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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
ANDRESSA D’ÁVILA
EM BUSCA DA METODOLOGIA PERFEITA: A COLETA DE DADOS NOS
ESTUDOS EM AQUISIÇÃO DA ESCRITA
CURITIBA
2011
ANDRESSA D’ÁVILA
EM BUSCA DA METODOLOGIA PERFEITA: A COLETA DE DADOS EM AQUISIÇÃO DA
ESCRITA
Monografia apresentada à disciplina Orientação
Monográfica II como requisito parcial à obtenção
do título de bacharel em Letras – Português, com
ênfase em Estudos Linguísticos, Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal
do Paraná.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Claudia Mendes Campos
CURITIBA
2011
iii
Agradecimentos
À Claudia Mendes Campos, pelo trabalho sempre em conjunto, por ter sido a
primeira a acreditar e, sobretudo, instigar os meus ímpetos – irritados e irritantes – de
pesquisa. Obrigada por ser a melhor orientadora de todos os tempos e por me
proporcionar sempre tantas outras alegrias...
Aos amigos, sem os quais percorrer esse caminho não teria sido possível... sem
os quais eu mesma não teria sido possível! Minha imensa gratidão e todo meu carinho à
Luiza Souza, à Marina Legroski, à Paola Antonio, ao José Olivir de Freitas Jr., à
Jennifer Albuquerque, ao Gesoel Mendes Jr., ao Álvaro Fujihara, à Mariana
Trautwein, à Cindy Gavioli, à Andrea Knöpfle, ao Marcos Carreira, ao Filipe Reblin e
ao Leandro Cardoso. Todos exerceram papel fundamental, cada um a sua maneira, em
diferentes momentos dos últimos anos. Vocês são todos maravilhosos, bonitos,
inteligentes (muito inteligentes!!) e bem-educados! Pura perfeição! Obrigada por tudo.
Aos professores do Departamento de Linguística, Letras Clássicas e
Vernáculas, responsáveis por todos os méritos da minha formação, pela disponibilidade
e pelo incentivo. Em especial: à Lígia Negri, pela animação e... porque é isso, né?, e ao
Márcio Renato Guimarães, pelos pepinos polêmicos e pelas muitas gargalhadas. A
ambos pela amizade.
À minha família, mesmo que eles não acreditem...
(aos viajantes Gil Caruso e a Luísa Mouzinho, que apareceram aos 45 minutos do
segundo tempo, mas que também tiveram sua importância.)
Aos demais colegas de graduação, que sempre torceram por mim.
Ao Tesouro Nacional, pelo financiamento.
iv
"Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio
da travessia"
João Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas
v
Resumo
O objetivo deste trabalho é discutir as metodologias experimental e naturalística nos
estudos de aquisição de escrita, apresentando uma visão geral de como tais métodos são
empregados, apontando que relação se estabelece entre a teoria eleita pelo pesquisador e
metodologia utilizada para a coleta dos dados.
Abstract
The aim of this work is to discuss experimental and naturalistic methodologies in
studies of writing acquisition, presenting a general view of how such methods are
employed, and pointing what relation can be established between the theory elected by
the researcher and the methodology used to collect data.
vi
Sumário
0. Introdução ............................................................................................................. 1
1. Disposições gerais ................................................................................................. 3
1.1. Coleta de dados em aquisição de linguagem ....................................... 3
1.2. Metodologia em aquisição da escrita .................................................. 7
2. Coleta experimental: o construtivismo em aquisição da escrita ........................... 13
2.1. Epistemologia genética piagetiana: as bases de Emília Ferreiro ....... 13
2.2. A psicogênese da língua escrita ........................................................... 15
3. Coleta naturalística: o interacionismo e o paradigma indiciário ........................... 20
3.1. Dados singulares e a relação entre sujeito e linguagem ..................... 20
3.2. Aquisição da escrita como efeito de linguagem ................................... 25
4. Considerações finais ............................................................................................. 32
Referências bibliográficas ........................................................................................... 34
1
Introdução
Os estudos sobre a escrita infantil se intensificaram a partir da década de 80,
quando a linguística passou a se interessar, para além da fala, também pela escrita da
criança. De acordo com Abaurre (2009), no Brasil, esse contato foi consequência da
proposta feita pelas secretarias estaduais e municipais de educação, que promoveu o
diálogo entre os pesquisadores das universidades e os professores das séries iniciais a
respeito dos aspectos linguísticos da alfabetização; a fim de capacitar os professores
para, com o instrumental teórico oferecido pela linguística, analisar o processo de
aquisição de escrita dos alunos.
Com o desenvolvimento das investigações, as pesquisas com dados de escrita
inicial se mostraram relevantes também para elucidar questões teóricas de interesse da
própria linguística. Alguns estudos se utilizam desses dados para, por exemplo, tratar da
influência da oralidade no processo de aquisição da escrita; outros se propõem a pensar
aspectos relacionados à textualidade; ou ainda há aqueles que trabalham com os erros a
fim de avaliar e levantar hipóteses sobre essas irregularidades.
Tal como nas demais áreas da linguística, as pesquisas em aquisição da escrita
podem ser realizadas a partir de diferentes perspectivas teóricas. O pesquisador elege,
em função dos pressupostos de base da sua teoria, maneiras de trabalhar com o objeto
de estudo, isto é, os procedimentos metodológicos a partir dos quais terá acesso aos
dados. Serão as metodologias adotadas para a coleta de dados nas pesquisas em
aquisição da escrita o enfoque desse trabalho. Para tanto, partiremos da oposição entre
método experimental e método naturalístico tal como apresentados em Perroni (1996).
O trabalho será dividido em três capítulos. No primeiro capítulo, apresentaremos
a discussão empreendida por Perroni relativamente aos trabalhos sobre a oralidade e, na
sequência, seguindo o percurso da autora, explicitaremos as noções que nortearão a
nossa pesquisa em particular. Nos dois capítulos seguintes, apresentaremos três
perspectivas a partir das quais se pode analisar a escrita da criança, mostrando a
influência das escolhas teóricas sobre a metodologia das pesquisas. As vertentes teóricas
escolhidas são: i) o Construtivismo, que será tema do segundo capítulo, representado
por Emília Ferreiro e seus colaboradores; ii) os estudos orientados pelo Paradigma
2
Indiciário, tal como desenvolvidos por Maria Bernadete Abaurre, entre outros, à luz do
historiador Carlo Ginzburg; e o iii) Interacionismo, concebido por Cláudia Lemos para
o tratamento da fala da criança, mas que foi adotado por outros pesquisadores para
explicar também a escrita – como é o caso de Zelma Bosco, por exemplo. Essas duas
últimas abordagens serão tratadas no terceiro capítulo. Ao apresentar cada uma das três
perspectivas citadas acima não pretendemos descrevê-las em sua totalidade, isto é, serão
abordados apenas os aspectos que, a nosso ver, são determinantes para constituição da
situação de pesquisa.
3
Capítulo 1 – Disposições gerais
1.1. A coleta de dados em aquisição de linguagem
Em artigo publicado em 1996, Cecília Perroni confronta os dois principais
procedimentos metodológicos utilizados nos estudos em aquisição de linguagem: o
método experimental e o método naturalístico/observacional.1 A autora inicia a
discussão chamando a atenção para o fato de não haver uma metodologia única e
comum aos pesquisadores que se debruçam sobre a fala da criança. A área, que desde a
origem é constituída pela intersecção entre ramos independentes de conhecimento,
tende a alternar suas escolhas metodológicas em função dos métodos adotados pelas
ciências fundantes (a Psicologia e a Linguística, essencialmente).
Nos trabalhos científicos em geral, a discussão sobre métodos de pesquisa está
intimamente relacionada com questões sobre a natureza do que se considera como
dado. Parece bastante trivial dizer que um método científico são procedimentos
empregados para a investigação de fatos; menos trivial, no entanto, é pensar sobre o que
é, de fato, o fato que se investiga. Segundo Perroni, pelo viés empirista, por exemplo,
os fatos seriam anteriores e independentes das teorizações que se faz sobre eles; ou seja,
os elementos da realidade seriam fundamentais para a que a constituição das teorias. A
autora afirma, no entanto, que há que se considerar a influência dos conceitos definidos
pelo próprio investigador quando da interpretação desses “elementos da realidade”. É a
teoria, portanto, que norteará a seleção de quais são os dados relevantes para pesquisa,
impossibilitado um olhar ateórico. Disso decorre a ideia de recorte que:
“(...) contraria a concepção tradicional ocidental do conhecimento
como objetivo, individualista e aistórico, independente da condição
humana. Contraria também a suposição da possibilidade de acesso
direto a um mundo dito bruto, conhecido diretamente, com
consequente obscurecimento do fato de que critérios chamados
„objetivos de identificação de „comportamentos‟, „eventos‟,
1 A partir de agora preferiremos o termo naturalístico em lugar de observacional, uma vez que a
observação também é parte da pesquisa experimental. Essa escolha tem o objetivo de deixar a oposição
entre os métodos mais clara.
4
„entidades‟ têm sido altamente circunscritos pela cultura, história ou
contexto social.” (PERRONI, op. cit., p. 17)
Nesse sentido, se a escolha do que pode ser considerado dado passa pelo filtro
da teoria com a qual se trabalha, também o tratamento metodológico que se dá ao dado
é determinado pelo viés teórico do pesquisador. Os passos que constituem o trabalho
metodológico – coleta e análise dos dados – são fundamentalmente seletivos e, desse
modo, determinados aspectos do objeto são priorizados em detrimento de outros.
Destacados os reflexos da teoria eleita sobre a metodologia de pesquisa, Perroni
passa a tratar especificamente dos dois métodos adotados para coleta de dados nos
estudos de aquisição de linguagem. Como já dito anteriormente, a área tem fortes raízes
na Psicologia, isso explica porque durante algum tempo o método mais comumente
utilizado na área tenha sido o método experimental – o mais difundido entre os
psicólogos no início da década de 70. Esses trabalhos se propunham a descrever e
explicar a competência linguística da criança a partir de dados obtidos por meio de
situações controladas. A justificativa para o controle de variáveis era a tentativa de
capturar o conhecimento gramatical da criança em “estado bruto”. No entanto, ainda na
década de 70, a tendência da Linguística de mudar o foco da estrutura para o sentido
motivou, no interior da área de aquisição de linguagem, o aparecimento do método
naturalístico, cujo objetivo se voltava para a produção linguística – mesmo sendo fruto
de uma mudança de postura teórica, os dados colhidos naturalisticamente ainda se
prestavam à depreensão da competência da criança.
Para estabelecer o cotejo entre os dois métodos, a autora começa tratando da
perspectiva experimental e elenca o que seriam, em suas palavras, “as supostas
vantagens de tal método” (Perroni, op. cit., p. 19): i) possibilidade de replicabilidade
dos experimentos por outros pesquisadores; ii) resultados que permitiriam
considerações de caráter mais geral; iii) obtenção de informações que não se
depreenderiam apenas da observação.
Na sequência, porém, são apresentados alguns problemas impostos por esse
método. Um deles diz respeito ao controle de variáveis; de acordo com Perroni, mesmo
que a criança execute o teste precisamente como manda a instrução, não é possível
saber com base em que ela executou tal tarefa, nem prever se foi a variável linguística
5
em questão no experimento que agiu de acordo com o esperado. “Com efeito, as
crianças buscam fazer sentido da situação vivenciada, não havendo evidências de que
sejam capazes de focalizar apenas a linguagem no experimento.” (Perroni, op. cit., p.
20).
Outra das dificuldades apresentadas pela autora como próprias do método
experimental está relacionada à busca pela objetividade dos dados obtidos. Os
resultados dessas pesquisas são apresentados por meio de estatísticas relativas ao grupo
que foi submetido ao teste. Essas porcentagens seriam medidas de tendência geral que
apagariam as diferenças individuais, além de serem abstrações que podem não se aplicar
a nenhuma criança em particular. Além disso, Perroni critica ainda a forma como se
interpreta a ausência da estrutura pretendida pelo experimentador. Quando a criança não
atende satisfatoriamente ao comando do teste aplicado, declara-se que o informante
ainda não possui o conhecimento em questão – o que, na perspectiva da autora, é uma
posição simplista.
Perroni afirma que o objeto dos estudos em aquisição de linguagem que
adotam o método experimental não é necessariamente o desenvolvimento linguístico da
criança. Os problemas identificados são consequências do que a autora chama de
“ilusão da objetividade”, que se dá quando o pesquisador pretende descrever a
linguagem em estado bruto, livre da interferência de qualquer outro fator que possa vir a
se manifestar no momento da produção (ou da compreensão) linguística do falante. O
que está na base desse posicionamento é uma concepção de língua desvinculada do
sujeito.
No início da década de 70, alguns trabalhos em aquisição de linguagem
passaram a adotar outro tipo de metodologia: a naturalística – procedimento
metodológico que pode servir tanto a pesquisas cujo foco é essencialmente a fala da
criança, quanto a pesquisas que pretendem olhar também para a relação entre a
produção da criança e a do adulto que com ela interage. Esse tipo de coleta é, ao
contrário da anterior, qualitativa “já que não se trata de provocar respostas, mas de
deixar falar a criança” (Perroni, op. cit., p. 22). Uma das vantagens desse método,
apontada pela autora, é a possibilidade de que as estruturas linguísticas venham à tona
dos dados, ao invés de serem impostas a eles. Além disso, o foco nessas pesquisas passa
6
a ser o desenvolvimento linguístico da criança, sua relação com a língua em atividade.
Importa, nesse sentido, o que de fato é produzido e não o que deveria ser produzido pela
criança em fase de aquisição.
A autora, no entanto, reconhece a dificuldade de realizar uma pesquisa
puramente naturalística. Nos casos em que o objetivo é analisar a fala da criança sem
considerar o diálogo com o adulto, o observador pode alterar a situação comunicativa de
modo que a naturalidade pretendida fique comprometida – e o pesquisador pode cair no
que Labov chama de “paradoxo do observador”.2 Além dessa, há ainda as dificuldades
que surgem no momento da seleção dos dados. A transcrição das gravações, que têm
horas de duração, é enormemente trabalhosa; sem contar os problemas para eleger nesse
conjunto bastante grande de dados aqueles que de fato vão ser analisados.
Perroni ainda apresenta algumas criticas que podem ser feitas por parte
de outros pesquisadores ao método naturalístico. Alguns acreditam que esse tipo de
coleta trabalha com dados descontrolados e assistemáticos; que as categorias que
emergem dos dados post-priori podem ser as mesmas para vários pesquisadores, de
modo que a mesma categoria poderia ser nomeada de formas diferentes a depender do
investigador. E, finalmente, os dados assim obtidos não diriam nada sobre padrões
gerais à aquisição, isto é, não são generalizáveis para todas as crianças.
À crítica da assistematicidade, Perroni responde dizendo que o propósito do
desse método é justamente capturar a variação que os dados sofrem a cada episódio de
interação; e, uma vez que pretende analisar a fala da criança em situações naturais de
uso da língua, o controle de variáveis não é compatível. Já no que diz respeito a
impossibilidade de fazer generalizações, a autora afirma que “trata-se mais uma vez da
inquietação diante da possibilidade da diversidade, da crença cega na uniformidade da
mente em desenvolvimento” (Perroni, op. cit., p. 25), sendo, portanto, uma questão
inconciliável por razões antes teóricas que metodológicas.
Em suas últimas considerações, Perroni diz que a escolha metodológica do
pesquisador que pretende estudar a aquisição de linguagem será definida relativamente
a sua escolha teórica, principalmente no que diz respeito à natureza do objeto de análise:
2 “Nós pretendemos observar como as pessoas falam quando não estão sendo observadas.” (LABOV,
1971, p. 461 apud PERRONI, 1996 – tradução minha.)
7
analisar o desenvolvimento da linguagem da criança ou analisar a linguagem da
criança. E retomando um pouco da discussão desenvolvida no inicio do texto, conclui
afirmando que:
“Se as ciências têm-se encantado com o fato de que uma metodologia
sólida gerará fatos sólidos, é preciso também reconhecer que a própria
opção por uma metodologia é ditada pela teoria abraçada, com todas
as suas crenças e pressupostos a respeito da natureza de seu objeto.”
(PERRONI, op. cit., p. 25)
As investigações referidas por Perroni tomam como objeto de análise a fala da
criança em fase de aquisição. O presente trabalho pretende, com base no caminho
percorrido pela autora, olhar para os métodos experimental e naturalístico nos estudos
em aquisição da escrita.
1.2. Metodologias em aquisição da escrita
Tal como apontado por Perroni, em relação aos trabalhos sobre oralidade,
também os pesquisadores que se dedicam à escrita da criança não elegem uma única
metodologia para a coleta dos dados; encontramos pesquisas feitas tanto a partir de
coletas experimentais quanto a partir de coletas naturalísticas. Para apresentar, em
linhas gerais, como esses métodos são empregados, apontaremos algumas questões
teóricas que parecem determinar a configuração da situação de pesquisa.
Do mesmo modo que em aquisição da oralidade, as pesquisas em aquisição da
escrita se constituem no interior de perspectivas que se inserem no campo da
Linguística e da Psicologia (nomeadamente a Psicologia do Desenvolvimento), ora mais
filiadas a um, ora a outro. Vimos acima que as coletas experimentais em aquisição de
linguagem foram adotadas por influência dos muitos psicólogos que atuavam na área.
Nos estudos sobre a escrita encontramos a mesma relação: tendem a ser experimentais
as pesquisas cuja orientação teórica está fortemente ancorada na Psicologia – e como tal
têm interesses mais abrangentes, que extrapolam questões de linguagem. Ao contrário,
aquelas que coletam seus dados de forma naturalística têm objetivos mais propriamente
linguísticos e estão filiadas portanto a teorias da Linguística. Nesse sentido, assumimos
8
com Perroni que a teoria eleita pelo investigador orienta a escolha por um ou outro
método.
Antes de qualquer consideração sobre a coleta dos dados é necessário portanto
que se explicite o que se reconhece como dado em determinada perspectiva. Para os
nossos propósitos, cabe perguntar o que é a escrita da criança para as vertentes que
pretendem explorá-la. A partir de um determinado ponto de vista, do qual trataremos no
primeiro capítulo, a escrita se constitui como objeto de conhecimento que é adquirido
pela criança por meio de suas ações sobre ele, isto é, por meio de um processo ativo e
individual de construção de estruturas cognitivas. De um outro ponto de vista, que será
detalhado na primeira seção do capítulo dois, essa escrita é fonte de indícios que
revelam as relações que se estabelecem entre sujeito e linguagem, indicando como a
criança opera com a escrita durante o seu processo de desenvolvimento linguístico. Ou
ainda, a partir de um terceiro olhar, a escrita infantil pode dar a ver os movimentos da
criança na estrutura da língua, que são efeito da interpretação do outro e do contato com
outros textos, efeito este produzido pela própria linguagem – falaremos disso com mais
vagar na última seção do segundo capítulo. Essas definições terão papel essencial no
estabelecimento da metodologia de pesquisa.
Os resultados dos estudos experimentais em aquisição da escrita se exprimem
por meio de generalizações de processos – mais especificamente, estágios – pelos quais
todas as crianças passariam. Por outro lado, as pesquisas naturalísticas não se
preocupam com a explicitação de disposições comuns, mas sim com “a língua em
atividade e a relação da criança com ela” (Perroni, op. cit., p. 22), sem que se deixe de
lado as particularidades da criança envolvidas nessa relação. Por trás dessa divergência
de objetivos estão duas concepções de sujeito muito diferentes. Na primeira perspectiva,
a experimental, está em jogo “um sujeito idealizado, universal, o qual, enquanto
construto teórico, assemelha-se ao sujeito psicológico da linguagem conforme postulado
pela teoria linguística gerativa” (Abaurre et alii, 1997, p. 19; grifo nosso).
Já os que elegem dados naturalísticos podem, por um lado, entender o sujeito
que adquire a escrita como
“um indivíduo real, inserido em um contexto social no qual ele se
apropria de representações historicamente construídas através de
9
ações desenvolvidas com outros sujeitos, construindo e
reconstruindo representações, constituindo, dessa forma, uma
consciência individual de si e do mundo que o cerca, nunca
prontos, mas em contínua construção.” (SANTAROSA, 2000, p.15;
grifos nossos)
Ou, por outro lado, é possível conceber a criança como “um sujeito sob os
efeitos de um funcionamento de ordem linguística” (Bosco, 2002, p. 16; grifo nosso).
Nos próximos capítulos, a relação que esses conceitos estabelecem com o método de
coleta vai ser examinada mais detalhadamente.
Outra questão que se coloca a esse trabalho é a definição do que seja
experimento por um lado, e observação por outro. Quando tratamos de dados de fala, é
mais ou menos fácil dizer que naturalísticos são os dados cuja coleta consiste em gravar
a fala da criança em ambiente doméstico, em suas atividades cotidianas. Já os dados
experimentais seriam aqueles obtidos por meio da manipulação de brinquedos e/ou
apresentação de vídeos, seguido de perguntas feitas pelo pesquisador à criança3. Em
relação aos dados de escrita, porém, os limites entre um tipo de dado e outro não se
mostram assim tão claros.
Podemos evidentemente propor que a escrita produzida espontaneamente em
ambiente doméstico se caracteriza como dado naturalístico; e, como dado experimental,
a escrita produzida em situação controlada pelo pesquisador e criada a partir de
categorias definidas previamente – as variáveis em jogo no experimento. Mas se é
assim, que estatuto atribuir aos dados de pesquisas que trabalham com textos escolares?
Esses textos são, em geral, produzidos a partir de uma solicitação – seja do professor,
seja do próprio pesquisador – e nesse sentido não podem ser considerados uma escrita
completamente espontânea. No entanto, não podemos classificá-la como experimental
em sentido estrito, uma vez que a situação escolar não nos parece caracterizar
exatamente uma situação de controle de variáveis.
Vejamos um exemplo desse tipo de pesquisa. Oliveira (1995) elege como
corpus de análise textos escolares produzidos em sala de aula, obtidos mediante a
seguinte instrução: Contem algo de interessante que aconteceu com vocês. A
3 Assumimos que essa distinção certamente é bastante simplista, no entanto nos vale aqui como
ponto de partida para a discussão que segue.
10
pesquisa de Oliveira em questão “consiste em um estudo sobre aquisição de narrativas
escritas, através da análise de textos produzidos por crianças das três séries iniciais de
escolas públicas.” (Oliveira, op. cit., p. 9). Nesse sentido, poderíamos considerar que a
pergunta feita pela pesquisadora, em alguma medida, controla a situação de coleta –
uma vez que a solicitação foi elaborada de maneira a tentar garantir a produção de um
determinado gênero de texto. Além disso, a instrução tinha por objetivo obter não
apenas narrativas, mas narrativas em primeira pessoa.
Mas note-se: o foco da autora não era investigar se as crianças sabiam ou não
fazer narrativas. O foco da pesquisa eram as relações que se podem ver emergir dos
dados, e não se os informantes já tinham adquirido uma categoria do tipo “narrar”.
Oliveira diz:
“a criança não relataria o fato em si, mas segundo a última vez que se
lembrou dele. Tomei este „efeito de memória‟ como um trabalho da
linguagem sobre os fatos e perguntei-me como seria possível observá-
lo num relato escrito por crianças ainda em processo de aquisição
desse sistema”. (OLIVEIRA, op. cit., p. 10)
Vale dizer também que parte da expectativa da pesquisadora foi parcialmente
frustrada, já que “a despeito da instrução ‘Contem alguma coisa de interessante que
aconteceu com vocês’, as crianças nem sempre produziram um relato de experiência
pessoal” (Oliveira, op. cit., p. 104; grifo da autora), isto é, em primeira pessoa como era
a intenção. Essa “insubordinação” dos informantes, no entanto, não foi interpretada
como falta de capacidade de usar a primeira pessoa; ao contrário, a autora apresenta
uma discussão a fim de explicar essa questão – que não foi imposta ao corpus, mas sim
emergiu dele. Fica evidente a influência dos objetivos, ditados pelas opções teóricas do
pesquisador, não só sobre a interpretação dos dados, mas sobre a própria escolha de que
tipo de dado pode ser pertinente a sua pesquisa.
Borges (2007), que também opta por um corpus formado por textos escolares,
tem por objetivo, a partir da produção de duas crianças, identificar e analisar duas
categorias funcionais na constituição da escrita infantil: determinantes e modificadores.
Nesse caso, à semelhança de Oliveira, não se trata de procurar usos adequados dessas
categorias a fim de determinar em que estágio de seu desenvolvimento linguístico essas
crianças estão. Os dados em análise são reescritas escolares, nas quais as crianças
11
marcam sua posição de sujeitos escreventes. Essa posição, de acordo com a autora, é
evidenciada nas reações à correção que o professor faz dos elementos linguísticos
eleitos para a análise. De acordo com ela, “a intervenção do professor, nas produções de
seus alunos, poderia, de certa forma, promover o conflito necessário para a construção
de hipóteses sobre a escrita por parte destes sujeitos” (Borges, op. cit., p. 181).
O uso das categorias em foco no trabalho não foi motivado pela pesquisadora,
que não teve acesso a situação de produção dos textos – como foi o caso de Oliveira,
apresentado anteriormente. Borges seleciona do conjunto de textos cedidos pelos pais
das crianças aqueles nos quais determinantes e modificadores aparecem.
Há ainda outra possibilidade de obtenção de dados em contexto escolar. A
análise empreendida por Calil (1995) se dá a partir não só de textos produzidos pelas
crianças – em duplas –, mas também por filmagens do momento da escrita e da
interação que deu origem a elas. Esse procedimento metodológico poderia ser
considerado como uma situação de experimentação. No entanto, o autor justifica sua
opção de coleta:
“Para que fosse possível dar alguma visibilidade a esse processo de
produção e, ao mesmo tempo, não lidar com uma noção de linguagem
enquanto sistema de comunicação, optou-se por uma metodologia que
permitisse algum tipo de acesso ao modo como a criança relacionava-
se com o texto.” (CALIL, op. cit., p. 8)
Na medida em que o objetivo da pesquisa são as relações de autoria envolvidas
no processo de produção dos textos infantis, a ideia do investigador é resgatar aquilo
que não se pode depreender apenas dos dados escritos e que é relevante para
compreensão de tais relações; além dos textos, também o diálogo entre as crianças é
revelador de particularidades da constituição dos dados.
Para, por fim, classificarmos os textos escolares em relação ao tipo de coleta,
achamos pertinente considerar um continuum, tal como proposto por Corrêa (1996).
Nesse artigo, a autora apresenta as potencialidades e dificuldades próprias do método
experimental; o que nos interessa aqui é a noção de gradação quanto à artificialidade da
observação que varia de acordo com a interferência do observador na situação de coleta.
Os extremos desse continuum seriam de um lado o método experimental e de outro o
método naturalístico. De acordo com a autora, o que determina se as abordagens
12
metodológicas estarão mais próximas de um pólo ou de outro são os objetivos da
pesquisa; e esses como vimos defendendo até aqui são ditados pela teoria abraçada.
Com a descrição dos trabalhos que se valem de dados coletados em situação
escolar, esperamos ter demonstrado que esses textos podem ser classificados como um
tipo de coleta naturalística, situada em um ponto mais afastado do naturalístico stricto
sensu, mas bem distante do que se pode conceber como experimental.
13
Capítulo 2 – Coleta experimental: o construtivismo em aquisição da escrita
2.1. Epistemologia genética piagetiana: as bases de Emília Ferreiro
No capítulo anterior, enfatizamos a importância das concepções teóricas sobre
a coleta dos dados, sobretudo no que concerne às noções de sujeito e objeto da
aquisição. Nessa seção apresentaremos brevemente a origem do pensamento assumido
por Emília Ferreiro – autora que, neste trabalho, representará os estudos experimentais
em aquisição da escrita.
O método experimental adotado por Emília Ferreiro em suas pesquisas sobre a
leitura e a escrita da criança é baseado no método clínico experimental – metodologia
que surgiu no quadro da Epistemologia Genética proposta por Jean Piaget, pesquisador
que se propôs investigar a gênese da inteligência humana. Sob essa perspectiva, o
procedimento de coleta dos dados se dá por meio de entrevistas feitas com um grupo de
crianças, tendo por objetivo depreender das respostas sequências do pensamento
infantil. O pesquisador elabora novas perguntas a partir das respostas das crianças a fim
de definir em que estágio cognitivo se encontram seus informantes. Ao descrever o
método clínico, Bampi (2006) afirma que “não há resposta certa nem errada. A intenção
é avaliar o nível de pensamento da criança.” (Bampi, op. cit.4). Quando da formulação
das perguntas, o investigador prevê as respostas esperadas para cada estágio cognitivo.
Elaborado na primeira metade do século XX, o método clínico rompe com a
dinâmica dos testes de inteligência até então aplicados – exames que consistiam em um
questionário respondido pelas crianças, em que os resultados se exprimiam, a depender
do número de erros ou acertos, em termos de “acima da média, na média e abaixo da
média”. A inovação da proposta piagetiana está em olhar para as respostas
supostamente erradas e averiguar os processos de raciocínio subjacentes a elas, já que
ao analisar mais cuidadosamente esses dados o que se percebia era que os erros tinham
4 A versão de Bampi (2006) utilizada para citação nesse trabalho está disponível on-line e não há
numeração de páginas nessa visualização.
14
sistematicidade. O que passa a interessar ao pesquisador é portanto como a criança
justifica suas respostas.
O que particularmente nos interessa destacar dos propósitos de Piaget é que
esse método de coleta reconhece a singularidade e a especificidade de cada informante,
no entanto, seu projeto é procurar o que há de universal no comportamento das crianças;
ou seja, depreender
“as características gerais das explicações, a maneira como o indivíduo
resolve os problemas apresentados, como chega às suas explicações,
perceber se busca coerência, se percebe as contradições, e também, de
forma mais peculiar, o que há de criatividade nas suas respostas, mas,
ainda assim, sem afastar-se do sujeito epistêmico.” (BAMPI, op. cit.;
grifo nosso.)
O sujeito em jogo na teoria piagetiana, que será profícuo para as considerações
de Emília Ferreiro, é, como vimos acima, o sujeito epistêmico. De acordo com os
postulados de Piaget, o sujeito epistêmico, ou sujeito de conhecimento, é uma abstração
da teoria que reúne aspectos da cognição comuns a todos os seres humanos – aspectos
que seriam responsáveis pela nossa capacidade de construir conhecimento, de toda sorte
de complexidade, durante toda a vida. Essas habilidades nos permitiriam realizar
operações essenciais para a aquisição do saber como, por exemplo, abstrair, organizar,
classificar, reconstruir, concluir, etc.
Nesse sentido, o desenvolvimento das estruturas mentais dependeria da ação do
indivíduo sobre o objeto de conhecimento. Essa interação entre sujeito e objeto,
responsável pela construção do saber, seria mediada por mecanismos gerais de
funcionamento da inteligência5. Nas palavras de Sanchis & Mahfoud (2007):
“Isto significa, por um lado, que as estruturas cognitivas do sujeito
não estão prontas ao nascer, e por outro, que o sujeito conhece e
interpreta o mundo a partir de estruturas próprias, apesar de não serem
estanques. A palavra construtivismo se refere exatamente a essa
relação entre a estrutura e o processo que permite a transformação da
própria estrutura.” (SANCHIS; MAHFOUD, op. cit., p.166-167)
5 Em função do recorte que realizamos para esse trabalho, alguns conceitos elementares do
empreendimento piagetiano – como, por exemplo, o que sejam esses mecanismos gerais de adaptação,
assimilação, equilibração e etc. – não serão tratados aqui. Sobre eles, ver Azenha (1999).
15
Essas transformações operadas na organização intelectual dos seres humanos,
seriam explicáveis a partir da noção de estágio de desenvolvimento; ideia que também
será incorporada por Emília Ferreiro ao analisar a escrita da criança. Piaget definiu
períodos de desenvolvimento cognitivo pelos quais, segundo ele, passariam todos os
indivíduos. Cada etapa do pensamento está na base da etapa seguinte e dessa maneira o
processo se manteria unificado e ordenado cronologicamente. A passagem de um
estágio para outro estaria subordinada à ação do sujeito sobre o meio físico e social.
Sumarizadas as questões da Epistemologia Genética piagetiana que julgamos
pertinentes para o presente trabalho, veremos na próxima seção como essas concepções
são aplicadas por Emília Ferreira à pesquisa sobre a escrita da criança e sobretudo como
essas escolhas justificam sua opção metodológica.
2.1. A psicogênese da língua escrita
Embora a motivação das pesquisas de Emília Ferreiro tenha sido os maus
resultados obtidos pelo métodos de ensino de escrita e leitura aplicados na América
Latina até o início da década de 80, o objetivo central da pesquisadora não é propor
novos métodos que os substituam. De acordo com ela a aprendizagem
“(...) não pode reduzir-se a uma série de habilidades específicas que
deve possuir a criança, nem às práticas metodológicas que o professor
desenvolve, é preciso dar conta do verdadeiro processo de
construção dos conhecimentos como forma de superar o
reducionismo em que têm caído as posturas psicopedagógicas até o
presente.” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1991, p. 32; grifo nosso)
Esse posicionamento explicita a filiação de Ferreiro ao conjunto de ideias
apresentadas na seção anterior. No que concerne ao processo de aquisição da escrita,
Ferreiro e Teberosky irão apresentar no livro Psicogênese da língua escrita as
diretrizes que nortearão um empreendimento investigativo que terá por meta examinar o
processo de construção do conhecimento no domínio da língua escrita. Isso equivale a
dizer que a preocupação, não só de Ferreiro como dos demais pesquisadores
construtivistas que olham a escrita da criança, é fundamentalmente “a) identificar os
16
processos cognitivos subjacentes à aquisição de escrita; b) compreender a natureza das
hipóteses infantis; e c) descobrir que tipo de conhecimentos específicos a criança possui
ao iniciar a aprendizagem” (Ferreiro e Teberosky, loc. cit.).
Em decorrência de sua filiação teórica, Ferreiro entende a criança como sujeito
ativo e responsável pela construção dos saberes, dentre os quais a língua escrita. Nesse
sentido, impõe-se a uma pesquisa dessa natureza que seus dados explicitem como a
criança concebe a escrita e que tipos de problemas enfrenta quando da sua ação sobre
ela; para dar conta desses aspectos, a pesquisadora elegeu o procedimento de coleta
experimental, mais propriamente o método de indagação – que consiste na versão
adaptada para fins de linguagem escrita do método clínico experimental, descrito na
seção anterior.
Ao afirmarem que o que se pretende com a criação de situações experimentais
é evidenciar o que de positivo há no conhecimento demonstrado pela criança (Ferreiro e
Teberosky, op. cit., p. 33), as autoras deixam claro que interessa à pesquisa, orientada
por essa vertente cognitivista, desvendar o que a criança já sabe sobre a escrita – essa
será a questão de ordem teórica essencialmente divergente entre o construtivismo e as
outras perspectivas que apresentaremos mais adiante. Ferreiro entende que a exposição
da criança a situações de escrita no meio social em que vive dá a ela condições de
desenvolver algum conhecimento sobre esse objeto, antes mesmo do início do ensino
sistemático.
Para os construtivistas, a criança ao escrever está realizando uma tarefa de
ordem conceitual que se dá por meio da interpretação ativa e elaboração de hipóteses
dos modelos da escrita adulta. Nas palavras de Azenha (1999):
“Se a escrita representa parte da linguagem falada, ela o faz através de
uma convenção que é arbitrada socialmente. Esse é um obstáculo
importante a ser superado e não é tarefa simples, do ponto de vista
intelectual. Nenhuma característica da escrita tem semelhança com o
objeto representado. As letras, que para um iniciante são apenas traços
no papel, simbolizam sons da fala e compreender este conteúdo
implica ser capaz de estabelecer relações simbólicas com as coisas,
isto é, relações que são mediadas por um objeto que as substitui ou
representa.” (AZENHA, op. cit., p.43)
17
O método de indagação se põe a serviço de flagrar as hipóteses da criança
acerca da organização e das funções desse sistema simbólico. Com esse fim, são
apresentadas aos informantes tarefas que impliquem “uma interação entre o sujeito e o
objeto de conhecimento (nesse caso a escrita) sob a forma de uma situação a ser
resolvida” (Ferreiro e Teberosky, op. cit., p. 34). A função do pesquisador durante a
realização das tarefas propostas é dialogar com a criança a fim de descobrir, por meio de
perguntas, os mecanismos do pensamento infantil, isto é, quais são as soluções que a
criança encontra para o conflito em jogo no experimento.
Em geral, é solicitado à criança que escreva palavras ditadas pelo
experimentador – algumas delas conhecidas pela criança, mas que não figurem com
frequência nos manuais de ensino para não haver risco de memorização; e outras
desconhecidas, cujo objetivo é tornar visíveis as tentativas da criança de compreender o
processo. Depois de escrever, o investigador pede que a criança leia o que escreveu e
aponte onde a leitura está sendo sustentada. As respostas dos informantes são
interpretadas à luz dos níveis sucessivos de desenvolvimento previamente definidos.
São cinco os níveis propostos por Ferreiro a partir dos quais a escrita infantil é
interpretada. Os dois primeiros níveis – escrita indiferenciada e diferenciação da
escrita – podem ser agrupados sob uma única hipótese explicativa, a hipótese pré-
silábica. Nesses estágios da evolução da escrita, a criança não chegaria a compreender a
relação entre o gráfico e o sonoro; seus traços demonstrariam uma preocupação maior
com o caráter referencial, isto é, com o registro de características do objeto que está
sendo representado por meio da escrita. Essa relação com o referente é exemplificada
por Ferreiro e Teberosky (op. cit., p. 184), com a reação de um dos informantes à escrita
do próprio nome: “Escreva-me meu nome. Mas tens que fazê-lo mais comprido, porque
ontem fiz aniversário”. Aos poucos os traços iriam formando letras, mas ainda assim
não haveria correspondência sonora, de modo que a disposição dos caracteres seria mais
ou menos aleatória e apenas a criança conseguiria de atribuir sentido ao que escreveu.
A hipótese silábica caracteriza o terceiro estágio pelo qual as crianças
passariam. Diferentemente dos anteriores, nessa etapa da aquisição a criança já seria
capaz de propor o estabelecimento da relação entre escrita e pauta sonora. A cada letra
seria atribuída uma das sílabas faladas, sem que, no entanto, a letra escolhida seja
18
aquela que convencionalmente representa a sílaba em questão. Um exemplo desse nível,
apresentado por Azenha (op. cit., 73), seria a escrita de VADE e OFT, lidos pelo
informante como marinheiro e peixe, respectivamente.
O quarto estágio, o da hipótese silábico-alfabética, seria intermediário entre o
anterior e o último. Aqui a criança já faria alguma correspondência termo a termo, isto
é, correspondência grafema-fonema; no entanto, algumas letras ainda exerceriam a
função de sílaba, enquanto outras já seriam combinadas para isso. Seria esse o caso de
Juliana que escreveu COCA COA, lendo coca cola e apontando, quando lia la, para
onde havia escrito simplesmente A.6
Por fim, no quinto estágio, hipótese alfabética, seria o nível de estabilização
no qual
“a criança já franqueou a „barreira do código‟; compreendeu que cada
um dos caracteres da escrita corresponde a valores sonoros menores
que a sílaba, e realiza sistematicamente uma análise sonora dos
fonemas das palavras que vai escrever” (FERREIRO; TEBEROSKY,
op. cit., p. 213)
Esse estágio porém não implicaria a ausência de erros. Segunda as autoras, “a
partir desse momento a criança se defrontará com as dificuldades próprias da ortografia,
mas não terá problemas de escrita, em sentido estrito” (FERREIRO; TEBEROSKY, loc.
cit.). Nesse sentido, as palavras CÃU e TATUSSINHO, escritas por Aline,
apresentariam um problema de ordem ortográfica e não de escrita.7
Os dados obtidos por meio desse procedimento são considerados por esses
pesquisadores evidências de que as crianças operam com essas hipóteses que
caracterizam um determinado momento do seu desenvolvimento cognitivo. As
perguntas feitas pelo investigador, mesmo que possam sofrer pequenas alterações
durante a entrevista, são pré-elaboradas tendo como base esses estágios de evolução da
escrita; desse modo, são relevantes para a pesquisa apenas os dados que se encaixam
nos níveis de desenvolvimento, os demais não integram a análise.
Além disso, é impossível não pensar em que medida esse interrogatório não
direciona as respostas das crianças. Esse direcionamento não seria consciente por parte
6 cf. AZENHA, op cit., p. 84
7 cf. AZENHA, op. cit., p. 86
19
do experimentador que pretende, ao contrário, obter dados confiáveis e portanto
objetivos. Mas é importante que se tenha em mente que as perguntas são feitas com
base na interpretação que o pesquisador faz da escrita da criança naquele momento, e
nos parece inegável que essa interpretação esteja sempre subjugada à determinação de
estágios e níveis que, antes de refletirem o processo de aquisição, podem estar a serviço
de uma categorização que acaba engessando os dados.
20
3. Capítulo III – A coleta naturalística
Apresentaremos nesse capítulo duas perspectivas teóricas que analisam a
escrita infantil a partir de dados naturalísticos. A primeira se caracteriza por adotar
pressupostos determinados pelo modelo comumente chamado de paradigma
indiciário. O segundo ponto de vista será o interacionismo de base saussureana. Essas
correntes se preocupam com questões predominantemente linguísticas, em oposição aos
objetivos de caráter cognitivo que definiam a abordagem construtivista.
Embora elejam a mesma metodologia de coleta dos dados, os pesquisadores
que adotam uma ou outra dessas duas teorias, têm objetivos ditados por concepções
teóricas distintas, no que diz respeito aos conceitos de que vimos tratando até aqui –
sujeito e objeto. Não se trata portanto de opor duas opções teóricas relativamente ao
procedimento de coleta de dados – como no caso da abordagem apresentada no capítulo
anterior –, mas sim à maneira como concebem a natureza desses dados.
3.1. Dados singulares e relação entre o sujeito e a linguagem
Mesmo que estejam classificados nesse trabalho como uma perspectiva que se
insere no âmbito da Linguística, os estudos em aquisição da escrita orientados pelo
Paradigma Indiciário são, na verdade, caudatários de uma corrente epistemológica
importada para as ciências humanas por Carlo Ginzburg – historiador italiano que
apresenta em Sinais: raízes de um paradigma indiciário (1991), as origens da
concepção teórico-metodológica que será descrita em Abaurre, Fiad e Mayrink-
Sabinson (1997) – doravante, Abaurre et. alii – para analisar a escrita infantil.
Ginzburg propõe um modelo que sirva como alternativa aos padrões
hipotético-dedutivos de pesquisa, fundados na experimentação, na quantificação e na
busca por regularidades; ou seja, um modelo que se debruce sobre o episódico, o
singular, aquilo que outros tipos de investigação consideram como sendo residual. De
acordo com o autor, agir a partir do que está no detalhe é algo inerentemente humano e,
como exemplo, faz menção aos caçadores que viveram anos atrás.
21
“Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições,
ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas
invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco,
tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a
farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como
fios de barba.” (GINZBURG, op. cit., p. 151)
O primeiro exemplo, mais contemporâneo, de aplicação do método indiciário
foi, segundo Ginzburg, apresentado por um crítico de arte, chamado Giovanni Morelli,
que na segunda metade do século XIX propôs um novo procedimento para atribuir
autoria a quadros muito antigos, já que muitas obras da época estavam atribuídas
incorretamente. Para resolver o problema, Morelli dizia que não bastava considerar as
características mais visíveis e portanto facilmente imitáveis dos pintores; ao contrário,
era preciso olhar com cuidado para os detalhes mais negligenciáveis pois esses sim
revelariam particularidades inimitáveis do verdadeiro pintor.
De acordo com Ginzburg, o que Morelli fez com obras de arte, Sherlock
Holmes faz para resolver casos extraordinários nos livros de Conan Doyle; e as técnicas
de abdução de Holmes são muito similares ao procedimento analítico adotado, na
psicanálise, por Freud para quem um detalhe pode dar a conhecer questões psicológicas
das mais complexas e profundas. Nesse paradigma de investigação recebe destaque o
que não é generalizável, portanto, singular; o que pode não ser regular nem repetível e
que, nesse sentido, é episódico.
A pesquisa orientada pelo método indiciário, por dar relevância ao elemento
individual e à intuição do pesquisador, precisa adotar uma noção de cientificidade
diferente daquela exigida pelas investigações experimentais. Para Santarosa (2000), o
que se exige de uma análise que se ocupa de dados episódicos é “uma espécie de rigor
necessariamente flexível, adaptável a cada caso visto em sua singularidade” (Santarosa,
op. cit., p. 48). A intuição em jogo nessas pesquisas é pautada no conhecimento teórico
do investigador, que deixa que os dados singulares coloquem questões a sua teoria.
Trabalhos dessa natureza se dão a partir de procedimentos de abdução, isto é, o
pesquisador, diante do fenômeno observado em um determinado contexto, propõe uma
regra que, com base na teoria eleita para a análise, o explique; “no salto entre o
fenômeno observado e a escolha da regra explicativa, está o cogitar de uma hipótese, a
abdução” (Santarosa, op. cit., p. 32)
22
Abaurre et alli discutem a aplicação do paradigma indiciário para a
investigação da relação que se estabelece entre sujeito e linguagem, a partir da busca de
dados de escrita que indiciem esse fenômeno. As autoras apostam na importância da
análise de dados coletados naturalisticamente, uma vez que eles podem revelar os
percursos individuais trilhados pelas crianças durante o processo de aquisição da escrita
– caminhos que escapam a análises baseadas em dados coletados em situações
experimentais. O corpus do projeto integrado A relevância dos dados singulares na
aquisição da linguagem escrita é
“(...) constituído de dados naturalisticamente coletados da produção
escrita de crianças, adolescentes e adultos, de 1º, 2º e 3º graus de
escolarização, de escrita escolar e espontânea, de rascunhos/primeiras
versões de textos reescritos, de textos „definitivos‟ etc. Possuímos
também gravações em vídeo e dados coletados sob forma de diários
longitudinais que documentam os primeiros contatos de duas crianças
com a atividade de escrita/leitura, em interação com interlocutores
letrados. Dispomos ainda do registro de grande parte da produção
escrita de um mesmo sujeito, representativa das suas atividades
escolares com a escrita e da escrita espontânea que produziu em
ambiente doméstico (dados regular e naturalisticamente coletados na
faixa etária compreendida entre um ano e seis meses e nove anos e
nove meses, e episodicamente coletados no período da adolescência
desse sujeito).” (ABAURRE at alii, op. cit., p. 16)
Antes de apresentar pontos de divergência, as pesquisadoras reconhecem o
papel dos estudos de Emília Ferreiro para a compreensão dos processos envolvidos na
aquisição da escrita. Identificar no aluno um sujeito responsável pela construção do
próprio conhecimento, ideia que vem das contribuições construtivistas, redundou em
mudanças benéficas no que concerne ao posicionamento da escola em relação aos
alunos. No entanto, para resolver rapidamente os problemas de aprendizagem das
crianças, os professores acabaram aplicando de maneira precipitada os postulados da
psicologia genética como método de ensino. De acordo com Abaurre at alii, essa atitude
teve como consequência
“(...) a descaracterização dos sujeitos reais da aprendizagem, dos que
vivem, cada um a sua maneira, uma história singular de contato com a
linguagem e com seus interlocutores. Sem que se deixe de vê-los e a
seus comportamentos como instanciações de um sujeito
psicológico ideal, os alunos reais precisam também e (urgentemente)
voltar a ser vistos em sua singularidade, por ser ela, em última análise,
23
determinante da história também singular da aquisição da escrita de
cada sujeito.” (ABAURRE at alii, op. cit., p. 17; grifo nosso)
Note-se que a proposta apresentada pelas autoras não abandona completamente
a noção de sujeito ativo e consciente que caracteriza a abordagem construtivista; há na
verdade uma re-elaboração dessa concepção de maneira a contemplar as manifestações
de singularidade que possam emergir entre as características universais dos sujeitos.
As ideias do paradigma indiciário e do construtivismo, no entanto, se afastam
quando a questão é a natureza dos dados em análise. Para Abaurre at alii os dados de
aquisição, tanto de fala, quanto de escrita, são naturalmente cambiantes em função da
instabilidade característica da própria linguagem. Portanto, é preciso tomar algum
cuidado ao interpretar os dados como evidências de hipóteses prévias que acabam tendo
como resultado “conclusões muitas vezes apressadas sobre „estágios‟ e suas
características” (Abaurre at alli, op. cit., p. 18).
Para investigações que se debruçam sobre o dado singular, o foco não são
etapas pelas quais todos os indivíduos passariam, mas sim o que aquela única
ocorrência tem a dizer sobre uma relação em construção entre o sujeito (aquele sujeito,
produtor daquele dado de escrita) e a linguagem. A partir dos dados naturalísticos, de
acordo com as autoras, é possível obter indícios do que se caracteriza como objetivo das
investigações, isto é,
“flagrar o instante em que o sujeito demonstra, oralmente ou por
escrito, sua preocupação com determinado aspecto formal ou
semântico da linguagem. (...) interessa-nos saber que fato singular,
que aspecto de contexto, de forma ou de significação linguística, ou
ainda que possível combinação desses fatores pode ter adquirido
saliência particular para o sujeito, colocando-se, assim, na origem da
sua preocupação, na origem do problema para o qual passa a buscar
uma solução, ainda que muitas vezes episódica e circunstancial.”
(ABAURRE at alii, op. cit., p. 21)
Os dados de escrita coletados em situação experimental são, em última análise,
tomados como evidências dos postulados da teoria e nunca como possibilidade de
revisão desses postulados. Como foi salientado anteriormente, aquelas ocorrências que,
por alguma razão, não se encaixam nas definições prévias do experimentador são
deixadas de lado e, nesse sentido, “o episódico vira sinônimo de residual e quando
ocorre e chega a ser (a)notado pelo pesquisador, costuma ser tratado apenas como um
24
dado „curioso‟” (Abaurre at alli, op. cit., p. 19). Para as pesquisas orientadas pelo
Paradigma Indiciário, ao contrário, esses dados revelam as hipóteses que a criança
elabora para compreender como a escrita funciona.
As autoras chamam atenção para a diversidade encontrada nos textos
espontâneos infantis, como por exemplo, no que concerne à segmentação das palavras.
Crianças que pronunciam palavras de maneira idêntica a do adulto, que no entanto no
momento da escrita produzem dados de hipo e hipersegmentação, revelando que a
linguagem da criança não está analisada de acordo com os padrões adultos; a partir da
análise de episódios nos quais ocorram esses fenômenos é possível depreender as
soluções particulares propostas por cada sujeito na busca da compreensão da relação
entre a escrita e a oralidade.
Os propósitos dos estudos que adotam esse paradigma não são puramente
descritivos, ao contrário, há por parte dos pesquisadores um compromisso com a
adequação explicativa de suas hipóteses. Considerar o idiossincrático não implica, nessa
perspectiva, ignorar o sistemático; trata-se de dar aos dois um estatuto teórico, tanto
para o regular, quanto para o variável. A esse respeito, Santarosa diz que
“não podemos perder de vista a necessidade de compreensão da
totalidade, ou seja, do processo mais amplo de aquisição de escrita, do
qual o caso singular é parte constitutiva. Se não atingirmos hipóteses
mais gerais sobre o processo de aquisição de escrita a partir da análise
de casos singulares, corremos o sério risco de estar apenas
catalogando curiosidades.” (SANTAROSA, op. cit., p. 10)
Uma distinção importante a ser destacada entre as investigações indiciárias e as
de base cognitivista, diz respeito ao papel do interlocutor da criança em seu processo de
aquisição. O procedimento de coleta de dados experimentais concentra-se na criança e
sua produção, sendo pretensamente neutralizadas (ou deliberadamente ignoradas)
possíveis interferências do interlocutor – que pode ser o próprio experimentador, como
no caso do método indagativo – na fala ou na escrita dos informantes – interferências
que também fazem parte do processo de aquisição.
Ao contrário, para os trabalhos que se valem de dados coletados
naturalisticamente e que levam em conta o sujeito produtor desses dados em sua
singularidade, é fundamental que se atribua estatuto teórico não só para a escrita em si,
25
mas também para o “interlocutor fisicamente presente ou representado, e necessário
ponto de referência para esse sujeito em constituição” (Abaurre at alii, op. cit., p. 20);
essa opção de inclusão do interlocutor na análise da escrita da criança se justifica na
medida em que a relação entre o sujeito e a linguagem – objeto dessas investigações – é
mediada pelo outro, seja ele adulto ou outras crianças. No caso da aquisição da escrita,
em particular, é preciso considerar também a relação da criança com outros textos aos
quais ela tem acesso.
3.2. Interacionismo: aquisição de escrita como efeito de linguagem
Vimos na seção anterior que algumas concepções adotadas pelas pesquisas
construtivistas e indiciárias não são de todo excludentes. Para Emília Ferreiro, a
aquisição da escrita é um processo que envolve o controle da criança sobre o objeto;
esse processo é da ordem da consciência e intencional. Em alguma consonância com
isso, em Abaurre at alii, encontramos a seguinte descrição para a atividade da criança
com a escrita:
“A contemplação da forma escrita da língua faz com que o sujeito
passe a refletir sobre a própria linguagem, chegando, muitas vezes, a
manipulá-la conscientemente, de uma maneira diferente da maneira
pela qual manipula a própria fala” (ABAURRE at alii, op. cit., p. 23;
grifo nosso.)
Não se trata nas duas abordagens exatamente dos mesmos processos, nem da
mesma relação entre a criança e a escrita – como esperamos ter deixado claro na seção
anterior. No entanto, estamos chamando atenção para o aspecto que fará com que a
perspectiva interacionista tenha sua razão de estar nesse trabalho, isto é, a oposição à
ideia de manipulação consciente da criança com a escrita. A propósito, lembramos –
embora seja óbvio, por ser essa uma seção do capítulo dedicado a isso – que também os
trabalhos interacionistas realizam suas análises a partir de dados naturalísticos, mas não
adotam os mesmos pressupostos das pesquisas indiciárias. O objetivo dessa seção é
mostrar como posturas teóricas diferentes podem convergir para uma mesma
metodologia de coleta. Para dar conta desse propósito, iremos eleger como
26
representante do Interacionismo em aquisição da escrita, as reflexões empreendidas por
Zelma Bosco em sua dissertação de mestrado, que, em 2002, foi publicada em livro, No
jogo dos significantes: a infância da letra.
Antes de apresentarmos a perspectiva interacionista, gostaríamos de explicitar
de qual Interacionismo estamos falando, uma vez que esse nome serve de rótulo para
muitas correntes teóricas que, ao fim e ao cabo, são distintas. Bem como todas as
questões desse trabalho, iremos definir a vertente interacionista, não em sua
completude, mas apenas o que nos diz respeito diretamente.
Vamos iniciar a discussão a partir de algo grosseiramente definido e dizer que
a questão central para essa abordagem é a interação – termo que está no próprio nome
da teoria – entre a criança e o adulto. Cláudia T. G. de Lemos, a precursora do
Interacionismo em questão para nós, em texto publicado em 1999, reconhece que vários
trabalhos são agrupados sob a mesma denominação por levarem em conta a interação
entre a criança e o outro. No que concerne aos seus próprios objetivos, a autora justifica
o rótulo de interacionista na medida em que, em um dado momento de sua pesquisa
com a fala da criança, foi preciso encontrar, em termos teóricos, “um lugar para esse
outro que, como representante da língua para a criança tinha um efeito no percurso da
aquisição da linguagem” (Lemos, 1999, p. 13).
Essa posição foi consequência da constatação de que a Linguística, por ela
mesma, não dava conta do processo de aquisição sem para isso recorrer a estágios e a
atribuição de conhecimento à criança – corolário da noção de desenvolvimento vinda da
psicologia. O que se pretendia portanto era dar um tratamento, no âmbito de uma teoria
efetivamente linguística, à fala da criança; e ao observar que nessa fala havia
fragmentos da fala do adulto era necessário que se entendesse
“o diálogo como unidade de análise – e não de comunicação – análise
esta que se distanciava da pragmática na medida em que não se partia
de um sujeito dotado de intenções e de sentidos e que a interrogação
incidia desde sempre sobre o efeito da linguagem, através da fala do
outro, na constituição da criança como sujeito” (LEMOS, loc. cit.;
grifo nosso.)
Embora tenhamos mostrado ao fim da última sessão que as pesquisas
indiciárias se preocupam em dar relevância teórica ao interlocutor, para os
27
interacionistas essa questão é ainda mais fundamental e elementar, uma vez que desse
ponto de vista, o outro representa a possibilidade de inserção da criança no
funcionamento linguístico. Já aqui temos um posicionamento que obriga a escolha por
um tipo específico de coleta de dados; se o que está em jogo é o diálogo entre o adulto e
a criança, mais especificamente quais são os efeitos da fala do adulto sobre a fala da
criança, não faria sentido coletar dados em situações que pretendem isolar as produções
infantis e analisá-las em si mesmas.
A forte preocupação de Lemos com as questões mais intrinsecamente
linguísticas do processo de aquisição de linguagem, ainda que possa parecer paradoxal,
fez com que a pesquisadora fosse buscar em outro domínio, o instrumental teórico que
desse conta das mudanças observadas na fala criança, mudanças que podem ser
explicadas também na relação com a fala do adulto. Pensar a aquisição da linguagem
implica considerar e atribuir estatuto teórico a uma instância subjetiva e, nas palavras da
autora,
“Foi o reconhecimento dessa instância que [a] levou a buscar na
Psicanálise e, particularmente, em Lacan, para quem a língua é causa
de haver sujeito, uma possibilidade de fazer da fala da criança um
campo legítimo de indagação.” (LEMOS, op. cit., p. 16)
Os conceitos que, vindos da Psicanálise, ajudaram a construir a perspectiva
Interacionista não serão explorados aqui. Nossa pretensão até aqui foi situar o leitor
nessa discussão que, feita para tratar a oralidade, foi mais tarde adaptada também para a
explicação da escrita8. É disso que falaremos agora.
Como já mencionado acima, de acordo com Emília Ferreiro, haveria um
estágio no qual a escrita da criança pertenceria ao nível pré-silábico, ou seja, a criança
demonstraria não estabelecer relação entre o gráfico e o sonoro e, além disso, seus
escritos poderiam ser reconhecidos, tanto como escrita, quanto como desenho – desse
ponto de vista, para que a escrita de fato se constituísse seria fundamental que a criança
concebesse escrita e desenho como dois sistemas de representação específicos e
independentes. Em franca oposição à leitura construtivista, Bosco (2002), a partir de
uma ótica interacionista, pretende
8 Quando nos referirmos a questões de escrita, na maioria das vezes, as mesmas relações se
aplicam, mutatis mutandis, também a questões de fala.
28
“mostrar que as mudanças que nela [na escrita infantil] se dão não
mostram um sujeito consciente e intencional, descobridor da
natureza da relação que desembocaria na representação da oralidade
na escrita, como crê Ferreiro. Essas mudanças revelam-nos um
sujeito sob os efeitos de um funcionamento que é de ordem
linguística” (BOSCO, op. cit., p. 16; grifos nossos.)
Falar em efeitos do funcionamento linguístico significa reconhecer o papel da
interpretação do adulto sobre a escrita da criança, uma vez que é através do adulto como
representante da língua constituída que a criança tem acesso ao funcionamento
linguístico Nesse sentido, a escrita não é assimilada por meio de esquemas de
interpretação internos ao sujeito, mas sim sua aquisição depende primordialmente da
participação do outro, que tem papel constitutivo no processo de aquisição da escrita.
É bastante esclarecedora da importância da interpretação do adulto para esse
processo a observação feita por Bosco em relação à distinção entre desenho, letra e
número. Como já deve estar bastante claro a essa altura, a partir de um ponto de vista
construtivista, a diferenciação entre esses elementos – concebidos como sistemas
independentes – é realizada pela criança por meio de sua manipulação com o objeto e
seus esquemas interpretativos. No entanto, a autora se pergunta como essa separação
entre itens se daria, uma vez que todos eles têm características gráficas comuns. Ao que
ela mesma responde dizendo
“Parece-nos que só o adulto já significado na linguagem escrita
poderia interpretar esses elementos que compõem o universo gráfico
novo e opaco para a criança; só para o adulto alfabetizado essas
formas seriam distintas.” (BOSCO, op. cit., p. 45)
Essa observação, no que concerne aos nossos objetivos, sugere outro
questionamento. Se a escrita é opaca para a criança e o adulto, uma vez que foi inserido
no funcionamento da língua, jamais poderá tornar a ver a escrita dessa forma, em que
situação ficam os procedimentos de coleta de dados norteados pelo método de
indagação? A título de recapitulação, esse método pretende a partir de perguntas feitas à
criança depreender suas estruturas de pensamento acerca do objeto a ser conhecido.
Mas, como vimos, a escrita se mostra para a criança muito diferentemente de como se
mostra para o adulto, de maneira que suas respostas podem significar coisas
inapreensíveis para o pesquisador – uma vez que esse as interpreta a partir do seu lugar
de sujeito alfabetizado. Tanto a reflexão de Bosco, quanto a nossa ganha respaldo em
29
Lemos (1998), que entende o processo de aquisição da escrita como uma transformação
da qual o sujeito não pode subtrair-se; não é possível “concebermos qual é a relação que
aquele que não sabe ler tem com esses sinais que, para nós, apresentam-se como
transparentes.” (Lemos, op. cit., p. 17).
Embora não esteja diretamente preocupada com a metodologia dos trabalhos
construtivistas, Bosco diz que é possível considerar que o desenvolvimento reconhecido
por Emília Ferreiro na escrita infantil seja consequência do próprio método, ou seja,
“refletiria os efeitos da relação da criança com o adulto na interação empreendida pela
situação de pesquisa” (Bosco, op. cit., p. 47).
Admitir a relação entre o outro e a criança não simplesmente como mediação
entre sujeito e linguagem, mas como relação estruturante das produções infantis,
implica assumir uma noção autônoma de linguagem relativamente ao mundo e aos
processos cognitivos. A reformulação feita por Jakobson da teoria do valor saussuriana
possibilitou aos interacionistas
“(...) mostrar que a língua, num movimento que lhe é próprio, faz
aproximar palavras ou fragmentos oriundos de diferentes cadeias, que
se articulam, se cruzam e se substituem na mesma posição. Isso
confirmaria o caráter imprevisível, mas não aleatório do
movimento da língua.” (BOSCO, op. cit., p. 73; grifo nosso.)
A imprevisibilidade referida acima diz respeito à maneira pela qual as cadeias
presentes na fala do adulto irão emergir na escrita da criança, não sendo esse um
movimento de cópia, ou repetição meramente, mas de ressignificação dos elementos. A
interpretação do adulto, concebido como instância de funcionamento linguístico-
discursivo, é responsável por promover os movimentos da criança na estrutura
linguística em direção à constituição de sua escrita. Nesse sentido, é fundamental para
as análises empreendidas sob o ponto de vista interacionista a ideia de que a língua não
é objeto de saber, não é apropriada pelo sujeito, ao contrário, esse sujeito “é por ela
„apropriado‟, como uma ordem que lhe é anterior e na qual não tem outro caminho
senão nela se enquadrar, alienando-se.” (Bosco, op. cit., p.75).
Como já sugerimos acima, a escrita que interessa a Bosco é aquela classificada
pelos construtivistas como pertencendo ao nível pré-silábico – mais especificamente a
escrita do nome da criança. De acordo com a autora, “a escrita do próprio nome é o
30
locus privilegiado, onde se observa os movimentos entre desenho e letras” (Bosco, op.
cit., p. 76). Sobre esse mesmo período, Emília Ferreiro procura apreender a relação que
a criança estabelece entre desenho e escrita, em que momento a separação entre esses
itens gráficos se daria. Para tanto, a pesquisadora mostra cartões para as crianças e faz
perguntas do tipo onde há algo para ler?; o que diz? – sobre os cartões com escrita –;
ou o que é isto? – sobre os cartões com desenhos.9
Para desconstruir a ideia de que desenho e escrita constituem sistemas isolados
de representação, Bosco analisa dados coletados no período que abrange a faixa etária
de 3 a 5 anos, de quatro crianças, em atividades da pré-escola – Primeiro Maternal,
Segundo Maternal, Jardim e Pré. As atividades que deram origem ao corpus não visam
à alfabetização propriamente dita, já que giram fundamentalmente em torno de
desenhos, não sendo a escrita uma questão essencial; portanto, esses dados, para os
nossos propósitos, não caracterizam dados escolares como aqueles sobre os quais
falamos no primeiro capítulo. Voltando à noção de continuum da qual nos valemos
naquela altura, esses dados estariam ainda mais próximos do pólo naturalístico – cuja
manifestação mais prototípica seriam os textos produzidos em ambiente doméstico.
Por uma questão de escopo, e mesmo de objetivos, do presente trabalho, não
apresentaremos os dados da pesquisa de Bosco – embora essa medida fosse essencial
para dar conta de mostrar os movimentos realizados pelas crianças. Fica aqui a
referência para que o leitor interessado possa ter acesso a essas análises. No entanto,
para encerrar essa seção, gostaríamos de adiantar algo de suas considerações finais. Fica
evidente, a partir da análise longitudinal dos dados, que há uma relação de
entrecruzamento entre as formas gráficas do desenho e das letras, contrariando a ideia
de que a ruptura entre essas formas é fundamental para a constituição da escrita.
A relação com as outras crianças, com a professora – que se detinha em
interpretar os desenhos, vale dizer – e com outros textos, possibilitou à autora concluir
na direção de que “a aquisição de linguagem não se explica por um processo de
aprendizagem, mas por um processo de leis de composição interna da ordem própria da
9 Irresistível não chamar atenção para a possibilidade de indução da resposta das crianças por
conta da formulação das perguntas. As palavras ler e diz remetem a uma situação de leitura, e portanto de
escrita, que a criança eventualmente pode já ter vivenciado; desse modo, talvez a questão aqui não seja o
conhecimento da criança em relação às letras, mas sim um efeito da interação com o pesquisador.
31
língua” (Bosco, op. cit., p. 156). Além disso, a análise dos dados mostrou que as
mudanças operadas na escrita da criança não se dão aleatoriamente – embora sejam
imprevisíveis –, uma vez que a associação entre traços de letras e traços de desenhos
não é feita ao acaso; ao contrário, são relações, produto de um movimento
interpretativo, entre o novo e já-dito. Cabe aqui uma última citação da autora:
“Os efeitos da linguagem sobre a linguagem, dos textos orais e
escritos sobre os textos da criança são, pois, da ordem da interpretação
e, por isso, não ensinam, mas colocam a criança na escrita” (BOSCO,
loc. cit.)
32
Considerações finais
Como esperamos ter deixado claro, a tese defendida no presente trabalho é de
que tal como nos estudos sobre aquisição da oralidade, também nos estudos sobre a
escrita não há uma única e a mesma metodologia de coleta de dados de pesquisa. A não
existência de uma unidade metodológica na área decorre de uma questão que é antes
teórica que puramente metodológica – ou seja, o que primeiro se elege é a teoria; o
método de coleta vem sugerido no pacote. Em outras palavras, o arcabouço teórico
oferece ao pesquisador algo como uma metodologia padrão (que pode eventualmente
ser adaptada se se julgar pertinente para a análise10
). Por um lado, analisar dados de
escrita infantil isolados de outros textos aos quais a criança tem acesso e de sua relação
com a interpretação do adulto, não satisfaz as condições teóricas impostas por um ponto
de vista que tem o diálogo como unidade mínima de análise – uma vez que são aquelas
relações que, dessa perspectiva, define o que seja diálogo. Por outro lado, igualmente,
dados naturalísticos restringem a possibilidade de depreender as estruturas de
pensamento da criança; desse ponto de vista teórico, quanto mais “sozinha” a criança
operar com a escrita, tanto melhor será para análise.
Tendo sempre em vista que a classificação dos trabalhos, em experimentais ou
naturalísticos, não se dá de maneira polar, reiteramos que uma pesquisa será tanto mais
experimental quanto mais se aproximar de concepções vindas da Psicologia – embora
essa relação não seja uma decorrência necessária, é uma orientação frequente de
algumas pesquisas. Ao contrário, a pesquisa que se colocar problemas de ordem mais
propriamente linguísticas tenderá a se debruçar sobre dados mais próximos do pólo
naturalístico e sua ancoragem teórica estará mais fortemente ligada à Linguística. A
noção de sujeito epistêmico – uma abstração que reúne as capacidades de um sujeito
idealizado –, vinda da Psicologia do Desenvolvimento, por exemplo, é em alguma
medida incompatível com uma abordagem que pense o estabelecimento da relação entre
linguagem e sujeito, se esse último for pensado em sua singularidade, como é o caso das
pesquisas indiciárias.
10
A propósito disso, vale mencionar alguns trabalhos, sobre a oralidade, de Mary Kato, nos quais a
pesquisadora – filiada a uma vertente inatista e, portanto, marcadamente experimental –, lança mão de
dados obtidos naturalisticamente.
33
No limite, nossa intenção foi justificar as metodologias de coleta de dados
adotadas pelos construtivistas, pelos pesquisadores orientados pelo paradigma indiciário
e pelos interacionistas. Acreditamos que o cotejo entre as concepções de sujeito e objeto
das três perspectivas tenha se prestado a dar essa justificativa. Nesse sentido, a ideia
aqui não era apresentar uma metodologia como mais eficaz que outra. Não há
metodologia perfeita, há metodologias mais ou menos adequadas relativamente à
filiação teórica do pesquisador.
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