redescoberta da linguagem como potência
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8/20/2019 Redescoberta da linguagem como potência
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Universidade de LisboaFaculdade de Letras
Doutoramento em artes performativas e da imagem em movimento
REDESCOBERTA DA LINGUAGEM
COMO POTÊNCIA
Antonio de Souza Pinto Guedes52885
DISCIPLINA:
Tópicos em Estudos de TeatroProfª. Vera San Payo de Lemos
Junho de 2015
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INDICE
Introdução 3
Uma ruptura necessária 5
Pessoa, Mallarmé 7
Enquanto isso, no teatro... 8
Por uma arte menor 12
O espaço poético, a palavra 14
Valère Novarina – uma primeira experiência 15
Falar não é comunicar 18
O fim 20
Bibliografia 22
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Introdução
Sou um ignorante. Durante muito tempo tive a certeza do sentido das palavras, também, até certo ponto,acreditei possuí-las. Mas agora que as experimentei, esse sentido me escapa. Por quê?
As palavras valiam pelo que eu as fazia dizer, ou seja, pelo que eu colocava dentro.Mas nunca pude saber exatamente até que ponto eu estava com a razão.
Artaud1
Antonin Artaud (1896 – 1948), ator, poeta, dramaturgo, encenador, viveu em um inten-
so período da história do teatro. Nasce em pleno embate que o Simbolismo travou com
o Naturalismo, contra esse desejo de descrever o mundo criando, em cena, uma ilusão
da realidade. Na juventude, foi um artista atuante na primeira fase do Surrealismo, mo-
vimento com o qual rompeu quando este começou a se aproximar do comunismo mar-
xista. Sua questão política não passava pelos regimes de poder.
O Simbolismo e o Surrealismo foram movimentos artísticos fundamentalmente diferen-
tes em seus princípios, cada um fiel aos desejos de sua época (30 anos, aproximadamen-
te, separam a origem de cada um), mas ambos evocam justamente aquilo que o Natura-
lismo – por sua própria característica – deixava de lado: o sonho e a ficção como dimen-
sões que não se opõem à realidade. Se o Naturalismo buscava a construção de uma ilusão
de realidade, estes movimentos, em diferentes momentos, reivindicam a dimensão invi-
sível do homem; buscam dar visibilidade – ou concretude – aos temas que efetivamenteimportam: os desejos, a vida, a morte, a trajetória e o sentido do homem no mundo.
Ambos os movimentos debruçaram-se sobre a invisibilidade do mundo na tentativa de
abarcar o todo do mundo.
Essa motivação é uma clara resposta à difusão das pesquisas de Freud sobre o inconsci-
ente, mas minha intenção aqui se concentra em entender de que maneira essa invisibili-
dade pode encontrar realização na Linguagem. Ou, dito de outra forma, de que maneira
a Linguagem poderá dar visibilidade a esses temas para além (ou aquém) da descrição.
A Linguagem era a questão que, ao longo de toda a vida, Artaud colocou no centro das
suas preocupações. Para ele é necessário buscar a transformação do teatro – e essa trans-
formação passa inevitavelmente por uma outra concepção da Linguagem. Essa questão
surge a partir da sua incapacidade de utilizar a Linguagem articulada de forma natural,
1 PAVINI, Renan. “ Linguagem e morte em Antonin Artaud .” Revista Estação Literária (2014), p. 479-480.
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não pensada2. Ele não encontrava a palavra adequada, seu pensamento recusava-se a ser
descrito. Mas o poeta nunca deixou, não sem sofrimento, de buscar a forma mais precisa
para expressar o que se passava em sua cabeça e, na angústia do esforço, ao longo de
sua obra – seja nas cartas, nas peças ou nos manifestos – Artaud revela a palavra como
um corpo estranho. Sua fala tem o aspecto da fala de um estrangeiro que se esforça por
falar uma língua que conhece mal. Nessas circunstâncias, costumamos ouvir as palavras
que dizemos; pensamos na construção da frase. A narrativa de Artaud parece desenvol-
ver-se sem a naturalidade habitual que faz com que a Linguagem passe despercebida,
quando utilizamos a Linguagem como um instrumento que comunica significados, um
instrumento semelhante ao uso de uma chave de fenda que é apenas um meio de obter
um parafuso apertado; como quando temos como foco, não as palavras, mas o que que-
remos dizer. A palavra para Artaud é, principalmente, forma sonora, intensidade, ritmo,
volume; a palavra, antes de querer dizer, afirma sua presença enquanto possibilidade de
dizer. Ela se abre para a percepção daquele que a ouve; ela assume sua antiga (mas
sempre presente) força poética3. A palavra, nessa perspectiva é trágica.
A epígrafe que abre este artigo mostra o desejo de Artaud de descobrir o que está dentro, o
que está no interior da palavra. Lança as perguntas: a palavra fala? A palavra conta? Ela
consegue ter valor pelo sentido que, habitualmente, costumamos colocar dentro dela? Mas,ainda nessa epígrafe, Artaud diz que a dúvida quanto ao sentido das palavras surge depois
que ele as experimenta. Ou seja: quando ele estabelece com as palavras uma relação física
ou, pelo menos, no presente – a isso se chama uma experiência – , essas palavras passam a
se mostrar vazias, ocas, buracos à espera de um sentido que as preencha.
O que seria essa experiência que revela a palavra em sua potência de produção de senti-
dos? E o que aprisiona essa potência? Se a palavra é som que adquire sentido no espaço,
por que se busca aprisioná-la em um significado? Quando a palavra falada passou a es-tar em estrito acordo com a palavra escrita? Por que a Linguagem passou a ser instru-
mento do conhecimento e quando a simples experiência (vivência) passa a ter mais va-
lor através da descrição? E, nesse caso, o passado importa mais do que o presente...
2 “Sofro de uma terrível doença do espírito. Meu pensamento me abandona. Em todos os níveis. Desde o simples fato de pensar até a sua materialização em palavras.”ARTAUD, Antonin. Lettre à Jacques Rivière Du 5 juin 1923, in Correspondance avec Jacques Rivière,in L’Ombilic des Limbes, suivi de Le Pèse-nerfs et autres texts. Paris: NRF/Gallimard, 1968, p. 20-21.
3 Uso a palavra poética como uma derivação da palavra grega Poiesis (ποιέω) que significa produção,criação, não necessariamente ligada à criação artística.
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Uma ruptura necessária
Não se pode dizer que o Simbolismo tenha previsto intencionalmente a emancipação do
espectador, mas atentando para as exigências e para a insatisfação dos artistas dessa épo-
ca, podemos perceber que o simbolista quer se eximir de ser autor do significado da obra,quer renunciar ao lugar daquele que descreve, que explicita um conteúdo. Este movimen-
to brota do esgotamento do artista entendido como aquele que detém a visualidade do
mundo – domínio esse cuja raiz remonta ao Renascimento. Desde a invenção da perspec-
tiva linear, quando o mundo passou a poder ser representado em três dimensões numa tela
bidimensional, o homem passou a poder figurar o mundo apreendido pela visão. A partir
dessa técnica, se o Renascimento não tinha a pretensão de representar o mundo tal e qual,
mas melhorado pelo artista, a perspectiva linear chega ao século XIX precisamente comoo caminho para a ilusão. No teatro, resulta no Naturalismo: a imitação do mundo cotidia-
no tal como seria se estivéssemos assistindo a um pedaço, uma parte da vida.
E é justamente a plena realização do Naturalismo que vai promover a reação àquela imita-
ção. Os simbolistas rejeitam a visão como um sentido hierarquicamente superior; o mun-
do, para eles, é constituído de tudo o que podemos ver, mas também do que não podemos.
Se o Naturalismo irá se preocupar com questões do cotidiano a partir da ação do indiví-
duo, o Simbolismo, ao contrário terá, como preocupação, temas que atravessam a existên-cia de todos: o mistério da vida e da morte; a dimensão da realidade e o mundo para além
da vida. Sua temática se volta para assuntos transcendentais ou místicos; a morte e o silên-
cio estão no horizonte de todos. A musicalidade das palavras é convocada a tomar lugar na
experiência da narrativa: “ De La Musique avant toute chose!”4 Na escrita, a narrativa pro-
cura seguir o mesmo caminho das artes visuais.5 A poesia toma conta da fala que busca
4 VERLAINE, Paul. Paris Moderne – Revue Littéraire et Artistique. Paris: Léon Vanier Editeur, 1882-1883, p. 144.
5
Carlos Schwabe A morte do escavador
1890
Carlos SchwabeTédio e ideal
1907
Franz von StuckO pecado
1893
Gustav Kllimt Judith1901
Gustav. KlintO beijo
1907-1908
Gustave Moreau A aparição
1875
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metáforas que incluam os demais sentidos como elementos de compreensão do mundo à
volta.
Esta reivindicação musical na reflexão sobre a Linguagem está diretamente ligada ao
momento em que a língua falada estruturou-se em função de uma unidade em relação àescrita;6 quando a palavra passa a ser grafada, perdendo o sentido musical para adquirir
um significado de precisão científica, buscando eliminar possíveis ruídos na comunicação
do conhecimento. E é essa precisão que, paradoxalmente, para comunicar conhecimento,
deve excluir informações que não fazem parte de uma abordagem objetiva, que não podi-
am ser apreendidas pelo entendimento, pela razão.7 Linguagem torna-se mero instrumen-
to de descrição, perdendo um certo encantamento no qual as experiências de vida que
seriam descritas, por estarem impressas na Linguagem e não fora dela, proporcionavam àdescrição do vivido um caráter e uma força de evocação e presentificação dos fatos nar-
rados. Nesse momento, o Classicismo, instaurou uma objetividade à qual a Linguagem
passou a servir, e acabou estabelecendo uma clara separação entre a ficção e a realidade8.
A Linguagem passou e ser entendida como um instrumento do relato de histórias.
O Simbolismo vai justamente promover uma ruptura com esta tradição. E essa ruptura
exige uma nova concepção de Linguagem e uma nova postura do artista em relação à
obra. O sonho, o mistério e os mitos, para o simbolista, devem voltar a habitar a repre-
sentação do mundo. E a Linguagem não pode ser compreendida de forma objetiva. O
sentido da obra depende, muito intensamente, da subjetividade do leitor. A Linguagem,
torna-se, aqui, um jogo entre a organização das palavras e aquele que ouve ou lê.
6 ” Para retomarmos a distinção entre “língua” e “escrita”, podemos dizer que, até cerca de 1650, a Literatura não tinha ainda ultrapassado uma problemática da língua, e que por isso mesmo ignorava
ainda a escrita. Com efeito, enquanto a língua hesitar sobre a sua própria estrutura, é impossível uma
moral da Linguagem; a escrita só aparece no momento em que a língua, constituída nacionalmente, setona uma espécie de negatividade, um horizonte que separa o que é proibido do que é permitido, sem
interrogar já sobre as origens ou sobre as justificações desse tabu. Ao criarem uma razão intemporalda língua, os gramáticos clássicos libertaram os Franceses de qualquer problema lingüístico, e essa
língua depurada tornou-se uma escrita, isto é, um valor de Linguagem, dado imediatamente como uni-
versal justamente por causa das conjunturas históricas.” Barthes, Roland. O grau zero da escrita. Lisboa: Edições 70, 2006, p.52
7 “ Não há dúvida que os escritores clássicos conheceram também uma problemática da forma, mas o deba-te não incidia sobre a variedade e o sentido das escritas, e muito menos sobre a estrutura da Linguagem;
só a retórica estava em causa, isto é, a ordem do discurso pensado segundo um fim de persuasão.”
Idem, ibidem, p. 53
8 A perspectiva linear que, para além da moldura, dá a ilusão de um horizonte infinito; o fechamento dacaixa cênica criando, para além do arco de proscênio, um horizonte infinito, dividindo precisamente doismundos, duas dimensões que não se comunicam porque estão separados pela moldura/arco de proscênio.
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E, por isso, mesmo sem ainda lançar mão da expressão, este momento que começa a ques-
tionar a Linguagem instrumental vai propor uma relação diferente do espectador com a
obra. Essa relação torna-se, para além da leitura daquilo que o artista pretendeu dizer, uma
experiência na qual a obra só se conclui a partir do olhar; com essa a ruptura uma nova
perspectiva do espectador é exigida em sua relação com a obra; uma perspectiva criativa na
medida em que o resultado de sua experiência com a obra é individual e intransferível.
Pessoa, Mallarmé
Tirando proveito de estar agora em Lisboa escrevendo esse texto, não podia perder a
oportunidade de citar Fernando Pessoa e seu manifesto sobre o Teatro Estático:
Chamo teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui ação – isto é, onde as figurasnão só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem se-quer têm sentidos capazes de produzir uma ação; onde não há conflito nem perfeito enredo.Dir-se-á que isto não é teatro. Creio que o é porque creio que o teatro tende a teatro meramentelírico e que o enredo do teatro é, não a ação nem a progressão e conseqüência da ação – mas,mais abrangentemente, a revelação das almas através das palavras trocadas e a criação de si-tuações (...) Pode haver revelação de almas sem ação, e pode haver criação de situações deinércia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade. (Pessoa, 113).9
Pessoa pretende que a cena revele o espírito das histórias e seu movimento apenas atra-
vés do texto. Uma cena que prescinda das imagens, para que estas sejam produzidas naintimidade de cada indivíduo. Um texto poético e não um texto descritivo; um texto que
incite à imaginação. O Simbolismo, portanto, longe de entender a cena como o lugar da
descrição da realidade, vai romper com aquele modelo do Renascimento para afirmar
que a realidade não está na visibilidade do mundo, mas, bem ao contrário, está em sua
invisibilidade, está precisamente onde o visível não nos permite ver. As grandes ques-
tões que envolvem a vida estão no mistério, estão ali, onde não podemos explicar. E as
palavras, longe de poderem descrever o indescritível, têm como tarefa evocá-lo, sugerir, produzir uma possibilidade de trazê-lo à luz. Nas palavras de Mallarmé:
Nommer un objet, c’est supprimer les trois quarts de la jouissance du poème qui est faite du bonheur de deviner peu à peu ; le suggérer voilà le rêve. C’est le parfait usage de ce mystèrequi constitue le symbole : évoquer petit à petit un objet pour montrer un état d’âme, ou,inversement, choisir un objet, et en dégager un état d’âme par une série de déchiffrements.10
9 PESSOA, Fernando. Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Lisboa: Ática, 1966, p. 113. Grifo meu
10 Nomear um objeto é suprimir três quartos do prazer do poema que é feito da alegria de adivinhar pouco
a pouco; sugerir o objeto, eis o sonho. É a perfeita aplicação deste mistério que constitui o símbolo:evocar pouco a pouco um objeto para mostrar um estado de alma, ou, ao contrário, escolher um objetoe depreender dele um estado de alma através de uma série de deciframentos. (Tradução minha)
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Na luta contra as Belas Artes, os simbolistas contrapunham à descrição, o silêncio. Es-
paços vazios que seriam preenchidos (ou decifrados) por quem olha ou lê. Contra a ilu-
sória beleza produzida pelas Belas Letras, “criar uma escrita branca, livre de qualquer
sujeição a uma ordem fixa da Linguagem.”11
A plena realização do Naturalismo revelou que a Linguagem estava reduzida a um ins-
trumento de descrição, revelou que a palavra, tinha sua potência encoberta e era compre-
endida como mera ferramenta. O Simbolismo tornou-se uma força de reação àquele
mergulho, cada vez mais fundo na ilusão de uma realidade que está num mundo ficcio-
nal cada vez mais distante da realidade. E o mote deste movimento estava na rejeição à
ideia de que a Linguagem é um domínio e a arte a reprodução de um modelo.
Na busca pelas forças desconhecidas que efetivamente vigoram e regem a vida, Rim-
baud, o poeta simbolista francês, compôs estes versos:
Se bem me lembro, minha vida era outrora um festim – aberto a todos os corações, regado por todos os vinhos.Um dia, sentei a Beleza no meu colo. – E a achei amarga – E injuriei-a.Contra a justiça levantei-me em armas.E fugi. Ó feiticeiras, ó miséria, ó asco – o meu tesouro foi confiado a vós!Cheguei a dissipar de meu espírito o último traço de esperança humana. Num salto surdo deanimal feroz, pulei sobre cada alegria para estrangulá-la.12
Enquanto isso, no teatro...
No teatro, o Simbolismo, movimento produzido especificamente por poetas, manifes-
tou-se de forma mais clara na dramaturgia. Maurice Maeterlinck (1862 – 1949), autor
belga, prioriza um diálogo todo construído sobre silêncios. “O silêncio é a voz da alma
e, por isso, está mais próximo da verdade.”13
. Dessa forma, ele reitera a reflexão deMallarmé e de Pessoa no drama estático.
O ator, elemento que Stanislavski dimensionou como criador na cena naturalista, será vi-
vamente questionado principalmente porque sua imagem em cena jamais poderá represen-
tar um símbolo. É uma imagem que, inevitavelmente, indicará a presença de um sujeito e,
HURET, Jules. Enquête sur L'évolution Littéraire. L’Echo de Paris, 1891, p. 1.
11 BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escrita. Lisboa: Edições 70, 2006, p. 69.
12 RIMBAUD, Arthur. Uma estadia no inferno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 49.13 MOLER, Lara Biasoli. Maurice Maeterlinck e a ressurreição do ator . São Paulo: Sala Preta/USP, p. 73.
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portanto, um indivíduo psicológico. Para Maeterlink, na Linguagem da cena, a presença do
ator se torna uma interdição ao mergulho no espaço desconhecido do ser humano. O ator,
movido pelas emoções que tornam o resultado de sua obra uma série de gestos e elocuções
acidentais e próximas da imitação de alguém que vive as circunstâncias do drama, precisa
ser substituído pela marionete que, em sua impessoalidade, é capaz de representar uma
ideia de humanidade descolada do indivíduo. Esta é também a preocupação de Edward
Gordon Craig (1872 – 1966), encenador inglês, contemporâneo de Maeterlinck. Para ele,
In the modern theatre, owing to the use of the bodies of men and women as their material , allwhich is presented there is of an accidental nature. The actions of the actor's body, the expressionof his face, the sounds of his voice, all are at the mercy of the winds of his emotions. […] Art, aswe have said, can admit of no accidents. That, then, which the actor gives us, is not a work of art ;it is a series of accidental confessions. 14
Craig reivindicava para o teatro o uso de um espaço abstrato, ou seja, ao invés de um
cenário que descrevesse o lugar da ação, um espaço que sugerisse o lugar da ação, asso-
ciado ao uso da iluminação que teria a função de criar atmosferas. Um espaço construído
totalmente a partir de uma reflexão plástica sobre as questões trabalhadas na encenação
– o que coincide perfeitamente com o desejo dos simbolistas de buscar uma elaboração
formal baseada na sugestão ao invés de basear-se na imitação. Para Craig, a arte não
admite o acidente pois, rejeitando a imitação, uma obra é o resultado de uma construção
absolutamente única e de inteira responsabilidade do artista. Nesse sentido, caminha ao
encontro de Maeterlinck ao reivindicar para o teatro, a morte dos atores e o advento da
supermarionete capaz de realizar, em cena, uma partitura passível de ser repetida e sem
exteriorizar qualquer atmosfera de individualidade.
Nesse contexto, não poderia deixar de surgir, também na Rússia, aquele que iria se con-
trapor a Constantin Stanislavski (1863 – 1938), encenador do Naturalismo. Discípulo
dele, Vsevolod Meyerhold (1874 – 1940) não chegará a se filiar ao movimento simbolis-
ta, mas vai desenvolver uma trajetória que, na contramão da criação de uma ilusão de
realidade, vai buscar uma cena construída em cada detalhe, buscando exacerbar o que há
de teatral no espetáculo. E, nesse sentido, na busca de um ator que seja tão (ou mais)
eficiente quanto a supermarionete de Craig, vai criar um treinamento para o ator que
14 “No teatro moderno, devido ao fato de os atores e atrizes usarem seus corpos como material de sua arte,tudo o que se apresenta ali é de natureza acidental. Os gestos do ator, a expressão do seu rosto, o som dasua voz, tudo isso está à mercê das emoções. [...] A arte, como dissemos não pode admitir o acidente. Se
bem que aquilo que o ator apresenta não seja uma obra de arte, mas uma série de confissões involuntá-
rias.” (Tradução minha)Craig, Gordon. The actor and the Über-marionette, in On the art of de theatre. London: HeinemannEducational Books Ltd. 1980, p. 56-58.
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permita que ele tenha completo domínio de sua criação em cena. A este treinamento, ele
dará o nome de Biomecânica e se baseia no total conhecimento, por parte do ator, de
cada articulação do corpo, no desenvolvimento de diversas técnicas físicas (danças, lu-
tas, circo, Commedia dell’arte), associando-as a ritmos para que se tornasse possível a
elaboração de uma precisa partitura de movimentos.
Num período orientado pelo Construtivismo15, Meyerhold, toma esse caminho e engendra
uma cena na qual todos os elementos são elaborados a partir de decisões dos artistas de
cada área (cenário, figurino, atuação, música, iluminação, encenação), sempre buscando
uma forma que se adéque às idéias que estão sendo trabalhadas, fugindo à imitação da
realidade. O empreendimento de todos se volta para a criação de uma realidade teatral.
Esta realidade teatral busca formar uma cena que, associada ao texto, apresenta ao es-
pectador uma criação específica e não descritiva da história, estando, cada elemento,
contribuindo para a apresentação de sentidos que se sobrepõem. Essa sobreposição irá
oferecer leituras prováveis que serão organizadas pelo público.
a técnica convencional supõe, no teatro, depois do autor, o encenador e o ator, um quarto cria-dor: o espectador . O teatro da convenção elabora encenações em que a imaginação do especta-dor deve completar, de modo criativo, o desenho das alusões dadas em cena.16
E logo a seguir, Meyerhold diz que, “ por mais imóvel que seja, [o teatro de convenção] suge-re mil vezes mais o movimento que o teatro naturalista.” O encenador russo, aqui, além de
concordar com Pessoa e com Maeterlinck no que diz respeito ao movimento contido na imo-
bilidade, retoma o verbo usado por Mallarmé – “le suggérer voilà le rêve“ – , que propõe que
o espectador decifre o mundo à sua frente. Se, tanto a obra como o mundo devem ser entre-
gues à decifração, é porque são enigma. A obra é a presentificação deste enigma. E a Lingua-
gem da cena tem como tarefa buscar, não a descrição do que é visível, mas, através da poesia
ou de uma elaboração formal, uma aproximação com o mistério da vida.
Percebe-se em diversas partes do mundo, nas diferentes formas artísticas, o desejo de en-
contrar uma Linguagem que revele uma realidade autêntica para além da imitação do mun-
do e do homem. Na música, no início do século XX, muitos compositores, identificando
15 O Construtivismo Russo foi um movimento estético-político iniciado na Rússia em 1919. O termo arteconstrutivista foi introduzido pela primeira vez por Malevich Malevich para descrever o trabalho deRodchenko 1917.
16
MEYERHOLD, Vsevolod. “Meyerhold: escritos sobre teatro (textos de 1907, 1912 e 1922”, inBORIE, Monique and de ROUGEMENT, Martine and SCHERER, Jacques (orgs.). Estética teatral:textos de Platão a Brecht . Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian: 395 – 408, 1996. Grifos do autor.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Kasimir_Malevichhttp://pt.wikipedia.org/wiki/1917http://pt.wikipedia.org/wiki/1917http://pt.wikipedia.org/wiki/Kasimir_Malevich
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um certo esgotamento da música tonal, trabalham novas configurações de notas que, mais
tarde, será denominado Atonalismo. Arnold Schönberg (1874 – 1951) termina por romper
definitivamente com o conceito de música tonal criando o Dodecafonismo. Na pintura,
movimento como o Abstracionismo radicaliza a ideia de representação do mundo rompen-
do completamente com o figurativismo, procurando compreender a tela como um espaço,
um suporte real no qual se imprime uma imagem adequada a um sentimento interior ou a
uma ideia indescritível. Suas matérias são as variações das formas, a vibração das cores, a
sensualidade das curvas ou a objetividade geométrica das retas.17
A partir daqui, falar de Linguagem, na arte em geral (e, especificamente no teatro), sig-
nifica falar de algo que não está dado. Aquela unidade empreendida no século XVII des-
fez-se (e espero) para sempre. Uma obra não será mais o resultado da descrição de ummodelo exterior a ela; a obra é um modelo de si própria e só existe no jogo, na relação
com aquele que a decifra. Da mesma forma que o mundo – bem diferente daquela con-
cepção renascentista – aguarda para adquirir sentido a partir da experiência. A Lingua-
gem começa a abandonar o papel de instrumento de comunicação de uma história, de
uma época ou de certos indivíduos para tornar-se protagonista; quase como se ela, a
Linguagem, dissesse: ‘Isso que se vê e que se ouve é tudo o que há. Não é metáfora, não
tem conteúdo, não se remete a nada que não esteja precisamente ali, no lugar daquela palavra proferida, daquela cor, daquela luz.’
Junto com a concepção renascentista, o que está sendo posto em jogo é uma tentativa de
retomar a vida como um mistério e não como algo do nosso domínio, visto que não te-
mos mesmo como conhecê-la em sua totalidade, esta que era também um sonho renas-
centista, ruiu. A dimensão ficcional começa a ver uma possibilidade de retornar ao mun-
do real. A partir do Simbolismo, o Século XX faz com que o invisível, afastado do mun-
do pelo medo do desconhecido, retorne e afirme seu pertencimento ao mundo real insti-tuído pela obra.
17
MalevichSuprematist Painting
1916 - 1917
Alexander RodchenkoObjectless composition № 65
1918
Liubov PopovaMaquete do Cenário de O corno magnífico, deCrommelynk, montagem de Meyerhold, 1922
Gordon CraigMaquete do Cenário de Hamlet , de Shakespea
1909
http://pt.wikipedia.org/wiki/1874http://pt.wikipedia.org/wiki/1951http://pt.wikipedia.org/wiki/1951http://pt.wikipedia.org/wiki/1874
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POR UMA ARTE MENOR
O projeto artístico renascentista tinha como base fundamental a imitação.18 Não uma imita-
ção vazia, mas fundada na compreensão dos modelos. O humanista do Renascimento, bus-
cando uma técnica pictórica que representasse a perspectiva do homem daquele tempo, criao ponto de fuga como a chave de um horizonte ilusório: uma cópia do mundo exatamente
como nossos olhos o veem. Suas cenas se mostram como acontecimentos que assistimos
através de uma janela – uma moldura separa esse mundo ficcional da realidade. Se este é um
momento da história em que o homem se percebe vigoroso, no centro do universo, nada
mais coerente do que possibilitar que se represente o mundo segundo sua perspectiva. E,
dentro dessa perspectiva, é considerada uma tarefa da arte não se limitar à imitação do mun-
do, mas melhorá-lo
19
, esconder imperfeições e acrescentar elementos que lhe faltem paraque se torne mais belo. As Belas Artes: o compromisso de representar o mundo melhor.
Entretanto, este homem idealizado no século XVII é revelado como uma imagem falsa
no fim do século XIX; eis, enfim, a falência do projeto renascentista. A industrialização
já não é um projeto; máquinas podem substituir o trabalho humano; a vida adquire um
novo ritmo; Freud está prestes a publicar seus primeiros estudos e a imagem do homem
já não é mais tão dignificante. A economia no mundo começa a se tornar o mote princi-
pal do diálogo entre os países e a primeira guerra mundial já começa a se desenhar.
Definitivamente os personagens do mundo não são heróis vitoriosos. São derrotados,
infelizes, inúteis, vilões. Um inimigo do povo (Ibsen), O jardim das cerejeiras
(Tchekov), A metamorfose e O processo (Kafka), Crime e castigo (Dostoievski) são
narrativas (peças, romances, novelas) que nos apresentam um homem pior, muito pior
do que os heróis idealizados do Classicismo. Mostram-nos um mundo sujo e enganador;
de uma vida difícil com muitos vazios entre a fala e a ação. Um mundo que excluiu, pela
racionalidade, o sonho da realidade e começa a perceber que, numa certa medida, a con-
fusão entre essas dimensões talvez pudesse ser proveitosa.
Avançando pelo século XX, vamos encontrar alguns pontos de diálogos com as Belas
Artes. Mas sempre buscando uma estrutura de Linguagem que, de alguma forma, fuja à
18 Para a cultura do Humanismo, a imitação era fundamento de um sistema moral e estético que tinhacomo referência os valores da Antiguidade, suas virtudes públicas e suas grandes realizações.BYINGTON, Elisa. O Projeto do Renascimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009, p. 15.
19 Esta era uma orientação geral, entretanto existiam artistas como Leonardo Da Vinci que dizia que “ Amelhor pintura é a mais conforme a coisa imitada”BYINGTON, Elisa. O Projeto do Renascimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009, p. 26.
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descrição, apresentando uma nova configuração no jogo entre a obra e o espectador;
sempre lançando o leitor na tarefa de decifrar, de correr o risco de encontrar ali um dis-
curso, uma narrativa, uma imagem, um sentido.
É dessa nova concepção de Linguagem de que fala Artaud no início desse trabalho. E éna busca pela retomada de um vigor perdido contido na elocução da palavra que o diálo-
go com o Classicismo perdura... seja de forma irônica,
Mona LisaLeonardo da Vinci
1503 – 1506
L.H.O.O.Q.Marcel Duchamp
1919
seja na forma de um estudo de estilo.
Em 1650, o Papa Inocêncio X, quando viu terminado o seuretrato pintado por Velásquez exclamou, um tanto desconcerta-
do: Troppo vero!
Estudo a partir do retrato doPapa Inocêncio X por Velásquez
Francis Bacon, 1953
O fato é que o caminho empreendido aponta para uma aproximação cada vez maior entre
a forma e o conteúdo. Esta separação foi empreendida em função de uma comunicação
mais eficiente e, para tal, era necessário também estruturar o discurso. Mas o século XX
percebeu que se o discurso está estruturado, não há mais nada a dizer... afinal, em arte, éna forma que discurso pode se revelar.
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O ESPAÇO POÉTICO, A PALAVRA
Artaud foi ao México. Foi conhecer os Tarahumaras e participar do ritual do Peyote.
Voltou de lá fascinado; disse ter experimentado um tempo originário; um tempo que só
existe nos relatos, uma experiência que só é possível nos sonhos. É preciso estar mergu-lhado em uma consciência outra para viver essa experiência acordado.20
Muitos rituais têm essa mesma função: experimentar um tempo originário, um tempo
imemorial mas que, para além da fé, está num passado distante. As tragédias gregas
promoviam uma experiência artística; não era uma experiência litúrgica, mas o material
das peças era uma luta entre aquele tempo e o presente. Os gregos do século V viviam
em dois tempos simultaneamente: o atual, que trabalhava na constituição jurídica das
cidades e o passado mítico que fazia parte da sua cultura, da sua existência. Assim,
quando Édipo surgia em cena, não era apenas um ator a representá-lo. Era Édipo-figura-
mitológica quem entrava em cena. E era uma imagem de Édipo que falava uma Lingua-
gem próxima da platéia, ao contrário do coro que era formado de cidadãos que cantavam
a coragem do herói e o implacável desejo dos deuses. Portanto, um acontecimento que
lança o passado imemorável no presente. Na tragédia, o convívio de dois tempos, esta
concomitância, é revelada pelas palavras e pelo seu contraste com o canto. É como se
pudéssemos dizer que no teatro, a realidade da platéia se confunde com a realidade dosrelatos míticos. E esta experiência ambígua se produz não pela história, pois esta já era
de conhecimento do público; a estrutura da tragédia revela, abre um espaço no qual um
tempo originário pode conviver com o presente. Uma origem que atravessa o presente
afirmando seu vigor.
Esse tempo imemorial, mítico, confunde-se, hoje, com o que chamamos de ficção. E
entendemos ficção como algo que não é verdadeiro. Mitologia, para nós, não passa de
lenda... deixou de fazer parte da nossa vida. Artaud não era um Tarahumara, mas pôde
vivenciar fisicamente, um tempo mítico; portanto, há realidade nessa dimensão.
20 “Num domingo de manhã é que o velho chefe índio me abriu a consciência com um golpe de gládioentre o baço e o coração: "Tem confiança, disse ele, não tenhas medo que não vou fazer-te nenhummal" e recuou muito depressa três ou quatro passos e descreveu no ar um círculo com o gládio agarrado
pelo punho e para trás, como se quisesse exterminar-me. Se a ponta do gládio me tocou a pele foi deraspão e só me fez deitar uma minúscula gota de sangue. Não senti nenhuma dor mas tive realmente asensação de acordar a uma coisa para a qual eu estava até ali malnascido e orientado de forma errada,cheio de uma luz que eu nunca tinha possuído.”
ARTAUD, Antonin. Os Tarahumaras. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2000, p. 12.
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Essa questão, que resumimos como uma tensão entre realidade e ficção, diz respeito muito
intimamente à produção artística. E, especificamente, à experiência teatral, visto que essa
se dá no instante, no presente. Maurice Blanchot se refere à separação entre a ficção e a
realidade fazendo um paralelo entre o canto das sereias e a astúcia de Ulisses, que se amar-
rou ao mastro do navio para não ser seduzido e levado a mergulhar na direção delas:
Houve sempre da parte dos homens um esforço pouco nobre para desacreditar as Sereias acu-sando-as grosseiramente de mentira: mentirosas quando cantavam, enganadoras quando suspi-ravam, fictícias quando se lhes tocava; completamente inexistentes, de uma inexistência puerilque o bom senso de Ulisses bastou para destruir.21
Enquanto as Sereias fossem figuras imaginárias, sem qualquer realidade, seu canto não
ameaçaria o navegante. Afinal, não passam de ficção e, portanto, fora do mundo.
Eis o salto que o teatro, a partir do século XIX, vai procurar dar: um salto no vazio da
ficção buscando encontrar a concretude das Sereias. O espaço poético é aquele que com-
porta as duas dimensões... sem hierarquizar. E, no caso do teatro, um canto entoado com
palavras.
VALÈRE NOVARINA – uma primeira experiência
Novarina pôde dialogar com o Classicismo e com o Simbolismo a partir de uma confor-
tabilíssima distância. Um espaço preenchido de experiências fundamentais no que diz
respeito à questão da narrativa poética, da tensão entre realidade e ficção e da retomada
de uma Linguagem entendida como potência e não como instrumento.
Esse espaço, que é o Século XX, viu Tadeusz Kantor desafiar a estrutura da fábula em
função da instauração de um jogo essencialmente teatral; viu Artaud vociferar contra
uma narrativa da cena que não conseguia mais tocar senão ao intelecto, reivindicando, por isso, que uma peste acabe como o que ainda resta para que uma nova concepção de
Linguagem possa ser criada e, junto com ela, um novo Teatro; viu Grotowski despir a
cena chegando, perigosamente, à realização de um ritual no qual o ator se oferece ao
público como num sacrifício; e viu, principalmente, Beckett despir a Linguagem até o
osso, até revelar aquilo que a sustenta, revelando-nos a verdadeira matéria de que somos
feitos: palavras. Ele encerra um romance (se é que ainda podemos chamar aquela narra-
21 BLANCHOT, Maurice. O Livro Por Vir . Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1984, p. 12.
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tiva de romance) com um ponto final. Mesmo que o protagonista termine dizendo “...
vou continuar” é o ponto final e o ato de fechar a quarta capa que encerra o romance.
(...) é preciso continuar, não posso continuar, é preciso continuar, então vou continuar, é precisodizer palavras, enquanto houver, é preciso dizê-las, até que elas me encontrem, até que elas me
digam, estranha pena, estranho pecado, é preciso continuar, talvez já tenha sido feito, talvez játenham me dito, talvez já tenham me levado até o limiar da minha história, diante da porta quese abre para a minha história, isso me surpreenderia, se ela se abrir, vai ser eu, vai ser o silêncio,ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não possocontinuar, vou continuar.22
Sendo assim, Valère Novarina tem referências preciosas para desenvolver seu trabalho.
Entretanto não quero dizer com isso que seu trabalho é óbvio. E abro, aqui, um espaço
para um relato pessoal sobre minha aproximação deste autor.
Meu primeiro contato com Novarina foi através dos textos Diante da palavra23
e Cartaaos atores.24 Minha primeira impressão foi que todo o discurso sobre o sopro e sobre a
respiração e órgãos não me trazia nenhuma novidade. Nada que eu já não conhecesse a
partir das falas desesperadas de Artaud ou dos elípticos e belíssimos ensaios de Blan-
chot. Claro que via ali inteligência na reivindicação de uma palavra concreta, uma pala-
vra que existe por si e não pelo sentido que encerra; havia poesia nessa reclamação, mas
eu não conseguia ver nada além de uma espécie de afogamento contemporâneo pelo
excesso de sentidos e de conteúdos. Enfim, não me trazia novidade alguma.
Num dado momento, convidado por uma grande amiga e atriz para dirigi-la em O ani-
mal do tempo25, resolvi ler o texto antes de declinar do convite. Texto estranho. Quando
algum sentido parecia que iria se formar, ele se transformava em outra imagem ou pen-
samento. Após uma terceira leitura, não podia dizer que estava gostando. Mas também
não podia afirmar o contrário. A estranheza persistia. Fizemos uma primeira leitura em
voz alta e só então pude perceber que no lugar de um fio narrativo – expressão impossí-
vel de utilizar nesse texto – encontrava-se uma força narrativa que mais se assemelhavaa um mergulho em um labirinto. Minha percepção acompanhava o texto como quem
caminha por uma cidade com ruas muito estreitas e muitos prédios e pessoas diferentes,
e muitos pensamentos vêm à cabeça, todos ao mesmo tempo, sendo que alguns sobres-
22 BECKETT, Samuel. O inominável . Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 189.
23 NOVARINA, Valère. Diante da palavra. Trad. Ângela Leite Lopes, Rio de Janeiro: 7 letras, 2003.
24 NOVARINA, Valère. Carta aos atores e Para Louis de Funès. Trad. Ângela Leite Lopes, Rio de Janei-
ro: 7 letras, 2009.25 NOVARINA, Valère. Discurso aos animais. Trad. Ângela Leite Lopes, Rio de Janeiro: 7 letras, 2007.
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saem e quase vêm aos lábios para logo em seguida serem absorvidos por outros pensa-
mentos, até que, de repente, abre-se uma grande avenida à frente do leitor e é como se os
pensamentos se espalhassem e uma lufada de ar enchesse seus pulmões para, em segui-
da, penetrar de novo pelas ruelas de prédios, casas e pessoas muito diferentes umas das
outras e os pensamentos voltassem à cabeça, todos ao mesmo tempo, com uns sobressa-
indo em relação aos outros.
Foi uma experiência física, esse primeiro contato com o texto. Percebi que o poder em-
briagador do texto estava em sua elocução. Não havia experimentado ainda uma tal sen-
sação. E, “horror!”, não podia explicar. A não ser lembrando da epígrafe que abre este
trabalho: como Artaud eu acabava de experimentar as palavras. Não o significado, mas
seu poder de produzir sentidos.
Uma das coisas que sempre me interessaram na cena que Artaud buscava, estava na
exigência de precisão e no rigor da ordenação dos sons, imagens ou palavras que seriam
organizados para o espetáculo. Tudo em cena deveria convergir para a criação de uma
experiência de sonho. Nunca me interessei pela leitura habitual de Artaud, que via no
improviso ou na espontaneidade uma possibilidade de trazer o teatro para o momento
presente, de ver nisso uma espécie de presentificação do devir e do acaso, de trazer o
jogo cênico para a realidade do instante. A espontaneidade pura e simples nunca foi um
valor importante para o resultado de um espetáculo. Minha leitura de Artaud se concen-
trava na busca de uma sonoridade que criasse, em cena, uma dimensão onírica que pres-
cindisse do relato ou da organização lógica dos acontecimentos. Artaud foi buscar essa
sonoridade em línguas primitivas ou em sons guturais que evocassem uma dimensão
pré-cultural na busca por uma palavra mágica que havia perdido seu sentido ao longo da
história do ocidente. Ele estava atrás de uma Linguagem para a cena que recuperasse
para a experiência teatral o sentido dos rituais. Mas a partir do uso preciso da palavra eda configuração das várias palavras. A partir da perfeita ligação entre as palavras.
Essa busca por uma dimensão da Linguagem que funda o sentido não na compreensão
lógica, mas na mistura entre a sonoridade das palavras, na presença do ator e, claro,
também no sentido das palavras sempre me emocionou. Em Artaud, não é a história que
importa, mas as imagens e lembranças que a experiência de Linguagem – uma experi-
ência primitiva – evocariam.
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Ao fim da primeira leitura de Animal do tempo em voz alta, pude afirmar que via senti-
do naquele texto, mas não podia, a partir daí, constituir uma história única. São tantas
histórias! A cada leitura, novas histórias se somavam às anteriores. E tantas outras que
não foram contadas ali, mas que me vieram à lembrança! E tantos novos caminhos se
revelavam a cada nova leitura!
Eis uma narrativa que, mais do que contar, escrita, funciona como uma partitura musical
cujo sentido só se revela ao se tornar som, ao ser soprada.
FALAR NÃO É COMUNICAR
Falar não é comunicar. Falar não é trocar nem fazer escambo – das idéias, dos objetos – ,falarnão é se exprimir, designar, esticar uma cabeça tagarela na direção das coisas, dublar o mun-do com um eco, uma sombra falada; falar é antes abrir a boca e atacar o mundo com ela, sa-
ber morder. O mundo é por nós furado, revirado, mudado ao falar.26
A palavra comunicação é comumente identificada com a transmissão de mensagens ou
de informações. A narrativa linear, adotada pela tradição teatral, tem como objetivo
contar uma história de forma a ser apreendida, com precisão, por todos os ouvintes. Da
mesma forma que a perspectiva linear oferece uma imagem realista descrita em deta-
lhes. Há, em ambos os casos, o uso de um instrumento preciso com o objetivo de comu-nicar os temas escolhidos. Muitas vezes, essas histórias têm um caráter pedagógico, ao
colocar forças antagônicas em conflito; levam, portanto, o público a refletir sobre os
acontecimentos ficcionais e tirar dali, a partir do entendimento, algum aprendizado.
Muitas vezes, o objetivo é apenas fazer rir e, o mais comum é vermos uma cena que
procura colocar o homem ou a sociedade em foco extraindo graça de situações cotidia-
nas. Nesse caso, também há comunicação. Há algo para dizer e que deve ser recebido
pela platéia inteira; caso contrário, corre-se o risco de a piada não ter graça.
Entretanto, desde o Simbolismo, nos habituamos a buscar no teatro, uma experiência
especificamente teatral. Então, podemos até ter uma história como fio, mas ela é tênue.
O foco não está apenas no texto, mas no jogo que a própria cena produz. E, entre os
elementos da cena, o diretor dimensiona também a platéia. É ela quem vai articular a
história ou as imagens produzidas pela cena. Aqui, a palavra comunicação já não é boa.
Não se trata de utilizar uma Linguagem como instrumento para sensibilizar a platéia
26 NOVARINA, Valère. Diante da palavra. Trad. Ângela Leite Lopes, Rio de Janeiro: 7 letras, 2003, p. 14.
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num determinado sentido. Trata-se de pensar uma cena – que inclui o público; uma cena
que instaura, funda – seja a partir de um texto dramático, seja a partir de uma idéia –
uma experiência teatral.
Novarina, especialmente no Discurso aos Animais, texto do qual foi extraído O animal
do tempo, não comunica nada. Ele produz algo que, sem sombra de dúvida, deixaria
Artaud maravilhado. Através de uma ordenação que possui uma lógica própria e de neo-
logismos ou recursos de repetição como o uso de números ou de nomes próprios quase
alegóricos, ele promove, no contato entre o ator que profere o texto e a platéia, uma
experiência com a própria Linguagem. É a Linguagem tornada protagonista. Não é um
jogo de palavras, é uma poderosa narrativa que se lança em direção à platéia. Não é um
conto, é uma avalanche de sentidos que obriga a platéia a escolher entre duas opões:negar-se ao jogo (e se entregar ao tédio até o fim do espetáculo) ou deixar-se levar por
uma espécie de encantamento provocado pelas palavras.
E, ao usar a palavra encantamento, quero chamar a atenção para o que há de mágico
nela. Aqui, as palavras não se limitam a funcionar com instrumentos de um dizer; como
uma ferramenta com o objetivo de transmitir uma mensagem. Não há nesse texto a utili-
zação técnica das palavras, com o objetivo de produzir um sentido específico. Em O
animal do tempo, as palavras não querem se esconder atrás de seus significados. As
palavras são, elas próprias, aquilo que se quer dizer e, a partir de sua presença, de sua
elocução, a partir do momento em que são proferidas pela atriz, tornam-se poderosas
máquinas de produzir sentidos. E são máquinas sem controle, pois quem vai moldar,
lapidar e polir essa escultura invisível27 é aquele que ouve.
Nenhuma comunicação. Entretanto, a palavra como uma potência de criação de senti-
dos. Portanto, muito além da comunicação: uma experiência mágica com a Linguagem.
É a Linguagem sendo devolvida à sua origem encantatória, devolvida ao tempo em que
ao evocarmos uma coisa por seu nome, nós a presentificávamos. E, quando queríamos
levar conosco, para sempre, uma lembrança, nós a nomeávamos.
E tudo isso com muito prazer.
27 Joseph Beuys (1921 – 1986), visando à criação de uma teoria sobre a escultura, trabalhou a partir doseguinte conceito: pensar é esculpir. Ou seja, diante de uma experiência artística, a obra está naquiloque é vivenciado pelo que chamaríamos de espectador. Porque para Beuys, a arte não está na formaelaborada pelo artista, mas no espaço entre a obra e aquele que a olha.
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Novarina, trabalha a palavra como uma matéria. Uma matéria sem finalidade. Para ele,
a palavra não designa, aproxima. E Blanchot ratifica esse lugar da Linguagem:
A narrativa não é o relato do acontecimento, mas precisamente esse acontecimento,a aproximação desse acontecimento, o lugar onde este é chamado a produzir-se,
acontecimento ainda por vir e graças a cujo poder de atração a narrativa pode espe-rar, também ela, realizar-se.28
O FIM
Houve um tempo em que a palavra quase se confundia com o vento. Ela era apenas so-
prada. Não tinha equivalente abstrato. Era som. E esse sopro encontrou sua ação de pre-
cisão cirúrgica no Classicismo... quando a palavra tornou-se instrumento: do conto, da
vida, do conhecimento, dos sonhos, colocando cada relato em seu devido lugar.
O Simbolismo buscou, rompendo com a narrativa clássica, retomar aquele jogo que a
Linguagem proporcionava. Artaud vociferou até mesmo contra o Ocidente na exigência
de fazer, de novo, a palavra surgir como sopro. Buscou uma cena que proporcionasse
uma narrativa de sonhos, uma narrativa que obedecesse à lógica dos sonhos e não à linha
progressiva que aprendemos com a tradição.
Essa foi a luta – excetuando-se as pesquisas de Brecht e de seus seguidores – que o tea-
tro empreendeu ao longo do Século XX. E Novarina, um dramaturgo, pintor, poeta, que
é tudo isso sempre ao mesmo tempo, encontra no início desse século XXI, um lugar que
eu diria, é bastante coerente com o projeto do Simbolismo.
Levamos um século para reconduzir uma dimensão da vida à cena: Novarina reconduz a
ficção ao seu lugar originário: a realidade.
28 IDEM, Ibidem, p. 14.
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