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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO / ESCOLA DE DANÇA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
CATALINA SALAZAR
CONFIGURAÇÕES DA CAPOEIRA CONTEMPORÂNEA:A CENA DO GRUPO “GINGA MUNDO”
Salvador2011
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CATALINA SALAZAR
CONFIGURAÇÕES DA CAPOEIRA CONTEMPORÂNEA:A CENA DO GRUPO “GINGA MUNDO”
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de Teatro / Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Artes Cênicas.
Orientador: Prof. Dr. Armindo Bião
Salvador2011
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Escola de Teatro - UFBA
Salazar, Catalina. Configurações da Capoeira Contemporânea: a cena do grupo “Ginga Mundo” / Catalina Salazar. - 2011.
183 f. il.
Orientador: Prof. Dr.Armindo Jorge de Carvalho Bião Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2011.
1. Capoeira. 2. Capoeira – Estudo de casos. I. Universidade Federal
da Bahia. Escola de Teatro. II. Bião, Armindo Jorge de Carvalho. III. Título.
CDD 796.81
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À Luna, filha e companheira do caminho. Fonte de luz e de inspiração...
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AGRADECIMENTOS
Antes de tudo, à Capoeira. Foi a força motivadora que deu sentido e forma ao projeto.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que viabilizou
recursos financeiros para poder concretizá-lo.
À Universidade Federal da Bahia, pelas oportunidades e ao meu orientador Armindo Bião,
que conseguiu lidar com uma pesquisadora apaixonada demais pelo seu objeto.
A todos os mestres de Capoeira que, tão generosamente, têm transmitido os seus
conhecimentos.
Ao Mestre Aranha, pelas lições importantes de Capoeira e da vida.
Ao Mestre Sabiá, que me abriu as portas da casa e me concedeu tantas horas para responder
às minhas inquietações. Ao grupo “Ginga Mundo”, ao Projeto Mandinga e a Frede Abreu, que
sempre me receberam amigavelmente e colaboraram com tudo o que precisei.
Ao Instituto N’Zinga, a Mestra Janja, Poloca, Antônio e a todos os que iluminam o Alto da
Sereia.
Aos capoeiristas que tenho conhecido no percurso da vida e àqueles que na Bahia, com um
sorriso no rosto, como Mestre Dendê, me acolheram com muito carinho, depositaram sua
confiança em mim e me passaram valiosos ensinamentos.
Foi graças a todas as pessoas que me estenderam sua mão incondicionalmente...
Especialmente a minha mãe Maria Eugênia que sempre, com amor e especial dedicação, tem
me apoiado no empreendimento dos meus sonhos. Ao Junior, que me ajudou em momentos
muito difíceis...
E não poderia deixar de agradecer à Energia Sagrada da criação, manancial de vida.
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SALAZAR, Catalina. Configurações da Capoeira Contemporânea: a cena do grupo “Ginga Mundo”. 183f. 2011. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Escola de Teatro / Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
RESUMO
Trata-se da Capoeira na cidade de Salvador, Bahia, Brasil, como parte de um projeto de mestrado, que se propõe a analisar a relação de uma das suas configurações contemporâneas com uma possível interpretação da tradição. Para uma aproximação aos fundamentos que sustentam essa manifestação cultural afro-brasileira e que hoje permeia a cena artística nacional e internacional, foi necessário se debruçar sobre as principais matrizes estéticas (aspectos históricos, geográficos, lingüísticos e religiosos), que foram marcantes em algumas de suas configurações atuais. Mestiçagem, sincretismo religioso e hibridismo cultural foram alguns dos aspectos levantados e definidores da multiplicidade apresentada. Defendeu-se que a globalização da Capoeira pode representar uma ameaça para a transmissão dos conhecimentos via oralidade/corporalidade/multisensorialidade. Questionou-se sobre a aparente dicotomia Capoeira Angola/Regional e sua distinção da Contemporânea, dentre outros dos fatores que parecem vir fragmentando a comunidade capoeirística, impedindo a criação de vínculos de camaradagem e, portanto, comprometendo a união entre os capoeiristas. Revelou-se a emergência de aceitação das diferenças e valorização da diversidade. Através do estudo de caso do grupo de Capoeira Contemporânea “Ginga Mundo” e da interação com seu Mestre Sabiá buscou-se refletir sobre uma possível forma de dialogar com diferentes comunidades de Capoeiras e sobre a intrínseca relação tradição/contemporaneidade. Constatou-se que nessa configuração contemporânea da Capoeira estão implícitos certos componentes matriciais da tradição e que a interação com a comunidade angoleira, embora parcial, é enriquecedora e criadora de redes de solidariedade. O estudo ajudou na compreensão da Capoeira como fenômeno em permanente processo de construção. A consciência sobre o contínuo estado de transformação (do mundo, do ser humano e das suas manifestações) propiciaria uma possível retroalimentação entre diferentes formas de conceber e praticar Capoeira, favorecendo o crescimento da Capoeira e dos capoeiristas/artistas. A capacidade mutante da Capoeira é prova de ser uma arte viva, cujas qualidades são ferramentas úteis para os processos de criação artística. Quanto aos procedimentos metodológicos, optou-se por uma abordagem qualitativa, de caráter descritivo-analítico, a partir da pesquisa de campo e bibliográfica, na perspectiva trans-disciplinar da etnocenologia.
Palavras-chave: Capoeira; Matrizes estéticas; Arte; Processos criativos; Tradição; Contemporaneidade.
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SALAZAR, Catalina. Configuraciones de la Capoeira Contemporánea: la cena del grupo “Ginga Mundo”. 183f. 2011. Disertación (Maestría en Artes Cénicas) – Escuela de Teatro / Escuela de Danza, Universidad Federal de Bahia, Salvador, 2011.
RESUMEN
Este estudio trata sobre la Capoeira en la ciudad de Salvador, Bahia, Brasil, como parte de un proyecto de maestría que se propone a analizar la relación entre una de sus configuraciones contemporáneas e una posible interpretación de la tradición. Para una aproximación de los fundamentos que sustentan esta manifestación cultural afrobrasilera y que hoy en día está presente en la cena artística nacional e internacional, fue necesario remeterse a las principales matrices estéticas (aspectos históricos, geográficos, lingüísticos e religiosos), que marcaron algunas de sus actuales configuraciones. Mestizaje, sincretismo religioso e hibridismo cultural fueron unos de los aspectos levantados, en cuanto definidores de la multiplicidad encontrada. Se defendió que la globalización de la Capoeira puede representar una amenaza para la transmisión de los conocimientos via oralidade/corporalidade/multisensorialidade. Se cuestionó sobre la aparente dicotomía Capoeira Angola/Regional y su distinción de la Contemporánea, entre otros de los factores que parecen venir fragmentando la comunidad capoeirística, impidiendo la creación de vínculos de camaradería y, por tanto, comprometiendo la unión entre los capoeiristas. Fue revelada la emergencia de aceptación de las diferencias y valorización de la diversidad. A través del estudio de caso del grupo de Capoeira Contemporánea “Ginga Mundo” dirigido por el Maestro Sabiá se buscó reflexionar sobre una posible forma de dialogar con diferentes comunidades de Capoeiras e sobre la intrínsica relación tradición/contemporaneidad. Se constató que en esa configuración contemporánea de la Capoeira están implícitos ciertos componentes matriciales de la tradición e que la interacción con la comunidad angoleira, así sea parcial, es enriquecedora y criadora de redes de solidaridad. La investigación ayudó para la comprensión de la Capoeira en cuanto fenómeno en permanente proceso de construcción. La consciencia sobre el continuo estado de transformación (del mundo, del ser humano y de sus manifestações) propiciaría una posible retroalimentación entre diferentes formas de concebir y practicar Capoeira, favoreciendo el crecimiento de la Capoeira y de los capoeiristas/artistas. La capacidad mutante de la Capoeira es una prueba de ser una arte viva y cuyas cualidades son herramientas útiles para los procesos de creación artística. En cuanto a los procedimientos metodológicos, se optó por un abordaje cualitativo, de carácter descriptivo-analítico, a partir de la investigación de campo y bibliográfico, desde la perspectiva trans-disciplinar de la etnocenologia.
Palabras-clave: Capoeira; Matrices estéticas; Arte; Procesos creativos; Tradición; Contemporaneidad.
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LISTA DE FIGURA
FIGURA 1 L’Exécution de la Punition de Fouet (Execução do castigo de açoite – Negros no tronco)......................................................................................... 48
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LISTA DE FOTOGRAFIAS
FOTOGRAFIA 1 Homenagem a Zumbi dos Palmares (2008).............................................................................................
25
FOTOGRAFIA 2 Casa de Candomblé “ILE-EKO ODE OLUAMI”. Bahia, Brasil, 2008................................................................................................ 37
FOTOGRAFIA 3 Aula de dança de Orixás. Instituto N’Zinga. Salvador, Bahia. Brasil, 2009.................................................................................... 37
FOTOGRAFIA 4 Mestre Bimba, Pelourinho, Salvador. Carnaval, 2008............................................................................................... 53
FOTOGRAFIA 5 Mestre Pastinha no cartaz exposto na Associação Brasileira de Capoeira Angola (ABCA), Pelourinho, Salvador, 2008............... 64
FOTOGRAFIA 6 Mestre Sabiá, no Projeto Mandinga, Salvador, 2009............................................................................................... 96
FOTOGRAFIA 7 Mestre Sabiá aplicando uma vingativa na roda da “Festa da Capoeira”. Projeto Mandinga, Salvador, 2009.............................. 102
FOTOGRAFIA 8 Roda na “Festa da Capoeira”. Projeto Mandinga, Salvador, 2009............................................................................................... 104
FOTOGRAFIA 9 Alguns participantes da “Festa da Capoeira”. (Mestre Sabiá à esquerda da janela, Frede Abreu de camisa azul e na parte de baixo, discípulos do Mestre Bimba). Salvador, 2009............................................................................................... 104
FOTOGRAFIA 10 No pé do berimbau: À esquerda Zoinho (Academia de Capoeira Angola – Mestre João Pequeno de Pastinha) vai jogar com um aluno do grupo de Capoeira Contemporânea “Ginga Mundo”. Projeto Mandinga, Salvador. Festa da Capoeira, 2009............................................................................................... 112
FOTOGRAFIA 11 Batizado e Troca de cordas na “Festa da Capoeira”. Projeto Mandinga, Salvador, 2009............................................................. 112
FOTOGRAFIA 12 Mestre Sabiá, alunos e visitantes na roda da “Festa da Capoeira”. Projeto Mandinga, Salvador, 2009.............................. 112
FOTOGRAFIA 13 Projeto Mandinga, Bairro do Garcia, Salvador, Bahia, Brasil, 2009................................................................................................ 113
FOTOGRAFIA 14 Oficina de Berimbau, Projeto Mandinga, 2009............................. 116
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FOTOGRAFIA 15 Academia do Grupo “Sementes de Angola”, 2009........................ 116
FOTOGRAFIA 16 Instituto Jair Moura, 2009.............................................................. 117
FOTOGRAFIA 17 Projeto Mandinga, Sala de Informática, 2009............................... 117
FOTOGRAFIA 18 Espaço de treinamento, 2009......................................................... 117
FOTOGRAFIA 19 Estante para guardar os implementos, 2009.................................. 117
FOTOGRAFIA 20 Área para atividades, 2009............................................................. 117
FOTOGRAFIA 21 Área de eventos, 2009.................................................................... 118
FOTOGRAFIA 22 Playground, 2009........................................................................... 118
FOTOGRAFIA 23 Entrada para a sala de treinamento, 2009...................................... 118
FOTOGRAFIA 24 Detalhe de utensílio para treino, 2009........................................... 118
FOTOGRAFIA 25 Saída para área externa, 2009........................................................ 118
FOTOGRAFIA 26 Entrada do Albergue, 2009............................................................ 118
FOTOGRAFIA 27 Ilustrações referentes às manifestações culturais afro-brasileiras....................................................................................... 118
FOTOGRAFIA 28 Letreiro da entrada do projeto mandinga, 2009................................................................................................ 120
FOTOGRAFIA 29 Evento ZUMBIMBA, Forte da Capoeira. Salvador, 2009................................................................................................ 154
FOTOGRAFIA 30 Apresentação dos discípulos da Fundação Mestre Bimba, Forte da Capoeira. Salvador, 2009.......................................................... 154
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 12
2 CAPOEIRA: MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA AFROBRASILEIRA.............. 192.1 MATRIZES CULTURAIS........................................................................................ 192.1.1 As Primeiras Palpitações........................................................................................ 192.1.2 Ritualidade e Religiosidade.................................................................................... 282.1.3 O Jogo dos Sentidos na Mandinga da Luta.......................................................... 372.2 MARGINALIDADE E LEGALIZAÇÃO................................................................ 452.2.1 Repressão e Penalização.......................................................................................... 452.2.2 Luta Regional Baiana.............................................................................................. 522.2.3 Capoeira Angola e Seu Pastinha............................................................................ 602.3 “DESCARACTERIZAÇÃO”?.................................................................................. 71
3 CAPOEIRA CONTEMPORÂNEA....................................................................... 813.1 UMA POSSÍVEL APROXIMAÇÃO....................................................................... 813.1.1 Capoeira: Pluralidade de Configurações.............................................................. 813.1.2 ”Contemporânea”: Atualização da Regional e Aproximação da Angola?........ 883.2 CAPOEIRA CONTEMPORÂNEA DO MESTRE SABIÁ...................................... 953.2.1 Sobre o Mestre......................................................................................................... 953.2.2 A Cena do Grupo “Ginga Mundo”........................................................................ 1033.2.3 Na Mandinga............................................................................................................ 113
4 A CENA DA CAPOEIRA....................................................................................... 1214.1 TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE............................................................. 1224.1.1 Diversidade e Globalização..................................................................................... 1224.1.2 Dialogando com a Tradição?.................................................................................. 1284.2 CRIATIVIDADE CÊNICA....................................................................................... 1354.2.1 O Corpo.................................................................................................................... 1354.2.2 Multidimensionalidade............................................................................................ 1424.2.3 Processos de Criação Artística............................................................................... 1474.3 ARTE VIVA: NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES CULTURAIS................ 156
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 164
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 169
APÊNDICES............................................................................................................ 180APÊNDICE A - Fotografias de espaços destinados à prática da Capoeira, Forte
da Capoeira. Salvador, Bahia, Brasil............................................. 181APÊNDICE B - Fotografias de rodas de Capoeira Angola. Salvador, Bahia,
Brasil.............................................................................................. 182APÊNDICE C - Fotografias de rodas de Capoeira Regional. Salvador, Bahia,
Brasil.............................................................................................. 183
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1 INTRODUÇÃO
O interesse por estudar a Capoeira, manifestação cultural afro-brasileira e que hoje
permeia o mundo globalizado, nasceu de minhas inquietações e necessidades surgidas durante
o processo artístico/profissional de aprendizagem, paralelamente à prática desse jogo. Foi a
partir de experiências vivenciadas com diferentes grupos artísticos e comunidades em
diversos países, os quais, Costa Rica, Colômbia e Brasil, que emergiram as questões
abordadas.
Estando imbricado o trajeto do sujeito no objeto estudado, não poderia deixar de
mencionar o percurso que lhe dá sentido e forma.
Iniciada desde a infância na prática de atividades corporais, Ballet, Jazz, Dança
Contemporânea, me inclinei especialmente por esta última e pela BioDança, pratiquei alguns
esportes, como Ginástica Artística, Rítmica e Eqüestre, Tênis, Patinagem, Ski, dentre outros,
e, nos últimos anos, pratiquei algumas artes marciais, Taichi, durante um terço de década, uns
meses de Kung Fu e um pouco de Jiu-Jitsu, Aikido e Muaythai, mas desde que a Capoeira a
mim chegou, nunca mais consegui dela me afastar. Foi pelo poder renovador de sua energia e
pela integração entre suas múltiplas qualidades artísticas que nasceu um profundo interesse
por me aprofundar nesta expressão cultural. De ritual, jogo e luta que emergiu como
mecanismo de resistência à escravidão no Brasil e que, após a abolição, foi penalizado por lei,
até ser considerado o único “esporte nacional”. Com a legalização da Capoeira, inseriu-se sua
prática em distintas camadas sociais e começou a ser aplicada na educação. Hoje em dia, sob
múltiplos ângulos de possíveis abordagens, faz parte da cena lúdico-recreativa, pedagógica,
desportiva, terapêutica e artística da contemporaneidade. Já considerada Patrimônio Cultural
do Brasil1, a Capoeira encontra-se atualmente em vias de ser declarada Patrimônio Imaterial
da Humanidade2.
1 Registro em Salvador, dado em julho de 2008, pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2008.
2 Disponível em: . Acesso em: 05 mar. 2009.
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Foi na Costa Rica, na Escola Nacional de Dança de San José, que comecei a treinar
Capoeira Regional3, com o grupo “Abolição” e posteriormente tive os primeiros contatos com
a Capoeira Angola4. Após o retorno a minha cidade de origem, Bogotá, Colômbia, procurei
continuar com a prática desta última, mas por razões fora do meu controle, isso não foi
possível. Conheci o grupo “Nativos de Minas”5, no qual permaneci por aproximadamente
cinco anos e com o qual participei de eventos em diferentes cidades do território nacional,
realizamos apresentações para entidades privadas e canais televisivos.
Fui incentivadora de cursos de férias e projetos sociais, para crianças e adolescentes,
e, através de programas desenvolvidos com a Prefeitura, em parceria com a Universidade
Nacional de Colômbia, a Comissária de Família e o Bienestar de Familia6, e com o Governo
de Cundinamarca, podemos atender meninos sem lar, vítimas da violência, adictos,
delinqüentes etc. A arte era o mecanismo através do qual se buscava atingir graves
problemáticas sociais que comprometem a integridade individual e comunitária. A Capoeira
foi um dos recursos utilizados e o projeto final requeria encenar o aprendizado.
Investigar as qualidades e benefícios da Capoeira e a sua possibilidade de aplicação
nas Artes Cênicas sempre foi uma inquietação, questionava-me sobre os princípios e valores
que davam forma a sua estética, sobre o porquê das regras, direitos e restrições que, mesmo
estando intrínsecos na sua arte, resultavam-nos distantes do que representa o convívio
cotidiano na cultura desta manifestação popular brasileira, embora hoje esteja presente nos
cinco continentes. Devia me remeter às matrizes e fundamentos da tradição da Capoeira,
continuava minha pesquisa empírica e limitada às redes virtuais, devido à reduzidíssima
existência de material nas principais bibliotecas da capital.
3 Estilo de Capoeira referente à Luta Regional Baiana criada pelo Mestre Bimba, Manoel dos Reis Machado, na terceira década do século XX. O grupo, em San José, era liderado por “Cacique” e “Capitão”, seu mestre Delei Kaçula ia realizar eventos e seminários anualmente.
4 A Capoeira praticada, antes de surgir a Regional, foi denominada de Capoeira Angola a partir da invenção dessa nova versão. O angoleiro “Macarrão” que ministrava as aulas é um colombiano pertencente ao grupo “Os cinco elementos”.
5 Criado pelo Mestre Aranha após a dissolução do grupo pioneiro da Capoeira Regional na Colômbia, “Abolição”. O mestre, Joelson Borges de Oliveira, é nativo de Minas Gerais e o único mestre que residia na Colômbia, há mais de duas décadas. Mora aproximadamente há três anos na Inglaterra e em 2010 realizou uma aliança com o mestre carioca Tamanduá, conforme me expressou em conversa (novembro de 2010), passando a se denominar o grupo e suas respectivas sedes nos diferentes países, “Capoeira Nativos”.
6 Entidades governamentais encarregadas de dar assistência às famílias carentes.
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Na Colômbia, a Capoeira Angola e Regional viam-se restritas a um único modelo de
referência e as divergências revelavam-se nas relações dentro da roda e fora dela. A rivalidade
era fomentada não somente entre os dois principais grupos de Capoeira Regional -
conformados após a dissolução do grupo matricial “Abolição” -, mas inclusive também entre
membros da mesma comunidade e não faltou ver luta corporal sem qualquer ludicidade
quando a pioneira da Capoeira Angola na Colômbia7 visitou a academia. Nas rodas primava a
competitividade, talvez como incentivo à superação, mas engendrava-se às vezes uma
violência desenfreada. Ante a necessidade de estar preparada e como sempre gostei do
treinamento pesado, do contato corporal e do combate corpo a corpo, senti a urgência de
aprender a técnica (que raramente era passada), mas por outro lado me perguntava sobre o
porquê vivia-se num ambiente de constantes rinhas, que ultrapassavam normas de jogo,
permitindo movimentos proibidos. Eram engendradas brigas para realçar a valentia, mas por
carecer da técnica necessária, murros na cara, socos e sangue terminavam sendo componentes
constantes nas rodas e temas importantes de conversação. Se na Colômbia já vivemos uma
situação de permanentes guerras internas, seria então a roda da Capoeira o lugar para
incrementar o instinto violento ou para aprender a controlá-lo e/ou canalizá-lo?
Qual foi a minha surpresa quando pela primeira vez escutamos do mestre que iríamos
praticar Capoeira “Contemporânea”, pois treinaríamos, além da Capoeira Regional, também a
Angola. Ressaltou a importância de valorização das raízes da Capoeira e realizou eventos,
convidando mestres regionais com certa trajetória na Capoeira Angola. Recebemos aulas e
importantes ensinamentos, mas com o tempo e a falta de prática ia dissipando-se o
aprendizado. Na academia continuava sendo enfatizado mais o treinamento e jogo referente à
linhagem8 da Regional, embora já distanciado de alguns dos preceitos9 que lhe deram forma.
7 Professora Deborah, brasileira, dirige o grupo Volta do Mundo, em Bogotá. Na entrevista realizada em 2008, exaltou sua tentativa de aproximação ao mestre que, mesmo sendo descendente de outra linhagem de Capoeira, era compatriota dele, mas não se sentiu bem-vinda.
8 Abib (2005, p.187) define-a, no contexto da Capoeira, como “a árvore genealógica” e salienta a sua importância enquanto “prova de pertencimento à tradição herdada de determinado mestre considerado importante nesse universo”. Linhagem é um termo muito usado na comunidade capoeirística e será aqui utilizado, de forma recorrente, para designar as principais vertentes da Capoeira.
9 A Capoeira Regional na Colômbia, assim como inclusive acontece na maioria dos grupos do Brasil, tem sido re-significada. Não segue todos seus componentes matriciais; nem a conformação da bateria (um berimbau e dois pandeiros), nem as seqüências inventadas pelo Mestre Bimba, também não eram praticados os balões nem a cintura desprezada. Não se seguiam todos os “mandamentos” do mestre.
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Se não éramos regionais realmente e muito menos angoleiros, como poderíamos ser
então contemporâneos por praticar ambas as Capoeiras, que eram freqüentemente concebidas
como contrapostas10? Se a Capoeira é uma filosofia de vida que no corpo se expressa, no jogo
se manifesta e na roda - e fora dela - se revela, como se poderia viver simultaneamente e
dialogar corporalmente com duas Capoeiras que diferenciavam-se na sua concepção, prática e
finalidade?
Se o capoeirista/artista pudesse dar conta das duas, seria aceito e reconhecido por
ambas as comunidades de Capoeira?
Encenar a Capoeira no palco atentaria contra os fundamentos da Capoeira ou poderia
ser aproveitada nos processos de criação artística?
Devido à inquietude que me produziu presenciar a Capoeira encenada em
espetáculos artísticos em teatros de Bogotá11 e a partir do somatório de múltiplos fatores foi
que decidi me servir da academia, encontrando-me vinculada ao Programa de Pós Graduação
em Artes Cênicas, da Universidade Federal da Bahia, para tentar encontrar respostas às
incertezas.
A seleção do lugar, Salvador, Bahia, deu-se por ser considerado o berço da Capoeira
tradicional e por ser a mais importante referência da Capoeira Angola e Regional, sendo
baianos os seus principais representantes, Mestre Pastinha e Mestre Bimba. Se não é a cidade
mais significativa da Capoeira modernizada, porque ganhou maior notoriedade no Rio de
Janeiro e em São Paulo, sim é o lugar mais propício para uma aproximação das suas matrizes
culturais.
Como as tensões entre os capoeiristas, de distintas vertentes ou da mesma linhagem,
foi o principal problema encontrado, parti da premissa de que se não há aceitação e respeito
das diferenças, prejudicar-se-iam as relações dentro da comunidade capoeirística.
Através da pesquisa busquei demonstrar que, se há valorização da diversidade e
existe uma tentativa de aproximação, poderia haver um possível diálogo que, se é cultivado,
fomentaria a criação de redes de camaradagem e, portanto, propiciaria a retroalimentação.
10 Embora não tenham sido criadas em contraposição, mas por uma série de necessidades e estratégias de inserção no contexto sócio-político, econômico e cultural, há uma clara distinção que determina os caminhos diferenciados pelos que pode optar-se.
11 Além de freqüentes apresentações realizadas por diferentes grupos de Capoeira da Colômbia, tendo como palco tanto a rua como teatros fechados, tive a oportunidade de ver espetáculos realizados pelo grupo Dance Brasil, do coreógrafo e mestre de Capoeira Jelon Vieira, em destacados teatros de Bogotá.
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O objetivo geral foi descrever e analisar a relação entre uma das configurações
contemporâneas da Capoeira e uma possível interpretação da tradição. Através do estudo do
grupo de Capoeira Contemporânea12 Ginga Mundo coordenado pelo Mestre Sabiá, assim
como da observação-participante em alguns grupos de Capoeira Angola13, Regional14 e
Contemporânea15 na Bahia, procurei detectar indícios pertinentes para o possível diálogo
entre formas tradicionais e contemporâneas de conceber e praticar a Capoeira.
No procedimento metodológico, optei por uma abordagem qualitativa, de caráter
descritivo-analítico, a partir da pesquisa de campo e bibliográfica. A revisão da literatura
(livros, revistas, jornais etc.), os meios interativos (internet, dvd´s, fitas, filmes etc.) e a
participação em aulas e eventos de Capoeira, foram de importante utilidade. As anotações no
diário de campo, os depoimentos recolhidos nas entrevistas e os registros fonográficos e
audiovisuais foram alguns dos recursos utilizados. Busquei fontes através da documentação
escrita e dos relatos orais, os quais foram indispensáveis, dado que a transmissão do
conhecimento da cultura da Capoeira se faz, de geração a geração, por meio da tradição oral.
A oralidade foi um instrumental essencial para o uso dos recursos metodológicos pertinentes e
cujo patrimônio é interesse da etnocenologia16. Este sistema de conhecimento é a base de
fundamentação que tem guiado a pesquisa, desde uma perspectiva multi/inter/trans-
disciplinar. Diferencia-se da óptica etnocêntrica e tem como missão maior “[...] basear seus
estudos e ações em objetivos humanistas amplos, que promovam a coesão social e a melhoria
12 O grupo de Capoeira Contemporânea do Mestre Sabiá é assim denominado por sua estreita co-relação com o tempo atual e por não se considerar nem regional nem angoleiro, mas se movimentar em ambas essas linhagens.
13 Treinei três meses no Instituto N´Zinga, participei de alguns eventos e freqüentei rodas de grupos de Capoeira Angola no Forte de Santo Antônio (Mestre João Pequeno de Pastinha, Mestre Boca Rica, Mestre Moraes, Mestre Bola Sete), no Pelourinho (Associação Brasileira de Capoeira Angola, Mestre Curió, roda de rua do Mestre Lua Rasta), no Dois de Julho (FICA, Mestre Valmir), no Campo Grande (Escola de Belas Artes da UFBA, com Sapoti), na Boca do Rio (Capoeira Palmares), no Rio Vermelho (roda dos domingos na praça central) e no Projeto Mandinga (Mestre Jogo de Dentro).
14 Treinei no grupo “Capoeira Brasil” do Mestre Jelon Vieira (agora “Capoeira Luanda”) e posteriormente no grupo “Mundo Capoeira” do Mestre Dendê, um ano aproximadamente. Participei de eventos no Forte da Capoeira (“Zumbimba” e “Capoeira de Saia”) e visitei as academias dos discípulos de Mestre Bimba (Pelourinho e Forte), Mestre Mica, Mestre Tuchê, Mestre Tony, Mestre Bozó, dentre outros.
15 No grupo pesquisado “Ginga Mundo” e compartilhei algumas experiências com o Mestre Zambi, na FUNCEB e em sua academia.
16 Definida por Pradier (no manifesto da etnoescenologia, fevereiro de 1995, publicado na revista Théâtre/Public, maio-jun.1995, p.47, París) como: “o estudo, nas diferentes culturas, das práticas e dos comportamentos humanos espetaculares organizados – PCHSO”.
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da vida humana, individual e em grupo, associando teoria e prática, ação e reação,
pronunciamento verbal e escuta”17, na busca de compreensão das múltiplas formas de,
conforme Bião, “viver identidades, conviver e produzir sentidos”. Servi-me desta disciplina
que concede especial importância à apetência do pesquisador e a sua competência, e que
questiona os antagonismos constantes no universo cultural, valorizando a sua diversidade e se
resistindo à sua uniformização. Estuda a relação arte/ciência e vale-se, mais do que de
conceitos rígidos, de noções moles tais como matrizes estéticas, estados de consciência e
estados de corpo, identidade / identificação, teatralidade / espetacularidade e tradição /
contemporaneidade, sendo referenciais indispensáveis e úteis para a pesquisa, com os aportes
de Armindo Bião, Jean-Marie Pradier e Michel Maffesoli, dentre outros.
Sobre os estudos de mestiçagem, transculturação, globalização, hibridismo e
identidades culturais, me servi dos autores Gilberto Freyre, Fernando Ortiz, Milton Santos,
Nestor Canclini e Stuart Hall, respectivamente.
Quanto aos estudos concernentes à Capoeira, sustentei minhas análises em Muniz
Sodré, Waldeloir Rego, Decânio Filho, Nestor Capoeira, Jair Moura, Luiz Renato Vieira,
Antonio Liberac, Falcão, Pastinha, João Pequeno de Pastinha, Pedro Abib, Bola Sete,
Alejandro Frigerio, Gabriela Santos e Frederico José de Abreu (eventualmente identificado
como Frede Abreu), dentre outros.
Numa primeira instância, abordei a Capoeira enquanto manifestação de origem afro-
brasileira, levantando matrizes culturais/estéticas (aspectos históricos, geográficos,
lingüísticos, religiosos e artísticos). Debrucei-me sobre alguns dos principais acontecimentos
(penalização e legalização da Capoeira) que marcaram o ethos da Capoeira e sua estética.
Descrevi a Luta Regional Baiana criada pelo Mestre Bimba e a Capoeira Angola com o
Mestre Pastinha. Questionei a chamada “descaracterização”, para tentar contextualizar e
detectar alguns dos fatores que propiciaram re-invenções na Capoeira.
No segundo capítulo, busquei me aproximar de uma possível definição sobre a
Capoeira Contemporânea, abordei algumas das suas múltiplas configurações e dei especial
ênfase àquela que busca dialogar com as duas principais linhagens. Destaquei aspectos
relevantes do Mestre Sabiá e do Projeto Mandinga, descrevi e problematizei a cena do grupo
17 Bião Armindo. Uma encruzilhada chamada Bahia. Revista da Bahia. n.38, p. 18. Salvador, maio de 2004.
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Ginga Mundo. Encontrei zonas de conflitos e interseções, vantagens e desvantagens, logros e
desafios.
Finalmente, analisei a cena da Capoeira em mutação, na co-relação que se estabelece
entre tradição e contemporaneidade. Abordei a diversidade apresentada nas formas
tradicionais e a sua intensificação com o fenômeno da globalização. Concedi especial
importância ao corpo, enquanto um dos seus principais instrumentais, assim como nas
qualidades artísticas e sua utilidade nos processos criativos. Debrucei-me sobre o constante
processo de construção da Capoeira, assim como das nossas identidades culturais.
É neste processo de contínuas transformações que se situa o eu como eterno
aprendiz, capoeirista/artista/pesquisadora que se serviu da academia para a análise de uma das
mais representativas expressões da cultura brasileira, ainda que a razão não consiga
compreender, plenamente, o mistério do intangível, o inexplicável do sensível e o etéreo do
efêmero.
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2 CAPOEIRA: MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA AFRO-BRASILEIRA
2.1 MATRIZES CULTURAIS
2.1.1 As Primeiras Palpitações
O nascimento, a gênese do palpitar criador da Capoeira tomou vida nos corpos dos
africanos escravizados no Brasil, provenientes de diversas regiões e pertencentes a várias
nações, principalmente da África Ocidental e Central. Vendidos pelos traficantes como
produtos de exportação, foram submetidos à imposição do sistema escravocrata que regeu no
Brasil desde o período colonial até sua abolição, em 1888. Ao parecer, os aborígenes1
impuseram uma forte resistência à submissão2 e, quando não morriam nos cativeiros,
revelavam-se, confrontavam-se ou fugiam. Importar mão-de-obra africana3 foi uma das
estratégias utilizadas, reflexo de interesses econômicos e comerciais, dentre outros. Escravos
e indígenas criaram vínculos de cumplicidade e suas culturas se influenciaram mutuamente, se
refletindo nas suas manifestações, como na Capoeira.
Bião (2010) explica-nos sobre a transformação da escravidão doméstica na
escravização comercial, que buscava atender as demandas internacionais:
Os portugueses, assim como outros europeus e brasileiros, compraram africanos de outros africanos, num processo comercial de larga escala de produção de escravos para exportação, que, em boa medida, induziram, com a participação de poderes locais e regionais, e que substituiu o sistema tradicional, doméstico e tribal, de manutenção de cativos, resultante de disputas étnicas e familiares. Esse horror, o maior crime de lesa humanidade de todos os tempos, que modernizou a Europa e enriqueceu o Brasil, ainda pode persistir na simplificação de sua complexidade. 4
1 Segundo Osava (2004, p. 25), a população indígena estava distribuída em cinco grandes grupos étnicos e possuíam mais de 1300 línguas.
2 Osava (2004, p.27) conta que a atitude variou desde a colaboração até a confrontação, mas a insubmissão deu-se em maior grau.
3 Antes da chegada dos europeus no Brasil, os portugueses já traficavam escravos africanos para o território português. Rego (1968, p.01) conta sobre o registro mais preciso (Azurara), quando Antão Gonçalves captura e leva para o Infante D. Henrique, os primeiros escravos do Rio de Ouro, em 1441.
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O tráfico de escravos foi o negócio cruel e desumano através do qual os europeus
lograram conquistar seus ideais e aumentar seu capital.
Bem é sabido sobre as péssimas condições às quais foram submetidos os homens e as
mulheres de cor, tanto nos navios negreiros em que foram transportados assim como nas
senzalas5 em que foram explorados e maltratados física, emocional e espiritualmente. A
forçada vida à qual foram condenados, as desfavoráveis condições de alimentação, as doenças
as quais foram expostos e o banzo6, em grande medida, causou a morte de milhões de seres
humanos. Sob o pretexto de “civilizar-nos” provocaram uma destruição inestimável. Julgados
como atrasados, primitivos e selvagens7, pelas sociedades ditas mais civilizadas, mas que
chegaram às Américas em busca das nossas riquezas. O Brasil despertou o interesse de
europeus de diversas nacionalidades8.
Osava (2004) explica que a tardia descoberta das minas de ouro e prata no Brasil foi
o que propiciou que o cultivo do açúcar fosse a base da sua economia, sendo o Nordeste a
primeira região que, devido à produção agrícola destinada à exportação, ganhou maior
impulso econômico e demográfico. Freyre (1954, p.95) descreve como se organiza econômica
e civilmente, em 1532, a sociedade brasileira: “Formou-se na América tropical uma sociedade
agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio - e
mais tarde de negro - na composição”.
4 BIÃO, Armindo. Para Viva, com carinho. A Tarde, Salvador, 27 out. 2010. p.02. Caderno 1.
5 Conforme definição de Lopes (2003, p.203): “Conjunto de alojamentos que, nas antigas fazendas ou casas senhoriais, se destinavam aos escravos”.
6 Definida por Lopes (2003, p.39) como: “Nostalgia mortal que acometia negros africanos escravizados no Brasil”. O adjetivo denotaria tristeza, estar abatido e/ou pensativo. A palavra é “Do quicongo mbanzu,pensamento, lembrança; ou do quimbundo mbonzo, saudade, paixão, mágoa”.
7 Martins (1997, p.25) salienta que “A África aparecia no imaginário europeu como o território do primitivo e do selvagem que se contrapunha às idéias de razão e de civilização”. É possível apreciar que essa visão ainda é recorrente. Camargo (2007, p.79) explica que alguns especialistas das culturas ocidentais, considerando-se “superiores”, optaram pelo termo “étnico”, que perde sua objetividade para ser utilizado “[...] como um eufemismo para os termos ‘bárbaro’, ‘pagão’, ‘selvagem’, ‘primitivo’ ou ‘exótico’, que é mais recente”.
8 Segundo conta-nos Osava (2004, p.25), há algumas versões que afirmam que antes da chegada dos portugueses nas costas brasileiras, os navegantes espanhóis já tinham estado ali e afirma que a divisão do território brasileiro entre Espanha e Portugal deu-se através do Tratado de Tordesilhas, em 1494. Na missão de encontrar uma nova rota marítima que conduziria à Índia, encomendada pelo então rei de Portugal, Dom Manuel, chegaram ao Brasil as 13 caravelas dirigidas por Pedro Álvares Cabral, no dia 22 de abril de 1500. No começo do século XVI, as expedições portuguesas descobriram o “pau Brasil” o que intensifica a migração européia para a extração da tinta da prezada árvore. Afirma que (2004, p.28) os franceses invadem nos meados do século o que veio a ser o Rio de Janeiro e posteriormente o atual estado de Maranhão. Os holandeses em 1630 ocupam a metade de Pernambuco.
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Na conformação da sociedade brasileira, misturaram-se diferentes etnias, as nativas
ameríndias e as africanas, com os portugueses. Freyre (1954) explica como o colonizador
buscou suprir a carência do volume humano:
A escassez de capital-homem, supriram-na os portugueses com extremos de mobilidade e miscibilidade: dominando espaços enormes e onde quer que pousassem, na África ou na América, emprenhando mulheres e fazendo filhos, numa atividade genésica que tanto tinha de violentamente instintiva da parte do individuo quanto de política, de calculada, de estimada por evidentes razões econômicas e políticas da parte do Estado (FREYRE, 1954, p. 102).
Se a escravidão foi a estratégia utilizada para conseguir seus objetivos, o fim não
justifica a forçada e humilhante instituição.
Pese às tentativas de extinguir as crenças e práticas dos escravos sobreviventes, a
memória não foi apagada. Mesmo tendo inventado mecanismos para esquecê-la9 e para evitar
suas manifestações, não conseguiram. Embora os africanos tenham sido arrancados à força
das suas terras, separados das suas comunidades, obrigados a acatar suas ordens e a cultuar
seus santos, eles não perderam sua fé, nem a esperança de ser livres. Possuíam dentro de si
uma bagagem cultural de amplo conteúdo místico, filosófico, espiritual, artístico e corporal, e,
frente à necessidade de um mecanismo de defesa, criaram a Capoeira.
Estabelecer com exatidão o lugar específico e a data precisa da aparição da Capoeira
tem representado uma dificuldade, mas têm se evidenciado alguns indícios sobre as suas
possíveis origens. Mesmo tendo sido incinerados os registros concernentes à escravidão no
Brasil10, existem importantes documentos históricos e a tradição oral tem sido e é o seu maior
legado, sendo fonte de um vasto material escrito. Se é africana ou brasileira tem sido uma
questão indagada, mas concordamos com ser de origem afro-brasileira; de matrizes
9 A “Árvore do esquecimento”, um exemplo das tentativas utilizadas, é referida no documentário “Atlântico Negro - Na rota dos Orixás” de Renato Barbieri (1998). A árvore devia ser rodeada pelos escravos, dando determinada quantidade de voltas ao redor (dependendo do sexo), antes de serem embarcados para América, com o fim de perder a memória e esquecer o passado, suas origens e crenças.
10 No dia 15 de dezembro de 1890, Ruy Barbosa mandou incinerar todos os documentos. Parece ter sido segundo Vieira (1998b, p.42): “uma estratégia que procurava evitar que os ex-proprietários de escravos buscassem junto ao governo uma compensação dos prejuízos que tiveram com a abolição da escravatura, em 1888”.
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predominantemente africanas mas criada no Brasil e desenvolvida pelos descendentes, fruto
da mestiça população brasileira.
Uma das figuras mais representativas, símbolo emblemático da Capoeira tradicional,
o Mestre Pastinha, afirmou em entrevista11 (FREIRE, 2009, p.29) que a Capoeira veio “com
os escravos africanos” e aclara “[...] a capoeira apareceu no Brasil como luta contra a
escravidão12”. O Mestre Pastinha, nos seus manuscritos (DECÂNIO FILHO, 1996, p.37),
revelou sua consciência sobre a influência que exerceram diversas manifestações culturais na
criação da Capoeira, sendo herdada, conforme afirma, da “[...] dança primitiva dos caboclos,
do batuque, e candobré [candomblé]”.
O mestre salienta existirem muitas versões sobre a origem da Capoeira, assinalando
que ninguém sabe qual é a verídica e diz: “A do jogo da zebra13 é uma14”. O Mestre João
Pequeno de Pastinha, o discípulo mais velho e ainda vivo do Mestre Pastinha, relata (2000,
p.30) que nos anos 60, em São Paulo, perguntou a um africano se lá existia a Capoeira e ele
respondeu afirmativamente, mas esclareceu que o nome lá era “dança do N´Golo” 15. Relata
também que quando Pastinha foi à África, levou para Salvador um quadro em que apareciam
duas figuras jogando Capoeira, mas que o Mestre disse que foi no Brasil que adquiriu o nome
de Capoeira16 que significava mato e “o mato era onde eles iam treinar Capoeira”, sendo que
11 A pesquisadora se servirá de entrevistas realizadas por ela e por outros pesquisadores. Indicará entre parêntese, após cada citação, o lugar e a data (para as entrevistas concedidas à pesquisadora) e o nome do autor da publicação em que aparece a entrevista, o ano e a página (para aquelas que já estão publicadas).
12 Ibid., p.23.
13 O Mestre Pastinha refere-se à festa realizada todos os anos em Angola, há séculos atrás “em homenagem às meninas que ficavam moças”. Os vencedores da luta ganhariam o direito de escolher as mais bonitas.
14 Ibid., p.21.
15 Nestor Capoeira (1999b, p.24-25) define-a: “-[...] um ritual de passagem feminino da adolescência para a puberdade-, onde os rapazes, na África, lutavam entre si aos pares, imitando os coices das lutas das zebras. O campeão podia escolher uma noiva sem ter que pagar o dote costumeiro”.
16 Rego (1968) afirma ter sido feito o primeiro registro por Rafael Bluteau, em 1712. Em 1813 por Moraes e em 1865 por José de Alencar, que sustenta que o vocábulo Capoeira vem do tupi caa-apuam-era (ilha de mato já cortado). Em 1879 Henrique de Beaurepaire Rohan afirma ser do tupi co-puera (roça velha). Macedo Soares (1880) refuta as posições anteriores se valendo da idéia de vir do guarani caá-puêra. Já Frederico Edelweiss (19_?), citado por Rego (1968, p.21) afirma que “Capueira vem de Kopuera, - roça abandonada da qual o mato já tomou conta”, mas é refutado por não pretender ser chamado de “antigo roçado” o “mato renascido”. No Dicionário da Língua Portuguesa elaborado pela Academia Brasileira de Letras, conta Rego (1968, p.24) : “[...] inclui sob a mesma origem, capoeira (jogo) e capoeira o homem que pratica o jogo da capoeira, sem contudo ainda explicar o que determinou o étimo”. Rego (1968, p.23) afirma que “Ao lado do vocábulo genuinamente brasileiro de origem tupi, há o português, significando entre outras coisas cesto para guardar capões”. As capoeiras de galinhas eram levadas no mercado pelos escravos para ser vendidas e, no entanto, era jogando
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na África existia uma manifestação com características semelhantes. Corresponde ao mesmo
ritual chamado de “dança do N´Golo”, “passo da zebra” ou “jogo da Zebra”; uma das
expressões culturais em que se evidenciam componentes matriciais da Capoeira. Tinha outras
danças/lutas semelhantes, conta Vieira (1998b, p. 42), como Cujuinha, Vianga, Cuissamba e
Sodré (2002, p.36) destaca, na atual Angola, a Bassula e Cabangula. Vieira (1998) relata que
aqueles que defendem o argumento de ser a Capoeira brasileira, baseiam-se no fato de não
encontrar na atualidade lutas similares dos escravos em outras ex-colônias das Américas, mas
aclara que já tem se evidenciado a existência de lutas parecidas em Cuba, Martinica e
Venezuela. Debate-se, portanto, se teriam como origem comum a Capoeira. Explica-nos que
os que sustentam ser africana, enfatizam a atual existência de danças rituais na África, nas
quais se destacam aspectos da luta. Sodré17, em conversa com N. Capoeira (1999b, p.40),
afirma: “[...] o jogo da capoeira não teve uma matriz e um centro irradiador único, mas brotou
espontaneamente e com formas diferenciadas em diferentes locais”.
Embora a Capoeira tenha se desenvolvido em outras cidades portuárias, como Rio de
Janeiro e Recife, a Bahia é o referencial mais próximo à tradição da Capoeira, sendo Salvador
considerado o berço da Capoeira. Em 1549 funda-se a cidade de Salvador18 e com a
instituição do governo-geral de Tomé de Sousa foi o padre Manoel da Nóbrega, que veio na
sua comitiva, um dos primeiros19 em solicitar escravos de Guiné20. Rego (1968, p. 16) salienta
capoeira que eles se divertiam. Segundo Rego (1968) as divergências sobre as diferentes propostas só podem ser esclarecidas com estudos a serem desenvolvidos sobre o negro no Brasil e explica as variadas acepções desde a sua abordagem semântica, dentre as quais: ave (Odontophorus capueira, Spix), cesto, local, carruagem velha, mato cortado, lenha miúda, jogo atlético, indivíduo, ladrão de galinha etc.
17 Capoeira (1999b, p.31) cita trechos, em várias oportunidades, do “bate-papo informal” com Muniz Sodré e como não menciona uma data específica, fico isenta de citá-la.
18 Foi a primeira capital do Brasil colônia, antigamente chamada de Bahia. A população da região metropolitana de Salvador em 2008 (IBGE) quase chega aos quatro milhões e a superfície do município de Salvador é de 706,8 km². O importante porto é centro econômico, industrial, cultural e turístico e revela ser a cidade do Brasil que tem maior porcentagem de negros afro-descendentes.
19 Rego (1968) conta-nos que Visconde de Porto Seguro sustenta ter sido nos inícios da colonização que chegaram os primeiros escravos, mas que não consta prova nenhuma. Diz se falar que em 1538, Jorge Lopes Bixorda trafica os primeiros africanos para Bahia. Conta de ter-se notícia que Duarte Coelho, em 1539, reclama o pedido de escravos a D. João III, insistindo em 1542.
20 Rego (1968, p.14) afirma “Sabe-se apenas que a uma vasta área de terra da África, chamavam os portos de Guiné, não se tendo notícia de sua divisão geográfica e étnica”. Salienta ter sido feito o pedido a D.João III através de uma carta datada de 1551 e, em 1557, rejeitando os índios como escravos, solicita mais duas dúzias de negros de Guiné. Ressalta que (1968, p.12): “[...] o documento mais antigo, legalizando a importação de escravos para o Brasil, inclusive indicando o lugar de procedência é o alvará de D. João III, de 29 de março de 1559, permitindo sejam importados escravos de São Tomé”.
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que vários historiadores coincidem em que tanto os primeiros africanos quanto a maior
quantidade vieram de Angola; além de ser “o centro mais importante da época”, ressalta a
“boa qualidade dos escravos” que eram propícios para a submissão, à diferença da rebeldia
dos nagôs.
Há uma cantiga de domínio popular, muito escutada e cantada nas rodas de Capoeira:
Que navio é esse, que chegou agora É o navio negreiro, traz escravos de Angola Que navio é esse, que chegou agora É o navio negreiro, traz a Capoeira Angola (coro)
Atualmente, existem novas versões que remetem não somente à região de Angola:
Que navio é esse, que chegou agora É o navio negreiro, com os escravos de Angola (coro) Vem gente de Cambinda, Benguela e Luanda Eles vinham acorrentados, pra trabalhar nessas bandas (coro) (grupo “Abadá Capoeira”)
Vários autores concordam segundo Rego (1968), com que no século XVI primou a
superioridade dos negros bantos na Bahia. Das matrizes africanas na Bahia, Bião (2000)
identifica a banto; área concernente aproximadamente ao que hoje é ocupado por Angola e
Moçambique e a influência sudanesa; hoje Nigéria e Benin (a primeira de influência árabe
muçulmana e a outra marcada pelos sistemas religiosos dos cultos de possessão jeje e nagô).
Afirma:
Todas essas matrizes africanas se cruzariam no Brasil e, mais particularmente na Bahia - de um modo ou de outro - com as matrizes lingüísticas e religiosas nativas, notadamente tupi-guaranis, mas, complementarmente, gê-tapuias, contribuindo, ao longo do século XVIII, para a substituição da chamada ´língua geral´- de base tupi-guaraní- pelo português, que seria a língua comum dos africanos e seus descendentes no Brasil, por eles difundida por todo o país. A matriz portuguesa, subconjunto por sua vez de uma muito maior matriz ibérica, associaria matrizes celtas, visigodas, judaicas e latinas [...] às matrizes árabes muçulmanas [...]. Na
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Bahia, a matriz africana seria dominante no litoral sobretudo em Salvador e em sua zona imediata de influência, o Recôncavo [...] (BIÃO, 2000, p. 20).
A Capoeira na Bahia revela marcantes componentes matriciais africanos, assim como
características reveladoras da influencia exercida pelos diversos contatos culturais na
conformação da sua sociedade. O atual modelo de roda de Capoeira não tem se encontrado
isento ao hibridismo cultural21 próprio do seu constante desenvolvimento.
O Mestre Bimba, o criador da Luta Regional Baiana - destacada no próximo capítulo
-, especifica ter nascido a Capoeira em Santo Amaro, Cachoeira e Ilha de Maré. Sodré (2002,
p.36) afirma: “[...] quando Bimba sustentava que a capoeira era uma criação brasileira, tinha
toda a razão, por referir-se à síntese operada no Recôncavo a partir da múltipla herança
africana”.
A Capoeira foi sua poderosa arma de sobrevivência que se consolidou enquanto luta
de resistência e virou símbolo de libertação.
Vieira (1998b, p.43) ressalta que “[...] o surgimento da capoeira se confunde com a
história da resistência dos negros no Brasil”. Explica-nos que a
criação da Capoeira tem sido associada aos primeiros
quilombos22 no Brasil, por ser uma atmosfera oportuna para a
sua prática, embora não existam provas suficientes.
Os escravos fugidos esconderam-se em lugares de
difícil acesso e conformaram-se em grandes comunidades auto-
sustentáveis. O célebre Quilombo dos Palmares, liderado
inicialmente por Ganga Zumba, foi foco de perseguição pelas
forças oficiais de vários governos e, após várias tentativas
frustradas de destruição, resistiu-se vitoriosamente às
tenebrosas expedições militares, por quase um século. Poucos
anos após a morte (1695) do líder Zumbi dos Palmares
21 Para mais detalhes sobre o conceito, ver seção 4.1.2 Dialogando com a tradição?
22 Lopes (2003, p.186) define quilombo como: “Aldeamento de escravos fugidos. [...] Do quimbundo kilombo,acampamento, arraial, povoação, povoado; capital; união; exército”. Além de ser o local e comunidade de negros que lutaram contra o sistema escravocrata, deve ser abordada a complexidade, conforme Abreu (2005, p.79), “da organização, do funcionamento e do papel histórico pelo quilombo desempenhado”.
Figura 1: Homenagem a Zumbi dos Palmares (2008). Fonte: Catalina Salazar, 2009.
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(comandou o quilombo após o envenenamento de Ganga Zumba) desintegrou-se o maior
quilombo da história do Brasil.
Zumbi existe na memória coletiva e forma parte da tradição oral da Capoeira que a
ele ainda rende homenagem. O monumento construído na Praça da Sé, conforme a Figura 1,
é: “o símbolo da resistência do povo negro brasileiro e a materialização da memória de lutas e
conquistas pelo exercício da liberdade no fortalecimento pela consciência negra”23.
As referências probatórias revelam a presença da Capoeira a partir da segunda
metade do século XVIII. Abreu (2005, p.18) evidencia a sua existência em Salvador (1798),
através da transcrição de uma parte da cena 3 da peça teatral “A Conspiração dos Alfaiates”,
em que acontece uma briga “com golpes de capoeira” (pese à incerteza da sua participação em
tal rebelião). O pesquisador comprova que a tradição da Capoeira já estava firmada no início
do século XIX, período em que foi desenhada a aquarela (de autor desconhecido) publicada
no livro de Gilberto Ferrez e na qual se encontram dois personagens jogando cadenciosamente
com movimentos próprios à luta, do lado de um homem que supervisa a prática com uma
arma branca na mão. A Capoeira ainda não era penalizada por lei, mas seu mecanismo de
expressão e resistência era controlado e vigiado pelos donos de escravos24.
Nestor Capoeira transcreve-nos as palavras de Julio César Tavares25, que explica:
No caso dos africanos trazidos como escravos para a América [...], o sistema de resistência constituído, forçosamente, teve que adquirir um grau elevado de complexidade devido às inumeráveis nações que se mesclaram fora do continente africano, e que tiveram no sincretismo e na miscigenação a melhor forma de organizar essa resistência. Todavia, da mistura criada uma nova comunicação foi se estruturando, uma nova cultura foi se configurando. Chamemo-la de Afro-Diáspora (CAPOEIRA, 1999b, p.25).
23 Conforme está inscrito na placa do monumento construído na Praça da Sé, Pelourinho, Salvador em 30 de maio de 2008. É um projeto cuja autoria é de Lázaro Souza Duarte. Comissão gestora: Mônica Kaule, Raimundo Bujão, Lázaro Duarte, Jorge Conceição, Valmir Dois Mundo. Prefeito: Jorge Henrique de Barradas Carneiro. Ministro da Cultura: Gilberto Passos Gil Moreira.
24 Para mais detalhes ao respeito, ver seção 2.2.1 Repressão e penalização.
25 Tavares é citado por Capoeira (1999b) em várias oportunidades, se referindo às conversas que eles tiveram e como não há uma data específica dos encontros, fico isenta de citá-la.
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Os cruzamentos propiciados revelaram-se nas suas manifestações e proporcionaram
elementos aproveitados nas estratégias utilizadas para lutar contra o sistema opressor que
gerava a condição que os acometia. Se a mão de obra escrava foi o pilar para o
desenvolvimento da economia agrária e mineira no Brasil foi também fundamental, explica N.
Capoeira (1999), a partir do século XVIII, para o crescimento das cidades. Nos finais do
século XVIII, o declive da produção mineira, afirma Osava (2004, p.29) “[...] devolvió a la
agricultura la condición de primera actividad económica, pero con la diversificación impuesta
por la revolución industrial europea”26. Iniciada na Inglaterra, no trânsito entre o feudalismo e
o capitalismo, espalha-se na Europa, Ásia e América, na segunda metade do século XIX,
prevalecendo a indústria de bens de produção.
N. Capoeira cita-nos Muniz Sodré que afirma: “O capitalismo, o progresso, a
civilização, a cultura ocidental se tornaram possíveis a partir do tráfico de escravos, da grande
diáspora negra. Os vinte milhões de negros exilados da África para as Américas foram
imprescindíveis à acumulação primitiva do capital europeu.” (CAPOEIRA, 1999b, p.20).
Salienta: “No que se refere ao Brasil, a importância do negro- seja sob o aspecto econômico,
social, artístico, racial ou cultural- é determinante e básica”. Embora o negro não tenha sido
reconhecido nem valorizado, sem sua participação não seria possível falarmos da cultura
brasileira. A cultura popular é marginalizada pelas elites “civilizadoras”, o “bárbaro”
menosprezado pelo “conhecimento” erudito e o “pagão” é evangelizado. Se bem, conformou-
se a sociedade brasileira num entreposto de ideais, idéias e interesses, entre choques, rupturas
e alianças, tece-se num cruzamento de culturas, cuja diversidade e multiplicidade revela-se
nas manifestações originadas e nas suas atuais configurações, riquíssimas em conteúdo
artístico, místico, religioso e espiritual, como é a Capoeira.
N. Capoeira (1999b, p.17) transcreve a posição de Muniz Sodré, que afirma: “o
importante não é o ‘começo’ [...] mas sim o ‘princípio’: quais as condições que a geraram e o
que a mantém em expansão. [...] o ‘começo’ é brasileiro, mas o ‘princípio’ - tanto o
fundamento, a historicidade, quanto o mito - é africano”.
A Capoeira é reflexo da cosmogonia e de alguns dos valores da cultura africana que,
mesmo apresentando variações de nação para nação, possuem características comuns e seus
26 [...] devolveu à agricultura a condição de primeira atividade econômica, mas com a diversificação imposta pela revolução industrial européia (Tradução nossa).
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princípios estão intrínsecos na ligação religião/arte, sendo reveladores do seu caráter sagrado,
ritual e espiritual.
A Capoeira é uma invenção dos africanos em contrapartida à escravidão no Brasil e
como tem sido desenvolvida pelos seus descendentes, não poderia estar deslocada das
influências propiciadas nos processos de transformação próprios ao contexto político,
econômico e social em que tem se manifestado. Posso considerar que a criação da Capoeira é
fruto da diáspora africana e seu desenvolvimento é reflexo da mestiçagem, do sincretismo
religioso e dos múltiplos contatos culturais que engendraram novas formas de expressão no
Brasil. Sua propagação revela necessidades particulares, demandas criadas e seu grande
potencial artístico, lúdico, esportivo e marcial.
Na continuação nos debruçaremos sobre a importância que exerceu o aspecto
religioso, sendo um fator definidor das matrizes culturais da Capoeira.
2.1.2 Ritualidade e Religiosidade
A energia mística que envolve o ato ritual da Capoeira, em que cada gesto, todo som
e movimento é pleno de sentidos, denota a devoção em profunda ligação com as divindades
protetoras. Os deuses africanos não deixaram de serem homenageados, os orixás27
continuaram sendo cultuados pelos escravos e afrodescendentes no Brasil, porém não foram
imunes à influência que o catolicismo exerceu.
A religião desempenhou um papel fundamental na consolidação da sociedade
brasileira, assim com nas manifestações criadas e recriadas a partir da simbiose que se
produziu da interseção de culturas distintas, no cruzamento entre sistemas religiosos
diferenciados.
27 Conforme a definição de Ferreira (1999, p.1456): “Entre os iorubás e nos ritos religiosos afro-brasileiros, como o candomblé [...]; personificação ou deificação das forças da natureza ou ancestral divinizado que, em vida, obteve controle sobre essas forças [...]”. Decânio Filho (2002) conta que foram homens que se converteram em orixás pelos seus poderes e sabedoria, admirados pela sua força e suas virtudes. Aguilera (1996, p.34) afirma que “El orisha no está formado por una fuerza o elemento de la naturaleza, la cual esté desencadenada y que actúe en forma indisciplinada; al contrario, estas fuerzas tienen posibilidades de ser controladas. Podríamos decir que esa fuerza de la naturaleza forma un eslabón entre el hombre y lo desconocido”. [O orixá não é formado por uma força ou elemento da natureza, a qual esteja desencadeada e atue de forma indisciplinada; pelo contrário, estas forças têm possibilidades de serem controladas. Poderíamos dizer que essa força da natureza forma um elo entre o homem e o desconhecido] (Tradução nossa).
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O aspecto religioso possui uma dupla significância de suma importância e direta
influência no que respeita o processo evangelizador e as práticas culturais desenvolvidas no
Brasil. A labor catequizante dos jesuítas missioneiros, durante o período da colônia, impõe-se
sobre as crenças dos povos nativos indígenas e das diversas nações africanas, que se
misturaram no Brasil. O sincretismo religioso revela a repercussão do culto católico na
configuração do Candomblé28.
A religião foi um mecanismo utilizado para a conquista e também pretexto para a
justificação do sistema escravocrata imposto. Rego (1968, p.08) salienta, “Esse comércio
terrível e desumano teve a mais forte cobertura da Santa Madre Eclésia, alegando para tanto o
argumento idiota de que os portugueses tornariam os povos ditos bárbaros, adeptos a fé de
Cristo.” Na busca de conversão dos indígenas ao catolicismo, revelou-se na influência
exercida, como relata Freyre (1954), através da música, canto, liturgia, procissões, festas,
danças religiosas, mistérios, comédias, rosários e relíquias. Na missão de “cristianização dos
caboclos”, Freyre (1954, p.169) afirma: “O próprio sistema jesuítico, no que logrou maior
êxito no Brasil dos primeiros séculos foi na parte mística, devocional e festiva do culto
católico”. Embora tanto os indígenas quanto os africanos tenham sido influenciados pelo
sistema religioso imposto, eles tinham o seu, sua própria concepção de vida e especial forma
de se relacionar com os outros, com o cosmos, com as forças sagradas da natureza e suas
divindades. Sua devoção vislumbra-se na ritualidade e sacralidade das suas expressões, em
que religião e arte imbricam-se num todo indissociável.
Capoeira assinala que à diferença da cultura européia, os escravos africanos,
Trouxeram a sua própria cultura; uma cultura viva, diferente da européia. Uma cultura que não era guardada em livros ou em museus, mas no corpo, na mente e no coração de cada homem; sendo transmitida de pai a filho, de iniciado a iniciante, através das gerações (CAPOEIRA, 1999a, p.13).
28 Lopes (2003, p.63) define-o como “tradição religiosa de culto aos orixás jeje-nagôs”, refere-se também à celebração em si e ao lugar em que são realizadas as práticas. Lima (1977, p.09) sustenta que o local de prática das cerimônias religiosas é uma extensão “-[...] do corpus ideológico do grupo, seus mitos, cosmogonias, rituais e ética -”, sendo então o candomblé, na linguagem do povo-de-santo da Bahia, “sinônimo de terreiro, de casa-de-santo, de roça”, sem por isto perder sua conotação de “sistema ideológico”. O autor salienta que mesmo existindo resistência à mudança, houve transformações. Os cultos religiosos foram re-interpretados ou re-criados (ideologia, simbolismo dos ritos e mitos, língua, interdições, obrigações e fatores sócio-econômicos que influenciaram na sua estrutura). Ressalta (2003, p.13) o processo “aculturativo”, que deveu ser acentuado na Bahia onde se organizaram “sob os padrões culturais originários dos grupos nagô-iorubá e jeje-fô” e, também, a partir do contato cultural com os grupos étnicos de Angola e do Congo.
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A tradição oral/corporal é canal de transmissão dos saberes/práticas dos mais velhos
aos mais jovens. A bagagem cultural dos povos africanos escravizados no Brasil revela-se nas
crenças e costumes que são a base para a manutenção das suas tradições e são plasmadas nas
suas manifestações.
Era nas horas de folga que os escravos, para liberar-se das tensões provocadas nas
árduas jornadas de trabalho, reuniam-se com o propósito de descontrair-se e de invocar
proteção. Rendiam homenagem e louvavam aos seus deuses através dos seus cantos, orações e
danças. A Capoeira seria um tipo de rito de expulsão ou rechaço, criado pela necessidade de
reação defensiva frente à ameaça que colocava em risco a integridade e/ou a própria vida.
Através da prática ritual, os africanos e descendentes tentavam liberar o traumatismo
produzido e transformar os efeitos perturbadores da lamentável situação, para torná-la
suportável. A Fé reflete-se nas suas criações.
Aguilera (1996, p.07) ressalta a religião enquanto constante cultural nas diversas
comunidades africanas e afirma que, na confluência dos dois principais grupos culturais, a
daomeana e iorubá, a religião e a arte são:
[...] causa y efecto respectivamente de su propio desarrollo intrínseco. Es decir, las concepciones religiosas impregnan la producción artística, la cual permite que esta última plasme, en los distintos actos rituales o no, las costumbres sacro-sociales del grupo en cuestión29 (AGUILERA, 1996, p.06-07).
O autor aponta objetivos em comum que se teriam no culto aos orixás, em algumas
regiões da África ocidental e América. Salienta que quanto à busca do benefício pessoal este
objetivo acentua-se na América. Afirma, “Esto se evidencia dentro del sincretismo operado
entre el catolicismo colonial-ibérico y el culto de los orishas”30, cujo produto final seria, no
Brasil, o Candomblé (AGUILERA, 1996, p.09).
29 [[...] causa e efeito respectivamente ao seu próprio desenvolvimento intrínseco. Quer dizer, as concepções religiosas impregnam a produção artística, a qual permite que esta última plasme, nos distintos atos rituais ou não, os costumes sacro-sociais do grupo em questão] (Tradução nossa).
30 [Isto se evidencia no sincretismo ocorrido entre o catolicismo colonial-ibérico e o culto aos orixás] (Tradução nossa).
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O candomblé e a Capoeira, assim como outras manifestações populares afro-
brasileiras, foram alvo de repressão das instâncias políticas, militares e religiosas. Foram
violentamente perseguidas, proibidas e condenadas pelas autoridades policiais e pela Igreja
Católica31.
Existem diversas visões e versões no que respeita o vínculo entre o Candomblé e a
Capoeira. Para muitos são indissociáveis, para outros a ligação é indireta e há os que afirmam
não terem relação nenhuma.
Decânio Filho (1995, p.12) afirma que “o ritmo básico de Logunedé... corresponde às
batidas do pandeiro na capoeira... conclui que... o candomblé era a fonte mística... donde
brotava a magia da capoeira!...”. Atribui à raiz: mística, musical e coreográfica, a “dança
ritual do candomblé”. Assinala, “quem cria o capoeirista... é o toque do monocórdio de Exú!
Do mesmo modo que ‘São Salomão’... desenvolveu a ‘arte-e-manhá’... com que enfrentou ‘as
armações’... do ‘tinhoso das encruzilhadas’...”32.
As encruzilhadas33 exerceram uma importante função na constituição das culturas
negras nas Américas. Martins (1997) descreve a função exercida por Exú, o rei das
encruzilhadas, no lugar das interseções, sendo o canal de comunicação entre os deuses e os
humanos.
A arte da Capoeira afirma-se em conjunção com os sistemas religiosos presentes, de
matriz predominantemente africana, mas sincretizados no Brasil e cujas representações
simbólicas se re-significam e criam-se interatuando com o tempo e o espaço em que se
desenvolvem. A Bahia é o estado em que a Capoeira tem se caracterizado pela sua maior
proximidade com a ancestralidade africana, com a sacralidade presente nos seus cultos
místico-religiosos. Na tradição oral da Capoeira presencia-se, tanto nas lendas como nos
31 A Igreja promulga preconceitos errôneos em torno das práticas. Tenho conhecimento de vários capoeiristas que, após se converter ao catolicismo, têm renunciado à Capoeira. Ainda escuta-se falar e lê-se, em avisos publicados por adeptos em Salvador, que Oxalá ou Senhor do Bonfim é “o diabo”.
32 Ibid., p.13.
33 Ferreira (1999, p.752) define a encruzilhada como: “Lugar onde se cruzam estradas ou caminhos; ambívio, compito, encruzada, cruzamento”. Refere-se também à “Atrapalhação; situação embaraçosa”. Martins (1997, p.28) afirma que a encruzilhada “[...] é um princípio de construção retórica e metafísica, [...] disseminado nas manifestações culturais e religiosas brasileiras de predominância nagô e naquelas matizadas pelos saberes bantos”. Considera que “o termo encruzilhada, utilizado como operador conceitual oferece-nos a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emergem dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e dialogam, nem sempre amistosamente, registros, concepções e sistemas simbólicos diferenciados e diversos”.
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fundamentos e prática, aspectos que revelam a importância do vínculo com as divindades
protetoras; orixás ou santos correspondentes.
Mestre Bola Sete34 salienta (2003, p.39) que o capoeirista geralmente “[...] conhece
orações para fechar o corpo, possui os seus amuletos para aumentar a sua fé e protegê-lo nas
horas de perigo”. O mestre revela a força das suas crenças e assinala:
Antes do início do jogo, no pé do berimbau, durante a entonação do cântico da ladainha, o praticante de angola deve se concentrar e fazer as suas orações, procurando assimilar as vibrações positivas contidas no ambiente, pedindo a proteção do seu guia espiritual, do seu santo protetor ou dos seus orixás (SETE, 2003, p.139).
No início da roda, os jogadores agacham-se no pé do berimbau e abençoam-se.
Na descrição feita por N. Capoeira (1999a, p.18): “As mãos dos dois jogadores
tocam o chão e traçam sinais mágicos – pontos riscados que fecham o corpo e fortalecem o
espírito”. É comum escutar se contar sobre capoeiristas famosos que tinham o corpo fechado,
protegido contra as energias negativas. Tal é o caso do mitológico Besouro35 que conseguia
fugir misteriosamente dos policiais e inimigos que tanto procuraram assassiná-lo e que,
34 Mestre Bola Sete é José Luiz Oliveira Cruz, conforme foi relacionado nas referências, mas no corpo do texto será referido como Bola Sete, devido a ser reconhecido no meio capoeirístico com este apelido.
35 A existência de Besouro de Mangangá ou chamado também de Besouro “Cordão de Ouro” tem sido questionada, mas há dado reais que comprovam que sim viveu (Manoel Henrique Pereira, nascido na cidade de Santo Amaro da Purificação, em 1885), além de ser parte da tradição oral expressa em cantigas e nas falas de importantes mestres como João Pequeno de Pastinha que afirma (2000) que seu pai era primo dele. Pires (2001) encontrou dados em registros da documentação jurídica e policial de Salvador, em jornais e em relatos orais (membros da família, conhecidos e capoeiristas). Transcreve depoimentos de José Brigido Dorneles Antunes que reitera a sua existência e a dos seus companheiros Paulo Barroquinha, Boca de Siri, Doze Homens, Canário Pardo e Noca de Jacó (Ernesto Ferreira da Silva) que menciona lugares que freqüentava, onde tinha trabalhado, enfrentamentos com a polícia, processos contra ele e, conforme Pires (2001, p. 221), afirmou ter aprendido Capoeira com Besouro. Dados históricos pontuais e a literatura de Cordel foram fontes para a produção do filme “Besouro” (2009), conforme seu diretor João Daniel Tikhomiroff (em entrevista postada por Jônatas, 19 out. 2009. Disponível em: . Acesso em: 3 mai. 2011). Embora o mistério permeie a vida de Besouro de Mangangá, pelos seus poderes e valentia, pela sua invencibilidade, pela capacidade de desaparecer e/ou voar, ganhou tanta fama que sua existência converteu-se em lenda, sendo seu mito recriado constantemente. Memória coletiva e imaginário popular, realidade e ficção, o possível e o impossível se entrelaçam dando vida a este personagem mitológico, fundamental na tentativa de compreensão da complexidade que envolve o universo da Capoeira.
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finalmente, conseguiram seu objetivo o dia que, segundo uma das versões, por ter relações
sexuais estava vulnerável, de “corpo aberto”.
Na roda, depois de invocar proteção, os capoeiras fazem uma saudação, colocando-se
corporalmente, de cabeça para baixo e com as pernas para cima, em direção ao berimbau.
Pude vivenciar que esse movimento é um ato simbólico, é uma reverência, uma forma de
cumprimentar, de agradecer e de solicitar proteção. A comunicação com entidades
supranaturais dá-se dentro do ritual da Capoeira através de sinais, atos, gestos, movimentos,
presenciam-se nas cantigas, também nas rezas e amuletos próprios aos capoeiras de outrora.
Jair Moura (1979, p.12) afirma “O capoeirista geralmente tinha o seu santo que era
Oxossi ou Ogun”. Relata:
No pescoço, não dispensava patuás, contendo orações fortes para evitar os maus momentos, acautelando-os do mal. O amuleto, junto a um rosário, também era usado entre o tórax e a axila, ambos enfiados num cordão, enlaçado na garganta. [...] eram usados dentro de bolsas de pano ou de couro, junto a orações fortes, como a ‘Cinco Salomão’ que em linguagem correta é ‘Signo de Salomão’ e as iniciais ‘JMJ’ (Jesus, Maria, José), de prodigiosos efeitos, contra os malefícios, mormente as tramas dos desafetos, morte em combate, etc. A oração da ‘Arca de Salomão’, muito conhecida dos velhos mestres da mandinga, era a mais comum entre os capoeiristas. Finalizava assim: ‘Fecha-te corpo, guarda-te irmão, na Santa Arca de Salomão’ (MOURA, 1979, p.12-13).
O signo de Salomão é “protetor dos capoeiristas”, um símbolo36 muito presenciado
no âmbito da Capoeira e insígnia de vários grupos.
Revela-se na Capoeira a presença de figuras, componentes e símbolos cristãos, que
foram incorporados a sua cultura e impressos nas suas manifestações. Ogum37, o orixá do
36 A estrela de São Salomão é utilizada em academias de diversos mestres. Por exemplo, é o centro do “Campo de Mandinga”, o lugar de vadiação desenhado na academia do Mestre de Capoeira Angola Bola Sete. Tive a oportunidade de vê-la gravada no chão ou na entrada, nas paredes ou em imagens de várias academias (Forte de Capoeira no Barbalho, Academia de Mestre Bimba no Pelourinho, Academia do Mestre Bozó na Boca do Rio, na academia de Capoeira Regional do Mestre Tony na Ondina, dentre outras). Certa feita, assistindo uma fita de Capoeira com o Mestre Ricky se referiu assim à utilização do signo: “isso aí é do diabo”. Depois soube que tinha se dedicado totalmente à Igreja e se retirado do Forte.
37 Conforme a definição de Ferreira (1999, p.1437) é o “Orixá a quem se atribui a transmissão da técnica da metalurgia do ferro aos homens, e que no Brasil é cultuado mais por sua belicosidade”. A importância de Ogum, de acordo com Linares e Trindade (19_?, p.83), “[...] vem do fato de ser ele um dos mais antigos dos deuses
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ferro e da guerra38, é o protetor dos capoeiras e foi representado no Santo Antônio39. Existe
uma cantiga escutada e repassada de geração a geração:
Santo Antônio é protetor, da barquinha de Noé Santo Antônio é protetor, é protetor da Capoeira Santo Antônio é protetor, é protetor, é protetor...
Posso afirmar que embora não seja indispensável pertencer ao Candomblé para se
jogar Capoeira, que embora a Capoeira não seja necessariamente uma religião, é indiscutível
ela ter matrizes religiosas dos cultos afro-brasileiros.
Veloso (2007, p.130) afirma: “Uma das heranças mais propaladas no cotidiano
angoleiro parece ser a religiosa. A relação entre e Capoeira e o Candomblé demonstra ser
extremamente íntima”. Cita o respeitado Tata Mutá, que tive a honra de conhecer no Instituto
N´Zinga e no seu terreiro de Candomblé, que ressalta:
A Capoeira é religião: o capoeirista que tem que encontrar dentro de si a sua forma espiritual de ser. Através do movimento, através do canto, do toque, dos ritmos, de defesa, os dois capoeiristas entram numa defesa individual e dentro da sua proteção divina trabalhar o sagrado do movimento Capoeira (VELOSO, 2007, p.131).
No Instituto N’Zinga40 presencia-se, sente-se e vive-se uma ligação especial com os
valores da tradição do Candomblé.
iorubás e, também, em virtude da sua ligação com os metais e aqueles que os utilizam. Sem sua permissão e sua proteção, nenhum dos trabalhos e das atividades úteis e proveitosas seriam possíveis”.
38 Linares e Trindade (19_?, p.81) explicam sobre sua relação: “O ferro com que se faz a ferramenta, a enxada e, também as armas com que os guerreiros se defendiam dos predadores [...]. Naturalmente, a eficiência destas armas fatalmente seria utilizada na guerra”.
39 Linares e Trindade (19_?, p.86) aclaram: “Às vezes, o dono de engenho, o senhor das terras tinha um santo de devoção pessoal e obrigava o negro a cultuar esse santo. Isto justifica o fato de em Salvador, Ogum ser sincretizado com Santo Antonio e não com São Jorge”. Para uma melhor compreensão, esclarecem “Santo Antonio foi considerado como Capitão do Exército Nacional e o pároco da igreja a ele dedicada, recebia o seu soldo no quartel”.
40 Zonzon (2004, p.06), integrante do grupo, considera que, na Capoeira Angola, a utilização de elementos característicos dos ritos do Candomblé adquire “[...] a dimensão de uma estratégia visando a reorganizar vazios
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Rego (1968, p.38) afirma que:
[...] entre a capoeira em si e o candomblé existe uma independência. O jôgo da capoeira para ser executado não depende em nada do candomblé [...]. A pesar de nas cantigas de capoeira se falar em mandinga, mandingueiro, usar-se palavras e composições em línguas bunda e nagô e também a capoeira se iniciar com o que os capoeiristas chamam de mandinga, nada existe de religioso. O que existe vem por vias indiretas.
Salienta que a relação com o ambiente dos candomblés é própria na formação da
maioria da população da Bahia e, portanto, afirma: “[...] não é de se admitir que os capoeiras
sejam os únicos a estarem de fora” (REGO, 1968, p.38). O autor conta que conhece vários
casos de ebós e descreve o caso particular ocorrido com o famoso Canjiquinha em que lhe foi
mandado um Exú, fazendo com que se criassem desavenças entre ele e o diretor do órgão
oficial de turismo do município de Salvador, provocando assim a extinção de exibições no
salão e a conseqüente “troca de fôlhas”. Conclui afirmando que “de acontecimentos assim,
conheço inúmeros, mas que esses são o bastante para se mostrar de que modo são as relações
da capoeira com o candomblé” (REGO, 1968, p. 42).
Considero que mesmo o conhecimento adquirido e o poder alcançado durante
séculos de contato com a natureza e as suas entidades, que são de se admirar e respeitar, sejam
aproveitados para múltiplas finalidades, correspondendo a lógicas específicas, não seria
redutível o valor do seu amplo conteúdo à utilização guiada por determinados interesses. Se
os malefícios são constantes presentes, com especial notoriedade na Bahia, não correspondem
necessariamente à única possibilidade de aplicação da sabedoria ancestral e dos poderes
conseguidos em séculos de experiência.
Aguilera (1996, p.38-39) ressalta: “[...] el culto de los orishas no resulta solo
fetichista. [...] El orisha es para el creyente fuente de vida fecunda y potencial para continuar
la propia lucha contra el medio”41. O autor aclara:
da memória com materiais que são ricos em potencial estruturante, pois os elementos se articulam entre si e articulam a ação dos atores, além de cristalizar os valores centrais da sua afirmação identitária: a africanidade”.
41 [O culto aos orixás não resulta somente feiticista. [...] Para o crente o orixá é fonte de vida fecunda e potencial para continuar a própria luta contra o meio] (Tradução nossa).
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Es evidente que muchas de las cuestiones planteadas en cuanto a los orishas, tienen su fondo de incertidumbre, dificultad en las fuentes, ambivalencia de la información de los informantes, en fin, y las dificultades inherentes a toda tradición oral, tan golpeada por el impacto del colonialismo despiadado y lacerante que subvierte valores42 (AGUILERA, 1996, p.31).
Que impõe crenças e atropela, gerando mecanismos de resistência, formas de reação
contra o sistema opressor que destrói e transforma, mas propicia a criação.
O anelo de liberdade não foi aniquilado, foi o motor que deu vida ao ato ritual da
Capoeira. A Fé não foi extinta, o vínculo sagrado plasma-se na roda e na vida. A religiosidade
manifesta-se nas suas criações. Arte e religião relacionam-se, dialogam e interatuam de forma
dinâmica, como aponta Aguilera (1996, p.06):
Dentro de la fenomenología cultural de todo grupo humano existe una estrecha interrelación [...] entre la producción artística – en los diferentes aspectos de ella- y la explicación anímica de lo desconocido, la concepción de la formación del universo, su cosmogonía y, por tanto, con una forma de expresión de estas nociones: la religión43 (AGUILERA, 1996, p.06).
Embora existam diversas concepções no que respeita a ligação religiosa com a
prática da Capoeira, ao
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