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Relatório de Autópsia
Paciente: Fernando Dutra Pinto
Responsável: Paulo Hilário Nascimento Saldiva - CRM 31825
1- Introdução
Este relatório é o produto de solicitação da Direção da Faculdade de Medicina
da USP, a pedido da Comissão Teotonio Vilela. Para a elaboração deste
documento, utilizei- me de:
- dados fornecidos pelo Professor Carlos Delmonte, legista do IML que
conduziu a necrópsia do paciente;
- imagens do ato da necrópsia e material colhido das vísceras do paciente,
também obtidos junto ao Professor Carlos Delmonte;
- exames necroscópicos realizados por mim no corpo do paciente em 3
oportunidades distintas, como também material colhido durante estes
procedimentos;
- informações colhidas na literatura médica dos últimos 20 anos, a partir da
base de dados Medline;
- reunião com os responsáveis pelos exames toxicológicos realizados em
amostras de urina, sangue, conteúdo gástrico e tecidos do paciente, onde
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obtive detalhes dos procedimentos utilizados para avaliar a presença de
substâncias tóxicas nestas amostras, bem como os resultados obtidos nos
exames realizados;
- exames radiológicos realizados no IML;
- informações clínicas existentes no sistema médico penitenciário (dias 10 e 12
de dezembro de 2001) e no exame de corpo de delito realizado no paciente
no dia 10 de dezembro de 2001;
- discussão dos achados da necrópsia com diferentes colegas professores da
FMUSP, notadamente dos Departamentos de Patologia, de Cardio-
Pneumologia, de Cirurgia e da Comissão de Infecção Hospitalar.
Contei com a colaboração inestimável dos colegas da FMUSP e do IML, bem
como com o auxílio dos técnicos do Departamento de Patologia, que
confeccionaram centenas de preparações histológicas, utilizando técnicas
histoquímicas diversas. Os funcionários do Serviço de Documentação do
Departamento de Patologia FMUSP também não pouparam esforços para que
fosse possível chegar-se a uma conclusão do caso. Fui também beneficiado
pelos colegas do Hospital Universitário da USP, que realizaram por mim o
trabalho que me cabia nestas 2 semanas em que me ocupei de forma integral
com este trabalho.
A linguagem utilizada no documento será propositadamente simples, desprovida
o mais possível dos “tecnicismos” da literatura médica.
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2- Doenças Pré-Existentes
O exame dos diferentes órgãos do paciente Fernando Dutra Pinto revela sinais
histológicos de asma brônquica, fora de atividade inflamatória atual. Não foram
evidenciados sinais de utilização continuada de drogas ilícitas por via inalatória
ou injetável. Não foram encontradas alterações sugestivas de incompetência do
sistema imune. Os demais órgãos avaliadas – rins, baço, coração, fígado –
revelam apenas alterações inespecíficas, compatíveis com um estado
inflamatório sistêmico. Os achados mais significativos ficam por conta da pele,
pulmões e pleuras e sistema nervoso central. Estes serão descritos com maiores
detalhes a seguir.
3- Causa da Morte
O evento responsável pela morte do paciente foi falta de oxigenação aos
tecidos, provocada por uma extensa pneumonia bacteriana, com necrose e
formação de abscessos difusamente em ambos os pulmões. Aspectos
representativos das lesões pulmonares são apresentados nas figuras que se
seguem.
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Figura 1. Detalhe da superfície pulmonar como vista ao exame macroscópico. A
pleura apresenta extensas áreas de espessamento por fibrose e deposição de
material inflamatório. As setas apontam para abscessos que se abrem para a
cavidade pleural. Esta imagem foi gentilmente cedida pelo Professor Carlos
Delmonte, do IML de São Paulo.
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Figura 2. Corte do parênquima pulmonar observado à vista desarmada. A seta
mostra o espessamento da pleura pelo tecido inflamatórios. Pode-se notar que
existe uma área de desaparecimento da estrutura esponjosa dos pulmões,
próxima à região central do corte e também abaixo da pleura. Esta alteração é
devida ao preenchimento dos alvéolos pulmonares por secreção inflamatória
(pneumonia).
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Figura 3. Lesão nodular esbranquiçada do tecido pulmonar. Esta lesão
corresponde a abscesso pulmonar intraparenquimatoso
Abscesso Pulmonar
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O diagnóstico de falta de oxigenação aos tecidos (hipóxia) é confirmado pelas
alterações dos neurönios do sistema nervoso central, notadamente as células de
Purkinje do cerebelo. Nestas células ocorre perda do núcleo devida a hipóxia
(seta). Um neurônio de Purkinje normal é apontado por duas setas (Figura 4).
O aspecto histológico das lesões dos pulmões indica que a maior parte das
mesmas atingem este órgão pela via sanguínea, ou seja, “importados” de um
foco situado à distância. Alguns destes abscessos romperam no espaço pleural,
provocando acúmulo de secreção purulenta e sangue na região (empiema). O
volume do empiema é de cerca de 400 mililitros em cada uma das pleuras.
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Os abscessos pulmonares encontram-se em diferentes estágios de formação,
sendo alguns bastante recentes (horas de formação) enquanto outros
apresentam encapsulamento por tecido fibroso mostrada na Figura cima (Figura
5) pelas faixas alaranjadas ao microscópio de polarização. Estes últimos
achados permitem datar a infecção pulmonar como tendo se iniciado em torno
de 1 semana antes do óbito.
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No interior das lesões pulmonares, foram identificadas bactérias, com aspecto
morfológicos de cocos e positivas à coloração pela técnica de Gram (seta na
Figura 6, acima). As características morfológicas, de coloração pelo Gram e o
aspecto das lesões pulmonares sugerem fortemente que o agente infeccioso
seja o Estafilococus aureus.
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Não foram encontrados sinais de traumatismos recentes (com poucos dias de
instalação) ou fraturas. Não há nenhum sinal de envenenamento nos tecidos
estudados. Não há veneno ou medicamento que possa simular as alterações
encontradas ao exame histológico. Coerentemente, os estudos toxicológicos
realizados pelo IML, pelo Instituto Adolfo Lutz e pela Faculdade de Farmácia da
USP apontam apenas a presença de resíduos de maconha e indícios da
presença de dipirona e de um agente anti-histamínico. Estas substâncias não
são capazes de produzir as alterações encontradas nem explicar a morte do
paciente.
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4- A Via de Entrada para a Infecção Pulmonar
As infecções pulmonares por estafilococus em pacientes jovens, especialmente
com o padrão de disseminação pelo sangue apresentado neste caso, indicam
necessariamente a presença de uma via de entrada. Esta foi denunciada em
nosso paciente por um ferimento na região escapular direita. Este ferimento era
elíptico, medindo aproximadamente 2 centímetros no seu maior eixo, sendo
recoberto por uma crosta parcialmente hemorrágica. Deste ferimento saía uma
secreção purulenta e com sangue. O aspecto relativamente inócuo da lesão não
fazia prever, durante a inspeção externa, a sua gravidade.
Figura 6. Detalhe do aspecto macroscópico da lesão escapular do paciente.
Nota-se uma região central recoberta por crosta escurecida, com ulceração
superficial da epiderme ao redor. É possível identificar a presença de secreção
hemorrágica e purulenta.
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O exame feito por cortes transversais à epiderme e também ao microscópio
revelam uma extensa infecção da região do ferimento, que se aprofunda e
acomete a derme superficial, derme profunda, tecido celular subcutâneo e a
fáscia (a cápsula fibrosa) que reveste o músculo grande dorsal. A lesão de pele
pode ser comparada a um “iceberg”, com uma base substancialmente maior do
que a porção que aflora à superfície (Figura 7).
Lesão EscapularDireita
Abscessos Subcutâneos
Lesão Ulcerada da Epiderme
Musculatura
Inflamação
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A infecção da derme profunda e da fáscia muscular forma pequenos abscessos,
onde são identificadas bactérias com características semelhantes às descritas
nos pulmões. Nota-se a presença de trombos (coágulos formados durante a
vida) nas veias e artérias da derme profunda e fáscia muscular. Nestes trombos
podem também ser identificadas as bactérias já descritas, com significativa
destruição da parede dos vasos. Os trombos infectados provavelmente
funcionaram como o veículo transportador das bactérias até os pulmões, numa
situação conhecida como embolia séptica. Alguns trombos apresentam sinais de
recanalização. Este é um processo pelo qual os vasos obstruídos pela trombose
começam a ser reabertos. A recanalização dos trombos situa a lesão da fáscia
muscular como tendo ocorrido dentro de um espaço de tempo bastante anterior
ao óbito, com certeza superior a uma semana.
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Figura 8. Fotografia feita ao microscópio óptico mostrando intenso processo
inflamatório agudo do tecido subcutâneo, com destruição das fibras de colágeno
da derme profunda. O conjunto de pequenas estruturas de coloração arroxeada
(setas) representam colônias de cocos positivo à coloração pelo técnica de
Gram.
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Figura 9. Fotografia tomada ao microscópio óptico, revelando intenso processo
inflamatório do tecido subcutâneo. Os pequenos pontos pretos correspondem a
células inflamatórias e restos necróticos, em área de completa destruição do
tecido. A seta mostra vaso sanguíneo cortado transversalmente com trombose.
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A pele da região ulcerada também mostra sinais de fechamento da ferida por
epitélio reativo. A base da lesão da pele mostra um tecido cicatricial maduro.
Estas características indicam que a lesão da epiderme e derme superficial
possui uma idade de cerca de 2 a 3 semanas de evolução.
5- A Causa Provável da Lesão de Pele
Sinto-me no dever de interpretar os achados ocorridos, mesmo que o estado
atual da lesão escapular tenha sido substancialmente afetado pela infecção
atual. A morfologia da lesão sugere fortemente que a mesma foi causada por
trauma externo. Existe na evolução do paciente história de traumatismo na
região, relatada como tendo ocorrido no dia 10 de dezembro. É também
apresentada na história o surgimento de hematoma no ombro direito, compatível
com fenômeno pós-traumático. O surgimento de hematomas identificáveis ao
exame clínico pode ocorrer horas (ou mesmo dias) após o trauma. Os
hematomas de pele tornam-se visíveis quando o sangue acumulado atinge as
camadas mais superficiais da derme. A “idade” da lesão escapular é compatível
com a história clínica.
É provável que o traumatismo da região escapular direita tenha sido um trauma
“fechado”, ou seja, sem que tenha ocorrido uma ruptura da pele. A ulceração de
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pele é provavelmente o resultado da fistulização do material purulento, da
mesma forma que ocorre nas furúnculos. Os exames do paciente, realizados
nos dias 10 e 12 de dezembro de 2001 não relatam a presença de ferimentos
evidentes na região. É preciso, no entanto, salientar que a literatura médica
apresenta inúmeros casos de contaminação subcutânea e da fáscia muscular
após traumas. Um traumatismo pode promover a transferência de
microorganismos através da epiderme, da mesma forma que um “revólver” de
vacinação transcutânea. Ao mesmo tempo, uma lesão de dos tecidos
subcutâneo e muscular podem promover a formação de um hematoma (acúmulo
de sangue) nos tecidos. Este sangue acumulado representa um meio de cultura
adequado para o crescimento das bactérias eventualmente inoculadas a partir
da epiderme.
No sentido de melhor corroborar esta hipótese, foram colhidas amostras de pele
da região do ombro direito, em uma região compatível com o hematoma descrito
no exame clínico do dia 12 de dezembro. Eu e o Professor Delmonte, em exame
conjunto, localizamos uma região escurecida na pele deste local, sugestiva de
uma lesão não recente, afastada do ponto infectado. Tratava-se de uma mancha
escurecida na porção superior do ombro direito, semi-circular, medindo cerca de
3,5 cm no seu maior diâmetro. O exame dest lesão, por meio de cortes verticais
após fixação em formol, revela a presença de hematoma residual na fáscia da
musculatura do ombro, como demonstrado na Figura 10. Desta forma, fica ao
menos demonstrado que houve na região um impacto capaz de promover a
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rotura de vasos e a formação de um hematoma na mesma localização em que
ocorreu a infecção da região escapular. Aliás, a literatura forense indica que a
região do panículo adiposo contíguo à fáscia muscular é o ponto onde mais
frequentemente instalam-se os hematomas secundários aos traumas fechados
de pele.
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Figura 10. Fragmento de pele da região escurecida localizada no ombro direito.
A parte superior do fragmento é revestida por epiderme preservada. Nota-se na
porção central da epiderme um região escurecida, a qual foi identificada no
exame externo. Abaixo desta lesão, pode-se caracterizar um material de
características gelatinosas, que representa um tecido cicatricial jovem. É
possível também demonstrar o acúmulo de sangue no tecido subcutâneo, o qual
se estende até o tecido gorduroso.
Lesão de Ombro Direiro
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6- Outras Informações Relevantes
Foi identificado um pequeno hematoma com trombose recente em veia da face
anterior do cotovelo. Não foram identificados sinais de infecção neste local. Esta
lesão é compatível com aquela provocada por catéter venoso introduzido com
fins terapêuticos e em nada contribuiu para a morte do paciente.
Os tecidos utilizados para o exame encontram-se preservados tanto no IML
como na FMUSP. Há amostras de sangue, urina, conteúdo gástrico, fígado e
cabelo para eventuais exames adicionais que sejam solicitados futuramente pela
Justiça. No meu melhor entendimento, tal medida não será necessária. Os
achados do caso são suficientemente claros para explicar a causa de morte do
paciente de forma conclusiva.
Paulo Hilário Nascimento Saldiva
Professor Titular do Departamento de Patologia da FMUSP
Diretor do Serviço de Patologia do Hospital Universitário da USP
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