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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Instituto de Cincias Humanas e Filosofia
Departamento de Histria
Programa de Ps Graduao em Histria
PEDRO PARGA RODRIGUES
AS FRAES DA CLASSE SENHORIAL E A LEI HIPOTECRIA DE 1864
Niteri,
2014
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PEDRO PARGA RODRIGUES
AS FRAES DA CLASSE SENHORIAL E A LEI HIPOTECRIA DE 1864
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Histria da Universidade
Federal Fluminense, como parte dos requisitos
necessrios para a obteno do ttulo de Doutor
em Histria Social.
Setor Temtico: Histria Contempornea I.
Orientadora: Prof. Dr. Mrcia Maria Menendes Motta
Niteri,
2014
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Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
R696 Rodrigues, Pedro Parga.
As fraes da classe senhorial e a lei hipotecria de 1864 / Pedro
Parga Rodrigues. 2014.
210 f.
Orientador: Mrcia Maria Menendes Motta.
Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Cincias Humanas e Filosofia. Departamento de Histria, 2014.
Bibliografia: f. 197-210.
1. Propriedade. 2. Estado. 3. Lei Hipotecria de 1864. 4. Alienao.
5. Direito. 6. Classe alta. 7. Tradio. 8. Brasil. 9. Imprio, 1822-1889.
I. Motta, Mrcia Maria Menendes. II. Universidade Federal
Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.
CDD 346.8104
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PEDRO PARGA RODRIGUES
AS FRAES DA CLASSE SENHORIAL E A LEI IPOTECRIA
DE 1864
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Histria do Instituto de Cincias Humanas e Filosofia
da Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Histria.
Aprovada em 4 de agosto de 2014.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Prof. Dr. Marcia Maria Menendes Motta (Orientadora)
Universidade Federal Fluminense
______________________________________________
Prof. Dr. Lus Fernando Saraiva
Universidade Federal Fluminense
______________________________________________
Prof. Dr. Marina Monteiro Machado
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
______________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Henrique Salles
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
______________________________________________
Prof. Dr. Carmen Margarida Oliveira Alveal
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
______________________________________________
Prof. Dr. Vania Maria Losada Moreira (suplente)
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
______________________________________________
Prof. Dr. Theo Lobarinhas (suplente)
Universidade Federal Fluminense
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Aos meus sobrinhos,
Isabel e Miguel!
Em memria da minha av,
Nbia Amado!
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeo minha orientadora, Mrcia Motta, por ter aceitado me guiar desde
a graduao, quando fui seu bolsista de iniciao cientfica no projeto Sesmarias: uma histria
luso-brasileira (1795-1824). O perodo no qual fui orientado por ela apresenta apenas um
intervalo: no mestrado fui orientado pelo professor Marcos Sanches, a quem devo semelhante
gratido. Ele me ajudou a realizar uma reviravolta em minha pesquisa, deixando de estudar a
trajetria de um jurisconsulto, em particular, para me debruar sobre os debates acerca da
propriedade na Lei Hipotecria de 1864. Agradeo Mrcia por sua participao e sugestes na
minha banca de mestrado, igualmente ao professor Ricardo Salles.
Sou grato tambm s sugestes da professora Rita de Cssia da Silva Almico e do docente
Luiz Fernando Saraiva pelas crticas, proposies, dicas e auxlios oferecidos durante a minha
qualificao.
A todos que lecionaram durante o doutorado, mestrado, graduao, ensino mdio e
fundamental. Sem eles no teria progredido em minha vida acadmica. Existe um pouco de cada um
deles na minha forma de pensar. triste saber que essa profisso seja to desvalorizada.
Ao amigo Sato por sua dedicao, na qualidade de leitor crtico, e pelo olhar atento, com o
qual, minuciosamente, descobriu tambm minhas falhas de digitao e ortografia. colega Marina
Machado pelas sugestes que deu ao meu projeto. Ao Cristiano Christillino, Eleide Findlay,
Vanda, Rachel e ao Joo Pollig por terem tornado cada Anpuh um momento de doura. E a todos
aqueles que, embora no tenham participado diretamente na composio da tese, me ajudaram com
sua amizade, companhia e dividindo os momentos de desespero: Diego So Bento, Viviane
Caminha, Priscila Petereit, Moniquinha, Slvio, Flavio, Leandro Climaco, Eduardo Borges,
Lucrssia, Marina, Hugo e tantos outros. Muitos deles atuaram como uma verdadeira famlia em
alguns momentos.
Agradeo ao meu pai, a minha me, Joana, Laura, ao Xande, ao Marcelo, Stela, ao
Ricardo e a todos os outros da minha famlia que foram inquestionavelmente importantes, desde sua
participao na minha forma de pensar, como na companhia. Minha tese tambm no seria a mesma
sem as duas criaturinhas que vieram ao mundo durante o meu doutorado, Isabel e Miguel.
A todos que foram meus alunos, pois o ensino sempre uma via de mo dupla!
Agradeo ainda aos demais que, de uma forma ou outra, contriburam com este trabalho.
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Resumo
Pretendemos refletir acerca dos conflitos entre algumas fraes da classe senhorial sobre a ideia
de propriedade, manifestados em discursos ao longo do processo de construo, aplicao e
interpretao da Lei Hipotecria 1.237 de 1864. Tencionamos sincronizar os debates sobre o Estado
e a questo agrria nos oitocentos, demonstrando como as divergncias sobre a reforma da
legislao hipotecria no podem ser compreendidas por meio da contraposio entre os interesses
de uma elite poltica e os dos bares Tambm discutiremos com os pesquisadores segundo os quais
a norma em questo teria criado a propriedade privada no Imprio.
Palavras-chave: propriedade; Estado; Lei Hipotecria de 1864; alienao; Direito; Classe
Senhorial; transcrio; tradio; Direito Registral; Brasil Imprio.
Abstract
This research is about some different ways of thinking about property in the Second Reign.
During that time, there were a great discussion about the meaning of this very term. It was clearly
seem on the legislative debate of the 1864 Brazilian Mortgage Law. We will show how the Estate
building and those conflicts were related. The historians do not have a common sense about
Brazilian land conflicts. Jos Murilo de Carvalho tell politics and farmers interest apart, as if they
were completely different. We cannot agree with this point. Their interest were closer than he
supposed. They had a lot to do with each other. We will also show that we cannot think that
mortgage law as the beginning of the private property all over Brazil.
Key-words: property; Estate; Mortgage Law from 1864; property selling; Law; Slave owner
class.
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SUMRIO
1. INTRODUO .............................................................................................................................. 1
1.2 classe senhorial e propriedades.................................................................................................... 3
1.3 Os fazendeiros e a propriedade ...................................................................................................... 9
1.4 O Instituto dos Advogados Brasileiros, a propriedade e o Estado ................................................. 15
1.5 A questo da propriedade privada no Imprio ............................................................................... 17
1.6 Concluso ..................................................................................................................................... 19
CAPTULO 1 - AS FORMAS DE TRANSMITIR A PROPRIEDADE: DA TRADIO
TRANSCRIO ................................................................................................................................
21
1.2 As Ordenaes e a transmisso da propriedade ............................................................................. 23
1.3 As sesmarias, a importncia da posse e a transmisso da propriedade .......................................... 27
1.4 A ilustrao, a Lei da Boa Razo e a propriedade .......................................................................... 30
1.5 A questo agrria e a continuidade do costume da tradio no Brasil ........................................... 41
1.6 A alienao de bens mveis e seus conflitos .................................................................................. 51
1.7 A Lei Oramentria de 1843........................................................................................................... 58
1.8 O Registro Paroquial e o Registro Geral de Imveis ..................................................................... 63
1.9 O Cdigo Civil portugus e sua diferena com relao ao Brasil .................................................. 67
CAPTULO 2 - LGICAS ECONMICAS E NOES DE PROPRIEDADE EM
CONFRONTO: A LEI HIPOTECRIA DE 1864 E O CONFLITO NOS OITOCENTOS .......
75
2.1 O projeto de Nabuco e as propriedades em disputa ....................................................................... 75
2.2 Lgicas econmicas em disputa ..................................................................................................... 103
2.3 Concluso ....................................................................................................................................... 127
CAPTULO 3 - A APLICAO E A INTERPRETAO DA LEI HIPOTECRIA NO
TOCANTE A ALIENAO DE IMVEIS ....................................................................................
130
3.2 O Magistrado Manuel Martins Torres e o Registro Geral de Imveis ........................................... 132
3.3 O princpio da espacialidade e o costume da m definio dos limites nas alienaes ................. 138
3.4 A fazendeira Feliciana, as escrituras de compra e venda e o peso das transcries ....................... 143
3.5 Perdigo Malheiros e a interpretao da Lei Hipotecria de 1864 ................................................. 146
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3.6 Augusto Teixeira de Freitas e a interpretao da Lei Hipotecria de 1864 .................................... 158
3.7 Augusto Teixeira de Freitas e o autor do Cdigo Civil Portugus: um debate sobre a tradio
jurdica luso-brasileira ..........................................................................................................................
178
3.8 As implicaes da proposta de Malheiros 188
3.9 Concluso ...................................................................................................................................... 192
CONCLUSO ..................................................................................................................................... 195
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................ 197
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1
INTRODUO
Introduo
Em um breve passeio pela zona oeste do Rio de Janeiro hoje, em 2014, podemos encontrar
diversas placas anunciando vendas de imveis afirmando: Temos RGI. Trata-se de uma referncia
existncia de matrcula da propriedade no Registro Geral de Imveis (RGI). Esta formalidade
registral foi criada no Brasil em 1864 inspirando-se, em parte, no modelo alemo de alienao e
aquisio imobiliria. A criao da obrigatoriedade de transcrever os ttulos das transmisses de
imveis estava influenciada pelo liberalismo. Na Alemanha, pretendia-se que o registro fosse um
perfeito reflexo da realidade agrria. Tratava-se da ideia liberal segundo a qual deveriam existir
livros pblicos, atravs dos quais fosse possvel conhecer o proprietrio de cada imvel,
individualmente, e os nus que gravassem essa propriedade. Para os defensores desta proposta no
Brasil, isto daria aos credores o conhecimento sobre o estado do bem dado em garantia de seus
emprstimos e, por isso, facilitaria o crdito territorial.
Deixando de lado, por agora, as discusses sobre a viabilidade ou no da realizao plena
destas proposies liberais, voltemos aos dias atuais. Ao oferecer a mercadoria terra, ainda que
fictcia1, promovendo na propaganda o fato deste imvel constar no seu respectivo registro pblico,
os alienantes nos oferecem dois dados interessantes sobre a realidade social brasileira. Em primeiro
lugar, demonstra como a regularidade registral do bem possui um valor simblico capaz de oferecer
mais segurana ao comprador da propriedade frente aos outros irregulares. Isto significa, em outras
palavras, que o comprador, apesar de pagar mais caro por aquela propriedade, ter mais
legitimidade frente aos tribunais para defender os seus direitos sobre o terreno, com relao a outros
sem a respectiva matrcula no RGI. Tambm ter mais proveitos e facilidades, caso deseje alienar
novamente aquele imvel.
Em segundo lugar, se verdade que a matrcula traz consigo um poder simblico, frente a
outros agentes sociais, com pretenses de direitos sobre o mesmo bem - ou parcelas dele -, isto s
pode ser convertido em uma ferramenta de propaganda porque a realidade fundiria brasileira se
funda em uma exagerada informalidade2. A Lei de Terras de 1850 no conseguiu por fim ao
1 POLANYI, Karl. A Grande Transformao. Rio de Janeiro: Campus, 1980. 2 Segundo Celso Furtado (FURTADO, Celso. Anlise do modelo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilizao, 1972.), em
sua abordagem que se estende at 1960, o Brasil teria como marca uma agricultura itinerante. Dentre outros meios, a
violncia aparecia como um recurso de avanar pelo territrio, expulsando a agricultura familiar. Wilson Cano
(CANO, Wilson. Reflexes sobre o papel do capital mercantil na questo regional e urbana do Brasil. Revista da
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2
costume da posse, tampouco delimitou as terras privadas, separando-as das pblicas e de seus
confrontantes3. Na maior parte do territrio brasileiro, no houve uma regularizao fundiria capaz
de sacralizar as propriedades de uns em detrimento de outros4. Ao contrrio, a realidade agrria e as
dominaes classistas estiveram fundadas exatamente nas imprecises territoriais e na
informalidade5. Tanto assim, que o vocabulrio brasileiro, hoje possui uma palavra para designar
falsificao de documentos de propriedade, sem traduo em outros idiomas: a grilagem6. Segundo
Jos de Souza Martins, no Brasil, (...) formalmente, o avano da propriedade privada sobre as
terras devolutas ocorria por meio da compra atravs de ttulos reconhecidos pelos tribunais7. De
acordo com James Holston, existe aqui um tipo de (...) trapaa envolvendo a hipoteca um tanto
quanto comum entre grileiros bem relacionados8: O farsante empresta a um parceiro com garantia
em um imvel com limites imprecisos. O pagamento no cumprido intencionalmente. Assim, o
credor (...) acaba obtendo documentos que lhe do direito sobre terras ideal ou vagamente
definidas (...)9, realizando uma (...) transformao mgica do ideal em real (...)10. O autor chega
a afirmar que na regio estudada por ele, (...) no h ningum que tenha um ttulo de propriedade
isento de ambigidades (...)11. neste contexto social que um registro pblico de alienaes de
imveis pde ser convertido em um instrumento de propaganda dotado de fora simblica. Em uma
realidade na qual a regularidade registral fosse a regra, dificilmente a inscrio do imvel no RGI
poderia ter assumido este papel.
No Brasil, foram os dispositivos da Lei Hipotecria de 1864 que introduziram o Registro
Geral de Imveis (RGI). Por isso, estudar os debates sobre a propriedade ocorridos no momento da
promulgao, aplicao e interpretao desta norma ganham relevo. Alguns de seus defensores
buscavam, atravs desta reforma, modificar o sistema de alienar imveis para possibilitar o crdito
Sociedade Brasileira de Economia Poltica, v. 27, p. 29-57, 2010.) amplia essa abordagem para o perodo at 1984,
afirmando que continuam existindo facilidades para acessar terras, causando desmatamento de enormes reas,
expulso de posseiros e itinerncia de outras culturas. desnecessrio dizer que at os dias atuais esta herana
histrica existe. Este modelo de subdesenvolvimento favorecido por uma precria regularidade registral brasileira. 3 MOTTA, Mrcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflitos e direito terra no Brasil do sculo XIX. Rio de
Janeiro: Vcio de leitura, 1998. 4 De acordo com Lgia Osrio Silva (SILVA, Lgia Osrio. Terras devolutas e latifndio: efeitos da Lei de Terras de
1850. Campinas: UNICAMP, 1996.), com exceo do Rio Grande do Sul, a Lei de Terras no teria conseguido
regularizar a estrutura fundiria, criando a propriedade individualizada. As incertezas dos limites territoriais e dos
ttulos de propriedades continuam sendo uma marca da realidade agrria brasileira. 5 CANO, op.cit., p. 29-57. 6 MOTTA, Mrcia Maria Menendes. A grilagem como legado. In: MOTTA, Mrcia Maria Menendes Motta &
PIERO, Theo Lobarinhas (org.). Voluntariado e universo rural. Rio de Janeiro: Vcio de Leitura, 2001.p. 75-99. 7 MARTINS, Jos de Souza. O Cativeiro da Terra. So Paulo: Editora Cincias Humanas, 1979. p. 69. 8 HOLSTON, James. Legalizando o ilegal: propriedade e usurpao no Brasil. In: Revista Brasileira de Cincias
Sociais, n 21, ano 8, fevereiro de 1992, p 68-89. 9 Ibid., p. 87. 10 Ibid., p. 87. 11 Ibid., p. 87.
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3
territorial. Mas muitos foram os desacordos sobre o assunto na sociedade da poca. Ocorreram
muitos embates sobre qual o modelo de transmisso de patrimnio entre vivos seria
institucionalizado. As propostas apresentavam formas diferentes de conceber a propriedade no
interior da classe senhorial. So exatamente esses desacordos sobre este conceito e a relao da
disputa em torno dele com as fraes da classe senhorial que nos interessam aqui.
Assim, embora estejamos falando de debates ocorridos no momento de promulgao e
aplicao de uma norma que reformava a legislao hipotecria, no pretendemos falar
especificamente sobre crdito. Trata-se de apresentar a discusso sobre a forma de transmisso de
imveis, sobretudo rurais, em sua relao com os setores dominantes da segunda metade do sculo
XIX. Abordaremos mais precisamente o momento compreendido entre 1854, quando o ministro da
justia Nabuco de Arajo apresentou uma proposta de reforma da legislao hipotecria, e 1873,
quando um juiz publicou suas constataes sobre a aplicao da norma neste intervalo de tempo.
Classe senhorial e propriedades
Os grupos dominantes no Imprio receberam diferentes abordagens na historiografia. Essas
discusses esto intimamente relacionadas com a temtica da construo do Estado e dos partidos
polticos imperiais. Para Raimundo Faoro, o Estado brasileiro seria inorgnico, isto , a burocracia
possuiria projetos autnomos com relao ao da elite agrria12. O autor busca no passado ibrico as
explicaes para o surgimento do Estado nacional brasileiro, consagrando o conceito de
patrimonialismo. Para ele, assim, os partidos conservador e liberal se diferenciaram porque o
primeiro seria formado pelo estamento burocrtico, enquanto o segundo teria, em sua composio,
os setores agrrios. Enquanto os conservadores trabalhariam pela centralizao do Estado, os
liberais seriam contrrios aos avanos do poder central proposto pelo setor burocrtico.
Jos Murilo de Carvalho discorda desta caracterizao dos partidos polticos imperiais13.
Usando a ferramenta da estatstica e a teoria das elites, Jos Murilo de Carvalho buscou demonstrar
como os partidos eram marcados pela diversidade, do ponto de vista social e regional. Mas ainda
assim, o autor traz consigo a caracterizao do Estado imperial como inorgnico, ao afirmar que o
elemento burocrtico, sobretudo os magistrados, do partido conservador teriam favorecido a
centralizao e as reformas sociais14. Para ele, este grupo ainda que dialogasse com os interesses da
elite econmica, possua autonomia e projeto prprio. Os partidos conservadores e liberais surgiram
12 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo, 1979. 13 CARVALHO, Jos Murilo de. A Construo da ordem: A elite poltica imperial: & Teatro das sombras. Rio de
Janeiro: Civilizao brasileira, 1980. p 202. 14 Ibid., p. 222.
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atravs de divergncias relacionadas ao Ato Adicional de 1834, defendendo respectivamente maior
centralizao ou descentralizao. Atravs de anlise estatstica, Jos Murilo de Carvalho concorda
com Faoro de que os burocratas tenderam a se agrupar mais no partido conservador, mas discorda
que os liberais teriam concentrado os fazendeiros. Acaba entretanto, contribuindo para a tese da no
organicidade do Estado nacional brasileiro, ao defender a existncia de uma elite poltica com
projeto autnomo com relao aos grupos dominantes economicamente15.
Nada expressa mais a tese da no organicidade do Estado defendida pelo autor do que a sua
abordagem sobre a Lei de Terras de 1850. Para ele, esta legislao teria sido criada pela burocracia
com o intuito de regularizar a estrutura fundiria, mas isto no teria sido realizado na prtica por
causa da reao dos bares16. Em suas palavras, (...) a poltica de terras quase no saiu do debate
legislativo e dos relatrios dos burocratas dos ministrios do Imprio e da Agricultura Comrcio e
Obras Pblicas ().17 A Lei de Terras, segundo o autor, pretendia estabelecer os limites
territoriais, dar valor aos ttulos imobilirios e eliminar o costume da posse. Mas isto no aconteceu
na prtica. Para ele, essa norma (...) mostrou a incapacidade do governo central em aprovar ou
implementar medidas contrrias aos interesses dos proprietrios na ausncia de presses
extraordinrias (...)18. Neste sentido, haveria nesta abordagem uma dissociao entre os interesses
de uma elite econmica e outra agrria. Estes grupos no possuiriam uma relao de organicidade,
mas ao contrrio, possuam projetos e interesses prprios e independentes.
Ilmar de Mattos19 e Ricardo Salles20 criticam a ideia da no organicidade dos agentes
estatais. O primeiro demonstra como os conservadores fluminenses, intitulados por seus opositores
de saquaremas, construram sua hegemonia no interior do partido conservador e, aos poucos, dentro
de toda a sociedade. Para ele, o processo de afirmao do Estado foi tambm de surgimento de uma
classe de senhores de escravos nacionais sob a dominao e direo dos conservadores. Exatamente
por isso, o ncleo duro dos dirigentes do partido conservador, principal fora na construo do
Estado, foram os membros da Trindade Saquarema, Rodrigues Torres, Paulino Jos Soares e
Eusbio de Queiroz. Eles deram o tom ao Estado Imperial e possuam extensa parentela entre os
fazendeiros da baixada fluminense. Sob a direo da trindade, os conservadores conseguiram
15 Ibid., p. 211. 16 CARVALHO, Jos Murilo de. A Modernizao frustrada: A poltica de terras no Imprio. Revista Brasileira de
Histria. So Paulo, n. 1, p. 39-57, 1981. & CARVALHO, Jos Murilo. A Construo da ordem: A elite poltica
imperial & Teatro das sombras. Civilizao brasileira: Rio de Janeiro, 1980. p 331-354. 17 Ibid., p. 331. 18 Ibid., p. 350. 19 MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo Saquarema. Rio de Janeiro: Acess, 1994. 20 SALLES, Ricardo. O Imprio do Brasil no contexto do sculo XIX. Escravido nacional, classe senhorial e
intelectuais na formao do Estado. Almanack, Vila Mariana, n.4, nov. 2012. Disponvel em:
.
http://www.almanack.unifesp.br/index.php/almanack/article/view/840
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5
disseminar o seu discurso, fazendo com que, aos poucos, os liberais reduzissem sua distncia com
relao queles que defendiam a centralizao e o poder moderador. Para este processo foi
fundamental o medo dos liberais mais moderados com relao atuao dos liberais mais exaltados
nas Revoltas Regenciais. Embora protestassem por mais liberdade da casa, entendida como a rea
de exerccio de poder dos chefes locais, os moderados no podiam aceitar que os escravos e homens
pobres livres levantassem suas bandeiras e projetos. Assim, distanciavam-se dos projetos de
liberdade da casa para assegurarem a ordem. Aos poucos, aproximavam-se dos discursos
conservadores nos quais ordem e liberdade eram parte da mesma moeda. Os conservadores tambm
utilizaram polticas clientelares e, para as realizar, converteram a prpria Coroa em partido.
Passaram a usar as ferramentas do Estado para disseminar o seu discurso e buscar adeso de seus
opositores ao seu projeto.
Neste sentido, para Ilmar de Mattos, os construtores do Estado no possuam projetos
diferenciados com relao aos proprietrios de escravos fluminenses. Eles apresentavam algumas
diferenas, mas no um projeto de construo do Estado e interesses distintos. Para Ricardo Salles,
a classe senhorial foi (...) uma formao histrica particular de grandes proprietrios rurais
escravistas, nucleadas em torno da zona cafeeira do rio Paraba do Sul na provncia fluminense21.
Mas esta classe virou nacional, pois sua dominao e direo se estenderam sobre todo o territrio,
muito embora ela no fosse homognea, tampouco esteve fisicamente presente em todas as regies.
O autor se preocupa em desconstruir os estudos estatsticos sobre a origem regional dos grupos que
participaram da construo do Estado. Ele demonstra que, para alm de sua origem provincial, esses
agentes sociais construram, ao longo do Imprio, relaes familiares com os proprietrios
fluminenses e mudaram suas residncias para o Rio de Janeiro. A mudana de endereo foi
importante, pois a Corte desempenhou um papel de (...) formao, atrao e aglutinao (...)22.
Os intelectuais ligados s elites de outras provncias e aos antigos quadros da burocracia colonial,
ainda que no perdessem completamente sua relao com as bases sociais de sua terra natal, eram
absorvidos pelo centro do poder. Neste processo, incorporavam os discursos provenientes dos
grupos hegemnicos e viravam disseminadores destas ideias. Ainda percebendo que os intelectuais
eram representantes e dirigentes da classe senhorial, ao invs de serem autnomas, o autor no
deixa de perceber a existncia de uma distncia entre alguns intelectuais tradicionais e os
fazendeiros no tocante s reformas no trabalho escravo. Ele estabelece a diferena entre dois
grupos: de um lado, os saquaremas, os intelectuais mais prximos dos proprietrios escravistas
fluminenses e da experincia cotidiana nas atividades da fazenda; do outro, os Estadistas Imperiais,
21 Ibid., p. 1 22 Ibid., p. 24
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que eram mais prximos do cotidiano das atividades estatais e cujas famlias geralmente atuavam na
burocracia metropolitana desde o perodo colonial. Esses ltimos eram verdadeiros intelectuais
tradicionais e precisavam ser atrados pelos saquaremas para a concretizao da hegemonia.
A conjuntura de discusso da Lei do Ventre Livre percebida por Ricardo Salles como um
dos momentos de disjunes entre a atuao predominante do grupos de estadistas e os
representantes mais diretos dos fazendeiros23. Neste perodo, os estadistas e os intelectuais mais
prximos dos saquaremas discordaram sobre a reforma. Ao trabalhar esses debates no Conselho de
Estado, o autor percebe formas diferenciadas de experimentar a crise da escravido entre os
estadistas e os fazendeiros. Os primeiros (...) tinham como foco os interesses gerais do Estado, e
no os dos grupos e localidades particulares, ainda que, em momento algum, perdessem esses
ltimos de vista.24. Assim, entre eles havia a noo de que a escravido estava destinada ao
fracasso. O seu conhecimento sobre o ocorrido no Haiti, sobre as revoltas de cativos no Imprio,
tendia a lev-los a propor reformas na escravido. Enquanto os fazendeiros, mais ligados ao dia a
dia da fazenda tenderam mais a oposio reforma. Ainda assim, no existia uma dissociao entre
esses grupos.
A historiografia sobre a questo agrria possui reflexes que caminham no mesmo sentido
daquela sobre o Estado e a classe senhorial. Lgia Osrio defende que as propostas de regularizao
fundiria, introduo do trabalho livre e transformao dos imveis em garantia para hipotecas
faziam parte da estratgia saquarema25. Mrcia Motta demonstrou em sua tese a insuficincia da
afirmao, segundo a qual a Lei de Terras teria sido vetada na prtica pelos bares26. Ela demonstra
como a referida legislao foi interpretada e utilizada de diferentes maneiras pelos grupos sociais
envolvidos em conflitos agrrios nos oitocentos. Assim, longe de ter sido negada completamente na
prtica, ela foi lida por diferentes grupos sociais de cada localidade, havendo inclusive conflitos no
entendimento dos pequenos posseiros e dos fazendeiros sobre a norma. Desta forma, a autora indica
que os estudos sobre a aplicao da Lei de Terras deveriam ser realizados para cada localidade do
Imprio.
Seguindo este vis, Cristiano Christillino estudou a aplicao da norma no Rio Grande do
Sul. Esta foi a nica provncia a realmente realizar uma regularizao fundiria, ao menos em uma
23 Ibid., p 2. 24 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras - Sculo XIX. Senhores e escravos no corao do Imprio. Rio
de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2008. p. 52. 25 SILVA, Lgia Osrio. Terras devolutas e latifndio: efeitos da Lei de Terras de 1850. Campinas: UNICAMP, 1996.
p.139-152 26 MOTTA, Mrcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflitos e direito terra no Brasil do sculo XIX. Rio de
Janeiro: Vcio de leitura, 1998. p.166
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parcela do seu territrio27. Mas, como os demais processos de regularizao, houve a sacralizao
dos direitos de um grupo em detrimento dos de outros. Os direitos sacralizados foram os da elite
participante da revolta dos farroupilhas. Segundo o historiador, a Coroa utilizou a Lei de Terras
como forma de barganhar o apoio poltico da elite sul-rio-grandense ao projeto de centralizao
administrativa defendido pelos saquaremas. A Revolta de Farroupilhas ameaava separar o Rio
Grande do Sul do Imprio. Esta regio era estratgica nas disputas da Bacia do Prata. Assim, os
saquaremas utilizaram politicamente a Lei de Terras de 1850 para atrair as elites farroupilhas para o
seu projeto de centralizao do Estado. Eles abriram brechas na Lei de Terras de 1850, criando
possibilidades para parcela da elite sul-rio-grandense grilar terras, em troca de apoio poltico. Ento,
foram sacralizados os direitos de propriedade destes grupos em detrimento dos direitos dos
ervateiros pobres daquela localidade. Em seu trabalho, Cristiano Christillino demonstra uma
negociao entre a Coroa e os potentados. Neste sentido, no cabe falar de veto dos bares. O autor
acaba, desta forma, rompendo com a ideia de no organicidade entre a Coroa e os potentados.
As discusses no legislativo durante a promulgao da Lei Hipotecria de 1864 apontam
exatamente neste sentido de ruptura com relao ideia de no organicidade. Em primeiro lugar,
existiram no legislativo, deputados mais prximos dos interesses dos potentados rurais. Para eles, a
matrcula das alienaes imobilirias deveriam servir de prova dominial para os adquirentes. Eles
supunham que apenas os fazendeiros possuam direitos de propriedade e os outros seriam apenas
agregados. Desconsideravam a existncia de pequenos posseiros com direito terra. Assim, no
percebiam problemas em aceitar o carter comprobatrio para o Registro Geral de Imveis (RGI),
registro no qual as alienaes deveriam ser transcritas. Deixavam de lado a possibilidade de serem
alienados domnios com limites incertos, para dar ao adquirente mais direitos do que o vendedor de
fato possua. De outro lado, existiram estadistas atuando na burocracia, pessoas com a experincia
de vida mais prxima do cotidiano no Estado mas que, nem por isso, deixavam de serem donos de
escravos e comungarem de certo olhar senhorial sobre a propriedade. Eles foram contra os abusos
dos potentados, opondo-se a utilizao da transcrio como prova dominial. No entanto, eram
contrrios possibilidade de uma regularizao fundiria. Defendiam a no interveno do Estado
nos assuntos locais das fazendas, assegurando este territrio como a esfera de atuao dos
potentados. Neste sentido, no existia uma separao completa entre sociedade poltica e civil. Os
representantes mais diretos dos fazendeiros atuaram nas discusses legislativas. E, mesmo os
grupos mais distantes destes interesses, no eram to apartados assim do imaginrio senhorial.
Inexistia uma oposio extrema entre uma burocracia propondo uma reforma progressista
27 SILVA, Lgia Osrio, op. cit., p.165 e 220
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(ou contrrias ao latifndio), inspirada nos ideais do liberalismo, e, os potentados rurais vetando
essas transformaes28. Ao menos nas discusses sobre a alienao de propriedade na Lei
Hipotecria de 1864, a realidade parece ter sido distinta. Havia duas tendncias diferentes nas
propostas de mudana, ainda que pudessem existir conotaes individuais nas formas de
aproximao com essas linhas. De um lado, estavam os defensores da atribuio de carter
comprobatrio transcrio. Eles pretendiam sacralizar as propriedades alienadas, em detrimento
dos reais cultivadores. Parece-nos existir uma proximidade entre isto e a tentativa da Lei de Terras
de 1850 de proibir a aquisio de terras pela posse. No caso da proposta sobre dar um maior peso ao
RGI na norma de 1864, tratava-se de garantir o monoplio da terra a um grupo, negando os direitos
aos homens livres pobres. Com relao legislao de 1850, havia uma certa inteno, ao menos
por parte de alguns participantes do debate, de negar o acesso aos possveis futuros libertos. O
prprio Jos Murilo de Carvalho no deixa de perceber a existncia de uma relao entre os
fazendeiros e a burocracia na elaborao da Lei de 1850. Segundo o autor, (...) tratava-se, ento,
de um grupo de proprietrios e magistrados propondo uma legislao que beneficiaria os
cafeicultores (...)29. Ele tambm assume que (...) tratava-se () de uma tentativa de
modernizao conservadora (...)30, mas acaba tendendo a defender uma dicotomia entre o que ele
chama de elites polticas e elites econmicas. A percepo de uma relao entre elas aparece na sua
abordagem. Lgia Osrio percebe o mesmo ao afirmar a proximidade da proposta com a estratgia
saquarema31. A Lei de Terras de 1850 tentava instituir a compra como a nica, ou ao menos a
principal, forma de aquisio dominial. Os defensores da concesso de carter comprobatrio
transcrio das transmisses de patrimnios entre vivos no RGI caminhavam no mesmo sentido. As
propriedades adquiridas onerosamente prevaleceriam sobre as posses, mas neste caso sem uma
prvia regularizao fundiria.
De outro lado, a segunda tendncia de proposta da Lei Hipotecria de 1864 encaminhava no
sentido de proteger os direitos dos posseiros, inclusive dos pequenos. Mas, era avessa a
possibilidade da regularizao fundiria nos moldes liberais. Os intelectuais defensores desta linha
de raciocnio eram mais prximos do cotidiano nas agncias pblicas do que dos fazendeiros, mas
28 Segundo Jos Murilo de Carvalho, as primeiras propostas da Lei de Terras (...) tinha claras conotaes reformistas
e antilatifundirias (...) (CARVALHO, Jos Murilo de. A Construo da ordem: A elite poltica imperial: & Teatro
das sombras. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1980. P. 348.). Emlia Viotti apresenta uma linha de raciocino
parecida, pois para ela a Lei de Terras foi fruto dos interesses dos setores da elite interessados na construo de uma
concepo mais moderna para a propriedade (COSTA, Emlia Viotti. Da monarquia Repblica: momentos
decisivos. 7 ed. So Paulo: UNESP, 1999.). 29 CARVALHO, Jos Murilo de. A Construo da ordem: A elite poltica imperial: & Teatro das sombras. Rio de
Janeiro: Civilizao brasileira, 1980. p. 348. 26 Ibid., 1980, p. 348 31 SILVA, Lgia Osrio. Terras devolutas e latifndio: efeitos da Lei de Terras de 1850. Campinas: UNICAMP, 1996.
p. 139-152.
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no se afastavam completamente dos interesses senhoriais. Defendiam a necessidade de uma prvia
regularizao para atribuir ao RGI papel de provar o domnio. Reconheciam que, sem isto, haveria
inmeros inconvenientes em dar um status maior para as transcries, inclusive para os posseiros.
Entretanto entendiam a interveno pblica no espao privado de mando dos potentados locais
como indevida. Tinham experincia na burocracia suficiente para saberem da resistncia contra as
tentativas de demarcar o territrio durante a aplicao da Lei de Terras de 1850. Por esta razo, no
aceitavam uma reorganizao da estrutura fundiria na qual a propriedade sobre terra viesse a ser
individualizada atravs da ao estatal.
Neste sentido, ao invs de haver uma dicotomia entre as propostas da burocracia e os
interesses dos proprietrios, havia diferentes formas de aproximao entre esses dois grupos. Os
burocratas mais afastados dos interesses senhoriais no estavam completamente apartados dos
potentados. E os intelectuais mais prximos dos fazendeiros tambm atuavam na burocracia.
Existiam disputas no Estado que no se limitavam aos gabinetes pblicos. No havia um grupo com
projetos autnomos, propondo reformas que seriam vetadas pelos potentados. Ao contrrio,
existiam diferentes formas de aproximao entre esses grupos, tanto na elaborao dessas normas,
como na sua interpretao e aplicao. Ainda que pudessem existir grupos mais progressistas do
reformismo, no nos parece ter sido o caminho seguido por todos os propositores de mudanas. Jos
Murilo de Carvalho cita Andr Rebouas como um destes casos32. Para ele, o intelectual oitocentista
seria defensor de uma democracia rural sem escravos e latifndios. De antemo, no encontramos
indcios de sua participao nos debates da Lei Hipotecria de 1864. Nos parece plausvel e
interessante assumir a existncia de intelectuais mais prximos dos cativos e/ou homens pobres
livres. Mas nas discusses sobre a norma que serviu de objeto para nossa pesquisa, a voz dos
antigos colonizados nos pareceu muito menor. Talvez porque se tratasse de uma norma mais ligada
compra de terras do que posse. De qualquer forma, este no foi o caminho seguido por todos os
defensores da sacralizao das terras compradas. Havia quem defendesse o monoplio senhorial
sobre a terra.
Os fazendeiros e a propriedade
Existia entre os fazendeiros a tendncia de imaginar a propriedade de uma determinada
forma. Eles tendiam a superestimar os seus direitos e a desconsiderar os dos pequenos posseiros e
demais confrontantes. A prpria tentativa de deputados prximos aos potentados de imprimir na Lei
32 CARVALHO, op. cit., p. 349.
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Hipotecria de 1864 o carter de prova para o registro das terras alienadas um indcio forte disto.
Nos debates, os defensores desta proposta chegaram a afirmar a existncia de direitos sobre a terra,
apenas por parte dos grandes proprietrios. Para eles, os outros seriam apenas agregados e
dependeriam da permisso senhorial para terem acesso ao solo. No olhar deles no seria necessria
nenhuma regularizao, para afirmar a matrcula da compra e venda em um documento pblico,
como sinal infalvel do direito de propriedade do adquirente. Pelo contrrio, a possibilidade de
estabelecer os limites territoriais e individualizar a apropriao do solo era entendida por eles com
uma desnecessria e excessiva interveno Estatal nos assuntos privados da fazenda. Nesta
concepo, esta seria a esfera de poder exclusiva dos potentados.
Para demonstrar esta forma de descrever o universo rural e prescrever projetos para a
estrutura fundiria, nada melhor que recorrermos ironia fina do escritor Machado de Assis33que,
em seu conto, Trs captulos inditos do Gnesis, apontou de forma crtica, como os potentados
rurais lidavam com a terra, sempre assumindo serem os donos absolutos do territrio.
Nos versculos, o patriarca No e seus filhos desembarcam aps o dilvio, passando a
disputar os limites territoriais da localidade, onde construiro sua nova vida. O autor, com
sarcasmo, desloca algumas caractersticas do comportamento dos fazendeiros com relao ao solo,
para seus personagens. Vejamos um pouco de suas palavras para depois comentarmos melhor,
1. Ento No disse a seus filhos Jaf, Sem e Cam: Vamos sair da
arca, segundo a vontade do Senhor, ns, e nossas mulheres, e todos os
animais. A arca tem de parar no cabeo de uma montanha; desceremos a
ela.
2. Porque o Senhor cumpriu a sua promessa, quando me disse: Resolvi
dar cabo de toda a carne; o mal domina a terra, quero fazer perecer os
homens. Faze uma arca de madeira; entra nela tu, tua mulher e teus filhos.
3. E as mulheres de teus filhos, e um casal de todos os animais.
4. Agora, pois, se cumpriu a promessa do Senhor, e todos os homens
pereceram, e fecharam-se as cataratas do cu; tornaremos a descer
terra, e a viver no seio da paz e da concrdia.
5. Isto disse No, e os filhos de No muito se alegraram de ouvir as
33 Segundo Pierre Bourdieu (BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingusticas. So Paulo: Edusp, 2008), toda
descrio da realidade traz consigo a prescrio de projetos sociais. Segundo o autor, a descrio tem a caracterstica
de produzir ou reforar simbolicamente a tendncia sistemtica para privilegiar certos aspectos do real e ignorar
outros (BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingusticas. So Paulo: Edusp, 2008. p. 125.). A escolha dos
aspectos do real a serem privilegiados realizada segundo o entendimento de mundo e projeto social daquele
indivduo. Neste sentido, ela aponta implicitamente os caminhos defendidos por ele para a sociedade em que vive.
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palavras de seu pai; e No os deixou ss, retirando-se a uma das cmaras
da arca.
6. Ento Jaf levantou a voz e disse: Aprazvel vida vai ser a nossa.
A figueira nos dar o fruto, a ovelha a l, a vaca o leite, o sol a claridade e
a noite a tenda.
7. Porquanto seremos nicos na terra, e toda a terra ser nossa, e
ningum perturbar a paz de uma famlia, poupada do castigo que feriu a
todos os homens.
8. Para todo o sempre. Ento Sem, ouvindo falar o irmo, disse:
Tenho uma idia. Ao que Jaf e Cam responderam: Vejamos a tua
idia, Sem.
9. E Sem falou a voz de seu corao, dizendo: Meu pai tem a sua
famlia; cada um de ns tem a sua famlia; a terra de sobra; podamos
viver em tendas separadas. Cada um de ns far o que lhe parecer melhor:
e plantar, caar, ou lavrar a madeira, ou fiar o linho.
10. E respondeu Jaf: Acho bem lembrada a idia de Sem; podemos
viver em tendas separadas. A arca vai descer ao cabeo de uma montanha;
meu pai e Cam descero para o lado do nascente; eu e Sem para o lado do
poente, Sem ocupar duzentos cvados de terra, eu outros duzentos.
11. Mas dizendo Sem: Acho pouco duzentos cvados , retorquiu
Jaf: Pois sejam quinhentos cada um. Entre a minha terra e a tua haver
um rio, que as divida no meio, para se no confundir a propriedade. Eu
fico na margem esquerda e tu na margem direita;
12. E a minha terra se chamar a terra de Jaf, e a tua se chamar a
terra de Sem; e iremos s tendas um do outro, e partiremos o po da
alegria e da concrdia.
13. E tendo Sem aprovado a diviso, perguntou a Jaf: Mas o rio? a
quem pertencer a gua do rio, a corrente?
14. Porque ns possumos as margens, e no estatumos nada a respeito
da corrente. E respondeu Jaf, que podiam pescar de um e outro lado;
mas, divergindo o irmo, props dividir o rio em duas partes, fincando um
pau no meio. Jaf, porm, disse que a corrente levaria o pau.
15. E tendo Jaf respondido assim, acudiu o irmo: Pois que te no
serve o pau, fico eu com o rio, e as duas margens; e para que no haja
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conflito, podes levantar um muro, dez ou doze cvados, para l da tua
margem antiga.
16. E se com isto perdes alguma coisa, nem grande a diferena, nem
deixa de ser acertado, para que nunca jamais se turbe a concrdia entre
ns, segundo a vontade do Senhor.
17. Jaf porm replicou: Vai bugiar! Com que direito me tiras a
margem, que minha, e me roubas um pedao de terra? Porventura s
melhor do que eu,
18. Ou mais belo, ou mais querido de meu pai? Que direito tens de
violar assim to escandalosamente a propriedade alheia?
19. Pois agora te digo que o rio ficar do meu lado, com ambas as
margens, e que se te atreveres a entrar na minha terra, matar-te-ei como
Caim matou a seu irmo.
20. Ouvindo isto, Cam atemorizou-se muito, e comeou a aquietar os
dois irmos, 34
Trata-se de um trecho do conto Trs captulos inditos do Gnesis35, publicado em 1882
no livro Papis avulsos I. Na sua introduo, o Machado de Assis afirmava (...) h aqui pginas
que parecem meros contos, e outras que o no so (...), expondo a existncia de elementos
verossmeis nestes escritos. Na ocasio, o autor j havia sido ministro interino da pasta da
Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas em 1881. Tambm j tinha participado de uma comisso,
nomeada em 1878 pelo ministro da Agricultura Liberal Sinimbu, que foi encarregada de elaborar
um projeto de modificao da Lei de Terras de 185036. Este projeto (...) refletia as crticas feitas ao
longo dos anos pelos relatrios ministeriais (...)37, sobre os insucessos no processo regularizao
fundiria. Mas estava mais relacionado (...) com a colonizao do que com o regime da posse
(...)38, ainda que no deixasse de tratar do regime fundirio.
Neste sentido, o autor teve bastantes subsdios para criticar o habitus dos grandes
fazendeiros39. A briga pela demarcao dos limites do territrio das personagens Sem e Jaf uma
34 ASSIS, Machado. Trs Captulos inditos do Gnesis. IN: ASSIS, Machado. Papis Avulsos I. So Paulo: Editora
Globo, 1997. 35 Ibid., p.93-100 36 CARVALHO, Jos Murilo de. A Construo da ordem: A elite poltica imperial: & Teatro das sombras. Rio de
Janeiro: Civilizao brasileira, 1980. p 345. 37 Ibid., p. 345
Ibid., p. 345 39 O termo Habitus, criado por Pierre Bourdieu, o (...) sistema das disposies, socialmente constitudas que,
enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princpio gerador e unificador do conjunto de
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aluso aos conflitos agrrios do XIX e a noo de propriedade senhorial. No conto, aps a
inundao enviada contra a maldade que tomava conta da terra, No afirma (...) tornaremos a
descer terra, e a viver no seio da paz e da concrdia (...)40. Seu filho Jav refora a ideia: ()
Porquanto seremos nicos na terra, e toda a terra ser nossa, e ningum perturbar a paz de uma
famlia, poupada do castigo que feriu a todos os homens.(...)41. Assim, como os potentados do
sculo XIX, os membros dessa famlia patriarcal, enxergavam o solo como monoplio deles,
desconsiderando o direito de propriedade dos outros. Jaf foi explcito em afirmar (...) seremos
nicos na terra, e toda a terra ser nossa (...)42. Sua mensagem parece ser redundante, mas apenas
se ignorarmos a maestria do deboche machadiano. A personagem no apenas explcita serem, ele e
sua famlia, os nicos homens vivos, mas tambm define a exclusividade dos direitos deles ao solo.
Esta redundncia e a escolha de Machado em comparar sarcasticamente a famlia de No com a dos
potentados, foram intencionais. Tratava-se de galhofar da mentalidade senhorial, segundo a qual
apenas os grandes fazendeiros teriam direitos de propriedade, comparando-os com as personagens
bblicas que eram, de fato, os nicos a habitarem o territrio. O sentimento de ter um direito
absoluto e exclusivo, tpico dos potentados rurais, exatamente o que faz as personagens
machadianas digladiarem por causa dos limites dominiais. Elas decidem individualizar o territrio,
mas acabam se envolvendo em uma discusso interminvel. E, embora anunciem a inteno de
partilhar (...) o po da alegria e da concrdia (...)43, acabam sempre contestando a demarcao
proposta, uns pelos outros. Em sua argumentao, exemplo dos potentados rurais da segunda
metade do XIX, as personagens demonstravam pensar seus direitos de forma mais absoluta do que
estes eram. Jaf, por exemplo, questiona Sem: Que direito tens de violar assim to
escandalosamente a propriedade alheia?44.
Outro dado interessante do conto o fato de Cam ser representado como o apaziguador. A
personagem aparece em outras obras de arte do perodo, associada com os africanos45. No quadro
A Redeno de Cam de Modesto Brocos, pintado em 1895, por exemplo, aparece uma av negra
prticas e das ideologias caractersticas de um grupo de agentes (...). (BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas
simblicas. So Paulo: Perspectiva, 1974. p 191). Trata-se de uma forma de conceber as prticas e ideologias de um
grupo sem cair no erro de (...) dissolver a originalidade criadora, reduzindo-a as suas condies sociais de
produo (...) (BOURDIEU, Idem, 1996. p. 185) ou, ao contrrio, de conceber o comportamento individual de
forma unicamente individualista. 40 ASSIS, Machado, op. cit., p. 93. 41 ASSIS, Machado. Trs Captulos inditos do Gnesis. IN: ASSIS, Machado. Papis Avulsos I. So Paulo: Editora
Globo, 1997. p. 94. 42 ASSIS, Machado. Trs Captulos inditos do Gnesis. IN: ASSIS, Machado. Papis Avulsos I. So Paulo: Editora
Globo, 1997. p. 94. Grifo nosso. 43 Ibid., p. 94. 44 Ibid., p. 95 45 WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os nomes da liberdade: Experincias de autonomia e prticas de nomeao em um
municpio da serra rio-grandense nas ltimas dcadas do sculo XIX. 2007. Dissertao (Mestrado em Histria).
UNISINOS. So Leopoldo.
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e os avs morenos dando graas a Deus, pela felicidade de o seu descendente ter nascido branco.
Trata-se de uma manifestao artstica das propostas de branqueamento da populao brasileira
existentes na poca. Segundo Rodrigo de Azevedo Weimer, o quadro (...) representava a ideologia
do branqueamento atravs de trs geraes, nas quais a mcula do filho amaldioado de No,
expressa pela cor da pele, era redimida pelo fentipo ariano do neto de uma negra que havia sido
escrava (...)46. O nome da ilustrao era uma referncia clara crena de que o filho amaldioado
de No, Cam, teria migrado para a frica dando origem raa negra. Machado de Assis, ao
contrrio, apresenta Cam como aquele que tenta resolver os conflitos. Em um primeiro momento,
ele busca (...) aquietar os dois irmos (...)47. Depois ele diz: (...) Ora, pois, tenho uma ideia
maravilhosa, que h de acomodar tudo (...)48. Mas seus irmos continuaram irascveis: E Sem e
Jaf riram com desprezo e sarcasmo, dizendo: 'Vai plantar tmaras! Guarda a tua ideia para os
dias da velhice'49. Seguiam nesse proceder, pois sob o olhar senhorial dos conflitantes (...) o caso
era de direito e no de persuaso (...)50.Os dois consideravam terem direitos mais absolutos do
que de fato possuam, pois tinham acabado de desembarcar. Nenhum dos dois era capaz de ouvir os
argumentos alheios, tampouco buscar uma soluo pacfica para as divergncias.
A agressividade entre os irmos aumenta ao longo da trama e, por isso, Cam decide chamar
o pai para intervir. Da por diante, a ironia machadiana usa o discurso de No para evidenciar o
posicionamento hegemnico do Estado brasileiro quanto posse de terras. Assim, o patriarca, tendo
sido convocado para solucionar os conflitos, afirma: Ora, pois, vos digo que, antes de descer a
arca, no quero nenhum ajuste a respeito do lugar em que levantareis as tendas.51. Tal como os
estadistas que propunham deixar de lado a possibilidade de regularizar a estrutura fundiria, No
prope como soluo para o conflito o abandono da proposta de individualizao das apropriaes
territoriais. Em um perodo de difuso da noo de propriedade liberal no Brasil, uma afirmao
como essa significava uma crtica ferina ao estatal. Dessa forma, no conto de Machado de Assis
no existia uma separao completa entre um Estado propositor de reformas e os potentados que as
vetavam. No percebe que os filhos consideravam seus domnios mais absolutos do que de fato o
eram, pois afirma no final : (...) Eles ainda no possuem a terra e j esto brigando por causa dos
limites (...)52. Sabendo disso, optou por no destrinchar as apropriaes.
Nas discusses sobre a Lei Hipotecria de 1864, os intelectuais e deputados mais prximos
46 Ibid., p. 80 47 ASSIS, Machado, op. cit., p. 95. 48 ASSIS, Machado, op. cit., p. 96. 49 Ibid., p. 96 50 ASSIS, Machado, op. cit., p.95. 51 ASSIS, Machado, op.cit., p.100. 52 Ibid., p.100.
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dos potentados rurais manifestaram um olhar sobre a propriedade, muito parecido com o do Sem e
do Jaf machadianos. Eles propunham atribuir transcrio dos ttulos de alienao de imveis, no
Registro Geral de Imveis, o papel de provar a propriedade do adquirente, sem uma regularizao
prvia da estrutura fundiria. Dessa maneira, as propriedades obtidas atravs da compra e venda
seriam sacralizadas. Isto possibilitaria ao alienante transmitir mais terras do que de fato possua,
gerando para o comprador direitos oponveis aos dos reais detentores do solo. Para a mentalidade
senhorial, isso no seria um problema, pois eles, indevidamente, julgavam-se donos incontestveis
de suas propriedades. Os fazendeiros no concebiam a existncia de direitos por parte de pequenos
posseiros, e os encaravam como simples agregados. O romancista e jurisconsulto Jos de Alencar,
ao defender maior valor para as transcries, chegou a reconhecer a possibilidade de ocorrerem
inconvenientes nessa proposta. Mas, para ele, quem viesse a perder a sua posse (...) seria
compensado pela perfeita regularizao da propriedade territorial.53.
Outros jurisconsultos e deputados negavam as propostas, segundo as quais as transcries no
RGI deveriam representar prova de propriedade. Eles estavam mais prximos do cotidiano no
Estado do que no da fazenda. Assim, buscavam conter as exageraes dos potentados e dos
intelectuais mais prximos a eles. Mas no se afastavam completamente dos seus anseios. Adotaram
um posicionamento muito parecido com o de No no conto do Machado, encarando a regularizao
fundiria como indevida interveno do Estado, nas relaes privadas de mando senhorial.
Buscavam evitar os exageros dos potentados, mas recusavam eliminar a possibilidade desses grupos
continuarem invadindo terras pelas portas dos fundos de suas fazendas. Augusto Teixeira de Freitas
e Nabuco de Arajo, por exemplo, chegaram a representar a possibilidade do Estado agir,
estabelecendo os limites territoriais e checando a validade dos ttulos como uma revoluo54.
Desse modo, longe de brigarem com os potentados para impor a regularizao fundiria, presente
na Lei de Terras de 1850, eles se ajustaram. possvel pensarmos aqui, numa negociao entre
agentes estatais, com o posicionamento senhorial ou, ao menos, a existncia de diferentes posturas
sobre a questo no interior das instituies estatais.
O Instituto dos Advogados Brasileiros, a propriedade e o Estado
Fundado em 1843, O Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) possuiu no Imprio uma
relao muito ntima com o Estado. Segundo Maria da Glria Bonelli, (...) todos os estudos sobre
53 IHGB. Documentao relativa reforma hipotecria, compilada por Nabuco de Arajo. Pasta 4. Lata 389. 54 FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidao das Leis Civis. 2 ed. Mais aumentada. Rio de Janeiro: Typ Universal
de Laemmert, 1865. p CCV.
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os bacharis no Imprio apontam sua participao ativa na construo do Estado aps a
Independncia, fornecendo as bases dos projetos de nao em debate (...)55. Para Eduardo Spiller
Pena, existiam: "(...) ligaes orgnicas dos scios do IAB, desde sua fundao, com os quadros do
governo, tanto nos cargos administrativos, como nas cadeiras do legislativo e nas altas posies
ligadas ao Conselho de Estado ()"56. No momento de sua fundao, dentre os 36 membros, 75%
j haviam assumido cargos polticos na Corte57. Eles possuam vozes no Conselho de Estado, a mais
importante instncia de deciso no Imprio58. Contaram com muitos ministros, parlamentares,
juzes e renomados jurisconsultos em sua composio59. A instituio estabelecia uma relao de
mo dupla com o governo, atravs da qual conseguia controlar e disciplinar o exerccio de sua
profisso, bem como diferenciar os seus membros fundadores, de outros advogados60.
Os jurisconsultos do IAB tiveram importante participao na elaborao das normas
jurdicas daquele momento, como tambm respondendo a consultas sobre dvidas de entendimento
de seu significado. Atuaram, de forma determinante, na promulgao e interpretao da Lei de
1864. O primeiro projeto de reforma da legislao hipotecria foi elaborado por Nabuco de Arajo,
membro da instituio e Ministro da Justia. Augusto Teixeira de Freitas, integrante do IAB,
conhecido por sua participao nas tentativas de escrever um Cdigo Civil para o Imprio, foi
consultado sobre a viabilidade desta proposta. Agostinho Marques de Perdigo Malheiros,
jurisconsulto e scio do instituto, tambm se posicionou sobre a interpretao da norma. Eles
produziram importantes discursos sobre a legislao, nos quais manifestaram suas concepes de
propriedade e de Direito.
O Instituto dos Advogados Brasileiros pregava um discurso positivista sobre a interpretao
das leis61. Acreditava tambm na existncia de um potencial criador do social para as normas
jurdicas, propondo, inclusive, que elas fossem elaboradas com pretenso de servirem para todo o
futuro. Eles tendiam a valorizar as normas positivadas, desconsiderando outras fontes jurdicas62.
Tratava-se de valorizar o direito, enquanto expresso da autoridade estatal e de defender uma
racionalidade cartesiana. Segundo o discurso interno, manifesto em sua revista, a instituio teria
55 BONELLI, Maria da Glria. O Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros e o Estado: A profissionalizao no
Brasil e os limites dos modelos centrados no mercado. IN: Revista Brasileira de Cincias Sociais. Vol 14. n 39
fevereiro/ 99. p 61-81. 56 PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa imperial: jurisconsultos, escravido e a Lei de 1871. Campinas: Editora da
Unicamp, 2001. p. 37. 57 Ibid., p. 38. 58 Ibid., p. 40. 59 Ibid., p. 40. 60 PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa imperial: jurisconsultos, escravido e a Lei de 1871. Campinas: Editora da
Unicamp, 2001. p. 32-42. 61 Ibid., p. 46. 62 Ibid., p. 45-46.
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surgido com o intuito esclarecido de eliminar os desentendimentos das aladas sobre o
entendimento das leis63. Acreditavam na proposta de Montesquieu, segundo a qual o juiz deveria ser
a boca inanimada da lei64. Mas mesmo assim, sendo a leitura uma atividade social, no foram
capazes de elaborar um caminho nico para o entendimento da propriedade, seja esta a escrava ou a
imobiliria.
Com relao propriedade sobre os cativos, os intelectuais oscilavam entre a defesa de uma
emancipao gradual e os princpios humanitrios do liberalismo65. Eles divergiam entre si, ora
elaborando interpretaes jurdicas favorveis sorte dos cativos, ora defendendo o sagrado direito
de propriedade senhorial. As propostas de emancipao defendidas por eles visavam (...) uma
transio gradual da escravido para a liberdade sem traumas ( ordem e tranquilidade do
Imprio) e sem maiores prejuzos (aos proprietrios) ()66. Desta forma, (...) o discurso
emancipacionista dos jurisconsultos foi essencialmente conservador ()67. No interior do IAB
existiram diferentes propostas de encaminhamento da questo da escravido, mas sempre
equalizando o sagrado direito de propriedade sobre os cativos, com o da liberdade.
O IAB tambm formulou diversas propostas sobre o modelo de transmisses de imveis a
ser adotado para o Brasil. Nesta temtica, mais uma vez, o discurso liberal da instituio tendeu ao
conservadorismo. Nabuco de Arajo e Augusto Teixeira de Freitas recusaram as propostas dos
deputados mais prximos dos potentados rurais, de garantir transcrio das alienaes
imobilirias, o carter comprobatrio. Afirmavam que diante das incertezas territoriais, isto geraria
inconvenientes e fraudes. No entanto, no aceitavam a possibilidade de realizar uma regularizao
fundiria prvia, estabelecendo os limites territoriais e averiguando as titulaes. Os dois
consideravam que isto seria uma indevida interveno do Estado nas relaes privadas de mando
dos potentados rurais. Desta forma, ponderavam entre evitar os exageros propostos pelos deputados
mais prximos dos fazendeiros e a preservao de uma noo conservadora de propriedade
senhorial. Perdigo Malheiros, no outro polo, interpretou a Lei Hipotecria de 1864, abrindo
brechas para desconsiderar a necessidade de transcrever os contratos de compra e venda no RGI e
assumir as escrituras de compra e venda como prova dominial para os adquirentes.
A questo da propriedade privada no Imprio
63 Ibid., p. 46. 64 MONTESQUIEU, Charles de Secondant. Do esprito das leis. So Paulo: Martin Claret, 2010. 65 PENA, op. cit., p.78-79. 66 Ibid., p. 36. 67 Ibid., p. 36
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A Lei Hipotecria de 1864 e a Lei de Terras de 1850 foram apresentadas por alguns
estudiosos como origem da propriedade privada, e at do capitalismo, no Brasil. Jos de Souza
Martins foi o primeiro pesquisador a defender este pensamento68. Para ele, a Lei de Terras teria
acabado com as fronteiras abertas, como forma de impedir aos cativos, o acesso terra. Desta
forma, a referida legislao teria criado a propriedade absoluta. Mais tarde, Roberto Smith foi alm
neste raciocnio, afirmando que a Lei de Terras de 1850 e a Lei Hipotecria de 1864 foram parte da
origem do capitalismo e da propriedade privada no Brasil69.
Com relao Lei de Terras de 1850, a historiografia j demonstrou o quanto os impactos
desta legislao foram superestimados. Jos Murilo de Carvalho defendeu que a referida legislao
foi vetada na prtica pela ao dos bares70. Para ele, a referida lei no teria conseguido regularizar
a estrutura fundiria, estabelecendo os limites territoriais e dando valor aos ttulos de propriedade.
Mrcia Motta corrobora com este pesquisador, ao afirmar que a norma no teria acabado com o
costume da posse71. Mas a autora vai alm, ao demonstrar ser exagerada a afirmao, segundo a
qual os fazendeiros teriam vetado a Lei de Terras na prtica. Ela apresenta como os dispositivos
desta norma foram utilizados, de diferentes formas, por agentes sociais em cada contexto social.
Seguindo esta orientao, os estudos com enfoques regionais demonstram que, com exceo de uma
regio do Rio Grande do Sul, a Lei de Terras no teria conseguido criar a propriedade privada72.
Mas a Lei Hipotecria de 1864 foi praticamente relegada ao limbo da historiografia. Com
exceo de nossos estudos, entre os pesquisadores do rural, restam apenas as afirmaes de Roberto
Smith e alguns comentrios, bastante pertinentes, de Lgia Osrio73. Nossas fontes indicam a
existncia de exageros na afirmativa de que a Lei Hipotecria de 1864 teria criado a propriedade
absoluta no Brasil. Elas tambm apontam para a necessidade de enfoques regionais sobre o tema.
Em primeiro lugar, a proposta segundo a qual a transcrio representaria prova de propriedade para
os adquirentes foi derrotada no legislativo. Mas no cotidiano, alguns fazendeiros conseguiram, com
68 MARTINS, Jos de Souza. O Cativeiro da Terra. So Paulo: Editora Cincias Humanas, 1979. 69 SMITH, Roberto. A propriedade de terras e transio: estudo sobre a formao da propriedade privada e
transio para o capitalismo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1990. 70 CARVALHO, Jos Murilo de. A Modernizao frustrada: A poltica de terras no Imprio. Revista Brasileira de
Histria. So Paulo, n. 1, p. 39-57, 1981. 71 MOTTA, Mrcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflitos e direito terra no Brasil do sculo XIX. Rio de
Janeiro: Vcio de leitura, 1998. 72 Segundo Lgia Osrio Silva (SILVA, 1996: 220.), o Rio Grande do Sul foi uma exceo entre as outras provncias.
Em suas palavras, "(...) foi a nica provncia que apresentou s autoridades maiores informaes sobre os Servios
de Terras (...)". Segundo Cristiano Lus Christillino (CHRISTILLINO, 2010.), isto ocorreu por causa de uma relao
clientelar entre o estado Imperial e as elites sul riograndenses. Por causa da importncia estratgica da regio nos
conflitos da regio platina, a Coroa abriu brechas na legislao territorial e fez vistas grossas s grilagens da elite
local, de forma a conseguir a adeso dos lderes farroupilhas para o projeto de centralizao imperial, combatendo a
revolta de cunho separatista desta provncia. Assim, foi possvel um processo de regularizao fundiria em parcela
do Rio Grande do Sul no qual foram sacralizadas, atravs da grilagem, s terras da elite local, em detrimento dos
direitos de pequenos ervateiros que habitavam a localidade. 73 SILVA, Lgia Osrio. Terras devolutas e latifndio: efeitos da Lei de Terras de 1850. Campinas: UNICAMP, 1996.
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o suporte de interpretaes jurdicas nada pacficas, utilizar as escrituras de compra e venda como
prova dominial. H que se pensar em como a norma foi implementada nos conflitos de cada
localidade.
Alm disso, no ano de 1876, o juiz Manuel Martins Torres afirmou sobre os dispositivos da
Lei Hipotecria de 1864 e de seu regulamento que (...) apesar da longa existncia, ainda no so
bem e fielmente executados na maior parte dos municpios do imprio ()74. De acordo com ele,
nenhuma alienao de imveis foi matriculada no Registro Geral de Imveis, em seu municpio, at
1872. Segundo o magistrado de Itaja, o mesmo se repetia em outras provncias do imprio,
principalmente nas do interior. Neste sentido, mais uma vez, as fontes mostram a necessidade de
estudos, com recortes geogrficos reduzidos, para sabermos onde as transcries foram realizadas,
quais grupos sociais tenderam a executar essas formalidades, quais seus interesses, a participao
ou no deles em conflitos, etc.
Concluso
Em resumo, pensaremos as discusses sobre a propriedade, internas classe senhorial e
ocorridas durante a promulgao, interpretao e aplicao da Lei Hipotecria de 1864. Desta
forma, o nosso recorte cronolgico abarcar os anos compreendidos 1853, quando o Ministro da
Justia Nabuco de Arajo props na Cmara dos Deputados a reforma da legislao hipotecria, e
1873, ano no qual Manuel Martins Torres - juiz do municpio de Itaja - apresentou importantes
consideraes sobre a aplicao da norma. Mas no enfocaremos os dispositivos desta norma mais
especficos sobre a hipoteca. Ns destacaremos as prescries de transformao na forma de
transmitir a propriedade imobiliria presentes nesta legislao.
Embora a demarcao temporal de nossa pesquisa esteja localizada no Segundo Reinado,
precisaremos retroceder para pensarmos como a propriedade era transmitida anteriormente. Ns,
historiadores brasileiros, pouco sabemos sobre as formas de alienao mobiliria pretritas em
nosso pas. Estudamos quantitativamente o aumento ou a reduo de transmisses entre vivos,
porm sem observarmos como estes negcios ocorriam em cada localidade deste imenso territrio.
Para entendermos as discusses e propostas de modificao formal deste ato, precisaremos
apresentar um pouco sobre o passado.
No primeiro captulo, debruamos-nos sobre as formas de alienar imveis, sobretudo os
rurais, anteriores Reforma Hipotecria de 1864. Vimos como o pensamento jurdico aceitava a
74 TORRES, Manuel Martins. Lei Hypothecaria: Lei n. 1.237 de 24 de setembro de 1864 e Decreto n 3453 de 26 de
Abril de 1865, completamente annotada. Rio de Janeiro: Editor A. A. da Cruz, 1876. p. VII.
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existncia de dispositivos contraditrios entre si sobre a questo, pois no preponderarava a noo
abstrata de que deveria existir uma norma exclusiva a ser aplicada igualmente em todos os casos
concretos. Apresentamos tambm algumas propostas de mudanas sobre a forma de alienar a
propriedade e de pensar o Direito, inspiradas no liberalismo. Estas defendiam uma concepo
absoluta de propriedade, mas tambm a concepo positivista de Direito. Nesta nova forma de
pensar a atividade jurdica, a norma positivada era afirmada como a nica fonte vlida para o
pensamento jurdico, desconsiderando os costumes. Tratava-se de uma noo de Direito inspirada
pelo formalismo e positivismo incipiente da Escola da Exegese. Buscava-se afirmar uma nica
forma de compreender os textos legais da ordem jurdica anterior, sacralizando uma leitura das
ordenaes ibricas, em detrimento de outras. Mas na prtica, no foi possvel a promulgao de
normas capazes de transcender a dinmica social e ser aplicada de forma homognea em todos os
casos, pocas e territrios. A realidade era muito mais complexa, fazendo com que os dispositivos
jurdicos manifestassem diferentes aplicaes das regras e dispositivos legais.
No segundo captulo, apresentaremos os debates sobre a propriedade, ocorridos durante a
promulgao da Lei hipotecria de 1864. Perceberemos a existncia de diferentes encaminhamentos
de alterao na forma de transmitir a propriedade no Brasil. De um lado, grupos mais prximos dos
potentados rurais, tentando imprimir, na legislao, o carter comprobatrio para a matrcula das
alienaes imobilirios. De outro lado, mas no menos conservador, um grupo de intelectuais,
negando a legitimidade de fazer isto sem uma prvia e indesejada regularizao fundiria. Eles
consideravam indesejadas as demarcaes dos limites e averiguao da titularidade porque
pensavam-nas como ilegtimas intruses do Estado nas relaes privadas de mando senhorial.
Assim, concluiremos que, nesses debates no existia uma dissociao entre uma elite poltica e os
bares. Ao contrrio, havia diferentes propostas de encaminhamento da questo, dialogando com os
interesses senhoriais, com diferentes noes de propriedade e lgicas econmicas.
No terceiro captulo, trataremos da aplicao e da interpretao da norma de 1864.
Refutaremos as afirmaes, segundo as quais, a referida legislao teria criado a propriedade
privada no Brasil, indicando a necessidade de pensar a sua aplicao em uma escala mais reduzida.
Indicaremos tambm como alguns potentados utilizaram a polissemia de dispositivos norma, de
forma a falsificar a propriedade. Alguns jurisconsultos, inclusive, elaboraram interpretaes
favorecendo esta prtica. Outros intelectuais criticavam essas leituras, mas ainda assim, ficaram
contra quaisquer possibilidades de regularizar a estrutura agrria. Neste sentido, h tanto um
conflito entre essas formas de compreender o texto jurdico, quanto uma negociao. Estava longe
de existir uma dicotomia inconcilivel entre estes intelectuais, que atuavam na burocracia, e os
potentados.
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AS FORMAS DE TRANSMITIR A PROPRIEDADE: DA TRADIO
TRANSCRIO.
Segundo Paolo Grossi, (...) a histria do pertencimento e das relaes jurdicas sobre as
coisas necessariamente marcada por uma profunda descontinuidade (...)75. Essa reflexo ser
nossa guia neste captulo. Isto porque pretendemos desnaturalizar a forma na qual convencionamos
transmitir a propriedade pelo ato de compra e venda - ou atravs da qual imaginamos esse ato
jurdico. Para isto, apresentaremos um pouco sobre os modos atravs dos quais a alienao
imobiliria era realizada antes da Lei Hipotecria de 1864, relacionando com os conflitos e as
relaes sociais nas quais essa atividade esteve imersa. Mencionaremos, em alguns momentos, a
existncia de embates por terras relacionados s transferncias dominiais, com base nos debates
realizados por outros historiadores, para no idealizarmos instituies mais antigas. Mas esse no
ser o nosso objetivo. Nosso enfoque recair sobre a mudana das instituies no tempo, sem deixar
de lado a existncia das divergncias em prol de uma narrativa linear do surgimento da propriedade
privada.
A Lei Hipotecria de 1864 propunha mudanas no tocante alienao e aquisio da
propriedade imvel. Essas transformaes na forma de se transferir o domnio esto em uma
penumbra, se procurada nos estudos dos historiadores preocupados com o rural. Muito pouco
conhecemos e estudamos sobre o assunto, ainda mais no que tangencia a questo da propriedade.
Tirando apontamentos genricos e pouco comprovados empiricamente de que ela teria criado a
propriedade privada76 ou menes pontuais mais preocupadas com a atividade creditcia no
75 GROSSI, Paolo. A propriedade e as propriedades na oficina do Historiador. IN: Histria da propriedade &
Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 76 Esta afirmao foi realiza por Roberto Smith (SMITH, Roberto. A propriedade de terras e transio: estudo
sobre a formao da propriedade privada e transio para o capitalismo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1990.). O
enfoque do seu trabalho recaa sobre a Lei de Terras de 1850. Para ele, as duas normas teriam criado juntas a
propriedade privada e absoluta. Quanto Lei de Terras, seu trabalho j foi problematizado por vrios outros autores
posteriores, dentre eles Jos Murilo de Carvalho (CARVALHO, Jos Murilo. A Construo da ordem: A elite poltica
imperial & Teatro das sombras. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1980.) e Mrcia Motta (MOTTA, Mrcia
Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito terra no Brasil do sculo XIX. Niteri: Arquivo pblico do
Estado do Rio de Janeiro, 1998.). Outro autor que seguia uma orientao semelhante a de Smith, cujas ideias tambm
foram bastantes criticadas, foi Jos de Souza Martins (MARTINS, Jos de Souza. O Cativeiro da Terra. So Paulo:
Editora Cincias Humanas, 1979.). Para ele, a Lei de Terras e a Reforma Hipotecria teriam causado a transio do uso
de escravos como garantia de emprstimos para o uso dos imveis. Entretanto, Carlos Gabriel Guimares
(GUIMARES, C. G.. O Imprio e o crdito hipotecrio na segunda metade do sculo XIX: os casos do Banco Rural e
Hipotecrio do Rio de Janeiro e do Banco Comercial e Agrcola na dcada de 1850. In: Elione Silva Guimares;
Mrcia Maria Menendes Motta. (Org.). Campos em Disputa: Histria Agrria e Companhia. Juiz de Fora: Annablume;
Ncleo de Referncia Agrria, 2007. p. 13-40.), com um enfoque mais relacionado atividade creditcia do Banco
Rural e Hipotecrio do Rio de Janeiro, demonstra que os descontos de hipotecas foram muito inferiores s outras formas
de crdito. De acordo com o autor, os representantes da instituio, inclusive, apontavam as falhas na aplicao da Lei
de Terras de 1850 como a causa dos poucos investimentos no crdito imobilirio. Neste captulo no entraremos no
debate sobre a Lei hipotecria de 1864 ter criado a propriedade privada, mas esperamos que ao longo de nosso estudo
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Segundo Reinado77, pouco foi escrito sobre o assunto. Quanto aos trabalhos sobre a propriedade que
consideraram a Lei Hipotecria, seus autores estavam mais focados na Lei de Terras de 1850. A
reforma hipotecria de 1864 foi mais aprofundada pelos estudiosos da histria da rea do direito.
Mas algumas vezes, esses trabalhos da rea jurdica apresentam um enfoque bastante
evolucionista78.
interessante perceber que muitos estudos tratam sobre a existncia ou no de um mercado
de terras no Brasil do sculo XIX, sem que ns, historiadores, tenhamos sequer nos perguntado
sobre a forma, atravs da qual, a propriedade era transferida. Estudamos a Lei de Terras de 1850 em
diversas perspectivas, mas o que realmente sabemos sobre a Lei Hipotecria de 1864 e as mudanas
propostas em seu texto sobre a forma de alienar os imveis? Como era transferida a propriedade
antes? O que as Ordenaes ibricas diziam sobre o assunto? Qual era o papel do costume nestas
negociaes? Como esses atos jurdicos eram vividos na prtica dos conflitos sociais? Falamos do
crescimento do nmero de escrituras de compra e venda nesta ou naquela provncia do sculo XIX,
mas no deveramos tambm encarar essas fontes qualitativamente? Damos significados para esses
nmeros, sem pensarmos como a alienao imobiliria ocorreu ao longo do tempo e quais
mudanas ela realmente sofreu. Assim, quando nos propusemos a estudar os debates sobre a
mudana na forma de instituir a venda dos imveis na Lei Hipotecria de 1864, esbarramos no
seguinte problema: Como entender as diferentes propostas de alteraes da forma de transmitir a
propriedade, se to pouco sabemos sobre como isto era realizado antes? Buscamos aqui exatamente
possamos ajudar a refletir sobre o assunto. 77 Dentre os trabalhos preocupados com a atividade creditcia podemos citar os de Carlos Gabriel Guimares
(GUIMARES, 2007, op. cit., p. 13-40.) e de Tho Lobarinhas (PIERO, Tho Lobarinhas. A carteira hipotecria do
Banco do Brasil: os conflitos em torno do Crdito Agrcola no II reinado. IN; Elione & Mrcia, 2007, op. cit. p 41- 62) 78 Seria cansativo apontar os inmeros estudos da rea do direito nos quais a Lei Hipotecria aparece. Ela
presente na abordagem histrico-jurdica por causa das preocupaes dos estudiosos do campo do direito imobilirio
com a atividade registral. Mas vale apontar alguns trabalhos sobre o assunto. Segundo Laura Beck Varela ( VARELA,
Laura Beck. Das Sesmarias propriedade moderna: um estudo de histria do direito brasileiro. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005. ), importante historiadora do direito, a reforma hipotecria foi uma (...) face do processo de
mercantilizao da terra e de absolutizao da propriedade fundiria, cuja veste jurdica, ao lado da Lei de 1850,
corresponde disciplina da hipoteca e do registro (VARELA, 2005, op. cit., 173). Outros autores, mais presos
cincia jurdica, possuem um enfoque de longa durao, bem caracterstico da abordagem da histria do direito
realizada por alguns estudiosos do campo jurdico, na qual a preocupao se volta para as mudanas pelas quais as
normas e instituies jurdicas sofreram ao longo do tempo. Dentre eles, podemos citar Marcelo Saroli (OLIVEIRA,
Marcelo S. Institucionalizao da publicidade registral imobiliria no ordenamento jurdico brasileiro. Dissertao
(Mestrado em direito) Faculdade de Histria, Direito e Servio Social, UNESP, Franca, 2006.) e Jlia Rosseti (VIEIRA,
Julia Rosseti Picinin Arruda. Transmisso da propriedade imvel pelo registro do ttulo e segurana jurdica: um
estudo de histria do direito brasileiro. Dissertao (Mestrado em histria do direito) Faculdade de Direito, USP, So
Paulo, 2009.). O enfoque do primeiro mais direcionado para entender a alterao da atividade registral ao longo do
tempo, prendendo-se pouco s noes de propriedade conflituosas expressas por ocasio da promulgao e aplicao da
Lei Hipotecria de 1864. O segundo trabalho, embora destaque a transmisso da propriedade, apresenta um olhar
marcado pelo evolucionismo e contextualiza a Lei Hipotecria usando estudos datados sobre a questo fundiria no
Brasil, tais como os de Jos de Souza Martins. Assim, embora seu enfoque no seja a realidade social, acaba deduzindo
a vida social dos textos jurdicos, chegando ideia de um mercado imobilirio nos moldes capitalistas no Brasil do
oitocentos. No entraremos em detalhes sobre o assunto, mas pretendemos em nossos trabalhos apresentar uma
realidade social um pouco mais complexa e marcada pelo conflito territorial.
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fazer um esforo de recuperar esse passado, pouco desbravado pelos textos dos historiadores para,
ento, podermos avanar em nossa pesquisa.
Para tornar a nossa tese mais palatvel ao leitor do campo da histria, mas sem cair em uma
narrativa linear e evolucionista, faz-se necessrio apresentar as formas de transferir a propriedade
que antecederam a Lei Hipotecria de 1864 e um pouco do contexto conflituoso no qual esta norma
foi elaborada. Como o foco de nossa pesquisa est relacionado com o momento dos debates sobre a
Reforma Hipotecria, iniciados em 1853, no priorizamos, aqui, um estudo dos conflitos sobre a
propriedade nos momentos anteriores ao nosso enfoque. Este captulo , para usar uma metfora,
uma abertura de parnteses na nossa pesquisa. Tambm falaremos sobre algumas normas referentes
hipoteca promulgadas anteriormente no Brasil Imprio, como forma de possibilitar um maior
entendimento posterior dos debates que se seguiro e para apresentar a relao entre interesses
creditcios e as mudanas na forma de transmitir o domnio. Ao mesmo tempo, estaremos expondo,
de forma diluda, alguns conceitos jurdicos pouco conhecidos pelos historiadores e por quem mais
no tenha estudado o jargo do campo jurdico. Esses termos ajudaro para uma melhor
compreenso das discusses sobre a propriedade, focadas nos captulos seguintes.
As Ordenaes e a transmisso da propriedade
A emancipao poltica brasileira no foi fruto de uma dicotomia irreconcilivel entre
colnia e metrpole ou de um nacionalismo previamente existente79. A independncia foi o
resultado de um processo de disputas entre comerciantes portugueses, sediados nas cidades de Porto
e Lisboa, contra a elite fluminense80. Essa elite era formada por comerciantes e burocratas
portugueses, cujos interesses estavam enraizados no Brasil, bem como por produtores coloniais.
Alguns comerciantes portugueses teriam se interiorizado na regio sul (atual sudeste) e seus
interesses teriam se mesclado com os dos produtores locais, atravs de uma poltica de alianas e
casamentos desde a vinda da Famlia Real em 180881. Esse conflito se iniciou diante da tentativa
dos comerciantes sediados em Porto e Lisboa de recolonizarem Amrica portuguesa, aps alguns
79 COSTA, Emlia Viotti. Introduo ao estudo da emancipao poltica do Brasil. In: MOTA, Carlos
Guilherme (org.). Brasil em perspectiva. So Paulo: Difel, 1982. 80 DIAS, Maria Odila da Silva. "A interiorizao da metrpole (1808-1853)". In: MOTA, Carlos Guilherme, org.
1822 - Dimenses. So Paulo: Perspectiva, 1972. 81 Alguns historiadores j demonstraram que esse processo de interiorizao seria mais antigo do que propusera
Maria Odila. Kenneth Maxwell (MAXWELL, Keneth. Pombal and the nationalization of the Luso-Brazilian economy.
IN: Hispanic American Historical Review, n. 47, p. 608-631, 1968 ), por exemplo, demonstrara como reformas
ocorridas no perodo pombalino j haviam iniciado esse processo de aproximao dos interesses ibricos com os
produtores da Amrica portuguesa.
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anos de relativa autonomia iniciados com a vida da Corte, com a abertura dos portos s naes
amigas e a transformao do Brasil em Reino Unido. A elite fluminense no desejava perder os
benefcios adquiridos com a presena do monarca na Amrica portuguesa e no pretendia voltar a
ser colnia. De outro lado, os participantes da Revoluo do Porto exigiam a volta da Famlia Real
e a recolonizao da Amrica portuguesa. O agravamento deste conflito levou formalizao da
emancipao poltica em 1822.
Uma vez que, a independncia no tenha sido o resultado de um nacionalismo previamente
existente e diante da impossibilidade de se substituir imediatamente as legislaes portuguesas por
outras fontes jurdicas, optou-se pela continuidade da vigncia das Ordenaes portuguesas no
territrio emancipado. Assim, a Lei de 20 de outubro de 1823 estabelecia a continuidade da
aplicabilidade das fontes do direito portugus no Brasil, dentre elas as Ordenaes e alvars
ibricos. Por isso, de acordo com o direito escrito, a forma de aquisio de propriedade continuou
sendo a mesma de antes da independncia at 1864, quando foi promulgada a Lei Hipotecria n.
1.237 de 1864. As Ordenaes ibricas permaneciam em vigor. Segundo essas Ordenaes, a
formalidade necessria para aquisio de propriedade imobiliria era a tradio.
A tradio era a entrega da coisa alienada para o adquirente realizada pelo vendedor ou a
realizao de um ato que
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