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Percursos dramatúrgicos de jovens à margem
FERNANDA ROBERTA LEMOS SILVA1
Resumo
Este trabalho objetiva apresentar a “transcriação”, na perspectiva de Meihy (2007), da
história oral de vida de adolescentes, em cumprimento de medida socioeducativa de
Liberdade Assistida, atendidos na instituição executora Sociedade Educativa de
Trabalho e Assistência (SETA), na cidade de Campinas/SP. As histórias de vida
coletadas através de entrevistas com os adolescentes, foram guiadas pela pergunta
norteadora: “Qual a história que marcou a sua vida?”. Através da narrativa coletada com
os entrevistados foi possível revelar um universo peculiar dos adolescentes imersos nos
enfrentamentos da transição para a juventude, nos dilemas e conflitos familiares e,
sobretudo, nos seus sonhos e nos percalços da reconstrução do seu futuro em liberdade.
Este trabalho também identifica o processo que o jovem conduz para a elaboração de
suas histórias e, posteriormente, a transformação e a “transcriação” das mesmas, as
quais nomeio de “percursos dramatúrgicos”. Por fim, esse trabalho compartilha os
“percursos dramatúrgicos” oriundos das histórias narradas por esses adolescentes
adotando o conceito “transcriação” como horizonte metodológico.
Palavras chave: Adolescentes; Liberdade Assistida; Transcriação
INTRODUÇÃO
Este trabalho visa compartilhar os resultados alcançados utilizando a
“transcriação”, procedimento metodológico que compõe História Oral de Vida, na
realização de entrevistas 2 com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa
de Liberdade Assistida na Instituição Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência
(SETA)3 e que vivem às margens da cidade de Campinas/SP e imersos em processos de
1 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Doutoranda em Educação, Conselho Nacional de
desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2 A entrevista, neste trabalho, é compreendida na perspectiva de (CALDAS, 2009:63) “a entrevista
envolve (...) uma relação mais íntima e sutil (...) do que pode parecer à primeira vista (1917:16), sendo
mais que simples técnica, pois envolve “comunicação entre duas pessoas (...) é um método de
cordialidade, um método de fazer perguntas com o único objetivo compreender” (1976:18-74) o que
bachelardiamente Meihy chama de aberto ao aconchego, à confidência e ao respeito”.
3 A Instituição Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência (SETA), executora da medida
socioeducativa de Liberdade Assistida nas regiões Sudoeste, Norte e Noroeste de Campinas/SP, é uma
associação com fins não econômicos, de natureza assistencial, educacional e cultural, que atua há mais de
38 anos na região Leste de Campinas oferecendo serviços, atividades educativas e treinamentos para a
comunidade.
exclusão e acesso à oportunidade de estudo e trabalho. Neste sentido, é possível afirmar
que majoritariamente os adolescentes e jovens inseridos nesse contexto estão expostos a
uma “situação de risco” e de vulnerabilidade social, aqui compreendida de acordo com a
Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Vivenciar situações de vulnerabilidade
social inclui:
(...) perda ou fragilidade de vínculos afetividade, pertencimento e
sociabilidade, ciclos da vida, identidades estigmatizadas em termos étnicos,
cultural e sexual (...) exclusão pela pobreza e, ou, no acesso as demais
políticas públicas (...). Já as situações de risco pessoal e social se diferem da
vulnerabilidade social. São exemplos desta última abandono, maus tratos
físicos ou psíquicos, abuso sexual uso de substâncias psicoativas, situação de
rua, situação de trabalho infantil, entre outras. (PNAS, 2004:33-34).
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Art.118, a
Liberdade Assistida é a medida mais adequada para acompanhar, auxiliar e orientar o
adolescente em liberdade, tendo a duração de no mínimo seis meses e podendo ser
prorrogada ou substituída por outra medida. A Liberdade Assistida possibilita ao
adolescente cumprir a medida socioeducativa em meio aberto e, desta maneira, reforçar
os laços familiares e comunitários. Os adolescentes e jovens em cumprimento de
medida socioeducativa, de acordo com Agrário (2016), geralmente apresentam as
seguintes características:
(...) têm direitos violados; possuem baixa escolaridade e defasagem
idade/série, trabalho infantil nas piores formas como aliciamento para o
tráfico de drogas; ou envolvidos em atos de violência. Freqüentemente,
adolescentes que vivenciam a fragilidade de vínculos familiares e, ou,
comunitários são mais vulneráveis à pressão para se integrarem a gangues
ou a grupos ligados ao tráfico de drogas. Esse cenário provoca a imposição
de uma série de estigmas sociais a esses adolescentes, impedindo que sejam
compreendidos a partir de suas peculiaridades. (AGRÁRIO, 2016,:17).
Foram realizadas entrevistas pautadas na história oral de vida de 04 jovens, 02
meninas e 02 meninos, com faixa etária de 15 a 17 anos. A partir de um roteiro de
perguntas semi estruturado, foi proposto ao adolescente que compartilhasse uma
narrativa referente à sua história de vida e/ou histórias que marcaram a sua trajetória,
tendo como pergunta norteadora: “Qual a história que marcou a sua vida?”
É legal, né, porque você começa a pensar em um monte de coisa que você
fez... Porque, tipo a gente não fica pensando nisso o tempo todo. Você não
pensa: “ah minha história é essa”. Só que aí quando alguém te
pergunta:“qual é a sua história”, você pensa: Qual é a minha história? Você
pensa: “nossa qual é a minha história”? O que eu posso falar para essa
pessoa? Do que é a minha história em si? E aí você começa a pensar na sua
vida em si, nas coisas que você pode mudar, nas coisas que anda fazendo,
que você fez, nas coisas que mudaram, no que ainda vai mudar. Legal fico
pensando: “O que é a minha história?”. (Percurso dramatúrgico IV – O
menino e aquela cena).
Entrevistá-los nesta pesquisa teve como objetivo identificar o processo que o
jovem conduz à elaboração de suas histórias e, posteriormente, à transformação e
transcriação das mesmas, procedimento que nomeio de “percursos dramatúrgicos”. No
sentido figurado, a palavra “percurso” significa atividades e experiências de uma pessoa
durante a vida ou, também, trajeto, roteiro, caminho. Nessa direção aponto o percurso
do jovem entrevistado na elaboração da sua história oral de vida. A junção com o
conceito intitulado “dramatúrgico” envolve uma abordagem mais direta das teorias da
arte. Compreende-se no campo das artes da cena, de acordo com Guinsburg (2009), que
a figura da dramaturgia surgiu na Alemanha no século XVIII, sendo definida como o
ofício de elaborar um texto e transpô-lo para o palco. Considera-se dramatiker aquele
que escreve o texto teatral. Originalmente a palavra drama vem do grego drâma, que
significa “ação” e era usada com relação à arte teatral. Um drama é um texto cuja
história é caracterizada por um desenrolar de acontecimentos semelhantes aos da vida
real.
O interesse pela “transcriação” das entrevistas realizadas com os adolescentes
também se deu pelas provocações/inspirações procedentes da disciplina Seminário I -
História Oral nas pesquisas sobre violência e juventude4. Ao me debruçar sobre as
diferentes poéticas de se realizar uma entrevista, na perspectiva da História Oral,
encontrei nesse processo algumas referências que foram decisivas para a organização da
produção oral que coletei com os adolescentes.
Eduardo Coutinho, através dos seus documentários Santo Forte (1999),
Edifício Máster (2002), O Fim e o Princípio (2005) e Canções (2011), mostrou-me os
caminhos percorridos para a realização das entrevistas, desde a escolha das colônias e
da pergunta de corte que perpassa os documentários até a maneira em que interfere no
diálogo com os entrevistados, além de sugerir (para os entrevistadores), o
“esvaziamento” de pré-conceitos, das percepções estereotipadas e de julgamentos e,
ainda, a sutileza da concepção de “fazer um filme com as pessoas e não sobre as
4 Disciplina ministrada no 2º semestre de 2015, no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pela Profª Dra. Áurea Guimarães e Profª Dra. Fabíola
Holanda e Profª Dra. Susy Cristina Rodrigues.
pessoas”. Sobretudo, considero a poética existente nos silêncios. Para Almeida, Amorim
e Barbosa (2007), existem várias formas de silêncio: o silêncio carregado de
significados, o silêncio como intervalo e como estratégia para chamar a atenção do
leitor. Silêncio não é ausência da “palavra”, de linguagem, de sentido, mas ele é a
própria linguagem que possibilita os sentidos.
Inicialmente busquei construir um universo que permitisse que os adolescentes
entrevistados escolhessem o ponto de vista que contariam a sua história. A possibilidade
de abrir para o jovem a escolha deste recorte, e a maneira como ele narra e compartilha
o que viveu, foi o que me impulsionou a utilizar a “transcriação” como horizonte
metodológico.
O conceito de transcriação é uma mutação “ação transformada, ação
recriada” de uma coisa em outra, de algo que, sendo de um estado de
natureza se torna outro. A beleza da palavra composta por “trans” e
“criação” sugere uma sabedoria que ativa o íntimo do ato de transcriar.
Fala-se de geração, mas não de cópia ou reprodução. Nem de paródia ou
imitação (MEIHY, 2008:147).
A passagem do oral para o grafado é um elemento que compõe o início do
processo da “transcriação”. Evangelista (2010), ao descrever o conceito de
“transcriação” no artigo intitulado: A transcriação em história oral e a insuficiência da
entrevista, destaca que:
A idéia de transcriação sugerida pelo fazer da história oral tem sua fonte de
inspiração em discussões que giram em torno da tradução. A passagem de
uma língua para outra seria equivalente à passagem do oral para o escrito,
de maneira que a atitude de fazê-lo literalmente em nada teria relação com o
respeito ao sentido conferido à mensagem que deseja disseminar. Pelo
contrário, a leitura de um texto simplesmente transcrito não permite a
ebulição de sentimentos que um texto literário, por exemplo, traz à tona.
(EVANGELISTA, 2010:176).
De acordo com Fefferman (2006), inúmeros trabalhos sobre a juventude tem
surgido no século XX, como tentativas de resposta ao aumento da delinquência juvenil,
sobretudo nos Estados Unidos. Ao fundamentar a precariedade dos processos de
identificação dos jovens no mundo contemporâneo, a autora cita uma pesquisa realizada
em Moscou, na qual foram aplicadas entrevistas com adolescentes na faixa etária de 14
anos. Os dados coletados nesse trabalho revelaram que a maioria dos meninos
entrevistados responderam que a sua “profissão dos sonhos” era ser “mafioso”, e as
meninas “prostitutas”. A mesma autora também apresenta a idéia, que alguns estudiosos
sustentam, de que jovens infratores buscam o reconhecimento social e a “construção de
identidade”.
Neste sentido destaco a pesquisa realizada pelo educador francês Philippe
Meirieu (1993), que também adotou como metodologia em seu trabalho a utilização de
entrevistas com crianças de 6 a 12 anos, em situação de vulnerabilidade social na
periferia de Lion, na França. O autor obteve como resultado que a principal
característica das crianças entrevistadas e que se sentem fracassadas socialmente, “é a
absoluta incapacidade de pensar uma história, de pensar a própria história” (MEIRIEU,
1993:17 apud DESGRANGES, 2010:22)5. A realidade das crianças apresentadas por
Meirieu (1993) possui as mesmas características da colônia de destino desta pesquisa.
Os adolescentes e jovens que passam pelo processo de uma medida socioeducativa em
meio aberto também apresentam dificuldades em elaborar suas histórias.
Para Meihy (2010:27) “isto recobra significado quando se leva em conta que no
mundo globalizado a fragmentação da individualidade é um fenômeno coerente com a
incapacidade rotineira de se narrar”. Por fim evidenciar as narrativas dos jovens com
base na história oral de vida:
Não só oferece uma mudança para o conceito de história, mais do que isto,
garante sentido social à vida de depoentes e leitores que passam a entender a
sequência histórica e a sentirem parte do contexto em que vivem (MEIHY,
1996:10).
Pude observar, em análises de pesquisas acadêmicas que adotaram entrevistas
com adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas como recurso
metodológico, que os adolescentes tornaram-se objetos de interesse de investigação a
partir do contexto específico das circunstâncias que os levaram a cometer atos
infracionais e das reflexões estabelecidas diante da autoria desses delitos. Contrapondo
à essa parte da história de vida dos participantes desta pesquisa, os relatos coletados
foram direcionados ao compartilhamento de elementos que também fazem parte da
história de vida desses adolescentes e jovens: seus sonhos, suas lutas, seus medos, as
relações com a família, a escola e o futuro e, acima de tudo, sobre a potência da
juventude (no processo de ressocialização e reconstrução da vida em liberdade).
5 Desgranges (2010:22) destaca que: “a incapacidade de contar a sua história está diretamente
relacionada, portanto com a falta de condições para organizar e compreender o seu passado, o que indica
ainda a dificuldade de situar-se no presente e projetar-se no futuro”.
1 - Transcriando a História Oral de adolescentes e jovens em Liberdade Assistida
A História Oral pode ser compreendida em três segmentos diferentes: História
Oral de Vida, História Oral Temática e Tradição Oral. Ambos os gêneros da história oral
valorizam o contato prolongado com o grupo “estudado”. De acordo com Evangelista
(2010:174) “a imersão do pesquisador em cultura diversa da sua faz do caderno de
campo recurso indispensável para a constituição narrativa, seja ela etnográfica ou de
história oral”. Para esse trabalho adotou-se a História Oral de Vida.
A História Oral de Vida obedece a um procedimento conhecido por
entrevistas livres, isto é, sem questionário ou perguntas diretamente
indutivas. Quase sempre, as gravações de História Oral de Vida são longas e
devem obedecer à captação do sentido da experiência vivencial de alguém. A
individualização é fundamental, sendo que cada pessoa deve ser tratada
como um caso específico, a noção de tempo histórico individual e seu
enquadramento no contexto é fator constante da História Oral. Fala-se,
portanto, nesta circunstância, da provação existencial do indivíduo como um
todo. As informações sobre detalhes ou parcelas da vida do depoente têm
relativa importância, da mesma forma a exatidão dos dados. (MEIHY,
1994:6).
Coletar entrevistas, depoimentos, é algo muito recorrente no trabalho com
sujeitos em vulnerabilidade social e também com jovens em cumprimento de medidas
socioeducativas, como se pode empreender nas pesquisas realizadas por Torezan (2005),
Silvestre (2006), Santana (2005) e Carvalho (2009), que analisaram entrevistas
coletadas com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de Liberdade
Assistida problematizando a história de vida dos adolescentes em diferentes temas
como, por exemplo: a relação conflituosa com o ambiente escolar, a esfera assistencial e
o sistema de justiça.
Os trabalhos que apresentam o emprego de entrevistas como metodologia para
a coleta de dados possuem escolhas metodológicas semelhantes, por exemplo: a
utilização de nomes fictícios para preservar a identidade dos sujeitos, o uso de iniciais
para a não identificação dos nomes dos adolescentes, a preservação do relato original na
transcrição da entrevista (mantendo as expressões e linguagens utilizadas pelos
entrevistados), roteiro semi-estrurado, e a utilização de gravadores. Valeta (2012), ao
pesquisar a representação corporal de jovens em Liberdade Assistida, aliou a realização
de entrevistas com o conceito de auto-imagem corporal, coletando dos jovens
colaboradores da pesquisa um auto-desenho.6
Meihy (2005) propõe que a análise dos depoimentos na História Oral seja
realizada em três fases: 1 ª fase - A transcrição: transposição da gravação em áudio para
o relato escrito; 2 ª fase - A textualização: corresponde a uniformização do texto, no
qual são suprimidas as perguntas das entrevista, obtendo uma narrativa linear; e, por
fim, a 3 ª fase: A transcriação: trata da criação de um novo texto a partir da fala. De
acordo com Evangelista (2010:180) “o texto transcriado é o resultado em uma série de
etapas criativas que vão contornando um produto sempre inédito”. Para compor a
“transcriação” Meihy (1996) sugere a utilização de um caderno de campo durante o
processo de coleta das entrevistas.
A transcriação das entrevistas deste trabalho também foram subsidiadas por
informações presentes em relatórios de acompanhamento inicial e conclusivo,
destinados à Vara da Infância e da Juventude de Campinas, e informações do Plano
Individual de Atendimento (PIA) dos adolescentes entrevistados, disponibilizado pela
executora Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência (SETA), MSE/Liberdade
Assistida. As entrevistas, gravadas em áudio com a autorização dos adolescentes,
tiveram a duração de cerca de 30 minutos cada. Após a gravação das entrevistas foi
realizada a transcrição dos relatos buscando preservar a linguagem utilizada pelos
adolescentes.
A preservação do relato original dos adolescentes e a transcriação de suas
histórias em “percursos dramatúrgicos”, assim como sinalizado por Evangelista (2010),
ajudou-me a refletir sobre a questão: “A história contada poderia ir além do que é dito
pelo entrevistado? ” (EVANGELISTA, 2010:177). Após a transcrição e textualização da
entrevista, iniciei o processo de transcriação do material coletado. Eu dispunha das
entrevistas gravadas em áudio transcrito, relatos do meu caderno de campo, e do vínculo
estabelecido com os adolescentes durante o desenvolvimento do projeto Territórios:
6 De acordo com Valeta (2012:82) (...) “a interpretação dos desenhos dos jovens pode contribuir como
meio simbólico de comunicação, de expressão de conteúdos psíquicos inconscientes e de características
psicológicas de personalidade, cognitivas, afetivas comportamentais e corporais”.
Liberdade Assistida e Comunidade7, que me permitiu conhecer particularidades de suas
histórias que não foram compartilhadas pelos adolescentes nas entrevistas.
No processo de construção do percurso dramatúrgico analisei as entrevistas e
elaborei um roteiro de cada história, destacando quais eram os principais dramas
compartilhados nas entrevistas e qual a visibilidade que o adolescente evidencia na
história de vida que compartilha. A sistematização desse roteiro deu visibilidade aos
pontos que os adolescentes destacaram nas suas histórias e, assim, concretizei a
elaboração da transcriação dos percursos dramatúrgicos, apresentados em fragmentos
abaixo:
Gostaria de saber um pouco sobre você, sobre a sua História de Vida? Uma
bosta! Ah Dona! Ruim demais! É a vida infelizmente. (Percurso
dramatúrgico I - O menino e aquela cena!) Porque nessa história quem acabou sofrendo foi só eu! (Percurso
dramatúrgico II- A princesa da L.A)
Aí eu aprendi que traficar nem sempre é a solução dos problemas da gente,
da vida! Percurso dramatúrgico III – A menina que queria voar)
Família é a união e compartilhamento do amor por um grupo de pessoas
leais umas as outra. (Percurso dramatúrgico IV O filho do rei)
2 - Categorias de codificação dos percursos dramatúrgicos
A partir dos relatos compartilhados pelos adolescentes transcriados, busquei
potencializar os fatos que marcaram suas histórias identificando nos percursos
dramatúrgicos “categorias de codificação”.
O desenvolvimento de um sistema de codificação envolve vários passos:
percorre os seus dados na procura de regularidades e padrões bem como de
tópicos presentes nos dados e, em seguida, escreve palavras e frases que
representam estes mesmos tópicos e padrões. Estas palavras são categoria de
codificação. (BOGDAN, BIKLEN,1994:221).
7 O projeto: Territórios: Liberdade Assistida e Comunidade, realizado através do Programa Serviço de
Apoio ao Estudante (SAE) Ação Cultural: Educação, Comunidade e Campus 2016, buscaram no
desenvolvimento de uma ação cultural na comunidade, estabelecer uma aproximação com grupos de
adolescentes e jovens com faixa etária entre 15 e 17 anos em cumprimento de medida socioeducativa de
Liberdade Assistida na Instituição Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência (SETA). O projeto
buscou evidenciar os processos de exclusão e acesso à cultura, relatado pelos adolescentes em
conseqüência da localização dos territórios em que residem na cidade de Campinas/SP. Os objetivos
específicos da ação cultural buscaram atravessar esses territórios, através de “passeios culturais”
programados em três eixos: a cidade, espaços culturais e a Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP).
Deste modo, para codificar as entrevistas, adotei, de acordo com Bogdan e
Bilrem (1994), as categorias “códigos de relação e estrutura social”, “códigos de
acontecimentos” e “códigos de estratégia”.
Códigos de relação e de estrutura social: Os padrões regulares de
comportamento entre pessoas não oficialmente definidos pelo mapa
organizacional são aqueles que agrupamos como “relações” (BOGDAN;
BIKLEN,1994:227).
Nas “relações” apresentadas nos percursos dramatúrgicos foi possível
identificar que, em todas as histórias, os adolescentes apresentaram informações sobre a
sua dinâmica familiar, compartilhando nesses relatos a composição familiar em que
vivem e os dilemas vivenciados por seus membros durante a passagem do adolescente
pelo cumprimento da medida socioeducativa de Internação.
Utilizo os códigos de acontecimento: “que são dirigidos a unidades de dados que
estão relacionados com atividades específicas que ocorrem no meio ou na vida dos
sujeitos que está a entrevistar” (BOGDAN; BIKLEN, 1994:226). Os sujeitos
entrevistados tinham em comum: o cumprimento de medida socioeducativa de meio
aberto pela autoria de atos infracionais, a mesma faixa etária e, por coincidência, eram
moradores da mesma região em Campinas. Pude identificar, nas entrevistas concedidas,
qual o lugar que o “ato infracional” ocupa no relato dos jovens e de que maneira
apresentam a experiência vivenciada no cumprimento de medida de privação de
liberdade ou de meio aberto.
No Percurso Dramatúrgico I - O menino e aquela cena, o adolescente apresenta
dificuldade em refletir sobre o seu envolvimento com atos infracionais, descrevendo em
seu relato atitudes delituosas que já cometeu.
As meninas entrevistadas, nos percursos II - A princesa da L.A e III - A menina
que queria voar, relatam, como um “acontecimento”, o momento de suas apreensões e a
ausência de informações referentes à responsabilização de menores de idade diante do
flagrante de autoria de atos infracionais.
Por fim, no Percurso dramatúrgico IV - O filho do rei, o jovem entrevistado não
relata o ato infracional em sua história de vida. Mesmo tendo acesso às informações
processuais, a preservação dessa parte da história do adolescente será mantida devido à
escolha que o entrevistado fez no compartilhamento de sua história de vida e dos
princípios éticos presentes na História Oral.
Identifiquei nos relatos os “códigos de estratégia”: “as estratégias referem-se a
tácticas, métodos, caminhos, técnicas, manobras, tramas e outras formas conscientes de
pessoas realizarem várias coisas” (BOGDAN; BIKLEN 1994:227). Os jovens
entrevistados compartilharam, em seu processo socioeducativo, os sonhos e as metas
que traçaram nesse período de ressocialização. Como apresentado no quadro a seguir:
Jovem colaborador
Códigos de Estratégia
I - O menino e aquela cena
Abrir uma “loja” ou “Biqueira”
II - A princesa da L.A
Ser fotógrafa
III - A menina que queria voar
Ser Comissária de Bordo
IV - O filho do rei Fazer faculdade de Psicologia ou Ciências Sociais
Figura 1- Quadro expositivo das narrativas referentes ao Código de Estratégia.
Em dezembro de 2016 encerrei a minha pesquisa de campo e, após acompanhar
os desdobramentos dos adolescentes no cumprimento da Liberdade Assistida, pude
observar aspectos conclusivos em suas histórias. O adolescente retratado no Percurso I -
O menino e aquela cena, diante da dificuldade de refletir sobre a prática de atos
infracionais e a instabilidade da sua relação familiar (fator que dificulta a reconstrução
dos seus vínculos afetivos), a SETA/MSE Liberdade Assistida solicitou a prorrogação
da medida socioeducativa do adolescente para que um novo Plano Individual de
Atendimento fosse construído com o ele.
Com relação à jovem apresentada no Percurso dramatúrgico II - A princesa da
L.A, a SETA/MSE Liberdade Assistida conseguiu uma parceria com um estúdio de
fotografia que ofereceu um curso gratuito para a adolescente e que, infelizmente, não
conseguiu se organizar para freqüentar as aulas. A sua instabilidade emocional a impede
de priorizar seus desejos pessoais.
No Percurso III - A menina que queria voar, a SETA/MSE Liberdade Assistida
conseguiu uma parceria com uma Escola de Comissários que ofereceu uma bolsa de
estudos do curso para a adolescente e que terá início após a sua conclusão do Ensino
Médio.
Por fim, no Percurso IV - O filho do rei, o jovem foi aprovado no final de 2016
no vestibular para o curso Ciências Sociais, pelo Sistema de Seleção Unificada (SISU).
Todos os jovens colaboradores dessa pesquisa foram desligados da medida
socioeducativa de Liberdade Assistida sem intercorrências, devido a sua extinção do
processo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Realizar entrevistas com adolescentes e jovens em cumprimento de medidas
socioeducativas, como coleta de dados para uma pesquisa, apresenta-se como um
desafio no que se refere aos aspectos metodológicos. Adotar como sujeitos
colaboradores de uma pesquisa, adolescentes que carregam os estigmas deixados pela
vivência e protagonismo em situações de violência e que possuem como marca em suas
vidas a passagem em uma medida socioeducativa privativa de liberdade durante a
adolescência, é um convite para adentrar em um espaço/território de difícil acesso e
cheio de particularidades no que se refere às histórias de vida e ao contexto em que
estão inseridos, tanto pela abertura a ser dada ou não pelos adolescentes, como pelos
procedimentos éticos e sigilosos pelos quais correm os processos judiciais relacionados
às medidas socioeducativas.
Os adolescentes colaboradores deste trabalho são julgados tanto pelo poder
judiciário quanto pela escola e pela família, fator que interfere diretamente na
elaboração de suas histórias, na maneira que estabelecem reflexões sobre o passado,
como o compreendem e estabelecem metas para a reconstrução de seu futuro.
Transcriar os dramas do cotidiano destes adolescentes e jovens trouxe uma
melhor compreensão sobre os enfrentamentos em sua ressocialização, os conflitos
vivenciados nas relações familiares, no ambiente escolar, a violência policial, a ausência
de políticas públicas que contemplem as demandas de jovens pobres e com baixa
escolaridade, moradores de territórios periféricos na cidade de Campinas e que
necessitam de iniciação e capacitação profissional.
A “transcriação” desses relatos permitiu um desfecho das entrevistas atento às
particularidades do público pesquisado, potencializando o processo criativo de
elaboração das histórias que marcam suas vidas. Em suma, como afirma Caldas
(1999:110) “os textos transcriados tornaram-se realidades abertas que exigem abertura e
enfrentamento (...) como os textos são resultantes de uma poética da experiência,
clamam por uma poética da leitura e por uma poética da interpretação.”
A preservação do relato original dos adolescentes e a transcriação de suas
histórias em “percursos dramatúrgicos”, compartilhou dramaturgias reais,
acontecimentos que marcaram, interferiram ou transformaram suas histórias
apresentados na poética da “transcriação”.
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