

com a história. No caso da Ibero e da Anglo América, é importante termos em mente que a

questão fundamental para se compreender suas respectivas tradições surgiram de uma

mesma matriz moral, intelectual e espiritual, e que, dentro desta matriz forjada foram feitas

opções e escolhas que vieram a definir os padrões da civilização ocidental. Do ponto de

vista da América, Morse vê isso como uma coisa obscura, pois de um lado o continente era

dominado pelas tradições ibérica e britânica, enquanto outras culturas importantes como a

italiana e a francesa eram deixadas de lado; e por outro lado, os povos americanos ficaram

à margem da História, uma vez que tiveram a sensação de começar a partir de uma nova

base, mas na verdade estavam vivendo a continuação do momento de suas metrópoles, ou

seja, as colônias americanas foram o resultado da opção feita por suas metrópoles.

Ao analisar a opção adotada pela Ibéria, Morse nos mostra que a Espanha pouco se

influenciou pela Reforma Protestante, pelo Renascimento em sua forma italiana ou por

alguma teoria do contrato social. O que na perspectiva de Richard Morse, não constituiu

uma coisa ruim, pelo contrário, deu importantes contribuições a filosofa do Direito e a

modernização da metafísica. Ou seja, mesmo furtando-se às “grandes revoluções” do

pensamento corrente, a Ibéria foi sensível as tendências advindas de outras partes da

Europa, mas soube absorvê-las internamente. O que torna evidente que as tradições

européias que deram forma à Ibero-América foram essencialmente Ibéricas. Neste

momento, a vida intelectual espanhola era baseada no consenso com o restante da

sociedade, em um momento de extrema tolerância, e isso se refletia em certos pontos sobre

a natureza do governo, tais como as fontes de legitimidade, o alcance do seu poder de sua

missão civilizadora. Neste período de fervor intelectual, as universidades se tornaram

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fontes indispensáveis de letrados para integrar a administração que estava em franca

expansão.

Analisando a questão religiosa-filosófica, Morse diz que o contato com os mouros

permitiu a entrada das obras aristotélicas na Ibéria, obras estas que continham idéias que

vinham do conflito travado com a concepção cristã dominante na península. Com isso, São

Tomás de Aquino busca “cristianizar” o aristotelismo, buscando equilibrar a fé com a

razão. A adesão ao tomismo como forma de pensamento pode ser vista como uma opção

cultural, resultando em uma nova filosofia cristã que fortaleceu a fé católica, sendo

chamada por ele de Modernidade Medieval, onde ciência e religião permaneceram

conectadas, mas tendo na teologia uma orientadora. Logo, Espanha e Portugal contavam

com um programa nacional e com instituições legitimadas que se ajustavam à visão

aristotélica tomista, ou seja, dentro de uma matriz teológica moral e filosófica.

Já o caso inglês tomou um rumo diferente do ibérico. Duns Scot e Guilherme de

Occam separarm radicalmente fé e razão, pois acreditavam na oposição entre fé e ciência.

Morse chama esse movimento de Modernidade Moderna, onde manteve-se a separação

entre ciência e fé, invertendo as prioridades: caberia a ciência, e não à religião, moldar a

visão de mundo. Ao contrário da Ibéria, a Inglaterra não apresentava um programa

nacional organizado, se encontrando em conflitos internos, incluindo disputas dinásticas e

religiosas, que levaram a elaborações que visavam a manutenção da ordem através de uma

base racional e individualista.

Logo concluímos que Morse defende que a Espanha estava absorvida em um

programa nacional estabelecido com muito mais clareza do que qualquer outro povo

europeu da época, e possuía instituições político-religiosas melhor legitimadas para

construir uma colonização na América. Por conviver desde os primórdios com correntes

conflitantes de pensamento, que conseguiram coexistir e criar um ambiente baseado na

convivência, trouxe para a Ibero -América uma característica de tolerância muito maior do

que o puritanismo levou para a Anglo América, de convívio entre idéias antagônicas, mas

que coexistiam e conseguiram se adaptar ao novo continente.

Conclusão

A nova história das idéias constituiu uma nova forma de análise de discursos,

ensaios, livros e obras literárias, fontes preciosas para se conhecer e interpretar o

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pensamento de uma época. Ambas as vertentes da chamada história das idéias, tanto, o

Contextualismo Lingüístico, quanto a História dos Conceitos alemã, mostram ao

historiador novas ferramentas para a interpretação de textos históricos. O Contextualismo

Lingüístico da Escola de Cambridge, embora aceite que o contexto influi na produção da

obra, o autor não deve ser encarado como uma massa passiva no mar dos acontecimentos.

Sua singularidade deve ser levada em consideração na análise de seu discurso. Sua

formação, influências acadêmicas e pessoais, interferem de maneira notável na produção

da obra. Richard Morse é um autor singular, com idéias inovadoras que influenciaram e

influenciam inúmeros historiadores. Para compreender as proposições de Morse em O

Espelho de Próspero é interessante compreender sua trajetória intelectual e sua paixão

pelos vizinhos do Sul.

Por outro lado, ao apresentarmos aqui o discurso kolesseckano e a História dos

Conceitos, compreendemos que o que apresentamos ao tratar de Morse, por exemplo, não

exclui a perspectiva adotada pela História dos Conceitos uma vez que é necessário

compreender os conceitos empregados pelo autor para se entender o momento da fala do

mesmo. Dessa forma para todos os campos do conhecimento, sobretudo para o campo

historiográfico, interpretar as fontes escritas, sem incorrer no anacronismo é fundamental

para a produção de um trabalho de qualidade.

Podemos buscar na fala de Morse seu objetivo, ou seja, construir uma obra que

demonstrou que o processo de colonização ibero-americana foi mais bem sucedido do que

o anglo –americano. Morse buscou mostrar que o lado intelectual e religioso do homem

espanhol foi fundamental para que se constituísse na Ibero-América uma visão

compreensiva e unificadora, baseada na vontade geral e na tolerância.

Referências bibliográficas

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28 de novembro a 2 de dezembro de 2011

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Alejo Carpentier por Richard Morse – Notas do historiador norte-americano sobre o

escritor cubano no alvorecer de uma América em transformação.

Pedro Henrique Leite*

Em um discurso pronunciado na Aula Magna da Universidade Central da

Venezuela, em 15 de maio de 1975, intitulado Consciência e Identidade da América43

,

Alejo Carpentier alertava para o problema de como viver e agir em meio a uma América

Latina em pleno desenvolvimento, como atuar em meio ao grande palco latino-americano,

que papel desempenhar nesse grande teatro. Essa preocupação com uma tomada de

consciência, de uma busca por definir Identidades esteve presente ao longo de toda a vida

deste intelectual cubano, e acabou refletindo em seus romances publicados ao longo do

século XX.

Agente ativo em seu tempo, Carpentier buscou traçar as bases do que entendia

sobre a América Latina sem deixar de lado os processos dos quais fazia parte. Assim,

esteve em meio às mudanças políticas ocorridas na América, apoiando inclusive, todo o

processo revolucionário em Cuba e participando ativamente do Governo de Fidel Castro.

Para além da atuação política, esteve em contato com o universo artístico europeu, e fez

parte de uma geração de intelectuais latino-americanos com a qual manteve frutíferas

relações e ajudou no desenvolvimento e na difusão de seu romance. Assim, entendemos

que uma análise de uma figura tão ativa se faz necessária com o objetivo de entender

alguns dos pontos de vista de um dos autores mais marcantes na literatura do continente

dentro do período que marcou o final da década de 1950 até os anos 70.

A partir disso, chegamos ao questionamento de como realizar essa análise? Como

entender a figura de Carpentier numa lógica em que leve em consideração suas ações e

suas publicações no período em questão? Uma possível solução ao problema é tentar traçar

um perfil de Carpentier a partir da visão de outros intelectuais sobre o mesmo. Nesse

sentido as considerações do historiador Norte Americano Richard Morse podem nos ser

especialmente úteis e reveladoras para alcançar nosso objetivo.

* Mestrando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, pertencente à linha de pesquisa:

Narrativas, Imagens e Sociabilidades. E-mail: [email protected] 43

CARPENTIER, Alejo. Consciência e Identidade da América. In: A Literatura do Maravilhoso. Trad. Rubia

Prates Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, edições Vértice, 1987.

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Morse ao longo de sua carreira esteve preocupado em entender melhor o continente

americano a partir de um olhar diferenciado da América Latina. Assim, procurou

estabelecer as bases dos movimentos intelectuais existentes, ressaltando a “verdade dos

poetas e romancistas latino-americanos” e “adotando a literatura, a ficção como uma tocha

a iluminar a ‘realidade’”44

. Enxergou ainda, dois momentos principais no desenvolvimento

da intelectualidade na América: um marcado pelo naturalismo, que possibilitou o

florescimento de uma intelectualidade latino-americana, e produziu os chamados

“romances de terra”; e outro que englobou os modernismos existentes na América e seus

desdobramentos posteriores. Dessa forma, Morse em seus estudos abordou uma quantidade

sem precedentes de personagens que contribuíram de alguma forma para o

desenvolvimento do pensamento latino-americano, dentre eles Alejo Carpentier. A partir

dos escritos de Morse podemos enriquecer nossa visão sobre a figura de Alejo Carpentier

entendendo-o não como um autor isolado em seu tempo, mas como uma figura que transita

em meio a uma América em transformação.

Em “The Multiverse of Latin American Identity, 1920-1970”45

Richard Morse

estabelece uma leitura sobre a ficção latino-americana traçando os principais aspectos que

a caracterizam desde a década de 1920. Entretanto, o autor retoma suas raízes que remetem

aos finais do século XIX, empenhando uma empreitada de grande fôlego. Assim, ele a

divide em dois pólos principais: um de orientação americanista, voltado para ideologias e

retóricas nacionalistas e anti-colonialistas; e outro de orientação universalista ou

cosmopolita, voltado para entender a cultura global, dentro da qual, as nações da América

Latina têm se definido. Complementa dizendo que esses pólos se alternam no decorrer da

história, e que explicar o porque é difícil, mas identificável.

Seguindo este modo de ver, Carpentier estaria inserido neste segundo pólo, numa

fase que compreenderia o final dos anos 1940 até os dias atuais, onde se situa o chamado

“novo romance latino americano”, que estende as descobertas da “Avant-garde”

internacional, incluindo o modernismo anglo-americano, e incorporando o “realismo

mágico”, a Literatura Fantástica e outras correntes experimentais. Contudo, vale ressaltar

que Carpentier antecipa essa fase, junto com autores como Mário de Andrade, Miguel

Angel Asturias, e Jorge Luís Borges.

44

Extraído de:

DOMINGUES, Beatriz H. & BLASENHEIM, Peter L.(Org.). Decifrando o Código Morse. In: O Código

Morse – Ensaios sobre Richard Morse. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p.20. 45

MORSE, Richard. The Multiverse of Latin America Identity c.1920-c.1970. In: BETHELL, Leslie (Ed.)

Ideas and Ideologies in Twentieth Century Latin America. New York: Cambridge University Press, 1998.

Anais do III Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade

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ISSN: 2317-045X

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Morse coloca Carpentier como um importante personagem do que se convencionou

chamar “boom” da literatura latino-americana, e mais do que isso foi nas palavras do

historiador norte-americano “quem ganhou causa” sob o termo “realismo maravilhoso”46

.

Aliás, sobre este, Richard Morse coloca-o como uma visão de mundo de Carpentier, ele

acrescenta citando González Echevarria que Carpentier “adotou uma visão Splengeriana e

Orteguiana policêntrica da história do mundo que acomoda a especificidade cultural do

mágico e do maravilhoso”47

. Morse completa que o realismo maravilhoso traduz-se em

termos sociológicos de encantamento e desencantamento. Para ele a modernização e a

industrialização afetaram as esferas do comportamento institucional e pessoal, trazendo

como efeito uma racionalização de um ethos. Carpentier lamentou essa extrema

racionalização na Europa, e foi na América que ele encontrou a terapia. Segundo Morse: “

Aqui, apesar da pobreza e caudilhismo, ainda se encontram na pluralidade cultural, o mito,

eterno retorno, espontaneidade e o relacionamento humano” (p.123).

Ou seja, território propício para que uma idéia como a do realismo maravilhoso se

fecunde.

Outro ponto importante que perpassa a visão de Carpentier sobre a realidade

americana e caribenha é sua visão de uma América barroca. Ao largo de sua vida

intelectual o citado escritor cubano procurou demarcar uma visão da América Latina que

ultrapassava as barreiras do real maravilhoso, Carpentier em consonância com alguns

pensadores de sua época enxergava o mundo americano como um mundo barroco. O

também cubano Lezama Lima uma década antes de Carpentier já atentava para uma

“americanização do barroco”. Segundo Irlemar Chiampi48

o Barroco para Lezama

significava:

Um fato americano que supõe ‘o húmus fecundante que evaporava cinco

civilizações’, ou seja, o mundo ibérico e mediterrâneo, enquanto espaço de

encontro de línguas, culturas, ritos, tradições... o barroco é então uma chegada a

uma confluência, a do descobrimento da América. (p.7)

Nesse sentido o barroco seria para Lezama exclusivamente americano, algo que se

formaria aqui a partir da união de elementos europeus e nativo-americanos.

Carpentier faz uma revisão crítica do barroco. E devido ao seu prestígio

internacional, é a sua visão (e não a de Lezama) que se torna mais influente na América e

46

Idem.p.121. 47

Idem.p.123. 48

CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998.

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mais divulgada fora dela. Em uma conferência realizada no Ateneu de Caracas, em 22 de

maio de 1975, intitulada “O Barroco e o Real Maravilhoso” 49

, Alejo Carpentier traz a

idéia da América como “terra de eleição do barroco”, assim “toda simbiose, toda

mestiçagem engendra um barroquismo”. Contudo, ao mesmo tempo em que elege a

América como barroca, o autor, como bem coloca Irlemar “dissolve a especificidade

americana do barroco, usando a estratégia de universalizá-lo”. Assim fazendo, Carpentier

rompe com a idéia inicial de Lezama em que o barroco seria exclusivamente americano, e

o faz com a intenção simples e clara de positivar uma visão negativa que ainda se tinha nos

anos 60 e 70 na avaliação dessa estética. Alejo deseja dissociar o barroco das

interpretações negativas que ainda prevaleciam nos circuitos intelectuais contemporâneos,

e certamente, nos setores ortodoxos da Cuba Socialista. O barroco era visto por estes

setores, em ultima instância, como um instrumento da ideologia colonialista. Assim

Carpentier através de seu discurso buscava uma positivação da visão sobre o barroco,

definindo-o como ‘uma constante humana’, uma espécie de força criadora, presente em

toda a América, mas não apenas nela.

Deste modo uma possível conclusão sobre este ponto e que traz uma distinção

objetiva às visões sobre o Barroco tanto de Lezama quanto de Carpentier, é que, Lezama

pensa o barroco numa legitimação histórica em que busca converter o universal em

particular (o barroco como algo americano), diferentemente de Alejo Carpentier que trata o

barroco em sua particularidade tentando universalizá-lo.

Retomemos Richard Morse. Seguindo o “Multiverse”, o historiador ressalta ainda

algumas características que são bastante caras para estabelecermos um perfil do escritor

cubano em meio à grande produção cultural que marcou o período de efervescência do

“boom”. Para Morse, os comentários de Alejo Carpentier são extremamente úteis, pois “ele

escreve de sua experiência francesa e com e com uma clareza Galesa (ainda que não sem

contradição e ambivalência) na reapropriação de suas origens latino americanas.” 50

no

entanto completa dizendo que “sua verdade pessoal jaz em seus romances, não em seus

ensaios”, dando um valor alto aos romances carpenterianos frente aos seus discursos

proferidos ao longo da vida. Essa espécie de “supervalorização” dos romances de

Carpentier se torna compreensível quando entendemos que para além de um simples

49

CARPENTIER, Alejo. O Barroco e o Real Maravilhoso. In: A Literatura do Maravilhoso. Trad. Rubia

Prates Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, edições Vértice, 1987. 50

Opcit. p.123.

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espaço de projeção lúdica, o autor imprimiu uma marca pessoal capaz de abarcar não só

seus gostos pessoais, mas também suas visões de mundo, e sua perspectiva da história.

Para concluir

Esperamos que, de alguma forma, possamos ter contribuído com um pequeno

esboço do perfil de uma das personalidades mais ativas ao longo do século XX dentro do

quadro de intelectuais latino-americanos. A partir de algumas proposições do historiador

norte-americano Richard Morse sobre o novelista cubano Alejo Carpentier esperamos ter

contribuído de forma significativa para uma melhor visualização das idéias e das questões

as quais Carpentier procurou responder ao longo dos anos. Sua preocupação em definir

uma identidade ou identidades para o continente americano foi apenas um dos fatores os

quais ele ativamente refletiu durante a vida, identidade (ou identidades essas) que estão

inteiramente ligadas à sua visão de uma América barroca, e onde o realismo maravilhoso

funciona como uma ferramenta, um binóculo onde enxergamos a verdadeira realidade

latino-americana. Afinal, como dizia o próprio autor no famoso prólogo de “O reino deste

mundo”51

: “o que é toda a América, senão uma crônica do real maravilhoso?”.

Referências bibliográficas

BETHELL, Leslie (Ed.) Ideas and Ideologies in Twentieth Century Latin America.

New York: Cambridge University Press, 1998.

CARPENTIER, Alejo. A Literatura do Maravilhoso. Trad. Rubia Prates Goldoni e

Sérgio Molina. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, edições Vértice, 1987.

_____ O Reino deste Mundo. Trad. Marcelo Tápia. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998.

DOMINGUES, Beatriz H. & BLASENHEIM, Peter L.(Org.). O Código Morse – Ensaios

sobre Richard Morse. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

51

CARPENTIER, Alejo. O Reino deste Mundo. Trad. Marcelo Tápia. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

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Brasil Colônia

A Expulsão dos religiosos nas Minas: uma questão de poder entre Estado e Igreja.

Cristiano Oliveira de Sousa*

Estado e Igreja sempre tiveram uma estreita relação nos países ibéricos. Em

Portugal a sujeição da esfera eclesiástica ao Estado vem desde a constituição do próprio

Estado lusitano. Com efeito, desde a Idade Média, o poder real é justificado por sua origem

divina, “o monarca é o eleito de Deus; e por força desta eleição gratuita seu poder é

humanamente incontestável”52

. Ainda mais se tratando dos monarcas da península

ibérica — reconhecidos como reis católicos, famosos pela sua ação contra o avanço

muçulmano — este poder incontestável do monarca recebe o apoio da Sé Católica,

ampliando assim o poder real e contribuindo para a constituição das Monarquias

Absolutistas.

Com o direito do Padroado, a atribuição de benefícios eclesiásticos como a

nomeação de bispos, seja na metrópole ou no além-mar, passou a ser um privilégio do

monarca português, que era também Grão-Mestre da Ordem de Cristo. Em virtude desta

“associação” entre estado e igreja, o monarca português ficou responsável por implementar

a fé católica nos territórios descobertos. Além de tudo isso, o monarca lusitano ainda

contava com o beneplácito régio, que consistia:

Na declaração do imperante, pela qual atesta a todos os cidadãos e autoridades

que certa determinação eclesiástica provém do poder competente, que seu texto é

autentico e genuíno e nada contém ofensivo das leis e dos costumes louváveis do

País. Esse instituto foi direito régio, pelo menos desde o reinado de D. Pedro I,

direito de que os prelados se queixavam já nas Cortes de Elvas de 1361 e que

voltam a representar a D. João I, nas Cortes de Santarém de 142753

.

* Doutorando vinculado ao Programa de Pós Graduação em História – UFJF, Linha: Poder, Mercado e

Trabalho, desenvolvendo a pesquisa A elite dirigente da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Vila

Rica (1750 – 1820): Relações de poder, redes, prestígio e representatividade nas Minas; bolsista da

FAPEMIG e orientado pela prof. Dra. Carla Maria Carvalho de Almeida. 52

AZZI, Riolando. A cristandade Colonial: mito e ideologia. Petrópolis: Vozes. 1987, p. 37 53

AZEVEDO, Maria Antonieta Soares de. Verbete “Beneplácito Régio”. IN: SERRÃO, Joel, dir. Dicionário

de História de Portugal. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1971. V. 1, p. 328-9, apud BOSCHI, Caio César. Os

Leigos e o Poder (Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais). São Paulo: Ática, 1986, p.

43.

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Caio César Boschi afirma que além do Padroado e do Beneplácito Régio, que já

submetiam de certa forma a Igreja ao Estado Português, existia ainda a questão tributária.

A bula Inter Coetera de 1456 determina que a cobrança dos dízimos deveria ser realizada

pela Ordem de Cristo. Como o Monarca Português era também o Grão-Mestre da dita

Ordem, foi possível a incorporação dos tributos de caráter espiritual, como os dízimos

eclesiásticos, aos cofres régios54

.

Como visto a relação entre o Estado e a Igreja em Portugal era muito próxima,

confundindo-se varias vezes os papéis e jurisdições de cada instituto. No território das

Minas, com a descoberta do ouro, esta relação vai se tornar ainda mais complicada, pois a

Coroa, na tentativa de efetivar de uma maneira mais eficaz seu controle sobre aquele

território, vai publicar diversas medidas que tentavam excluir ao máximo possível o

controle que a igreja exercia ali. Temos que considerar aqui que se trata de uma típica

sociedade de Antigo Regime, dividida em “estados” ou “ordens" onde o Clero assumia

uma posição diferenciada, pois, possuía uma organização própria, regia-se por leis próprias

(direito canônico), era uma ordem não tributária, possuía isenção do serviço militar, e

ainda possuía todo o resto da sociedade como seus subordinados, no que se referia à sua

função específica55

. Era praticamente um Estado dentro do Estado. E isto incomodava

bastante a coroa, especialmente se tratando do domínio da região das Minas.

Caio Boschi em sua obra intitulada “Os leigos e o poder” trata da questão das

confrarias enfocando justamente o tema do poder. Segundo Boschi a Igreja, representada

pelas irmandades, teria chegado ao território das Minas antes mesmo do Estado enquanto

instituição, pois:

Simples aventureiro, sem eira nem beira, o objetivo do recém-chegado era o de

aproveitar-se das riquezas do Eldorado brasileiro e regressar a seu local de

origem. (...) Sua vida, toda incerteza, ao lado do instinto natural de se agrupar,

levaram-no a associar-se a pessoas que padeciam dos mesmos problemas, das

mesmas mazelas. Desse modo, quando, aos domingos, o adventício se dirigia ao

arraial para participar dos ofícios religiosos simultaneamente ao exercício da fé

cristã ele buscava encontrar um ponto de apoio, um local de conforto diante da

insegurança e da instabilidade de sua vida (...) E foi sob a sombra das capelas e

com essa perspectiva associacionista que os primeiros mineiros se aglutinaram

para instituir suas irmandades56

.

54

BOSCHI, 1986, p. 43 55

GODINHO, Vitorino Magalhães. A estrutura na Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1971, p.

85. 56

BOSCHI, 1986, p. 22

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Em conseqüência desta primitiva presença da Igreja, enquanto instituição, no

território das Minas, as autoridades metropolitanas teriam que de qualquer forma encontrar

uma maneira que permitisse ao Estado assumir o controle destas associações, tomando

assim, efetivamente, o controle daquela região57

.

Uma das formas em que se deu esta postura do Estado Português, de maior rigidez

na tentativa de aumentar o controle da região, foi através da proibição da entrada de

religiosos e da proibição do estabelecimento de Ordens Religiosas no Território das Minas.

É vasta a documentação existente nos arquivos mineiros que tratam desta questão o que

também, por sua extensa quantidade, leva a crer que esta postura adotada não era

efetivamente cumprida.

O primeiro documento que trata desta questão que conseguimos encontrar é a carta

régia de 9 de novembro de 1709 pela qual foi nomeado “o Governador do Rio de Janeiro,

Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, para Governador de São Paulo , e todo o

Districto de Minas do Ouro”, documento este que, além desta função, “recomenda que de

toda ajuda, e favor ao Arce-Bispo da Bahia, e Bispo do Rio, para que sejam bem aceitos e

para fazerem despejar a todos os Religiosos e Clérigos que se achem nas Minas sem

emprego necessário, que seja alheio ao seu Estado...”58

.

O historiador da arte Germain Bazin em sua obra intitulada A Arquitetura Religiosa

Barroca no Brasil cita alguns documentos, como a carta régia de 9 de Junho de 1711, que

exigia que “se não consinta que nas minas assista frade algum antes os lance fora a todos e

com violência, se por outro modo não quizerem sair. E que o mesmo execute com aquêles

clérigos que não tiverem ministério de Parochias”59

. Porém a explicação do motivo desta

repressão dada pelo autor se baseia apenas na questão econômica, ou seja, os padres

estariam sendo expulsos das minas pela fama de contrabando que os perseguia desde o

reino.

A má-fama dos religiosos portugueses era bastante conhecida. E não eram apenas

os padres que possuíam este desprestígio. Caio Boschi afirma que as propostas de Trento

foram adotadas em Portugal não com o sentido de combater o protestantismo, mas sim

57

Para maiores informações sobre a questão do poder e das Irmandades nas Minas setecentistas conf.:

BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder (Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais).

São Paulo: Ática, 1986. 58

MINAS GERAIS/ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Coleção sumaria das próprias Leis, Cartas Regias,

Avisos e Ordens que se acham nos livros da Secretaria do Governo desta capitania de Minas Gerais,

deduzidas por ordem a títulos separados. Vila Rica, 1784. Revista do Arquivo público Mineiro, Belo

Horizonte, nº 16, 1911, doc. nº 1 p. 335. (Daqui em diante esta revista será referenciada pela sigla RAPM). 59

BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, vol. I: Estudo

Histórico e Morfológico. Rio de Janeiro: Record, 1983, p. 195.

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com o intuito de se reformar a própria Igreja Católica, e renovar a religiosidade naquele

país. A este respeito Boschi cita Oliveira Martins, que diz:

O catolicismo não era então — como o era a religião protestante — uma fé

íntima e absorvente: era uma convicção para uns, uma convenção para outros,

uma conveniência para muitos, e um desvairamento para os defensores

intolerantes da fé. Havia decerto uma afirmação religiosa unânime e violenta;

mas desaparecera a unanimidade ingênua e espontânea da crença, que radica as

religiões. O catolicismo atravessava uma crise, de que saíra malferido; e a

violência com que se impunha estava denunciando que ficara sendo, antes uma

expressão de autoridade. do que uma expansão de sentimento popular. Isto fazia

com que o povo, sem renegar o catolicismo, fosse caindo num relaxamento; e

que, ficando com a religião, deixasse de lhe dar significação ou importância

moral. Muita devoção e muita devassidão; eis aí a concomitância resultante, e

universalmente provada pelos costumes das nações católicas depois da

Renascença60

.

A religiosidade em Portugal possuía um caráter mais popular, congregando

elementos étnicos os mais diversos. Era uma religião voltada mais para as procissões e

ritualismos que por reflexões dogmáticas, assumindo uma atitude mais exteriorizada e

festiva, do que interiorizada e reflexiva61

.

O clero também seguia esta tendência, e os adjetivos “ignorante”, “dissoluto” além

de “libertino” ou “corrupto” eram apenas alguns dos que frequentemente eram associados a

estes por estrangeiros que estiveram em Portugal no século XVIII62

. Ao se associarem uma

religiosidade popular impregnada por crenças e superstições com um clero corrupto, o

resultado não poderia ser outro a não ser um poder e uma influência muito grande nas

mãos dos últimos sobre os primeiros. Boschi ainda acrescenta a esses elementos, o fato de

o clero português possuir também inúmeros privilégios como o de foro, por exemplo,

assim como o de isenção fiscal, militar e direito de asilo63

. Estes seriam apenas alguns dos

fatores que levaram a coroa portuguesa a adotar uma postura agressiva contra os

eclesiásticos.

Mas voltaremos às medidas restritivas aos eclesiásticos no território das Minas. Na

Instrucção para o governo da capitania de Minas Gerais escrita em 1780 por José João

Teixeira Coelho, temos um capítulo, o oitavo, dedicado às “Reflexões sobre o estado

eccleziastico da Capitania de Minas Geraes”. Neste Capítulo Teixeira Coelho relata a

quantas andava a questão dos eclesiásticos em Minas, e inicia contando como a descoberta

60

MANTINS, Joaquim Pedro de Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Guimarães & Cia., 1951, v.1, p.

354, apud BOSCHI, 1986, p. 36. 61

BOSCHI, 1986, p. 37. 62

BOSCHI, 1986, p. 39. 63

BOSCHI, 1986, p. 39.

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do ouro trouxe àquela região pessoas de todas as partes movidas pela ambição de

enriquecimento fácil. Entre estes novos povoadores ele inclui também “frades de diversas

religioens, levados pelo espírito do Interesse, e não do bem das Almas”. Ainda segundo

Teixeira Coelho “elles, como se fossem Seculares, se fizerão Mineiros e se ocuparão em

negociaçoens e em adquirir cabedaes por meios illicitos, sordidos, e improprios ao seu

Estado”.64

Ainda aí vemos apenas criticas às praticas econômicas exercidas por esses

eclesiásticos, porém não foi apenas esta a questão que levou a Coroa e tomar meditas tão

enérgicas contra o clero mineiro. Célia Borges deixa bem claro que esta política adotada

pelo Estado português levava em conta também os fatos ocorridos “em que eclesiásticos se

envolveram em rebeliões, sendo por isso, vistos como elementos desestabilizadores do

sistema”65

. De fato um olhar mais atento à documentação revela que os motivos que

levaram à expulsão dos frades algumas vezes era o fato de estes serem “muitos deles frades

e clérigos de ruim procedimento, revoltosos e ainda cúmplices no levantamento dos reinóis

com os paulistas”66

. O documento aqui citado é inclusive utilizado por Charles Boxer para

discutir o perfil da população da região das Minas, quanto à mobilidade e quanto ao

comportamento. Segundo Boxer:

Eram eles [os clérigos] apontados como sendo os piores culpados de vida

irregular, defraudação dos quintos reais, e adesão ao comércio de contrabando

em generosa escala. Desde o início, espalharam eles ‘a pestífera doutrina de que

a fraude dos quintos não pede restituição, por ter pena civil quando chegar a

descobrir-se’.67

Percebe-se aí já a preocupação com a má-influência que os religiosos poderiam ser

para os habitantes das Minas. Além da questão do contrabando que os religiosos eram

acusados pelo fato de não se submeterem à justiça comum devido ao privilégio de

imunidade eclesiástica que gozavam, aparece também na documentação relatos de que os

clérigos insuflavam a população a não pagar impostos, como o quinto, por exemplo. Os

clérigos eram considerados os cabeças de diversos levantes que aconteceram na região. A

carta régia de 12 de Outubro de 1711, por exemplo, trata da não admissão do Fr. Francisco

64

COELHO, José João Teixeira. Instrucção para o governo da Capitania de Minas Gerais. Revista do

Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, 1903. no 8, p. 447, 448.

65 BORGES, Célia Maia. Escravos e Libertos nas irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em

Minas Gerais – séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora, Editora da UFJF, 2005, p. 57. 66

FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC,

1999. Doc. 28, p. 346-348. 67

BOXER, Charles R. A idade do Ouro do Brasil: dores do crescimento de uma sociedade colonial. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 76.

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de Menezes na região das Minas pelo fato de ele ter sido “um dos principais cabeças do

levam.to

das Minas contra os Paulistas”68

. Já a carta Régia de 26 de Março de 1711 pede

informações a respeito do procedimento do padre Cláudio Gurgel do Amaral, vigário da

vila de Ouro Preto, por ter sido ele “no R.o de Janeiro author de algúas revoluçoens em que

succederão mortes”69

.

Como se pode perceber pela documentação, os eclesiásticos que viviam nas Minas

eram constantemente observados, por serem considerados elementos responsáveis por

“grande prejuizo e perturbaçoens70

” e também como “os que mais descaminhão os

quintos71

”. Desta forma são constantes os pedidos de informações sobre o procedimento

dos clérigos, como também denúncias dirigidas à Corte relativas à ineficiência dos Bispos

em fazer cumprir as ordens de expulsão dos clérigos desnecessários. É em face desta

situação, que na carta régia de 9 de Junho de 1711 a Coroa muda de postura e autoriza ao

governador que utilize inclusive de força contra os eclesiásticos ociosos. A partir daí

também percebe-se a decisão metropolitana de também tributar o clero em relação aos seus

bens fundiários72

.

A questão tributaria foi também responsável por diversas desavenças entre as

autoridades da Igreja e do Estado nas Minas. É famosa a questão surgida entre o bispo D.

Manoel da Cruz e o ouvidor Caetano da Costa Matoso sobre a quem pertencia o monopólio

da fiscalização da contabilidade das confrarias em Minas. Essa questão se dava pois essa

era uma das principais formas de controle das atividades das confrarias no período

colonial. Esta disputa de jurisdição durou bastante e provedores e visitadores se alternaram

por muitos anos na fiscalização das contas das Irmandades até se chegar a conclusão que

era o momento da fundação da confraria que definia sua função eclesiástica ou secular.

Mesmo assim algumas irmandades alegavam que tinham “perdido” seu compromisso de

fundação (como foi o caso da Irmandade do Rosário do Alto da Cruz de Ouro Preto),

mostrando que até mesmo os irmãos tinham duvidas a respeito da questão sobre a quem

pertencia o monopólio. Ou ainda como afirma o historiador Marcos Magalhães Aguiar em

um artigo sobre o tema, “a flexibilidade na fiscalização dos compromissos (...) era a regra,

68

RAPM, nº 16, 1911, doc. nº 1, p. 393. 69

RAPM, nº 16, 1911, doc. nº 2, p. 393. 70

RAPM, nº 16, 1911, doc. nº 14, p. 395 71

RAPM, nº 16, 1911, doc. nº 6, p. 394. 72

Para maiores informações sobre esta questão de jurisdição, conf.: BOSCHI, Caio. “Como os filhos de Irael

no deserto”? (ou: a expulsão de eclesiásticos em Minas Gerais na 1ª metade do séc. XVIII). IN: Revista Varia

História. Belo Horizonte, n. 21, 1999, p. 119-141.

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e o principio de sobrevivência das instituições temperava a ação enérgica de provedores e

visitadores”73

. Mas essa já é outra questão, voltaremos à questão dos religiosos em Minas.

Levando-se em conta as ações da Coroa em relação à expulsão e proibição da

entrada e do estabelecimento de ordens religiosas no território das Minas, me arrisco a

considerar a postura assumida pela Coroa como uma postura de vanguarda, aos moldes da

que mais tarde seria adotada por Pombal e suas reformas ilustradas. De fato, foi apenas no

reinado de D. João V, com o descobrimento do ouro nas Minas, é que o estado português

passou realmente a tomar medidas mais enérgicas. A Coroa Portuguesa até então pode ser

vista mais como uma “monarquia corporativa”, como propõe Antonio Manuel Hespanha74

.

É a partir do reinado de D. João V, com a deixada de convocação das cortes e ações como

as discutidas aqui, a respeito da situação dos eclesiásticos nas Minas, é que a Coroa passa a

tomar atitudes consideradas mais enérgicas. Assim considero que — do mesmo modo

como mais tarde serão realizadas reformas profundas como as levadas a cabo Pombal e seu

absolutismo ilustrado — as atitudes assumidas pela Coroa inauguram nas minas uma

tentativa de se exercer mais energicamente o poder dito “Absolutista”, na tentativa de

fortalecer assim o controle que a coroa portuguesa deveria ter em uma região que, no

momento, era de fundamental importância para o Império Português. Para isso foi

necessário fiscalizar e até mesmo excluir daquela região elementos que ameaçavam este

controle, no caso, os eclesiásticos, conforme pode ser observado pelas justificativas

apresentadas nas cartas aqui citadas anteriormente.

Esta atitude da Coroa de impedir o estabelecimento de ordens religiosas regulares

nas Minas vai levar a um panorama diferenciado da religiosidade, onde a construção das

igrejas e alguns encargos do estado vão ser transferidos para as irmandades leigas que

surgem então naquelas comunidades que se formavam. As manifestações religiosas como

as procissões, festas, etc., vão assim ser organizadas e efetivadas por essas irmandades,

que, por sua vez, vão adquirindo uma importância e um poder especial naquela capitania.

Este é apenas um dos fatores que dá à História da Religiosidade Mineira características

singulares, tornando-a tão interessante.

73

Para maiores informações sobre esta e outras questões conf.: AGUIAR, Marcos Magalhães de. Estado e

Igreja na capitania de Minas Gerais: notas sobre mecanismos de controle da vida associativa. IN: Revista

Varia História. Belo Horizonte, n. 21, 1999, p. 43-57.

74 HESPANHA, Antonio Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos

correntes. IN: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (org,). O Antigo

Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2001, p 163 - 188.

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História Econômica

O Mercado de Bens Rurais e Urbanos do Termo de Mariana: espaços de produção e

hierarquia social, 1711-1780.

Quelen Ingrid Lopes*

Introdução

A ocupação de Minas Gerais deveu-se ao atrativo potencial de enriquecimento que

o ouro, ali descoberto pelos paulistas, fazia reluzir na mente dos primeiros desbravadores.

Região de difícil acesso e longa jornada, pouco convidativa por ser ainda sertão a se

desbravar, logo nos primeiros anos gera alguns percalços no caminho da consolidação da

ocupação territorial. O principal deles era a penúria pela qual passavam os mineiros diante

da falta de alimentos suficientes para garantir suas subsistências, bem como dos escravos

que trabalhavam nas lavras. As duas crises de fome que se deram nos anos de 1698-1699 e

1700-1701 demonstraram que não seria possível estabelecer a tão desejada empresa

mineradora sem o empenho em se oferecer uma mínima estrutura para a fixação do homem

nas áreas auríferas.

Adriana Romeiro, analisando a influência que os surtos de fome tiveram sobre a

caracterização do espaço natural e simbólico das Minas, percebe um “padrão recorrente

nas situações de extrema penúria” praticada a princípio pelos paulistas e posteriormente

adotada pelos demais aventureiros que iam buscar a sorte na mineração. Quando das

correrias pelo sertão em busca do apresamento dos indígenas, os paulistas apreenderam um

“repertório de saberes sobre a natureza, que os capacitava a extrair dela todo o necessário à

vida, desde a subsistência até a farmacopéia”.75

Quando os paulistas se viam em

dificuldades buscavam logo o abrigo das matas, onde sabiam encontrar o que lhes era

necessário para subsistir até um momento propício para retornarem às suas regiões de

origem.

* Doutoranda em História pela UFJF. Esta pesquisa conta com o financiamento da CAPES/REUNI.

75 ROMEIRO, Adriana, ROMEIRO, Adriana. Os sertões da fome: A história trágica das minas de ouro em

fins do século XVII. In: SAECULUM – Revista de História, João Pessoa, jul./dez. 2008, p.

168.

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Aliada a essa “fuga para os matos”, um dos saberes que permitiu a penetração das

bandeiras no território que viria a se tornar a Capitania de Minas Gerais foi a técnica do

plantio de roças em determinados pontos ao longo do caminho, isto para que na volta das

expedições os exploradores pudessem se reabastecer com os víveres que haviam plantado.

Nos primeiros anos de povoamento de Minas Gerais manteve-se este tipo de técnica:

“Assim que chegavam as Minas, todos tratavam primeiro de plantar suas roças nas

imediações das datas minerais, instalando-se depois nos arraiais e povoados, para esperar

até que os mantimentos pudessem ser colhidos. Só então é que se tinham início os

trabalhos de mineração.” Mas devido à fragilidade de equilíbrio entre o aumento

populacional constante e a produção realizada, as crises de fome sempre assombravam os

mineiros.

Embora aquele cenário desolador do início da empresa mineradora, retratado no

relato de Antonil, evidencie os obstáculos impostos a mesma, as notícias vindas das áreas

mineradoras dando conta dos grandes lucros obtidos nas lavras animavam cada vez mais

indivíduos dispostos a encetar a empreitada mineradora. Empreitada que não requeria

grandes investimentos, pois o ouro de aluvião (tipo encontrado na região) era de fácil

acesso, necessitando, no limite do básico ao seu garimpo, de alguns poucos instrumentos

como a bateia e o almocafre. Mas o fator do abastecimento das Minas desde cedo se

mostrou questão de extrema importância para que se pudesse consolidar a atividade da

mineração no interior da colônia.

A tradição historiográfica da economia colonial baseada na noção de ciclos

econômicos de Roberto Simonsen76

, durante quase meio século entendeu que essa

demanda por bens de primeira necessidade criada por esse súbito e desordenado

povoamento de Minas Gerais teria sido sanada a partir da regularização de um

abastecimento externo. A estrutura econômica local voltada unicamente para a mineração

não teria como oferecer os artigos necessários, pois a utilização da mão-de-obra escrava e

todos os recursos disponíveis estariam investidos tão somente na produção do ouro. A

entrada em cena da agricultura, para tal perspectiva, se daria como alternativa de

subsistência diante da completa decadência que se abate sobre a capitania em virtude da

queda da produção aurífera, no final do século XVIII.

Participando dessa mesma linha de interpretação, ainda que sob enfoque da

dinâmica econômica interna à colônia, Mafalda Zemella define a prática agrícola durante o

76

Simonsen, Roberto C. História econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1977.

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período de auge da mineração como uma atividade de participação muito limitada no

abastecimento regional, sendo apenas realizada com caráter ocasional. Sem constituir uma

estrutura produtiva capaz de oferecer o básico de bens de consumo que a população local

carecia, o abastecimento dos gêneros de primeira necessidade na capitania das Minas teria

sido substancialmente efetuado por outras áreas da Colônia. Nesse sentido, o Rio de

Janeiro (com a abertura do caminho novo) e a Bahia teriam sido os principais responsáveis

pelo envio - além dos produtos vindos do Reino - de gêneros alimentícios e de gado.

Somente quando a mineração entrasse em declínio o abastecimento de produtos externos

fora substituído por produtos localmente produzidos, nesse momento a agricultura teria se

estruturado de modo efetivo na capitania.77

O desinteresse em tornar a agricultura uma prática regular na capitania seria devido

a alguns entraves de ordem prática e também psicológica. Este último, determinado pela

ambição de enriquecimento, pois “o ouro atraía todas as atenções, condensava todas as

atividades, pela ascendência que exercia sobre os espíritos ambiciosos que acorreram às

Gerais. Somente no caso de haver absoluta impossibilidade de explorar uma lavra é que se

pensava em outras ocupações.” O outro entrave seria dado pelo caráter geológico da

região, que devido à pobreza dos solos em proximidade com as áreas de ocorrência de

minério teria um nível e qualidade produtivos inadequados para atender as necessidades

locais. Haveria ainda mais um obstáculo à implantação da atividade agrícola: a avidez da

Coroa em adquirir o ouro vindo do seu direito ao quinto, que a fazia “concentrar todas as

possibilidades de produção dos habitantes das Gerais na indústria mineradora”, proibindo

os trabalhos de manufatura na região e os engenhos de cana-de-açúcar.78

Somente a partir da década de 1980 tem início na historiografia uma tentativa de

equacionar a relevância da agricultura em Minas Gerais no período de auge minerador.

Tomando como objeto de estudo as cartas de sesmarias concedidas aos peticionários da

capitania de Minas Gerias, durante a primeira metade do século XVIII, Carlos Magno

Guimarães e Liana Maria Reis, constataram, além da efetiva existência e importância do

setor agrícola na região, a concomitância da mineração e da agricultura. Ambas as

atividades dividiam espaço e a força produtiva dos escravos, derrubando duas ideias

defendidas pela historiografia clássica: a de que as terras próximas as áreas de mineração

não seriam produtivas, e a de que não faria parte da lógica do sistema minerador permitir

77

ZEMELLA, Mafalda p. O abastecimento da capitania de Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:

HUCITEC/Edusp, 1990. 78

Idem., p. 209.

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que o trabalho escravo fosse desviado para atividades menos rentáveis, em outras palavras,

que não se relacionavam diretamente ao mercado exportador. Desta forma, “a agricultura

na sociedade mineira colonial” não deve ser percebida apenas como uma atividade de

caráter eventual e quase desprezível, mas deve-se procurar:

(...) entender sua inserção no processo da colonização [que] necessariamente nos

levar a repensar este processo, e aquela sociedade. Trata-se no caso de

reconhecer a existência e a importância de um setor produtivo, na sociedade

mineira, que absorve expressivo contingente populacional de todas as condições.

A existência deste setor reflete ainda a existência de grupos de interesses

definidos, com peso específico no conjunto das forças que atuam naquela

sociedade.79

Em seu estudo sobre a agricultura e pecuária de Minas Gerais colonial, Ângelo

Alves Carrara estabelece dois modos de produção agrária como modo de interpretação

dessa sociedade agrária: um que é denominado modo de produção escravista, com

produção mercantil, tendo suas atividades divididas entre a mineração e a produção

agrícola de alimentos; e o outro, o modo de produção camponês ou familiar, caracterizado

por uma produção de agricultura de auto-consumo80

. Para o autor, estes dois modos de

produção conformam duas paisagens agrárias distintas, que são as categorias primeiras da

percepção geográfica setecentista, as “minas” e os “sertões” [que] conformaram

igualmente duas paisagens rurais distintas. Uma, nas áreas de ocorrência das jazidas

minerais ou à beira das principais estradas e caminhos que lhes acessavam,

compreendiam os sítios. Outra, sertaneja, curraleira, abrangia as fazendas.81

Dedicando-se à análise das unidades produtivas do termo de Mariana, entre 1750 a

1850- período que engloba o auge minerador até a predominância econômica das

atividades mercantis de subsistência-, Carla Maria Carvalho de Almeida, afirma que a

queda da produção do ouro nas últimas décadas do setecentos não teria levado a

capitania/província a uma completa desestruturação de suas atividades produtivas,

entrando em completo declínio sua economia e sociedade. Na verdade, o que demonstra o

estudo é um re-ordenamento da atividade nuclear da mineração para a agricultura mercantil

de subsistência, sendo mínimas as alterações das unidades produtivas ao longo de todo o

período estudado, nas palavras da autora: As mudanças ocorridas se deveram mais aos

79

GUIMARÃES, Carlos Magno & REIS, Liana Maria. Agricultura e escravidão em Minas Gerais (1700-

1750). In: Revista do Departamento de História. Belo Horizonte: UFMG, v. 1, n. 2, 1986, p 8. 80

CARRARA, Ângelo A. Agricultura e Pecuária na capitania de Minas Gerais 1674-1807. Rio de Janeiro:

UFRJ, 1997 (tese de doutorado). 81

CARRARA, Ângelo A. Minas e Currais: Produção rural e Mercado interno de Minas Gerais 1674-1807.

Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2007, p. 187, grifo do autor.

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ajustes necessários para a adaptação da economia às circunstâncias cambiantes do que

propriamente, a uma mudança estrutural no sistema econômico existente.82

De forma que,

ao final do auge minerador houve apenas um fortalecimento daquelas estruturas

produtivas, que se rearticularam em torno do mercado interno.

Seja como meio de reduzir os gastos da empresa aurífera, produzindo os produtos

básicos para a subsistência dos escravos, seja como alternativa econômica válida para a

aquisição do precioso ouro através da venda dos produtos localmente, ou mesmo para a

própria sobrevivência, a atividade agrícola esteve presente em Minas Gerais desde a

implantação da empresa mineradora, permitindo a “montagem” e garantindo a “expansão

da atividade mineradora, bem como foi a alternativa adotada quando da crise dessa mesma

atividade”.83

O estudo do mercado de propriedades rurais do termo de Mariana, Comarca de Vila

Rica, entre os anos de 1711 e 1780 revela características importantes da relação que a

atividade mineradora mantinha com a atividade agrícola e pastoril em Minas Gerais. A

análise das negociações de propriedades rurais em comparação com as das propriedades

urbanas e dos serviços de mineração poderá nos revelar como a queda da mineração se

refletiu neste mercado. Os dados agregados até o momento, que tratam de 892

propriedades rurais negociadas de 1711 até 1750, já nos oferecem algumas respostas para a

relação mantida entre a agricultura e a mineração no ambiente mais reduzido, ou seja, na

reprodução das propriedades rurais. Veremos uma estreita ligação- em muitos casos

ligação física- entre ambas as atividades que nos permite inferir que o espaço minerador do

termo de Mariana era também um espaço produtor agrícola.

Mineração e agricultura: um espaço de reprodução conjunta.

O sentido do povoamento das Minas Gerais configurou-se, de modo geral, de

acordo com as descobertas de novos ribeiros e córregos auríferos. Cada novo descoberto

era demarcado e distribuído em datas minerais através das cartas de datas emitidas pelo

guarda-mor responsável pela distribuição das mesmas terras. Damasceno afirma que:

...na região dos descobrimentos, as primeiras concessões de terrenos não se

fizeram como em outras partes do Brasil, através de cartas de sesmarias; estas

82

ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Alterações nas unidades produtivas mineiras: Mariana – 1750-

1850. Niterói, UFF, 1994 (dissertação de mestrado, p. 207. 83

GUIMARÃES, Carlos Magno & REIS, Maria Liana, Op. Cit, p. 24-25.

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vieram depois, ‘como que a reboque das datas de mineração e dos primeiros

acampamentos’. Este fato em muito contribuiu para o rápido processo de

povoamento e para a maior densidade populacional que se verificaram em

Minas84

.

Enquanto para a sesmaria se concedia uma légua em quadra, a data de terra

mineral era medida segundo uma unidade bem menor, a braça em quadra85

. Na Vila do

Carmo, suas freguesias e paragens, povoadas e conformadas na primeira metade do século

XVIII com o sentido que lhes dava a mineração, seguiu a mesma lógica: núcleos de

exploração aurífera densamente povoados, pipocado por várias datas de explorações

auríferas que iam aos poucos se imiscuindo com as atividades agropastoris.

Não podemos afirmar ao certo o tamanho médio destas propriedades agrícolas, no

entanto, a análise da venda de dois sítios descritos com maiores detalhes nos fornece uma

amostra da extensão das mesmas. Ambos os sítios foram vendidos no dia 11 de outubro de

1712, um situava-se no caminho de Antônio Pereira para o mato dentro, tendo como

limites Antônio Borges de uma parte, Joseph Coelho de outra, e as vertentes do ribeiro dos

Monsus mais adiante, este sítio possuía 400 braças de terras em quadra86

. O outro sítio

limitava-se por um lado com uma estrada e por outros com outros quatro indivíduos.

Limitava-se também com águas vertentes para o Ribeirão do Carmo, media 500 braças e

situava-se no Sumidouro87

. Ambos os sítios tem em comum a proximidade com ribeiros

auríferos, mas em suas vendas não foi arrolada nenhuma data de terra mineral, o que não

significa que seus proprietários não as possuíssem. Possivelmente continuariam a mantê-

las, mesmo que colocando à venda as propriedades agrícolas levantadas em suas

imediações. Esta proximidade entre a mineração e agricultura era muito comum, para

Ângelo Carrara as datas [minerais] compõem o horizonte agrário para a quase totalidade

dos proprietários rurais. Além disso, os parquíssimos registros de concessões de datas

demonstram a mesma regra válida para as sesmarias: o mercado de terras é também um

mercado de águas minerais.88

De fato, serviços de águas, cartas de datas, faisqueiras, uma variada sorte de

trabalhos minerais com maior ou menor incentivo tecnológico (como roda de água de

minerar) em suas atividades extrativas estão presentes em um terço das propriedades rurais

analisadas.

84

FONSECA, Cláudia Damasceno, Op. Cit., 1998, p. 30. 85

Idem, p. 30. 86

AHCSM, 1º ofício, livro de nota 2, folha 100 verso. 87

AHCSM, 1º ofício, livro de nota 2, folha 102. 88

CARRARA, Ângelo A. Op. Cit., 2007, p. 156.

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Denominamos estes casos de propriedades mistas: que coadunavam a atividade

agrícola com a mineração. As propriedades que não possuíam nenhuma referência à

atividade mineradora foram denominadas simplesmente como propriedades agrícolas.

Podemos classificar a atividade mineradora inclusa nas propriedades mistas em dois

tipos: atividade mineradora direta ou indireta. A primeira foi definida por sua contigüidade

com a área produtiva agrícola da propriedade, demonstrando um vínculo físico direto e a

concomitância entre as atividades agrícola e mineradora dentro da propriedade. Estes casos

compõem 84,87% do total das propriedades mistas. Consideramos como atividade

mineradora indireta o serviço de mineração que é vendido junto com a propriedade

agrícola, mas que se constituía como um espaço de mineração que não apresentava

contigüidade física com a primeira, ou seja, estava estabelecido em outra área do termo.

A contigüidade física da atividade mineradora direta fica clara na venda de um sítio

localizado à Barra do Passa Dez no Rio Piracicaba no ano de 1717: “dois serviços de águas

metidas (nas) terras minerais um sito pela parte das casas do dito sítio e outro, pelo roçado

abaixo, acompanhando o Rio Piracicaba os quais houvera por título de os fazer com seus

escravos... de que tem cartas de datas... 89

” O proprietário, e então vendedor do mesmo

sítio, João de Melo do Rego, afirma que também o houve por o “fazer com o trabalho dos

seus escravos”, e da mesma forma incorreu em fazer os serviços minerais.

Se em outras regiões da colônia, como acima afirma Cláudia Fonseca, as cartas de

sesmaria proviam seu beneficiário de uma légua90

em quadra de terras, no termo de

Mariana a carta de data mineral apesar de prover os donatários com 2,2m (valor

correspondente a uma braça em quadra), parece ter sido um incentivo a se fazer uso das

terras em suas proximidades para produção de alimentos e criações de pequenos animais

que supririam, mesmo que parcialmente, a reprodução da atividade de mineração.

Em muitos casos o rio ou córrego onde se minerava passava por entre a parte

agrícola da propriedade, como uma espécie de divisor da propriedade. Muito embora, não

pareça tratar-se exatamente de uma divisa, funcionava como uma “marca natural” a

demonstrar o processo de constituição da estrutura da mesma propriedade. Em outras

palavras, após o início do trabalho ao longo do espaço demarcado nas terras minerais e

margens dos rios, o donatário tratou de construir pelas duas margens benfeitorias e

plantações, aproveitando as áreas ao redor dos trabalhos de mineração para a produção de

89

AHCSM, 1º ofício, livro de nota 6, folha 86 verso. 90

Segundo Ângelo Carrara a légua equivale à 6600m, para conferir pesos e medidas ver CARRARA, Ângelo

A. Op. Cit., 2007, p. 72-73.

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alimentos. Este é o caso de um sítio na paragem do Gualaxo, vendido em 1727 em cuja

menção aos serviços de mineração diz:

...uma roda de tirar ouro com 25 praças na dita roda e esta corrente de todo o

necessário e principiando a andar, 12 datas de terras medidas pelo Guarda-Mor

Caetano Álvares Rodrigues por quem foram passadas as ditas cartas (de datas),

cujo sítio lhe passa o rio pelo meio e de uma e outra parte tem terras...91

A parcela das propriedades mistas que não possuía os serviços minerais formando

uma unidade física juntamente com a parcela de terras voltada para a prática da

agricultura, possuía a atividade mineradora situada, em geral, na mesma paragem ou

freguesia. Portanto apesar de serem vendidas juntamente com a propriedade agrícola

encontravam-se fisicamente apartadas. De modo geral, pertenciam ao vendedor por inteiro

– quando ele era o único proprietário – ou em sociedade com um ou mais indivíduos, lhe

cabendo neste caso a meação ou partes fragmentárias coerentes com a quantidade de

sócios, ou de seu investimento em escravos ou no momento da compra. Seus limites eram

definidos na escritura de forma deixando claro a não associação física entre ambas.

Quando em setembro de 1725, o Tenente Coronel Domingos Vieira da Cunha

vendeu a Sigismundo de Araújo e Souza e a Domingos Fernandes Filgueira, um sítio e

roça na Freguesia de Catas Altas, lhes vendeu também a parte que lhe tocava da sociedade

em uns serviços de mineração na mesma Freguesia: “... dez cartas de datas que tem nas

capoeiras do Mestre de Campo Manoel Rodrigues Soares na paragem do Rio de São

Francisco da dita freguesia (de Catas Altas) em que é também sócio com o dito Paulo de

Araújo e o Mestre de Campo Manoel Rodrigues Soares...92

”.

A venda que fez Francisco Vieira Benfica do seu sítio e terras minerais à Domingos

Gonçalves da Cunha, em março de 1723, é um bom exemplo das duas situações que

analisamos acima, pois ele vendeu “um serviço de água que passa por dentro do mesmo

sítio que vem a ser o mesmo córrego que vai dos Camargos... como também oito praças

que tem no serviço da Cachoeira que se está [rompendo] no Rio Grande que vai para o

Gama...93

” (grifo meu). O local chamado Gama, ao qual a citação se refere, é uma paragem

da Freguesia dos Camargos.

Apesar de não ligadas diretamente, podemos perceber um grau de continuidade

entre ambas dado o fato de serem propriedades de um mesmo senhor e estarem situadas na

mesma paragem ou freguesia. O que nos leva a sugerir que este tipo de propriedade

91

AHCSM, 1º ofício, livro de nota 27, folha 74 verso. 92

AHCSM, 1º ofício, livro de nota 24, folha 100. 93

AHCSM, 1º ofício, livro de nota 20, folha 128 verso.

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agrícola teve por finalidade abastecer o setor extrativo do minério aurífero, se não

integralmente, ao menos com uma parcela dos víveres necessários a sua reprodução. Resta-

nos verificar até que momento tal quadro sofrerá transformações diante da queda da

produção mineradora e de que forma isso se refletirá no mercado das propriedades rurais

ao longo do tempo.

Abreviaturas

AHCSM - Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana/IPHAN regional

Referências bibliográficas

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Mariana – 1750-1850. Niterói, UFF, 1994 (dissertação de mestrado).

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Colonial, 1750-1822. Niterói, UFF, 2001 (tese de doutorado).

CARRARA, Ângelo Alves. Agricultura e Pecuária na capitania de Minas Gerais 1674-

1807. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997 (tese de doutorado).

__________. Contribuição para a História Agrária de Minas Gerais – séculos XVIII-XIX.

Mariana: UFOP/Núcleo de História Econômica e Demográfica, Série de Estudos 1, 1999.

__________. Minas e Currais: produção rural e mercado interno em Minas Gerais 1674-

1807. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2007.

CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das minas

setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999.

FONSECA, Cláudia Damasceno. O espaço urbano de Mariana: sua formação e suas

representações. In: Termo de Mariana: História e Documentação. Mariana: Imprensa

Universitária da UFOP, 1998, p. 13-26.

GUIMARÃES, Carlos Magno & REIS, Liana Maria. Agricultura e escravidão em Minas

Gerais (1700-1750). In: Revista do Departamento de História, Belo Horizonte: UFMG,

vol. 1, n. 2, pp. 7-36, jun. 1986.

ROMEIRO, Adriana. Os sertões da fome: A história trágica das minas de ouro em fins do

século XVII. In: SAECULUM – Revista de História, João Pessoa, jul./dez. 2008, p. 165-

181.

ZEMELLA, Mafalda P. O abastecimento das Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:

HUCITEC/EDUSP, 1990.

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Brasil Império

O Diário do Rio de Janeiro à Luz da Historiografia: algumas reflexões (1821-1834).

Laiz Perrut Marendino*

Introdução

A história da imprensa no Brasil permanece encoberta de incertezas. Apesar dos

grandes progressos realizados por Werneck Sodré e outros, lacunas variadas percorrem as

fontes disponíveis. Discutirei alguns aspectos de um dos jornais menos discutido pela

historiografia no período das Regências, apresentando os rumos inicias de minha

investigação.

O jornal que discutirei é o Diário do Rio de Janeiro, primeiro diário criado no Rio

de Janeiro. Pretendo nesse texto expor as linhas gerais em torno da criação do Diário;

indicar seus objetivos, sua composição e sua circulação; apresentar a literatura mais

representativa acerca dele e da imprensa em geral de sua época.

Analise do jornal através das fontes

Foi o lisboeta Zefferino Vito de Meirelles o fundador do jornal. Criado no dia 1º de

junho de 182194

permaneceu sob o comando de Zefferino, que foi, ainda, seu primeiro

redator, até o ano seguinte, quando faleceu95

. As circunstâncias de sua morte são um tanto

obscuras. Sabe-se que Zefferino faleceu devido a um atentado, mas mesmo a data da morte

levanta problemas. Sacramento Blake96

sugere 12 de novembro de 1822. Contudo, Myriam

Pires, em sua dissertação de mestrado (UERJ, 2008), usa notícia do próprio jornal para

situar a morte de Zefferino em agosto de 1822.

* Graduanda em História pela Universidade Federal de Juiz de fora e bolsista de iniciação cientifica sob

orientação da Professora Drª Silvana Mota Barbosa 94

Zeferino Vito de Meirelles. “Plano para estabelecimento de um útil e curioso Diário nesta cidade”. Diário

do Rio de Janeiro, nº 1, 1º de Junho de 1821. 95

PIRES, Myriam Paula Barbosa. Impressão, sociabilidades e poder: três faces da tipografia do Diário na

corte do Rio de Janeiro (1821 – 1831). Rio de Janeiro, 2008. p. 98. 96

BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Rio de Janeiro:

Imprensa Nacional, 1899.

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O substituto de Zefferino foi Antônio Maria Jourdan, personagem sobre o qual

ainda não detenho maiores informações. O jornal permaneceu dirigido por ele durante os

anos seguintes, anos nos quais o jornal se consolidou conforme as propostas editoriais

criadas por Zefferino Meirelles97

. Que propostas eram essas? Em primeiro lugar, Meirelles

preconizou que o jornal deveria ser marcadamente informativo. O plano de

estabelecimento do Diário98

elencava a análise meteorológica, anúncios e notícias

particulares (“inclusive anúncios dos divertimentos e espetáculos públicos”) e outras

informações essenciais como seus motes. O perfil do jornal conservou-se assim ao menos

até 1834, o que é bastante interessante, já que, ao largo dessa conjuntura, foram editados

muitos diários e pasquins deliberadamente criados para a propaganda política das correntes

então existentes. O Diário do Rio de Janeiro escapou a tais discussões, embora tenha

incorporado o noticiário oficial (extratos de debates ocorridos no senado, etc.) em seu

escopo. Nos periódicos doutrinários, cujos assuntos apresentavam caráter diretamente

político, as matérias traziam à tona a opinião explícita de seus redatores acerca dos

episódios ocorridos.99

No caso do Diário, essas opiniões não estão claramente colocadas, e,

para o ano de 1834 em geral e para a Assembleia Constituinte então ocorrida em particular,

vital em meu estudo, não pude encontrar um artigo que manifestasse alguma postura do

jornal em relação aos acontecimentos mais significativos100

. Tudo isso levou-me à

conclusão inicial de que o Diário se constituía, afinal, como um verdadeiro mosaico das

informações consideradas úteis ao público leitor.

Em termos de circulação do jornal, pode-se inferir alguns dados a partir da

documentação. Não tendo disponível a tiragem do Diário, optei por buscar o seu valor de

subscrição e de compra avulsa, comparando-o aos valores de outros periódicos. De fato, o

Diário era uma publicação de baixo custo: uma edição avulsa custava em torno de 40 réis

na época de sua fundação. Seu preço subiu para 60 réis ao redor do ano de 1831, preço

inalterado até 1834, limite de minha análise. O valor era equivalente a cerca de 5kg de

milho (em valores médios anuais, já que as flutuações dos preços poderiam ser

devastadoras). Os demais jornais custavam, em média, 100 réis. O valor de subscrição

inicial era de 640 réis, metade do preço de um jornal avulso. De todo modo, creio que os

97

Diário do Rio de Janeiro. 1821 – 1831. Rio de Janeiro. Microfilmes sob a guarda da Biblioteca Central da

UFJF. 98

Conferir nota nº 3. 99

BASILE, Marcello Otávio Néri de Campos. O Império em Construção: projetos de Brasil e ação política

na Corte Regencial. Rio de Janeiro, 2004 [Tese de Doutorado]. Instituto de Filosofia e Ciências sociais.

Universidade Federal do Rio de Janeiro. 100

Diário do Rio de Janeiro, Janeiro – Agosto de 1834. Rio de Janeiro.

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dados bastem para sinalizar o maior alcance potencial deste periódico em relação a seus

concorrentes. O seu conteúdo altamente informativo conduz-nos a parecer semelhante,

uma vez que devia buscar o maior público possível, e não, por exemplo, especificamente

partidários de dada corrente política.

Analise da bibliografia sobre a imprensa no período

Lúcia Maria Bastos P. Neves, em seu texto101

, aborda a questão da imprensa e da

consequente informação que chegava à população, evidentemente a elite, no inicio da

década de 1820. Trazidas pelo vintismo Português as ideias liberais chegavam ao Brasil a

partir de 1820, ganhavam divulgação inédita através da Imprensa, muitos jornais e folhetos

circulavam dos dois lados do Atlântico. Como sabemos, nessa década, a imprensa no

Brasil começava a dar seus primeiros passos, existiam ainda poucos jornais, com pequena

circulação. É nesse contexto que situamos o Surgimento do Diário do Rio de Janeiro.

Segundo Neves, o surgimento na Imprensa no país foi significativo para o aumento

da preocupação coletiva com o político até então inexistente. Além de ter contribuído para

o aparecimento de novos espaços de sociabilidades como cafés, livrarias, academias, onde

liam e discutiam as notícias trazidas à luz pelos periódicos, esboçando a formação de uma

esfera pública de poder.

Além de examinar a documentação, convém esclarecer as considerações já traçadas

pela literatura acerca desses problemas no referido jornal. Como ressaltei, poucos

dedicaram ao Diário mais do que atenção parcial em estudos de maior fôlego. É o caso de

Nelson Werneck Sodré, cuja História da Imprensa no Brasil (1966) aborda o Diário do

Rio de Janeiro brevemente. Também refletiram sobre o periódico Carlos Rizzini (em O

livro, o jornal e a tipografia no Brasil, 1945) e Hélio Vianna (Contribuição à História da

Imprensa Brasileira, 1945). Mais recentemente, a história do Diário do Rio de Janeiro

ganhou uma investigação de maior fôlego em dissertação de mestrado de autoria da

pesquisadora Myriam Pires, intitulada Impressão, sociabilidades e poder: três faces da

tipografia do Diário na Corte do Rio de Janeiro (1821-1831). Defendida na UERJ no ano

de 2008.

101

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira. A “guerra das penas”: os impressos políticos e a independência do

Brasil. Niterói, 1999. Revista Tempo – UFF.

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Considerei importante a análise das obras de Sodré e Myriam Pires. Nelson

Werneck Sodré102

dedicou apenas poucas citações ao referido jornal, mas foram capazes de

influenciar toda uma geração. Em seu livro trata o Diário como “meramente informativo”,

veículo de anúncios, imprensa “neutra”, cuja existência não teria interferido na cena

pública, constituindo uma “folha omissa”. Em certo sentido, como salientei, é válido

concordar com as afirmações de Sodré. Todavia, sua insistência na neutralidade do jornal,

sua completa isenção, merece, no mínimo, um olhar mais atento, algo que pretendo fazer

no decurso da pesquisa. Entretanto, o próprio Sodré abriu um caminho para solucionar a

questão. Ele ponderava que, a partir de 1831, o Diário teria assumido um posicionamento

de caráter político, ligando-se ao grupo dos caramurus. Voltarei em breve a esta colocação.

Sodré foi, também, o responsável por divulgar os célebres apelidos do jornal, como

“Diário do Vintém” e “Diário da Manteiga”. O primeiro fazia menção ao seu preço e o

segundo aos seus anúncios que, entre outros produtos, noticiavam diariamente o preço da

manteiga. Tais apelidos ficaram marcados na historiografia, sobretudo porque Sodré

afirmara que eles faziam parte do vocabulário da época. Em conjunto, essas ideias apenas

reforçam seu argumento central, isto é, o de que o periódico não teria tido qualquer valor

enquanto mecanismo de difusão de opiniões políticas e enquanto agente interventor no

tecido social.

É forçoso colocar em debate as conclusões de Sodré. Segundo Myriam Pires, não

existem documentos que demostrem, por exemplo, que apelidos evocados por Sodré

fossem utilizados no contexto do Diário103

. O mesmo pode-se dizer quanto ao apelido

“Diário do Vintém”, pois, embora o valor do periódico fosse de fato baixo, ele excedia as

expectativas que o adjetivo empregado por Sodré poderia suscitar nos leitores (ele custou

inicialmente o dobro e, depois, o triplo do que Sodré sugerira).

Seguindo as definições de Francisco Falcon, Miriam trata o Diário como um

periódico ligado aos valores das “Luzes”. No Brasil, tais valores, tolerância,

humanitarismo, pedagogia e utilitarismo teriam sido disseminados em várias parcelas da

sociedade, tendo a imprensa uma atuação importante. Aqui apresentavam-se com maior

intensidade os valores relacionados à pedagogia e ao utilitarismo. O traço utilitário aparece

representado na imprensa pelo Diário, que, por meio do incentivo à curiosidade como um

caminho de alcance ao conhecimento, representou uma das formas de difundir a razão pela

102

Ver SODRÉ, Neslon Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. 103

PIRES, Myriam Paula Barbosa. Impressão, sociabilidades e poder: três faces da tipografia do Diário na

corte do Rio de Janeiro (1821 – 1831). p. 64.

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expansão do acesso à informação. Nesse sentido, o “homem comum” chegava mais perto

dos problemas sociais104

.

Após uma análise das edições de 1821 até 1834, nota-se uma postura de instruir o

público acercadas inovações tecnológicas e científicas do mundo, uma preocupação com as

melhorias da condição de vida na cidade do Rio e seções destinadas à medicina e seus

avanços no trato das doenças. Concordando com a autora, embora o Diário não criticasse

diretamente o governo, foram trazidos por sua imprensa opiniões essenciais para o

aparecimento de uma nova forma de conformação social. Segundo Lúcia Neves, “embora

alguns jornais assumissem supostamente uma postura neutra, destinada a transmitir

meras notícias, como o Diário do Rio de Janeiro e o Volantim, muitos acabavam por

transcrever artigos publicados em outras regiões, adquirindo também um caráter

político.”

Isso poderia nos levar a uma revisão dos argumentos de Sodré (de que a partir de

1831 o jornal serviu à política caramuru)? Ainda é cedo para afirmá-lo, mas poderia

levantar um dado que se articula com as proposições de Pires quanto à postura ativa do

jornal, agora do ponto de vista político. Embora não houvesse de fato propaganda política

elaborada pelo jornal, uma de suas seções era certamente ligada a esse aspecto. O Diário

publicava, desde sua fundação, notícias de outros jornais em suas páginas, numa seção

chamada “obras publicadas”. Se considerarmos as notícias enquadradas nesta seção

durante o ano de 1834 até a promulgação do Ato Adicional, vislumbramos algumas

informações interessantes: dentre as obras publicadas, constata-se forte presença de

publicações vinculadas aos jornais exaltados (10 citações de jornais exaltados num

universo de 25 periódicos em algum momento referidos). Além desses, havia menções a

jornais moderados (4 citações) e Caramurus (3 citações), bem como outros 8 jornais que

não pude filiar a alguma das correntes supracitadas105

.

Fica claro, portanto, que não havia no jornal filiação política clara – o número

elevado de citações ligadas aos exaltados não é prova de filiação política, pois o número de

suas publicações excedia com folga as das demais correntes políticas, de modo que os

dados que colhi podem representar tão-somente a média proporcional das publicações

lançadas no período.

Considerações finais

104

Ibidem, p. 69. 105

Diário do Rio de Janeiro, Janeiro – Agosto de 1834. Rio de Janeiro.

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A presença de periódicos e folhetos no cotidiano da corte, envolvendo a maior parte

da elite letrada e alcançando, pelo “falar de boca”, até o público analfabeto, ajudou para o

aparecimento de uma esfera pública de poder. Nesses impressos encontra-se uma das mais

ricas fontes para identificar as ideias, os valores e os símbolos dos grupos políticos, no meu

trabalho, especificamente, os Liberais Exaltados, Liberais Moderados e Caramurus.

Num trabalho ainda em andamento já posso levantas algumas conclusões iniciais:

O Diário do Rio de Janeiro foi realmente, na época estudada, um jornal informativo, suas

intensões eram de transmitir as notícias e chegar ao maior público possível (o que podemos

inferir por se baixo custo), entretanto, não significava ser um jornal “omisso”, “neutro”.

Era informativo, não omisso e com isso conseguia intervir no tecido social da corte,

trazendo notícias que contribuíam para uma melhor forma de convívio social, como as das

sessões de medicina e urbanização.

Fontes:

Biblioteca Central da UFJF

Coleção Microfilmada do Jornal “Diário do Rio de Janeiro”, 1821 – 1867.

Coleção Microfilmada do Jornal “Aurora Fluminense”, 1834.

Coleção Microfilmada intitulada “Jornais Diversos”, 1834.

Referências bibliográficas

BASILE, Marcello Otávio Néri de Campos. O Império em Construção: projetos de Brasil

e ação política na Corte Regencial. Rio de Janeiro, 2004 [Tese de Doutorado]. Instituto de

Filosofia e Ciências sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfio Brasileiro. Rio de

Janeiro: Imprensa Nacional, 1899.

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira. A “guerra das penas”: os impressos políticos e a

independência do Brasil. Niterói, 1999. Revista Tempo – UFF.

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PIRES, Myriam Paula Barbosa. Impressão, sociabilidades e poder: três faces da tipografia

do Diário na corte do Rio de Janeiro (1821 – 1831). Rio de Janeiro, 2008. [Dissertação de

Mestrado] Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil 1500 – 1822. São Paulo:

Imprensa oficial do Estado/ Imesp, 1988.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

VIANNA, Hélio. Contribuição à história da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa

Nacional, 1945.

MOREL, Marco. O Período das Regências, (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

2003.

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História Política

O Movimento Higienista no Início do Século XX e a Discussão dos Grupos Escolares

de Juiz de Fora.*

Anderson J.A. Narciso**

Introdução

Ao se tratar da criação dos Grupos Escolares em Juiz de Fora – MG, a

historiografia atual nos remete a reforma João Pinheiro106

, que em 1906 vinha destinada

exclusivamente à educação pública. É neste contexto que os Grupos Escolares irão receber

todo um destaque sobre o avanço do ensino, em que os moldes republicanos marcam uma

nova etapa da educação em todo o país. A partir dessa reforma, com a criação dos Grupos

Escolares as então chamadas “escolas isoladas” aparentemente vão ser remodeladas de

acordo com os novos parâmetros adotados. Na maioria das vezes, estas escolas

funcionavam em lugares que originalmente não teriam sido projetados com o objetivo de

desempenhar tal função. O que acabou por acarretar na maioria das vezes, condições

desfavoráveis à qualidade do ambiente de ensino.

Juiz de Fora, considerada por muitos contemporâneos a “Atenas Mineira”,

apresentou nesta fase uma intenção de se projetar como agente construtora de um ensino

qualificado para os estudantes desta localidade. Não por menos, na primeira e segunda

década do Século XX, Juiz de Fora já estava sendo vista como precursora educacional, que

segundo relatos da época, possibilitava ao estudante local concluir seus estudos aonde

residia, sem precisar se afastar da família107

. Portanto, analisar a criação dos Grupos

* Este trabalho é um dos resultados do projeto intitulado Políticas de Educação, escolarização e estratégias de

Nação: a transição Império/ República e as quatro primeiras décadas republicanas, financiado pela

FAPEMIG e CNPq, coordenado pelo professor Dr. Marlos Bessa Mendes da Rocha, sediado na Faculdade de

Educação na Universidade Federal de Juiz de Fora. **

Graduando em História, pela Faculdade de História na Universidade Federal de Juiz de Fora e bolsista de

iniciação científica PIBIC/CNPq no referido projeto. E-mail: [email protected]. 106

João Pinheiro foi eleito Presidente do Estado de Minas Gerais em julho de 1906. Ainda no mês em que o

Presidente de Estado tomou posse, o Secretário de Interior Dr. Manuel de Carvalho Britto, que era o

responsável pela educação, anunciava a Reforma do ensino para Minas Gerais. 107

Artigo veiculado no Diário Mercantil do dia 15 de Fevereiro de 1913.

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Centrais de Juiz de Fora junto com o movimento higienista, é apenas mais uma etapa que

acrescenta o caminho educacional que esta cidade percorre ao longo de todo o século XX.

Juiz de Fora e os Grupos Escolares

Quando aconteceu na Província de Minas Gerais a reforma de 1906, se objetivava a

instalação de um ensino amplo que pudesse atender uma parte considerável da população

que por muitas vezes aclamava uma qualidade melhor para a educação. Eram por assim

dizer, as bases republicanas se instaurando nos cernes da educação. Juiz de Fora será uma

das primeiras cidades a contar com essa nova proposta para a educação que eram os

Grupos Escolares que tinham como função ressaltar o novo. Tinham que representar uma

reforma material, arquitetônica (dos espaços escolares) e por assim dizer do ensino e da

aprendizagem. Dentre os atores sociais presentes em todo esse processo, destacam-se

Estevam de Oliveira108

, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada109

e José Rangel110

.

Em 04 de fevereiro de 1907, pelo Decreto nº. 1886 era instalado o Primeiro Grupo

Escolar dirigido por José Rangel, contendo em torno de 470 alunos matriculados. O

Segundo Grupo Escolar foi instalado em 23 de março, com 396 alunos. Ambos os grupos

irão ter o número de alunos elevado a entorno de 500, devido a matrículas extra-

regulamentares. A notícia da instalação pode ser observada através do Jornal do

Commercio:

Efetua-se hoje ás 11 horas a solemnidade da instalação do 1º grupo escolar desta

cidade. A esse acto poderão comparecer todos quantos se interessam pelos

assumptos que dizem respeito à instrução, pois não há convites especiais,

conforme nos informa o respectivo director nosso colega José Rangel. (Jornal do

Commercio, 04/02/1907, p.1).

De certa forma, a imprensa divulgava aquilo que, poderia ser o sentimento de

orgulho, por estar fazendo parte de um pioneirismo em Minas Gerais, com a instalação

destes grupos escolares.

108

Estevam de Oliveira era Inspetor de Ensino em Minas Gerais quando os Grupos Escolares começaram a

ser criados no estado em 1906. Era também proprietário do periódico Correio de Minas. 109

Antônio Carlos Ribeiro de Andrada exerceu entre os anos 1908 e 1912 os cargos de Presidente da Câmara

e Agente Executivo do Município de Juiz de Fora. 110

José Rangel, formado na Escola de Farmácia de Ouro Preto, foi diretor da Escola Normal Oficial de Juiz

de Fora e diretor de dois grupos escolares na cidade.

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Somente em 1915, o Primeiro Grupo Escolar passaria a se chamar Grupo José

Rangel, e o Segundo Grupo Escolar seria denominado Delfim Moreira, que por estarem

instalados em um único prédio passariam a ser conhecidos pela denominação Grupos

Centrais. Em 1909, depois de intensas discussões, o Grupo Escolar de Mariano Procópio,

neste referido bairro foi criado. Constava-se que existiam em torno de 300 crianças em

idade escolar nesta localidade de Juiz de Fora, e que necessitavam de um local mais perto

para estudo, do que o Grupo do centro da cidade. Após esse momento, Juiz de Fora fica

com um período de oito anos sem ter um Grupo Escolar novo fundado. Este caso se reverte

em 1917, quando é criado o Grupo Escolar de São Matheus.

Uma análise das condições higiênicas dos Grupos Centrais e de Mariano Procópio.

Os grupos escolares como modelos de escolas nesse momento, deveriam

corresponder a um parâmetro higienista moderno. É importante relacionar este movimento

com as propostas de Estavam de Oliveira uma vez que em seus discursos havia

comentários sobre a qualidade do ensino assim como sua estruturação. Dentre seus

conselhos e normas para uma qualidade higiênica, destaca-se a utilização e conservação do

espaço escolar, assim como adequação de dimensões e da capacidade de alunos nas salas

de aula. A localização e tamanho das janelas e portas, a ventilação, iluminação e mobiliário

a ser utilizado nas salas pelos alunos e professores também ganham ênfase, sempre

justificadas a partir do discurso higienista.

Entretanto o grande diferencial destes grupos deveria ser na proposição de terem

lugares construídos especialmente para a educação escolar. Porém em meio a uma

demanda que deveria ser atendida o mais rápido possível, destaca-se a questão da

instalação dos grupos escolares em prédios originalmente não construídos com a função de

abrigá-los.

Devido ao pequeno tempo entre a promulgação da Lei, em fins de 1906 e o início

da funcionalidade dos Grupos Escolares de Minas Gerais em 1907, caberia ao Estado o

papel de alugar, arrendar ou receber doações de prédios da municipalidade ou particulares,

para estes fins (BRAGA, 2009). Conseqüentemente haveria assim uma adaptação por parte

do Estado para que estes locais abrigassem os Grupos. Mas deixa-se claro que havia

também, projetos de construção de lugares novos, que abrigariam os grupos:

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A Secretaria do Interior tem à sua disposição o engenheiro José Dantas,

incumbido especialmente de todo o serviço relativo à construção e adaptação de

prédios escolares (...). Para a construção desses prédios devem os terrenos ser

escolhidos na parte mais central da localidade, com uma área de 8 a 10 metros

quadrados para cada criança e satisfazer ainda as condições de uma declividade

regular, facilidade da instalação sanitária e alguma distância de outras

construções. (Minas Gerais, 1907, p.35)

Em 1909 algo semelhante vai acontecer. Com a criação do Grupo Escolar de

Mariano, o estabelecimento de ensino inicialmente funciona em um prédio originalmente

não capacitado para receber um grupo escolar. Houve a efetivação do projeto de instalação

do grupo escolar de Mariano Procópio, ficando situado em prédio cedido pelo município

na Rua Bernardo Mascarenhas neste bairro. A princípio era urgente a sua instalação. O

grupo escolar, fixado neste bairro, encontrava-se distante dos grupos centrais. Se um aluno

do bairro Mariano Procópio estudasse na área central, precisava percorrer uma distância de

aproximadamente cinco quilômetros. Ou seja, sua localização beneficiou os moradores do

bairro e sua redondeza.

No caso do Primeiro e do Segundo Grupo Escolar, suas instalações acabaram

sendo adaptadas no que era para ser um palacete. Este foi construído pelo Comendador

Manoel do Valle Amado, em 1861, para presentear o Imperador D. Pedro II que viria a

Juiz de Fora devido à inauguração da Estrada de Ferro União Indústria. O Imperador por

sua vez recusa o presente e aconselha para que o espaço fosse usado para fins de caridade

(COHN, 2007). Entretanto, o prédio fica fechado por mais de quarenta anos, quando

somente em 1904 é doado para a Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, após a morte

do filho do Comendador, o Barão de Santa Mafalda. Ali seria abrigada a primeira Escola

Normal Oficial da cidade. Mas em 1907, após um acordo firmado entre a Santa Casa de

Misericórdia e o Governo do Estado, o local passa a pertencer ao Estado sendo no mesmo

ano a Escola Normal desativada, e a inauguração dos dois grupos escolares. Em relatório

de Estevam de Oliveira à secretaria do interior, o mesmo comenta sobre o edifício em que

funcionou a Escola Normal de Juiz de Fora. Segundo o inspetor, o prédio é vasto

constituído de dois pavimentos, o térreo e o superior, pertence ao patrimônio da Santa

Casa e está “assentado” ao governo do Estado por escritura pública (Relatório a

Secretaria de Instrução, 1907). Porém os Grupos Centrais ganharam este nome não por

qualquer característica. Preenchendo um quesito importante que é o da centralidade, Braga

(2009, p.124) destaca que o prédio em que fora instalado o grupo estava localizado na Rua

Direita - atualmente a movimentada Avenida Barão do Rio Branco, no centro da cidade -

figurando um lugar onde tudo acontecia: Local das confeitarias, dos passeios nas ruas, da

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chegada do trem de ferro na estação central, dos hotéis luxuosos, da passagem dos

bondes, das repartições municipais, enfim, local da maior concentração de pessoas. Era

deste modo, que uma escola instalada e realizada pela República deveria ganhar os olhos

da população, dando certa visibilidade para os projetos realizados pelo governo.

Já o Grupo Escolar de Mariano Procópio, teve seu processo um pouco diferente dos

Grupos Centrais. O prédio que foi cedido para o funcionamento do grupo de Mariano era o

mesmo edifício do antigo conselho distrital de Juiz de Fora. Em sua estrutura, achava-se

em quatros salas. Sua fachada que ficava de frente para a rua apresentava um prédio

simples, longe do modelo de grupo escolar, não tendo muitos detalhes. Mas Braga (2009,

p. 139) ressalta que suas janelas amplas permitiam a boa entrada de ar e iluminação nas

salas, tanto com as janelas abertas quanto com elas fechadas, uma vez que foi utilizado o

vidro. Outro detalhe da fachada é a presença de aberturas para os porões que facilitavam as

adaptações ao terreno com seus desníveis topográficos, arejando o prédio e protegendo seu

piso e assoalho. Ressalta-se que, posteriormente, o grupo recebeu o nome de Antonio

Carlos, em homenagem ao ex- Presidente da Câmara Municipal. Aliás, Antonio Carlos foi

um nome que muito contribuiu para a prosperidade deste grupo.

Ao estudarmos as condições desses grupos, porém, encontramos algumas

diferenças e irregularidades entre um e outro. Com os Grupos Centrais é clara a

preocupação que se tinha para o convívio do aluno e conseqüentemente sua saúde. Mas

balanços feitos pelo próprio diretor José Rangel, apontam que a instalação e

funcionamento do Primeiro e Segundo Grupo Escolar de Juiz de Fora encontraram

dificuldades. Em um relatório, por exemplo, do diretor para a Secretaria do Interior, datado

de 05/02/1907, comenta-se sobre as dificuldades encontradas para a adaptação do prédio,

visto a oposição feita pela Santa Casa de Misericórdia em relação a algumas modificações.

Rangel explica que o grupo foi instalado no prédio onde funcionava a Escola Normal, e

que nele não existiam carteiras suficientes para os alunos, por isso foram utilizadas as que

existiam nas escolas das professoras Maria da Silva Tavares, Sylvia Coutinho e Maria

Goulart, todas as professoras do grupo. Neste mesmo relatório, ainda se discute sobre a

uniformização, em que as professoras inicialmente eram as únicas a usar, entretanto com o

passar do tempo à diretoria conseguiu uniformizar também os alunos, contando com o

auxilio da população para o fornecimento de vestuário e calçados às crianças pobres.

(RANGEL, 1907). Outro problema enfrentado pelo diretor José Rangel foi a freqüência

escolar. Este por diversas vezes reclamou sobre as faltas praticadas pelos alunos, fazendo

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inclusive uma lista das possíveis causas em uma correspondência para a Secretaria do

Interior ressaltando que causas múltiplas e complexas contribuem para que a freqüência

escolar não seja, por enquanto, tão brilhante como fora para desejar. Dentre os motivos

mais destacados por Rangel estão a não obrigatoriedade de ensino, motivo que

desapareceria se nas localidades onde existem escolas em número suficiente, fosse real a

obrigatoriedade; o grande desenvolvimento das indústrias que atraem para suas oficinas os

filhos de proletários ainda em idade escolar; o espírito sectário que condena o ensino leigo,

instituindo os diversos credos, escolas que visam o proselitismo do que a difusão do ensino

consciencioso; a carência da repressão à vadiagem; a falta de compreensão dos pais de que

a freqüência às aulas é condição primordial para o adiantamento dos alunos - assim é que

sob o mais fútil pretexto, por uma simples necessidade de ordem domestica ou por uma

condescendência imperdoável, o aluno deixa de comparecer à classe, muitas vezes com

cumplicidade de seus responsáveis; o fluxo e refluxo de uma população flutuante que

reside parte do ano na cidade e por ocasião das campinas e colheitas transferem-se para as

propriedades agrícolas; e por último a indiferença do povo. (RANGEL, 1907). Para

contornar essa falta de freqüência, o diretor dos grupos escolares toma uma série de

medidas, como exigir dos alunos faltosos, justificativa escrita. Quando a ausência

prolonga-se há mais de dois dias, é enviada uma carta pelo diretor ou é feita uma visita à

residência do aluno por um professor.

Analisando a funcionalidade interna de acordo com o Regimento Interno dos

grupos escolares datado de 1907, os grupos deveriam apresentar para os alunos as devidas

condições higiênicas, assim como locais espaçosos para as aulas, além de uma varanda e

pátio coberto. Chama-se atenção para os artigos três, quatro e cinco deste Regimento:

Art.3º - Em cada sala de aula, numerada pela ordem das turmas de alunos além

do material de ensino, inclusive o quadro negro que deve ter, pelo menos, quatro

metros de comprimento, haverá uma mesa de gaveta com cadeira e estrado para

o professor, um armário fechado para objetos escolares, uma talha ou torneira

d’água potável, um tímpano de mesa e uma cesta para papéis. Na varanda ou

pátio de recreio de cada sexo haverá uma torneira e lavabo com toalha, devendo

esta ser substituída diariamente.

Art.4º - Todos os aposentos do prédio serão varridos à tarde de cada dia, e

lavados aos sábados, com panos umedecidos em água creolinada. Os quadros

negros serão também limpos para o serviço de cada dia.

Art.5º - O prédio escolar será pintado exteriormente e os aposentos serão ao

menos caiados uma vez por ano. (MINAS GERAIS, 1908, p. 5-6)

Nota-se a partir deste trecho, certa preocupação com a higiene dos grupos escolares,

dentre eles manterem a salubridade dos pátios. Em vários relatórios sobre os estados e

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condições dos grupos centrais, por exemplo, encontram-se hábitos de limpeza que

melhoram a estadia dos alunos naquele local, como a constante limpeza do pátio em que os

alunos merendavam. As limpezas se davam com repetidos baldes de água, a fim de fazer

desaparecer o inconveniente do mau cheiro que certamente se desprenderia de tal local se

não fosse tomada essa providência. Ainda aplicava-se o conceito de que seria

indispensável ao prédio residente do grupo escolar a existência de água potável canalizada

– essencial para a vida humana, e a possibilidade de se fazer o assentamento do esgoto para

o serviço sanitário.

O Grupo Escolar de Mariano Procópio, entretanto foi alvo de severas críticas de

inspetores locais. Em algumas visitas realizadas ao prédio, o Inspetor Escolar Raymundo

Tavares alertava para o estado em que se encontrava o grupo. Tavares garante que a

situação deste grupo era de certo modo desesperadora; eram diversos inconvenientes do

edifício provisório, já que em 1913 o prédio original já passava por reformas, solicitado

através de não-condições higiênicas. As salas já não eram tão espaçosas, criando um estado

inconveniente e mostra-se que a diretora era obrigada a gastar com seu próprio dinheiro

uma quantidade considerável de creolina para a limpeza e higiene das salas e banheiros.

Seu pátio, destinado ao recreio, era úmido por natureza e necessitava receber aterramento

com areia grossa para melhor prestar a seu fim. A situação aqui era alarmante. Mesmo

sendo reformado, ainda continuava a se perceber que aquele não era um local ideal para

receber um grupo escolar. O inspetor Antônio Raymundo da Paixão, mesmo reconhecendo

que o Grupo Escolar Antonio Carlos apresentava uma melhor qualidade de higiene, ainda

se preocupava com o tamanho das salas. E estes problemas foram se alarmando quando,

em 1915 o Grupo de Mariano passa por novos problemas. Desta vez em relação às chuvas.

A diretora Francisca Lopes chamou a atenção para esses problemas em correspondência

com o Estado. Mesmo tendo sido reformado em um curto espaço de tempo, os tetos já

apresentavam goteiras e suas paredes começavam a estragar. O pátio, constantemente

estando alagado, era propício a propagação de doença, sendo que certas vezes, a diretora

era obrigada a mandar os alunos de volta para a casa.

Infelizmente, esses problemas persistem durante um bom tempo. Constata-se que

até a década de 1920, o Grupo Escolar Antonio Carlos passou por momentos de

dificuldades, sendo elas de alagamento, rachaduras que ameaçavam o desmoronamento do

prédio, além de propagação de doenças. Mesmo sofrendo alguns reparos, não eram

suficientes para se tornarem permanentes. A situação só foi de fato se resolver, quando a

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partir de 1927, começou a se construir novos prédios para os grupos escolares não só de

Mariano Procópio, como também em São Matheus (atual Escola Estadual Fernando Lobo)

e no Botanágua, onde hoje funciona o Duarte de Abreu. Estes prédios foram inaugurados

apenas em 1929, quando o então presidente do Estado Antonio Carlos veio a Juiz de Fora

para inaugurá-los. Fora assim, um longo percurso para este grupo escolar.

Considerações Finais

Os Grupos Centrais, através do tempo demonstrou o máximo de empenho em tentar

transcorrer o movimento higienista. Pelas mãos do empenhado diretor José Rangel, os

grupos se empenharam em práticas de higiene e salubridade, assim como colocaram a

disposição dos alunos, dentista e médico que através da puericultura tentavam manter o

máximo de alunos com boa qualidade de vida. Fora um processo lento e gradual, mas

acabou por começar a desvincular no ensino alguns aspectos da então escola isolada.

O Grupo de Mariano Procópio, posteriormente “Antônio Carlos” percorreu um

longo caminho. Esteve instalado em um pequeno local, passou por diversas reformas, que

mesmo assim não adiantaram muito. Durante quase duas décadas enfrentou problemas que

vinham atingir diretamente a vida e o cotidiano do aluno. Mas por fim, mesmo que

demorado, o Estado propiciou o local adequado e próprio para que esse grupo escolar

funcionasse.

Segundo pensamento da época, os aspectos de higiene e condições de vivência,

influenciava o desenvolvimento integral da cultura do aluno. Através deste pensamento

possamos interpretar que, os grupos escolares foram de importância fundamental para a

disseminação das práticas que integrariam essa cultura. Seja de forma que o aluno

participasse mais do cotidiano escolar, transmitindo a consciência de se prevenir contra

doenças que afloravam a cidade de Juiz de Fora no início do século XX, pelo simples fato

de realizar as práticas de higiene, ou por lutarem por um ambiente mais adequado de

ensino. Portanto, pode-se perceber que, focar as práticas de higiene e a salubridade desses

grupos, é de certa forma reafirmar as mudanças que permearam na virada do século a

história da educação mineira, e que foram a partir delas, que diversas práticas higienistas se

disseminaram ao longo do século XX.

Referências bibliográficas

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Os Neo-institucionalismos e as Teorias Sociológicas da Ação: um debate teórico-

metodológico.

Felipe Araújo Xavier*

Durante as décadas de 1960 e 1970, principalmente entre os estudiosos norte-

americanos, as discussões teóricas e metodológicas sobre a análise das instituições foram

permeadas pelas perspectivas behavioristas, que focaram as ações individuais como

determinante dos eventos, e pelo “velho institucionalismo” que, descrito sumariamente,

baseou suas interpretações em leituras estruturais, globalizantes e homogêneas. 111

Nos anos de 1970 e 1980, em oposição aos trabalhados produzidos por ambas

correntes citadas acima, emergiram dentro da ciência política e da sociologia novas

abordagens teóricas que se auto-classificaram como “neo-instituicionalismo”.112

Apesar de

terem em comum as análises comparativas e o interesse no entendimento da interferência

das instituições na vida social e política, seus estudiosos não formaram um modelo teórico

homogênio, tendo como representantes três “escolas” denominadas como Institucionalismo

Histórico, Institucionalismo da Escolha Racional e Institucionalismo Sociológico.

Uma das diferenças marcantes entre estas correntes está nas distintas formas de

trabalhar a relação entre as instituições e atores em ação. Portanto, este trabalho tem como

objetivo levantar um debate teórico que resgata a relação entre estas diferentes correntes do

neo-institucionalismo e as teorias da ação. Desta maneira, apresento os diálogos entre: o

Institucionalismo Histórico e as perspectivas de ação comunicativa de Habermas e a de

ação racional de Adam Przewoeski; o Institucionalismo da Escolha Racional e a leitura

weberiana de ação racional apresentada por Boudon; e para finalizar, a relação entre o

Institucionalismo Sociológico e a interpretação de Peter Berger sobre a ação individual e a

construção do mundo social.

O Institucionalismo Histórico: a ação comunicativa e a escolha racional.

* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora na linha

das “Narrativas, Imagens e Sociabilidades”. 111

STEINMO, S. THELEN. K & LONGSTRETH, F. Historical Institutionalism in comparative politics.

In:Structuring politics – historical institutionalism in comparative analisys. n/d. 112

HALL, Peter A; TYLOR, Rosemary C. R. Três versões do neo-instituicionalismo. n/d.

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Além do combate à perspectiva behaviorista, o institucionalismo histórico

desenvolveu-se principalmente como reação às concepção homogênea de grupos políticos

construídas pelo funcionalismo estrutural, que dominou os anos 1960 e 70.113

Em

contrapartida, defendeu a organização institucional da comunidade como a principal

instância de estruturação do comportamento coletivo, contestando a visão que atribui este

posto às características sociais, culturais e psicológicas individuais.114

P. Hall e Taylor ressaltam que os teóricos do institucionalismo histórico tendem a

interpretar as instituições como “procedimentos, protocolos, normas e convenções sociais e

oficiosas inerentes à estrutura organizacional da comunidade política ou da economia

política”115

. Além disso, compartilham quatro características: a tendência de abordar a

relação entre instituição e comportamento dos indivíduos de forma geral; ênfase na leitura

da assimetria de poder; privilegiam a abordagem da trajetória dos períodos de crise

institucional; e a relação entre as instituições e determinados momentos políticos.

Aqui nos interessa a primeira questão levantada: como as instituições afetam o

comportamento dos indivíduos? Para P. Hall Taylor, dentro do institucionalismo histórico

foram utilizadas duas abordagens dessa questão: as perspectivas “culturalista” e

“calculadora”.116

Exatamente nesse ponto que encontro a aproximação do institucionalismo

histórico com os teóricos da ação Jürgen Habermas e Adam Przerworski.

Em seu texto, Relações com o mundo e aspectos da racionalidade da ação em

quatro conceitos sociológicos de ação, Habermas aborda o conceito de ação comunicativa

através de um fio condutor lingüístico, onde este tipo de ação se embasa na interação dos

sujeitos que agem e se comunicam numa relação interpessoal. Os atores buscam se

entender na situação da ação, para coordenar de comum acordo seus planos. 117

O conceito central é a interpretação que se refere à negociação das definições e

situações suscetíveis de consenso. Através deste conceito, o filósofo afirma que somente a

ação comunicativa pressupõe a linguagem como meio de entendimento em que os falantes

e ouvintes se referem ao horizonte pré-interpretado. 118

113

S. Steinmo et al., Structuring Politics. Historical Institutionalism in Comparative Analysis. Cambridge

University Press, 1992. 114

HALL, Peter A; TYLOR, Rosemary C. R. Idem (id.). 115

Idem (id.). 116

Idem (id.). 117

Habermas, J. Teoria de la accion comunicativa. Tomo I Racionalidad de la acción y racionalización social.

Ed Taurus. 1987. 118

Idem (id.).

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Dentro dessas relações comunicativas encontramos como uma espécie de plano de

fundo o mundo da vida, onde estariam imersos a cultura, entendida como um acervo de

saber; a sociedade, definida pelas organizações legitimas onde os participantes regulam

suas propriedades a grupos sociais, assegurando a solidariedade; e a personalidade

entendida como competências que convertem a um sujeito capaz de linguagem e ação, que

os capacita de tomar parte nos processos de entendimento e firmar sua própria identidade,

trazendo a possibilidade de mudança para os quadros cultural e social compartilhados. 119

Tratando da visão “calculadora”, Adam Przerworski teve importante influência

dentro desse debate. Na busca de conciliar as análises marxistas macroestruturais e o

individualismo metodológico, o cientista político apresentou sinais de aproximação com o

viés teórico da escolha racional.

Em seu texto, Marxismo e escolha racional, Przerworski chama atenção para o

desafio de fornecer microfundamentos para a teoria da ação marxista através da

focalização da análise nos atos individuais, em contraposição às visões globalizantes e

homogêneas que permearam as análises institucionais estrutural-funcionalistas. 120

Apesar de frisar o entendimento da busca do cálculo estratégico dos indivíduos na

intenção maximizarem o rendimento das ações para atingir seus objetivos, o cientista

político trabalha a analise das ações individuais dialogando com as tradições marxistas.

lançando as seguintes objeções: as preferências se alteram historicamente; o interesse

próprio é inadequado para caracterizar as preferências; sob certas condições, a ação

racional não é possível, mesmo que os atores sejam racionais.

Perante isto, o cientista político insere a concepção de análise da ação racional no

contexto socioeconômico dos atores ao afirmar que a racionalidade depende do sistema

econômico, chamando atenção para a especificidade da interferência do sistema

capitalismo na moldura das identidades. 121

Desta maneira, as práticas dos atores não partem das determinações estruturais, mas

também não são totalmente livres. As escolhas individuais estão dentro de um campo de

alternativas possíveis, que geram condições para entendermos características

macroestruturais e diferenças entre as distintas classes sociais.

O Institucionalismo da Escolha Racional.

119

Habermas, J. Teoria de la accion comunicativa. Tomo II Racionalidad de la acción y racionalización

social. Ed Taurus. 1987. 120

PRZEWORSKI, Adam. Marxismo e escolha racional. RBCS. N° 6. vol. 5. fev. de 1988. 121

Idem (id.)

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O Institucionalismo da Escolha Racional teve sua origem nos estudos sobre a

complexidade dos comportamentos políticos do Congresso Norte-americano ao analisar o

paradoxo entre a reunião de uma maioria na aprovação das leis e a multiplicidade de

preferências entre os legisladores. Para explicar tal “anomalia”, estudiosos procuraram

decodificar a interferência institucional nas ações dos parlamentares. 122

Segundo P. Hall e Taylor, em geral, quatro propriedades estão presentes nas

análises dessa corrente: o pressuposto que os atores compartilham preferências e se unem

para potencializar as estratégias e satisfazê-las; a vida política sendo composta por uma

série de dilemas na formação de uma ação coletiva; as atitudes dos atores como fruto de

cálculos estratégicos perante as expectativas dos prováveis comportamentos dos outros

atores; e as instituições como atores que estruturam e influenciam as alternativas da agenda

com intuito de potencializar os ganhos dos atores. 123

Entre os estudiosos da escolha racional encontramos como um dos principais

expoentes o sociólogo Raymond Boudon. Em seu livro Tratado de Sociologia, o francês

veio a trabalhar a teoria da ação racional no texto Ação, onde iniciou sua apresentação do

paradigma da Sociologia da ação através das palavras de Max Weber: “A sociologia só

pode ter origem nas ações de um, de alguns ou de numerosos indivíduos distintos. É por

isso que ela é obrigada a adotar métodos estritamente individualistas”124

.

Sendo assim, o sociólogo segue afirmando a existência de dois princípios

primordiais de análises da sociologia da ação. O primeiro seria o individualismo

metodológico, que foca o indivíduo dentro de uma situação de socialização para examinar

o universo social dos grupos. O segundo está ligado à ênfase na pretensão do sociólogo de,

através do principio da racionalidade dos atores, explicar os sentidos dos comportamentos

que dão origem às ações. 125

Explicando melhor estes dois princípios, o sociólogo deixa claro que a socialização

não determina a ação, mas influencia as preferências do sujeito e que para entendermos a

racionalidade dessa ação é necessário nos colocarmos na situação deles. Dessa maneira,

poderíamos obter as informações necessárias para decodificarmos os comportamentos, sem

projetarmos nossas próprias subjetividades. 126

122

HALL, Peter A; TYLOR, Rosemary C. R. Idem (id.). 123

Ibidem (ibid.). 124

BOUDON, Raymond. Tratado de sociologia – Rio de Janeiro. Jorge Zahar ed., 1995. pág. 33. 125

Idem (id.). 126

Idem (id.).

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Tratando do campo de mudança da escala de análise, Boudon chama atenção para

os efeitos de composição, atrelando seu método ao seguinte trajeto: identificar o ator ou a

categoria dos atores; compreender o comportamento dos autores; explicar esses

comportamentos, fazendo um exercício que vai do micro para o macroscópico, captando o

motivo da agregação dos comportamentos individuais. 127

Sendo assim, os efeitos de composição simples assumem formas de soma, onde

todos comportam ou tendem a comportar da mesma maneira, e os efeitos complexos

tomam formas mais elaboradas, sendo necessário o resgate do teorema de possibilidade,

teoria do jogo, teoria da garantia e do dilema do prisioneiro.

Em seu Dicionário Crítico de Sociologia, Boudon aprofunda um pouco mais este

debate sobre ação coletiva ressaltando que a consciência e o interesse comuns são

necessários, mas não são determinantes. Consequentemente frisa outras condições para a

composição das ações coletivas como: a maior probabilidade de ocorrer aderência entre um

número de indivíduos restrito; a influência da coerção na formação das ações coletivas;

assimetria entre os interesses e os recursos dos participantes; grupos latentes fragmentados,

onde ação se dá em cada fragmento; organização exógena; lealdade; e situações em que os

custos da participação são nulos ou onde não há nada a perder. 128

Neste mesmo dicionário o autor também trabalha o conceito de agregação como

uma questão fundamental para analisar a relação entre as ações e preferências individuais e

os efeitos coletivos que produzem. Para isto Boudon trabalha o fenômeno da segregação

como fruto das preferências explícitas, implícitas e das preferências por afinidade, sendo

que a terceira se diferencia das outras duas definições, já que nas primeiras o efeito

coletivo traduz as predileções dos atores e a terceira o efeito coletivo tem caráter

emergente em relação às preferências.

Assim, o conceito efeito de agregação é descrito como categoria que apresenta a

realidade em um método que permite explicar fenômenos estruturais que não podem ser

interpretados como produto direto das preferências dos atores.

Institucionalismo sociológico

127

Ibidem (ibid.). 128

BOUDON; Raymond. BOURRICAUD; François. Dicionário crítico de sociologia. Editora Ática S.A. São

Paulo, 1993.

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Na década de 1970, dentro da Sociologia, emergiu o institucionalismo sociológico,

que pautou suas abordagens nos âmbitos das práticas culturais que permeavam a

estruturação das instituições, combatendo a idéia de que estas organizações sempre seguem

uma racionalidade em busca da maximização de seu desempenho para atingir os objetivos.

129

Para Peter Hall e Taylor, o institucionalismo sociológico desenvolveu uma maneira

específica de análise, onde se destacaram as seguintes características: a definição das

instituições de maneira mais global do que a ciência política, levando em consideração

símbolos, padrões morais, modelos cognitivos, rompendo com a dicotomia “instituição” e

“cultura”; e o afrontamento da relação entre a ação individual e as instituições numa

perspectiva “culturalista”.130

Dentro desta abordagem, constato a influência da perspectiva do contrutivismo

social onde Peter Berger é um dos principais teórico. em suas obras A construção social da

realidade131

e O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião132

, o

cientista social norte-americano se ocupou em construir uma leitura que foca as ações dos

indivíduos dentro de uma realidade social, vendo o mundo como produto humano que

retroage constantemente sobre seu produtor.

Para sustentar tal declaração, P. Berger segue apresentando três categorias, que

ajudariam no entendimento dessa construção dialética da realidade. Sumariamente seriam:

exteriorização entendida como “efusão do ser sobre o mundo”; objetivação: “conquista por

parte dos produtos dessa atividade (física e mental) de uma realidade que se defronta com

os seus produtores originais como faticidade exterior e distinta”; interiorização: “é a

reapropriação dessa mesma realidade por parte dos homens, transformando-a novamente

de estruturas do mundo objetivo em estruturas de consciência subjetiva”. 133

Para entendermos o complexo processo de construção da realidade social, temos

que resgatar a interação dialética dessas categorias. Sendo assim, iniciando pela

exteriorização, o sociólogo assegura que o homem é exteriorizante por essência. Pois

carece de instintos especializados, dirigidos e determinados naturalmente, como os demais

129

HALL, Peter A; TYLOR, Rosemary C. R. Idem (id.). 130

Idem (id.). 131

BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas:A construção social da realidade:tratado de sociologia do

conhecimento. Rio de Janeiro, ed. Vozes, 1978, 4° ed. 247 pp. 132

BERGER; Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Tradução: José

Carlos Barcellos. Revisão: Luiz Roberto Benedetti. Ed. Paulus. São Paulo, 1985. 133

Idem (id.).

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animais, necessitando assim de constituir estruturas sólidas, para instaurar uma estabilidade

à vida humana.

Sem uma relação pré-estabelecida com a natureza, o homem precisa produzir um

mundo social e colocá-lo em equilíbrio com consigo, onde este mundo torna-se,

dialeticamente, como já dito acima, invenção humana e logo elaborador deste mesmo

homem produtor.134

Este mundo socialmente construído pela exteriorização do homem seria o que

Berger conceitua de cultura, ou seja, a totalidade dos produtos do homem, materiais ou

não. Conseqüentemente, dentro da parcela imaterial da cultura encontra-se a sociedade,

que, na visão do sociólogo, seria fragmento privilegiado dela, já que os homens são

sociáveis por essência e a construção deste mundo, uma atividade coletiva. Deste modo, a

sociedade não só é resultado da cultura, mas também condição necessária dela, pois é em

seu interior que se estrutura, distribui e organiza a sua construção.135

Nesse processo de composição social da cultura, o homem constrói objetos,

materiais ou não, dos quais podem ser experimentados e aprendidos. De tal modo, esta

transformação dos produtos do homem em um mundo que estes atores confrontam fora de

sua subjetividade, seria o que o sociólogo define como objetivação. 136

Na visão de Berger, para que isso ocorra, seria necessário um reconhecimento

coletivo de uma dada realidade objetiva, pois limitada à consciência individual, não

existiriam nas consciências dos demais sujeitos sociais. Por isto, inserir-se numa cultura é

compartilhar de um mundo de objetividades, e a sociedade, como parcela da cultura, só é

organizada, ou seja, objetivada, se imposta à relutância coletiva. 137

Contudo, dando uma ênfase à ação dos atores e à constituição de uma leitura de

realidade social em movimento, Berger explora a capacidade re-significação dos produtos

culturais, por meio da interpretação subjetiva dos indivíduos. Para isto, o sociólogo utiliza

a categoria de interiorização entendida como a “reabsorção na consciência do mundo

objetivado de tal maneira que as estruturas deste mundo vêm a determinar as estruturas

subjetivas da própria consciência”138

. Além disto, descreve o processo de socialização,

remetendo à função normativa da sociedade em relação à consciência individual.

134

Idem (id.). 135

Ibidem (ibid.). 136

Idem (id.). 137

Idem (id.). 138

Idem (id.).

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Contudo, essa socialização apenas atingiria êxito ao constituir uma simetria entre o

mundo objetivo e o mundo subjetivo.139

E como Berger deixa explicito, essa harmonia

nunca poderia ser concluída, pois os indivíduos se apropriam ativamente do mundo

objetivado por meio de uma contínua conversação com a realidade social e, neste contexto,

os sujeitos estão ininterruptamente re-significando esse mundo objetivado, do qual

necessita de plausibilidade subjetiva para se manter. 140

Deste modo, quando a conversação com o mundo objetivo é rompida, o status de

realidade social objetivada, em voga, perde sua plausibilidade. Com isso o mundo objetivo

se coloca em reordenação que, por conseguinte, geraria um novo entendimento da

realidade socialmente construída. 141

Visto isto, o sociólogo deixa afirmar que o processo de interiorização é entendido

numa dialética que inclui momentos da exteriorização e objetivação, já que o indivíduo é

formado na continua conversação em que é participante ou exteriorizante, e o mundo

objetivo é apropriado ativamente por ele. Conseqüentemente, enxergamos que as estruturas

sociais e o processo ordenador do mundo se perdem em meio do precário processo

solidificador de seu mundo ou de sua segunda natureza, da qual Peter Berger chamaria de

cultura.

Conclusão

Como vemos, apesar das afinidades e similaridades, os neo-institucionalismos

alimentam diferenças nas bases teóricas que solidificam seus trabalhos. Tais informações

sobre a relação entre o institucionalismo histórico e as perspectivas de ação comunicativa e

ação racional, o institucionalismo da escolha racional e a leitura weberiana de ação

racional e o institucionalismo sociológico e a visão construtivista são essenciais para

entendermos o cerne das diferentes perspectivas do neo institucionalismo e seus

pressupostos teóricos que dão vivacidade ao empirismo das suas análises baseadas na

concretudo dos atores em ação.

Referências bibliográficas

139

Idem (id.). 140

Idem (id.) . 141

Idem (id.).

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BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas:A construção social da realidade:tratado de

sociologia do conhecimento. Rio de Janeiro, ed. Vozes, 1978, 4° ed. 247 pp.

BERGER; Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião.

Tradução: José Carlos Barcellos. Revisão: Luiz Roberto Benedetti. Ed. Paulus. São Paulo,

1985.

BOUDON, Raymond. Tratado de sociologia – Rio de Janeiro. Jorge Zahar ed., 1995.

BOUDON; Raymond. BOURRICAUD; François. Dicionário crítico de sociologia. Editora

Ática S.A. São Paulo, 1993.

HABERMAS, J. Racionalidad de la acción y racionalización social. Ed Taurus. 1987.

HALL, Peter A; TYLOR, Rosemary C. R. Três versões do neo-instituicionalismo. n/d.

PRZEWORSKI, Adam. Marxismo e escolha racional. RBCS. N° 6. vol. 5. fev. de 1988.

STEINMO, S. THELEN. K & LONGSTRETH, F. Historical Institutionalism in

comparative politics. In:Structuring politics – historical institutionalism in comparative

analisys. n/d.

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Um Conflito de Difícil Solução: a atuação diplomática do ministro dos Negócios

Estrangeiros Silvestre Pinheiro Ferreira na questão da Cisplatina (1821-1823).

Sandra Rinco Dutra*

A região do Rio da Prata era “uma área de interseção entre as possessões ibéricas

na América com características homogêneas”, amplamente povoada e, por isso, com uma

estreiteza de relações entre os colonos de ambas as Coroas. Contudo, no início de 1680,

com a fundação da Colônia do Sacramento – “o primeiro núcleo urbano e de povoamento

efetivo na costa da Banda Oriental”142

–, em uma estratégia do governo português para

garantir a integridade do seu território, os conflitos tornaram-se recorrentes, e o domínio

desta obedeceu ao estado das relações entre Portugal e Espanha, conduzindo-se “em uma

sucessão de guerras e acordos”, que, a partir de finais do século XVIII, teve sua situação

agravada diante dos desdobramentos da Revolução Francesa, e, nesse sentido, dos

caminhos diplomáticos seguidos por um e por outro.143

Além disso, a perspectiva de

controle de tal região foi sendo cada vez mais aventada, não só com a intenção de agregar

aquele promissor entreposto comercial aos domínios do Império português, mas,

sobretudo, como um modo de retaliação contra a perfídia e as capciosas pretensões

espanholas.144

Isso porque, a partir do século XVIII, a região do Prata gradualmente

intensificou o seu comércio, dentro da lei ou à margem dela, e o contrabando com o Brasil

tornou-se uma “das bases da economia rural de toda a Província Oriental”. E o principal

ponto de escoamento dessas mercadorias era o Rio Grande de São Pedro, a capitania em

todo o Brasil “mais suscetível às trocas com a América espanhola, dado o seu caráter de

fronteira povoada”.145

* Doutoranda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela Prof.ª Dr.ª

Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de

Janeiro (FAPERJ). E-mail: [email protected]. 142

SANTOS, Eugénio Francisco dos. A Presença Portuguesa na Região Platina. In: Colóquio Internacional

Território e Povoamento: a presença portuguesa na região platina, 2004, Colônia do Sacramento. Colóquio

Internacional Território e Povoamento: a presença portuguesa na Região Platina. Colônia do Sacramento:

Instituto Camões, 2004. 143

PIMENTA, João Paulo G. Estado e Nação no Fim dos Impérios Ibéricos no Prata (1808-1828). 2ª ed. São

Paulo: Hucitec, 2006, pp. 58-56. 144

LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império. Portugal e Brasil: bastidores da política

(1798-1822). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, pp. 108-9. 145

PIMENTA, João Paulo G. O Brasil e a América Espanhola (1808-1822). Doutoramento. São Paulo: USP,

2003, pp. 35-8 passim.

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Nesse turbulento período, muitos foram aqueles que se empenharam para reverter

as dificuldades enfrentadas pela Monarquia portuguesa. Dentre eles está Silvestre Pinheiro

Ferreira. Chegando ao Brasil em 1809, diante da sua lastimável condição econômica e dos

vetos, pelo ministério, as suas pretensões de obtenção de cargos, foi obrigado a abandonar

seus anseios de dar seguimento ao trabalho diplomático desempenhado anteriormente na

Corte de Berlim e suplicar diretamente ao príncipe regente um posto qualquer na

burocracia do Estado, que somente obteve em 1811, como deputado da Real Junta do

Comércio. Apesar das conquistas e do reconhecimento que foram alcançados ao longo do

período em que permaneceu no Rio de Janeiro (até 1821), não foram poucas as vezes que

Pinheiro Ferreira teve que lidar com questões cruciais, que também o proporcionaram,

dessa forma, muitos dissabores e desafetos na Corte fluminense. E, sem dúvida, a situação

mais difícil que se envolveu foi de cunho diplomático, e será um dos temas mais

fortemente discutido por ele à frente do ministério dos Negócios Estrangeiros e da Guerra,

a partir de 1821: a questão da Cisplatina, uma questão de muitas nuances, personagens e

interesses.

A queda de Napoleão e a volta de Fernando VII ao trono espanhol em 1814 (e com

ele a restituição das tendências absolutistas, com a recusa da constituição de Cádiz e as

efêmeras tentativas da retomada dos territórios americanos), propiciaram um relativo grau

de tranquilidade ao governo do Rio de Janeiro, mas este nunca se deu de forma concreta.

Segundo João Paulo G. Pimenta, após o restabelecimento da ordem europeia, o estado

decadente das Monarquias ibéricas, principalmente pela crise de relações com suas partes

constitutivas, “inviabilizará um rearranjo de poderes que, assentando exclusivamente em

solidariedades calcadas nos tradicionais valores dinásticos, ignorasse a concretização de

novas e alternativas formas políticas que agora tinham seu epicentro na América”. É por

esse motivo que a coroa portuguesa não deixou de negociar com o governo revolucionário

de Buenos Aires, atitude vista aos olhos da Espanha com extrema desconfiança.146

Além

desses fatores, o reavivamento do conflito entre Buenos Aires e Montevidéu alimentou as

aspirações de uma nova possibilidade de ação invasiva portuguesa na região platina. Para

tal, se pautaria na justificativa de resguardar a integridade das fronteiras.147

A partir de 1816, as pretensões lusitanas de adquirir influência na região já não

pareciam tão complexas frente ao movimento artiguista, dominante desde o ano anterior,

pelo seu desgaste, não resistindo, por fim, ao confronto com as tropas portuguesas, que

146

PIMENTA, João Paulo G., “O Brasil e a América...”, op. cit., pp. 174-5. 147

Ibidem, p. 197.

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invadiram novamente a Banda Oriental em 1817 (uma primeira investida lusa já havia

ocorrido em 1811), e definitivamente o extinguiram e a sua influência, em 22 de janeiro de

1820, na batalha de Tacuarembó.148

Com o advento da Revolução do Porto, em agosto de 1820, o governo português foi

obrigado a se voltar para novos problemas, agora de ordem interna. À medida que a

situação se agravava, mais aumentava a instabilidade política da Coroa, resultando no

movimento Constitucionalista do Rio de Janeiro, de 26 de fevereiro de 1821. No novo

ministério organizado em meio à agitação no Largo do Rocio, Silvestre Pinheiro Ferreira

foi nomeado para assumir as pastas ministeriais dos Negócios Estrangeiros e da Guerra.

Seu grande desafio à frente do ministério, como dito, será a questão da Cisplatina,

que, em suas próprias palavras, era “um dos assuntos mais importantes da minha

Repartição”.149

Mas essa não seria a primeira vez que Pinheiro Ferreira estaria envolvido

nesta matéria. Nove anos antes, em 1812, ele havia sido designado para negociar um

armistício com a República de Buenos Aires, que na ocasião estava em conflito com

Montevidéu. Contudo, prevendo o grande perigo em tratar com um governo insurgente e o

provável fracasso de tal empreitada recusou a missão. Devido a essa posição, ele enfrentou

a indignação do conde das Galveias (ministro dos Estrangeiros no período) e recebeu uma

ordem de prisão e exílio na Ilha da Madeira, que quase chegou a ser consumada a não ser

pelo fato de ter sido perdoado momentos antes da partida, quando já se encontrava a bordo

do navio.150

Em 1821, conforme nos explica Garrido Pimenta, a dificuldade de chegar-se a

consensos nesse período inseria a Cisplatina em um campo de grande complexidade, pois,

apesar de existirem algumas possibilidades para a resolução do caso, a melhor opção seria

a que tivesse menos consequências futuras, mas conjeturar não era tarefa fácil. Isso quer

dizer que, por um lado, diante do quadro que se encontrava, era conveniente que a

ocupação se tornasse permanente; mas, por outro, ela “representava uma realidade

incômoda ao regime constitucionalista português, além de ameaçar seriamente a segurança

do Brasil agora destituído da condição de sede da monarquia”.151

148

PIMENTA, João Paulo G., “O Brasil e a América...”, op. cit., pp. 204-6. 149

“Carta a Felipe Ferreira de Araújo e Castro expondo seus pontos de vista contrários à ocupação da

província Oriental”. Rio de Janeiro – abr. 1821. Revista del Instituto Historico y Geografico del Uruguay.

Tomo XII. Montevidéu, 1936, p. 163. 150

PEREIRA, José Esteves. Silvestre Pinheiro Ferreira: o seu pensamento político. Coimbra: Universidade

de Coimbra, 1974, pp. 17-18. 151

PIMENTA, João Paulo G. “O Brasil e a América...”, op. cit., pp. 340-1.

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Silvestre Pinheiro Ferreira era de opinião que as tropas portuguesas se retirassem

e fosse reconhecida a independência da Província Oriental. Entretanto, isso devia ser feito

como uma opção daqueles povos e não por imposição, caso contrário a retirada repentina

do controle português poderia ser encarada como um sinal de fraqueza monárquica. Essa

também era a concepção das Cortes de Lisboa. Diante do impasse, propunha o ministro dos

Estrangeiros a realização de uma convenção – a Assembleia dos Povos Orientais – aos

moldes das Cortes portuguesas, em que alguns representantes nomeados popularmente

decidiriam sobre o seu destino: continuar a Província Oriental sob a competência da coroa

lusitana, ou sob a competência de algum outro governo circunvizinho, ou, ainda, ter

reconhecida a sua independência. Aqui, é importante salientar que a ideia do congresso já

havia sido aventada por Pinheiro Ferreira em 1812, contudo, o conde das Galveias não

conferiu o menor crédito.

Em 16 de abril de 1821, quase dois meses após sua nomeação ao ministério,

finalmente ele conseguiu levar o assunto à deliberação no Paço. Conforme ele próprio

relatou, as justificativas da sua posição em relação aos entraves na fronteira-sul renderam-

lhe a aprovação unânime da sua proposta. Segundo ele, a presença das tropas na Província

Oriental, mesmo após o armistício com Buenos Aires, era um fator extremamente

prejudicial, por ser muito onerosa aos cofres reais que já não podiam mais arcar com as

perdas, e muito menos esperar por compensações. Além disso, a agitação, os desgostos, “a

devassidão e o mal exemplo” da Divisão dos Voluntários Reais havia chegado a tal ponto

que era provável que alcançasse um nível permanente de corrupção e a situação ficasse

ainda pior com os países vizinhos, ao passo que a falta de uma resolução sobre o assunto

por parte de D. João VI, ao chegar à Europa, resultaria em ainda mais difíceis negociações

com a Espanha. Outro ponto discutido por Pinheiro Ferreira foi a questão da organização

administrativa da Banda Oriental, caso ela se unisse ao Brasil. Ele acreditava que “decretar

S. M. a união ao Reino do Brasil e dar-lhe a forma de província dele organizando a sua

administração, magistratura, clero e força militar de uma maneira análoga às demais

províncias”, não poderia ser feito nem antes da iminente partida do rei, nem mesmo depois,

pois mesmo que fosse realizado da melhor forma possível, ainda sim não funcionariam,

uma vez que a tropa da província “jamais [poderia ser] tropa portuguesa”, muito menos o

corpo eclesiástico, os magistrados e os administradores; “e ainda mais que eles, os povos

jamais se poderão amoldar as nossas leis civis, criminais e de fazenda”. Nesse caso, ele

alerta que se o Brasil encontrava dificuldades para manter unidas suas próprias províncias

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– dá como exemplo a Bahia –, “o que se pode esperar de uma província que fosse anexada

a este reino por força de um decreto?”.152

Diante disso, Silvestre Pinheiro enviou ao Rio da Prata o emissário João Manuel

de Figueiredo, encarregado de duas missões: transmitir o reconhecimento, por parte do

governo português, da independência das províncias daquela região, de modo a estabelecer

a abertura, “de governo a governo, [de] todas as relações assim políticas, como comerciais

que o Direito das Gentes tem admitido entre as nações” – tudo muito bem disposto em um

ofício para o governador de Buenos Aires –; e também entregar as devidas instruções para

que o barão da Laguna concedesse a independência da Província Oriental, por meio da

formação de Assembleias Eleitorais para a escolha dos representantes do congresso.153

Ao analisar a atuação de Silvestre Pinheiro diante da questão, João Paulo G.

Pimenta afirma que o ministro teve uma boa percepção da realidade da conjuntura na

região do Prata, a qual “a união da Província Oriental ao Brasil encontraria sempre

obstáculos intransponíveis”, apesar do que reportava o barão da Laguna à Corte. Isso quer

dizer que se a posição oficial do governo sinalizava no sentido de conceder a

independência à província, Lecor pressionaria para que o congresso votasse a favor da

união ao Brasil.154

Para garantir que a Assembleia dos Povos Orientais deliberasse favoravelmente

pela incorporação, o general “subverteu as instruções recebidas de Silvestre Pinheiro,

ignorando as diretrizes de proporcionalidade de representantes por cada parte da Província

e de livre escolha dos mesmos pela população”. Isso quer dizer que, na prática, ele

manipulou a escolha da representação do congresso, de modo que quatorze dos dezoito

representantes eram partidários dos propósitos pretendidos pelo barão da Laguna. O

resultado disso foi a tão ambicionada adesão da Província Oriental ao Império do Brasil,

agora renomeada como Província Cisplatina, em 18 de julho de 1821.155

Quando Pinheiro Ferreira escreveu em abril mencionando “certos indivíduos

erigindo-se em interpretes da vontade” que “afiançam sobre sua palavra e só porque eles

assim entendem que conviria”, é bem provável que estivesse se referindo também ao barão

152

“Carta a Felipe Ferreira de Araújo...”, op. cit., pp. 163-5. 153

“Observações para o senhor João Manuel de Figueiredo na comissão, com que parte desta Corte, de

agente junto ao governo de Buenos Aires, e mais províncias do Rio da Prata”. Rio de Janeiro – 16 abr. 1821.

Correspondências de personalidades da época. Arquivo Histórico do Itamaraty. Loc.: Lata 172 / Maço 3 /

Pasta 11. 154

A decisão da incorporação se deu em 18 de julho, contudo, os trabalhos do congresso perduraram de 15 a

8 de agosto. – PIMENTA, João Paulo G. “O Brasil e a América...”, op. cit., pp. 343-7 passim. 155

PIMENTA, João Paulo G. “O Brasil e a América...”, op. cit., pp. 347.

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da Laguna. O ministro dos Estrangeiros não estava totalmente apartado da movimentação

na Cisplatina, ele tinha algum conhecimento das intenções de Lecor. Dois dias antes da

convenção, João Manuel Figueiredo comunicava-o um certo clima de segredo por parte do

general. O emissário reportou estar impedido de deixar Montevidéu em direção a Buenos

Aires devido à excessiva delonga de Lecor em providenciar-lhe uma embarcação – com a

justificativa de primeiramente realizar os ajustes determinados pelo soberano quanto à

Província Oriental –, responsabilizando-o, assim, por todo e qualquer eventual desgaste

proveniente dessa falha “com os governos das províncias limítrofes”. O representante

português somente chegou a Buenos Aires no dia 23 de julho, e obteve muito bom êxito na

sua missão, uma vez que o governo portenho, naquele momento, viu com bons olhos a

investida do monarca – agora de volta a Portugal – apesar da comoção naquela província

em razão do resultado da Assembleia dos Povos Orientais.156

Quando, em Lisboa, Silvestre Pinheiro recebeu notícias sobre o resultado do

congresso, imediatamente enviou um ofício ao barão da Laguna exigindo esclarecimentos

e informações de tudo quanto havia se passado na província platina desde o recebimento

das instruções, em 16 de abril. Indignado, ao obter do ministro dos Negócios do Reino do

Brasil “um exemplar impresso do Ato de Incorporação da Província Oriental do Rio da

Prata ao Reino do Brasil”, foi constrangido a crer nos boatos sobre uma possível

manipulação na composição do congresso e consequente resultado – uma vez que tal união

era uma suposição remota –, contrariando as ordens reais e causando um enorme embaraço

ao governo português, visto como dúbio e mal intencionado, principalmente pela Espanha.

Diante disso, requeria sem demora um pormenorizado ofício sobre todos os

acontecimentos em Montevidéu, no sentido de refrear tais rumores, ou, na melhor das

hipóteses, contornar os prejuízos.157

Ao observar o documento acima de Pinheiro Ferreira, notamos que Lecor não

apenas forjou a eleição, mas também protelou ao máximo em informar a Corte lisboeta os

efeitos das suas ações – Silvestre Pinheiro somente teve acesso ao Ato de Incorporação

pela interceptação da correspondência do barão da Laguna pelo governo regencial do

Brasil, e esta foi enviada ao Reino pelo conde dos Arcos. Mas a atitude do general estava

prestes a ter consequências muito mais grave. Com a volta de D. João VI para a Europa,

156

“Correspondência expedida de João Manuel de Figueiredo para Silvestre Pinheiro Ferreira”. Rio de

Janeiro – 8 ago. 1821. Correspondências de personalidades da época. Arquivo Histórico do Itamaraty. Loc.:

Lata 172 / Maço 3 / Pasta 22. 157

“Documentos relativos à Cisplatina (1821-23)”. Lisboa – 22 nov. 1821. Biblioteca Nacional do Rio de

Janeiro. Divisão de Manuscritos. Loc.: I-32, 22, 012.

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tiveram início tentativas de uma reaproximação com a Espanha. Naturalmente, os

acontecimentos na Província da Cisplatina repercutiram também naquele país, e a

possibilidade de uma tentativa de usurpação do território estremecia ainda mais as

complexas relações na Península Ibérica. E foi justamente isso o que reportou ao governo

lusitano, em 20 de novembro, seu representante em Madri, Manuel de Castro Pereira.

Segundo o agente português, as negociações em curso do novo tratado de comércio e

aliança entre Portugal e Espanha teriam sido gravemente prejudicadas pelas notícias “que o

governo de S. M. C. recebeu dos sucessos de Montevidéu e do reconhecimento público da

independência de Buenos Aires”, e afrouxado novamente os laços de amizade e a

confiança que estavam em processo de restabelecimento.158

Essa ocorrência levou Pinheiro

Ferreira, em 3 de dezembro, a repreender duramente Lecor por suas atitudes

insubordinadas, pela falta de informações oficiais, inexistentes na Corte portuguesa até

aquele momento e, principalmente, pela perda nas relações diplomáticas com a Espanha,

“uma potência com quem hoje mais [do] que nunca nos importa manter a mais leal e

estreita amizade”, conforme justificava o ministro dos Estrangeiros.159

Já o tratado de “recíproca defesa” aventado entre Portugal e Espanha, não chegou

a ser referendado, conforme nos explica Maria Luiza Coelho, devido à falta de

entendimento entre os países, fundamentalmente, pela questão da Cisplatina. De toda

forma, a inviabilidade de negociações – seja na Europa seja na América – tornou-se uma

constante com a reação antiliberal que se disseminava pela Europa, frustrando as tentativas

de defesa da instituição constitucional.160

Não tendo mais poder de ação, Pinheiro Ferreira

pediu demissão do ministério, em maio de 1823, mas manteve as honras do cargo.

Quanto a Província Cisplatina, com a independência do Brasil, esta se dividiu em

duas vertentes: a primeira, dos chamados imperiais, era formada pelos que defendiam a

continuação da união ao Brasil, sob o comando do general Lecor; a segunda, dos lusitanos,

apoiavam ficar sob a égide do governo português, com o brigadeiro Álvaro da Costa de

Souza Macedo no comando das tropas. Em fevereiro de 1824, os portugueses acabam

deixando a Província Oriental e o conflito. Contudo, a saída dos grupamentos lusos da

região debilitou os contingentes de ocupação, o que inevitavelmente levou à intensificação

158

“Correspondência expedida de Manuel de Castro Pereira para Silvestre Pinheiro Ferreira”. Madri – 20

nov. 1821. Correspondências de personalidades da época. Arquivo Histórico do Itamaraty. Loc.: Lata 172 /

Maço 3 / Pasta 4. 159

“Documentos referentes à Província Cisplatina”. Lisboa – 3 dez. 1821. Arquivo Nacional do Rio de

Janeiro. Loc.: Códice 546, vol. 1 / Diversos códices / NP. 160

COELHO, Maria Luiz R. C. A Filosofia de Silvestre Pinheiro Ferreira. Braga: Livraria Cruz, 1958, p. 35.

Anais do III Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade

Federal de Juiz de Fora.

ISSN: 2317-045X

28 de novembro a 2 de dezembro de 2011

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do movimento em prol da autonomia da Cisplatina, que no ano seguinte rebelou-se. Além

dessa sublevação, ainda Buenos Aires enxergou a possibilidade de conseguir a posse do

território a tanto tempo almejado.161

Assim, em dezembro de 1825, Brasil e Argentina declararam formalmente guerra.

Entretanto, como nos explica Garrido Pimenta, a ação beligerante foi extremamente

prejudicial e custosa para ambos os Estados, pois acarretaram uma grave crise financeira e

política. No Brasil, “a impopularidade do conflito fazia crescer a oposição ao imperador,

revelando a fragilidade política do regime”. Na Argentina, os conflitos entre federalistas e

unitários se intensificaram, e a ascensão do federalismo, mesmo que de um tipo peculiar,

dava fim a mais uma tentativa de anexação do território platino. O conflito terminou sem

nenhum vencedor, com a assinatura do tratado de paz em agosto de 1828, e a criação da

República Oriental do Uruguai162

.

Referências bibliográficas

- Documentação manuscrita

“Carta a Felipe Ferreira de Araújo e Castro expondo seus pontos de vista contrários à

ocupação da província Oriental”. Rio de Janeiro – abr. 1821. Revista del Instituto Historico

y Geografico del Uruguay. Tomo XII. Montevidéu, 1936.

“Correspondência expedida de João Manuel de Figueiredo para Silvestre Pinheiro

Ferreira”. Rio de Janeiro – 8 ago. 1821. Correspondências de personalidades da época.

Arquivo Histórico do Itamaraty. Loc.: Lata 172 / Maço 3 / Pasta 22.

“Correspondência expedida de Manuel de Castro Pereira para Silvestre Pinheiro Ferreira”.

Madri – 20 nov. 1821. Correspondências de personalidades da época. Arquivo Histórico do

Itamaraty. Loc.: Lata 172 / Maço 3 / Pasta 4.

“Documentos relativos à Cisplatina (1821-23)”. Lisboa – 22 nov. 1821. Biblioteca

Nacional do Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos. Loc.: I-32, 22, 012.

“Documentos referentes à Província Cisplatina”. Lisboa – 3 dez. 1821. Arquivo Nacional

do Rio de Janeiro. Loc.: Códice 546, vol. 1 / Diversos códices / NP.

161

GOLIN, Tau. A Fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o

Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002, p.332. 162

PIMENTA, João Paulo G. “Estado e Nação no Fim dos Impérios...”, op. cit., pp. 247-9.

Anais do III Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade

Federal de Juiz de Fora.

ISSN: 2317-045X

28 de novembro a 2 de dezembro de 2011

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“Observações para o senhor João Manuel de Figueiredo na comissão, com que parte desta

Corte, de agente junto ao governo de Buenos Aires, e mais províncias do Rio da Prata”.

Rio de Janeiro – 16 abr. 1821. Correspondências de personalidades da época. Arquivo

Histórico do Itamaraty. Loc.: Lata 172 / Maço 3 / Pasta 11.

- Bibliografia

COELHO, Maria Luiz R. C. A Filosofia de Silvestre Pinheiro Ferreira. Braga: Livraria

Cruz, 1958.

GOLIN, Tau. A Fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do

Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002.

LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império: Portugal e Brasil:

bastidores da política (1798-1822). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994.

PEREIRA, José Esteves. Silvestre Pinheiro Ferreira: o seu pensamento político. Coimbra:

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PIMENTA, João Paulo G. Estado e Nação no Fim dos Impérios Ibéricos no Prata (1808-

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Colônia do Sacramento. Colóquio Internacional Território e Povoamento: a presença

portuguesa na Região Platina. Colônia do Sacramento: Instituto Camões, 2004.