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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC
CENTRO DE ARTES – CEART
MESTRADO EM TEATRO
WILSON ANTHONY ALANO
TEATRO E TRADIÇÃO ORAL NA ILHA DE SANTA CATARINA: o caso do romance
Dom Jorge do Pântano do Sul
FLORIANÓPOLIS
2016
WILSON ANTHONY ALANO
TEATRO E TRADIÇÃO ORAL NA ILHA DE SANTA CATARINA:
O CASO DO ROMANCE DOM JORGE DO PÂNTANO DO SUL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina,
como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre
em Teatro, área de concentração Teorias e Práticas
Teatrais na Linha de Pesquisa Teatro, Sociedade e
Criação Cênica.
Orientadora: Profa. Dra. Tereza Mara Franzoni.
FLORIANÓPOLIS
2016
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC
A319t
Alano, Wilson Anthony
Teatro e tradição oral na ilha de Santa Catarina: o caso do romance Dom Jorge do Pântano do Sul / Wilson Anthony Alano. - 2016.
135 p. il.; 29 cm
Orientadora: Tereza Mara Franzoni Bibliografia: p. 123-130 Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro
de Artes, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2016.
1. Teatro. 2. Tradição oral. 3. Juliana e Dom Jorge. 4. Armação do Pântano do Sul. I. Franzoni, Tereza Mara. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. III. Título.
CDD: 792 – 20.ed.
WILSON ANTHONY ALANO
Teatro e tradição oral na Ilha de Santa Catarina: O caso do romance Dom Jorge do
Pântano do Sul
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes, da
Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Teatro.
Banca examinadora
Orientadora:
Profa. Dra. Tereza Mara Franzoni
UDESC
Membros:
Profa. Dra. Inês Alcaraz Marocco
UFRGS
Prof. Dr. Stephan Arnulf Baumgärtel
UDESC
Florianópolis, 10 de agosto de 2016.
Este trabalho é dedicado à memória de minha mãe
Guiomar Silva Medeiros, a Mazinha que se fez Guigui, e
também a Roseli Maria da Silva Pereira, que me
apresentou o tema desta pesquisa e grande parceira neste
percurso.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente aos deuses que me permitiram alcançar esta meta; entre eles
agradeço e rendo homenagem especialmente a Dióniso, padroeiro do Teatro. Agradeço em
seguida às mulheres e homens do grupo Alegria de Viver, tema desta pesquisa e sem as quais
nada poderia ter acontecido; à minha querida orientadora Tereza Mara Franzoni, mestra que
acompanhou minha jornada, aportou seus preciosos conhecimentos e que, com paciência e
sabedoria, soube iluminar-me o caminho nos momentos de escuridão, me incentivar e
acreditar no meu trabalho. Agradeço ainda às professoras Fátima Costa de Lima e Maria
Brígida de Miranda pelo incentivo e críticas preciosas; a Andreza Campos da Luz e Lúcia
Marengo por acreditarem e incentivarem a formação e qualificação dos funcionários da
UDESC. Agradeço também aos familiares e amigos que de uma maneira ou de outra
contribuíram para este trabalho, especialmente minha irmã Marília e meu irmão Alex pela
torcida infatigável; meu pai Wilson Alano pela generosidade; minha cunhada Suravi e minha
querida amiga Gabriela Monteiro pelo carinho e apoio; meus amados amigos do Brasil: Mário
Marangoni, Wesley Cunha, Sílvio Ferreira e Diogo Alvino; de Cuba: Javier Etchevaría; da
França: Nicolas Guillon, João Faria, Daniel Gallego et Patrick Montfort, Geneviève Rouy et
Christophe Mercadier; de Berlim: Michelle Bonatti; e de Montreal: Charles Saint-Onge et
Stéphane Roy, Saïd Rayan et Pierre, Carol Couto e a “gang du péqui”.
“As grandes empresas de comunicação parecem querer
assumir o lugar de depositárias das “belas letras” e do “bom
português”, que a literatura moderna e contemporânea foi
abandonando aos poucos, graças às novas tendências
estéticas de experimentação com a linguagem, de
valorização e estilização das variedades lingüísticas
desprestigiadas, de veiculação de crenças e ideologias
antielitistas, de concessão de voz literária à camadas
marginalizadas da sociedade, de hibridização intensa
dos gêneros literários tradicionais”.
Marcos Bagno
RESUMO
Esta dissertação investiga as relações entre Teatro e manifestações artísticas populares de
transmissão oral na Ilha de Santa Catarina no município de Florianópolis, capital do Estado de
Santa Catarina, no Brasil Meridional. Toma como estudo de caso o romance ibérico Juliana e
Dom Jorge, praticado em forma de encenação teatral com o nome de Dom Jorge pelo grupo
Alegria de Viver, da localidade da Armação do Pântano do Sul. Motivada pelo desejo de
registrar o fenômeno e analisá-lo em sua complexidade, a pesquisa assimila o conceito de
origem concebido por Walter Benjamin, e assim investiga o objeto através de suas mais
diversas facetas. Dessa maneira, a investigação bibliográfica adota uma abordagem
interdisciplinar, em que o Teatro dialoga com a Antropologia social, a História, a Psicologia, a
Literatura, a Linguística e a Filosofia para analisar o objeto, concebido como “obra de arte
menor”, e reflete acerca das implicações de suas relações em nível pessoal, social e
artístico/teatral. Por outro lado, a História Oral também contribui como metodologia na coleta
e análise dos dados. Tomando como pano de fundo o embate entre a oralidade e a cultura
escrita, esta pesquisa analisa aspectos relativos à dramaturgia e aos significados e escolhas das
crianças e das mulheres 50 anos depois, quando transformam a brincadeira em obra de teatro.
As mulheres que praticavam a brincadeira na infância são marcadas por transformação
relevante no estilo de vida da comunidade, que passa, em 50 anos, de comunidade
pesqueira/rural a balneário turístico urbano, inserido na modernidade. A pesquisa encontra
nesse momento de transição um acontecimento privilegiado para discutir a relação entre a
experiência coletiva transmitida pelas gerações e o movimento de institucionalização de
memórias e tradições, tanto no que se convencionou chamar de culturas populares como de
folclore. A brincadeira revela uma temática interessante no âmbito das relações de gênero, na
qual o pudor exerce uma função importante. A pesquisa constata também que entre as antigas
moradoras, praticantes da brincadeira em pauta, as relações entre homens e mulheres ainda
são fortemente marcadas pela herança rural. Finalmente, a pesquisa indica que a
espetacularização do fenômeno ibero-americano em estudo possui potencial artístico,
podendo ser visto como patrimônio imaterial e recurso temático capaz de inspirar diversas
formas artísticas, sobretudo as artes cênicas.
PALAVRAS-CHAVE: Teatro. Tradição Oral. Juliana e Dom Jorge. Armação do Pântano do
Sul.
ABSTRACT
This dissertation investigates some relations between Theatre and orally transmitted popular
artistic manifestations in the Island of Santa Catarina, in the city of Florianópolis, capital of
the State of Santa Catarina, in the Southern Brazil. It aims on the case of the Iberian romance
Juliana and Dom Jorge performed by the Alegria de Viver group, from the village of Armação
do Pântano do Sul. Moved by the will of registering the phenomenon and analyzing its
complexity, this research assimilates the concept of origin as idealized by Walter Benjamin.
Thus, the bibliographic research adopts an interdisciplinary approach in the theater dialogue
with social anthropology, history, psychology, literature, linguistics and philosophy to
examine the object, conceived as "minor work of art", and reflects on the implications of their
relations in personal, social and artistic / theatrical level. On the other hand, the oral history
also contributes as a methodology in collecting and analyzing data. Taking the background of
the clash between orality and written culture, this research analyzes aspects of the dramaturgy
and the meanings and choices of children and women when they turn children play into work
of theater, 50 years later. Women who practiced the play in childhood are marked by relevant
changing in the community lifestyle, passing, from a fishing/rural community to an urban
tourist resort, inserted in modernity. This study finds that time of transition a privileged event
to discuss the relationship between collective experience passed down through the generations
and the institutionalization movement of memories and traditions, both in the so-called
popular culture as in folklore. The play reveals an interesting theme in the context of gender
relations in which “shame” plays an important role. The survey also finds that among the
ancient residents, the practitioners of Dom Jorge, relationships between men and women are
still strongly marked by the rural heritage. Finally, research indicates that the spectacle of the
Ibero-American phenomenon under study has artistic potential; it can be seen as intangible
heritage and thematic resource capable of inspiring various art forms, especially the
performing arts.
Keywords: Theatre. Oral tradition. Juliana e Dom Jorge. Armação do Pântano do Sul.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Gráfico de distribuição da população catarinense, segundo as Zonas ou
Microrregiões do Litoral e do Interior, no período de 1950 a 1991 ................... 36
Figura 2 - Algumas integrantes do grupo Alegria de Viver, em 2007 ................................. 39
Figura 3 - Apresentação do Dom Jorge pelo grupo Alegria de Viver, na Festa do Folclore
Do Pântano do Sul, em 2005 .............................................................................. 44
Figura 4 - Dom Jorge. Teatro da UBRO, em 28/11/2007 .................................................... 51
Figura 5 - O Pântano do Sul nos anos 1940. Panorama do Costão, à direita ao fundo ....... 94
Figura 6 - Capa do DVD Dom Jorge, registro da apresentação no teatro da UBRO em
2007 .................................................................................................................... 114
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 19
1 “LÁ AÍ VEM O SEU DOM JORGE”: trajetória de um romance português até o
Pântano do Sul ......................................................................................................... 25
1.1 ROMANCE EUROPEU.......................................................................................... 26
1.1.1 Romance português no Brasil .............................................................................. 30
1.1.2 O romance Juliana e Dom Jorge, um tema persistente ...................................... 31
1.2 O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO .................................................................... 34
1.2.1 O Distrito do Pântano do Sul................................................................................ 36
1.2.1.1 A comunidade do Pântano do Sul ........................................................................... 37
1.2.1.2 A Armação do Pântano do Sul ................................................................................ 37
1.2.1.2.1 O grupo Alegria de Viver ........................................................................................ 39
1.3 O DOM JORGE DA ARMAÇÃO DO PÂNTANO DO SUL: DAS AREIAS DA
PRAIA AO PALCO DO TEATRO .......................................................................... 42
1.3.1 Brincar de dom-jorge (até cerca de 1960) ............................................................ 42
1.3.2 Dom Jorge: a reinvenção da brincadeira .................................................................44
1.3.3 A necessidade do teatro (2006-2007).....................................................................45
1.4 ALGUNS ASPECTOS SOCIAIS DOS INTEGRANTES DO GRUPO ALEGRIA
DE VIVER ................................................................................................................ 48
2 DRAMATURGIAS DE DOM JORGE ................................................................. 53
2.1 DIFICULDADES DA TRANSCRIÇÃO: ORALIDADE VERSUS ESCRITA ...... 54
2.2 O PROJETO DE ENCENAÇÃO: UMA DRAMATURGIA SOB DUAS
INFLUÊNCIAS ....................................................................................................... 60
2.2.1 Dramaturgia do texto ............................................................................................ 60
2.2.2 Um D. Jorge pode encobrir uma Juliana ou o senhor guerreiro feudal versus a
filha de Júpiter ....................................................................................................... 63
2.2.2.1 Entre a farsa e o melodrama .................................................................................... 64
2.2.2.2 Decupagem ou divisão em partes ............................................................................ 66
2.2.2.3 Segmentos temáticos: a divisão de Bráulio do Nascimento .................................... 67
2.2.2.4 A divisão escolhida (2007) ...................................................................................... 68
2.2.3 Temática e enredo: foi o único prazer que eu tive e com outra não gozou.............71
2.2.4 Personagens e seus conflitos...................................................................................73
2.2.4.1 Algumas considerações sobre os significados das personagens................................78
2.2.5 Elenco ..................................................................................................................... 79
2.2.6 Elementos cênicos .................................................................................................. 80
2.2.6.1 Cenários & figurinos ............................................................................................... 80
2.2.6.2 Música e iluminação: clima ..................................................................................... 81
2.3 DRAMATURGIA CÊNICA: A ENCENAÇÃO ...................................................... 82
2.3.1 O público ................................................................................................................. 86
2.3.1.1 Pré-estreia farsesca .................................................................................................. 86
2.3.1.2 Estreia melodramática .............................................................................................. 87
2.4 AUTORIA E INTERESSE DA OBRA.................................................................... 88
3 ORIGEM EM DOM JORGE ................................................................................. 91
3.1 BRINCANTES DE DOM-JORGE (1950/60) ......................................................... 92
3.1.1 A brincadeira dom-jorge no Pântano do Sul: o jogo das meninas ....................... 94
3.1.2 Performances .......................................................................................................... 97
3.1.2.1 Performance ............................................................................................................. 97
3.1.2.2 Espetacularidade ..................................................................................................... 99
3.1.3 Origem em Dom-Jorge .......................................................................................... 100
3.1.3.1 Ser ou não ser arte ................................................................................................... 101
3.1.4 Significados possíveis de uma brincadeira nem tanto infantil .......................... 103
3.1.4.1 Sexualidade e violência .......................................................................................... 104
3.1.4.2 Simbolismo da brincadeira: obediência versus liberdade individual ..................... 106
3.1.4.2.1 Jogos simbólicos ..................................................................................................... 106
3.1.4.2.2 Jogos de regras ....................................................................................................... 107
3.1.4.2.3 Magnetismo e repetição .......................................................................................... 108
3.1.4.3 A máscara do pudor ................................................................................................ 109
3.2 REINVENÇÕES DO DOM-JORGE ...................................................................... 111
3.2.1 Fazer “um teatro”: D. Jorge re(surge) na festa da capela ..................................... 111
3.2.2 Teatro “folclórico” ................................................................................................ 114
RESTAURAÇÃO .................................................................................................. 117
Considerações sobre um futuro Dom Jorge (e Juliana) .......................................... 119
REFERÊNCIAS .................................................................................................... 123
ANEXO A – Dom Jorge: texto compilado ............................................................. 131
ANEXO B - Dom Jorge: texto da encenação ......................................................... 133
ANEXO C - Projeto de encenação: modelo de análise dramatúrgica do texto ...... 135
19
INTRODUÇÃO
Em princípios do século 21, durante as comemorações da Festa de Sant'ana e São
Joaquim, evento popular católico que ocorre em uma pequena localidade ao sul da Ilha de
Santa Catarina no Brasil meridional, um grupo de moradoras com mais de 50 anos apresentou
ao público presente, na forma de encenação, uma história cantada. O roteiro dessa história se
aproximava sobremaneira de um conhecido romance ibérico intitulado Juliana e Dom Jorge;
no qual, uma moça de nome Juliana planeja e mata D. Jorge, seu amante/namorado, por
envenenamento ao saber que ele ia casar-se com outra mulher. Juliana e Dom Jorge é um
romance sobre o qual pouco se tem notícias no sul do Brasil atual, embora em outros Estados
tenham sido registradas muitas variantes desse texto como manifestação popular. Desse tipo
de expressão artística, são geralmente conhecidas as suas formas cantada e narrada, sabendo-
se de raríssimos relatos de uma encenação na forma teatral. É sobre o estudo dessa forma
encenada e suas implicações que tratamos neste trabalho.
A apresentação teatral e seus desdobramentos posteriores, envolvendo tanto outras
apresentações, como a busca do grupo de mulheres por assessoria profissional na área de
Teatro, levou-me à reflexão sobre esse evento como um acontecimento privilegiado para se
pensar sobre as relações entre Teatro e cultura popular na contemporaneidade. Para tal,
questões relativas a memória, identidade cultural e relações de gênero e de idade, assim como
a processos de espetacularização das manifestações populares serão levados em conta para a
composição do quadro no qual se insere a referida apresentação.
Para responder a essas questões, foi desenvolvida uma abordagem interdisciplinar
nesta pesquisa, a qual contou com o apoio teórico de várias áreas. Servir-se dos métodos de
análise dos estudos cênicos tradicionais, para examinar a forma e os significados dessa
manifestação popular oral, tornou-se pouco satisfatório. Neste sentido, foi notada a escassez
de literatura específica às Artes Cênicas a respeito. As obras da área de estudos de teatro que
dialogam com manifestações da cultura popular por si também têm um viés interdisciplinar,
tais as de Richard Schechner, Eugenio Barba, Luciana Hartmann e Mariana Monteiro. Além
deles, cabe ressaltar os autores ligados à Etnocenologia como Jean Pradier, Armindo Jorge de
Carvalho Bião, Christine Greiner e Inês Marocco.
Inúmeros estudiosos de outras disciplinas têm também se debruçado sobre a análise
das manifestações cênicas populares; é possível encontrar vários autores ligados à
20
Antropologia Social1, como Luís Batalha, Maria Bernardete Ramos Flores, Roque de Barros
Laraia, Eugênio Pascele Lacerda; à Sociologia: Denys Cuche e Jean Duvignaud; à Filosofia,
Walter Benjamin; à Literatura: Alvanita Almeida dos Santos e Maria Nazareth de Lima
Arrais; à Lingüística: Marcos Bagno e Walter Ong; à História: Roger Chartier, Michel de
Certeau e Eric Hobsbawm; à Psicologia, como Jean Piaget; aos Estudos do Folclore, os quais
proporcionaram valiosa contribuição: Câmara Cascudo, Silvio Romero, Mario de Andrade,
Rossini Tavares de Lima, Américo Pellegrini Filho, Lucas A. Boiteux e, sobretudo, Bráulio do
Nascimento. Em diferentes graus, buscou-se o diálogo com esses autores, propondo sempre
uma aproximação com o teatro.
Antes de descrever os capítulos, devo me apresentar pelo fato de estar incluído como
participante da pesquisa, não apenas como pesquisador acadêmico, mas como morador da
comunidade praieira do Pântano do Sul em Florianópolis, capital de Santa Catarina, onde sou
conhecido como Tony Alano, sendo esse também meu nome artístico. Desde 1981, quando
me tornei morador do vilarejo, tenho atuado na política comunitária, promovendo o setor
cultural, participando de associações de moradores2, por meio das quais realizei eventos em
festas populares, alguns com bastante repercussão, inclusive internacionais. Um trabalho de
envergadura na comunidade foi o da montagem de meu trabalho de conclusão do curso de
Licenciatura em Artes Cênicas da UDESC, em 2003: Sonho de uma noite de verão: a festa do
teatro, baseado em William Shakespeare num parque ecológico da região, com a participação,
além do público, de aproximadamente 200 pessoas entre estudantes da UDESC, moradores da
comunidade de Armação do Pântano do Sul e de alunos da Escola Básica Municipal Dilma
Lucia dos Santos, que trabalharam na produção. Depois de graduado, fui contratado
temporariamente como professor de Teatro naquela escola municipal (2005-2006). Minha
experiência como teatro-educador abrangeu vários grupos comunitários, tendo o patrocínio da
Fundação de Cultura de Florianópolis. Entre esses grupos, trabalhei como diretor teatral e
ensaiador do grupo folclórico de boi de mamão da Escola, bem como professor de teatro-
1 No caso da Antropologia, Tereza Mara Franzoni elabora extensa revisão teórica em seu artigo Artes
cênicas e antropologia: um diálogo a partir das manifestações populares de caracter dramático. No entanto,
a autora catarinense reconhece que o diálogo entre essa disciplina e as artes cênicas “é ainda, bastante
incipiente e merece ser enriquecido tanto por trabalhos que ofereçam dados empíricos significativos, como
por reflexões teóricas conceituais” (FRANZONI, 2011, p. 2).
2 Fui sócio-fundador da AMASUL, Associação de Moradores e Amigos do Pântano do Sul, em meados dos
anos 1990, pela qual organizei, junto com Arantinho, líder político e Murilo Mariano, o Intendente do
Distrito na época, os primeiros Carnaval do Mar, que permanece até hoje com a mesma denominação, apesar
de agora ser organizada pela AMPSUL, da qual me afastei. Quando ainda membro da AMPSUL, Associação
dos Moradores do Pântano do Sul, criei para ela o Réveillon do Mar, em 1999, no qual foi batido o Guinness
Record de maior toalha de mesa do mundo. Estendida sobre uma mesa de 500 metros, qualquer pessoa podia
adentrar o ano 2000 compartilhando sua refeição ao redor dela.
21
educação do grupo de danças folclóricas Alegria de Viver, durante 4 anos. Hoje continuo
colaborando como voluntário nos dois grupos.
Optei por iniciar o primeiro capítulo3, apresentando o conceito de romance adotado no
trabalho, a trajetória do romance ibérico na Europa e sua transposição para o Brasil. Discuto
então o romance em pauta, as suas peculiaridades e a forma como algumas de suas versões
foram encontradas no Brasil ao longo dos anos, procurando evidenciar semelhanças e
particularidades em relação àquele encenado pelo grupo de mulheres em 20044, chamado
simplesmente de Dom Jorge. Nessa parte, relatarei também, com mais detalhes, alguns dos
desdobramentos decorrentes da primeira apresentação. Em seguida, tratarei especificamente
do grupo de mulheres, da localidade em que estão inseridas e de aspectos históricos e
culturais a elas relacionados, tendo em vista contribuir à compreensão de algumas de suas
escolhas. Apresentarei, ainda, minhas reflexões sobre as potencialidades do Teatro como
acontecimento e jogo no referido contexto e algumas hipóteses sobre as relações entre Teatro
e cultura popular.
Ao mesmo tempo em que lanço as questões mais significativas, neste primeiro
capítulo dialogo com os principais autores que nortearão a abordagem teórica e metodológica
do objeto. Nesse sentido, Alvanita Almeida Santos (2005) contribuiu com a atualização da
discussão sobre os estudos do romance, tanto na Península Ibérica quanto no Brasil. Aponto
para a importância do trabalho dos chamados “folcloristas” nesse contexto. Entre eles, detive-
me em alguns expoentes no Brasil, que trataram do romance em pauta como Luís da Câmara
Cascudo (1971, 1978), Lucas Boiteux (1957), mas sobretudo Rossini Tavares de Lima (1971)
e Bráulio do Nascimento (1964), os quais escreveram extensa e especificamente sobre o
romance Juliana e Dom Jorge. Em contraponto à visão “folclorista”, aproprio-me do conceito
de “culturas populares” conforme discutido por Denys Cuche (2002), Roger Chartier (1990),
Clifford Geertz (1997) e E. P. Thompson (1998).
De Walter Benjamin (1987), utilizo-me de seu conceito de experiência coletiva
(Erfahrung), para analisar a brincadeira do passado em relação ao presente; de
Eugenio P. Lacerda (2003), Sonia Maluff (1993) e Maria Bernardete Flores, a
discussão sobre a “açorianidade” na ilha de Santa Catarina, para falar do modo
tradicional de vida dos habitantes do litoral catarinense. Finalmente, recorro a Tereza
3 No primeiro capítulo utilizarei citações da primeira versão desta dissertação, em parte aproveitada no
artigo que escrevi em conjunto com Tereza Mara Franzoni publicado na revista Portuguese Studies Review
(ALANO; FRANZONI, 2014). Nas partes em que eu mesmo escrevi, não recorrerei à auto-citação, porém na
parte onde o tema é a antropologia-social, de lavra predominante da co-autora, citarei o artigo.
4 2004 é uma data aproximada, pois poderia ser um ou dois anos antes. Não foi possível detectar a data exata
ainda, pois não foram encontrados registros dessa apresentação.
22
Mara Franzoni (2012, 2013), a fim de discutir sobre os aspectos sociais, econômicos e
culturais dos habitantes da comunidade onde foi encontrado o objeto deste estudo. Em relação
à abordagem do objeto estudado, foi preciso recorrer à extensa bibliografia, além de fontes
etnográficas, através de entrevistas e questionários com moradores das comunidades
envolvidas e dados oficiais do município.
No segundo capítulo, analisarei a dramaturgia do romance em estudo, assim como o
processo de encenação. Minha perspectiva é imbuída de dois olhares: o do professor de teatro
e diretor do grupo Alegria de Viver, que foi contratado para incrementar suas atividades e o do
pesquisador de teatro uma década depois. Nessa análise, considerarei alguns aspectos
analíticos: a transcrição do texto, a sua dramaturgia e como se relaciona com outras formas
espetaculares, seus elementos cênicos, seu elenco e as escolhas feitas, assim como sua relação
com o público-alvo. Considerarei, ainda, minhas escolhas como diretor e professor e refletirei
sobre a autoria do texto e o interesse atual da obra.
A primeira evidência ao me deparar com a transcrição do texto cantado para o escrito,
foi a da sua posição em relação às tensões entre as culturas oral e letrada. Nesse sentido, a
obra de Walter Ong (1998) foi de importância capital para entender a psicodinâmica dos
sujeitos influenciados por essas duas culturas na produção de expressões artísticas. Quanto
aos significados que se encerram na dramaturgia de Juliana e Dom Jorge, a tese de Santos
(2005) sobre os romances ibéricos na Bahia esclareceu e inspirou muitos aspectos, assim
como outros acadêmicos: Luciana Hartmann (2011), Mariana Monteiro (2011) e Aline Carrijo
de Oliveira (2012).
Para investigar a dramaturgia, auxiliei-me da concepção de dramaturgia de Eugenio
Barba (1995), a qual inclui em um mesmo olhar tanto o texto escrito quanto a encenação.
Utilizei metodologia influenciada por K. Stanislávski, desenvolvida em minha prática de
diretor de teatro desde os anos 1990, revista pela leitura do trabalho de Nair Dagostini (2007).
Coloquei minha prática em diálogo também com as metodologias e conceitos de Jean-Pierre
Ryngaert (1996) e de Bráulio do Nascimento (1964) para analisar a dramaturgia textual. Por
último, recorri a Jean-Marie Thomasseau (2005, 2013), a fim de esclarecer a importância de
um gênero popular pouco valorizado, mas que desvela muito sobre a representação do Dom
Jorge: o melodrama.
No terceiro e último capítulo, examinarei o fenômeno em pauta, atentando ao
momento crucial em que dom-jorge , uma brincadeira das meninas Pântano do Sul toma a
forma teatral criada com o recurso da memória afetiva e corporal das mesmas pessoas que a
praticavam, meio século antes: o espetáculo Dom Jorge. Analisarei o tipo de brincadeira,
23
como era praticada, que significados tinha para as crianças, o problema de suas origens, como
foi feita a recriação em forma de espetáculo, quais as escolhas dos criadores e para quem ele
foi apresentado.
Para a análise proposta, farei uso dos conceitos de performance de Richard Schechner
(c2007) e de espetacularidade, cunhado pela Etnocenologia, abordando o trabalho das
crianças e das idosas na criação das diferentes formas da manifestação. Procurarei conceituar
o objeto da pesquisa como obra de arte, tendo, para tanto, encontrado amparo em Luís Batalha
(2005), Jean Duvignaud (1966, 1970), Maria Nazareth de Lima Arrais (2011). Tentarei
comparar essa obra artística com a obra de arte “menor”ou “fraca” a que se refere Walter
Benjamin (2011), objetivando investigar a origem do fenômeno Dom Jorge, no sentido por
Benjamin cunhado em sua obra Origem do drama trágico alemã, na qual se propõe a uma
avaliação que leve em consideração todo o contexto e o processo da obra e não apenas sua
genealogia.
Para avaliar os significados da cultura infantil e da brincadeira dom-jorge, recorrerei a
Michel de Certeau (1995), Jean Piaget (c1990), Hans-Thies Lehmann (2007) e Walter
Benjamin (2002).
Refletirei, também, sobre a validade das manifestações do romance em pauta enquanto
teatro, apontando às possibilidades futuras. É nesse momento que indicarei a comparação com
outras formas artísticas utilizadas em manifestações orais populares como tema, valendo-me
de pesquisa na internet e da experiência adquirida em 2013, no Canadá. Naquele país, mais
especificamente na província do Quebec, investiguei o Cirque du Soleil, refletindo sobre o
processo de espetacularização das tradições populares operado por esse circo e suas
consequências em nível local e global.
Além dessas fontes bibliográficas, contei nesta pesquisa com valiosos depoimentos de
testemunhas, moradores e/ou praticantes da manifestação popular em estudo, gravados em
vídeos e em áudios. Depoimentos recolhidos segundo os preceitos da História Oral
(FERREIRA, 2006; ALBERTI, 2005) e, em sua maior parte, disponíveis na rede mundial de
computadores. Minha própria experiência, como morador da comunidade do Pântano do Sul e
como professor de teatro do grupo, proporciona muita informação, exigindo muito cuidado
para não permitir que minhas intenções e vontades como diretor do grupo se sobrepusessem
aos indícios que a pesquisa aponta e que me permitem, enquanto pesquisador, visualizar
aspectos novos e não previstos.
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25
1 “LÁ’Í VEM O SEU DOM JORGE”: trajetórias de um romance português até a Ilha de
Santa Catarina
O homem é o resultado do meio cultural em que foi
socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo
acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência
adquiridos pelas numerosas gerações que o antecederam. A
manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural
permite as inovações e invenções. Estas não são, pois, o
produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do
esforço de toda uma comunidade.
(Roque de Barros Laraia)
Esta pesquisa investiga algumas relações que o Teatro, que se constitui pela tradição
da cultura escrita, pode estabelecer com as tradições de construção e transmissão orais. O
recorte temporal da pesquisa, de cerca de 50 anos, é um momento privilegiado, em que a
modernidade, com seu ritmo e sua avalanche de informações, encontra o mundo rural ou
semirrural do litoral do Brasil meridional. O caso estudado como paradigma é a manifestação
artística popular chamada Dom Jorge, praticada na região do Distrito do Pântano do Sul, no
sul da Ilha de Santa Catarina em Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina. Trata-se
de uma representação teatral cantada em versos, variante de um antigo romance ibérico mais
conhecido como Juliana e Dom Jorge5, embora possa ter outros nomes em outras regiões do
Brasil e da Península Ibérica. A peça conta a história de vingança fatal de uma moça, traída
pelo amante; quando este vem convidá-la para seu casamento com outra, envenena-o com um
cálice de vinho.
No entanto, essa manifestação do Pântano do Sul apresenta características que nos
levam a ter dúvidas quanto à sua classificação em um conceito tão restrito quanto o de
romance, principalmente por ter-se mantido até nossos dias em uma forma de encenação
teatral em que predomina a estrutura clássica ou aristotélica6. Essa forma recebeu raros
registros nas pesquisas sobre os romances no Brasil, efetuadas por estudiosos da cultura
popular, como atesta Alvanita Almeida Santos (2005). O que se nota nesses pesquisadores e
seus registros é a preocupação em transcrever as letras e notar as músicas, pouco se detendo
em registrar as formas espetaculares dos romances.
Este capítulo, num primeiro momento, expõe o conceito de romance adotado como
objeto de estudo, traça a trajetória do romance ibérico na Europa e sua transposição para o
5 Utilizo Juliana e Dom Jorge quando me refiro genericamente ao romance português. Quando uso somente
Dom Jorge, refiro-me à variante praticada no Pântano do Sul e em sua Armação pelas idosas. Quando for a
brincadeira de infância, utilizarei dom-jorge.
6 Estrutura aristotélica, estrutura clássica ou enredo linear progressivo, constituído de exposição, nó, conflito
e conclusão serão abordados no segundo capítulo, de acordo com as leituras de Walter Ong (1998), Patrice
Pavis (1999) e Aristóteles (séc. IV a.C) (ARISTÓTELES, 2004).
26
Brasil, procurando atualizar a discussão que tem suscitado os estudos sobre o romance desde
o século XIX até o XXI. Na segunda parte, o capítulo contextualiza histórica e socialmente o
lugar onde acontece a manifestação artística popular Dom Jorge, objeto deste estudo;
apresenta o grupo de idosos de Florianópolis que o pratica atualmente; analisa a trajetória de
Dom Jorge desde o ano de 2005, quando foi apresentado pela primeira vez pelo mesmo grupo
de idosos. São discutidas também algumas questões teóricas referentes aos conceitos de
experiência, cultura popular e folclore, indicando a linha pela qual a pesquisa optou. Em
seguida, o capítulo trata especificamente do grupo de mulheres, da localidade na qual estas se
inserem, e de aspectos históricos e culturais a elas relacionados, tendo em vista contribuir para
compreensão de algumas de suas escolhas. Por fim, apresentarei minhas reflexões sobre as
potencialidades do teatro como acontecimento e jogo no referido contexto, e também algumas
hipóteses sobre as relações entre teatro, memória e culturas populares.
1.1 ROMANCE EUROPEU
Por sua etimologia, “romance” provém de romança, ou seja, “poema em língua
românica, em oposição ao poema em latim, e que narrava feitos heróicos ou aventuras
galantes” (CUNHA, MELLO SOBRINHO, 1986, p. 689). Referia-se, no seu contexto de
origem, às línguas derivadas do latim vulgar, faladas pelo povo, e que deram origem às
línguas chamadas românicas ou neolatinas. Romance, naquela época, opunha-se ao latim,
língua reservada às classes superiores. Com o tempo, o termo adquiriu outros significados, no
entanto, essa oposição erudito-vulgar parece permear o conceito através dos séculos, e isso
inquieta este pesquisador, que toma essa dicotomia como discussão transversal neste trabalho.
Além da acepção mais comum hoje em dia, que geralmente se refere ao romance moderno, ou
seja, obra de narrativa, de literatura escrita, no sentido aqui estudado romance refere-se a
“uma narrativa cantada, declamada, construída em versos” (SANTOS, 2005, p. 57), uma
forma de expressão oral popular cujos estudos acadêmicos têm evoluído nos últimos anos.
O estudioso dos romances tradicionais brasileiros Rossini Tavares de Lima (1971)
define romance como uma forma de poesia cantada, supostamente originária das canções
medievais chamadas “de gesta”. Essa tese é contestada por Santos (2005), a qual acredita que
os romances podem derivar das canções de gesta quando se inspiram em temas heroicos,
porém, aqueles com temática de amor, traição e vingança teriam outras vertentes, ligadas ao
mundo das mulheres. As canções de gesta eram expressões orais que narravam longos
episódios heroicos ou fantásticos e que se popularizaram com o tempo, fragmentando-se em
27
“romances ou narrações breves, desligadas entre si” (MENÉNDAZ PIDAL apud LIMA,
1971, p. 1). Conforme Lima, o romance teria surgido em sua forma oral no século XI na
Europa e se expandido: na Inglaterra vai responder pelo nome de balada, na Alemanha por
lied e também balada, e na França pela expressão genérica chanson populaire. A expansão
dessa forma artística popular ocorreu por todo o continente europeu, onde recebeu ainda
outras variações e denominações: “Remotamente, [o romance] relaciona-se à [forma artística]
dinamarquesa vise, à russa staring e bilni, à eslava guslar e à grega tragoudi” (LIMA, 1971,
p. 1). Em português, romance é sinônimo de rimance, remance, rimance resado e, às vezes, é
também chamado de xácara (BOITEUX, 1957). No Brasil, como na Península Ibérica, os
estudos sobre o tema do romance são discutidos em diferentes disciplinas acadêmicas.
A tese de doutorado em Literatura da baiana Alvanita Almeida Santos, de 2005,
oferece-nos um panorama das discussões que o estudo dos romances tem suscitado no mundo
ibero-americano. Primeiramente, foram os estudos dos chamados “folcloristas”, estudiosos da
cultura popular, interessados em catalogar as expressões do povo, porém mantendo-as numa
categoria “folclórica”, com toda a carga de preconceitos que essa expressão encerra. Nesse
contexto, a autora baiana realça o trabalho pioneiro do espanhol Ramón Menéndez Pidal, que,
ao restaurar os romanceiros medievais no século XIX, motiva na Espanha e em Portugal o
interesse por esse tipo de estudo. Assim, estudiosos de disciplinas como a Literatura, a
Linguística, o Folclore e a Música também se interessam pelo romance, e entre eles são
citados por Santos os peninsulares Maria Aliete Galhoz, Luis Filipe Lindley Cintra e Manuel
Viegas Guerreiro.
Santos (2005) relata que os romances são transcritos de sua forma oral a partir do
século XVI e difundem-se até meados do século XVII, como forma de literatura impressa: os
romanceiros, ou seja, compilações de romances escritos ou transcritos da forma oral.
Confirmando essa perspectiva, José Antonio Maravall (1975), especialista do período Barroco
(séculos XVI-XVII), afirma que, com o advento da imprensa popular, por meio de edições
acessíveis a uma quantidade maior de pessoas, as histórias populares espalham-se por todo o
ocidente europeu. Surge assim, segundo Maravall, a “cultura masiva" (MARAVALL, 1975,
p. 174), como consequência da popularização do consumo, causado pela ascensão de uma
classe burguesa ávida por produtos baratos; entre esses produtos, cita, como exemplo, o
romance e a jácara - em português, xácara. Esses romances eram vendidos em forma de
folhetins, o que corresponde ao brasileiro cordel7.
7 O romance de cordel ou folhetim como veículo dos romances, conforme Monteiro (2011) e Thomasseau
(2005), será abordado no próximo capítulo.
28
Após essa época, de meados do século XVII até o XIX, não se encontram mais
registros de romances na Europa, segundo as pesquisas de Santos. A autora levanta a hipótese
de que essa falta de documentação talvez seja devida ao desprezo que o racionalismo
iluminista nutria pela cultura popular, considerada irracional (SANTOS, 2005, p. 60). Porém,
o interesse pela literatura oral retorna na Europa com o Movimento Romântico8, em sua busca
pelas raízes nacionais. Em Portugal, relata Santos, a partir de 1843, destacam-se os trabalhos
de Almeida Garret e, em 1869, os de Theophilo Braga, que publica os Cantos populares do
archipélago açoriano. Como veremos adiante, há indícios de que os açorianos podem ter
trazido o romance Juliana e Dom Jorge para o sul do Brasil. Continuando o relato de Santos,
a partir de 1880 inicia-se, com os trabalhos de José Leite de Vasconcellos, uma abordagem
mais rigorosa, que tenta respeitar as características populares do texto, porém considerando
também o meio que o produziu, no que a investigadora literária Maria Aliete Galhoz chama
de etnoliteratura (SANTOS, 2005). Recentemente, os estudos evoluíram para uma
perspectiva mais abrangente do romance, levando em conta sua produção no meio do povo,
sua poética própria e a perspectiva da oralidade.
A trajetória dos romances, conforme foi apresentada por Santos, surge na Idade Média
na sua forma oral; depois, na Era Moderna9, passa da forma oral para a escrita, em forma de
folhetins acessíveis a uma classe emergente, e volta à sua oralidade a partir dessas novas
formas escritas. Essa trajetória é pontuada pela dicotomia que encerra a sua prática social: ora
no nível da cultura popular, em que se manifesta sobretudo oralmente e é associada ao
irracional, ao subalterno, ao insignificante e ao “pitoresco”, ora no nível “erudito”, que remete
à forma escrita, às classes “altas”, à cultura dominante. Esse processo, no entanto, não impede
as duas culturas de sofrerem influências recíprocas.
O minucioso trabalho etnográfico dos estudiosos da cultura popular, muitas vezes
chamados “folcloristas”, ajudou sobremaneira nesta pesquisa, pelo material precioso que
esses estudiosos legaram em prol da preservação dos textos e das notações musicais desses
romances. Entretanto, querer estabelecê-los como base investigativa levar-nos-ia a entender a
História como um continuum linear de causas e de efeitos, ou seja, como evolução de culturas
hegemônicas, o que Edward P. Thompson (1998) chama de cultura “patrícia”, em oposição a
outras pouco “civilizadas”. Segundo esse historiador inglês, a partir do século XVIII, a cultura
8 Movimento Romântico ou Romantismo, um movimento artístico, político e filosófico surgido em fins
do século XVIII, predominando até 1850, caracterizado pela reação ao racionalismo iluminista, pelo forte
sentimento nacionalista e pelo interesse pela Idade Média (FERREIRA, 1984; SCHMIDT, 2007).
9 Era Moderna é entendida por Santos como surgida a partir dos Grandes Descobrimentos do século XV
e da expansão mercantilista subsequente, indo até meados do século XIX (SANTOS, 2005).
29
patrícia, em seu afã enciclopedista, passa a olhar os produtos culturais da “plebe” como a
“Pequena Tradição”, a ser, portanto, estudada em seu cotidiano, “registrando seus hábitos e
ritos”. Surgem assim o folclore e o estudo dos costumes, que aparecem como “antiguidades,
resíduos do passado”.10
Este é o motivo que leva esta pesquisa a não tomar esse caminho, pois isso a
confinaria naquilo que Thompson bem descreve:
Durante século e meio, o método preferido dos colecionadores foi reunir esses
resíduos como 'costumes de almanaque' que encontravam seu último refúgio na
província mais remota. Como declarou um folclorista [John Brand] no fim do século
XVIII, seu objetivo era descrever ‘os antigos costumes que ainda subsistem nos
recantos obscuros do nosso país, ou que sobreviveram à marcha do progresso na
nossa agitada existência urbana' (THOMPSON, 1998, p. 14).
A investigação toma então outra senda e opta por “culturas populares”, expressão
usada por Denys Cuche (2002). Esse cientista social afirma que “cultura” e “popular” são dois
termos difíceis de conceituar pela polissemia de seus constituintes. Com efeito, cada um dos
dois oferece uma miríade de interpretações, que incluem forçosamente a noção de cultura
dominante e dominada, podendo essa última ser vista destarte como cultura de resistência.
Cuche recorre aos conceitos de Michel de Certeau, para quem cultura popular é a cultura das
pessoas “comuns”, fabricada no cotidiano e renovada a cada dia; sendo assim, a cultura
popular é criativa, “multiforme e disseminada”, e não a encontramos necessariamente onde a
procuramos (CUCHE, 2002). Essas culturas “comuns” não são estanques; relacionam-se com
outras, inclusive com as culturas hegemônicas.
A abordagem de Thompson reforça esse relacionamento. Ele concebe a cultura
popular como intercâmbio: "um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma troca
entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole” (THOMPSON,
1998, p. 17). Assim, a cultura popular não se autodefine, nem é imune a influências
exteriores. Para Thompson, interessa mais extrair a cultura popular de seu ambiente
impregnado de "significados, atitudes e valores", e contextualizá-la em sua materialidade de
relações sociais de domínio e exploração, muitas vezes mascaradas de paternalismo e
deferência ao "popular". Nesta pesquisa, o romance é entendido como uma das
manifestações das culturas populares, em constante relacionamento com seu contexto social e
temporal. Nesse sentido, como consequência dessas trocas entre culturas “superiores” e
“inferiores”, das variações de tempo e espaço sofridas e da difusão oral e escrita, alguns
10 Esse tema será retomado no segundo capítulo, quando abordarei Michel de Certeau (1995) e seu artigo A
beleza do morto.
30
romances transformaram-se e transformam-se, uns viraram acalantos, outros brincadeiras de
crianças, e assim várias outras formas, como a moda ou modinha brasileira (ANDRADE,
1989, p. 342). A motivação inicial deste trabalho foi, inclusive, a constatação das variações
que o romance Juliana e Dom Jorge sofreu no Brasil.
1.1.1 Romance português no Brasil
Luís da Câmara Cascudo afirma que “todos os romances populares do Brasil vieram
de Portugal. Foi um gênero que persistiu até princípios do século XX” (CASCUDO, 1978, p.
5). O romance Juliana e Dom Jorge seria uma dessas expressões artísticas aqui aportadas e
difundidas por grande parte do País, possuindo inúmeras variantes. Também é conhecido pelo
nome de Maria e Jorge, Sinhô Jorge e Juliana, D. Hélio e Maria Grácia, Armando e Irma,
Rei Dom Jorge. No Pântano do Sul, encontramos simplesmente a designação Dom Jorge.
Rossini Tavares Lima (1971) afirma haver versões mais antigas no continente europeu
com a mesma temática; citando o folclorista português Pereira da Costa, Lima diz que a
antiguidade desse romance remonta ao século XVII. Haveria ainda variantes da mesma
história em diversos países, como a Escócia (a balada Edward), a Itália (Dona Lombarda),
além de variantes “suecas, alemãs, turanianas, fenícias e transilvanas” (LIMA, 1971, p. 5).
Em Portugal, o autor cita versões em Trás-os-Montes e nos Açores e cita também versões na
Espanha, onde, por vezes, esse romance recebe o nome de El veneno de Moriana. O
folclorista brasileiro, que compilou vinte e quatro notações musicais de variantes de Juliana e
Dom Jorge, informa ainda que, no Brasil, “o referido romance foi recolhido, pela primeira
vez, por Celso de Magalhães, que o publicou, em 1873, no jornal pernambucano 'O Trabalho'”
(LIMA, 1971, p. 5).
Lucas Boiteux (1957), folclorista catarinense, registra uma versão de Juliana e Dom
Jorge no litoral de Santa Catarina, na localidade de Ponta Grossa11. O catarinense,
confirmando Câmara Cascudo, acredita ser esse romance de procedência ibérica e que teria
aportado no Brasil por meio dos “ilhéus”, ou seja, de portugueses originários das ilhas dos
Açores e da Madeira. Nesse sentido, a diversidade de origens que é atribuída ao romance em
questão pode ser um indício de que realmente provenha dessas ilhas. Eugenio Pescele Lacerda
(2003), em sua tese de doutoramento em Antropologia Social, afirma que, entre os séculos
11 Não foi possível encontrar essa localidade, já que encontramos mais de uma “Ponta Grossa” no litoral
catarinense
31
XVI e XVII, as ilhas portuguesas tornaram-se a plataforma de lançamento de muitas das
expedições para o Novo Mundo, a África e o Oriente:
Toda ou quase toda a navegação de origem ultramarina de ambos os impérios
coloniais peninsulares passou pelos Açores, tornando o arquipélago num quase
vespeiro quer de navios de comércio e de guerra às ordens de Portugal e Espanha,
quer de piratas e corsários de origem francesa, inglesa e holandesa (LACERDA,
2003, p. 43).
É possível que, nesse contexto, marinheiros e aventureiros ali mesclaram as suas
bagagens culturais em forma de canções e de danças, e disseminaram-nas pelo mundo,
inclusive o Brasil. Não seria demais pensar que, entre os açorianos que vieram povoar a Ilha
de Santa Catarina no século XVIII, pudéssemos encontrar em sua bagagem folguedos, danças
e romances cantados, dançados e até mesmo encenados teatralmente.
1.1.2 O romance Juliana e Dom Jorge, um tema persistente
Ao constatar a extensão espacial e temporal do fenômeno estudado, esta pesquisa
indaga o porquê da persistência desse romance em condições tão diferentes. Quatro aspectos
ressaltam, na tentativa de explicar as razões: a construção da dramaturgia, a temática, as
personagens e a forma de transmissão. Neste momento iniciaremos a discussão, que será
retomada no segundo capítulo.
Cada versão do romance Juliana e Dom Jorge contém uma variação na letra e na
música sofrida através de sua trajetória no tempo e no espaço; assemelham-se, contudo, por
apresentarem sempre a mesma temática, resumida numa história bem estruturada
dramaturgicamente. Pode-se resumi-la no seguinte esquema: Início com a canção da mãe de
Juliana a perguntar por que a moça chora; ela responde que é porque seu amado D. Jorge12 vai
se casar com outra. Em seguida, o próprio cavaleiro D. Jorge, vem lhe anunciar o casamento.
Juliana pede-lhe que espere, enquanto vai no sobrado buscar um copo de vinho para ele.
Estando o vinho envenenado, o amante o bebe e desfalece até morrer. Os finais da história
nem sempre são os mesmos, porque, se em todos eles D. Jorge é assassinado, em alguns
Juliana também morre, em outros é levada presa pela polícia. A encenação do Dom Jorge na
região do Pântano do Sul recebeu outro final, como veremos adiante.
Além da constância da temática, outra possibilidade que explique a persistência desse
romance seria o fascínio pela personagem Juliana e seu ato extremo, o assassinato por
12 Por clareza, refiro-me ao personagem Dom Jorge como “D. Jorge”, para diferenciar do nome da
manifestação dramática Dom Jorge.
32
envenenamento. Nesse sentido, o envenenar tem caráter agravante e extremamente ameaçador
para os homens, pois a mulher é tradicionalmente a responsável pela comida deles.
Santos (2005), igualmente curiosa a respeito da persistência de alguns romances,
detecta dois tipos de papéis ou perfis básicos de protagonistas de romances cuja temática
aborda o amor, a traição e a vingança. O primeiro papel é o da mulher submissa, obediente e
leal, reconhecida pelo grupo social; o segundo, o da mulher má, traiçoeira, vingativa e
dissimulada, ou seja, uma mulher marginal, com algum tipo de iniciativa ou comportamento
diferenciado do modelo patriarcal vigente, que desafia o poder e o exerce. Como exemplo
desse último perfil, Santos cita os romances Donzela Guerreira (mulher em funções
masculinas), Delgadinha (mulher que toma a iniciativa amorosa) e Juliana e Dom Jorge
(mulher vingativa e fatal).
Vale aqui observar que, no caso do sul da Ilha, em Florianópolis, esse tipo de mulher é
tratado pela mitologia local como “bruxa”, existindo literatura em relação a esse sujeito,
sobretudo depois dos trabalhos de Franklin Cascaes, que relacionou as histórias de bruxas13 da
ilha catarinense com as das ilhas dos Açores (CASCAES, 1968, 1981, 2002; MALUF, 1993).
Finalmente, uma outra hipótese para a persistência do romance Juliana e Dom Jorge,
pelo menos no Brasil, pode ser a força da tradição, da experiência comunitária transmitida
oralmente de geração em geração, dentro da concepção de experiência coletiva (Erfahrung)
de que nos fala Walter Benjamim (1987). A prática infanto-juvenil chamada dom-jorge no
Pântano do Sul insere-se dentro da tradição da brincadeira, do folguedo, do jogo, e, nesse
sentido, Benjamin alerta que o verbo spielen, em alemão, significa tanto brincar e jogar
quanto representar. Brincar, segundo o autor, é “a transformação em hábito de uma
experiência devastadora” (BENJAMIN, 1987, p. 253). O hábito remete à repetição e à
memorização, fator essencial na transmissão da experiência coletiva. No entanto, Benjamin
acreditava que, com o advento da modernidade14, essa experiência compartilhada tende
forçosamente à decomposição, à impossibilidade e ao desaparecimento, em face da nova
organização social que o capitalismo impõe.
O sistema capitalista industrial, fragmentando o universo das crenças e dos costumes,
faz com que a experiência coletiva dê lugar à experiência vivida individualmente (Erlebnis) e
transmitida não mais pelas gerações, por meios orais, mas por meios de comunicação
13 A popularidade dessas histórias de bruxas tornou-se tanta que, após o salto turístico dos anos 1980, suas
imagens se tornaram ícone folclórico vendido em bancas turísticas da “Ilha da Magia”, epíteto da capital
catarinense.
14 Modernidade é um termo com bastante abrangência, cujo início pode recuar a fins do século XV, indo até o
século XIX, como prefere Santos (2005), porém, aqui nos atemos ao período a que Benjamin se refere, ou
seja, a partir do desenvolvimento do capitalismo industrial do século XIX até meados do século XX.
33
modernos, como a imprensa, a fotografia e o filme, e nesse caso Benjamin relaciona a
experiência individual com o romance moderno, escrito, em que se narra a “história de uma
vida”. No caso aqui estudado, a experiência coletiva que era praticada no passado desapareceu
e só volta a ser feita, anos depois, movida por outra motivação: não mais brincar, mas
representar; não mais jogar com os amigos, mas mostrar, para a comunidade e o mundo, a
cultura local “como era antigamente”, conforme diziam as mulheres.
Para além da persistência remarcável da temática, da força das personagens e da forma
de transmissão do romance Juliana e Dom Jorge através do tempo e do espaço, a pesquisa se
indaga também quanto às formas de sua apresentação, já que em todas elas de alguma
maneira estão envolvidos o corpo e a voz. A grande maioria dos estudos e das compilações
existentes debruçou-se sobre os textos poéticos transcritos e sobre a música registrada, como
foi dito no início, mas muito pouco se registrou sobre a maneira como eram apresentadas
essas expressões artísticas populares. Santos (2005), em sua tese, aborda a questão da
performance dos apresentadores de romances, numa tentativa de integrá-la ao corpus do
estudo. A autora recorre às concepções de Paul Zumthor a respeito da performance oral,
entendendo que ela estabelece um diálogo que envolve tanto o público ouvinte quanto o
narrador/cantor que atua. No próximo capítulo, o conceito de “performance” será
aprofundado, pois tornou-se fundamental para a análise do fenômeno.
Mesmo sem aprofundar-se no assunto, Santos deixa pistas sobre a encenação de
algumas dessas performances quando recorre aos trabalhos de Maria del Rosário Suárez
Albán, publicados no final dos anos 1990, para afirmar que certos romances, nas regiões da
Bahia pesquisadas por ela, entre eles Juliana e Dom Jorge, teriam outro tipo de apresentação,
ou seja, de performance. Diferentemente da ideia comum de que eles eram apenas
declamados, cantados ou dançados, e ainda que, nessa tarefa, engajem algum tipo de
performance corporal, as pesquisas na Bahia indicam que “esses romances são encenados nas
pracinhas locais, em palcos armados em dias de festa, inscrevendo-se o romance, então, em
outra categoria – a do drama” (SANTOS, 2005, p. 67).
É justamente nessa categoria que a dissertação retoma a discussão no segundo
capítulo, quando é abordada a dramaturgia do objeto. Porém, antes se faz necessário
apresentar o contexto sócio-histórico no qual se insere a manifestação estudada, oferecendo,
dessa forma, elementos que possam compor a rede de relações que lhe possibilitará tanto a
materialidade histórica quanto os significados e relações que a particularizam como
manifestação artística. Primeiramente, algumas palavras sobre a cidade de Florianópolis, logo
34
sobre o Distrito do Pântano do Sul e as comunidades de Pântano do Sul e Armação do
Pântano do Sul.
1.2 O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO
O município de Florianópolis está situado em sua maior parte sobre a Ilha de Santa
Catarina, ligada ao Continente por três pontes. A cidade é a capital do Estado de Santa
Catarina, Região Sul do Brasil. Sua população é de aproximadamente 421.240 habitantes,
conforme o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (IBGE,
2010). Segundo afirma o antropólogo Eugenio Pascele Lacerda (2003), a região litorânea do
Estado foi colonizada por portugueses no século XVIII, tendo isso marcado a formação
cultural da região. O principal fluxo migratório era constituído por portugueses provenientes
das ilhas dos Açores e da Madeira. Esses ilhéus, na maioria emigrados para o sul do Brasil em
busca de melhores condições de vida, encontraram difíceis condições de subsistência. Na sua
adaptação à nova terra, ao novo clima, os imigrantes acabaram mesclando sua cultura com as
culturas ali encontradas, sobretudo as indígenas e as de origem africana. Lacerda descreve o
que ele chama de “homem açoriano”, caracterizado pelo trabalho de lavrador, pescador e
artesão.
Aqueles que receberam pequenos lotes dedicaram-se à agricultura de subsistência
até a primeira metade do século XIX, tendo na pesca uma atividade subsidiária. […]
Abandonaram o cultivo de cereais como o trigo e o centeio a que se acostumaram
nos Açores, mas aperfeiçoaram o processamento da mandioca nativa, com a
introdução de técnicas de moagem. Com os engenhos, fabricavam farinha, melado,
açúcar mascavo e cachaça. Não abandonaram o linho, mas aprenderam a fiar o
algodão, a fibra nativa disponível. Dedicaram-se basicamente à pequena produção
agrícola, plantando mandioca, milhos, cana de açúcar, feijão, café e algodão
(LACERDA, 2003, p. 132).
A família açoriana é vista por Lacerda tanto como unidade de produção quanto de
consumo. Eram unidades quase autossuficientes, usavam pouco a moeda, utilizando-se
largamente do escambo, hábito que persiste até hoje em algumas localidades mais isoladas da
Ilha. O sistema paternalista regia as relações de trabalho, dividido entre o marido/pai,
responsável pela organização da produção e a mulher/mãe, a quem cabia a organização do
consumo. Com relação à organização social, o autor ressalta que a organização política
caracteriza-se ainda hoje por assentar-se sobre uma “intrincada rede de intermediários que
fornecem empregos, serviços ou favores administrativos em troca de apoio político-eleitoral”
(LACERDA, 2003, p. 135). Lacerda observa também que as redes de trocas estabeleciam-se
durante as atividades coletivas de trabalho, como pesca com rede de arrasto, processamento
35
da farinha de mandioca, mas também nos eventos recreativos ou religiosos como as festas,
procissões e cantorias, bem como nas “sociedades” de ajuda em forma de bingos, rifas e
sorteios. Essas tradições manifestavam-se em ciclos anuais, em forma de rituais realizados
pelos descendentes de açorianos, resultantes da conjugação de três fatores, segundo o
antropólogo: “o calendário oficial da Igreja [católica], o catolicismo popular brasileiro e o
antigo modo de vida agrário-pesqueiro” (LACERDA, 2003, p. 136).
Esse aspecto sócio-cultural, que permaneceu na ilha de Santa Catarina pouco alterado
até meados do século XX, é atribuído ao lento desenvolvimento econômico do litoral
catarinense, desprovido de infraestrutura rodoviária moderna que a conectasse com o resto do
País. Com a inauguração da BR-101, no início dos anos 1970, o litoral catarinense sofre um
grande impulso econômico e populacional, tornando-se o principal destino migratório em
Santa Catarina, conforme interpreta-se do gráfico (Figura 1) (NUNES, 2008). Florianópolis,
nesse sentido, sofre contatos culturais com outras regiões do Brasil e mesmo do exterior, que
transforma o modo de vida das populações dessa região.
Conforme as pesquisas em Antropologia Social de Tereza Mara Franzoni (2012), a
década de 1970 é considerada o principal marco temporal de urbanização da cidade, ainda que
esse processo não tenha atingido da mesma forma todas as regiões da Ilha de Santa Catarina.
Esse período foi marcado por diferentes fluxos migratórios nacionais, os quais contribuíram
para o aumento da densidade populacional, transformando significativamente o perfil da
população residente. De um modo de vida onde predominava a cultura tradicional “açoriana”
(LACERDA, 2003), os habitantes da região passam para um modo de viver em que a
modernidade insere-se no cotidiano, mantendo, porém, aspectos da cultura tradicional que
permanecem até hoje, principalmente no interior insular e nas comunidades pesqueiras, como
no caso do Distrito do Pântano do Sul.
O aumento nos índices relativos à renda média da população e à escolaridade da
população adulta, entre outros, deve-se em grande parte a essa dinâmica migratória
experimentada pela cidade, conforme Franzoni (2012). Da mesma forma, essa dinâmica
marcou de forma significativa as diferenças entre a população urbana e as comunidades
litorâneas pesqueiras, entre as quais o Pântano do Sul. Atualmente, a maior parte da
população da capital, cerca de 80%, ainda se concentra no Distrito-Sede, unidade
administrativa que compreende a área urbana central, estando o restante distribuído nos
demais distritos em que é dividido o município.
36
Figura 1- Gráfico de distribuição da população catarinense, segundo as Zonas ou
Microrregiões do Litoral e do Interior, no período de 1950 a 1991
1.2.1 O Distrito do Pântano do Sul
O Distrito do Pântano do Sul15 localiza-se na porção sul da Ilha de Santa Catarina,
parte insular do Município de Florianópolis. Quando, a partir dos anos 1980, Florianópolis
tornou-se destino turístico nacional e internacional voltado para o verão, sol e mar,
transformou-se em “um dos principais pólos turísticos do Brasil e do Mercosul. A expansão
da cidade e da infra-estrutura de apoio ao turismo preencheu as áreas continentais e dirigiu-se
a todas as áreas balneárias” (IPUF, 2008). A urbanização, em especial através das vias rápidas,
da luz elétrica e das linhas de ônibus, chegou também às comunidades do sul da Ilha
(FRANZONI, 2012). Contudo, os investimentos do setor hoteleiro e turístico foram
direcionados ao Centro e às zonas balneárias do norte da Ilha, deixando no sul um impacto
menor da atividade. Dessa maneira, preservaram-se seus recursos naturais abundantes16 e
15 O Distrito do Pântano do Sul é constituído por onze comunidades: Saquinho, Solidão ou Rio das Pacas,
Costa de Dentro, Balneário dos Açores, Costa de Cima, Lagoa do Peri, Sertão do Peri, Matadeiro, Lagoinha
do Leste, Armação do Pântano do Sul e Pântano do Sul propriamente dito.
16 A Proposta do Plano Diretor Participativo do IPUF 2008 nos informa que o Distrito do Pântano do Sul é
território de dois parques municipais: parques da Lagoa do Peri e da Lagoinha do Leste; uma parte do Parque
Estadual do Tabuleiro; além de reservas de dunas e da planície inundável, que aguardam legalização federal.
37
manteve-se uma estrutura turística e hoteleira “artesanal”17. É nessa parte da ilha, no Distrito
do mesmo nome, que se encontra o Pântano do Sul, em cuja região manifestava-se e
manifesta-se ainda hoje o objeto primeiro deste estudo: Dom Jorge.
1.2.1.1 A comunidade do Pântano do Sul
A comunidade do Pântano do Sul está situada na ponta de uma baía, onde abriga um
ancoradouro bem protegido e de grande calado18. Rodeada de morros verdejantes e pequenas
ilhas desertas, ela é sede administrativa do Distrito do Pântano do Sul. O povoado é
caracterizado como um dos mais tradicionais da capital, seja pela presença da atividade
pesqueira, com barcos, redes e pescadores trabalhando na praia constantemente, seja por seus
famosos restaurantes de comida típica, além e sobretudo, pelas festas e tradições mantidas por
seus habitantes: Festa do Divino, procissão marítima de São Pedro, Carnaval do Mar, Boi de
Mamão, Farra do Boi (agora proibida), Terno de Reis, Ratoeira, Benzeduras e Pão-por-Deus,
manifestações populares resultantes do diálogo e das transformações de diferentes tradições
culturais, com forte acento naquelas desenvolvidas pelos descendentes das comunidades
tradicionais de origem portuguesa/açoriana e africana.
1.2.1.2 A comunidade da Armação do Pântano do Sul
A comunidade de Armação do Pântano do Sul, distante cerca de 25 km do Centro e 3
km da sede do Distrito, como outras “armações” ao longo do litoral catarinense e mesmo do
Brasil, tem seu nome ligado à pesca e processamento de cetáceos no século XVIII, período
que Lacerda chama de “ciclo da baleia (1756-1801)” (LACERDA, 2003, p. 132). Segundo
ele, a pesca era praticada sobretudo pelos imigrantes açorianos, cuja primeira leva chegada na
região é datada de 1748. Com a rarefação da espécie, no século XIX, a pesca entrou em
declínio em todo o litoral. A partir desse período, a Armação19, junto com a comunidade do
Pântano do Sul, dedicou-se à agricultura, à indústria dos produtos da mandioca e ao
artesanato, voltando-se para uma economia de subsistência, como informa Lacerda:
17 Utilizo infraestrutura “artesanal” em oposição à indústria hoteleira de massa, caracterizada por grandes
hotéis,
centros de convenções, etc.
18 Os moradores relatam que nos anos 1980 um transatlântico fundeou na baía e os passageiros desceram em
botes.
19 Quando digo Armação estou referindo-me à Armação do Pântano do Sul. Aliás, esta é a apelação mais
corriqueira do vilarejo.
38
Preocupado em produzir para a manutenção da família, o açoriano não produzia em
larga escala para o mercado, apenas colocava à venda parte de sua produção,
procurando suprir algumas de suas necessidades, como querosene, sal e fumo de
corda (LACERDA, 2003, p. 133).
É na Armação que surgiu o grupo Alegria de Viver, e ali que mora a maioria de seus
participantes. As duas comunidades, Armação e Pântano do Sul, voltaram a diversificar as
suas economias a partir dos anos 1980, com o asfaltamento das estradas SC-406 e SC-405,
que as conectam ao centro da cidade, bem como a implantação da política de incentivos ao
turismo, como referido anteriormente. Nesse aspecto, a Armação teve características distintas
da comunidade vizinha: sofreu um processo de ocupação turística um pouco mais intenso,
primeiramente com a construção de casas de veraneio para famílias do centro da cidade, e,
mais tarde, de casas e residenciais de aluguel para a temporada, com desenvolvimento do
pequeno comércio, mantendo, dessa maneira, uma escala de turismo “artesanal”.
Por sua população e seu peso econômico, as duas comunidades citadas poderiam ser
consideradas o núcleo cultural do Distrito do Pântano do Sul20 : são as mais antigas, povoadas
mais densamente, dotadas cada qual de sua antiga capela católica e assemelhadas por aspectos
derivados da interdependência na técnica da pesca da baleia e no comércio de seu óleo, como
relata Paulo Alves em seu livro sobre um famoso restaurante do Pântano do Sul:
A região do Pântano do Sul teve forte período de expressão econômica no século
XVIII, durante o qual se destacou como a segunda armação mais antiga de toda a
Província. Denominava-se “armação” todo conjunto de estrutura para a caça das
baleias (ALVES, 2002, p. 27).
As outras dez comunidades do Distrito do Pântano do Sul são ainda menos exploradas
massivamente, seja turística ou comercialmente. Nesse sentido, preservam muitas
características rurais, tais como grandes extensões de terra com pastos de gado, hortas, sítios e
chácaras. A exceção mais contrastante é o Balneário dos Açores, loteamento imobiliário de
meados dos anos 1970, onde se desenvolveu a construção de casas e apartamentos modernos,
mormente nas duas últimas décadas (WEHRLE, 2008). Ainda assim, a nova comunidade
surgida mantém aspectos predominantemente residenciais, oferecendo pouquíssimo comércio.
Todos esses fatores, aliados às condições sociais e econômicas tratadas ao final do
capítulo, parecem apontar para algumas das circunstâncias que levaram a região a preservar
muitas de suas tradições e costumes até a atualidade. A chegada tardia da eletricidade e do
asfaltamento da rodovia, em relação ao norte da Ilha, parece ser a principal causa para a
20 O município de Florianópolis é dividido em 12 distritos administrativos, incluindo a Sede (IPUF, 2008).
Pela lei municipal n.º 531, de 04-12-1962, é criado o Distrito de Pântano do Sul e anexado ao município de
Florianópolis. (IBGE, 2013).
39
permanência de uma vida comunitária mantida por laços sociais tradicionais, os quais incluem
a transmissão de práticas artísticas populares, entre elas, Dom Jorge.
1.2.1.1.1 O grupo Alegria de Viver
O grupo em 2006 era composto por, em ordem alfabética: Denair Demésia Pires,
Maria Elisa de Souza Pires, Gerssé Maria Pires, Justina Luiza Silveira, Leonícia de Ávila
Duarte, Lisete, Madalena Flora dos Passos, Maria das Graças Costa, Maria Felicidade Sodré,
Maria Jaqueline C. de Lima, Nair Josefa Vieira, Neuza Maria de Oliveira Monteiro, Olga
Lino Coelho, Osvali Maria Pires, Rosalva Odo, Roseli Maria da Silva Pereira (coordenadora),
Teresa Maria Pereira, Valdelina Domicio Nascimento, Valdice Martinha Duarte.
Figura 2 - Algumas integrantes do grupo Alegria de Viver, em 2007 Fonte: Tony Alano.
40
Franzoni (2012) relata que, em algumas comunidades de Florianópolis, existem grupos
da Terceira Idade que recebem da Prefeitura, por meio do Conselho Municipal do Idoso21,
algum suporte, como distribuição de material de apoio para os eventos de confraternização,
tais como jogos de bingo22 e passeios recreativos. Entre eles, está o Grupo de Danças
Folclóricas Alegria de Viver (Figura 2), surgido em maio de 2005, na Armação, por iniciativa
do Apostolado da Igreja, congregação religiosa ligada à capela católica do povoado. O grupo,
predominantemente de mulheres, já que os poucos homens participantes restringem-se ao
papel de músicos, destaca-se por sua atuação constante nos eventos comunitários, dançando e
cantando em campanhas oficiais de saúde e educação, festivais folclóricos, festas e
comemorações cívicas, religiosas e escolares.
Foram essas mulheres que me apresentaram, enquanto professor de teatro23, o romance
Dom Jorge, que viria a ser o objeto deste estudo, ao final de uma noite de ensaios, quando
cantaram a história, conforme o registro em vídeo feito improvisadamente por mim (ALANO,
2014). Esse grupo de idosos costuma dançar várias manifestações artísticas populares, como a
Ratoeira, a Dança dos Arcos, a Quadrilha, o Balaio, a Farinhada24. Entre essas danças e
folguedos, um dia resolveram recriar uma brincadeira de infância, chamada dom-jorge. Ao
falar sobre essa expressão dramática, todas as entrevistadas falam apenas em “fazer o Dom
Jorge”, sem, no entanto, classificá-la como teatro ou dança ou outra categoria do gênero.
Entre os anos de 2005 a 200925, o grupo Alegria de Viver era composto por cerca de 20
a 30 integrantes, entre dançadores e músicos, uma maioria de mulheres acima dos 50 anos,
embora isso não seja condição de ingresso. Os homens restringem-se ao papel de músicos,
geralmente um acordeonista, um ou mais violonistas e um pandeirista, podendo haver também
o acréscimo de um triângulo ou outros pandeiros. Durante o período em que trabalhei com o
grupo como seu professor de teatro, para melhor conhecer meus alunos, apliquei-lhes um
questionário a fim de avaliar as condições sócio-econômicas das mulheres do grupo. O
21 O Conselho Municipal do Idoso de Florianópolis é um órgão voltado à proteção e defesa dos direitos da
pessoa idosa, segundo o site oficial da Prefeitura. Tem caráter apenas consultivo. (CMI, 2014)
22 Os bingos, espécies de lotos, loterias, em que se distribuem prêmios variados, tornaram-se uma das
atividades mais concorridas pelos grupos de idosos de Florianópolis, segundo relatos de minhas alunas.
23 Em 2006 fui contratado para ser o professor de teatro do grupo Alegria de Viver, pela Prefeitura de
Florianópolis.
24 Ratoeira – Dança ou brincadeira de roda em que são cantados versos e prosas de amor; Jardineira ou
Dança dos Arcos – Dança com arcos de flores, ainda dançada na ilha da Madeira em Portugal; Quadrilha-
tradicional baile do folclore brasileiro, típico do mês de junho, de provável origem francesa; O Balaio -
dança circular que utiliza como adereço o balaio; Farinhada ou Dança da Peneira – dança que retrata um
ato social, em que a comunidade se reunia para realizar a farinha e derivados (SOARES, 2002; UFSC, 2014).
25 Nesse período fui contratado pela Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes (FCFFC) como
professor de teatro do grupo Alegria de Viver e tomei depoimentos, anotações de aula, vídeos e fotos, além
de uma pesquisa sócio-econômica sobre a situação pessoal dos participantes.
41
questionário não foi aplicado aos homens, não por uma falha de metodologia, mas pelo fato
de que o contato com os homens era muito esporádico, reduzindo-se a ensaios gerais e às
apresentações ao público, pois alguns músicos cobram cachê para atuar ou não têm a
persistência dos ensaios. Os resultados da enquete, oriundos de questionário voluntário
aplicado a dezesseis participantes do grupo, ajudam a entender o contexto social.
Com exceção de duas que são da Costa de Dentro, todas as mulheres são moradoras da
Armação. Apenas uma mora sozinha, sete com seus companheiros, quatro com seus filhos, e
quatro com companheiros e filhos. Com idades que variam entre 51 e 76 anos, a média etária
é de 58,3 anos. As profissões variam entre cozinheira (2), artesã (2), comerciante (1), auxiliar
de serviços escolares (1) e lides domésticos. Quanto à renda, quase todas se declaram
dependentes do companheiro ou pensionistas e aposentadas, sendo apenas quatro dependentes
de seu trabalho, embora quase todas tenham habilidades em crochê, costura, rendas, bordados
e pintura, e frequentemente comercializam seus artesanatos para complementar a renda. O
grau de instrução alegado é maciçamente o nível primário, às vezes incompleto, e apenas
quatro cursaram o secundário. Nesse sentido, notei que algumas não conseguiam ler ou
escrever, embora atribuíssem essa dificuldade a alguma deficiência ocular.
Metade das mulheres declara que tem problemas de saúde crônicos, como arritmia,
osteoporose, ponte de safena, pressão alta, labirintite, bursite, artrites e artroses. Porém, nos
ensaios, as mulheres tentam ultrapassar seus problemas e participam dos exercícios que o
professor de teatro propõe. Nas apresentações, parecem esquecer suas mazelas e portam-se
com bastante desenvoltura, sentindo grande prazer em apresentar-se ao público. Isso fica
evidente diante de uma das duas perguntas finais do questionário, qual seja: por que você
entrou no grupo? As respostas expressam objetivos semelhantes: por lazer, por convite de
amiga, para sentir-se mais feliz, divertir-se, fazer amizades, dançar e atuar, levar alegria às
pessoas, participar, apresentar-se e cantar.
A segunda pergunta, a respeito do que esperam do grupo, a grande maioria responde
que espera melhorar e fortalecer as amizades e mais apresentações. Apresentar-se ao público
parece ser uma de suas maiores satisfações, havendo raras ausências nos ensaios gerais e nas
apresentações. Em 2010, participamos como convidados hors-concours do 1.º Festival
Internacional de Grupos Folclóricos de Pomerode em Santa Catarina, distante 162 km da
capital. Durante a viagem e nas festas que participamos como convidados do Festival, os
artistas do grupo Alegria de Viver, tanto os homens como as mulheres, divertiram-se muito,
encantando os outros grupos e o público com sua energia contagiante, não só no palco como
42
também nas comemorações e baile em que participaram. Nenhum dos problemas de saúde
alegados apresentou-se durante a excursão de Florianópolis a Pomerode.
1.3 O DOM JORGE DA ARMAÇÃO DO PÂNTANO DO SUL: DAS AREIAS DA PRAIA
AO PALCO DO TEATRO
O Dom Jorge da Armação do Pântano do Sul, em sua forma textual, isto é, transcrito
para o papel a partir do testemunho das mulheres do grupo Alegria de Viver, pode ser
considerado uma variante do romance português Juliana e Dom Jorge. A afirmação justifica-
se pela grande semelhança do texto, quando comparado com os de outras versões registradas
(NASCIMENTO, 1964; LIMA, 1971; SANTOS, 2005). Porém, quanto à forma de sua
transmissão, não é possível ter a mesma certeza, e as potencialidades teatrais que representa
merecem um estudo mais aprofundado; nesse sentido, a pretensão aqui é de apenas iniciar
essa discussão. Para tanto, proponho uma reflexão sobre o significado da experiência
envolvida na representação do Dom Jorge e como as tradições populares se transformam.
1.3.1 Brincar de dom-jorge (até cerca 1960)
Parece não haver dúvidas de que a manifestação em estudo foi praticada no Pântano
do Sul até cerca de 50 anos atrás, pois esse lapso de tempo corresponde à época em que
algumas praticantes, hoje idosas de mais de sessenta anos, eram meninas. Conforme seus
depoimentos, naquela época era uma brincadeira praticada na comunidade, na beira da praia,
como outras expressões artísticas tradicionais, tais o Boi de Mamão, a Ratoeira ou o Terno de
Reis. Ao recriar a brincadeira em forma de teatro e de “resgate” de uma tradição popular local,
essas mulheres parecem inserir-se em uma polêmica bastante discutida: a “cultura açoriana”.
Essas manifestações populares orais, em Florianópolis e na região litorânea de Santa Catarina,
foram recriadas ou “inventadas” a partir de certa “tradição açoriana”, ou açorianidade, como
utiliza Lacerda (2003).
As tradições são consideradas “invenções” e debatidas como tal desde o conhecido
livro de Eric Hobsbawm e J. Ranger, A Invenção das tradições (1997). Os autores expõem na
obra de que maneira a "tradição", referida como base do nacionalismo e "prova" de uma
suposta superioridade dos povos, é uma construção, algo criado, inventado. Hobsbawm e
Ranger entendem que o conceito “invenção das tradições” pode ser utilizado em sentido
amplo, incluindo as tradições propriamente inventadas e institucionalizadas, mas também
43
aquelas que surgem repentinamente, permanecem e finalmente se estabelecem, como se sua
origem fosse remota. Essas práticas, dizem os autores, de natureza ritual e simbólica, teriam
por objetivo incorporar determinados valores e comportamentos definidos por meio da
repetição, em um processo de tentativa de dar continuidade ao passado.
Numa abordagem mais contemporânea, o conceito é revisto pelo antropólogo
americano James Clifford, que vai mais além, no sentido da exploração política e da
mercantilização da ideia de tradições, em um contexto de rápida modernização. Ele diz que
“traditions become problematic and thus politicized in situations of rapid 'modernization'”26
(CLIFFORD, 2000, p. 98). Considerando o atual estágio da modernidade, esses problemas
fazem referência às recuperações que são operadas pelo capitalismo no passado comum, nas
tradições, nas identidades, no patrimônio cultural, nas produções “locais”, inclusive
simbólicas, transformando-os em objeto de mercantilização (commodification). Clifford
ressalta que lidar com esses problemas implica atitudes políticas sérias e bem embasadas,
pois podem ser fonte tanto de empoderamento da vida “local” quanto submissão aos desígnios
“globais”, e, nesse caso, podendo levar ao que ele chama de “shopping mall of identities”27, ao
patrimônio cultural como simulacro e ao folclore como “fakelore”28.
Em Santa Catarina, a “açorianidade”, inventada no fim dos anos 1940, foi uma
tentativa de unificar uma “origem” étnica catarinense a partir da colonização açoriana,
tentativa que é suplantada, nos anos 1980 e 1990, por uma nova concepção “multiétnica” do
Estado, desenvolvida nessa época pelas elites governantes. Em consequência, a
“açorianidade” consolida-se como identidade cultural apenas do litoral catarinense
(LACERDA, 2003; FLORES, 1997; MORAIS, 2010). Hoje essas manifestações culturais
“açorianas” são incentivadas em escolas, em grupos folclóricos e figuram nos catálogos de
turismo e cultura de Santa Catarina, como “folclore da região litoral”.
26 “Tradições, em situações de rápida 'modernização' tornam-se problemáticas e, em consequência,
politizadas”. Tradução livre.
27 Shopping de identidades. Tradução livre.
28 Fakelore é um neologismo, composto da palavra fake = falso, simulacro, e a palavra folklore=folclore.
Indica o folclore explorado comercial e ideologicamente, distante de suas funções sociais. Tradução livre.
44
1.3.2 Dom Jorge: a reinvenção da brincadeira
Figura 3 - Apresentação do Dom Jorge pelo grupo Alegria de Viver, na Festa do Folclore do
Pântano do Sul, em 2005.g
Fonte: acervo grupo Alegria de Viver.
Segundo depoimentos de integrantes do grupo Alegria de Viver, a ideia de “fazer o
Dom Jorge” surge durante o planejamento das comemorações da festa de Sant'ana e São
Joaquim, padroeiros da capela católica da Armação. Meses depois, o grupo começava a
formar-se, o repertório ainda era reduzido e o Dom Jorge é incluído nas apresentações. O
repertório do grupo Alegria de Viver, no início de suas atividades, era baseado no exemplo do
grupo folclórico da Terceira Idade da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)29,
através do qual assimilaram algumas danças folclóricas de suposta origem açoriana, como a
Ratoeira, a Dança dos Arcos, a Quadrilha e a Farinhada, já citados.
29 Conforme o sítio internet oficial, o “Grupo de Dança Folclórica da Terceira Idade da UFSC [...] tem a
preocupação de documentar e preservar o acervo cultural da etnia portuguesa com base açoriana. O grupo
tem uma participação efetiva no Conselho Consultivo do Núcleo de Estudos Açorianos, com isto pode apoiar
a muitos grupos folclóricos do litoral do Estado oferecendo treinamento, consultoria em figurino folclórico,
músicas e coreografias”. (UFSC, 2014).
45
Assim, a partir de suas lembranças afetivas e memórias corporais, as integrantes do
grupo montaram uma peça teatral totalmente cantada, musicada e encarnada por personagens.
Conforme os relatos, elas próprias criaram toda a encenação: a marcação espacial, a música, o
ritmo cênico e a performance dos atores. Pela observação das fotos resgatadas das duas
apresentações realizadas30, percebe-se que o figurino é único para as mulheres, as quais
utilizam os mesmos vestidos que usam para as danças folclóricas, com o acréscimo de um ou
outro acessório distintivo, como um xale ou um avental. Somente a personagem D. Jorge tem
figurino especial, com botas, capa e espada, chapéu de três bicos, num estilo histórico
impreciso que pode remeter aos séculos XVIII ou XIX. Algumas das mulheres têm papéis
representados individualmente na cena: Juliana, a mãe de Juliana, a mãe de D. Jorge, o
delegado e os soldados. As outras participantes formam um semicírculo ao fundo, compondo
a cena com os músicos31.
1.3.3 A necessidade do teatro (2006-2007)
Em 2006, o grupo Alegria de Viver, há dois anos em atividade, sente a necessidade de
aprimorar as suas performances e decide solicitar um professor de teatro-educação para a
Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes (FCFFC). Por meio de sua líder na
época, Roseli, uma professora da escola municipal da Armação32, fui então contratado para
cumprir essa função. No fim de uma noite de ensaios das danças folclóricas, quando
solicitadas por mim, que já ouvira falar vagamente dessa manifestação, as mulheres
cantarolam o Dom Jorge. Entusiasmado com o que presenciei, propus a elas retomarem as
encenações do espetáculo, em vistas a reintegrá-lo ao seu repertório, o que foi imediatamente
aceito pelas mulheres.
30 Podemos dizer, baseados nas datas gravadas nas fotos digitais feitas por um (ainda) desconhecido, que a
primeira apresentação do Dom Jorge pelo grupo foi na festa dos padroeiros, no dia 26 de julho de 2005, no
salão paroquial da capela católica da Armação. Devido ao sucesso com o público, conforme o depoimento de
integrante do grupo, no dia 14 de agosto, o grupo foi convidado para outra apresentação, no Pântano do Sul,
onde se produzia a Festa do Folclore, promovida pela AMPSUL, Associação de Moradores do Pântano do
Sul.
31 Um fato relevante dessa primeira apresentação é que a personagem masculina principal – D. Jorge - foi
representada por um homem, um jovem da congregação religiosa a que pertencem. Esse fato não se repetiu
nas apresentações do espetáculo subsequentes.
32 Trata-se da professora Roseli Maria da Silva Pereira, ex-diretora da Escola Básica Municipal Dilma Lúcia
dos Santos, da Armação, uma moradora que se destaca na promoção da cultura popular na comunidade, tendo
posteriormente atuado na Fundação Cultural de Florianópolis como coordenadora de eventos comunitários e
sido candidata a vereadora. Praticante ela também, é a “puxadora” das danças e cantorias do grupo Alegria de
Viver, como também do grupo de alunos que anima o boi de mamão da Escola.
46
Com esse grupo, eu, como o professor de teatro-educação contratado pela Prefeitura,
trabalhei durante quatro anos, tempo em que procurei desenvolver, nos integrantes, noções
básicas de espaço, tempo, consciência do corpo, trabalho em grupo, ritmo e expressão vocal e
corporal. Fundamentei meu trabalho nos métodos educacionais e exercícios baseados
principalmente na metodologia de Viola Spolin (2000, 2006) e Augusto Boal (1996, 1998).
Da primeira, retive os conceitos básicos para o desenvolvimento da consciência teatral: o
“que” [acontece], “onde” [se desenrola], “quem” [age] e qual o foco da cena a cada momento.
De Boal (1998), utilizei muitos exercícios de seu livro, Jogos para atores e não atores, que
ajudam a desenvolver aptidões de expressão corporal, mental e vocal. Boal (1996) desenvolve
em seu Teatro do Oprimido três vertentes principais: educativa, social e terapêutica. Embora
não pudesse utilizar seus ensinamentos plenamente nos seus três aspectos, busquei passar às
alunas um pouco deles quanto ao uso da praxis teatral, como “ensaio da vida”, que dá
instrumentos para transformar a realidade pessoal e social por meio da prática de outras
realidades possíveis no espaço da ficção. Essa visão é compartilhada por Richard Schechner
(c2007), conforme será indicado no terceiro capítulo.
Para Boal, ao ver-se e ouvir-se, o protagonista de uma peça ou improvisação teatral
adquire conhecimentos sobre si mesmo. Nesse sentido, ao recriarem uma brincadeira de
infância por meio de suas memórias, transformando-a em teatro, as mulheres do grupo
revelam o que Boal salienta:
Este processo teatral de contar no presente, diante de testemunhas coniventes, uma
cena vivida no passado, já oferece em si mesmo uma alternativa, ao permitir – e
exigir – que o protagonista se observe a si mesmo em ação, pois o seu próprio desejo
de mostrar obriga-o a ver e a ver-se (BOAL, 1996, p. 39).
Os ensaios começaram no ano seguinte, e o grupo iniciou uma campanha de
arrecadação de fundos para a remontagem do Dom Jorge. Uma parte dos fundos foi
financiada pela Prefeitura, no âmbito das Oficinas de Arte-Educação nas Comunidades, da
Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes, e outra parte foi obtida com a
organização de um jogo de bingo beneficente na comunidade. Os fundos deveriam cobrir as
despesas de figurinos, maquilagem, cachê de músicos e, quando necessário, transporte e
alimentação nos dias de apresentação. O objetivo era duas apresentações ao final do ano: uma,
à guisa de ensaio geral, na comunidade, no salão paroquial da igreja; e a outra na estreia, no
Teatro da Ubro, no centro da cidade, o que aconteceu, respectivamente, nos dias 26 de
outubro de 2007 e 30 de novembro do mesmo ano. Dessa última apresentação, foi produzido
registro em vídeo (ALANO; ASPAR, 2013), aqui transcrito:
47
A peça abre em silêncio com o mensageiro entregando uma carta a Juliana, que a lê e
irrompe em prantos. Acode-lhe sua mãe, que canta acompanhada dos músicos, perguntando o
porquê das lágrimas. Por meio do canto da filha, ela fica sabendo que D. Jorge vai se casar e
por isso a recrimina, pois lhe havia advertido que a D. Jorge lhe aprazia enganar as mocinhas.
Nesse instante, o coro anuncia a chegada de D. Jorge33, montado em seu burrinho. D. Jorge
apeia da montaria e, questionado por Juliana, confirma a sua intenção de casar-se com outra.
Juliana, traiçoeiramente, convida o visitante para sentar, enquanto vai buscar um cálice com
vinho no sobrado. Em seguida, volta e lhe oferece a taça. D. Jorge bebe o vinho e começa a
cambalear; num canto vacilante, pergunta o que foi posto na bebida que lhe escurece a vista, e
cai, lamentando por sua mãe, a qual pensava que ele estaria vivo, enquanto Juliana canta
ironicamente, dizendo que sua mãe também pensava que ele casaria com ela, sua filha. O coro
brada a morte de D. Jorge, quando entra a mãe, que, sobre o cadáver do filho, clama por
justiça, ao passo que Juliana regozija e dança, dizendo que com outra ele não casará mais.
Chega o delegado com um soldado, prendem Juliana e a levam. Nas primeiras apresentações
do grupo, e mesmo no ensaio geral, a peça terminava aqui, “congelando” a cena.
No entanto, para a última apresentação que fariam no teatro da UBRO, e para minha
própria surpresa como o professor de teatro que dirigia a encenação, as integrantes criaram
uma nova estrofe. Elas deram então outro fim ao personagem D. Jorge quando, numa
procissão fúnebre e não sem certo lirismo, em frente à cova do malfadado amante, sobre a
qual cada um depositava uma flor, cantaram em tom solene:
Já morreu o seu Dom Jorge,
Já morreu, já se acabou.
Na cova do seu Dom Jorge
Nasceu um jardim de flor (Anexo B).
Registrar a manifestação por si só tem importância para este trabalho, pelo fato de
poder testemunhar uma manifestação viva do romance Juliana e Dom Jorge em pleno século
21. No entanto, algumas questões surgiram durante a pesquisa, as quais dizem respeito ao
porquê das escolhas das mulheres e também as dos homens, e aos significados dessa recriação
espontânea. Algumas respostas podem estar no exame das relações sociais predominantes na
comunidade.
33 Nessa apresentação no teatro da UBRO e no ensaio geral na comunidade, a personagem D. Jorge é
representada por duas das mulheres, que se revezaram em cada um dos espetáculos, não sem alguns atritos,
como veremos na sequência.
48
1.4 ALGUNS ASPECTOS SOCIAIS DAS INTEGRANTES DO GRUPO ALEGRIA DE
VIVER
Entender esse grupo de mulheres e o significado do Dom Jorge em suas vidas passa
não apenas por analisar sua situação sócio-econômica, embora seja importante conhecer para
contextualizar o fenômeno, mas sobretudo pelo estudo de suas relações com o tempo, com as
duas épocas em que o fenômeno foi expressado: numa como brincadeira e na outra como
“teatro”. Nesse sentido, Alano e Franzoni (2014) descrevem algumas das relações que o grupo
de mulheres que encenou o espetáculo Dom Jorge mantém com a localidade e com aspectos
de sua infância e juventude, as quais podem contribuir para colocar no contexto a escolha que
elas fizeram por esse romance e sua possível reverberação para os demais moradores, entre os
quais estão vizinhos, amigos e parentes:
As mulheres a que nos referimos são moradoras nascidas, em sua maioria, na
região citada e experimentaram ao longo de suas vidas um processo intenso de
urbanização e transformação das relações interpessoais que tomou conta da região
onde habitavam, no início dos anos 1980. Nesse sentido, é possível dizer que pautam
suas vidas em valores e referências de cosmologias diversas que ora se contrapõem,
ora se complementam. Muitos dos valores e referências que possuem são advindos
das relações próprias de um mundo rural, religioso e de influência ibérica, de
relações pessoais determinadas também, em grande parte, pelas regras de
relacionamento e hierarquias preestabelecidas nas relações de gênero.
O modo de vida experimentado por essas mulheres, de sua infância ao início
de sua vida adulta, foi também marcado pelas atividades agrícolas, em que o
trabalho e a vida familiar se davam no cultivo de alimentos, na confecção de rendas
e bordados, na organização da quermesse34, na lida com a casa e com os filhos, etc.
Nesse mundo, o trabalho remunerado era menos frequente e, via de regra, realizado
pelos homens. A obtenção de recursos financeiros era feita com a venda dos ‘meios
de trabalho’, como a terra, por exemplo, ou parte de seus frutos. A atividade agrícola
era combinada à atividade pesqueira, essa última eminentemente masculina. A
pesca, em distintas épocas do ano, mantinha os homens afastados de casa durante
vários dias, ou mesmo por semanas, fazendo com que as mulheres passassem a
administrar os recursos domésticos nesse período. Além disso, essa dinâmica de
ausência frequente dos maridos e filhos adultos fez com que elas criassem as suas
próprias redes de poder e cumplicidades, que acabavam por desafiar as formas
hierárquicas estabelecidas nas relações tradicionais com os homens35.
A outra referência na vida dessas mulheres, mais recente, porém não menos
importante, é a das relações próprias do mundo urbano, da intensificação da
população local, do contato próximo e intenso com outras referências culturais, com
as ‘benesses’ e ‘mazelas’ trazidas pela modernidade. Não mais o tempo da
agricultura, da pesca e das festas, mas o tempo do relógio, dos horários de ônibus,
do fechar e do abrir do comércio local, e da presença de serviços antes encontrados
34 Festas beneficentes, de caráter comunitário; no caso em questão, eram festas organizadas em torno da
Igreja Católica e das demandas dos grupos que dela participavam.
35 Vários dos trabalhos sobre o tema da bruxaria na Ilha de Santa Catarina apontam para essa tensão sempre
presente entre a hierarquia tradicional e as redes de poder/saber estabelecidas pelas mulheres nas
comunidades de pescadores. Ver especialmente Sônia Maluf: Encontros Noturnos (Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 1993).
49
apenas na ‘cidade’36 (o posto de saúde, o posto de correio, as instituições
financeiras, etc.). Não mais a predominância das trocas diretas de produtos agrícolas
e da pesca, assim como do trabalho coletivo, mas a predominância do trabalho
assalariado e de relações pautadas pelas trocas financeiras. Um modo de vida, em
muitos casos, considerado estrangeiro, que veio de fora, cheio de novas hierarquias
nas quais os moradores locais ocupam, via de regra, posições inferiores. Uma das
estratégias que tem sido utilizada por essas comunidades para inverter sua situação
de inferioridade tem sido o apelo a uma identidade ‘original’ açoriana, reivindicando
a pertinência ao local, em especial através das chamadas manifestações folclóricas
(ALANO; FRANZONI, 2014, p. 269-271).
Aos lavradores e pescadores (BECK, 1979) que, até meados do século XX, viveram
distantes da modernidade, couberam, com a chegada desta, os empregos menos valorizados e
as piores remunerações; em especial porque, também nesse caso, a possibilidade de
alfabetização e de estudo esteve por muito tempo afastada de seu alcance. E, no que se refere
às mulheres, ainda mais (TORNQUIST; FRANZONI, 2008). Entre os empregos assalariados
obtidos pelos homens, encontram-se, com frequência, os de vigia noturno ou funcionário de
limpeza de empresas de segurança privadas, funcionário público, polícia militar e
comerciário. Entre as mulheres, é mais comum o de faxineira, empregada doméstica e
funcionária de limpeza de empresas de segurança privadas. As transformações trazidas pela
modernidade e mais recentemente pela globalização, influenciaram radicalmente seus modos
de viver, conforme escrevem Alano e Franzoni:
As transformações advindas da urbanização estão diretamente ligadas à
consolidação da própria modernidade, tanto nessa localidade quanto no município
em sua totalidade e em seu entorno. É uma modernidade que se institui sob o signo
do estranhamento. O sujeito torna-se cada vez mais um estranho em relação ao
mundo que cria, ao mesmo tempo que o transforma, que o reinventa e que estabelece
novas formas de sociabilidade (SIMMEL, 2005a). As relações entre esses modos de
vida experimentados pelos moradores do sul da Ilha de Santa Catarina, em tão curto
tempo, aparecem contraditórias, conflituosas, e, conforme aponta Simmel (2005a), o
sujeito assim como o mundo objetivo se autonomizam. Antigas formas que eram
diretamente ligadas às experiências coletivas, com as brincadeiras infantis, jogos e
rituais transformam-se em experiências individuais objetificadas, como o caso da
apresentação teatral Dom Jorge.
Nesse sentido, a urbanização não seria apenas o contraponto moderno de um
modelo arcaico, mas, conforme sugere Menezes Bastos (1993), deve ser vista como
um processo global, um processo radical e tentacular de mudança. Essa posição,
alerta o autor, não implica porém em conceber a urbanização como um processo de
homogeneização. O encontro desse modo de vida urbano, moderno, capitalista e
com práticas de outro tipo, não é, como diria Sahlin (1997), um jogo de soma zero.
O encontro cultural, diz ele, produz a diferença mais do que homogeneização
(ALANO; FRANZONI, 2014, p. 271).
36 Cidade é como ainda hoje é chamado o Centro, bairro onde o processo de urbanização consolidou-se
primeiramente na Ilha e onde está ainda hoje concentrada a maior parte do comércio e dos serviços públicos e
privados do município.
50
Esta é uma das hipóteses que Tereza Franzoni e eu levantamos acerca do
ressurgimento da brincadeira infantil dom-jorge, em sua forma teatral. Ao que parece, a
manifestação aqui estudada tanto dialoga com as relações tradicionais entre homens e
mulheres como com os valores contemporâneos, estabelecidos no plano local pelo modo de
vida urbano, marcando diferenças, selecionando memórias, propondo questões. É possível
avaliar outras hipóteses acerca da recriação da brincadeira infantil que inspirou o Dom Jorge.
Primeiramente, essa recriação é marcada pela manifestação de um mundo rural em que
predomina a oralidade como transmissora do conhecimento, ao mesmo tempo em que
transforma essa manifestação em um produto espetacular. Por outro lado, a forma teatral tanto
dialoga com as relações tradicionais entre homens e mulheres que ainda permanecem, como
com os valores contemporâneos, estabelecidos no plano local pelo modo de vida urbano. Isso
marca novas configurações nas relações de gênero e pertinência, e a utilização da forma
teatral contribui também para a negociação da posição social no contexto das hierarquias
locais.
A importância desta dissertação pode ser avaliada pela oportunidade de poder
testemunhar uma época de transição, no limite entre duas épocas, como se a modernidade
encontrasse o arcaico e desse choque surgisse o interesse da pesquisa, pelo fato de um grupo
de mulheres idosas ter vivido uma experiência coletiva em uma sociedade predominantemente
oralizada, e que sobreviveram para poder recriá-la em um contexto em que a modernidade
marca profundamente as relações sociais. Se, como disse Benjamin (1987), a experiência
compartilhada (Erfahrung) tende ao desaparecimento face à nova organização social imposta
pelo estágio atual do capitalismo, então o Dom Jorge da Armação e do Pântano do Sul pode
ser entendido como uma obra de arte popular que transpõe o tempo e permite ser recriada,
reinventada e reapresentada não mais como brincadeira infantil, mas ressignificada como
teatro e praticada como tal.
51
Figura 4 – Dom Jorge. Teatro da UBRO, em 28/11/2007. D. Jorge morto e sua mãe. Cena 5: “Justiça!”.
Fonte: acervo do grupo Alegria de Viver.
52
53
2 DRAMATURGIAS DE DOM JORGE
O teatro já não aspira à totalidade de uma composição
estética feita de palavra, sentido, som, gesto etc., que se
oferece à percepção como construção integral; antes,
assume seu caráter de fragmento e de parcialidade. Ele
abdica do critério da unidade e da síntese, há tanto tempo
incontestável, e se dispõe à oportunidade (ou ao perigo) de
confiar em estímulos isolados, pedaços e microestruturas de
textos para se tornar um novo tipo de prática. Desse modo,
ele descobre uma inovada presença do performer a partir de
uma mutação do actor e estabelece a paisagem teatral
multiforme, para além das formas centralizadas do drama.
(Hans-Thies Lehmann37)
Neste capítulo a tentativa é de analisar a dramaturgia do romance em estudo e o
processo da encenação resultante do projeto por mim elaborado em 2007. Para tanto, são
utilizados como fontes: o texto do projeto de encenação Dom Jorge, de Tony Alano38, assim
como textos de outras variantes do romance Juliana e Dom Jorge compilados e estudados por
folcloristas e literatos. Além disso, são avaliados os dois vídeos que registraram as duas
apresentações que resultaram do projeto.
Neste trabalho serão considerados vários aspectos de uma investigação que se
constitui pela visão de dois olhares: o do professor de teatro e encenador que se depara com o
desafio de restabelecer a atividade teatral do grupo Alegria de Viver, e o olhar do pesquisador,
cerca de dez anos depois, que procura analisar o fenômeno. Para tanto, a pesquisa, num
esforço interdisciplinar, compilou e dialogou com estudiosos de várias áreas do
conhecimento, a fim de deixar um estudo que aponte a importância dessa manifestação
popular e “restaure seu fulgor”, no sentido proposto por Walter Benjamin (2011).
Os aspectos a serem abordados dizem respeito à transcrição do texto de sua forma oral
para a forma escrita, à dramaturgia desse texto, e como se relaciona com outras formas
teatrais, a seu elenco, com as escolhas que fizeram, à relação com o público-alvo, à sua
encenação e às escolhas do diretor ao encená-lo, bem como o interesse atual da obra.
Após estudar o contexto do fenômeno Dom Jorge, descrito no capítulo primeiro, é
possível deduzir a dupla pertinência do objeto aqui em estudo: à manifestação popular, de
transmissão oral, e ao teatro, transmitido pela escrita do texto. Em consequência, esta
37 Citação feita por Inês Marocco em seu artigo Um olhar sobre a obra Ditos e malditos: desejos de uma
clausura (MAROCCO, 2011, p. 159).
38 Tony Alano é meu nome artístico. Meu projeto de encenação foi concebido no âmbito de minhas aulas,
como professor de teatro do grupo Alegria de Viver, desde a sua aprovação coletiva até a apresentação do
espetáculo no Teatro da UBRO em 2007. Quando usar essa grafia, estarei referindo-me a mim como diretor e
professor de teatro.
54
pesquisa opta por analisar a forma oral transformada em teatro, aqui em pauta, pelos dois
ângulos: o da tradição teatral, calcado no texto dramático e na ação dramática39 concatenada,
em contraste com o da expressão oral, baseado na narrativa e nas técnicas de construção
mnemônicas. Reconheço que o objeto poderia ser analisado apenas por suas características
espetaculares, como propõe a Etnocenologia (GREINER; BIÃO, 1998), sem que houvesse
necessidade imperativa de usar-se da tradição teatral para analisar um texto de tradição oral.
Entretanto, pela qualidade dramática que o texto revelou, valeu a pena estudá-lo nessa
perspectiva também.
2.1 DIFICULDADES DA TRANSCRIÇÃO: ORALIDADE VERSUS ESCRITA
Montar uma peça de teatro, que me foi apresentada como “folclórica”, levantou alguns
desafios que eu como artista e educador tive de enfrentar. Desde o princípio, quando decidi
aceitar a tarefa de encenar a peça, tive consciência de que minha concepção do espetáculo a
ser encenado era totalmente inserida na cultura letrada. Em vista disso, eu procurava
constantemente respeitar a visão das verdadeiras criadoras do espetáculo, marcadas, na
infância, pelo pensamento da cultura predominantemente oral, conforme se refere Walter Ong
(1998) em sua obra Oralidade e cultura escrita. Essa consciência e esse cuidado não
impediram que surgissem alguns conflitos entre essas duas visões, ao passo que criou novas
formas, surgidas do consenso adquirido. Apesar de querer distanciar-me e não interferir no
que acreditava ser a “pureza” do objeto popular, não me conformava com a ideia de um
“teatro-museu”, simplesmente para perpetuar o passado40.
Por outro lado, além desse desejo de fazer “resgate cultural”, havia, de minha parte e
de minhas alunas, a vontade de criar um espetáculo para o palco italiano, com luzes, ribalta e
plateia, para que a experiência do palco e do público de teatro fosse possível para elas.
Experiência aqui não tem o sentido coletivo dado por Benjamin (1987), Erfahrung, como
abordado no capítulo um. “Experiência” refere-se, nesse ponto, a um conceito anterior, em
que Benjamin (2002) discorre em torno da experiência que os mais velhos acumulam na vida
39 Ação dramática, no sentido de Ball, ocorre “quando acontece algo que faz com que, ou permite que, uma
outra coisa aconteça” (BALL, 1999, p. 23). No entanto, Ryngaert (1996) diz que a ação dramática é muito
difícil de ser definida na contemporaneidade, porque o conceito hoje se alargou e abrange várias facetas da
realidade do palco. Nesse mesmo entendimento, Pavis (1999) não fala em ação dramática especificamente,
prefere analisar as “ações”, inclusive a “teatral”.
40 Lembro-me bem de que já naquela época eu tinha uma visão mais alargada do conceito de folclore.
Paralelamente ao grupo Alegria de Viver, eu também fui ensaiador do boi-de-mamão infanto-juvenil da
escola municipal da Armação e tinha discussões com alguns adultos, músicos ou professores, os quais
criticavam atualizações que fazíamos no texto, dizendo: “- não era assim que se fazia na época, Tony!”.
55
e que nem sempre compartilham com os jovens, preferindo encastelar-se em sua posição
rígida de mais sábios porque mais vividos. Para mim, era importante compartilhar essas
experiências com minhas colaboradoras para que elas, com o acumulado da vida, pudessem
sempre aprender e compartilhar as suas.
Finalmente, decidimos por um espetáculo que pudesse ter as duas qualidades e ser
representado tanto em um teatro convencional como na rua, em eventos, como parte do
repertório de danças folclóricas. Isso porque o espetáculo resultou em pouco mais de doze
minutos, o que inviabilizava apresentá-lo como espetáculo autônomo, ficando à mercê de ser
inserido em uma programação maior.
Logo de início, ao empreender o projeto de encenação, Anexo C, dei-me conta de que
tentar analisar um texto teatral transcrito da expressão oral, Anexo A, isto é, que não foi
escrito especificamente para o teatro, era desafiador. Ainda mais sendo cantado, o que leva a
lidar com problemas de prosódia. Isto porque o texto escrito, segundo Maria Nazareth de
Lima Arrais (2011), é pobre, insuficiente para registrar toda a complexidade da performance,
da palavra viva incorporada em um contador ou um ator. Sendo assim, eu me perguntava:
como analisar o texto, desvendar sua dramaturgia a fim de entendê-lo e poder encená-lo?
Muitas maneiras existem de analisar uma forma teatral, há literatura abundante a
respeito, no âmbito dos Estudos do Teatro, desde o método ou sistema de C. Stanislávski,
atualizado pela tese de doutorado de Nair Dagostini (2007), até outras mais contemporâneas,
como as obras de Jean-Pierre Ryngaert (1996), Patrice Pavis (1999, 2008) e Eugenio Barba
(1995), consultadas nesta pesquisa. Mais difícil de encontrar, no entanto, são teatrólogos que
se debrucem sobre o processo de transcrição; nessa linha, dois trabalhos foram selecionados:
Mariana Monteiro (2011) e Patricia dos Santos Silveira (2012). Em vista dessas dificuldades,
a pesquisa recorreu a vários autores que auxiliaram a cercar o problema de diferentes
perspectivas, num viés interdisciplinar em que concorreram a Literatura, com Alvanita
Almeida Santos (2005) e Aline Carrijo de Oliveira (2012); a Antropologia Visual, com
Luciana Hartmann (2011); a Linguística, com Walter Ong (1998); e os Estudos do Folclore,
com Bráulio do Nascimento (1964). Assim, a pesquisa dialoga ao longo do capítulo com esses
teóricos, ao mesmo tempo em que pontua com as escolhas que eu, no papel de diretor e
professor Tony Alano, fiz durante o processo de montagem do espetáculo Dom Jorge.
A investigação parte do pressuposto de que o romance ibérico Juliana e Dom Jorge,
que originou a brincadeira dom-jorge no Pântano do Sul, seja um produto da cultura popular,
de transmissão oral, que nos chega através de memórias ou através de textos compilados de
narradores e cantadores, oriundo dessa expressão oral primária, para usar o conceito de
56
Walter Ong (1998). Já o espetáculo Dom Jorge foi criado por mulheres da Armação do
Pântano do Sul para ser teatro, numa atitude que podemos chamar de artística. Assim,
examinar o Dom Jorge do grupo Alegria de Viver pelo ponto de vista da dramaturgia implica,
antes de mais nada, entendê-lo não apenas como uma manifestação oral, uma brincadeira
popular, mas também como uma obra literária, já que toma materialidade através de sua
transcrição ao tornar-se texto teatral, reproduzido em série para ser ensaiado. A tensão
existente entre a oralidade e a modernidade letrada foram objeto de estudos de várias
disciplinas. Nesse sentido, a pesquisa apoiou-se em alguns autores acadêmicos que abordaram
partes da questão, ou a abordaram sob outros ângulos, mas que puderam contribuir para
acercar o problema com base em diversas perspectivas de visão do fenômeno, além de
apontarem bibliografia de grande valia.
Luciana Hartmann (2011), cuja tese de doutoramento em Antropologia Visual
intitulada “Gesto, palavra e memória: performances narrativas de contadores de causos”,
auxilia a refletir sobre a narrativa oral como gênero precursor da comunicação do saber. Além
disso, Hartmann aponta para a importância de levar-se em conta a performance41 dos
contadores na abordagem da produção oral, o que deu nova perspectiva para a abordagem do
objeto, conforme indico adiante.
Já Mariana Monteiro, estudiosa das Artes Cênicas, em seu livro Dança Popular,
baseia-se em José Antonio Marevall para relacionar essa dicotomia com o surgimento da
cultura de massa no período barroco (séc. XVI e XVII) em Portugal e suas colônias. Monteiro
estudou ainda as relações entre as danças dramáticas brasileiras, especialmente as
relacionadas com a figura do boi e a literatura de cordel em Portugal dos anos 1700. Ela diz
que, nesse período, “as formas da moderna sociabilidade, os novos padrões de convívio entre
os sexos, a ópera e o teatro, junto com touros e cavalhadas, são outras tantas situações
recorrentes nesses folhetos” (MONTEIRO, 2011, p. 196). Conforme indicado anteriormente,
o romance aqui estudado tem fortes chances de ter sido divulgado no Brasil por esse meio, na
mesma época. A literatura de cordel, segundo a autora, seria bastante popular nos anos 1700
em Lisboa, como ainda hoje em algumas regiões do Brasil. Era “vendido nas esquinas por
cegos que, reunidos em irmandades, gozavam do privilégio da venda desse impresso desde o
século XVI” (MONTEIRO, 2011, p. 194).
41 Performance é um conceito polissêmico que será debatido durante o decorrer desta dissertação. Aqui é visto
como um evento extracotidiano, assemelhado aos ritos, isto é, com duração limitada, que envolve interação
social, podendo ser encontrado nos ritos sagrados, em formas de entretenimento e em processos políticos
(HARTMANN, 2011, p. 19).
57
Cabe notar ainda a dissertação de mestrado em Literatura de Aline Carrijo de Oliveira
(2012), que trouxe inspiração para esta pesquisa. Com o título “Ocorrências entre literatura e
música na lenda de Tristão e Isolda e na ópera homônima de Richard Wagner”, a autora
analisou o Romance de Tristão e Isolda, comparado com sua transcrição escrita e musical
feita por Richard Wagner, que resultou na sua ópera Tristão e Isolda. Oliveira, assim como eu,
também se depara com uma antiga lenda que virou romance, ou seja, que foi transcrito da
forma narrativa oral para a forma escrita e, no seu caso, depois musicada. Oliveira elabora um
trabalho interdisciplinar ou “interartes”, como prefere, em que a literatura e a música
dialogam nas diversas transposições operadas: da lenda cantada ao texto escrito em folhetim,
até sua apropriação pelo teatro musical: a ópera de Wagner. Analogamente a Tristão e Isolda,
outros romances europeus, tais Juliana e Dom Jorge e Dom Juan, são produtos de uma
tradição oral popular e musical, fixados em textos e popularizados por folhetins.
Finalmente, a pesquisa salienta o trabalho de Patrícia dos Santos Silveira (2012) em
sua dissertação de Mestrado em Teatro, na qual apresenta a pesquisa sobre a relação entre
escrita e oralidade na criação de dramaturgia. Ainda que a autora examine o processo de
elaboração dos textos teatrais resultantes de trabalhos de improvisações e exercícios de atores
profissionais42, Silveira contribuiu enormemente à pesquisa ao apresentar Walter Ong,
pensador americano que se dedicou ao estudo da oralidade. Silveira diz sobre ele:
Walter Ong […] estuda as relações paradigmáticas entre escrita e oralidade, as
quais, segundo ele, representam formas mentais e culturais distintas de relacionar-se
com a linguagem verbal, o que conduz a procedimentos de criação verbal e
características específicas para cada forma de textualidade (SILVEIRA, 2012, p. 7).
Diante dessa dupla perspectiva da oralidade e da escrita, surgiu o questionamento: a
abordagem da dramaturgia desse teatro musical popular dar-se-ia pela perspectiva da cultura
oral, ou seja, do conto e da narrativa orais, com sua lógica baseada na memória, ou pela
tradição ocidental do Teatro, assentada na cultura escrita, com estrutura lógica baseada na
concatenação das ações dramáticas? Quais os traços que revelam sua pertinência a uma ou
outra influência?
Walter Ong (1998) acredita que as produções das culturas orais não seguem uma
construção linear, como a tradição do teatro ocidental consagrou. Para ele, a construção
oriunda da oralidade primaria43 atende em primeiro lugar à premissa da memorização. Walter
42 O trabalho de Silveira foca sobretudo no trabalho de criação do grupo teatral Usina do Ator, de Porto
Alegre.
43 Oralidade primária segundo Ong é aquela em que o grupo social não tem contato com a cultura escrita,
ou muito pouco. Na contemporaneidade, Ong diz que não haveria uma sociedade totalmente constituída por
58
Ong estudou a psicodinâmica das sociedades orais primárias e, entre outras coisas, estava
interessado em descobrir nessas culturas, o “modo como a experiência é intelectualmente
organizada” (ONG, 1998, p. 46). Uma de suas conclusões é que “em uma cultura oral, a
experiência é intelectualizada mnemonicamente” (ONG, 1998, p.46), pois, sendo a cultura
transmitida por sons e não por signos grafados, a memória é a principal depositária do
conhecimento. Conforme Ong, a memória é acionada para a transmissão da experiência,
diferentemente da cultura escrita, que se utiliza dos signos gráficos para isso, configurando-se
como uma “memória externa” à qual se pode recorrer sempre que necessário. Ong constata
que a verbalização da experiência pode efetivar sua recordação (ONG, 1998, p. 47), e o acesso
a essas recordações obedece a dispositivos mnemônicos que auxiliam na tarefa de recordar.
Ele enumera alguns, aqui selecionados, que podem esclarecer sobre a dramaturgia do Dom
Jorge.
O “ritmo”, segundo Ong, “auxilia na recordação, até mesmo psicologicamente” (ONG,
1998, p. 45). O autor salienta ainda que as fórmulas prontas, os ditos populares, funcionam,
por si sós, como suportes mnemônicos, e as rimas e estrofes ritmadas também ajudam na
memorização. Como podemos observar no vídeo (ALANO, 2014), no qual me foi
apresentado informalmente o canto do Dom Jorge, foi a maneira como era organizada a
música, com sua cadência, e os versos, com suas rimas, que ficaram gravados na memória das
mulheres do grupo em primeiro lugar, naquela hora, em que estavam sentadas, em repouso; e
foi o que permitiu a posterior compilação do texto. A encenação do espetáculo, além da
memória oral, exigiu delas também o recurso da memória corporal, que as habilitou a recriar
os gestos, a movimentação e a marcação do espaço.
As “redundâncias” e “repetições” auxiliam o narrador no seu percurso e, conforme
Ong, dão-lhe tempo de organizar a sequência, assim como facilitam a compreensão. Nesse
sentido, na encenação do Dom Jorge do grupo Alegria de Viver, foram escolhidos dois
exemplos de redundância nos versos: “já morreu, já se acabou”, como vestígios da narrativa
oral. Porém o mais marcante traço de oralidade revela-se na repetição constante dos versos
pelo coro. Cada frase cantada por uma personagem é cantada novamente pelo conjunto, em
uníssono, dando tempo para a execução das ações físicas da personagem.
“Tom agonístico” é outra das características da oralidade, conforme as pesquisas de
Ong. Ele afirma que “a escrita alimenta abstrações que afastam o conhecimento da arena onde
seres humanos lutam entre si. […] Ao manter o conhecimento imerso na vida cotidiana, a
uma cultura oral primária, pois a cultura escrita é hegemônica e influenciou todo o planeta.
59
oralidade o situa dentro de um contexto de luta” (ONG, 1998, p. 55). De fato, D. Jorge, ao
estrebuchar, inicia uma disputa com Juliana e invoca sua própria mãe, que tanto sofreria com
sua morte, tentando assim suscitar a piedade na moça, porém Juliana revida com escárnio e
invoca, por sua vez a própria mãe, a qual acreditava que ele iria casar-se com ela, sua filha.
Finalmente, extraímos da extensa lista de características de Ong a questão da
“homeostase”. Conforme o pensamento de Ong, nas produções orais, ao não possuírem um
dicionário em que possam armazenar as palavras, os significados das palavras são
constantemente atualizados, pois o significado de cada palavra é controlado “pelas situações
da vida real em que a palavra é usada aqui e agora” (ONG, 1998, p. 58). Dois eventos
acontecidos durante a produção do espetáculo Dom Jorge do Alegria de Viver parecem ilustrar
essas características: primeiramente o verso “foi o único prazer que eu tive e com outra não
gozou”, foi substituído, ao longo dos ensaios, por “...que com outra não casou”. A primeira
expressão, quando ecoada na sala de ensaios44, pareceu-lhes um tanto sexual como conotação,
o que não ocorria talvez na época de infância, pelo menos tão explicitamente como hoje.
Nesse sentido, a palavra “gozou” sofreu uma alteração semântica durante o meio século que
separa as duas manifestações, e as mulheres houveram por bem substitui-lo por expressão
mais pudica.
O segundo acontecimento, durante o processo de montagem do espetáculo, não se
verifica exatamente como uma homeostase no sentido onguiano, pois não se trata da
atualização de uma palavra, mas de toda uma cena. Nesse sentido, o epílogo que as mulheres
criaram, ao acrescentarem um último quadro ao texto, depois do fim, propunha à personagem
D. Jorge um outro destino. Supõe-se que a gravidade dos crimes cometidos na história, ao ser
recriado num ambiente já dominado pela cultura letrada, além do mais religioso e escolar45,
pareceu àquelas mulheres pouco “correto” ou pedagógico; como consequência, deram ao
crime um outro significado, ao fazer com que flores brotassem da cova do D. Jorge defunto46.
Ou seja, essas mulheres, testemunhas da transformação de uma sociedade baseada
principalmente na oralidade para um modo de vida em que a modernidade se impôs, estão
44 Como veremos no capítulo terceiro, uma das idosas do Pântano do Sul entrevistadas cantou a sós para mim
o verso com a palavra “gozou”, tal como era pronunciada na infância. Talvez em um palco, com todo o
caráter didático, para um público comunitário, dentro de uma escola, sabendo que aquela palavra nos dias
atuais tem um caráter sexual, a idosa não teria proferido a mesma palavra, conforme aliás o fizeram as
mulheres do grupo Alegria de Viver, preferindo o vocábulo “casou”. Gozou adquiriu uma conotação sexual,
com o passar do tempo.
45 Os ensaios aconteciam na escola municipal da Armação; EBM Dilma Lúcia dos Santos.
46 Esta seria uma hipótese para as escolhas do grupo, porém poderia parecer que as mulheres estavam
absolvendo D. Jorge, e, consequentemente, reforçando a punição de Juliana. Pessoalmente acho que a ideia
que prevaleceu foi a de “sublimação”, de perdão para todos aqueles crimes.
60
preocupadas em “resgatar” as tradições que praticaram no passado, mas não se furtam a
modificá-las, desde que sirvam a objetivos do contexto presente, o que neste caso, significa
amenizar o texto, adaptá-lo ao contexto moral vigente. Nesse sentido, sua atitude pode ser
entendida naquilo que Walter Ong afirma: “as tradições orais refletem antes valores culturais
presentes do que uma curiosidade inútil sobre o passado” (ONG, 1998, p. 60).
Esta pesquisa levou em conta esses traços de oralidade encontradas no texto do Dom
Jorge e que influenciaram sua estrutura, assim como, por outro lado, tentou vê-lo como um
texto teatral convencional. Assim, após processar uma análise formal sobre a dramaturgia do
texto, pareceu evidente que o objeto em estudo situa-se nos interstícios de duas expressões
dramatúrgicas.
2.2 O PROJETO DE ENCENAÇÃO: UMA DRAMATURGIA SOB DUAS
INFLUÊNCIAS
Em 2007, para entender o texto que eu próprio e minhas alunas estávamos
representando, estabeleci dois procedimentos analíticos: uma pesquisa bibliográfica sobre o
assunto, que resultou agora ampliada no primeiro capítulo desta dissertação, e uma análise
dramatúrgica da peça, que será aqui discutida em diálogo com pensadores do teatro e de
outras disciplinas. Em meu projeto de encenação, o método de análise do texto foi o modelo
que sempre utilizei em projetos de montagens teatrais ao longo de minha carreira47. Acredito
que esse esquema revelou-se eficiente, pois, segundo minha experiência pessoal, permite
analisar profundamente o texto e propor uma encenação, qualquer que seja o gênero
dramático abordado. Esse esquema é fruto de minha formação como diretor, na qual tive
contato com diversas linhas de pensamento. A leitura de Nair Dagostini (2007) refrescou
minha memória e me fez reconhecer a influência de Stanislávski na minha direção do
espetáculo. Dagostini, em sua tese de doutorado em Literatura e Cultura Russa, “O método de
análise ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da criação do espetáculo
pelo direto e pelo ator”, expõe o método ou sistema de análise criado de Konstantin
Stanislávski de maneira clara e didática, auxiliando-me a compreender melhor a dramaturgia
do objeto, como veremos a seguir.
47 Ver Anexo C, onde reproduzo o esquema de análise de texto utilizado; um fac-símile da folha que me foi
ofertada no início dos anos 1990, pela professora Irene Brietzke em suas aulas de direção teatral no
Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (BRIETZKE, s/d).
61
2.2.1 Dramaturgia do texto
A análise da dramaturgia nesta dissertação levou em conta o projeto de encenação que
idealizei na época, porém, quase uma década depois, o meu olhar como pesquisador
aprofundou a análise, trazendo alguns autores para dialogar e estabelecer os conceitos
adequados para a abordagem do objeto. Desse modo, antes de mais nada, caberia conceituar o
termo. Conforme o Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis (1999), dramaturgia aparece com o
sentido comum de “compor um drama”, ou “a arte da composição de peças de teatro”. Pavis,
no entanto, deixa supor um sentido de crítica teatral e de vontade de estabelecer cânones
gramaticais, quando diz que dramaturgia é “a técnica (ou a poética) da arte dramática, que
procura estabelecer os princípios de construção da obra” (PAVIS, 1999, p. 113). A estrutura da
dramaturgia clássica, por exemplo, ainda conforme Pavis, constitui-se de elementos mais ou
menos padronizados: “exposição, nó, conflito, conclusão, epílogo”. Nesse mesmo
entendimento, Walter Ong, quando discursa sobre o enredo no teatro ocidental, refere-se a
“enredo linear progressivo” (ONG, 1998, p. 160), ou seja, o tipo de enredo que Aristóteles
(séc. IV a.C.) encontra no teatro grego quando pensa sobre ele na Poética (ARISTÓTELES,
2004) e que encontramos também no enredo do romance Juliana e Dom Jorge. Esse fato, por
si só, poderia colocar a dramaturgia do romance estudado dentro da chamada estrutura
aristotélica, ou seja, do Teatro Ocidental, de tradição grega e renascentista.
As marcas de oralidade encontradas no texto são importantes para entender o percurso
e o contexto social dessa produção coletiva, bem como as semelhanças com outras formas
narrativas orais. No entanto, para entender sua relação com outras formas dramatúrgicas da
tradição teatral, a pesquisa foi motivada a analisar o texto do romance conforme os
parâmetros oferecidos pelos estudiosos consagrados nos estudos dos textos teatrais, na falta
de estudos específicos para este caso. Nesse sentido, alguns estudiosos do teatro, tais David
Ball (1999) e Jean-Pierre Ryngaert (1996) afirmam que o texto e sua construção dramatúrgica
têm uma importância em si, independente da representação no palco.
Num primeiro momento, a pesquisa optou por David Ball, autor estadunidense norte-
americano que escreveu um guia para leitura de peças teatrais. Sua metodologia pareceu-nos
adequada para analisar o texto do romance em pauta porque se detém na dramaturgia textual e
debruça-se sobre textos de estruturas lineares tradicionais do teatro, com encadeamento das
ações dramáticas, como me parecia ser o caso do romance de Juliana e Dom Jorge. Uma
ação dramática compõe-se, segundo o autor, de dois eventos consequentes que, juntos, dariam
62
a forma dessa ação, aos que ele chama de “estase” e “intrusão”48. Para esse autor, as grandes
peças do teatro [ocidental] têm essa estrutura. Afirma: “no início, o dramaturgo apresenta o
mundo em estase” (BALL, 1999, p. 38). Cabe notar que esta é a situação apresentada na cena
de abertura do Dom Jorge, em que Juliana está sentada, a bordar, ou seja, tudo está em
repouso.
Mesmo concordando com Ball, ao ser aprofundada a análise, o autor pareceu
insuficiente para analisar a complexidade que se esconde sobre a simplicidade aparente do
texto. Era preciso ir além, integrar uma concepção mais condizente com os extraordinários
avanços que o teatro sofreu a partir do século XX, quando quase todos os elementos do teatro
são questionados. A pesquisa recorreu então a Eugenio Barba49, um dos grandes teatrólogos
contemporâneos, o qual dá à dramaturgia uma etimologia um tanto diferenciada; para ele,
dramaturgia é drama-ergon, o “trabalho das ações” na representação, ou “aquilo que diz
respeito ao texto (a tecedura) da representação” (BARBA, 1995, p. 68). O autor diz que
“texto” se refere tanto ao escrito quanto ao texto cênico, ou seja, o texto da representação,
expressado por todos os elementos do teatro: voz, corpos, objetos, espaço, luz e som: “numa
representação as ações (isto, é, tudo o que tem a ver com a dramaturgia) não são somente
aquilo que é dito e feito, mas também os sons, as luzes e as mudanças no espaço” (BARBA,
1995, p. 68). No entender de Barba, tudo o que acontece no palco são ações: “tudo que
trabalha diretamente com a atenção do espectador em sua compreensão, suas emoções, sua
sinestesia é uma ação” (BARBA, 1995, p. 68).
Eugenio Barba foi importante para alargar a compreensão da dramaturgia e da
encenação, porém, com relação à metodologia de análise de textos teatrais, a pesquisa optou
pelas técnicas propostas por Jean-Perre Ryngaert (1996), pela clareza pedagógica na
organização da matéria. Esse professor francês escreveu Introdução à análise do teatro, uma
obra importante para o ensino da análise da peça teatral. Ryngaert incorpora as aquisições do
teatro contemporâneo e discute as relações entre o corpo e o texto, além da recepção pelo
público.
48 Conforme Ball, “estase” é o estado de repouso que precede uma ação. A “intrusão” é esse elemento que vai
causar a ação e desencadear uma reação, assim por diante até uma nova “estase”, o que, segundo Ball, é “um
estado em que todas as forças se equilibram entre si, e que resulta em falta de movimento” (BALL, 1999, p.
37). Evidentemente, esse equilíbrio é precário, porque o tempo exige uma continuidade, através de um
detonador, que leva a um novo evento. Esse detonador, ou “intrusão”, é o pranto de Juliana. Poderíamos
dizer, seguindo o raciocínio do professor americano, que aqui começa a peça a mover-se, pois, “para que uma
peça comece, deve haver uma intrusão” (BALL, 1999, p. 39) que rompa o equilíbrio inicial e cause um novo
evento.
49 Eugenio Barba, italiano, é o fundador do Odin Theater da Dinamarca e um dos ideólogos do chamado
Teatro Antropológico.
63
Ryngaert, para quem a função da dramaturgia é tentar “deslindar as complexas
relações entre o texto e a representação”, toda obra de literatura dramática pode ser
“apreendida, em primeiro lugar, na sua materialidade, no modo como a sua organização de
superfície se apresenta sob forma de obra escrita”. Ryngaert constata que há uma unanimidade
em reconhecer o texto em versos como o que melhor expressa essa concordância entre as duas
formas textuais: a oral e a escrita, pois, mais do que o sentido literário buscado no texto
escrito, o “como” se diz é o que retemos na memória através de rimas, ritmos, assonâncias,
transposições e outros indícios. O autor diz também que o texto deve ser lido “com o mínimo
possível de preconceitos culturais e estéticos” (RYNGAERT, 1996, p. 47). O que, como foi
dito no caso em estudo, torna-se bastante desafiador.
Em suma, é possível analisar a obra por seu texto concreto, por suas divisões
semânticas, seus encadeamentos e a distribuição dos discursos que a estruturam. Assim,
Ryngaert, através da materialidade do texto escrito, aconselha-nos a desconstruir a obra em
seus vários elementos e suas relações, para poder abordar a dramaturgia do texto de teatro.
2.2.2 Um D. Jorge pode encobrir uma Juliana ou o senhor guerreiro feudal versus a filha
de Júpiter
De acordo com sua estratégia de análise do texto, Ryngaert aconselha-nos a começar
pelo título. Segundo ele, “o título anuncia um projeto de acordo com a tradição cultural”
(RYNGAERT, 1996, p. 37) em que está inserida a obra, ou seja, o título projeta uma
“dinâmica”, um “embrião de narrativa” que nos dá muitas pistas.
A pesquisa encontrou vários títulos no Brasil para o romance ibérico em estudo, entre
eles, Maria e Jorge, Sinhô Jorge e Juliana, D. Hélio e Maria Grácia, Armando e Irma, Rei
Dom Jorge, sendo o mais corrente, Juliana e Dom Jorge. Minhas primeiras impressões, ao ler
as diferentes variantes do romance Juliana e d. Jorge, foram que o título me remetia ao rol
dos nomes de casais heroicos, como Sansão e Dalila, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta e
outros. Intrigava-me, no entanto, no caso da manifestação do Pântano do Sul, cujo título é
simplesmente Dom Jorge, por que Juliana, a figura feminina, desapareceu do título50,
50 Curiosamente, há indícios de que na Espanha o romance é conhecido pelo nome da protagonista feminina e
não do cavalheiro: El Veneno de Moriana, como citei no capítulo primeiro.
64
diferentemente da maioria das versões compiladas no Brasil. E por que Jorge? Por que ele tem
essa apelação “Dom”?
Ryngaert diz que, às vezes, em lugar de anunciar, um título pode encobrir algo: “o
título é uma forma de anunciar ou de confundir” (RYNGAERT, 1996, p. 36). No caso em
pauta, o que nos é anunciado primeiramente é o atributo: “dom”. Dom tem conotação
aristocrática, é normalmente atribuído a um dignitário. Se observarmos, em muitas das
versões do romance Juliana e Dom Jorge no Brasil, o personagem masculino ostenta um grau
de honraria: Rei, Sinhô, Dom. Já o nome Jorge é bastante popular em nossa cultura. O santo
com esse nome é muito venerado tanto no catolicismo quanto nas religiões afro-brasileiras.
Jorge, segundo sua etimologia grega, significaria "o que trabalha a terra", ou "agricultor", o
que nos daria pistas de ser D. Jorge um senhor rural, talvez feudal, guerreiro?51
Juliana, o nome da personagem encoberta no título, se seguirmos a mesma fonte, pela
etimologia grega pode significar "aquela que tem os cabelos negros" ou "aquela com pelagem
escura", revelando sua possível condição inferior em relação ao fenótipo dominante na cultura
europeia, a mulher clara. Há, no entanto, outro significado para Juliana, relacionado com o
deus romano Júpiter. Nesse caso, Juliana seria a “filha de Júpiter”, colocando-a, desta feita,
em status semelhante ao de D. Jorge. Embora hoje seja comum, o nome Juliana não tem a
mesma popularidade de Jorge no Brasil: Santa Juliana é uma desconhecida da maioria. Ou
seja, pode-se concluir que há um contraste entre o nome de Jorge, que ostenta poder e fama, e
Juliana, que esconde dubiamente poder e fragilidade/inferioridade.
2.2.2.1 Entre a farsa e o melodrama
O título revela, muitas vezes também, o gênero dramático da obra. Ryngaert (1996)
lembra que até pouco tempo se anunciava o título e o gênero da peça juntos. Hoje, no teatro
contemporâneo, diz Ryngaert, é mais difícil de perceber o que o título encerra ou mesmo o
gênero em que se enquadra. A própria classificação dos gêneros tornou-se difícil no teatro
contemporâneo. Na Idade Média, por exemplo, diz o autor, não existia a preocupação dos
51 Segundo o Dicionário de Nomes Próprios, disponível na internet,
“Jorge tem origem no nome grego Geórgios, que deriva da palavra georgós, formada pela união dos termos
gea, que significa "terra" e érghon, que quer dizer "trabalho" e significa “aquele que trabalha na terra” [...] a
versão em português surgiu apenas no século XVI, em Portugal [...] É nome de um dos santos mais
venerados no catolicismo, padroeiro de diversos países, como Inglaterra, Portugal, Catalunha e Lituânia,
além de várias cidades no mundo [...] [São Jorge] É conhecido mundialmente por ter vencido uma luta com
um dragão. Chamado de “São Jorge Guerreiro” é reverenciado pelo catolicismo, também é considerado um
santo protetor na umbanda e no candomblé (DICIONÁRIO DE NOMES PRÓPRIOS, 2016).
65
gêneros e, portanto, os mistérios, milagres, as farsas, as moralidades52 conviviam lado a lado e
mesclavam-se.
No entanto, Ryngaert revela também que, antes do final do século XX, “o respeito
pelos gêneros [dramáticos] impunha uma espécie de tradição dos títulos” (RYNGAERT, 1996,
p. 37), e que os títulos das tragédias com o nome do herói ou da heroína, como Hamlet,
Macbeth, Andrômaca, Medeia, revelavam a celebridade e a grandeza do personagem. Diz o
autor: “Nada mais é dito e é como se isso bastasse. O laconismo do título corresponde à
celebridade e à grandeza do herói” (RYNGAERT, 1996, p. 36)53. Nesse caso, Dom Jorge
colocar-se-ia ao lado da comédia Dom Juan, pelo que é dito, e pela tragédia Medeia, pelo que
está oculto no título? As evidências apontam para uma forma situada nos interstícios desses
dois gêneros.
Há anos, durante minhas pesquisas como diretor do Dom Jorge, ao descobrir que
aquela história que me foi contada era uma das inúmeras variantes de um antigo romance
chamado Juliana e Dom Jorge espalhadas pelo Brasil, minhas primeiras impressões acabaram
influenciando todo o trabalho. As primeiras impressões são como talismãs, diz Dagostini
(2007), e são igualadas a um termômetro, ao qual todo diretor deveria recorrer durante o
processo da montagem da obra. Minha intuição de artista apontava para um estilo entre a
farsa e o melodrama. Os espetáculos que resultaram não desmentiram minha intuição.
A farsa54 revelou-se quando o Dom Jorge foi apresentado para a comunidade pela
primeira vez, e o melodrama55 prevaleceu na apresentação no palco italiano do Teatro da
UBRO, no centro de Florianópolis. Não havia apenas intuição, eu percebia que o melodrama
como gênero dramático já estava presente no imaginário das idosas da Armação, na
concepção que tiveram do espetáculo, por meio, não do teatro, mas muito provavelmente pela
influência da estética melodramática dos filmes e novelas da televisão. Minha percepção
encontrou fundamento na leitura de Jean-Marie Thomasseau (1995), em sua obra O
Melodrama.
52 Mistérios, moralidades, milagres, farsas e pantomimas eram gêneros dramáticos do teatro popular da Idade
Média (BERTHOLD, 2004).
53 Thomasseau (2005), também se referindo aos títulos do teatro, diz que as comédias têm títulos mais jocosos,
com nomes de tipos ou condições sociais. Exemplos: As Alegres Comadres de Windsor, O Avarento, O
Burguês fidalgo, Médico à força, Arlequim, servidor de dois amos.
54 Farsa, segundo o Dicionário de Teatro, era um gênero popular cômico na Idade Média, caracterizado por
um texto curto, pela crítica social, pela autoironia, pelas trapaças, peripécias cômicas, grosserias e violência
(BERTHOLD, 2004).
55 Melodrama é um gênero dramático surgido em fins do séc. XVIII e que se tornou muito popular em
seguida, tendo influenciado até hoje diversas produções cênicas, sobretudo no cinema e na televisão
(THOMASSEAU, 2005).
66
Esse gênero dramático merece um esclarecimento, pois o termo melodrama adquiriu
conotações pejorativas, como bem coloca Thomasseau, um dos maiores especialistas nesse
gênero. Ele diz que há muitos mal-entendidos, o primeiro deles pelo fato de ter enorme
sucesso junto ao povo, por ser teatro “popular”.
O melodrama, desde seu surgimento, foi associado à idéia de teatro popular, ou
popularesco, e a cada vez em que se utiliza o termo “popular” com relação ao teatro,
este sofre, imediatamente, um pré-julgamento desfavorável. Hoje em dia, fala-se
mesmo a seu respeito como uma paraliteratura, uma a-literatura ou uma subliteratura
(THOMASSEAU, 1995, p. 10).
Thomasseau denuncia também os julgamentos que são feitos a este gênero, por
critérios estilísticos literários, sem serem capazes de olhá-lo como uma vigorosa produção
popular que dispensa a noção de obra-prima teatral como a concebe a história do teatro e os
críticos. Um vigor que, desde a Revolução Francesa (século XVIII), cresce no gosto das
plateias e que encontra seu apogeu na indústria cultural de massas, influenciando
consideravelmente a produção de filmes e novelas televisivas.
Muitas das características do melodrama enumeradas por Thomasseau são encontradas
no Dom Jorge: a música e os versos cantados, a influência da tragédia e do drama burguês, o
moralismo exemplar e o “gênero romanesco”, representado pela literatura de folhetim, ou
cordel, como chamamos no Brasil. Conforme Thomasseau, o folhetim forneceu a maioria dos
roteiros para os melodramas. Como temos conhecimento, uma das possibilidades de
transmissão do romance Juliana e Dom Jorge podem ter sido os cordéis. Essas brochuras
cruzaram o oceano e que, após diversas transformações, teriam permanecido em brincadeiras
infantis para, finalmente, na modernidade, no sul da Ilha de Santa Catarina, sucumbir ao apelo
do melodrama e do “resgate cultural” e realizar-se como teatro.
2.2.2.2 Decupagem ou divisão em partes
Além da análise do título e do gênero, Ryngaert aconselha-nos também a dividir o
texto em suas partes, o que ele chama de decupagem, a qual é uma “maneira de apreender o
real, organizando-o” (RYNGAERT, 1996, p. 40). Ele explica que os autores teatrais56
utilizam-se principalmente de divisões de tempo e espaço, que as grandes partes de um texto,
na dramaturgia tradicional, dividem-se em atos, e estes, em cenas, e poderíamos continuar
56 Aqui Ryngaert refere-se a autores de teatro tradicionais, e nesse sentido não nos debruçaremos sobre o
teatro contemporâneo que colocou todos esses conceitos em xeque e deu uma liberdade muito grande aos
autores.
67
dividindo em subcenas, quadros e outros. Já a visão de Nascimento (1964) concebe-as em
forma de segmentos temáticos, isto é, aquela divisão que, conforme as palavras do autor,
“encerra um conceito, um diálogo, uma descrição; corresponde à cena na peça teatral”
(NASCIMENTO, 1964, p. 65).
Assim como eu, Stanislávski, segundo Nair Dagostini, prefere a divisão em
“acontecimentos”, os quais levam em conta o contexto, a ação e os conflitos dos personagens.
Na parte de sua tese de doutorado em que trata de como Stanislávski aconselha a divisão do
texto, Dagostini diz: “o diretor tem de selecionar as circunstâncias mais importantes que
originam os acontecimentos e que entram em choque com os mesmos" (DAGOSTINI, 2007,
p. 44). No caso do Dom Jorge, a circunstância mais importante é a iminência da traição, que a
carta traz como notícia. É a que vai gerar todos os acontecimentos: o choro de Juliana, a
reprimenda da mãe, a jura de vingança e, com a confirmação pelo próprio namorado/amante,
o assassinato final e a prisão. A partir dessa circunstância principal dada, cada personagem
terá uma linha transversal de ação e de contra-ação que vai realizar seus superobjetivos. Ou
não vai, fracassando. Essas questões serão retomadas quando abordarmos as personagens.
2.2.2.3 Segmentos temáticos: a divisão de Bráulio do Nascimento
Pela perspectiva da Linguística e da Literatura Oral, o artigo de Bráulio do
Nascimento é um exemplo de estudos analíticos de textos transcritos de formas orais
tradicionais. Sua importância nesta pesquisa cresce ainda mais por ter ele se utilizado do
romance Juliana e Dom Jorge para essa análise. Como seu objetivo era entender os processos
de variação dos romances tradicionais, o texto por ele analisado é na prática a “média” de
quarenta e sete57 outros, todos versões do romance Juliana e Dom Jorge encontradas no
Brasil.
Ainda que sua perspectiva esteja mais focada na linguística e na formulação de
parâmetros que expliquem a variação dos romances tradicionais, Nascimento não se furta em
constatar a evidência entre as divisões semânticas do texto com as de cenas de peças de teatro,
ambas centradas na ação, como demonstrou o autor. Nascimento afirma a estreita relação
existente entre o segmento temático e a estrutura verbal. Por definição58, parece não haver
57 Bráulio do Nascimento, em seu artigo premiado, Processos de variação do romance (1964), descreve um
estudo que empreendeu acerca desses processos, utilizando-se como estudo de caso o romance Juliana e
Dom Jorge, do qual recolheu 47 versões, em nove Estados do Brasil, uma delas no litoral catarinense.
58 O verbete “verbo”, no sentido gramatical, quer dizer “Palavra que designa ação, estado, qualidade ou
existência de pessoa, animal ou coisa”. Já “semantema” é um termo da Linguistica e refere-se a “elemento
68
dúvidas de que o verbo é a categoria gramatical que melhor representa a ação. Em sua análise,
Nascimento verifica que, nesse romance em pauta, há uma grande predominância de verbos,
(55%), seguido dos substantivos (41%) e finalmente os adjetivos (4%).
No Dom Jorge do Pântano do Sul foram encontradas as seguintes proporções: 51,92%
de verbos, 40,38 % de substantivos e 7,70% de adjetivos, em que se pode notar bastante
semelhança com a média dos textos analisados por Nascimento. O autor diz que “o verbo é o
semantema de maior importância no romance Juliana e d. Jorge59” (NASCIMENTO, 1964, p.
85). Nascimento também salienta a pobreza de adjetivos, o que seria uma característica dos
romances. Nesse sentido, ele cita o grande folclorista ibérico Ramón Menéndez Pidal: “os
romances se distinguem por uma extrema simplicidade de recursos, que se manifesta ora na
abstenção e eliminação de elementos maravilhosos ou extraordinários, ora na versificação
assonantada e monorrítmica”60 (MENENDEZ PIDAL, apud NASCIMENTO, 1964, p. 83). Ou
seja, pode-se deduzir que sua forma compacta, essencial, baseado antes no verbo que no
adjetivo, é comparável à forma teatral, em que as qualidades são muito mais mostradas em
cena do que descritas no texto.
Bráulio do Nascimento reconhece a divisão do texto do romance Juliana e Dom Jorge
em “segmentos temáticos”, as quais coincidem com as “cenas do teatro” (NASCIMENTO,
1964, p. 65). Essas partes foram assim nomeadas por Nascimento:
Dialogo inicial: mãe e filha
Censura materna
Jura de Juliana
Aparição de D. Jorge.
Saudação
Inquirição de Juliana. Resposta de d. Jorge.
Ida ao sobrado
Reação ao veneno
Lamentação de d. Jorge. Resposta de Juliana
Palavras de vingança de Juliana
Dobrar do sino
Prisão de Juliana
2.2.2.4 A divisão escolhida (2007)
que encerra o significado da palavra” (FERREIRA, 1975).
59 Transcrevo aqui a grafia Juliana e d. Jorge como é utilizada por Bráulio do Nascimento (1964).
60 Tradução livre, do original: “los romances se distinguen por uma extrema sencillez de recursos, que se
manifesta ora em la abstención y eliminación de elementos maravillosos o extraordinarios, ora en la
parquedad ornamental, en la adjetivación reprimida, ora en la versificación asonantada monorrima”.
69
Minha memória aponta que a base de tudo, no momento de planejar a encenação da
peça, foi o texto, Anexo A, que resultou da transcrição dos versos gravados no vídeo Dom
Jorge do Pântano do Sul: recitado (ALANO, 2014). Esse também foi meu primeiro dilema:
como transcrever as palavras cantadas, deformadas pela pronúncia e pela prosódia,
transformá-las em símbolos grafados que possam ser inteligíveis para a maioria do público.
Às vezes, quando eu pensava ter transcrito razoavelmente um dos diálogos e mostrava a
minhas alunas, críticas apareciam contestando uma palavra ou mudando outra. Por essa razão,
após a pré-estreia, face às transformações que o texto ia sofrendo, decidi arbitrariamente uma
versão oficial, com data determinada: 03/11/200761, a ser seguida por todos. Foi esse texto o
utilizado para o espetáculo final, no teatro da UBRO.
Optei por dividir o texto pelos acontecimentos principais, de maior amplitude temática
do que os segmentos temáticos de Bráulio do Nascimento. A práxis, mais do que a teoria,
determinou a escolha, e optei por uma divisão em menor número de partes, o que facilitaria a
memorização durante os ensaios. No entanto, ao ler Nair Dagostini (2007) expondo
didaticamente o método de análise teatral de Stanislávski, dei-me conta de que as propostas de
análise ativa do russo coincidiam com algumas de minhas escolhas e que, dessa forma,
concluo que agi de acordo com a bagagem teórica de minha formação acadêmica como
diretor de teatro62. Como evidência, aponto o fato de fazer uma divisão mais ampla no início,
de apenas cinco cenas, as quais correspondem em muito com os principais acontecimentos
indicados por Stanislávski em seu método de análise ativa. Como diz Dagostini, Stanislávski
recomendava: “não esmiuçar os acontecimentos no início da análise, mas perceber a obra em
sua totalidade através dos principais acontecimentos” (DAGOSTINI, 2007, p. 50).
Dagostini enumera os quatro principais acontecimentos segundo a ótica de
Stanislavski: o acontecimento inicial, que situa a obra, dá seu contexto e apresenta as
primeiras circunstâncias dadas; o acontecimento fundamental, que apresenta o conflito e
deslancha a história; o acontecimento central, que resume o ápice do conflito e o
acontecimento final, que abrange sua solução ou não. Eles coincidem bastante com a minha
divisão.
O acontecimento inicial de que fala Stanislávski tem paralelo com o prólogo da
encenação do Dom Jorge, em que se apresenta o cenário, o contexto e a ação da personagem:
sentada em sua sala a bordar. A cena termina com a chegada do mensageiro.
61 No entanto, isso não impediu que a cada novo ensaio, já agora em 2016, haja polêmica quanto a uma ou
outra palavra que não cabe na prosódia.
62 Durante os anos 1990, frequentei o curso de Bacharelado em Direção Teatral do Departamento de Artes
Dramáticas Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
70
CENA 1 – A NOTÍCIA - É o acontecimento fundamental, em que se estabelece
toda a intriga e o conflito principal da peça. São apresentadas as duas personagens: mãe e
filha, suas relações e os conflitos entre elas e entre o namorado/amante de Juliana. É nessa
cena também que o plano de vingança será elaborado.
CENA 2 – A CHEGADA DO D. JORGE - Apresenta-se o cavaleiro e
confirma-se o crime de traição. O plano é posto em prática e D. Jorge é envenenado.
CENA 3 – A VINGANÇA - Este é o acontecimento central, o clímax da peça.
É a cena do ágon entre o casal, que termina com o triunfo de Juliana a ufanar-se de sua justiça
vingativa.
CENA 4 – JUSTIÇA! - É o acontecimento final, em que deve desembocar a
ideia do autor e o superobjetivo do diretor, conforme afirma Dagostini (2007, p. 50). Na peça,
a justiça da sociedade não é a justiça do indivíduo, e a família do morto levanta-se clamando
por punição ao crime. A polícia ouve o clamor e cumpre seu dever, prendendo a moça. Há
então um falso final.
CENA 5 – CENA FINAL - Essa cena é uma espécie de deus ex-machina, em
que é dada nova “vida” a D. Jorge, pelas flores que brotam de sua cova, dando ao final
abertura para outros significados. O superobjetivo das autoras, que eram também as
performers e influenciavam na direção do espetáculo, revelou-se com a criação da cena final,
que não possui a mesma lógica dentro da ação principal e não é indispensável na história. O
superobjetivo inicial do grupo, que me parecia dizer: - eu quero refazer a história como era
antigamente, transformou-se em querer ressignificar a história, dando um cunho espiritual ao
final. Seriam essas flores símbolo do amor que ele tinha pela jovem? Seria o símbolo da vida
que sempre deve recomeçar? Os significados ficaram em aberto. Pessoalmente considero esta
cena uma certa traição que é feita à mulher, pois Juliana é punida com a prisão, mas o homem, D.
Jorge, é redimido de sua culpa, transmutado em flor. Ou seja, o conservadorismo machista parece
persistir também entre as mulheres.
Cabe aqui ressaltar, além da capacidade das mulheres da Armação em desempenhar
seus papéis sobre o palco, sua desenvoltura como autoras dramatúrgicas. Destaco abaixo duas
de suas criações textuais, duas cenas importantes, pois a de abertura e a de encerramento,
criadas por essas mulheres que não existiam nos textos compilados do romance, nem, pelo
que consta, havia na brincadeira de dom-jorge.
Uma cena de abertura, à guisa de prólogo, está implícita no texto, e a importância do
que ocorre nela fez com que o grupo quisesse representar a cena, assim transcrita:
71
(Juliana borda. Quando chega um mensageiro).
MENSAGEIRO – Ó de casa! Carta para a senhorita Juliana.
JULIANA – (na medida em que lê a carta primeiro empalidece e
depois começa a chorar)
A invenção da cena implicou a criação de um novo personagem e suas falas: o
Mensageiro, o que também resolvia o problema surgido, de encontrar papéis para mais
participantes. Foi idealizado então um espaço familiar, a sala onde Juliana está sentada,
conforme diz o texto: “- Deus te salve, ó Juliana, em tua sala sentada”. Esse espaço
permanece até antes da cena final. Juliana está entretida a bordar, talvez espere alguém; com
relação à ação dramática, a cena está em repouso, quando surge o portador da notícia que vai
desencadear toda a intriga. Da mesma maneira, a cena final também foi elaborada pelo grupo
Alegria de Viver.
CENA FINAL. Sai o cenário e todos se juntam ao coro.
CORO - Já morreu o seu Dom Jorge,
Já morreu não se casou.
Na cova do seu Dom Jorge
Nasceu um jardim de flor (Anexo B).
Não foi possível detectar a origem dessa estrofe, para mim foi uma surpresa. Poderia
ter sido ouvida em algum outro lugar ou sido inventado pelas mulheres do grupo Alegria de
Viver, ou mesmo pelo grupo de idosos do Pântano do Sul63, onde também cantam esse final,
pois os depoimentos são contraditórios. No entanto, a pesquisa avalia que esse dado não é
relevante para o entendimento da proposta.
2.2.3 Temática e enredo
A temática do romance Juliana e Dom Jorge, tão difundido pelo Brasil, é
considerada pelo folclorista brasileiro Rossini Tavares de Lima, em sua obra Romanceiro
folclórico do Brasil (1971), um valiosíssimo resto64 de um ciclo vetusto. O autor afirma que o
assunto desse romance seria muito arcaico, e que abrangeria todo o continente europeu, além
de fazer parte de um conjunto temático comum a outras narrativas. Nesse sentido, todos os
romances em que uma mulher ciumenta mata seu próprio mas desleal amante, ou em que a
63 O grupo de idosos do Pântano do Sul ficou conhecido depois de a pesquisa ter começado. Mais adiante serão
analisadas as entrevistas que fiz com as participantes desse grupo.
64 Resto aqui revela a concepção dos folcloristas, que acreditam estar lidando com oralidades que estão
desaparecendo, e que merecem ser “preservadas”, “resgatadas”, enquanto outros autores entendem que as
culturas populares estão sempre em transformação, como vimos no primeiro capítulo.
72
cunhada aniquila o noivo da irmã, formam um conjunto de mesma raiz temática (LIMA, 1971,
p. 50).
Bráulio do Nascimento (1964) diz que a temática do romance Juliana e Dom Jorge é
arquetípica, ou seja, há nessa história de paixão e vingança uma essência temática que se
perde nos tempos. Essa temática é própria do mundo feminino, segundo Santos, a qual
defende “que os romances fazem parte do mundo das mulheres ou, pelo menos, de lá tenham
partido” (SANTOS, 2005, p. 89)
A temática ou o material temático aqui referido corresponde à fábula, no sentido que
lhe dá Ryngaert (1996), da qual o dramaturgo se utiliza para construir sua obra teatral.
Segundo Ryngaert, a fábula é o material, mitológico ou simplesmente inventado, do qual o
dramaturgo apossou-se para construir sua obra teatral: “nesse caso, a fábula faz parte de uma
espécie de reservatório de histórias inventadas, inscritas na memória coletiva” (RYNGAERT,
1996, p. 54). Algumas dessas fábulas foram apropriadas pelo teatro, como é o caso das
míticas sagas familiares gregas que geraram várias tragédias65. É no mesmo sentido que
Tristão e Isolda se insere nessa linhagem. A análise da fábula que inspira o Dom Jorge sugere
a possibilidade de incidência de duas vertentes: a dos romances em que o tema refere-se à
mulher que mata o amante infiel, ligado à cultura oral, e a vertente teatral, ligada à cultura
escrita, que poderia ter analogia com Dom Juan e Medeia.
O enredo é a maneira como a fábula é contada, como diz Ryngaert (1996) e Dagostini
(2007), ou trama, como prefere Eugenio Barba (1995). Segundo o autor francês, a análise do
enredo revela como a ficção é organizada por suas ações, isto é, pela maneira como são
concatenadas e tornam-se ações dramáticas. Essa maneira é o que atesta a qualidade do
enredo. Reforçando essa perspectiva, Barba afirma que importa muito para a construção do
texto dramatúrgico “como” estão entrelaçadas essas ações, ou seja, a trama, da qual existem
dois tipos: a concatenação (causa e efeito) e a simultaneidade ou complexidade de ações.
Como foi possível observar66 no texto do romance estudado, toda a ação causa uma
reação, e assim se desenvolve a trama em sequência linear, ao mesmo tempo em que não se
percebe na peça uma complexidade de ações, como ações paralelas desenvolvendo-se, ou
múltiplas consequências de ações. Comparando com outros romances compilados por Silvio
Romero (1985), como Bela Infanta, D. Maria e D. Arico, Xácara do Cego, Branca Flor, A
65 Refiro-me, por exemplo, à saga dos Labdácidas, que gerou algumas tragédias: Édipo Rei, Edipo em Colono
e Antígona, de Sófocles; Sete contra Tebas, de Ésquilo, e As Fenícias, de Eurípedes.
66 A estrutura do enredo foi testada pela pesquisa. Mais adiante no capítulo, será relatado o exercício que
Ryngaert propõe para a análise do enredo, em que se narra apenas as ações mostradas dentro e fora do palco,
como se fossem didascálias. Nesse sentido, também o exercício de extases e intrusões proposto por David
Ball foi testado.
73
nau catarineta e outros, notamos que esses romances são muito mais extensos, com
complexidade de ações, quase sempre alternam diálogos com narrativas, muitos recorrem a
elementos fantásticos, histórias longínquas, de outros reinos, personagens distantes ou a
epifanias. Ora, em Dom Jorge, ao mesmo tempo em que quase toda a narrativa cede lugar em
prol do diálogo, o que se mostra em cena parece ser muito próximo do cotidiano das
praticantes: a mãe e a filha em atitudes caseiras, em sua sala sentada, a outra no interior da
casa. O elemento “romanesco” é a aparição de D. Jorge, montado, de chapéu e botas, vindo de
algum lugar distante.
Mais uma vez, a conclusão aponta para a dualidade do objeto estudado. Entre a
oralidade do romance e o erudito do teatro, a construção da trama de Dom Jorge revela-se
predominantemente como uma típica estrutura de causa e efeito, com começo, meio e fim,
ainda que apresente marcas de oralidade evidentes em seu corpus. Marcas, como, por
exemplo, sua trama bastante esquemática e a importância dramatúrgica das personagens.
2.2.4 Personagens e seus conflitos
Alvanita Almeida Santos (2005) afirma que, na narrativa oral, a personagem tem uma
importância estrutural, já que os romances são caracterizados por sua escassez de elementos,
tais a descrição física ou de comportamentos. Assim também são raras as indicações de tempo
ou cenário; desse modo, é na performance que se concentra toda a energia da história. A
autora escreve: “nos romances, são as personagens responsáveis pela composição da história.
É somente a partir delas que podemos compreender o fio condutor da narrativa” (SANTOS,
2005, p. 117). Nesse mesmo sentido, Aline Carrijo Oliveira (2012) reforça a importância da
personagem na narrativa oral: “a narrativa dá-se de forma linear e sintética, e o foco, na
maioria das vezes, encontra-se em um único personagem” (OLIVEIRA, 2012, p. 9).
As personagens de Dom Jorge serão tratadas a seguir, por ordem de entrada. Quem
abre a peça é Juliana. Uma jovem em idade de casar que, na variante do Pântano do Sul,
desaparece do título. Está na penumbra do interior de sua casa. É a protagonista principal, o
que não significa forçosamente que seja a heroína67, isto depende de quem vê. Enfrenta dois
conflitos externos principais: a desaprovação da mãe, isto é, da sociedade com suas regras, e a
traição do amante/namorado, com todas as consequências sociais que isso possa representar.
67 Herói aqui se refere ao personagem por quem o público se identifica, “torce” por ele. Acredito que na
infância, na brincadeira de dom-jorge houvesse uma tendência a ser Juliana a heroína, porém, no caso das
idosas que a recriam em forma de teatro, pode ser que o herói seja D. Jorge.
74
Um conflito interno também se evidencia, já que a personagem transforma-se durante a peça.
Juliana encarna a mulher traída, vingativa e fatal. De todas, é a personagem mais complexa, e
suas ações o atestam: Juliana está feliz, espera seu amante/namorado, recebe uma má noticia,
chora, depois tenta disfarçar perante sua mãe, recebe uma reprimenda e encoleriza-se. Aqui é
operada uma grande mudança interior, pois ela planeja mentalmente sua resposta: jura a Deus
vingança e volta a esperar a chegada de D. Jorge; então, disfarça ante sua vítima, executa o
plano e triunfa, escarnecendo sobre o vencido. Sua ação, então, acaba; a partir daí, Juliana vai
sofrer a ação da Justiça e cai prisioneira.
Comparei-a, num primeiro olhar, à da tragédia grega clássica Medeia, de Eurípedes
(1982). Nessa história, Jasão, marido de Medeia, vai casar-se com outra mulher por
conveniência, repudiando-a. Ainda que a vingança da irada Medeia se efetue ao assassinar não
o amante, mas os dois filhos que tiveram, não é difícil imaginar o paralelo com a fatal Juliana.
Tudo, na época, levava-me a crer numa vulgarização de textos mais antigos, hipótese aceita
por alguns folcloristas, conforme citado por Lima (1971, p. 1), que acreditam que os textos
dos romances derivariam das canções de gesta medievais, o que é parcialmente contestado por
Santos (2005). A autora acredita que os romances com temática heroica, sim, teriam essa
origem, porém os romances com temática de amor, traição e vingança, “elementos específicos
do mundo das mulheres” (SANTOS, 2005, p. 31), pertenceriam a outra tradição, a das
narrativas orais femininas.
Os questionamentos surgiram após a leitura de alguns trabalhos, sobretudo o de
Santos. Questões quanto à classe social da família: seria uma família urbana, ou seja,
burguesa, ou uma jovem mantida por seu amante rico na cidade? Que relação haveria entre
Juliana e D. Jorge, teria Juliana perdido sua virgindade? Ou a vingança seria apenas pelo fato
de que o casamento era o centro da história das mulheres? A virgindade e o casamento,
segundo Santos, eram valores cultivados a partir da emergência da burguesia e de suas
práticas sociais, ou seja, na época em que se fixam esses romances, entre os séculos XVI e
XVII. Com o passar do tempo, esses valores foram sendo adquiridos pelas classes inferiores.
Não casar significava ficar à margem, assim, quando Juliana mata Dom Jorge, sua
vingança reflete a importância atribuída ao fato de não ter conseguido casar (na
Idade Média não havia a construção do amor). Não é por ele que Juliana mata, é por
ela mesma. O casamento, a partir da emergência da burguesia e suas práticas sociais,
também se articula à questão da virgindade da mulher. A moça que não era virgem
não tinha condição de inserção social” (SANTOS, 2005, p. 167-168).
A trajetória da moça leva a refletir sobre seu superobjetivo, ou seja, segundo
Stanislávski (DAGOSTINI, 2007, p. 29), a razão primeira de seus atos. Tudo leva a crer que a
75
moça é levada não por amor, mas por honra, que é o que mais preza, está disposta a tudo para
salvá-la. Seu maior temor e seu maior obstáculo é a queda de seu status social.
Personagem frequente em vários gêneros dramáticos, inclusive na tragédia, O
Mensageiro tem um pequeno papel, uma única aparição, porém de suma importância para a
trama. É a simples ação do mensageiro, ao entregar a carta com a noticia, o que desencadeia a
trama da peça. A importância dessa ação foi intuída pelas mulheres do grupo, porque criaram
uma personagem que não existia nas outras formas pesquisadas, inventando assim toda uma
cena à guisa de prólogo. Essa função do mensageiro, que em outras variantes é ocupada pelo
narrador, o qual fala no passado, transforma-se em pura ação no presente: entrar, chamar a
moça e entregar-lhe a carta.
A Mãe de Juliana é a coadjuvante que se preocupa e aconselha a filha, zelando por
sua reputação. Santos (2005), referindo-se aos romances com temática “feminina”, diz que,
embora a mãe não seja o tipo feminino mais presente, e que a jovem donzela, em idade de
casar seja a personagem com mais evidência, a mãe tem o papel de zelar pela filha:
A mãe não é uma figura central nos textos, [...] elas aparecem ao lado das filhas,
cuidam para informar o que devem fazer, seja confortando-a ou condenando-a, mas
sempre em papéis secundários […] Já a mãe de Juliana, em Juliana e Dom Jorge,
critica-a, dizendo-lhe que havia avisado que Dom Jorge não casaria com ela, mas
não é uma atitude hostil (SANTOS, 2005, p. 174-175).
A mãe de Juliana, com sua admoestação pouco agressiva, com certa ironia, é o
elemento que desencadeia a ira de Juliana, e que a levará a cometer sua ação extremada.
Apesar de realizar uma só ação, ela é decisiva na trama. Uma mãe que está preocupada com o
futuro da filha? Ou talvez preocupada com seu próprio futuro, já que D. Jorge parece ser o
único homem na trama, logo único sustento das duas.
O Coro, em Dom Jorge, tem algumas funções, primeiramente, comentar ou anunciar
os eventos, função próxima à do narrador ou do coro grego. Porém, ao repetir em uníssono
cada um dos versos cantados pelas personagens, torna-se também um amplificador do som e
um instrumento didático, pois dessa forma todos entendem e aprendem as palavras,
principalmente em apresentações em espaços alternativos, sem boa acústica, como costumava
ser. O coro, tal como foi encenado, é também o cenário, representando a própria plateia. O
coro vê o espetáculo, e como num espelho, reflete a plateia, porém com uma diferença, o coro
participa da ficção e dá fé à cena. O coro, segundo Oliveira (2012), “na tragédia clássica,
tinha um caráter coletivo, representava o povo, e era responsável por cantar as partes
significativas do drama” (OLIVEIRA, 2012, p. 9). No entanto, Luiz Felipe H. Piccoli (2012),
76
em seu artigo, afirma que essa concepção do coro como sendo a voz da sociedade ou como o
espectador ideal, conforme consagrado por Schlegel, é contestada por Nietzsche:
O coro não pode ser entendido como espectador ideal, já que ele não age como um
espectador e sim como um ator. O coro faz parte do espetáculo, acredita
efetivamente no que vê à sua frente, tomando a cena por verdadeira, age de acordo
com o enredo, mesmo assim em geral não interfere no curso dos acontecimentos
presentes na cena, limitando-se a comentar, anunciar, ou então lamentar os
acontecimentos que testemunha no palco (F. NIETZSCHE apud PICCOLI, 2012, p.
75-76).
Ao que parece, esse é o caso do coro em Dom Jorge, o que fica inclusive reforçado no
Teatro da UBRO, quando o coro assumiu explicitamente a condição de personagem. Ele foi
acrescido, desta feita, de uma nova função, agindo sobre a cena. O coro, acrescido das outras
personagens, em procissão68 desloca-se e joga flores sobre a cova do defunto, numa atitude
simbólica, que deixa dúvidas sobre sua intenção. Estaria o coro naquele momento
representando a sociedade, e, com esse gesto, perdoando os erros do criminoso? Ou a
intenção das mulheres foi a de amenizar uma cena final que lhes pareceu por demais
inadequada? Nesse sentido, cabe notar que o contexto da produção do espetáculo foi o da
igreja e da escola, instituições pedagógicas conservadoras, e o enredo da peça não seria
exatamente o que se pudesse considerar “edificante”.
A personagem D. Jorge, a qual arrebatou o título da obra, apresenta-se como um
cavaleiro, portanto de botas e chapéu69, provavelmente um cavalheiro, pois a montaria sói ser
signo de nobreza, principalmente quando porta uma espada. Pode-se pensar em um senhor
rural, que mantém residência70 para a amante na cidade. Afinal, não existe a figura do pai,
nem de irmãos de Juliana, ele é o único homem na vida dela. Há, pois, um fascínio pelo
personagem, ele carrega uma aura de poder. Sua atitude pode ser vista como arrogante e
debochada: vem contar sua infidelidade despudoradamente. O mancebo vem de fora, numa
posição dominante: cavalgando montaria. Seu superobjetivo poderia ser visto como: tirar
prazer às custas dos mais fracos. Sua ação central, que Stanislávski, conforme Dagostini,
chamava de linha transversal de ação, é adentrar num mundo social inferior para destruí-lo,
68 A ideia adotada nos ensaios seria esta: após o falso final, o cenário seria desfeito e todos os atores se
juntariam ao cortejo, no entanto, a cena não foi realizada e as personagens principais ficaram “congeladas”
em seus lugares, enquanto o coro jogava as flores sobre o corpo de D. Jorge.
69 O figurino e os adereços de D. Jorge se confirmam na brincadeira dom-jorge, em que todos os relatos
falam que o cavalo era representado por um pau, um bambu, o chapéu também existe, pois dona Zenaide,
quando relata o folguedo, tira o próprio chapéu na cena da chegada e cumprimentos. Nas apresentações do
grupo, Alegria de Viver aqui analisadas, ele usa botas longas, capa e espada, sendo o cavalo uma estrutura
portátil toda decorada que cobre dos joelhos à cintura do praticante. Uma máscara típica dos folguedos de boi
em Florianópolis e no Brasil.
70 Juliana habita com sua mãe um sobrado, uma moradia tipicamente urbana de dois pisos ou mais (VAINFAS,
2002, p. 676-678).
77
porque é mais forte, porém esse mundo volta-se contra ele e reverte o golpe. Sua ação, por
culpa de sua cegueira, leva-o à ruína, como todo herói trágico. Chegar, apear, saudar,
responder e anunciar a traição cometida; depois, sentar-se, aceitar o vinho e ser enganado,
beber, cambalear, estrebuchar, clamando piedade e morrer, teria ele chance de mudar seu
destino?
Talvez, no momento de aceitar o vinho, ele pudesse reverter a situação, mas sua
demasiada autoconfiança o impede, não concebe traição tamanha da parte de Juliana. A
insensibilidade de D. Jorge é tanta que ele não avalia a reação que poderia causar na moça ao
confirmar sua infidelidade:
Juliana - Ainda onte'ouvi dizer
que você ia casar
D. Jorge - É verdade, Juliana,
vim aqui te convidar (Anexo B).
D. Jorge não sabe que a moça já sabe da traição, portanto poderia ter escondido, ter
negado. Sua franqueza é chocante; ser infiel parece ser tão forte nele, que é como não se
importasse com as consequências. Ou seja, para D. Jorge não basta anunciar a Juliana seu
casamento com outra, mas convidá-la para a festa, como se quisesse que todos saibam de suas
infidelidades. Tudo isso reforça a identificação com o mito do Dom Juan
Dom Juan, outro infiel e debochado amante, imortalizado por Tirso de Molina,
dramaturgo renascentista espanhol, em sua peça Don Juan Tenorio, El Burlador de Sevilla
(MOLINA, 1986), tem um comportamento que se assemelha em certos pontos com o de D.
Jorge: ambos gostam de abusar de moças de classe inferior, casam-se com mulheres de classe
superior e sofrem uma punição exemplar. Essa história, que remonta aos narradores medievais
ou mesmo anteriores, também foi transcrita, como Tristão e Isolda ou Juliana e Dom Jorge, e
depois retomada por vários artistas de diferentes áreas, como, por exemplo, a peça Dom Juan
de Molière (1962) e a ópera Don Giovanni de Mozart e Da Ponte (MOZART, 1996). Dom
Juan, segundo o psicanalista Renato Mezan (1993), é um paradigma da amoralidade,
exemplificada na busca compulsiva desse homem pela conquista fátua de mulheres, as quais
abandona, desinteressado, imediatamente após ter sido conseguido seu objetivo: o prazer
sensual, prazer este que será muito maior se vier acompanhado de notoriedade pública.
A mãe de Dom Jorge – Em algumas variantes do romance, e também nos relatos
sobre a brincadeira infantil, a peça acaba com a morte de Dom Jorge e um sino que a
78
anuncia71, mas, na versão do grupo Alegria de Viver, o enredo continua. Após os brados do
coro que toma o lugar dos sinos, a mãe aparece para acudir e constatar a morte, o que a faz
clamar por justiça para seu filho. Ela surge do Coro, como todos os personagens coadjuvantes,
aliás. Essa personagem também é criação do grupo, movido mais pela necessidade de
aumentar a participação das colegas no espetáculo do que pela necessidade dramatúrgica. A
dramaturgia teve de adaptar-se a essa necessidade, e o resultado do quadro foi digno dos
melhores melodramas: a mãe ajoelhada, com o filho no colo, tal uma madonna, uma pietá
clamando: - justiça!
O Delegado e seus soldados – Os representantes da Lei e da Ordem são o Delegado e
seus soldados, em nosso caso apenas um. Têm a função de seus cargos: punir e restabelecer a
ordem. Também saem do coro, simbolizando sua pertinência ao povo, que tudo vê e
testemunha e de quem emana o braço policial. É interessante notar que não há indícios de que
essas personagens existissem na brincadeira dom-jorge, que originou a peça teatral. No
entanto, algumas variantes do romance compiladas evidenciam essa cena. Isso leva a pesquisa
a avaliar dois itens: que a idade, e também a modernidade, trouxeram consigo a noção de
senso de justiça e de punição, o qual levou as mulheres do grupo a inserirem essa cena; por
outro lado, os versos que o Delegado canta são conhecidos em outras variantes do romance
Juliana e Dom Jorge72. Isto pode indicar que houve uma influência além da brincadeira de
infância; seria por algum contato com alguém que conhecia outra versão do romance? Por
enquanto esse dado ainda é desconhecido.
2.2.4.2 Algumas considerações sobre os significados das personagens
Os significados que as personagens dessa história encerram podem ser diversos, porém
alguns aspectos observados revelam pistas. Levando em conta o contexto das comunidades
pesqueiras do Distrito do Pântano do Sul, a punição infligida por Juliana é ameaçadora para
os homens, pois são justamente as mulheres as responsáveis pela alimentação de seus maridos
e filhos. Por outro lado, a notória infidelidade do personagem D. Jorge pode apontar para a
desconfiança sobre os maridos, entre os quais muitos eram pescadores e outrora passavam
71 Na versão do romance 044, compilado por Bráulio do Nascimento em Linhares, ES, há uma estrofe assim:
-Bate o sino da matriz,
Ninguém sabe quem morreu.
- Foi Dom Jorge aquele ingrato,
quem matou ele foi eu (NASCIMENTO, 1964, p. 67).
72 Conforme a versão nº. 018, colhida por Bráulio do Nascimento (1964): “- Lá vem o delegado/com dois
soldados armados/Vem prender a Juliana/ que matou seu namorado”.
79
longos períodos em embarcações, distantes de suas esposas. A traição seria algo a ser
combatido pelas mulheres, e isso nos leva a pensar a peça como uma “guerra dos sexos”. Há
um sentido pedagógico que aponta os conflitos da comunidade, tentando solucioná-los pelo
teatro. Por isso as lições, que se perpetuavam em uma brincadeira “inocente”, levavam aquele
conhecimento através das gerações. Na contemporaneidade, no entanto, existe, nas mulheres
maduras, um relacionamento diferente com as personagens, que revela uma vontade de serem
ouvidas, valorizadas em seus corpos, um certo exibicionismo, com dignidade, com
criatividade. Não que as recíprocas não sejam verdadeiras: as crianças também queriam
exibir-se para os coleguinhas, e as idosas também querem passar uma “mensagem” para o
público.
2.2.5 Elenco
Durante o processo de encenação, pouco nos detivemos, minhas alunas e eu, na
construção de personagens, com diretrizes estilísticas ou fichas de composição de
personagem, como no teatro seria normal. As atrizes foram livres para interpretá-las como
lhes parecesse necessário, pois, afinal, quem detinham o conhecimento de como fazer eram
elas. O processo de ensaios não permitia um aprofundamento nas técnicas de representação,
estávamos mais preocupados com os prazos da montagem e com a preservação da memória
coletiva.
Ao deparar-me com a tarefa de levar minhas colaboradoras, como prefiro chamá-las,
ao palco do teatro, eu objetivava em meu trabalho de encenador, principalmente: clarear a
linguagem cênica, ou seja, redesenhar as dimensões dos espaços de encenação e as trajetórias
dos deslocamentos, treinar a projeção vocal e a consciência cênica das atrizes, para que
fossem bem visíveis e audíveis por todos os espectadores e assim pudesse expor a história
com clareza. Por outro lado, procurei ter sempre consciência do meu trabalho como arte-
educador, como professor de teatro de pessoas idosas, com tudo o que isso possa significar
quanto a dificuldades físicas, de marginalidade dessa faixa etária, de deficiência de
autoestima. Cauteloso com a possibilidade de minha interferência na criação do espetáculo,
que considerava obra delas, meu caminho em busca da interpretação adequada para os papéis
foi sendo traçado em cima das escolhas do material cênico que minhas alunas me ofereciam
durante os ensaios e exercícios.
O elenco formou-se, em geral, por consenso. Os papéis foram negociados entre as
alunas, com pouca interferência de minha parte. Juliana já era encarnada por Leonice desde o
80
princípio; a mãe, originalmente o papel de dona Madalena, foi dado a Teresa, pois d.
Madalena já não participava mais do grupo. Os outros papéis foram distribuídos em aparente
unanimidade, mas um certo conflito se deu com o papel do D. Jorge. O personagem foi criado
para o teatro por um rapaz da congregação da capela católica da Armação, Mauri, que atuou
algumas vezes e saiu do grupo. Quem se intitulou no papel foi Denair, filha de Demésia73,
porém Denair não podia ir a todos os ensaios por causa do seu trabalho em um restaurante do
Pântano do Sul. Sendo assim, decidimos que Neusa assumiria o papel alternadamente,
ensaiando e apresentando-se uma de cada vez. A solução não foi totalmente satisfatória,
porém os resultados o foram, e cada uma teve seu momento no papel de D. Jorge frente ao
público.
2.2.6 Elementos cênicos
Escolhi dois pares de elementos cênicos para compor a análise: o cenário e os
figurinos de uma parte, que servem para situar o espectador no tempo e no lugar, além de
compor as personagens; de outra, a iluminação e a música, que são alguns dos elementos
responsáveis pelo clima e o ritmo que se deseja dar a um espetáculo.
2.2.6.1 Cenário & figurinos
O espaço de representação do Dom Jorge com a mesma configuração que as mulheres
o criaram, ou seja, semicircular, com os personagens evoluindo no centro, foi a inspiração
para a criação do cenário. Tanto elas propuseram essa configuração nos ensaios como as fotos
que me forneceram depois comprovaram. Limitei-me a definir com precisão as dimensões
desse espaço e as marcações de deslocamento. Assim, para o coro, que se dispunha em
segundo plano, sem uma forma definida, propus que se formasse um semicírculo cerrado no
fundo da cena, formando um volume compacto. Com essa configuração, o coro - todos com a
mesma indumentária – transforma-se na rotunda74, que se abre para a passagem dos que
devem entrar em cena e que estavam na segunda fila. A caracterização do lugar é muito
simples: representa a sala de Juliana, o que pode ser feito por uma mesinha coberta com uma
73 Demésia era quem encarnava o personagem Dom Jorge no grupo de idosos do Pântano do Sul. Em
entrevista, foi-me relatado que esse grupo assistiu a uma representação do Dom Jorge do grupo Alegria de
Viver, da Armação, na festa do folclore do Pântano do Sul (ver as fotos), e, a partir dali, incorporaram a peça
em seu repertório de atividades lúdicas.
74 Rotunda, panejamento que se coloca ao fundo da cena.
81
toalha e duas cadeiras. Como adereços de cena: um bastidor/almofada de bordado, uma carta,
um cálice com vinho. O figurino dos personagens principais não exige muito, pois Juliana e a
mãe estão em seu cotidiano, somente a personagem D. Jorge exige uma caracterização mais
complexa. Sendo cavaleiro, necessita botas e chapéu, talvez espada, mas sobretudo uma
montaria.
Nos espetáculos anteriores a 2007, como se pode observar nas fotos das duas
apresentações realizadas75, percebe-se que o figurino é único para as mulheres, as quais
utilizam os mesmos vestidos que usam para as danças folclóricas. A personagem D. Jorge tem
figurino especial, num estilo histórico impreciso, que pode remeter tanto ao romantismo do
século XIX quanto aos desfiles das escolas de samba.
À medida que foram sendo criados novos personagens, os figurinos ficaram mais
complexos: o mensageiro, o delegado com seus soldados, logo a mãe de D. Jorge e, por fim, o
próprio coro. O grupo sentiu a necessidade de ter um figurino próprio, bem elaborado, e
decidimos contratar uma figurinista. Uma campanha de fundos foi organizada, com a
realização de um bingo em benefício dos figurinos. Eu sugeri e contratei uma aluna do curso
de moda do CEART/UDESC, Gisele Cordeiro. A moça realizou um trabalho de pesquisa
sobre os costumes da época barroca, isto é, dos séculos XVI e XVII, época em que minhas
investigações preliminares haviam detectado como origem do romance Juliana e Dom Jorge,
do qual derivou o nosso Dom Jorge. Os conflitos que surgiram acerca do figurino não me
foram revelados claramente, porém algumas posições e comentários deixaram entender que
não correspondia à sua imaginação. Ao tentar ser fiel aos registros históricos, sem dialogar
efetivamente com as mulheres e tentar detectar as projeções de seu imaginário, acabamos, eu
e a figurinista, por criar algo que as deixou um tanto decepcionadas, principalmente quanto ao
figurino do personagem masculino, que, como foi referido acima, teria, em seus imaginários,
uma representação mais próxima do Romantismo que do Barroco.
2.2.6.2 Música e iluminação: clima
A música do romance Juliana e Dom Jorge, assim como a letra, apresenta várias
versões, destacando-se o trabalho de Rossini Tavares de Lima (1971), que compilou vinte e
quatro variantes com suas partituras. O Dom Jorge do Pântano do Sul tem a sua própria
75 As duas apresentações foram em 2005, situadas entre a primeira vez que foi recriada a brincadeira de
infância (2004?), quando ainda não existia o grupo Alegria de Viver, e a minha chegada no grupo, em 2006
(ver nota de rodapé 30).
82
versão e mereceria um estudo mais aprofundado. O que pode ser ressaltado ao leigo em
música e métrica, como eu, é que a sonoridade aproxima o objeto das cantorias dos grupos de
terno de reis, das novenas, missas e procissões religiosas, em que as mulheres entoam, muito
afinadas, sons bastante agudos e “arrastados” no final. Já os instrumentos, o trio que os toca e
acompanha os cantos são os mesmos que costumam acompanhar esses tipos de manifestações
populares da região. Esse trio, ou terno, como é chamado, em geral constitui-se de um
pandeiro, um violão e um acordeão ou uma rabeca. Os músicos, únicos participantes
masculinos do grupo, frequentam pouco os ensaios, sua presença depende das apresentações
agendadas. Pelo fato de serem voluntários e nem sempre estarem disponíveis, algumas vezes
o grupo é obrigado a contratar algum músico profissional para cobrir ausências.
O acompanhamento da música ao vivo tem o poder de transformar o clima da peça.
Para um encenador, determinar o clima da peça é essencial, no sentido em que uma situação
pode inverter-se, se o clima não for mantido. Bascular da tragédia à farsa é o temor de todo
diretor e ator. No caso estudado, pela participação do público e pela utilização adequada dos
elementos cênicos, os climas dos dois gêneros estabeleceram-se: um clima cômico, farsesco
na primeira apresentação para a comunidade, e, na segunda, um clima mais sério, do tipo
melodramático.
A luz foi o principal elemento que me convenceu a querer montar o espetáculo dentro
de um teatro, com iluminação teatral. O número foi concebido originalmente para ser
apresentado em espaços alternativos ou mesmo na rua, como vemos nas fotos registradas.
Porém, para ampliar sua noção de teatro, pareceu-me importante que minhas alunas tivessem
a experiência de estar sob os projetores, que pudessem sentir a “magia” e a solidão do palco
que a iluminação, a brilhar na ponta dos cílios do ator, pode proporcionar.
2.3 DRAMATURGIA CÊNICA: A ENCENAÇÃO
Encenar pode ser compreendido segundo o senso comum, como “coordenar, ensaiar e
levar à cena (um espetáculo)” (FERREIRA, 1975?); porém, encenação pode ter um
significado um pouco mais amplo e ser compreendida como o resultado final de uma
“regulagem”, conforme se refere Patrice Pavis, operada tanto no palco como na recepção pelo
público (PAVIS, 2010, p. 3), dando ao termo uma concepção mais abstrata. Ele entende a
encenação como uma representação, sob a perspectiva de um sistema de sentido. Essa
representação, que tem um sentido para quem a opera e o transmite, segundo Pavis, pode ser
controlada tanto por um encenador ou por um coletivo. No processo do Dom Jorge, esse
83
controle era exercido pelo grupo, embora eu também tivesse a função de ensaiador da peça, o
que é outra coisa, ou seja, apenas um dos elementos da encenação.
Para compreender os significados da encenação dos dois espetáculos que resultaram
do meu projeto, a pesquisa optou por uma ótica do espetáculo que pudesse descrever os fios
que conectam as ações, em suas relações de causalidade, detectando o que as complexifica e
o que torna rica a encenação, como propõe Ryngaert (1996). Para tanto, a pesquisa utiliza-se
de um exercício proposto por Ryngaert, em que o texto é descrito como uma versão possível
do texto encenado, descrevendo todos os detalhes. O texto que resultou é a minha
interpretação hoje, imbuído dos estudos realizados até aqui, dos diálogos com os autores que
me permitiram ter uma visão distanciada, na medida do possível, da apresentação da estreia
de Dom Jorge, no teatro da UBRO em Florianópolis, em novembro de 2007 (ALANO;
ASPAR, 2013).
Prólogo
A cena abre com uma moça sentada em uma sala com uma mesa e duas cadeiras e uma
“cortina” vermelha ao fundo, formada pelos corpos dos integrantes do coro. Ela está trajada
de vermelho, num vestido franzido, remetendo a um passado remoto. A moça está entretida
em silêncio com seu bordado, como se estivesse esperando alguém, quando chega um
mensageiro, vestido como um pajem de algum senhor da era barroca (séculos XVI-XVII) e
lhe entrega uma carta.
Primeira cena: A notícia
À medida que lê a carta, a jovem primeiro empalidece e depois começa a chorar. Do
interior da casa, entra uma senhora vestida de citadina da mesma época barroca; vê a tristeza
da outra, parte a consolá-la e começa a cantar, acompanhada dos músicos que também estão
em cena, em um dos lados. Ficamos sabendo que a moça se chama Juliana e que aquela é sua
mãe. A filha, num primeiro impulso, tenta negar que algo tenha acontecido, mas depois conta,
em sua melopeia, que seu amado D. Jorge vai casar com outra. Enquanto o coro repete cada
um dos versos, a mãe tem tempo para ver a carta no chão, recolhê-la, ler silenciosamente e, já
no meio da leitura, retomar o canto em forma de censura. Ela censura a filha por não ter
84
escutado seus conselhos, pois ela, com sua experiência76 de vida, sabia do mau caráter de D.
Jorge e que ele terminaria por enganá-la como faz com todas as moças que namora. A mãe
adivinhara que ele não se casaria com Juliana. A mãe está tão indignada que faz a censura à
Juliana antes mesmo de ela terminar a leitura da carta. Isto tem um efeito fulminante na moça,
que a faz levantar. Juliana vai até a mãe, e canta, numa atitude de arrependimento, tocando
seu ombro. A moça, no entanto, levanta a cabeça, jura pela mãe e por Deus, e clama com os
braços aos céus, seu juramento de vingança, prometendo impedir que D. Jorge se case com
outra. Juliana se cala, a música para, um instante de silêncio se faz. Ela “ouve” a chegada de
D. Jorge, improvisando uma fala para dar essa informação e justificar a próxima cena.
Segunda cena: A chegada de D. Jorge
O coro anuncia a chegada do cavalheiro montado em seu burrico, cantando e batendo
palmas. O personagem vem paramentado, com chapéu de três bicos, concordando com a
época do figurino das outras três personagens. Sua montaria é “luxuosa”, toda enfeitada de
espelhinhos e fitas, como uma figura do boi-bumbá. Ele percorre a sala toda. Para, arreia da
montaria, dirige-se à mãe de Juliana e tira-lhe o chapéu, logo, vai em direção a Juliana, beija-
lhe a mão e faz-lhe reverência, como se ela fosse uma pessoa muito importante. Juliana nem a
mãe respondem. Juliana deixa-se adular, mas vai direto ao assunto que lhe inquieta e pergunta
ao namorado se era verdade que iria casar-se com outra mulher. D. Jorge confirma seu
casamento, e ainda convida Juliana para as bodas. Nesse ponto a música para mais uma vez.
Juliana finge naturalidade, improvisa um diálogo para fazer o homem tomar assento e lhe
promete um brinde com vinho. Juliana vai buscar o vinho no sobrado, enquanto ele espera.
Terceira cena: A vingança
Juliana volta, dá de beber a D. Jorge. O cavalheiro bebe, há uma pausa, e logo começa
a cantar, queixando-se de que se sente mal, suspeita de que o vinho estivesse adulterado: tenta
levantar-se da cadeira, mas cambaleia. Sentindo-se morrer, D. Jorge cai ajoelhado e canta,
invocando o sofrimento de sua mãe, pensando atingir a piedade de Juliana, porém Juliana não
se deixa comover e alega que a mãe dela lhe cobra a infidelidade de D. Jorge. Finalmente D.
76 Mais uma vez se apresenta o conceito de “experiência” que Walter Benjamin (2002) aborda para denunciar
os mais velhos quando são “filisteus”, isto é, quando se vangloriam do acumulado em suas longas vidas para
constranger os mais jovens.
85
Jorge cai desfalecido, e Juliana, acompanhada do canto coral anuncia a morte de D. Jorge.
Juliana dança, escarnecendo dele, triunfante.
Quarta cena: Justiça!
O escárnio e a impiedade da moça é tão grande que a situação se torna insuportável,
causando a entrada em cena da mãe de D. Jorge, vestida com um grande chapéu. A performer,
cerca de oitenta anos de idade, acode o filho, senta no chão e toma-o em seus braços.
Improvisa ao mesmo tempo um brevíssimo solilóquio em que pergunta o que fizeram com seu
filho e clama por justiça, chama a “puliça”. Nesse instante, o coro anuncia a chegada do
Delegado, que entra, posta estrategicamente seus soldados ao lado da criminosa e
cumprimenta a mãe de Juliana, que responde que vai bem e agradece. Esse verso é intrigante:
como a mãe vai estar bem, muito obrigada, antes de ver a filha ser presa? O que significa?
Parece ser uma variação do texto, criado pelas mulheres mais pela rima que pelo sentido. A
investigação aponta para uma interferência de duas estrofes do romance Juliana e Dom Jorge.
A saudação tem paralelo com a versão de número 018 do romance, colhida em Muzambinhos,
MG, por Bráulio do Nascimento, em que se lê:
- Lá vem o delegado
Com dois soldados armados,
Vem prender a Juliana
Que matou seu namorado (NASCIMENTO, 1964, p. 67).
Porém, outra variante, a de número 016, colhida em São Paulo (Barra Funda) indica
que houve uma mescla das estrofes. Nesse caso, a saudação é de D. Jorge para Juliana:
- Boa tarde, Juliana,
Como vai, como tens passado?
- Boa tarde, senhor Jorge,
Eu vou bem, muito obrigado (NASCIMENTO, 1964, p. 95).
Após a saudação, o delegado avança sobre Juliana, junto com seus soldados que a
agarram, ela tenta debater-se, mas é forçada a ajoelhar. Congela a cena, como um falso final.
Cena final
Lentamente, o coro começa a cantar, em fila dirige-se ao corpo e joga uma flor em
cima, cantando a estrofe final que anuncia o fato de que flores nasceram na cova do herói. O
86
público aplaude, as cortinas fecham, reabrem, as atrizes agradecem em fileira, que se abre
para dar passagem ao trio de músicos. Os homens, que até então estavam na penumbra, na
última fila, finalmente entram tocando seus instrumentos, e os aplausos redobram. Essa cena
simboliza muito da relação entre os gêneros como aqui se tenta entender. O pudor dos homens
em assumir o papel do Dom Jorge, ou ter restrições a que um outro homem o faça, no caso
dos maridos, contrasta com a glória de encerrar o espetáculo e receber os aplausos
redobrados. Essa cena faz pensar no título, em que a personagem feminina desaparece. No
final, ao surgirem triunfantes por trás das mulheres, não se pode deixar de imaginar a
metáfora de que são eles os “dom jorges".
2.3.1 O público
As duas apresentações do Dom Jorge do grupo Alegria de Viver em que participei
como professor de teatro-educação e diretor, aconteceram como consequência de um processo
de montagem que durou cerca de três meses. A primeira apresentação, à guisa de pré-estreia,
aconteceu no dia 26 de outubro de 2007, no salão paroquial da igreja católica da Armação do
Pântano do Sul, com a presença da comunidade. O segundo espetáculo, a estreia, ocorreu um
mês depois, dia 28 de novembro de 2007, no Teatro da UBRO, no Centro de Florianópolis,
para um público variado. Constituído essencialmente de moradores da comunidade, o público
do primeiro espetáculo diferencia-se bastante do segundo, o qual acontece dentro de um teatro
tradicional, com palco italiano. Essa diferença do público e seu comportamento revelaram-se
divisores de água quanto à encenação. Nesses encontros, ou celebrações, como prefere
Schechner (c2007), a relação dos espectadores com as praticantes da performance determinou
toda a estética do espetáculo.
2.3.1.1 Pré-estreia farsesca
Como se observa no vídeo por mim gravado (ALANO, 2014b), no primeiro
espetáculo, realizado no salão paroquial da Armação, o público é constituído de familiares,
amigos e conhecidos, todos se conhecem pelos nomes. O prazer de estar juntos celebrando um
evento social deixava as pessoas contentes e efusivas, todos falam alto. Para criar o clima
“teatral”, há uma separação entre a plateia e a cena com uma cortina de cetim azul
improvisada. De um lado, os espectadores sentam-se ao redor de mesas ou ficam em pé no
fundo; em frente, ao nível do chão, desenrolam-se as cenas. Não há separação de níveis entre
87
a cena principal e o público, somente o coro está colocado em um pequeno palco elevado ao
fundo. Nenhuma distinção na iluminação: os poucos recursos técnicos da sala – lâmpadas
fluorescentes - mantêm o público iluminado tanto quanto os artistas. O próprio espaço não
remete ao palco italiano, tal como o conhecemos nas casas de espetáculos tradicionais, a não
ser pela posição frontal do espetáculo. Ao contrário, ali no salão paroquial, os moradores da
Armação estão acostumados a participar de festas e representações religiosas, comemorações,
bingos beneficentes, reuniões políticas e assembleias de associações locais.
A participação do público é efusiva, o diretor pede silêncio várias vezes. Em uma
cena, o delegado, já vestido com sua caracterização de soldado do século XVII, recebe uma
ovação pelo seu capacete exótico e desproporcional77. Numa outra, das cenas mais
importantes da peça, pois é quando se concretiza o plano de vingança de Juliana, Leonice, a
atriz, na condição de personagem, canta:
- Espere um pouco, D. Jorge,
‘quanto eu vou lá no sobrado,
Buscar um cálice com vinho
que pra você tenho guardado (Anexo B).
Ao dirigir-se ao interior para buscar o vinho para Dom Jorge, interage com a plateia,
ao mostrar, com uma piscadela, suas intenções verdadeiras. Essa ação, não prevista no texto
nem nos ensaios, dá um outro significado à cena. Ao romper a chamada “quarta parede” e
comunicar-se diretamente com a plateia, ao indicar suas segundas intenções, a atriz adentra os
códigos da comédia, fazendo, da vingança terrível, uma traquinagem infantil.
2.3.1.2 Estreia melodramática
No segundo espetáculo, gravado por mim e Sérgio Aspar (2013) dentro de um teatro
de palco italiano, ou seja, com uma nítida separação de nível entre palco e plateia, a maioria
dos espectadores parece conhecer os códigos sociais em ambientes desse tipo, pois
permanecem silentes, sentados em uma sala escura, só manifestando-se geralmente no final,
com aplausos. A luz, reforçando a separação do espaço entre o público, valoriza os figurinos,
que parecem esmerados, realçando também a maquilagem. Por outro lado, a reação contida da
77 Com poucos recursos, a produção tomou emprestado alguns elementos do figurino da UDESC, como
alguns chapéus e a roupa do coro. Embora nem todos os elementos da montagem, como os figurinos e os
cenários e adereços estivessem prontos, em comum acordo decidimos fazer uma pré-estreia para a
comunidade. Isto traria segurança para as alunas no dia da estreia, pois seria para uma plateia desconhecida
em um teatro no centro da cidade.
88
plateia, tão anônima no escuro, leva as atrizes a interpretar seus papéis com muito mais
solenidade, ficam mais concentradas na cena. As piscadelas à plateia são tentadas, mas não
prosperam. Os espectadores, aliás, não eram vistos pelas performers, pois estavam invisíveis,
no escuro. Todos esses elementos criam um clima de mistério próprio do melodrama ou da
opereta romântica.
No entanto, dois elementos se sobressaem, “traindo” sua origem popular e causando
cochichos na plateia: a montaria de D. Jorge, um cavalinho de boi de mamão todo enfeitado
com fitas e espelhinhos que irrompe no palco, dá uma longa volta ao redor da cena antes de
arrear. O segundo elemento é a performance do terno de músicos, com seu tom musical
característico do folclore da região e que, nos aplausos finais, trazem ao proscênio a
vivacidade de sua arte e sua presença masculina no meio das mulheres.
A minha memória, e a de uma entrevistada78, recordam que a sala, com capacidade de
cerca de 100 pessoas, estava quase cheia. Vieram alguns membros da família, alguns amigos e
colegas de trabalho do diretor e dos participantes dos dois grupos teatrais em cena naquela
noite e alguns desconhecidos que, de alguma maneira, souberam do espetáculo gratuito. Dos
conhecidos, uma parte era constituída por um grupo teatral de crianças e adolescentes da
mesma comunidade da Armação do Pântano do Sul, que haviam apresentado uma outra peça
no mesmo evento79. O que se pode deduzir hoje daquele evento é que aquelas mulheres, entre
“quatro” paredes, ou seja, sós no palco, realizaram uma experiência de grande potencial
transformador. Experiência em que me incluo e que foi importante tanto para elas, que
sonharam em ser atrizes, quanto eu que agora disserto sobre essa experiência.
2.4 AUTORIA E INTERESSE DA OBRA
Como vimos no primeiro capítulo, a autoria do romance Juliana e Dom Jorge perde-se
no anonimato dos cantadores e contadores que desde a Idade Média transmitiram essa
história. Alvanita Almeida Santos (2005), ao estudar os textos produzidos e transmitidos
oralmente, diz que não há “autoria” em um ”texto” popular, e enumera os gêneros:
Contos, romances, mitos, lendas, cantigas infantis, fábulas, anedotas, comédias e
dramas, tragédias, autos, entremezes, testamentos, farsa não podem ser vistos como
78 Trata-se de Gabriela Monteiro (31 anos), amiga que assistiu ao espetáculo em novembro de 2007.
79 O evento era compartilhado com o espetáculo Romeu e Julieta 2008, do grupo Teatro Juvenil da Armação,
do qual também fui o professor de teatro e diretor de alguns espetáculos que fizemos juntos. O grupo, que
começou em 2005, na Escola Dilma Lucia dos Santos, na época do vídeo, 2007, era composto de crianças de
9 a 16 anos, muitos parentes das mulheres do grupo Alegria de Viver. Como Dom Jorge é um espetáculo
curto, de apenas 12 minutos, juntei os dois em um só evento.
89
de um autor, porque não é possível saber se houve uma criação (perdida no tempo)
que depois foi repetida pelos outros. A cada performance de um texto oral, aquele
que canta/narra é o 'dono' do texto. Passando de pessoa para pessoa, cada
componente da comunidade é um pouco o 'autor' do texto pronunciado. Não existe
uma origem, não há um texto inicial possível de ser recuperado (SANTOS, 2005, p.
32).
O que parece correto, se nos ativermos à hipótese de Santos (2005), é que as autoras
sejam mulheres, pois o romance, antes da transcrição da forma oral para a escrita, ocorrida a
partir do fim da era medieval, era de domínio das mulheres, verdadeiras produtoras dos textos
orais. No caso aqui estudado, essa transcrição ocorre pelos mesmos cantadores, só que 50
anos depois e já com a intenção de torná-lo teatro. Sendo assim, podemos considerar o grupo
Alegria de Viver, e me incluo aqui, como os autores do espetáculo teatral Dom Jorge.
Fazendo uma retrospectiva, podemos dizer que: da brincadeira que contava a história
da moça vingativa e do amante infiel, as crianças da comunidade do Pântano do Sul
guardaram na memória, solidamente ancorada nos versos do texto, na música, nos ritmos e
nos corpos, um enredo o qual foi recriado em sua velhice. Um enredo que, uma vez recriado
pelas memórias das idosas, revela de imediato sua eficácia dramatúrgica como peça de teatro.
Mas revela também a criatividade das autoras, que se manifesta na recriação do material
fabular, ao ressignificar a brincadeira infantil, tornando-a teatro. Nesse gesto, há um
significado para além do simples “resgate” e “preservação” da cultura tradicional local como
se cristalizou na sequência, tornando-se número do repertório do grupo Alegria de Viver. Vejo
em seu gesto a tentativa de empoderar-se, de fazer sua voz ser ouvida e por isso também seu
desejo de aprimorá-la, contratando um professor de teatro.
O discurso da Modernidade forja papéis e funções, afirma Santos (2005), e o discurso
masculino é seguidamente desautorizador: “isso é coisa de mulher”. Além disso, conforme a
autora, esse discurso tende a separar a cultura erudita da “baixa cultura”, na qual se insere os
textos populares, carregados de oralidade. Ela nota, no entanto, que o discurso da
Modernidade está também sendo desconstruído por pensadores e movimentos, que, ao
denunciarem os mecanismos desse discurso, permitem a enunciação de discursos marginais,
desautorizados até então, como o de negros, mulheres, homossexuais e, acrescento, idosos.
Santos (2005) denuncia a própria apelação do termo “popular”, conceito controverso que leva
embutida a noção da oposição popular/erudito e de consequente subjugação de uns por outros
e, nessa reação, popular adquire um sentido pejorativo. Da mesma forma, “popular” diz
respeito também à questão da autoria, pois o “popular” sói ser anônimo, em oposição às
produções que possuem “autoria”, e, conforme afirma Santos, a autoria é uma “autoridade
que, na Modernidade, foi sempre reforçada” (SANTOS, 2005, p. 32).
90
Não há indícios de que as mulheres da Armação tivessem como proposta colocar em
pauta todas essas questões, em uma noite de festa na paróquia, mas, eu, como pesquisador,
buscando as relações e implicações dessa forma artística a qual, apoiado em Walter Benjamin
(2011), estou chamando de arte menor, tenho como compromisso trazer à tona sua
importância social.
91
3 ORIGEM EM DOM JORGE
Um mosaico não perde a majestade pelo fato de ser
caprichosamente fragmentado. […] O valor dos fragmentos
de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos
imediata é a sua relação com a concepção de fundo, e desse
valor depende o fulgor da representação, na mesma medida
em que o do mosaico depende da qualidade da pasta de
vidro. A relação entre a elaboração micrológica e a escala
do todo, de um ponto de vista plástico e mental, demonstra
que o conteúdo de verdade (Wahrheitgehalt) se deixa
apreender apenas através da mais exata descida ao nível dos
pormenores de um conteúdo material (Sachgehalt).
(Walter Benjamin)
Evitamos propositadamente quaisquer caminhos que nos
levassem à busca de origens, que esteriliza tantos estudos.
Não nos parece imprescindível investigar de onde veio o
romance de Juliana e d. Jorge, se de Portugal, de Espanha
ou de outra qualquer parte da Europa.
(Bráulio do Nascimento)
Este capítulo pretende examinar o fenômeno teatral Dom Jorge, dando enfoque ao
segmento de sua trajetória em que se transforma da forma brincadeira infantil para a forma
peça de teatro, cerca de 50 anos depois. O objetivo desse olhar específico é tentar desvendar
significados possíveis em um momento crucial para a evolução do fenômeno. Aparentemente,
se visto pela história e estética dominantes, essa expressão popular poderia parecer uma obra
menor, pelo fato de ser protagonizado, de um lado, por crianças de uma cultura de cunho
rural, marcada pela oralidade, e, de outro, por essas mesmas pessoas, agora já mulheres
maduras de um vilarejo de pescadores de uma longínqua região do Brasil Meridional. Esse
momento, contudo, pode ser uma oportunidade excelente para questionar e refletir sobre ele
como um acontecimento privilegiado de interação entre a cultura popular e o teatro na
contemporaneidade.
Entender esse processo de transformação da forma “brincadeira” à forma “teatro”
levanta questões como: que tipo de brincadeira era aquela? Como era praticada? Quais suas
origens? Por outro lado, como se manteve na memória? Que significado tinha para as crianças
e para a comunidade? Quais e por que de suas escolhas ao reinventar a brincadeira dom-
jorge? De que maneira foi feita essa (re)criação? Para quem foram feitas as duas formas e
com que objetivos? Seria teatro o que praticavam?
Para responder a essas questões, a pesquisa apoiou-se em entrevistas aos moradores da
região, gravadas em áudio e vídeo e uma investigação bibliográfica interdisciplinar. Dessa
92
maneira, constatou que não é abundante a literatura específica às Artes Cênicas. A
Etnocenologia, que faz essa abordagem, é uma disciplina ligada ao teatro, que, apesar de
jovem, não se furta a contribuir com importância ao introduzir o conceito de
“espetacularidade”. Assim também, novas obras de pensadores do teatro surgiram, a partir do
novo Milênio, as quais, muitas vezes, por si também têm um viés interdisciplinar. Entre esses
autores, destacam-se Richard Schechner (c2007), que contribuiu com o conceito-chave de
“performance” e Hans-Thies Lehmann (2009), que traz à luz a noção de “pudor”, a qual
aponta explicações para alguns dos significados do objeto. No plano histórico, psicológico e
filosófico, as contribuições de Michel de Certeau (1995), de Jean Piaget (c1990) e de Walter
Benjamin (1987, 2002), forneceram à pesquisa argumentos para entender o significado da
cultura infantil e do jogo para as crianças. Benjamin (2011), no entanto, deve ser salientado
principalmente pela introdução de um conceito-chave, o de origem, que se tornou mais que
um conceito, uma metodologia de abordagem do objeto.
Na busca por métodos para abordar um objeto que se apresenta como um resquício de
uma tradição oral, cuja forma é profundamente teatral, esta investigação obteve amparo no
conceito de origem, para análise da obra de arte “menor” que Walter Benjamin (2011) propõe
no “Prólogo Epistemológico Crítico” da Origem do Drama Trágico Alemão. Para tal, aspectos
relativos à forma, à memória - corporal e afetiva, ao brincar e representar, ao contexto
socioeconômico, às relações culturais, com destaque para as relações de gênero e de idade,
tomando como pano de fundo o conflito entre a oralidade e a cultura letrada, são levados em
conta para compor o quadro no qual se insere a referida manifestação popular.
3.1 BRINCANTES DE DOM-JORGE
“Brincar”, em algumas línguas, tem a mesma grafia que “representar”. Em inglês, por
exemplo: play pode ser brincar, jogar ou representar. Para Richard Schechner (c2007), a
grande diferença entre teatro e o brincar são as regras que governam as atividades. Em francês
ou em alemão não é diferente O psicólogo suíço Jean Piaget (c1990), em A formação do
símbolo na criança, usa a expressão jeu tanto como “brincadeira” quanto “jogo”. Jouer,80
que deriva de jeu, é também o verbo para “representar” no teatro ou no cinema. Piaget,
concordando com Schechner, também considera que o jogo de representação só difere da
brincadeira pelo sistema de regras que necessita.
80 Segundo o dicionário Francês-Português, jouer pode significar, entre outras coisas, brincar, jogar, tocar (um
instrumento) e “desempenhar um papel no teatro” (BURTIN-VINHOLES, 1977, p. 293).
93
Para (c2007), brincar (play) é a fonte de todas as formas de performance, e os adultos
tendem a organizar o que as crianças, espontaneamente, fazem. Ele afirma que “play is
obviously the ontogenic source or the other activities: what children do, adults organize”81
(SCHECHNER, c2007, p. 15). Assim também, Walter Benjamin (2002) critica os adultos e
escreve que “o brincar tem sido visto em demasia a partir da perspectiva do adulto"
(BENJAMIN, 2002, p. 102), ou seja, há na modernidade uma falta de consideração dos
adultos pela cultura das crianças. Ele também chama a atenção para o fato de que em alemão
spiel está relacionado tanto com brincar quanto representar. Seu tradutor esclarece:
Spiele no original, que pode ser traduzido aqui tanto por ‘jogos’como ‘brincadeiras’;
além disso, o verbo spielen, relacionado a esse substantivo, tem, entre outros
significados, o de ‘brincar’, ‘jogar’, como o de ‘representar’ (no teatro, por
exemplo) (MAZZARI apud BENJAMIN, 2002, p. 102, nota 3).
Schechner (c2007) avalia que a brincadeira (play) é uma “free activity”, uma atividade
livre, o território da fantasia “privada”, enquanto o teatro encarna os comportamentos e as
fantasias “sociais”, com suas regras. O que é curioso no caso do dom-jorge é ser brincadeira e
teatro ao mesmo tempo, pois a própria brincadeira é uma performance teatral. Brincar remete
a prazer, enquanto vida social representa contenção, por causa das regras e dos papéis sociais
que são necessários para a convivência. Por isso, o dom-jorge pode ser considerado um
fenômeno ao mesmo tempo da esfera privada e da esfera social; era um brinquedo sofisticado
em que havia muito em jogo: desde as relações dos praticantes com o próprio corpo, até suas
relações com os outros em cena e na audiência. E, mais ainda, suas relações com os
personagens e tudo que podem significar simbolicamente.
81 Brincar é obviamente a fonte ontogênica das outras atividades: o que as crianças fazem, os adultos
organizam (Tradução livre).
94
3.1.1 A brincadeira dom-jorge no Pântano do Sul: o jogo das meninas
Figura 5 - O Pântano do Sul nos anos 1940. Panorama do Costão, à direita ao fundo
Fonte: Geraldo Cunha.
Até meados do século XX, com base em relatos de antigos moradores, a brincadeira
chamada dom-jorge era praticada principalmente pelas meninas da comunidade do Pântano do
Sul, como outras tantas brincadeiras infanto-juvenis82. Os meninos, embora pudessem assistir
e mesmo participar do coro, tinham outros brinquedos de sua predileção, inclusive danças
dramáticas, no sentido que lhe deu Mário de Andrade83 (ANDRADE, 1982), como o boi de
mamão. Essas brincadeiras, embora muito distintas, pela própria questão de gênero dos
participantes: brincadeiras “de meninas” e “de meninos”, poderiam ambas então ser vistas
como brincadeiras teatrais, já que sua prática era parcial ou totalmente feita por meio de
“imitação de ações”, no sentido dado por Aristóteles (séc. IV a.C.), quem primeiro pensou,
para nós ocidentais, o Teatro (ARISTÓTELES, 2004, p. 36).
82 Foram-me relatadas algumas brincadeiras: senhora-dona-condessa, bandeira, fugitivo, bonecas de folhas
de bananeira ou de milho, apareceu-a-margarida, esconde-esconde, etc.
83 Mario de Andrade reúne sob o nome genérico de “danças dramáticas”; “não só os bailados que
desenvolvem uma ação dramática propriamente dita”, como também a “obra musical constituída pela
seriação de várias peças coreográficas” (ANDRADE, 1982, p. 71).
95
As entrevistas realizadas e minha própria vivência com os vizinhos por 35 anos no
Pântano do Sul, levam-me a supor que, nas brincadeiras, os meninos preparavam seu boi de
mamão, seus carrinhos de “leite-ninho” e suas traquinagens, como caçar passarinho de
estilingue ou armar arapucas nas dunas. Eles também assistiam às vezes as meninas
praticarem o que era chamado genericamente de “ratoeira”84, o que poderia incluir várias
brincadeiras feitas na beira da praia, entre elas o dom-jorge. Essas e outras eram as
brincadeiras que as meninas do Pântano do Sul praticavam, com a participação mais ou
menos atuante dos meninos. No caso da brincadeira dom-jorge, a participação deles era
apenas na “plateia”, que, diga-se, não era passiva como se poderia pensar, pois eles cantavam,
batiam palmas e atuavam no coro. Mas, além disso, havia uma outra qualidade na sua
participação, que é bem explicada por Duvignaud (1966): em um espaço de cerimônia85, como
é o caso do dom-jorge, os espectadores é que dão a credibilidade para os que oficiam a
cerimônia. Isto seria, conforme Duvignaud, o “conclave mágico”, expressão cunhada por
Marcel Mauss, que concede poder ao bruxo, ao rei, ao sacerdote e também dão credulidade à
ficção representada no palco do teatro. Essa visão concorda parcialmente com o que diz
Nietzsche em relação ao coro, como vimos anteriormente.
Ao brincarem repetidamente, aquelas crianças não sabiam que estavam representando
um romance português tão antigo, não tinham, tampouco, intenção de fazer teatro. No
entanto, o que fizeram tem muitas características do teatro. Segundo o relato da moradora
Dona Zenaide86 (70 anos), a brincadeira dom-jorge começava com um ritual que consistia em
trazer pedras do costão, ou seja, da costa pedregosa que se estende a partir do cemitério do
Pântano do Sul, e dispô-las em círculos, criando assim um lugar no espaço onde a história iria
desenrolar-se. Dona Zenaide tem a lembrança muito nítida e recria o cenário, cantando para
mim sua variante do romance Juliana e Dom Jorge, descrevendo todas as ações e movimentos
84 Segundo dona Zenaide Maria de Souza (70 anos), moradora do Pântano do Sul, ratoeira não é somente a
roda de cantigas em que cada uma diz uma estrofe e todas repetem o refrão, como é mais conhecida hoje em
dia em Florianópolis. Isso seria a “cantoria-da-ratoeira”. Ratoeira, para Dona Zenaide e também para
algumas mulheres do grupo Alegria de Viver (ALANO, 2016) é o “conjunto” das várias atividades lúdicas
que eram praticadas nesses momentos, entre eles, apareceu-a-margarida, bandeira, senhora-dona-condessa
e também dom-jorge, como se refere a moradora d. Zenaide.
85 Cerimônia é um conceito adotado por Duvignaud (1996) para referir-se às manifestações tanto de
expressões extracotidianas sociais como privadas. Mais adiante no capítulo, essa noção será aprofundada.
86 Entrevistei dona Zenaide, natural do Pântano do Sul, no terraço de seu restaurante à beira-mar –
Pedacinho do Céu - num dia de inverno em que o sol brilhava, mas a praia estava vazia. Com seu onipresente
quépi de marinheiro, comandando a cozinha e o movimento dos fregueses, está sempre pronta a sentar em
uma mesa e dizer para os fregueses um versinho de cor ou de repente. Brava mulher, criou os sete filhos com
seu negócio, que começou como um pequeno quiosque e hoje é um restaurante típico da Ilha.
96
das crianças-atrizes87, não apenas como se fossem didascálias narradas, mas ela mesma
interpretando, por gestos que ilustravam a narrativa, evidenciando sua própria memória
corporal.
As meninas e os meninos tinham vergonha de se misturar naquela época... assim...
fazer a representação. Então uma menina vestia-se de menino e a gente fazia um
cavalinho de bambu, cortava o bambu no mato e fazia um cavalo, e ia pro costão
buscar as pedras, que era a casa. Fazia a separação: uma roda, era a cozinha e a outra
roda era a sala. Aí pegava uma almofada de bilro, botava na sala pra Juliana fazê
renda, mas aí a Juliana parava com os bilros, e a mãe tava na cozinha e não escutava
o barulho da Juliana, e saía da cozinha e encontrava a Juliana chorando e cantava pra
ela:
- O que tens ó Juliana, que estás tão triste a chorar/ Não é nada ó minha mãe, é dom
Jorge que vai casar/ Eu te disse minha filha, não quiseste me acreditar/Que d. Jorge
tem de costume, de toda moça enganar/ Eu lhe juro minha mãe, pelo Deus que nos
criou/ Que d. Jorge não se goza de um outro novo amor/ Lá vem o seu d. Jorge, no
seu cavalo amontado/ Deus te salve ó Juliana, em tua sala sentada./ Inda ontem ouvi
dizer que você ia se casar/ É verdade, ó Juliana, vim aqui te convidar/ Espere um
pouco d. Jorge, 'quanto eu vou lá no sobrado/ Buscá um calice com vinho que pra
voce eu tenho guardado/ Que fizeste ó Juliana com esse teu cálice com vinho/ Que
me escureceu as vista, não enxergo o meu burrinho/ Lá morreu o seu d, Jorge, lá
morreu, lá se acabou/ Foi o único prazer qu'eu tive, que com outra não casou.
É interessante notar a maneira como as crianças organizaram o espaço de
representação. Jean Duvignaud, em Sociología del Teatro (1966) ao tentar estabelecer os
limites entre teatro e cerimônia social, aborda a questão do espaço. O autor ressalta que a
divisão entre o espaço sagrado e o espaço profano é a base de todas as cerimônias, sociais ou
teatrais88. Exatamente como fizeram as crianças do Pântano do Sul com a brincadeira dom-
jorge, delimitando o espaço de representação com círculos de pedra. O que elas não sabiam
também é que, ao agirem dessa maneira, estavam erigindo um teatro, conforme acredita
Schechner (c2007).
Pelas palavras de d. Zenaide, a brincadeira era exclusiva das meninas entre cinco e
quatorze anos, podendo ir até dezessete anos, revelando uma hierarquia de classes de idade e
de gênero. Acontecia no fim da tarde “entre 5 e 6 horas, no verão”, diz ela, na praia, após o
trabalho diário, que consistia, para as meninas, em ajudar nas lides da casa e na confecção das
rendas de bilro, e os meninos, nas redes de pesca. Ou em eventos especiais, como as festas
juninas, conforme “tia” Hilda, anciã de cerca de 100 anos nos informou89.
87 Crianças-atrizes me pareceu melhor do que denominá-las performers, já que o conceito “performance” será
abordado mais adiante no capítulo.
88 Embora não invalide a afirmação de Duvignaud, essa noção de diferença entre espaço sagrado e profano.foi
expandida a partir do século XX, até chegar às contemporâneas experiências de flash-mob, em que fica
impossível delimitar o espaço de representação e o espaço do público.
89 Assistir ao vídeo em que essa anciã canta o romance Dom Jorge (ALANO, 2015).
97
Esse comportamento, em comunidades de cunho rural, era o momento de celebrar o
não produtivo, tão essencial para sua vida quanto o labor, evidenciando uma rotina trabalho-
lazer que não se confina somente aos ciclos do calendário, como quer Lacerda (2003), mas ao
dia a dia também, como constatam Franzoni (2012) e Bernardete Flores (1995): “não há uma
extrema demarcação entre tempo de trabalho e tempo de não-trabalho. A produção da
subsistência, as diversões, a comunicação, os ritos religiosos, o namoro, as trocas de
experiências, estão imbricadas na jornada" (FLORES, 1995, p. 120).
De uma maneira geral, nesses momentos de relaxamento, mesmo entrelaçados na faina
diária, para os homens, quando não embarcados na pesca, eram dedicados a vigiar os peixes
no mar, tecer redes de pesca, uma pinga no Bar do Arante90, paqueras e muita contação de
história, histórias que só os pescadores sabem contar. As mulheres também alternavam seus
momentos de atividade produtiva e relaxamento para conversar, contar histórias, cantar
ratoeiras, trocar receitas, flertes. Nos dias especiais e festas, então danças e músicas, como o
carnaval do Adelino91, tal qual é tão pitorescamente relatado por Arantinho92 e seu irmão
Armando, numa pequena brochura sobre as tradições populares do Pântano do Sul
(MONTEIRO FILHO; MONTEIRO, 1985, p. 25-26).
3.1.2 Performances
Face a esse contexto rural/pesqueiro, repleto de tradições orais, entender as
implicações dessa brincadeira teatral exigiu uma análise por outros métodos que os
tradicionais do teatro. Como auxílio, foi encontrada a apropriação dos conceitos de
“performance” e de “espetacularidade”, defendidos pela Etnocenologia, os quais se tornaram
instrumentos-chave para ajudar na tarefa.
3.1.2.1 Performance
“Performance” é um termo polissêmico e, nesse sentido, pareceu importante examinar
seus diferentes conceitos para poder analisar, de um ponto de vista dos Estudos de Teatro,
90 Baseio-me aqui em minha própria experiência como freguês do Bar do Arante desde 1979, quando ainda
era um boteco à beira-mar, com apenas quatro mesas, um prato único e a cachaça livre.
91 Reproduzo aqui o versinho que cantavam, segundo a brochura citada:
“Vai ter carnaval na casa do Caial,
Vai ter grito fino na casa do Adelino” .
92 Arante Monteiro Filho, o Arantinho, é historiador e o filho mais velho do falecido seu Arante, fundador do
Bar do Arante, que se tornou um dos mais conhecidos restaurantes típicos da Ilha. Foi quem primeiro me
falou, nos anos 1980, que eu precisava conhecer o “Dom Jorge”.
98
textos dramáticos que foram transcritos da própria performance de seus executantes, como é
o caso da brincadeira dom-jorge e os espetáculos do Dom Jorge da Armação do Pântano do
Sul. Ou seja, há primeiramente esse sentido de performance, comumente aceito, referente à
expressão artística de um executante em que se envolva a expressão corporal e vocal, sentido
semelhante ao que se dá ao desempenho do jogador esportivo ou de uma máquina industrial
(FERREIRA, 1975?).
Nesta pesquisa foram levadas em conta também outras concepções, como as do
antropólogo português Luis Batalha (2005), para quem a natureza da performance “reflete
uma parte significativa da mundivivência das pessoas em cada sociedade e em cada esfera
cultural” (BATALHA, 2005, p. 285). Ou seja, para esta pesquisa, analisar o objeto em pauta a
partir das performances dos participantes é também detectar o que revela, em termos de visão
e vivência de mundo, o contexto, os significados e a maneira como esse antigo romance
português é expressado, como brincadeira e como teatro ou seja, como arte.
No entanto, o conceito mais adequado aos propósitos desta dissertação é o do
estadunidense norte-americano Richard Schechner (c2007), pois ele acrescenta um elemento
muito importante à sua definição: o outro. Schechner é um homem do teatro conhecido por
suas “performances”, como foram chamadas em todo mundo suas experiências teatrais feitas
a partir dos anos 1960 nos Estados Unidos, caracterizadas por apresentações em que eram
expandidas as fronteiras entre teatro, jogo, ritual, dança e música.
As experiências e posteriores reflexões resultaram na sua obra Performance Theory.
Primeiramente publicada em 1977 e revista em 2003, a obra é fundamental para o
entendimento do conceito, tanto em seus significados mais amplos quanto específicos às artes
cênicas. Segundo Schechner, o conceito “performance” expandiu-se demais e poderia
estender-se a “qualquer” atividade, ou mesmo ser tudo aquilo que for enquadrado “como”
performance. Em consequência, Shechner, que entende performance como celebração,
elabora uma definição que dá conta da atuação dos celebrantes, do tempo, do espaço e da
audiência: “Performance is an activity done by an individual or group in the presence of and
for another individual or group”93 (SCHECHNER, c2007, p. 22). A presença, nessa
definição, é a palavra-chave do conceito, pois estar na presença do outro, para quem é
apresentado algo, implica um espaço de encontro, mas também um tempo de duração desse
encontro.
93 Minha tradução livre: Performance é uma atividade realizada por um indivíduo ou grupo, na presença de e
para outro indivíduo ou grupo.
99
3.1.2.2 Espetacularidade
Richard Schechner e outros pensadores, como Jean Duvignaud, contribuíram para o
arcabouço teórico que gerou a Etnocenologia, jovem ciência que busca a compreensão dos
discursos dos diferentes agrupamentos sociais humanos acerca de sua própria vida em
coletividade, com destaque para o estudo da produção de suas práticas corporais. O conceito
principal desenvolvido é o de espetacular, visto como “uma forma de ser, de se comportar, de
se movimentar, de agir no espaço, de se emocionar, de falar, de cantar e de se enfeitar. Uma
forma distinta das ações banais do cotidiano” (PRADIER, 1998. p. 24). Schechner já dizia
que essas características, que ele chama de performáticas, e o teatro, evidentemente, são
primordiais a toda atividade humana extracotidiana (SCECHNER, 2005, p. 7).
Se para Schechner o teatro, é “celebração”, Jean Duvigneau (1966), sociólogo francês,
em “Sociologia del Teatro” utiliza outro conceito, o de cerimônia; para ele, o Teatro é uma
cerimônia, como tantas outras, porém ele distingue as diferenças e as semelhanças entre a
cerimônia social e a cerimônia teatral ou dramática, como prefere. Esse aspecto social das
cerimônias revestir-se-ia de uma considerável importância para a vida coletiva, mais
importantes que as organizações, que as práticas e os símbolos no marco social. Dessa
maneira, Duvignaud acredita que existe um verdadeiro teatro espontâneo em vários níveis da
experiência social, e que, dentro dele, todos representam algum papel ou role social:
Una sesión de un tribunal, un jurado de un concurso, la inauguración de un
monumento, un servicio religioso en la mezquita o en la sinagoga, una fiesta, incluso
un aniversario celebrado en familia constituyen ceremonias en que los hombres
desempeñan papeles de acuerdo con un libreto que no son capaces de modificar
porque nadie escapa a los roles sociales que debe representar. (DUVIGNAUD, 1966,
p. 13)94.
Embora reconheça que nem tudo seja cerimônia na vida social, o autor compara a
cerimônia social com a dramática. Duvignaud afirma que os indivíduos podem representar
vários roles ou papéis na sociedade e, nesse sentido, representam os tipos determinados pela
tradição e seguem a conduta que se espera deles. No teatro, no entanto, diz ele, há um poder
simbólico na conduta, e, nesse ponto, a situação dramática e a social divergem: a situação
social encarna os papéis sociais a fim de afirmar seu dinamismo e modificar suas próprias
94 Tradução livre: uma sessão de um tribunal, um júri de um concurso, a inauguração de um monumento, um
serviço religioso na mesquita ou na sinagoga, uma festa, inclusive um aniversário celebrado em família
constituem cerimônias em que os homens desempenham papéis de acordo com um roteiro que não são
capazes de modificar porque ninguém escapa aos papéis sociais que devem representar.
100
estruturas, enquanto “na situação dramática há uma representação da ação, não para realizá-
lamas para adotar seu caráter simbólico” (DUVIGNAUD, 1966, p. 16).
O caráter simbólico das brincadeiras do Pântano do Sul e os seus significados como
teatro e como produção de relações sociais podem ser analisados se adotarmos a perspectiva
desses conceitos. E, nesse sentido, não só as brincadeiras como também as outras formas
espetaculares do Dom Jorge podem ser vistas assim. A partir deles é possível ir além dos
textos transcritos, os quais já foram analisados no capítulo anterior, e debruçar-se sobre as
performances celebradas pelos brincantes infanto-juvenis e pelas performers idosas, meio
século depois.
3.1.3 Origem em Dom-Jorge
“Origem”, em seu significado mais corriqueiro, tem um sentido genealógico e pode
significar: princípio, começo, procedência, ou naturalidade, ascendência (FERREIRA,
1975?). Este trabalho, contudo, encontrou no conceito desenvolvido pelo filósofo alemão
Walter Benjamin (2011) um sentido mais amplo e mais adequado. Em sua obra A origem do
drama trágico alemão, traduzida em 2011, o pensador alemão procura resolver a problemática
estética do objeto artístico, com recurso ao conceito de origem. Ainda que Benjamin
reconheça a origem como categoria histórica, não a entende apenas como genealogia, com
ritmo linear, nascimento, desenvolvimento e morte, mas como algo que emerge de um
processo em que se alternam o devir e o esgotamento, como se o futuro e a decadência se
alternassem em um tempo, no qual o ritmo e a intensidade são levados em conta. Nesses
limites, o autor cria a imagem de um redemoinho em que “a origem está no rio do devir e o
seu ritmo arrasta para a torrente os materiais da gênese...” (BENJAMIN, 2011, p. 257). Sendo
assim, o objeto não pode ser conhecido apenas por meio da aparência dos fatos evidenciados
pela crítica da história dominante, nem o historiador materialista pode ser apenas um
colecionador dos fatos do passado, mas deve também “ser fiel à história presente, porque é
apenas através dela que o passado poderá talvez, algum dia, alcançar sua liberação”
(GAGNEBIN, 1993, p. 69).
Ou seja, seguindo esse pensamento, seria preciso analisar no romance aqui investigado
não apenas sua forma, mas também seu presente, seu contexto, seu processo histórico, visto
como trajetória nunca terminada. Ainda, analisar como se relaciona com outras formas
similares, como se evidenciou no passado e como esse passado pode ser ressignificado a
partir de uma obra de pouca importância para a cultura dominante, mas que pode merecer a
101
investigação, em vistas a um futuro que lhe restaure esse brilho, ou “fulgor”, como prefere o
autor alemão.
Ao escrever sobre o drama barroco alemão, considerado obra de “pouca importância
para a cultura dominante”, ou seja, considerada de qualidade inferior pela história da
literatura, Benjamin diz que pode haver uma outra forma de abordar as manifestações
artísticas consideradas menores. O filósofo alemão sugere examiná-las por todos os ângulos
possíveis, especialmente o de sua forma, e sempre levando em conta “toda a amplitude do
assunto” (BENJAMIN, 2011, p. 52). Isto significa, conforme o autor, incluir, como o faz a
investigação filosófica, seus aspectos extremos para, então, serem formados os conceitos.
Benjamin afirma ainda que o investigador deve guiar-se por conceitos adequados que
o farão atribuir tanta importância a uma obra menor, em que se encontram “as maiores
extravagâncias”, quanto as obras dos maiores artistas, consagrados pela história dominante. O
filósofo alemão acredita também que a forma de uma obra menor pode ser mais significativa
porque tem expressão própria, isto é, se for levada em conta a tentativa dos autores mais
fracos em produzir essa expressão, incluindo seu processo histórico, os meios de que
dispunham em seu contexto social e econômico, ou seja, sua origem.
Seguindo a metodologia proposta por Benjamin (2011) para o estudo da obra de arte,
esta pesquisa levou em conta os mais diversos ângulos de perspectiva, ainda que não
exaustivamente, dos três objetos estudados: o romance Juliana e dom Jorge, a brincadeira
dom-jorge e a peça de teatro Dom Jorge. Ainda que faltasse antes conceituá-las como obra de
arte, o que será feito a seguir, os resultados da pesquisa permitem adiantar que sejam
consideradas obras de arte os três fenômenos supracitados. Pode-se, contudo, entendê-las
como obras menores ou fracas se, no outro extremo, considera-se obras teatrais consagradas
pela história dominante. Algumas delas mantêm um paralelo com os fenômenos aqui
estudados, pois são também derivadas de transcrições de expressões orais mais antigas: Dom
Juan de Molière (1962), Don Giovanni, de Mozart e Da Ponte (1996), El burlador de Sevilla
y convidado de piedra, de Tirso de Molina (1986), Tristão e Isolda, de Richard Wagner
(1938), e Medeia, de Eurípedes (1982).
3.1.3.1 Ser ou não ser arte
Os conceitos de performance e espetacularidade utilizados aqui permitem abordar o
fenômeno popular como celebração ou cerimônia, ainda que isto, por si só, não o legitime
como obra de arte. Em vista disso, foi necessário, antes, conceituar as performances do Dom
102
Jorge como obra de arte95, especificamente, como teatro, premissa sempre admitida pela
pesquisa. Tenta-se, assim, fugir da concepção estreita que vê o objeto como um romance, uma
peça “folclórica”, um “resgate cultural” do passado. Sigo assim também o caminho de outros
autores, de diferentes disciplinas, que aportaram contribuições valiosas para o entendimento
das manifestações populares como arte.
Maria Nazareth de Lima Arrais (2011), em sua tese de doutoramento em Literatura, a
respeito dos contos populares do Nordeste brasileiro, traça um histórico dos estudos sobre a
oralidade e a literatura oral e constata que, desde o terceiro quarto do século XX, tem se
evidenciado uma tendência no meio acadêmico em “reconhecer a literatura oral como arte,
privilégio antes apenas do texto escrito” (ARRAIS, 2011, p. 78). Essa tendência amplia
também o conceito de cultura e de expressão tradicionais, porque permite olhar para outros
objetos e manifestações como obra de arte. Da mesma forma, o linguista estadunidense norte-
americano Walter Ong concorda que “as culturas orais produzem realizações verbais
impressionantes e belas, de alto valor artístico e humano” (ONG, 1998, p. 23).
Em a Sociologia da Arte, Jean Duvignaud (1970) ancora a arte popular firmemente na
produção de relações sociais, ou seja, ela não pode pairar “acima da existência”, e deve ser
analisada por “todos os símbolos sociais que nela se cristalizam e que ela cristaliza no seu
acontecer” (DUVIGNAUD, 1970, p. 53).
Na mesma direção, Luis Batalha (2005) forneceu os entendimentos que permitiram
enquadrar o Dom Jorge como “obra de arte verbal”, livrando-a do “estigma” de ser produto de
uma cultura considerada menor, “primitiva”, capaz de produzir não arte, mas “artesanato”.
Segundo Batalha, do ponto de vista antropológico, é difícil estabelecer a fronteira entre a arte
e o artesanato, já que depende muito do olhar da cultura que os produz e da cultura que os vê.
Batalha reconhece como arte a produção de culturas “primitivas”: “música, canções, pintura,
escultura e performances narrativas como mitos e lendas”, às que acrescento o teatro, arte
narrativa por excelência. Batalha acredita que a arte não deve ser vista como um “luxo para
ser apreciado por uma minoria” (BATALHA, 2005, p. 284), mas como um comportamento
social necessário a todos, no que é corroborado por Duvignaud (1970). Entretanto, essa não
foi a visão dominante da Antropologia até meados do século XX:
As artes verbais fizeram, durante muito tempo, parte daquilo que até há pouco
tempo se designou por “estudos do folclore” (folklore studies), uma disciplina
95 Sendo a arte infantil um assunto pouco estudado em nosso país, não cabe aqui aprofundar a questão.
Pessoalmente, como teatro-educador e pela experiência adquirida nos anos de ensino dessa matéria, acredito
que as crianças do Pântano do Sul praticavam arte cênica, assim como as mulheres da Armação.
103
surgida no século XIX e que consistia em descrever e analisar as estórias orais,
crenças, e outras práticas culturais do campesinato europeu. O folclore era visto
como uma cultura menor dentro da própria sociedade europeia, cujas elites se
orgulhavam da sua cultura de matriz clássica […] Actualmente, a maior parte dos
antropólogos e linguistas prefere falar em estudo das 'tradições' e 'artes verbais' em
vez do tradicional folclore (BATALHA, 2005, p. 286).
Como podemos notar, Batalha, além de denunciar a “inferiorização” da obra popular,
toca num ponto extremamente importante e que se situa transversalmente todo ao longo desta
dissertação. Trata-se do embate entre dois polos culturais que, aparentemente, se excluem,
mas que na verdade se interpenetram e se influenciam mutuamente há séculos, qual seja o
conflito entre a cultura oral e a cultura letrada, e esta está situada em relação àquela, em um
patamar mais elevado na visão da história dominante. E é essa dominação que encobre o valor
da obra menor, no meu entendimento do conceito benjaminiano de origem. Desvendá-la,
restaurar seu fulgor, é a tarefa desta pesquisa.
Assim, a noção de origem, adotada por Walter Benjamin (2011), torna possível
abordar o objeto aqui proposto sob o ângulo da história dos vencidos, das ruínas ou dos cacos,
conforme interpreta Jeanne-Marie Gagnebin, estudiosa de Benjamin, fazendo alusão aos
cacos que constituem um mosaico (GAGNEBIN, 1993). Para montar o mosaico que
Benjamin sugere, aspectos históricos e socioeconômicos foram examinados no primeiro
capítulo. A sua forma, que Benjamin considera a parte mais importante do objeto, foi
abordada no capítulo anterior, no que tange ao texto escrito e à encenação. Cabe agora
analisar alguns aspectos que ajudam a entender os significados e as escolhas feitas durante
esse percurso de sua forma brincadeira infantil até sua forma teatral.
3.1.4 Significados possíveis de uma brincadeira nem tanto infantil
Jean Duvignaud, referindo-se às obras de arte populares levadas a museus, galerias ou
os teatros, reconhece que essa arte revela-se como uma nova região da experiência humana,
mas alerta para o fato de que retirar uma obra de expressão popular ou “primitiva” de seu
contexto significativo, ignorando suas funções, não é o que a legitima como arte. Para tentar
compreender essas formas e entender o significado da criatividade que lhes é inerente, e para
recriá-las, não se pode ignorar suas funções, quase sempre radicalmente diferentes.
(DUVIGNAUD, 1970, p. 82). Por conseguinte, surge a questão: quais as funções que se
evidenciam no fenômeno aqui em investigação?
Já sabemos que a brincadeira infantil dom-jorge deriva do romance Juliana e Dom
Jorge, embora nada leve a crer que este romance tenha sido destinado às crianças, em seu
104
passado português, mas haveria provavelmente uma apropriação pelas crianças do Pântano de
uma tradição antiga96 que não era mais praticada pelos adultos.
Esta pesquisa encontrou poucos intelectuais que se tenham dedicado à cultura popular
infantil para poder responder à questão. O próprio Schechner (c2007) reconhece essa penúria,
porém Benjamin (1987, 2002) aponta algumas teorias, assim como Michel de Certeau (2012),
como veremos em seguida.
3.1.4.1 Sexualidade e violência
A violência e o sexo não costumam ser explícitas na literatura dedicada às crianças,
mas antes dissimuladas. O filósofo e historiador francês Michel de Certeau, no capítulo “A
beleza do morto”, de seu livro A cultura no plural (2012), denuncia o “culto castrador” de
estudiosos da cultura popular, votado a um “povo” que se constitui como objeto de ciência
(CERTEAU, 2012, p. 61). Afirma ainda que esses “cientistas” minimizam a criança e sua
cultura, identificando-a com o “povo”, visto como “bom” e “inocente”, o qual deve ser
estudado para que seja esquecido como força política. Nesse sentido, Certeau crê que assim é
concebido o mundo das crianças pelos etnólogos, que remodelam sua cultura para que possa
ajustar-se ao sonho dos adultos, não sem antes eliminar, dissimulando-os, dois aspectos
fundamentais: a violência e a sexualidade. Certeau reforça a tese de que “as crianças são
depositárias de uma cultura que se transmite à margem da cultura adulta, da qual ela pode
representar uma forma alterada” (MAGET apud CERTEAU, 2012 p. 76).
No caso da brincadeira dom-jorge, entretanto, os dois aspectos, sexualidade e
violência, estão presentes, como em muitos outros contos infantis, aliás. O que é intrigante é a
maneira pouco “inocente” de sua forma, ao apresentar cenas tão marcantes de sexualidade e
violência, e tão próximas do cotidiano. Não é a bruxa má ou o ogro que comete o crime
capital, mas uma moça comum, “sentada em sua sala” a tecer. O galã é “dom”, mas vem
montado em um burrico de pau e panos: “lá'í vem o seu Dom Jorge, com seu burrinho
amontado”. A sexualidade não é abordada nesses estudos acerca do popular, e Certeau aventa
a hipótese de que seja por causa da “inocência” que o adulto quer ver na criança. Quanto à
violência, o autor afirma que esses estudos sempre negaram a violência do “povo” para
96 É interessante notar que em algumas escolas do Nordeste brasileiro, ou pelo menos em uma, conforme o
vídeo pesquisado, esse romance é ensinado e representado por crianças, no caso, em forma de bonecos
animados (AGUIAR, 2013). Encontramos também registros de encenações caseiras, em que os mais velhos,
que ainda guardam na memória aquela experiência, parecem incluir as crianças, como se quisessem passar a
elas a brincadeira que faziam na infância (CARIMESTAR, 2013).
105
melhor esconder sua própria violência, ao desconectá-la dos grandes movimentos e lutas
populares que desencadearam a repressão à cultura popular na França dos séculos XVIII e
XIX.
Visto dessa maneira, a performance dom-jorge seria um jogo muito mais sofisticado,
com significados e funções muito além de outras brincadeiras infantis. Para entendê-los, a
pesquisa recorreu uma vez mais a Richard Schechner (c2007), para o qual essa necessidade de
“escrita” teatral é inerente à nossa espécie, muito anterior ao teatro grego arcaico. Schechner
diz ainda que a performance, ao ser celebração, ou seja, atividade espiritual, cria o que ele
chama de um “mundo especial da performance”, em que os celebrantes podem experimentar
virtualmente uma outra vida e fazer face a seus desafios, lidar com transgressões e tabus,
superar medos e pudores. No que concorda com Boal (1996), como vimos no capítulo
primeiro.
Nessa perspectiva, a brincadeira dom-jorge assume significados importantes para as
meninas e mesmo os meninos do Pântano do Sul. Ao fazerem teatro celebravam, mais que
um simples jogo inocente, um evento social em que os papéis mais relevantes na comunidade
– mãe, galã, donzela - podiam ser “testados”, no mundo “especial” da performance. Nesse
sentido, o artigo de Tereza Franzoni esclarece: “as manifestações populares de caráter
dramático são, não só formas de expressão da vida coletiva, como também espaços de
sociabilidade e de intensa produção social” (FRANZONI, 2012, p. 56). A autora afirma ainda
que este “faz de conta” não é ficcional, pois na sociabilidade encontraríamos tudo aquilo que
poderia ser definido na forma sociológica do jogo.
Schechner deixa pistas para entender a relação entre a brincadeira infantil e a fantasia
adulta, ou seja, a arte97. Nesse sentido, ele recomenda os estudos de Sigmund Freud e Jean
Piaget acerca da ligação existente entre o princípio do prazer na infância e nossas criações
artísticas adultas.
Este estudo avalia que faltaria incluir em sua lista Walter Benjamin (1987, 2002), que,
apesar de ter deixado apenas poucos artigos sobre a brincadeira e o mundo infantil, são de
97 Schechner queixa-se da falta de uma pesquisa mais aprofundada para entender essa relação entre a
produção artística infantil e a arte dos adultos (SCHECHNER, 2007, p. 24, nota 22). Eu concordo
plenamente e, nesse sentido, sinto, em meus anos de trabalho como teatro-educador em Santa Catarina, que a
produção artística feita por crianças é pouco reconhecida como arte, com exceção talvez apenas da
performance dos cantores, atores e atrizes-mirins na TV e no cinema. Diferentemente dos artistas-mirins de
países orientais, como a India, onde estive em novembro de 2006, como responsável de meu grupo TEAR -
Teatro Juvenil da Armação, participando de um festival internacional de teatro de crianças. Pudemos notar,
naquela ocasião, que aquelas crianças possuíam um alto domínio técnico do jogo de representação que
denotava uma cultura da performance muito arraigada, e que os meninos e meninas eram tratados como
verdadeiros artistas.
106
grande profundidade teórica, como os conceitos de “magnetismo” e de repetição ou de
“eterno retorno”, o qual retoma a partir de Freud, que descreve a fascinação que o ato da
repetição exerce sobre as crianças. Adentrar estudos de Freud, ou da teoria dos jogos98 está
longe dos objetivos deste Mestrado. Contudo, para ter uma noção com relação à psicologia
infantil, sobre quais as funções que a “brincadeira funcional”, o “jogo simbólico” e o “jogo de
regras” exercem no mundo das crianças, a leitura de pelo menos uma obra do psicólogo suíço
Jean Piaget tornou-se necessária para perceber o mecanismo psicológico que, na evolução da
criança, leva da simples brincadeira funcional ao sofisticado jogo de regras teatral.
3.1.4.2 Simbolismo da brincadeira: obediência versus liberdade individual ou a guerra dos
sexos
Jean Piaget (c1990), em A formação do símbolo na criança, diz que a capacidade de
brincar é adquirida pela criança em suas primeiras etapas de vida, por meio do processo que
ele chama de “assimilação” pura, motivado pelo simples “prazer funcional”. A brincadeira
primordial do infante, como, por exemplo, sugar o polegar ou mesmo procurar algo ou
alguém que desapareceu atrás do sofá, com a idade, segundo o autor, tende a evoluir para
formas mais elaboradas: as brincadeiras ou jogos “simbólicos”, os quais exigem maiores
esforços pelo mecanismo que Piaget chama de “acomodação”99. Esses processos têm funções
fundamentais para o aprendizado da vida e da cultura de seu grupo.
3.1.4.2.1 Jogos simbólicos
Piaget afirma que a função do jogo simbólico é assimilar o real ao eu e assim libertá-lo
das exigências da vida infantil. Essas exigências podem apresentar-se como medos e desafios,
e o simbolismo dos jogos ajuda a superá-los. Ele exemplifica com a brincadeira de bonecas,
98 A teoria dos jogos está bem estudada na dissertação de Antonio Carlos de Oliveira Junior (2015), o que me
deu um panorama amplo desse campo de estudos para poder eleger o foco em meu trabalho, que se restringiu
a algumas concepções de Piaget (c1990), Certeau (2012) e Benjamin (2002).
99 A “acomodação”, necessária para o aprendizado dos jogos que lidam com símbolos, exige esforços
intensos, segundo Piaget, sempre preocupado com o sofrimento das crianças ao adaptar-se ao mundo. Já na
“assimilação”, necessária para o aprendizado dos jogos primários e menos exigentes, o jeu evolui de uma
maneira mais prazerosa, conforme explica o suíço: “por relaxamento do esforço adaptativo e por manutenção
ou exercício de atividades pelo prazer único de dominá-las e delas extrair como que um sentimento de
eficácia ou de poder” (PIAGET, c1990, p. 117). Exemplo: quando a criança consegue segurar o chocalho e
agitá-lo para ouvir o som.
107
um jogo simbólico praticamente universal, sobre o qual diz que “na maioria dos casos, a
boneca serve apenas de ocasião para a criança reviver simbolicamente sua própria existência”
(PIAGET, c1990, p. 173), ou seja, de uma parte serve para melhor assimilar os diversos
aspectos da existência da criança e, de outra parte, para “liquidar os conflitos cotidianos e
realizar o conjunto de desejos que ficaram por saciar”. Há, pois, no jogo simbólico, um
significado profundo que releva da libertação de opressões das atividades sérias, pelo meio de
soluções aceitáveis para o eu, conforme exemplifica o psicólogo suíço:
O jogo [jeu]100 ignora os conflitos ou, se os encontra, é para libertar o eu por uma
solução de compensação ou de liquidação, ao passo que a atividade séria se vê a
braços com conflitos que ela não saberia desviar. É inegável que este critério é, em
suas linhas gerais, exato. O conflito da obediência e da liberdade individual é,
por exemplo, o tormento da infância. Ora, na vida real esse conflito só comporta
como soluções a submissão, a revolta ou uma cooperação que comporta, também
ela, certa parcela de sacrifícios. No jogo, ao contrário, os conflitos mais precisos são
transpostos, de maneira que o eu tira sua desforra, seja pela supressão do problema,
seja porque a solução se torna aceitável (PIAGET, c1990, p. 191, grifo nosso).
Então, se o grande tormento infantil é o da obediência, cabe notar que é esse o maior
conflito que a mãe de Juliana deflagra no dom-jorge, e que vai levar ao trágico fim do
cavaleiro, quando canta: “eu te disse, minha filha, não quiseste me acreditar/ que d. Jorge é de
costume de toda moça enganar”. Como resposta, surge a reação fatal de Juliana, que canta:
“Eu te juro, minha mãe, pelo Deus que nos criou/ que d. Jorge não se casa com um novo
amor”. Se este jogo teatral poderia ser a maneira de lidar com problemas de autoridade e
liberdade e do conflito de gerações, outros conflitos, no entanto, evidenciam-se na história
que é contada. Conflitos de gênero: o jogo era “de meninas”; conflitos morais relativos a
sexo, traição e assassinato; conflitos de idade: a brincadeira era “de crianças”, ou seja, até
cerca de 12 anos, contudo, as entrevistadas falam que, apesar de maiores, com 15 e mesmo 17
anos, algumas já namoravam e ainda gostavam de participar no dom-jorge.
3.1.4.2.2 Jogos de regras
O jogo simbólico, segundo Piaget, com o tempo evolui para um estágio em que se
estabelecem estratégias, e o estabelecimento delas transforma o jogo simbólico em jogo de
regras. A partir dos 7 ou 8 anos até o final da infância, em torno dos 12 anos, esses jogos de
regras começam a tomar importância crescente e tornar-se-ão quase que exclusivos na
adolescência, ao mesmo tempo em que abandonam gradativamente o simbolismo em prol de
100 Jeu , em francês, é um termo polissêmico, aqui tem o sentido de brincadeira.
108
representações cada vez mais realistas. Como foi dito, essa era a faixa etária que gostava de
brincar de dom-jorge. O que ressalta nessa brincadeira aqui analisada é a complexidade e
sofisticação das regras do jogo e a amplitude dos símbolos implicados. Isto porque a
brincadeira dom-jorge tem de lidar não somente com símbolos pessoais e sociais, tais as
relações com o próprio corpo, entre mãe e filha, entre meninos e meninas, sexualidade e
violência, mas também, por ser uma performance teatral, exige regras formais muito
sofisticadas quanto ao espaço, à movimentação e à representação de personagens.
3.1.4.2.3 Magnetismo e repetição
Walter Benjamin (2002), ao abordar a questão do jogo, da brincadeira, aponta outras
funções para ele. Em “Brinquedos e jogos”, um artigo de 1928, ele retoma a teoria de Willy
Hass , chamada “teoria gestáltica dos gestos lúdicos” (BENJAMIN, 2002, p. 100), a qual
aponta três princípios fundamentais dos jogos:
Em primeiro lugar, gato e rato (todo jogo de perseguição); em segundo lugar, a
fêmea que defende o seu ninho com filhotes (por exemplo, o goleiro e o tenista); em
terceiro lugar a luta entre dois animais pela presa, pelo osso ou pelo objeto sexual (a
bola de futebol ou de polo) (BENJAMIN, 2002, p. 100).
A brincadeira do dom-jorge aqui em pauta não parece situar-se completamente em
nenhum dos princípios. Benjamin, no entanto, expande essa teoria, propondo que ela inclua o
“magnetismo” que interage entre as duas partes, como o arco e a flecha, pião e fieira.
Acrescento ao rol as personagens Juliana e D. Jorge, que assim dariam à brincadeira de dom-
jorge a função de jogo sexual, ou mesmo uma guerra de sexos. Nesse artigo, Benjamin
(2002) acredita que, antes de nós adultos penetrarmos, pelo arrebatamento do amor, na
intimidade de outro ser estranho, já teríamos experimentado essa experiência com os jogos
infantis, que, dessa forma, nos “torna senhores de nós mesmos”.
O filósofo alemão atenta ainda para que seja examinada a grande lei do mundo dos
jogos: a lei da repetição. Nada é mais prazeroso para uma criança do que repetir uma
brincadeira ad infinitum. Benjamin compara esse impulso ao impulso sexual no amor, assim
como Freud, o qual pensou ter descoberto um “além do princípio do prazer” (BENJAMIN,
2002, p. 101) nessa compulsão infantil.
A repetição tem uma função importante no significado do dom-jorge. Cabe notar que a
repetição é também o princípio da transmissão oral; os romances, para serem transmitidos,
eram decorados pela constante repetição, por meio dos cantadores, para que se perpetuassem e
109
o conhecimento subsistisse (ONG, 1998). A repetição é também o mecanismo de todo ritual,
e, por consequência, do teatro101 (SCHECHNER, c2007). Se levarmos em consideração ainda
o simbolismo dos jogos e os esforços de acomodação e assimilação que atormentam e
divertem a criança (PIAGET, c1990), podemos concluir que o dom-jorge era prazeroso para
quem dominasse suas regras sofisticadas. Talvez perigoso para quem não tivesse esse dom ou
essa capacidade?
3.1.4.3 A máscara do pudor
Do relato de Dona Zenaide, dois elementos chamam a atenção pelo significado que
possam encerrar: primeiro, a vergonha que os meninos tinham em fazer aquele teatro; depois,
como já abordado no capítulo anterior, um verso recitado por Dona Zenaide que utiliza o
verbo “gozar”, o qual, em nossa variante, é substituído por “casar”. É o momento em que a
filha jura para a mãe que vai impedir o casamento de D. Jorge:
Eu te juro ó minha mãe,
pelo Deus que nos criou
que Dom Jorge não se goza
de um novo amor
Essa variação léxica diz respeito a um certo sentimento de “pudor” que permeia alguns
aspectos da manifestação em estudo. Esse sentimento parece ser o responsável pela iniciativa
das idosas em retirar do texto um termo que tomou significação sexualizada nos dias atuais102.
Pudor parece também ter correspondência com a “vergonha” dos meninos em participar da
brincadeira inteiramente. Esse afeto, como denomina o teatrólogo e dramaturgo alemão Hans-
Thies Lehmann em sua obra Escritura política no texto teatral (2009), assim como a
castidade, que deveriam expressar “certas sutilezas, reservas e distanciamentos” em todas as
áreas do comportamento, foram ao longo do tempo se restringindo à sexualidade. Isso,
101 Em francês répétition (repetição), é o termo usado para “ensaio” no teatro.
102 Recentemente, em reunião com o grupo Alegria de Viver, conversando com minhas colaboradoras
sobre o
Dom Jorge, Leonice, uma delas, confessou que ela mesma mudou o texto original na hora de transcrevê-
lo, porque a palavra “gozar” nos versos do poema lhe pareceu muito sexual e substituiu por “casar”. Todas
riram ao ouvir o relato, como se fossem cúmplices. Perguntada sobre qual o significado que esse verbo teria
na infância, respondeu-me que tinha o sentido de obter prazer, sem conotação sexual como agora.
110
segundo ele, causa problemas na vida social, porque “a delicadeza dos sentimentos e das
relações” sofre com isso103 (LEHMANN, 2009, p.34).
Pudor, conforme Lehmann (2009) teoriza no capítulo sobre a representabilidade, é
um princípio primordial que tem relação direta com a máscara, com a representação, ou seja,
com o teatro. “O pudor (Scham) é uma exaltação dos sentidos ou afeto muito especial. A
palavra passa pelo antigo alto alemão [...] que significa cobrir, ocultar” (LEHMANN, 2009, p.
33). Visto assim, o pudor seria um antiafeto, uma inibição da expressão, uma espécie de
máscara que protege e abriga a pessoa de si mesmo e dos outros. Em outras brincadeiras
dramáticas mais “masculinas”, como o boi de mamão, sempre citado, essa vergonha dos
meninos transformava-se em audácia pela proteção das máscaras104 que fazem parte dessa
brincadeira. Os meninos relutavam em encarnar as personagens do dom-jorge, pois, além de
pertencerem ao “reino feminino”, o personagem masculino é repetidamente sacrificado em
cada brincadeira, o que, simbolicamente, não deveria ser atraente para os garotos.
A máscara, segundo Lehmann, é a própria estética do pudor e, evidentemente, do
teatro. Mas ali, no dom-jorge, as máscaras são muito mais sutis, não são dadas ao olhar. Só as
meninas prestaram-se ao jogo do pudor sem máscaras palpáveis, os meninos preferiram fugir
do desafio. Lehmann nos diz que o pudor é responsável por articular todo o jogo de ocultar e
descerrar, mostrar e disfarçar, enigma e revelação. Isto porque a representação não pode ser
concebida sem o encobrimento, o adiamento e a privação.
Desse modo, o pudor é “o núcleo emocional, afetivo de toda a estetização. Por isso sua
figura guarda a questão da representação da cultura e da cultura da representação – a questão
do teatro” (LEHMANN, 2009 p. 34). Seria então o teatro com o fascínio de seu jogo de
mostrar e ocultar e cuja prática intermedeia as relações sociais e privadas, outro motivo para
que essa história de paixão e vingança seja sempre repetida em tantos lugares diferentes e por
tanto tempo?
103 A vergonha dos meninos, o medo de expor-se numa representação pública em que devem jogar um jogo
muito sutil e delicado, revelam um pudor bastante comum aos meninos até hoje, mas também um preconceito
da sociedade atual, que considera o teatro uma arte não muito “masculina”. Como professor de teatro de
crianças e adolescentes na escola da Armação, várias vezes deparei-me com o problema. Não somente o
número de meninos era muito menor do que o das meninas, mas a pressão dos colegas, o chamado bullying,
causou várias baixas no elenco masculino.
104 Máscara aqui é concebida como caracterização completa dos personagens do boi de mamão, que pode
incluir desde os vaqueiros, com apenas um chapéu como adereço, até bonecos portados pelos ombros, como
o cavaleiro/centauro laçador ou totalmente manipulados de dentro, como o boi, a cabra, a bernunça, a
maricota, e outros.
111
3.2 REINVENÇÕES DO DOM-JORGE
As reinvenções operadas pelas mulheres da Armação foram duas: a primeira,
improvisada, contava com apenas três personagens: Juliana, a Mãe e D. Jorge. A segunda,
mais elaborada, foi a encenada pelo grupo Alegria de Viver, cerca de uma ano depois.
3.2.1 Fazer “um teatro”: D. Jorge (re)surge na festa da capela
Pode-se afirmar, resumidamente, que a encenação Dom Jorge, feita por três
integrantes do Apostolado da Oração, o qual é ligado à capela de Sant'Ana e São Joaquim, na
Armação do Pântano do Sul, em julho de 2004 (?), constitui-se como uma performance teatral
produzida a partir das memórias de duas moradoras da Armação. Elas guardaram em seus
corpos as brincadeiras de dom-jorge que haviam participado quando crianças no Pântano do
Sul105. As lembranças vivas dessas duas senhoras, tanto da melodia e dos versos rimados,
quanto dos gestos e marcações de movimento, foram decisivos para essa (re)criação. Foram
suas memórias, “mental” e “do corpo” (LEHMANN, 2007, p. 318), que certamente
forneceram àquelas mulheres os elementos fundamentais para suas escolhas no momento da
transposição da brincadeira para a forma de teatro. Escolhas traduzidas em cantos rimados,
dos quais lembravam a melodia e a letra; na representação das personagens com seus gestos,
deslocamentos e figurinos; e na elaboração de um espaço cênico definido, com a separação do
público e da cena.
O que se pode primeiramente notar é que, diferentemente da brincadeira infantil, de
cunho rural, o que temos 50 anos depois são celebrantes adultos e inseridos na modernidade,
os quais têm vontade de fazer “um teatro” para um público específico, que vem vê-los nas
apresentações. Em depoimentos, algumas mulheres do grupo revelaram-me que o momento
em que decidiram encenar o teatro, foi durante as comemorações dos padroeiros católicos da
capela da Armação. Para animar a festa, dona Madalena junto com Leonice tiveram a ideia de
reapresentar a brincadeira dom-jorge a que haviam assistido e mesmo participado anos atrás,
quando ainda meninas, no Pântano do Sul. Elas estavam preocupadas em animar o público
que viria para a festa. Leonice comenta: “naquele tempo não havia bingo, né?”. Leonice conta
como surgiu a ideia, naquele dia de julho, da festa dos padroeiros.
105 Algumas das mulheres criadas na Armação disseram-me que naquela comunidade não teriam
praticado a
brincadeira de dom-jorge quando pequenas, mas que o faziam quando iam ao Pântano do Sul e teria sido
lá
que aprenderam.
112
A ideia de fazer o teatro foi no Apostolado da Igreja. Ia ter uma festa na igreja e a
Madalena chegou perto de mim e disse: - Leonice, como é que nós vamo fazê uma
apresentação, que hoje o pessoal à tarde tá tudo aí. Aí eu peguei e disse assim: -
vamo fazê o dom-jorge! Tu sabe? Ela: - eu sei de cor. Aí ela disse assim – e quem é
o homem? Quando ela disse isso, o Mauri abriu a porta, eu disse: chegou o dom
Jorge! Que dom Jorge? ele respondeu, e eu disse: tu vai ser o dom Jorge, eu sou a
filha, a Madalena é a mãe e tu vai ser o dom Jorge, vamo ensaiá aqui. Já escrevi num
papel e já fizemos o teatro. Foi aplaudido de pé [ela mesma aplaude]. O Mauri veio
com a vassoura fazendo o cavalo, a Madalena e eu com a roupa do apostolado e
fizemos o teatro ali no salão [da capela] (ALANO, 2016).
Note-se aqui que o seu primeiro gesto ao transformar a brincadeira em desejo de teatro
é “escrever”, ou seja, transcrever a forma oral em escrita. Esse gesto espontâneo e súbito,
carregado de simbolismo, levanta algumas questões. O que as teria motivado e quais foram
suas escolhas? O motivo principal naquele momento foi garantir ao rapaz a possibilidade de
aprender o texto106, já que ele não detinha a memória dos versos, ao contrário delas. Sabiam
que teatro se faz com texto, ensaios, repetições, mesmo sem nunca terem ido assistir ao teatro,
conforme me revelaram dois anos depois; isto pelo fato de que nesses cinquenta anos tiveram
suas vidas inseridas na modernidade e a noção de teatro incorporou em seu imaginário.
Provavelmente esse texto primeiro, que está perdido, foi resultado de um consenso
entre as duas mulheres, pois raramente teriam na memória exatamente a mesma variante em
termos de música ou texto. A forma que adotaram, colocando no papel um texto que
representava suas memórias e provavelmente suas ações, revela a oralidade e a teatralidade do
texto, se as olharmos sob alguns aspectos analisados por Walter Ong (1998). Baseando-se
principalmente nas descobertas de Millman Parry (1902-1935), acerca da estrutura oral da
Ilíada e da Odisséia107 (ONG, 1998, p.30), Ong tenta entender como se faz essa passagem da
estrutura oral, repleta de fórmulas, versos e rimas, para a estrutura “quirográfica”, ou seja,
para a escrita. E conclui que “a primeira escrita, em toda parte, parece ser de início,
necessariamente, uma mimetização em manuscrito da atuação oral” (ONG, 1998, p. 36).
No caso do Dom Jorge, não há na escrita somente uma mimetização da atuação oral,
mas também corporal. A evidência é que as mulheres que encenaram a peça foram obrigadas a
resolver sozinhas os problemas de marcação, gestualidade e organização dos diálogos. Esta
pesquisa avalia que elas não tiveram muitos problemas com a encenação porque supõe que
tinham as didascálias gravadas na partitura que ficou na memória de seus corpos.
106 Esse texto inicial não foi encontrado pela pesquisa. O texto que uso é o que preponderou no concerto das
participantes e que eu compilei como professor, para servir de “texto oficial” do grupo.
107 Ilíada e Odisseia são poemas épicos gregos de tradição oral que foram transcritos por Homero, segundo a
tradição. Desses épicos gregos, brotou o teatro antigo, ou seja, o teatro é um produto da cultura escrita, que
se serve da oralidade, a qual lhe fornece o material para a sua dramaturgia.
113
Não foram encontrados registros da primeira apresentação do Dom Jorge, além das
memórias de uma das participantes. O que se pode supor, daquela representação, é que havia,
além do desejo de divertir o público, uma vontade de reviver a infância, pela restauração de
uma brincadeira que a idade avançada lhes permitia recriar com outro significado. Brincar de
dom-jorge aos 60 anos não é a mesma coisa que aos 10 anos, evidentemente, pois já não
representa os mesmos conflitos morais, de autoridade ou de classes de idade; só o prazer
parece ter a mesma intensidade. A forma da manifestação, ao ser profundamente dramática,
impeliu-as a criar um espetáculo para o tempo presente, certas de causar impacto na
audiência, tanto pelas lembranças a serem evocadas nas pessoas de sua idade, quanto pela
certeza de intrigar as mais jovens, por causa da temática transgressora apresentada.
O rapaz que encarnou a personagem D. Jorge, Mauri, entrou de surpresa e aceitou o
jogo. Mais tarde, recusou-se a continuar participando108. Seria porque compreendeu o caráter
“feminino” daquela manifestação? Sofreu alguma espécie de discriminação machista por
causa de sua participação?109
Do público da primeira apresentação do Dom Jorge, em 2004, ou um pouco antes, no
salão da capela da Armação, pouco se sabe, não foram encontrados registros até agora. Era o
dia da comemoração dos padroeiros Sant'Ana e São Joaquim, que são também os padroeiros
dos avós, no Brasil, dia 26 de julho. Embora a data exata do evento não seja conhecida desta
pesquisa, era um dia de festa da paróquia, com certeza. Posso imaginar que o público
assemelhava-se muito ao da primeira apresentação na comunidade do Dom Jorge do grupo
Alegria de Viver, em 2007, ou seja, moradores das redondezas, parentes, vizinhos,
conhecidos, além de alguns poucos turistas do centro da cidade ou de fora, já que
provavelmente a festa aconteceu num fim de semana. O que se sabe é que foi um sucesso:
“foi aplaudido de pé”, diz Leonice. O que teria causado o sucesso? Certamente, o prazer de
estarem reunidos para uma celebração, uma atividade não produtiva, em suma, para trocar
uma “experiência” coletiva, a Erfahrung, de que nos fala Benjamin (1987). Isto é uma
necessidade humana, constatada por alguns autores, como Shechner (2007). Ele enumera os
motivos que nos levariam, ancestralmente, a nos reunirmos em momentos celebrativos: para
manter relações de amizade; para trocar coisas, parcerias, troféus e técnicas; para exibir e
trocar danças, canções e histórias. Ora, aquelas mulheres do Apostolado da Igreja tinham uma
história para contar, e os espectadores gostaram do que assistiram. Talvez, em alguns,
108 Em outras apresentações subsequentes, o personagem era encarnado por uma das participantes, a Denair.
109 Embora não tenha registros, a mim foi confiado, em uma aula, que os maridos não queriam que um
homem
representassem o d. Jorge, por terem ciúmes.
114
despertou cenas de sua infância, para outros, a surpresa de saber que um enredo tão adulto
pudesse ser uma brincadeira de criança, como foi o meu caso quando tive contato com o texto
pela primeira vez.
3.2.2 Teatro “folclórico”
Figura 6 - Capa do DVD Dom Jorge, registro da apresentação no teatro da UBRO em 2007 e
distribuído a cada participante do grupo
Fonte: Tony Alano.
A partir desse grupo do Apostolado da Igreja, foi formado um grupo de danças
folclóricas110 e o Dom Jorge foi incorporado ao seu repertório. Dona Madalena assumiu a
liderança, junto com Roseli Pereira. Surge assim o Grupo de Danças Folclóricas Alegria de
Viver. Assim, a manifestação passa por uma nova transformação e torna-se uma peça de
“teatro folclórico açoriano”. Além disso, introduziram por conta própria outros elementos na
peça, como intervenções dramatúrgicas, invenção de novas personagens e figurinos, e a
introdução da música acompanhando as cantorias, feita por grupo de músicos tradicionais,
com sanfona, violão e pandeiro, ou seja, a mesma formação comum para quase todo tipo de
música folclórica da região.
Outro grupo apresentou, durante um tempo, o Dom Jorge como “teatro folclórico”
também: o grupo de idosos do Pântano do Sul. Os relatos dados por três integrantes desse
grupo são contraditórios com os do grupo da Armação, por isso não foi possível estabelecer
qual dos grupos foi o primeiro a apresentar o espetáculo. Isto tem pouca importância, do
110 O grupo, hoje, se chama apenas “Alegria de Viver”.
115
ponto de vista da origem, tal qual a entendemos nesta pesquisa. No entanto, cabe relatar
alguns fatos que auxiliam no entendimento do fenômeno da Armação. É preciso notar que a
mãe de Denair, a falecida dona Demésia, era quem liderava o grupo do Pântano do Sul111 e
fazia o papel masculino, como me foi declarado. Denair, seguindo a tradição materna,
representava o personagem D. Jorge no grupo da Armação e detinha uma certa ascendência
sobre ele, que foi revelada na distribuição dos papéis, como vimos no segundo capítulo.
Tampouco foi possível determinar a época em que surgiu na comunidade do Pântano do Sul;
segundo o depoimento de dona Catarina, integrante do grupo de idosos do Pântano do Sul:
“isso foi há mais de dez anos”. Um relato importante revela os elementos cênicos utilizados.
Dona Lucía, integrante do mesmo grupo, diz que a encenação era executada por apenas os três
integrantes que faziam os papéis principais: a mãe, a filha e o cavaleiro. Segundo elas, o
figurino era o de “jeca”, ou seja, o caipira, que na ilha é chamado de “manezinho”. O espaço
era uma roda formada pelos integrantes do grupo, onde colocavam duas cadeiras e ali
sentavam Juliana e sua mãe. Cabe notar ainda que as mulheres do Pântano também
acrescentaram o mesmo desfecho112 da Armação: “já morreu o seu Dom Jorge, já morreu já se
acabou, na cova do seu Dom Jorge nasceu um buqué (sic) de flor”. Isto não esclarece sobre
qual dos grupos influenciou o outro, porém torna-se irrelevante, pois o que importa é que
essas informações dadas são cacos preciosos da história que ajudam a montar o mosaico final.
Quanto à recepção pelo público, a construção dramatúrgica da peça, bastante
esquemática, presta-se a vários gêneros teatrais, da farsa à tragédia, passando pelo
melodrama, o auto ou a moralidade medievais, conforme foi analisado no capítulo anterior.
Os relatos e documentos nos dão indícios de que as escolhas das mulheres para as primeiras
transposições do dom-jorge para o Dom Jorge eram em forma de comédia. Pode-se supor que
representava uma autoimagem inventada de sua cultura, caracterizada como “manezinha”, ou
seja, como caipira, rural. Havia, nesse sentido, uma visão folclórica, de “resgate” de uma
cultura ancestral, vista nesse momento por elas como “folclore açoriano”113.
111 Conforme depoimentos a mim confiados em 2015, primeiramente foi chamado de clube ou grupo da
“dona
Maria Joana”, hoje é o “grupo de idosos do Pântano do Sul”, animado por Rute Fidêncio da Costa e
registrado na Prefeitura, como outros tantos grupos de idosos da Capital. O grupo já apresentou o Dom Jorge
em diversas localidades, como no Pântano do Sul, na Pinheira (praia do continente), no centro da cidade
(Clube 12) e outros lugares.
112 Não se sabe se esse final foi criação do grupo de idosos do Pântano do Sul aproveitado pelo grupo da
Armação ou se foi o contrário. Dez anos se passaram e a memória pode ter confundido os fatos.
113 Essa discussão está descrita no capítulo primeiro.
116
RESTAURAÇÃO
A primeira escolha das mulheres do Apostolado da Igreja que se tornou relevante é a
que Leonice e Dona Madalena fizeram, qual seja, representar para o público da festa o dom-
jorge que faziam quando crianças. Por que escolheram essa brincadeira e não outra,
brincadeira dramática como apareceu-a-margarida ou senhora-dona-condessa114? Seria pela
característica extremamente teatral da brincadeira? Como vimos, o texto tem grande
qualidade dramática e não apresenta narrativas, já que as ações executadas pelas performers
narram toda a história. Seria pela temática transgressora? As transgressões da infância são
diferentes da velhice? A comparação é sempre com o mundo adulto, produtivo, para quem as
franjas etárias extremas são de uma certa forma subalternas. Transgredir as normas que esse
grupo etário lhes impõe, para as crianças, representava a superação dos medos e opressões
infantis, ligados à obediência e à afirmação da individualidade, como afirma Piaget (c1990).
Para as idosas, representa a superação de limitações da idade, tanto físicas como as ligadas à
produtividade e às relações afetivas no mundo moderno.
A segunda escolha, no momento em que encontram o rapaz para ser a personagem D.
Jorge, poderia ser vista como um acaso: o rapaz entrou após a questão proferida por Dona
Madalena: - quem vai ser o D. Jorge? Nas brincadeiras infantis, dificilmente um menino se
prestaria a esse papel, como relataram. Mas 50 anos depois, a guerra de sexos não interessa
mais às anciãs? Elas pretendiam apenas divertir seu público, ou também queriam divertir-se?
A escolha mais significativa, contudo, parece ser o momento em que decidem escrever
o texto, isto é, transcrever o canto guardado em suas memórias. Esse momento marca
simbolicamente o ato que as mulheres realizaram durante suas vidas: passaram de uma
condição rural ou semirrural, em que a oralidade ainda era predominante, para uma vida em
que o ritmo da modernidade transformou sua maneira de viver. No gesto de escrever no papel
aquele texto, elas faziam da expressão oral um texto teatral e, ao encená-lo, transformaram a
brincadeira em manifestação artística, em teatro.
Segundo Schechner (c2007), há teatro quando se tem a intenção de fazê-lo. As
crianças não tinham a intenção de fazer teatro, mas brincar, pois não consta que houvessem
tido contato com o teatro. Por outro lado, segundo o mesmo autor, as meninas, ao delimitarem
114 Apareceu a margarida ou onde-está-a-margarida e senhora-dona-condessa são brincadeiras infantis
provavelmente originárias de romances e que se caracterizam por ações dramáticas mescladas com
narrativas. Segundo Lima (1971), esse caráter dramático-narrativo é o “elemento primordial” dos velhos
romances ibéricos, os quais, no Brasil são encontrados em outras formas como “dorme-nenês”, “modinhas” e
“brinquedos infantis” (LIMA, 1971 p. 4).
117
e estabelecerem um “espaço especial” para sua brincadeira pela prática de um minucioso
ritual com as pedras, podem estar fazendo teatro; mais ainda, estar erigindo um teatro, pois,
segundo Schechner, a transformação de um “espaço” em um “lugar” é a “construção” de um
teatro (SCHECHNER , c2007, p. 174).
Assim, a história do cavaleiro e da donzela enganada era repetidamente encenada no
teatro que aquelas crianças erigiram. Para Schechner, essa necessidade de fazer teatro é
inerente à nossa espécie, muito anterior ao teatro grego arcaico. O autor diz ainda que a
performance, ao ser celebração, ou seja, atividade espiritual, cria o que ele chama de um
“mundo especial da performance”, em que os celebrantes podem experimentar virtualmente
uma outra vida e fazer face a seus desafios, lidar com transgressões e tabus, superar medos e
pudores. Para as crianças do Pântano do Sul, participar da performance do dom-jorge era
poder experimentar o jogo dos adultos e, assim, superar, no mundo “especial” da
performance, os vários desafios e, ao mesmo tempo, preparar-se para as relações entre
homens e mulheres no mundo adulto.
As mulheres idosas, ao contrário das crianças, ao reinventarem a brincadeira 50 anos
depois, tinham o desejo, como elas mesmas disseram, de “fazer um teatro”, divertir o público
que vinha para a festa, exibir-se para eles, num movimento de valorização da chamada
“Terceira Idade”. O conceito “teatro”, que não existia muito provavelmente no Pântano do
Sul dos anos 1950/60, foi incorporando-se nas mentes dessas mulheres nesse meio século,
período em que a vida dos habitantes do Distrito do Pântano do Sul sofreu uma radical
mudança socioeconômica que permitiu à modernidade, com seu ritmo e suas informações,
impor-se em suas vidas. Dessa maneira, as recriações operadas pelas mulheres da Armação
tomam aspectos relevantes, além da brincadeira e do folclore, e inserem-se na modernidade
como manifestações criadoras, artísticas, teatrais.
Quanto aos homens, seu papel nos espetáculos é discreto, na penumbra, de longe. Só
aparecem para os aplausos redobrados. A participação no grupo também é tímida. Há
resquícios de um conservadorismo nas relações homem-mulher na sociedade que persistem,
apesar da modernidade. A presença dos homens na cena, desde crianças, é figurativa, mas na
vida cotidiana, ao contrário, não recusam o papel de protagonista. A “guerra dos sexos” não
parece ter acabado, mesmo com a idade. Acredito que esta dissertação pode servir também
para provocar discussões e contribuir dessa maneira para alargar as visões dos homens. Isto
significa estreitar as relações com o grupo de danças e, nisto, com o próprio corpo.
Para a pesquisa, estudar as sucessivas criações das mulheres e meninas do sul da Ilha é
propor não apenas uma nova recriação, mas uma “restauração” dessa rara manifestação teatral
118
popular de Florianópolis, no sentido proposto por Walter Benjamin (2011). Para Benjamin, o
objeto deve ser analisado com dupla perspectiva, “a da restauração, entendida como
reconstituição e, por outro lado, no contexto do drama barroco [e, por extensão, o Dom
Jorge], como algo que é imperfeito e inacabado” (GAGNEBIN, 1993, p. 258). Ou seja,
Benjamin entende a restauração não como uma recomposição genealógica ou formal, mas
como uma ação que reconstitui no objeto sua essência, retomando de Leibniz (século XVII) o
conceito de “mônada”. Assim, Benjamin aconselha a fugir das generalizações que se nos
impõe a análise histórica burguesa e a buscar a relação dialética entre a “singularidade” e a
“totalidade”, pois uma está contida na outra. Nesse sentido, Benjamin usa como imagem o
“mosaico”, em que a singularidade de cada fragmento que o compõe contém a totalidade da
ideia, no que ele chama de “essência” da obra de arte.
Assim como Benjamin restaura o drama trágico alemão ao liberar-lhe da “origem” que
lhe havia imposto a história, e ao reconstituir sua trajetória, incluindo nela aspectos antes
ignorados pela metodologia convencional, esta pesquisa avalia que o Dom Jorge do Pântano
do Sul pode ser visto dessa maneira também; ou seja, liberado de sua origem “açoriana”,
“folclórica” ou “popular”, para ser estudado como obra de arte, em seu presente, levando em
conta suas diferenças, seu processo inacabado, seu contexto histórico e socioeconômico, seus
significados atuais, seus tempos futuros e passados e sua forma de transmissão.
Situado entre o teatro e a expressão popular, o Dom Jorge pôde ser analisado com os
instrumentos que Benjamin fornece, em busca de uma verdade evidenciada no pequeno
fragmento teatral que resistiu ao tempo, um fragmento, um caco da história que contém a
essência de um Teatro maior, do qual ele faz parte e ajuda a compor o todo. Ao analisar suas
partes constitutivas e manter ao mesmo tempo a perspectiva do todo, foi possível a esta
investigação defender a importância da manifestação artística encontrada no Pântano do Sul
para as artes cênicas e para a sociedade.
Considerações sobre um futuro Dom Jorge (e Juliana)
O teatro contemporâneo, assim como o fez muitas vezes a tradição teatral, recorre à
narrativa oral como fonte de suas performances. As fábulas orais são inúmeras a inspirar os
autores teatrais antigos, modernos e contemporâneos. Desde os trágicos gregos
(EURÍPEDES, 1982), passando pelo drama elisabetano ou espanhol (MOLINA, 1986), até os
119
experimentos dos novos circos115 e do teatro pós-dramático (LEHMANN, 2007), diversas
fontes oriundas da narrativa oral abasteceram-lhes o imaginário. Das lendas orais, surgiram
obras-primas do teatro e continuam surgindo. Assim como a Ilíada e a Odisséia geraram
magníficas peças teatrais tais Medeia, Antígona ou Édipo (século V a.C.), várias obras
buscaram nas narrativas orais suas inspirações, passando por Dom Juan (séculos XVI, XVII e
XIX) e Tristão e Isolda (século XIX), chegando até as realizações mais recentes, como por
exemplo, o Cirque du Soleil (século XXI). Esse circo canadense, inovador e globalizado, foi
buscar, numa lenda do Quebec, província do Canadá onde se situa o circo, o tema para sua
primeira performance e continua até hoje explorando recursos para seus espetáculos nas
tradições orais do mundo inteiro (BABINSKY, 2004).
Da mesma forma, o Dom Jorge de Florianópolis possui potencial espetacular, por sua
originalidade, seu texto de estrutura arquetípica (LIMA, 1971) e que portanto serve a vários
gêneros dramáticos e a diversos tipos de criação cênica e musical. As pesquisas na rede
mundial de computadores apontaram algumas das formas que tomou o romance de Juliana e
Dom Jorge no Brasil e no mundo ibero-americano116. Nesses países, foram encontradas
diversas formas recentes, revelando o interesse que esse romance ainda desperta nas pessoas,
seja para brincar ou para rememorar o passado. São experiências didáticas com teatro de
bonecos em escola; em universidade, com contação de história; manifestações espontâneas no
quintal de casa com adultos e crianças brincando juntos; encenações profissionais envolvendo
música, narração e atuação. Em Portugal, como na Armação e no Pântano do Sul, o romance é
encenado por grupos folclóricos, compostos também por pessoas com idade média acima de
60 anos.
Creio que o material fabular dessa manifestação popular é próprio a experiências mais
audazes, e, nesse sentido, o valor desta dissertação pode ser considerado à medida que tem
sua divulgação estabelecida e seu acesso público, o que pode servir para inspirar artistas de
teatro, ópera, dança, cinema, música e muito mais. O grupo Alegria de Viver recomeça a
reensaiar o Dom Jorge em 2016117. Espero que os resultados desta pesquisa, quando
115 Em 2013, cursei duas disciplinas de Antropologia, pelo acordo de mobilidade acadêmica entre a
UDESC e a Université de Montréal. Durante um semestre, realizei pesquisas sobre como as tradições e as
culturas populares são exploradas como recursos para a indústria criativa e para a imagem das cidades.
Utilizei como estudo de caso o Cirque du Soleil, cuja sede mundial é em Montreal (ALANO, 2014c, 2014d).
116 Em rápida procura na internet, foram encontrados vários sítios sobre o assunto “Juliana e Dom Jorge” e
“El veneno de Moriana” (AGUIAR, 2013; GÁSPIO, 2013; CARIMESTAR, 2013; SANTOS TJ, 2016; VOZ
DA ARTE, 2011; GRUPO QUATRO VENTOS, 2015; MACIEL, 2014; LA FRAGUA, 2014; YUKIMURA,
2012).
117 No dia 25 de abril de 2016, o grupo Alegria de Viver reuniu-se pela primeira vez no ano, com o intuito
de retomar suas atividades, paralisadas desde o final do ano anterior. Na ocasião, foram renovados os votos
de continuar as apresentações do Dom Jorge.
120
divulgados, possam ser lidos e discutidos pelo grupo Alegria de Viver, assim como por outros
grupos, buscando motivação para novas encenações. Creio ainda que o Dom Jorge, o jogo das
mulheres, pode ser entendido como patrimônio imaterial da sociedade, assim como o boi de
mamão, o jogo dos homens, também o merece118. Entretanto, a pesquisa sugere a valorização
dessas manifestações artísticas, não apenas como “cultura açoriana”, como geralmente têm
sido tratadas as manifestações populares, mas como uma expressão do povo, que soube
ressignificar um legado cultural ibérico e projetá-lo na modernidade. Se pensarmos na sua
origem, no sentido benjaminiano, o futuro Dom Jorge pode estar no presente, pois o sentido
da obra de arte depende do futuro que lhe reservamos a partir de agora
118 Chamo atenção aqui para esta evidência que apareceu no fim da pesquisa e que mereceria estudos
posteriores. O dom-jorge ressalta como o jogo das meninas, e o boi de mamão, o jogo dos meninos. Na
atualidade, o boi de mamão é praticado em vários bairros da capital e em cidades do litoral catarinense,
incentivado nas escolas, havendo mesmo eventos competitivos entre os grupos, patrocinados pelo poder
público. O dom-jorge, por sua vez, restou esquecido e desapareceria se não fosse a iniciativa das mulheres do
grupo Alegria de Viver.
121
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2008.
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YUKIMURA. Chizuru. Representación: el veneno de Moriana. Disponível em:
<https://youtu.be/u5iFzvXqvWc>. 10/05/2012. Acesso em: 6 jun. 2016.
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ANEXO A – Dom Jorge, texto compilado
DOM JORGE
compilada por Tony Alano em: 3/11/2007
1 – O que tens ó Juliana,
Que estás tão triste a chorar?
- Não é nada minha mãe
É Dom Jorge que vai casar.
2 – Bem te disse, minha filha,
Não quiseste me acreditar
Que Dom Jorge é de costume
De toda moça enganar.
3 – Eu lhe juro minha mãe
Pelo Deus que nos criou
Que Dom Jorge não se casa
Com outro novo amor
4 – Lá i vem o seu Dom Jorge
No seu burrinho amontado
- Deus te salve ó Juliana
Na tua sala sentada
5 – Ainda ontem ouvi dizer
Que você ia se casar
- É verdade Juliana,
Vim aqui te convidar.
6 – Espere um pouco Dom Jorge
Quanto eu vou lá no sobrado
Vou buscar um cálice com vinho
Que eu pra ti tenho guardado
7 – Que fizeste ó Juliana
Neste teu cálice com vinho
Que me escureceu a vista
Não enxergo meu burrinho
8 – A minha mãe pensaria
Que seu filho estava vivo
- A mi’a mãe também pensava
Que você casá comigo
9 – A minha mãe pensaria
Que seu filho estava morto
- A mi’a mãe também pensava
Que você casá com outra
10 – Já morreu o seu Dom Jorge
Já morreu já se acabou
Foi o único prazer que eu tive
E com outra não casou
11 – Lá aí vem o seu Delegado
com seus soldados no lado
Vim prender a Juliana
Que matou seu namorado
12 - Já morreu o seu Dom Jorge, já morreu
já se acabou .
Na cova do seu Dom Jorge
nasceu um jardim de flor
ANEXO B – Dom Jorge: texto da encenação
DOM JORGE
TEXTO DA ENCENAÇÃO
Tony Alano
CENA 1 - A NOTICIA – Juliana borda. Quando chega um mensageiro.
MENSAGEIRO – Ó de casa! Carta para a senhorita Juliana.
JULIANA – (na medida em que lê a carta primeiro empalidece e depois começa a chorar)
MÃE DA JULIANA – Entra, vai consolar a filha
- O que tens ó Juliana,
Que estás tão triste a chorar? (o Coro repetirá sempre)
JULIANA - - Não é nada minha mãe
É Dom Jorge que vai casar.
MÃE DA JULIANA – Lê a carta e diz:
– Bem te disse, minha filha,
Não quiseste acreditar (Volta a ler a carta)
Que Dom Jorge é de costume
De toda moça enganar.
JULIANA - Abraçando a mãe:
– Eu lhe juro minha mãe
Pelo Deus que nos criou (Vai até a porta da rua e lança,
como uma praga:)
- Que Dom Jorge não se casa
Com outro novo amor (Volta se sentar)
CORO - – Lá i vem o seu Dom Jorge
No seu burrinho amontado (repete)
CENA 2 – A CHEGADA DE DOM JORGE
DOM JORGE – (entra cavalgando seu burrico, percorrendo a sala toda. Pára, arreia, dirige-se à
Mãe da Juliana e logo tira o chapéu pra Juliana:
- Deus te salve ó Juliana
Na tua sala sentada
Aproxima-se, cumprimentam-se
JULIANA – Ainda ontem ouvi dizer
Que você ia casar
DOM JORGE - É verdade Juliana,
Vim aqui te convidar.
Juliana faz ele sentar.
JULIANA – Espere um pouco Dom Jorge
'Quanto eu vou lá no sobrado (Sai buscar o vinho)
Buscar um cálice com vinho
Que eu pra ti tenho guardado
Juliana dá o vinho a D. Jorge que bebe.
CENA 3 – A VINGANÇA
DOM JORGE - Bebe, (pausa) se sente mal:
– Que fizeste ó Juliana
Neste teu cálice com vinho? (levanta e cambaleia)
- Que me escureceu a vista
Não enxergo meu burrinho (D. Jorge cai ajoelhado)
DOM JORGE – A minha mãe pensaria
Que seu filho estava vivo
JULIANA – escarnecendo dele: - A mi’a mãe também pensava
De você casá comigo
DOM JORGE - – A minha mãe pensaria
Que seu filho estava morto (Morre D. Jorge)
JULIANA - A minha mãe não pensava
De você casá com outra (Volta pra junto da mãe)
CENA 4 – JUSTIÇA!
MÃE DO DOM JORGE - Entra correndo, acode o filho, que morre em seus braços.
CORO - Já morreu o seu Dom Jorge
Já morreu já se acabou (repete)
JULIANA Foi o único prazer que eu tive
E com outra não casou
MÃE DO DOM JORGE – Justiça!! Justiça!!
CORO – Lá aí vem o seu Delegado
com seus soldados no lado (repete)
DELEGADO – entra, postando estrategicamente seus soldados:
- Como vai minha senhora?
MÃE DA JULIANA - Eu vou bem muito obrigado
DELEGADO - Avança sobre Juliana, junto com seus soldados
- Vim prender a Juliana
Que matou seu namorado
Juliana é agarrada, tenta se debater, é forçada a se ajoelhar.
Congela a cena.
CENA FINAL – EPÍLOGO
O coro e os personagens fazem um procissão e levam uma flor ao corpo do Dom Jorge
- Já morreu o seu Dom Jorge
Já morreu não se casou
Na cova do seu Dom Jorge
Nasceu um jardim de flor
ANEXO C – Projeto de encenação: modelo de analise dramatúrgica do texto
Fonte: Irene Brietzke (1990?)
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