para entender o capital de marx - edisciplinas.usp.br · prefácio quando se tornou público que o...
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SobreParaentenderOcapitalMarcioPochmann
Umparadoxorondaoconjuntodeinterpretaçõesacercadocapitalismo.Omododeproduçãodo
capital dá sinais de complexificação desde a década de 1970, com a predominância da fase da
financeirizaçãoda riqueza e a transiçãohegemônicado trabalhomaterialparao imaterial, e,nesse
contextoemqueeramnecessáriasnovasanálisesdofuncionamentodocapitalismoedasalternativas
desuasuperação,perdeuforçaevigoropensamentomarxista.
Não faltaram motivos. Do lado da produção acadêmica, houve um ataque articulado do
pensamentoneoliberal,coerenteehegemônicoemquasetodososfórunsnacionaise internacionais
dedebates;universidadeselevaramaolimiteaespecializaçãodoconhecimentomotivadopelasregras
de produtividade do trabalho, copiadas das Ciências Exatas pelas Humanidades. Ademais, a
estratégiaconservadoradeesvaziaroconteúdodoscursosdeCiênciasSociaisterminouporcolocar
disciplinas,professoresepesquisadoresdopensamentomarxistaquasenacondiçãodegueto.
Do lado intelectual das lutas sociais e departidospolíticosde esquerda, o enfraquecimentoda
baseteóricamarxistaocorreusimultaneamentecomacrisedochamadosocialismoreal,comaqueda
do muro de Berlim e com o fim da Guerra Fria. Desvios oportunistas e chicanas de elitismos
favoreceram reflexões cada vez mais pontuais e segmentadas, que passaram a orientar práticas
políticascurtoprazistasecadavezmaispragmáticas.
Tudo isso contribuiu para que certa orfandade ganhasse dimensão na formação das novas
gerações em termos de acesso e identidade com o pensamento marxista. O empobrecimento das
análises sobre o funcionamentodo capitalismo atual e a proliferaçãomultifacetadadopensamento
crítico tornaram quase irrelevante para as grandes massas a possibilidade de conhecer e produzir
alternativasàhegemoniadocapital.
Do mesmo modo que a agudeza da crise global do capitalismo colocou a necessidade de se
recuperaracontribuiçãomarxistaaoentendimentodessemododeprodução,ofimdagrandenoite
doobscurantismoneoliberalterminouporlibertarnovasforçassociaisepolíticasdispostasarefletir,
emnovasbases,alternativascríticasaomodohegemônicodocapital.Énessesentidoqueotrabalho
disciplinado, incansável e pertinente do consagradoDavidHarvey sobre o primeiro volume deO
capitalsetorna,emsualeiturafácileesclarecedora,umguiaparaentenderedesenvolveranecessária
contribuiçãodaeconomiapolíticadeKarlMarx.
Sobreoautor
DavidHarveyégeógrafobritânico,professordeantropologianapós-graduaçãodaUniversidade
daCidadedeNovaYork(TheCityUniversityofNewYork–Cuny)eex-professordegeografianas
universidadesJohnsHopkinseOxford.SeucursosobreOcapitaldeMarxjáfoiacessadopormaisde
300milpessoasdesdequefoidisponibilizadonositedaCuny,em2008.Autordediversoslivros,pela
Boitempolançouem2011OenigmadocapitaleteráembrevepublicadoOslimitesdocapital.
Sumário
Prefácio
Introdução
OCAPITAL–SeçãoI
1.Mercadoriasetroca
2.Dinheiro
OCAPITAL–SeçãoII
3.Docapitalàforçadetrabalho
OCAPITAL–SeçãoIII
4.Oprocessodetrabalhoeaproduçãodemais-valor
5.Ajornadadetrabalho
OCAPITAL–SeçãoIV
6.Omais-valorrelativo
7.Oqueatecnologiarevela
8.Maquinariaegrandeindústria
OCAPITAL–SeçãoV
9.Domais-valorabsolutoerelativoàacumulaçãodocapital
10.Aacumulaçãocapitalista
11.Osegredodaacumulaçãoprimitiva
Reflexõeseprognósticos
Índice
E-booksdaBoitempoEditorial
Prefácio
QuandosetornoupúblicoqueocursoquelecionoanualmentesobreOcapitaldeMarx(LivroI)seria
oferecidoon-linenuma série de vídeos, fui procuradopela editoraVerso, quemeperguntou se eu
teriainteresseemprepararumaversãoescrita.Porumasériederazões,concordeicomaideia.
Paracomeçar,aeconomiaemdeclínioeoiníciodaquiloqueameaçaserumacriseglobalséria–
se não uma recessão – geraram um grande interesse pela análise de Marx, cujo intuito é tentar
compreendermelhorasorigensdenossosproblemasatuais.Aquestão,noentanto,équeosúltimos
trinta anos,mais particularmente desde a queda doMuro de Berlim e o fim daGuerra Fria, não
foramumperíodomuitofavoráveloufértilparaopensamentomarxianoemenosainda,decerto,para
apolíticarevolucionáriamarxiana.Consequentemente,todaumageraçãomaisjovemcresceuprivada
defamiliaridade–paranãofalardetreinamento–comaeconomiapolíticamarxiana.Demodoque
este é ummomento oportuno para que um guia d’O capital ajude a abrir as portas para que essa
geraçãoexploreporsuaprópriacontaaquiloqueMarxpodeser.
OmomentoparaareavaliaçãoconstrutivadaobradeMarxéoportunoemoutrosentidotambém.
Decertaforma,asoposiçõesferozeseosinúmeroscismasnointeriordomovimentomarxista,quese
alastraramnadécadade1970eafetaramnãoapenasaspráticaspolíticas,mastambémasorientações
teóricas,perderamtantoaforçaquantooapetitepeloacademicismopuro,que,seajudouamanter
vivo o interesse porMarx em tempos difíceis, cobrou por isso o preço de reflexões e argumentos
incompreensíveisecomfrequênciaaltamenteabstratos.Oquevejoéqueaquelesquehojedesejam
lerMarx estão muito mais interessados em engajamentos práticos; isso não significa que tenham
medodeabstrações,masqueconsideramoacademicismotediosoeirrelevante.Hámuitosestudantes
eativistasqueanseiamporumafortebaseteóricaparaapreendermelhorcomoumacoisaserelaciona
comoutra,afimdesituarecontextualizarseusprópriosinteresseseseuagirpolítico.Esperoqueesta
apresentaçãodosfundamentosdateoriamarxianapossaauxiliá-losnessatarefa.
Para escrever este texto, trabalhei com base nas transcrições que Katharina Bodirsky (a quem
agradeçomuito)fezdasgravaçõesdeáudiodasaulasdadasnaprimaverade2007.Asaulasemvídeo
(verdavidharvey.org),organizadasporChrisCaruso(quetambémconcebeuowebsite)efilmadaspela
Media College da University of the Poor, em Nova York, e pela Media Mobilizing Project, na
Filadélfia,foramdadasnooutonode2007.GostariadeagradeceraChriseatodosquetrabalharam
voluntariamentenoprojeto.
Há, no entanto, diferenças significativas entre as versões em áudio e vídeo. Tais diferenças se
devem sobretudo ao fato de que leciono sempre de maneira ex tempore, concentrando-me em
diferentes aspectos do texto, dependendo dos acontecimentos políticos e econômicos atuais, bem
como de meus próprios interesses (e até mesmo caprichos) de momento. As discussões em classe
também se direcionam frequentemente para caminhos imprevistos. Infelizmente, o espaço não
permitiria a inclusão dessas discussões,mas, quando pareceu apropriado, incorporei vários de seus
elementosaotexto.Emboraeutenhatrabalhadosobretudocombasenaversãoemáudio,aproveitei
elementosdomaterialemvídeo.Obviamente,aediçãodas transcrições tevede serdraconiana,em
parteporcausadoespaço,emparteporquea traduçãodapalavraoralparaaescrita semprerequer
modificações significativas e, em alguns casos, bastante drásticas. Aproveitei a oportunidade para
esclarecer algumasquestõesnão abordadasnas aulas e acrescentarnovospensamentos aqui e ali.A
ediçãod’OcapitalqueutilizeinocursoéatraduçãodeBenFowkes,publicadaprimeiropelaPelican
BooksepelaNewLeftReview em1976, republicadapelaeditoraVintageem1977eposteriormente
pelaPenguinClassicsem1992.Asreferênciasseguemapaginaçãodessasedições
[a]
.
Minhaesperançaéqueeste“guia”–erealmentepensonelecomoumguiadeviagem,maisdo
que como uma introdução ou interpretação – seja útil numa primeira exploração da economia
políticadeMarxparatodosquedesejemtrilharessecaminho.Procureimanteraapresentaçãonum
nível introdutório, sem cair, espero, numa simplificação excessiva. Além disso, não considerei em
detalhesasmuitascontrovérsiasquegiramemtornodasdiversasinterpretaçõesdotexto.Aomesmo
tempo,oleitordevecompreenderqueoqueapresentoaquiénãoumainterpretaçãoneutra,masuma
leituraaquechegueidepoisdeensinaressetextodurantequasequarentaanos,parapessoasdetodas
asorigens(àsquaissoudevedor,poismeensinarammuito),enquantoeutentavausaropensamento
deMarxdemodoconstrutivoemminhaprópriapesquisaacadêmicaemrelaçãoàaçãopolítica.Não
tenhoaintençãodepersuadiraspessoasaadotarmeupontodevista.Minhaambiçãoéusá-locomo
viade acessoparaoutrosque anseiemconstruir interpretaçõesque sejam,para eles,maximamente
significativas e úteis nas circunstâncias particulares de sua própria vida. Se conseguir atingir esse
objetivo,aindaqueapenasemparte,estareiabsolutamentesatisfeito.
[a]Aediçãobrasileirabaseou-senatraduçãodeRubensEnderleparaoLivroId’Ocapital,publicadaem2013pelaBoitempoEditorial.(N.
E.)
Introdução
Meuobjetivoélevarvocê,leitor,alerumlivrodeKarlMarxchamadoOcapital,LivroI
[a]
,ea lê-lo
nospróprios termosdeMarx. Issopodeparecerumpoucoridículo, jáque, sevocêaindanão leuo
livro,nãopodesaberquaissãoostermosdeMarx;masumdessestermos,eulheasseguro,équeoleia
–ecuidadosamente.Oaprendizadorealsempreimplicaumalutaparacompreenderodesconhecido.
Minhasprópriasleiturasd’Ocapital,reunidasnopresentevolume,serãomuitomaisesclarecedorasse
você tiver lido antes os capítulos emquestão.É seu encontropessoal como textodeMarxque eu
pretendo encorajar, e, na luta direta com ele, você poderá começar a formar uma compreensão
própriadopensamentomarxiano.
Issoimplica,desdejá,umadificuldade.TodomundojáouviufalardeKarlMarx,determoscomo
“marxismo”e“marxista”,eummundodeconotaçõesacompanhaessaspalavras,demodoquevocê
está preso desde o início a preconcepções e preconceitos, favoráveis ou não.Mas eu lhe peço que
procuredeixardelado,omelhorquepuder,tudoaquiloquevocêachaquesabesobreMarx,poissó
assimpoderácaptaroqueelerealmentetemadizer.
Háaindaoutrosobstáculosparachegaraessetipodecontatodireto.Somoslevados,porexemplo,
aabordarumtextodessetipoapartirdenossasprópriasformaçõesintelectuaiseexperiências.Para
muitos estudantes, essas formações intelectuais são afetadas, quando não governadas, por
consideraçõesepreocupaçõesacadêmicas;háumatendêncianaturalalerMarxdopontodevistade
umadisciplinaparticulareexclusivista.OpróprioMarxjamaisocupouumacadeirauniversitária,em
nenhuma disciplina, emesmo hoje amaioria dos aparatos departamentais dificilmente o aceitaria
como um dos seus. Portanto, se você é um estudante de graduação e quer lê-lo corretamente, é
melhornãopensarnoqueganharácomissoemsuaáreaespecífica–nãoemlongoprazo,éclaro,mas
aomenosnopropósitodelerMarx.Emsuma,vocêterádelutarcomcoragemparadeterminaroque
ele está dizendo além daquilo que você pode entender facilmente com seu aparato disciplinar
particular,suaformaçãointelectuale,maisimportante,suaprópriahistóriadevida(sejacomolíder
trabalhistaoucomunitário,sejacomoempreendedorcapitalista).
Uma importante razãopara assumirumapostura aberta emrelaçãoa essa leitura éo fatodeO
capital ser um livro extremamente rico. Shakespeare, os gregos, Fausto, Balzac, Shelley, contos de
fadas, lobisomens, vampiros epoesia, encontramos tudo isso em suaspáginas, ao ladode inúmeros
economistas políticos, filósofos, antropólogos, jornalistas e cientistas políticos. Marx trabalha com
uma imensa gama de fontes, e pode ser instrutivo – e divertido – refazer seu caminho até elas.
Algumasdessasreferênciaspodemseralusivas,jáquemuitasvezeselenãoasindicadiretamente;até
hoje, àmedida que ensinoOcapital, continuo a encontrar novas conexões.Quando comecei, não
tinha lido muito Balzac, por exemplo. Mais tarde, ao ler seus romances, peguei-me muitas vezes
dizendo:“Ah,foidaquiqueMarxtiroutalcoisa!”.Segundoconsta,Marxleuextensivamenteaobra
deBalzaceambicionavaescreverumestudocompletosobreAcomédiahumana,depoisdeterminarO
capital.LeraomesmotempoBalzaceOcapitalajudaaentenderporquê.
O capital é, portanto, um texto rico e multidimensional. Ele se move num vasto mundo de
experiências,conceitualizadonumagrandediversidadedeliteraturasescritasemmuitaslínguas,em
diferentes lugares e épocas.Não estou dizendo, apresso-me a explicar, que você não será capaz de
compreenderMarxsenãoentendertodasasreferências.Masoquemeinspira,eesperoqueinspire
você,éaideiadequehánelasumaimensagamaderecursosquepodemesclarecerporquevivemosa
vida domodo como a vivemos.Damesma forma que elas foram a água quemoveu omoinho da
compreensãomarxiana,podemosfazerdelasaáguaparamoveronossoprópriomoinho.
Você verá também queO capital é um livro impressionante enquanto tal, isto é, como livro.
Quando é lido como um todo,mostra-se uma construção literária enormemente gratificante.Mas
aquiencontramosoutrasbarreiraspotenciaisasuacompreensão,poismuitosleitores,nodecorrerde
suaformação,devemtersedeparadocomMarxelidoalgunsdeseustrechos.Talveztenhamlidoo
ManifestoComunistanoEnsinoMédio.Outalveztenhamcursadoumadaquelasdisciplinasdeteoria
social em que se gastam duas semanas com Marx, duas com Weber, algumas com Durkheim,
Foucault e uma série de outras figuras importantes. Talvez tenham lido excertos d’O capital ou
alguma exposição teórica das crenças políticas deMarx, por exemplo.No entanto, ler excertos ou
resumosétotalmentediferentedelerOcapitalcomoumtextointegral.Vocêcomeçaaverospedaços
easpeças sobuma luzradicalmentenova,nocontextodeumanarrativamuitomaisampla.Évital
quevocêprestemuitaatençãoàgrandenarrativaeestejapreparadoparamudarsuacompreensãodos
pedaçosedaspeças,assimcomodosresumosqueleuanteriormente.Marxcertamentedesejariaque
suaobrafosselidacomoumtodo.Objetariaferozmenteàideiadequepudessesercompreendidode
maneiraadequadapormeiodeexcertos,nãoimportaquãoestrategicamenteescolhidos.Certamente
nãogostariade ser estudadopor apenasduas semanasnumcurso introdutóriode teoria social, do
mesmomodo como teria se dedicadomais do que apenas duas semanas à leitura deAdamSmith.
LendoOcapitalcomoumtodo,équasecertoquevocêchegaráaumaconcepçãobastantediferente
dopensamentodeMarx.Masissosignificaquevocêterádelerolivrointeirocomoumlivro–eé
nissoquepretendoajudá-lo.
Existeummododeleituraemqueasformaçõesintelectuaiseospontosdevistadisciplinaresnão
apenassãoimportantes,comofornecemperspectivasúteissobreOcapital.Obviamente,soucontrao
tipo de leitura exclusivista em torno da qual os estudantes quase invariavelmente organizam suas
análises,masaprendi,aolongodosanos,queperspectivasdisciplinarespodemserinstrutivas.Ensino
Ocapitalquasetodososanos,desde1971,àsvezesduasouatémesmotrêsvezesporano,paragrupos
detodosostipos.Numano,comotodooDepartamentodeFilosofia–atécertopontohegeliano–
do então chamadoMorgan State College, em Baltimore; noutro ano, com todos os estudantes de
graduação do curso de inglês daUniversidade JohnsHopkins; e, no outro,majoritariamente com
economistas.Ofascinanteeraquecadagrupoviacoisasdiferentesn’Ocapital.Aprendicadavezmais
sobreeleaotrabalharcompessoasdedisciplinasdiferentes.
Mashouvemomentosemqueessaexperiênciadidáticasetornouirritante,eatémesmodolorosa,
porqueumgrupoemparticularserecusavaaverascoisasameumodoouinsistiaemquestõesque
me pareciam irrelevantes. Certa vez, tentei lerO capital com um grupo do Programa de Línguas
RomânicasdaUniversidade JohnsHopkins.Paraminha enorme frustração, gastamosquase todoo
semestrecomocapítulo1.Eudizia“Olhem,precisamosiremfrenteechegar,nomínimo,naparte
dapolíticadajornadadetrabalho”,eelesdiziam“Não,não,precisamosentenderissomelhor.Oque
évalor?Oqueeleentendepordinheiro-mercadoria?Oqueéfetiche?”,eassimpordiante.Chegaram
atéalevarparaasaulasumaediçãoalemãparachecarastraduções.Descobriqueestavamseguindoa
tradiçãodealguémque,naépoca,eudesconheciacompletamente,alguémque, imaginei,deviaser
umidiotapolítico,senãoumidiotaintelectual,paradifundiressetipodeabordagem.Essapessoaera
JacquesDerrida,quehaviapassadoumatemporadanaUniversidadeJohnsHopkinsnofimdosanos
1960einíciodosanos1970.Maistarde,refletindosobreessaexperiência,percebiqueaquelegrupo,
apenasporinsistirempassarapentefinotodoocapítulo1,haviameensinadoaimportânciavitalde
prestarmuitaatençãoà linguagemdeMarx–oqueelediz,comodize tambémoque tomacomo
pressuposto.
Masnãosepreocupe:nãotenhoaintensãodefazerissonestaleitura,enãosóporquepretendo
tratardadiscussãomarxianasobreajornadadetrabalho,masporquequeroquevocêchegueaofim
destevolume.Aquestãoésimplesmentequediferentesperspectivasdisciplinarespodemserúteispara
descortinarasmúltiplasdimensõesdopensamentomarxiano,e justamenteporqueeleescreveuesse
texto segundouma tradiçãodepensamentocríticoextremamente rica ediversificada.Sougratoàs
muitas pessoas e grupos com que li esse livro ao longo de tantos anos, precisamente porque me
ensinaramtantosobreaspectosdaobradeMarxqueeujamaisterianotadoporcontaprópria.Para
mim,essaformaçãojamaistermina.
Três grandes tradições intelectuais e políticas inspiram a análise realizada n’O capital, e todas
receberamdeMarx,queeraprofundamentecomprometidocomateoriacrítica,umaanálisecrítica.
Quandorelativamentejovem,eleescreveuparaumdeseuscolegasredatoresumpequenotexto,cujo
títuloera“Paraumacríticaimpiedosadetudooqueexiste”
[b]
.Éóbvioqueeleestavasendomodesto
– e sugiro que você leia esse texto, porque é fascinante.Ele não diz: “Todos são estúpidos e eu, o
grandeMarx,voucriticá-losdeumpontodevistaexternoàexistência”.Aocontrário,eleargumenta
queumgrandenúmerodepessoassériasdedicou-sebravamenteapensararespeitodomundoeviu
certas coisas que deviam ser respeitadas, não importa quão unilaterais ou desvirtuadas fossem. O
método crítico toma o que outros disseram e vislumbraram e trabalha com essematerial a fim de
transformar o pensamento – e o mundo que ele descreve – em algo novo. Para Marx, um
conhecimentonovo surgedoatode tomarblocosconceituais radicalmentediferentes, friccioná-los
uns contra os outros e fazer arder o fogo revolucionário. E é o que ele faz n’O capital: combina
tradiçõesintelectuaisdivergentesparacriarumaestruturacompletamentenovaerevolucionáriapara
oconhecimento.
Hátrêsgrandesestruturasconceituaisconvergentesn’Ocapital.Aprimeiraéaeconomiapolítica
clássica– a economiapolíticado séculoXVII atémeadosdo séculoXIX; essa tradição é sobretudo
britânica,masnãoexclusivamente,evaideWilliamPetty,Locke,HobbeseHumeatéograndetrio
formadoporAdamSmith,MalthuseRicardo,entreoutros(JamesSteuart,porexemplo).Atradição
francesa da economia política (fisiocratas como Quesnay, Turgot e, mais tarde, Sismondi e Say),
assimcomoitalianosenorte-americanos(comoCarey),tambémforneceumaterialcríticoadicionala
Marx.Ele submeteu todosessesautoresaumaprofundacríticanos trêsvolumesdenotasquehoje
chamamos deTeorias do mais-valor. Como não tinha fotocopiadora nem internet à disposição, ele
copiavalaboriosamentelongaspassagensdeAdamSmitheentãoescreviaumcomentáriosobreelas,
depoiscopiavalongaspassagensdeJamesSteuarteentãoescreviaumcomentáriosobreelas,eassim
pordiante.Naverdade,Marxpraticavaoquehojechamamosdedesconstruçãoe,comele,aprendi
comodesconstruirargumentos.QuandotratadeAdamSmith,porexemplo,aceitamuitodoqueele
diz,masentãoprocuralacunasoucontradiçõesque,quandocorrigidas,transformamradicalmenteo
argumento.Esse tipode argumentação aparece ao longode todoOcapital, porque, como indica o
subtítulo,eleseestruturaemtornode“umacríticadaeconomiapolítica”.
O segundo bloco conceitual que compõe a teorização marxiana é a reflexão e a investigação
filosófica,que,paraMarx,originaram-secomosgregos.Marxescreveuumatesededoutoradosobre
Epicuro e tinha familiaridade com o pensamento grego. Aristóteles, como você verá, serve
frequentemente como uma âncora para seus argumentos. Marx também dominava plenamente o
modo como o pensamento grego foi introduzido na principal tradição crítico-filosófica alemã –
Espinosa,Leibnize,éclaro,Hegel,assimcomoKantemuitosoutros.Marxfazumaconexãoentre
essatradiçãocrítico-filosóficaalemãeatradiçãopolítico-econômicainglesaefrancesa,embora,mais
umavez,sejaerradoentenderissoapenasemtermosdetradiçõesnacionais(afinaldecontas,Hume
eratantofilósofo–sebemqueempirista–quantoeconomistapolítico,eainfluênciadeDescartese
RousseausobreMarxéconsiderável).Masatradiçãocrítico-filosóficaalemãfoiaquetevemaispeso
sobreMarx, porque foi nela que ele foi treinado.E o clima crítico provocadopelo grupoquemais
tarde seria conhecido como os “jovens hegelianos”, nas décadas de 1830 e 1840, influenciou-o
enormemente.
A terceira tradição a queMarx recorre é a do socialismo utópico.Na época, essa tradição era
fundamentalmente francesa, embora o papel de fundador da tradiçãomoderna – que, no entanto,
tambémremontaaosgregos–sejacreditadoemgeralauminglês,ThomasMore,assimcomoaoutro
inglês,RobertOwen,quenãoapenasescreveulongostratadosutópicos,comotentoupôremprática
muitasdesuasideiasquandoMarxaindaeravivo.MasfoinaFrançaqueocorreu,nosanos1830e
1840, a grande explosão do pensamento utópico, largamente inspirado nos primeiros escritos de
Saint-Simon, Fourier e Babeuf. Tivemos, por exemplo, Étienne Cabet (fundador de um grupo, os
“icarianos”, que se instalounosEstadosUnidos após 1848);Proudhon e os proudhonianos;August
Blanqui(quecunhouaexpressão“ditaduradoproletariado”)emuitosque,assimcomoele,aderiram
à tradição jacobina (comoBabeuf); omovimento saint-simoniano;os fourieristas (assimcomoàde
VictorConsiderant);easfeministassocialistas(comoFloraTristan).EfoinaFrança,nosanos1840,
quemuitos radicais resolveramchamara simesmosdecomunistas, emboranão tivessemamínima
ideia do que isso significava.Marx estava bem familiarizado com essa tradição, oumesmo imerso
nela,especialmenteemParis,antesdeserexpulsoem1844,eacreditoqueextraiudelamaisdoque
admitia.Écompreensívelqueeleprocurassesedistanciardoutopismodosanos1830e1840,quepara
elefoioresponsável,emváriossentidos,pelofracassodarevoluçãode1848emParis.Elenãogostava
quandoosutópicos elaboravamuma sociedade ideal sem ternenhuma ideiade comopassardaqui
para lá, oposição que ficou clara noManifesto Comunista. Por isso, em relação a essas ideias, ele
frequentementeprocedepormeiodanegação,emparticularcomrespeitoaopensamentodeFourier
eProudhon.
Essas são as três principais linhas conceituais que se conjugam emO capital. Seu objetivo era
transformar o projeto político radical do que ele considerava um socialismo utópico raso num
comunismo científico. Mas, para isso, ele não podia apenas confrontar os utópicos com os
economistas políticos. Ele tinha de recriar e reconfigurar o próprio método científico. Em linhas
gerais,podemosdizerqueessenovométodocientíficosefundanainterrogaçãodatradiçãobritânica
daeconomiapolíticaclássica,usaasferramentasdatradiçãoalemãdafilosofiacríticaeaplicatudo
issoparailuminaroimpulsoutópicofrancêseresponderàsseguintesperguntas:oqueéocomunismo
e como os comunistas deveriam pensar? Como podemos entender e criticar cientificamente o
capitalismo, demodo a preparar demaneira mais efetiva o caminho para a revolução comunista?
Comoveremos,Ocapitaltemmuitoadizersobreacompreensãocientíficadocapitalismo,masnão
sobre como construir uma revolução comunista. Também encontramos poucas informações sobre
comoseriaasociedadecomunista.
Jámencioneialgumasdasdificuldadesdaleiturad’OcapitalnostermosdeMarx.OpróprioMarx
tinhaconsciênciadessasdificuldadese,oqueéinteressante,fezcomentáriosarespeitodelasemseus
váriosprefácios.Noprefácioàediçãofrancesa,porexemplo,respondeàsugestãodedividiraedição
em fascículos. “Aplaudo vossa ideia de publicar a tradução d’Ocapital em fascículos”, escreveu em
1872.
Sob essa forma, o livro serámais acessível à classe trabalhadora e, paramim, essa consideração émais importantedoquequalquer
outra.
Esseéobeloladodevossamedalha,maseisseuladoreverso:ométododeanálisequeempreguei,equeaindanãohaviasidoaplicado
aos assuntos econômicos, torna bastante árdua a leitura dos primeiros capítulos, e é bem possível que o público francês, sempre
impacienteporchegaraumaconclusão,ávidoporconhecerarelaçãodosprincípiosgeraiscomasquestõesimediatasquedespertaram
suaspaixões,venhaasedesanimarpelofatodenãopoderavançarimediatamente.
Eisumadesvantagemcontra aqualnadaposso fazer, anão serprevenir epremuniros leitores ávidospelaverdade.Nãoexisteuma
estrada real para a ciência, e somente aqueles que não temem a fadiga de galgar suas trilhas escarpadas têm chance de atingir seus
cumesluminosos.(93)
Assim,tambémeutenhodecomeçaradvertindoosleitoresdeMarx,pormaisávidospelaverdade
que estejam, que, de fato, os primeiros capítulos d’O capital são particularmente difíceis.Há duas
razõesparaisso.UmadizrespeitoaométododeMarx,queexaminaremosbrevementemaisadiante.A
outratemavercomomodoparticularcomoeleconcebeuseuprojeto.
OobjetivodeMarxn’Ocapital é, pormeio de uma crítica da economia política, compreender
comoocapitalismofunciona.Elesabequeissoseráumaempreitadaenorme.Pararealizartalprojeto,
precisa desenvolver um aparato conceitual que o ajude a entender toda a complexidade do
capitalismoe,numadesuasintroduções,explicacomoplanejafazerisso.“Semdúvida”,escreveeleno
posfácioàsegundaedição,“omododeexposiçãotemdesedistinguir,segundosuaforma,domodo
deinvestigação”:
Ainvestigaçãotemdeseapropriardomaterial[Stoff]emseusdetalhes,analisarsuasdiferentesformasdedesenvolvimentoerastrear
seu nexo interno. Somente depois de consumado esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Se isso é
realizadocomsucesso,eseavidadomaterial[istoé,domododeproduçãocapitalista]éagorarefletidaidealmente,oobservadorpode
teraimpressãodeseencontrardiantedeumaconstruçãoapriori.(90)
Ométodo de investigação deMarx começa com tudo o que existe – a realidade tal como é
experimentada,assimcomotodasasdescriçõesdisponíveisdessaexperiêncianaobradeeconomistas
políticos, filósofos, romancistas etc. Ele submete esse material a uma crítica rigorosa a fim de
descobrir conceitos simples,porémpoderosos,que iluminemomodocomoa realidade funciona.É
isso que ele chama de método de descenso – partimos da realidade imediata ao nosso redor e
buscamos, cada vez mais profundamente, os conceitos fundamentais dessa realidade. Uma vez
equipadoscomesses conceitos fundamentais,podemos fazerocaminhode retornoà superfície–o
método de ascenso – e descobrir quão enganador omundo das aparências pode ser. Essa posição
vantajosanospermiteinterpretaressemundoemtermosradicalmentediferentes.
Emgeral,Marxpartedaaparênciasuperficialpara,então,encontrarosconceitosprofundos.N’O
capital,porém,elecomeçaapresentandoosconceitosfundamentais,asconclusõesaquechegoucom
a aplicação de seu método de investigação. Ele simplesmente expõe seus conceitos nos primeiros
capítulos, diretamente e em rápida sucessão, de uma forma que, de fato, faz com que pareçam
construçõesapriorieatémesmoarbitrárias.Assim,numaprimeiraleitura,nãoéraroqueoleitorse
pergunte: de onde saíram todas essas ideias e conceitos? Por que ele os usa assim?Namaioria das
vezes, você não tem ideia do que ele está falando.Mas, àmedida que você avança, torna-se claro
comoessesconceitos iluminamnossomundo.Empouco tempo,conceitoscomovalore fetichismo
adquiremsentido.
Contudo,sóentendemosplenamentecomoessesconceitosfuncionamnofimdolivro!Ora,essaé
umaestratégiaincomum,atémesmopeculiar.Estamosmuitomaisfamiliarizadoscomprocedimentos
queconstroemoargumentotijoloportijolo.EmMarx,oargumentoseparecemaiscomumacebola.
Talvezessametáforasejainfeliz,porque,comoalguémmeadvertiucertavez,quandocortamosuma
cebola, ela nos faz chorar. Marx parte do exterior da cebola, removendo as camadas externas da
realidadeatéatingirocentro,onúcleoconceitual.Emseguida,encaminhaaargumentaçãoparafora,
retornandoàsuperfícieatravésdeváriascamadasdeteoria.Overdadeiropoderdoargumentosóse
torna claro quando, tendo retornado ao reino da experiência, vemos que possuímos um arcabouço
inteiramente novo de conhecimento para a compreender e interpretar essa experiência.Na época,
Marxrevelouumagrandecompreensãodaquiloquefazocapitalismocrescerdomodocomocresce.
Assim, conceitos que à primeira vista parecem abstratos e apriori tornam-se cada vezmais ricos e
plenosdesentido;àmedidaqueavança,Marxexpandeaabrangênciadeseusconceitos.
Esseprocedimentoédiferentedaargumentaçãoconstruídatijoloportijolo,enãoéfáciladaptar-
seaele.Naprática,issosignificaquevocêtemdeperseverarcomoumlouco,emparticularnostrês
primeiroscapítulos,emquenãosabemuitobemoqueestáacontecendo,atéterumanoçãomaisclara
dascoisas,àmedidaqueavança.Sóentãovocêcomeçaráapercebercomoessesconceitosfuncionam.
OpontodepartidadeMarxéoconceitodemercadoria.Àprimeiravista,pareceumaquestãoum
tantoarbitrária, senãoestranha,para secomeçar.QuandopensamosemMarx,vêmanossamente
frases como“toda aHistória tem sido ahistóriada lutade classes”,doManifestoComunista
[c]
. Se é
assim,porqueOcapitalnãocomeçacomalutadeclasses?Temosdelerquasetrezentaspáginasaté
conseguirmaisdoqueumasimplespistasobreoassunto,oquepodefrustraraquelesqueprocuram
um guia rápido de ação. Por que Marx não começa com o dinheiro? Na verdade, em suas
investigaçõespreparatórias,elepretendiapartirdaí,mas,depoisdeestudossuplementares,concluiu
queodinheiro,maisdoquepresumido,tinhadeserexplicado.Porqueelenãocomeçaentãocomo
trabalho,outroconceitocomqueestáprofundamenteassociado?Porquecomeçarcomamercadoria?
ÉsignificativoqueosescritospreparatóriosdeMarxindiquemumlongoperíodo,decercadevinte
outrintaanos,emqueele sedebateucomaquestãodeporondecomeçar.Ométodododescenso
levou-o ao conceito demercadoria,mas ele não tenta justificar essa escolha nem se incomoda em
defendersualegitimidade.Apenascomeçacomamercadoria,epontofinal.
É fundamental entender que ele constrói uma argumentação com base numa conclusão já
determinada.Issodáaseuargumentoumcomeçoenigmático,eoleitorficatentadoasedesmotivar
ou irritar com tamanha arbitrariedade, a ponto de querer abandonar o livro no capítulo 3. Assim,
Marxtemtodaarazãoquandodizqueocomeçod’Ocapitaléparticularmentedifícil.Minhatarefa
inicial é, portanto, guiar o leitor através dos primeiros três capítulos, pelo menos. Isso tornará a
navegaçãoposteriorbemmaistranquila.
Sugerinoinício,entretanto,queoaparatoconceitualqueMarxconstróialiestárelacionadonão
apenascomoLivroI,mascomaanálised’Ocapitalcomoumtodo.E,éclaro,trêsvolumeschegaram
anós,demodoque,sevocêquerdefatoentenderomododeproduçãocapitalista,infelizmenteterá
delerostrês.OLivroIofereceapenasumaperspectiva.Masoqueépioraindaéqueostrêsvolumes
sãoapenasumoitavo(quandomuito)daquiloqueeletinhaemmente.Eisoqueeleescreveunum
texto preparatório, intituladoGrundrisse, em que esboça vários formatos paraO capital.Diz ele em
determinadopontoqueambicionatratardasseguintesquestões:
1)asdeterminaçõesuniversaisabstratas,que,poressarazão,correspondemmaisoumenosatodasasformasdesociedade[...].2)As
categorias que constituem a articulação interna da sociedade burguesa e sobre as quais se baseiam as classes fundamentais.Capital,
trabalhoassalariado,propriedadefundiária.Assuasrelaçõesrecíprocas.Cidadeecampo.Astrêsgrandesclassessociais.Atrocaentre
elas. Circulação. Sistema de crédito (privado). 3) Síntese da sociedade burguesa na forma do Estado. Considerada em relação a si
mesma. As classes “improdutivas”. Impostos. Dívida pública. Crédito público. A população. As colônias. Emigração. 4) Relação
internacionaldaprodução.Divisão internacionaldo trabalho.Troca internacional.Exportação e importação.Cursodo câmbio.5)O
mercadomundialeascrises.
[d]
Marx não chegou nem perto de concluir esse projeto.Na verdade, desenvolveu apenas alguns
poucosdessestópicosdeformasistemáticaoudetalhada.Emuitosdeles–comoosistemadecrédito
e o sistema financeiro, as atividades coloniais, o Estado, as relações internacionais, o mercado
mundial e suas crises – são absolutamente cruciais para a compreensão do capitalismo. Em seus
volumosos escritos, há indicações de como tratar esses tópicos, como entendermelhor oEstado, a
sociedadecivil, a imigração,o câmbiomonetário e coisasdogênero.E, comoprocureimostrar em
meu livroOs limitesdo capital
[e]
, épossível conjugaralgunsdos fragmentosqueMarxnosdeixoua
respeitodessestópicosparaformarumconjuntocompreensível.Maséimportantereconhecerqueo
aparatoconceitualapresentadonoiníciod’Ocapitalcarregaofardodeassentarasbasesdesseprojeto
tãoimportante,masincompleto.
OLivroI,comovocêverá,analisaomododeproduçãocapitalistadopontodevistadaprodução,
não do mercado nem do comércio global, mas exclusivamente da produção. O Livro II (nunca
concluído)tomaaperspectivadasrelaçõesdetroca.OLivroIII(tambémnãoconcluído)concentra-se
inicialmente na formação das crises como produto das contradições fundamentais do capitalismo;
tratatambémdequestõesrelativasadistribuiçãodoexcedentesobaformadojuro,retornodocapital
financeiro,rendadaterra,lucrodocapitalmercantil,tributoseoutrasquestõesdogênero.Assim,a
análisedesenvolvidanoLivroItemmuitaslacunas,mascertamentehánelaobastanteparaentender
comoomododeproduçãocapitalistarealmentefunciona.
Isso nos leva de volta aométodo deMarx. Uma das coisasmais importantes a entender num
estudocuidadosodoLivroIécomoométododeMarxfunciona.Ameuver, issoétãoimportante
quantoasproposiçõesqueelededuzarespeitodofuncionamentodocapitalismo,pois,umavezque
seaprendaométodoe se tenhapráticaemsuaaplicaçãoeconfiançaemseupoder,pode-seusá-lo
para entender quase tudo. É claro que essemétodo deriva da dialética, que é, como dizMarx no
prefácio já citado, um método de investigação “que ainda não havia sido aplicado aos assuntos
econômicos”(93).Eletambémdiscuteessemétododialéticonoposfácioàsegundaedição.Embora
suas ideias derivem deHegel, ométodo dialético deMarx, “em seus fundamentos, não é apenas
diferentedométodohegeliano,masexatamenteseuoposto”(90).Vemdaíacélebreafirmaçãodeque
Marxinverteuadialéticahegelianaecolocou-anaposiçãocerta,istoé,depé.
Emcertosaspectos,comoveremos,issonãoéexatamenteverdade.Marxnãoselimitouainverter
ométododialético,eleorevolucionou.“Critiqueioladomistificadordadialéticahegelianahácerca
de trinta anos”, diz ele, referindo-se a suaCrítica da filosofia do direito deHegel
[f]
. Tal crítica foi o
momentofundamentalemqueMarxredefiniusuarelaçãocomadialéticahegeliana.Eledesaprovao
fatodequeaformamistificadadadialética,talcomodifundidaporHegel,tenhasetornadomodana
Alemanhanosanos1830e1840eempenha-seemcorrigi-la,afimdequeelapossadarcontade“toda
formahistoricamentedesenvolvida em seu estado fluido, emmovimento”.Marx teve, portanto, de
reconfigurar a dialética para que ela também pudesse apreender o “aspecto transiente” de uma
sociedade.Emsuma,adialéticatemdesercapazdeentendererepresentarprocessosemmovimento,
mudançaetransformação.Taldialética“nãosedeixaintimidarpornadaeé,poressência,críticae
revolucionária”(91),precisamenteporchegaraocernedastransformaçõessociais,tantoatuaiscomo
potenciais.
OqueMarxrevelaaquiésuaintençãodereinventarométododialéticoparaqueestedêconta
dasrelaçõesgraduaisedinâmicasentreoselementosquecompõemosistemacapitalista.Eletenciona
fazer isso para capturar a fluidez e o movimento, porque, como veremos, a mutabilidade e o
dinamismo do capitalismo o impressionammuito. Isso contradiz a reputação que invariavelmente
acompanhaMarx, descrito como um pensador estruturalista fixo e imóvel.O capital, no entanto,
revelaumMarxquefalacontinuamentedemovimentoemudança–osprocessos–dacirculaçãodo
capital, por exemplo.Portanto, lerMarx em seus próprios termos exige que você tenha sempre em
menteaquiloqueeleentendepor“dialética”.
Oproblema,porém,équeMarxnuncaescreveuumtratadosobredialéticaenuncaexplicouseu
método dialético (embora dê indicações aqui e ali, como veremos). Assim, temos um aparente
paradoxo:paraentenderométododialéticodeMarx,vocêtemdelerOcapital,porqueeleéafonte
desuapráticareal;mas,paraentenderOcapital,vocêtemdeentenderométododialéticodeMarx.
Umaleituracuidadosad’Ocapitaldaráumanoçãodecomofuncionaessemétodo;quantomaisoler,
melhorvocêentenderáOcapitalcomolivro.
Uma das coisas curiosas do nosso sistema de ensino, ameu ver, é que, quantomelhor for seu
treinamentonumadisciplina,menoshabituadoaométododialéticovocê será.De fato, as crianças
pequenassãomuitodialéticas,veemtudoemmovimento,emcontradiçãoetransformação.Temosde
fazer um esforço enorme para que elas deixem de pensar dialeticamente.O queMarx pretende é
recuperar o poder intuitivo do método dialético, que permite compreender que tudo está em
processo,tudoestáemmovimento.Elenãofalasimplesmentedetrabalho,masdoprocessodetrabalho.
Ocapitalnãoéumacoisa,masumprocessoquesóexisteemmovimento.Quandoacirculaçãocessa,o
valordesapareceeosistemacomeçaadesmoronar.Vejaoqueaconteceudepoisdo11deSetembro
de2001,emNovaYork:tudoficouparalisado.Osaviõespararamdevoar,asponteseestradasforam
fechadas.Trêsdiasdepois,percebeu-sequeocapitalismodesmoronariaseascoisasnãovoltassemase
movimentar. Então, de repente, o prefeitoGiuliani e o presidente Bush pediram que a população
sacasseseuscartõesdecréditoefosseàscompras,voltasseàBroadway,lotasseosrestaurantes.Bush
chegouaaparecernumcomercialdaindústriaaeroviáriaparaencorajarosnorte-americanosavoltar
avoar.
Ocapitalismonãoénadasenãoestiveremmovimento.Marxadmiramuitoissoenãosecansade
evocar o dinamismo transformador do capital. Por isso é tão estranho que seja caracterizado com
tantafrequênciacomoumpensadorestático,quereduzocapitalismoaumaconfiguraçãoestrutural.
Não,oqueMarxprocuran’Ocapitaléumaparatoconceitual,umaestruturaprofundaqueexplique
comoomovimento sedesenvolve concretamenteno interiordeummododeprodução capitalista.
Consequentemente, muitos de seus conceitos são formulados mais como relações do que como
princípiosisolados;elessereferemaumaatividadetransformadora.
Assim,conhecereapreciarométododialéticod’OcapitaléessencialparacompreenderMarxem
seusprópriostermos.Muitaspessoas,inclusivemarxistas,discordariamdisso.Oschamadosmarxistas
analíticos–pensadorescomoG.A.Cohen,JohnRoemereRobertBrenner–desprezamadialética.
Gostam de se denominar “marxistas sem lorotas”. Preferem transformar a argumentação deMarx
numa série de proposições analíticas.Outros transformam seus argumentos nummodelo causal de
mundo. Há até uma interpretação positivista de Marx que permite testar sua teoria com dados
empíricos.Emtodosessescasos,porém,adialéticaédesconsiderada.Nãoestoudizendocomisso,em
princípio, que os marxistas analíticos estejam errados nem que aqueles que fazem de Marx um
construtor de modelos positivista estejam equivocados. Talvez estejam certos; mas insisto que os
termosprópriosdeMarxsãodialéticos,eissonosobriga,portanto,afazerumaleituradialéticad’O
capital.
Umaúltimaquestão:nossoobjetivoélerMarxemseusprópriostermos,mas,namedidaemque
estou guiando essa leitura, esses termos serão inevitavelmente afetados por meus interesses e
experiências.Dediqueigrandepartedeminhavidaacadêmicaaaplicarateoriamarxianaaoestudo
da urbanização sob o capitalismo, do desenvolvimento geográfico desigual e do imperialismo, e é
evidentequeessaexperiênciaafetouomodocomoleioOcapital.Paracomeçar,essaspreocupações
sãomaispráticasdoquefilosóficasouteórico-abstratas;minhaabordagemsemprefoiperguntaroque
O capital pode nos ensinar a respeito de como a vida cotidiana é vivida nas grandes cidades
produzidas pelo capitalismo. Durante os mais de trinta anos de contato que tive com esse texto,
acontecerammuitasmudançasgeográficas,históricasesociais.Naverdade,umadasrazõesporque
gostodeensinarOcapital todoanoéque sempre tenhodeperguntaramimmesmocomoele será
lido,quaisquestõesqueantespassavamdespercebidaschamarãominhaatenção.VoltoaMarxmenos
embuscadeumguiadoquedepotenciaisinsightsteóricossobremudançasgeográficas,históricase
populacionais.Éclaroque,nesseprocesso,minhacompreensãodotextomudou.Namedidaemqueo
climahistóricoeintelectualnoscolocadiantedequestõeseperigosaparentementesemprecedentes,
omodocomolemosOcapitaltambémtemdemudareseadaptar.
Marx fala sobre esse processo de reformulação e reinterpretação necessárias. A teoria burguesa,
observaele,entendiaomundodedeterminadamaneiranoséculoXVIII,masamarchadahistória
tornou irrelevantes essa teoria e suas formulações teóricas (84-6). As ideias têm de mudar ou se
reconfigurar à medida que as circunstâncias mudam. Marx entendeu e representou o mundo
capitalistademodobrilhantenosanos1850e1860,masomundomudou,eissotrazmaisumaveza
pergunta:emquesentidoessetextopodeseraplicadoaonossoprópriotempo?Infelizmente,ameu
ver, a contrarrevolução neoliberal que dominou o capitalismo global nos últimos trinta anos
contribuiumuitopara reproduzirmundialmenteaquelasmesmascondiçõesqueMarxdesconstruiu
demaneira tão brilhante na Inglaterra dos anos 1850 e 1860.Por isso insiro nessas leituras alguns
comentários tanto sobre a relevância d’O capital para o mundo atual quanto sobre a leitura mais
adequadadotextoàsexigênciasdenossaépoca.
Mas,sobretudo,queroquevocêfaçasuapróprialeiturad’Ocapital.Emoutraspalavras,esperoque
vocêestabeleçaumarelaçãocomotextonostermosdesuaexperiênciapessoal–intelectual,social,
política – e aprenda com ele à sua maneira. Espero que tenha bons e esclarecedores momentos
conversandocomotexto,digamosassim,edeixandoqueeleconversedevoltacomvocê.Essetipode
diálogo é um excelente exercício para tentar entender o que parece quase impossível.Cabe a cada
leitortraduzir
Ocapitaldemodoquetenhasentidoparasuavida.Nãohá–enãopodehaver–umainterpretação
definitiva, precisamente porque o mundo está em contínua mudança. Como provavelmente diria
Marx,hicRhodus,hicsalta
[g]
!Abolaésua,chute!
[a]Napresenteedição,as citaçõeseanumeraçãodaspáginascorrespondentes referem-sea:KarlMarx,Ocapital,Livro I (trad.Rubens
Enderle,SãoPaulo,Boitempo,2013).Asfuturasreferênciasaessaobraserãocitadasapenascomindicaçãodaspáginasentreparênteses.
(N.E.)
[b]Oautorrefere-seà“CartadeMarxaArnoldRuge”desetembrode1843,publicadanosDeutsch-FranzösischeJahrbücher[AnaisFranco-
Alemães]emfevereirode1844.Cf.KarlMarx,Sobreaquestãojudaica(SãoPaulo,Boitempo,2010),p.70-3.(N.T.)
[c]KarlMarxeFriedrichEngels,ManifestoComunista(SãoPaulo,Boitempo,1998),p.74.(N.E.)
[d]KarlMarx,Grundrisse:manuscritoseconômicosde1857-1858–Esboçosdacríticadaeconomiapolítica(SãoPaulo,Boitempo,2011),p.61.
(N.E.)
[e]SãoPaulo,Boitempo,noprelo.(N.E.)
[f]2.ed.,SãoPaulo,Boitempo,2010.(N.E.)
[g]Referênciaa“HicRhodus,hic saltus” [AquiéRodes, saltaaquimesmo!], tradução latinadeumtrechoda fábulaOatletafanfarrão, de
Esopo.EmO18debrumáriodeLuísBonaparte(SãoPaulo,Boitempo,2011),Marxempregaacitaçãomodificada,emlatimeemalemão
(HicRodhus,hicsalta!HieristdieRose,hiertanze![Aquiestáarosa,dançaagora!]),emalusãoaousoqueHegelfazdaexpressãonoprefácio
daFilosofia do direito. No caso presente, embora não se trate de uma referência a Hegel, Marx mantém a mesma forma modificada
empregadaemO18debrumário.(N.T.)
1.Mercadoriasetroca
CAPÍTULO1:AMERCADORIA
Item1:Osdoisfatoresdamercadoria:valordeusoevalor(substânciadovalor,grandezado
valor)
Vamoscomeçarcomumaanálisedetalhadadoprimeiro itemdocapítulo1.Procedoassim,em
parte,porqueMarxapresentaaquicategorias fundamentaisdemaneiraapriorística,decertomodo
enigmática,comargumentosdotipo take-it-or-leave-it [pegarou largar],quepoderiamsermaisbem
elaborados.Mas tambémqueroquevocê se familiarizeomais rápidopossível como tipode leitura
minuciosaqueOcapitalexige,casoqueiraentendê-lo.Nãosepreocupe,nãovoumanteressenívelde
intensidade!
AmercadoriaéopontodepartidaapriorideMarx.“Ariquezadassociedadesnasquaisreinao
mododeproduçãocapitalista”,dizele,“aparececomouma ‘enormecoleçãodemercadorias’
[1]
, ea
mercadoriaindividual,comosuaformaelementar.Nossainvestigaçãocomeça,porisso,comaanálise
damercadoria” (113).Maspreste atenção à linguagem.Apalavra “aparece” surgeduas vezesnessa
passageme,evidentemente,“aparece”nãoéomesmoque“é”.Aescolhadessapalavra–efiqueatento
aisso,porqueMarxfazumusoabundantedelaaolongod’Ocapital–indicaqueumacoisadiferente
aconteceportrásdaaparênciasuperficial.Somosimediatamenteconvidadosarefletirsobreoqueisso
podesignificar.Note tambémqueMarxestápreocupadoexclusivamentecomomododeprodução
capitalista. Ele não se ocupa com os modos antigos de produção, com os modos socialistas de
produçãooumesmocomosmodoshíbridos,apenascomomododeproduçãocapitalistaemforma
pura.Éimportantelembrardissodaquiemdiante.
Começar com as mercadorias se revela muito útil, porque qualquer pessoa tem contato e
experiências diárias com elas. Estamos constantemente cercados de mercadorias, gastamos tempo
comprando, olhando, desejando ou recusando mercadorias. A forma-mercadoria é uma presença
universalno interiordomododeproduçãocapitalista.Marxescolheuodenominadorcomum,algo
familiar e comum a todos nós, sem distinção de classe, raça, gênero, religião, nacionalidade,
preferência sexual ou o que for.Tomamos conhecimento dasmercadorias demaneira cotidiana e,
alémdisso,elassãoessenciaisanossaexistência:temosdecomprá-lasparaviver.
Asmercadorias são negociadas nomercado, e isso leva imediatamente à pergunta: que tipo de
transaçãoeconômicaéessa?Amercadoriaéalgoquesatisfazumacarência,umanecessidadeouum
desejohumanos.Éalgoexternoanós,dequetomamospossee transformamosemnosso.Contudo,
Marx declara de imediato que não está interessado na “natureza dessas necessidades – se, por
exemplo,elasprovêmdoestômagooudaimaginação”.Seuúnicointeresseéosimplesfatodequeas
pessoascomprammercadorias,eesseéumatofundadordomodocomoaspessoasvivem.Existem,é
claro,milhõesdemercadoriasnomundo,etodassãodiferentesemtermosdequalidadematerialedo
modo como são descritas quantitativamente (quilos de farinha, pares de meias, quilowatts de
eletricidade,metrosdetecidoetc.).Marx,porém,desconsideratodaessaimensadiversidade,dizendo
queadescobertadas“múltiplasformasdeusodascoisaséumatohistórico”,assimcomotambémé
umatohistórico“encontrarasmedidassociaisparaaquantidadedascoisasúteis”.Maseleprecisa
encontrarumcaminhoparafalardamercadoriaemgeral.“Autilidadedeumacoisa”podesermais
bemconceituadacomoum“valordeuso”(113-4).Esseconceitodevalordeusoévitalparatudoque
vememseguida.
Notecomquerapidezeleabstraiaincríveldiversidadedecarências,necessidadesedesejos,assim
comoaimensavariedadedemercadorias,pesosemedidas,parafocaroconceitounitáriodevalorde
uso.Issoilustraumargumentoqueeleapresentanumdosprefácios,emquedizqueoproblemada
ciênciasocialéque,comela,nãopodemosisolareconduzirexperimentoscontroladosemlaboratório,
entãotemos,aocontrário,deusaropoderdaabstraçãoparachegaraformascientíficassimilaresde
compreensão(77-8).Nessapassageminicial,oprocessodeabstraçãoéapresentadopelaprimeiravez,
maselacertamentenãoseráaúnica.
Mas “na forma de sociedade que iremos analisar” (isto é, o capitalismo), as mercadorias
“constituem,aomesmotempo,ossuportesmateriais[...]dovalordetroca”.Devemostomarcuidado
comapalavra“suporte”,poisservirdesuporteparaalgumacoisanãoéomesmoqueseressacoisa.As
mercadoriassãosuportesdealgoqueaindaserádefinido.Comopodemossaber,então,oqueéaquilo
para que a mercadoria serve de suporte? Quando olhamos para os processos efetivos de troca no
mercado,testemunhamosumaimensavariedadedeproporçõesdetrocaentre,porexemplo,camisase
sapatos, maçãs e laranjas, e essas proporções de troca variam consideravelmente, mesmo entre os
mesmosprodutos, conformea época eo lugar.Assim, àprimeira vista, é como se asproporçõesde
trocafossem“algoacidentalepuramenterelativo”(noteapalavra“relativo”),demodoqueaideiade
um “valor de troca intrínseco, imanente à mercadoria (valeur intrinsèque)”, “aparece” como “uma
contradictio inadjecto [contradiçãonospróprios termos]” (114).Poroutro lado,qualquercoisaé,em
princípio,intercambiávelcomqualqueroutra.Asmercadoriaspodemcontinuarmudandodemãose
se movimentando num sistema de trocas. Há algo que faz com que todas as mercadorias sejam
comensuráveisnatroca.Segue-sedaí,“emprimeirolugar:queosvaloresválidosdetrocadasmesmas
mercadoriasexpressamumaigualdade.Emsegundolugar,porém:queovalordetrocanãopodeser
mais do que omodo de expressão, a ‘forma demanifestação’ de um conteúdo que dele pode ser
distinguido”.Não se pode dissecar umamercadoria e encontrar nela aquele elemento que a torna
intercambiável.Oquea torna intercambiável temde seroutracoisa, eessaoutracoisa sópode ser
descobertaquandoamercadoriaestásendotrocada(eaquiaideiademovimentoeprocessocomeça
a surgir comoalgo fundamental).Quando amercadoria trocademãos, ela expressa, com isso,não
apenasalgoquediz respeitoa suasprópriasqualidades,masàsqualidadesde todasasmercadorias,
isto é, que elas são comensuráveis entre si. Por que elas são comensuráveis, e do que deriva essa
comensurabilidade? “Cada uma delas [as mercadorias], na medida em que é valor de troca, tem,
portanto,deserredutívelaessaterceira”(115).
“Esse algo em comum”, argumenta Marx, “não pode ser uma propriedade geométrica, física,
química ou qualquer outra propriedade natural das mercadorias” (115). Isso leva a umamudança
significativa no argumento.Marx é descrito em geral como ummaterialista empedernido, se não
fundamentalista.Tudotemdesermaterialparaquesejavalidamenteconsideradoreal,maselenega
queamaterialidadedasmercadoriassejacapazdenosdizeralgumacoisasobreaquiloqueastorna
comensuráveis. “Como valores de uso, as mercadorias são, antes de tudo, de diferente qualidade;
comovaloresdetroca,elaspodemserapenasdequantidadediferente,semconter,portanto,nenhum
átomodevalordeuso.”Acomensurabilidadedasmercadoriasnãoéconstituídaporseusvaloresde
uso.“Prescindindodovalordeusodoscorposdasmercadorias,restanelasumaúnicapropriedade”–
eaquiMarxfazmaisumdaquelessaltosaprioripormeiodeumaasserção–“adeseremprodutosdo
trabalho”(116).Assim,todasasmercadoriassãoprodutodotrabalhohumano.Oqueasmercadorias
têmemcomuméquesãosuportedotrabalhohumanoincorporadoemsuaprodução.
Mas,eleperguntaemseguida,quetipodetrabalhohumanoéincorporadonasmercadorias?Não
pode ser o tempo efetivamentedespendidono trabalho– o que ele chamade trabalho concreto–,
porquenessecasoumamercadoriaseriatantomaisvaliosaquantomaistempodurassesuaprodução.
Ora, por que eu pagaria determinado preço por um artigo que alguém levou um bom tempo para
produzir,seeupudessepagarametadeaalguémqueoproduziunametadedotempo?Assim,conclui
ele, todas as mercadorias são “reduzid[a]s a trabalho humano igual, a trabalho humano abstrato”
(116).
Masemqueconsisteessetrabalhohumanoabstrato?Asmercadoriassãoresíduos“dosprodutosdo
trabalho. Deles não restou mais do que uma objetividade fantasmagórica, uma simples geleia de
trabalho humano indiferenciado [...]. Como cristais dessa substância que lhes é comum, elas são
valores–valoresdemercadorias”(116).
Que concisão e, no entanto, que riqueza de significado! Se o trabalho humano abstrato é uma
“objetividadefantasmagórica”,comopodemosvê-looumedi-lo?Quetipodematerialismoéesse?
Comovocêpodenotar,Marxnãoprecisoudemais doquequatropáginas, cheias de asserções
enigmáticas,paralançarosconceitosfundamentaiseconduziraargumentaçãodovalordeusoparao
valor de troca, para o trabalho humano abstrato e, por fim, para o valor como geleia de trabalho
humano indiferenciado. É seu valor que torna asmercadorias comensuráveis, e esse valor é tanto
ocultado como uma “objetividade fantasmagórica” quanto operante nos processos de troca de
mercadorias.Issolevaàpergunta:ovalorérealmenteuma“objetividadefantasmagórica”ouapenas
aparecedessaforma?
Comisso,podemosreinterpretarovalordetrocacomo“omodonecessáriodeexpressãoouforma
demanifestaçãodovalor”(116).Notemaisumavezapalavra“aparição”,masnessecasopodemosver
a relação pelo lado oposto, porque o mistério sobre o que torna as mercadorias intercambiáveis é
entendidoagoracomoummundodeapariçõesdessa“objetividadefantasmagórica”chamadavalor.
Ovalorde trocaéumarepresentaçãonecessáriadotrabalhohumano incorporadonasmercadorias.
Quando vamos ao supermercado, podemos descobrir os valores de troca,mas não podemos ver ou
medirdiretamenteotrabalhohumanoincorporadonasmercadorias.Éessaincorporaçãodotrabalho
humanoqueestápresentefantasmagoricamentenasprateleiras.Pensenissodapróximavezqueforao
supermercadoeestivercercadodessesfantasmas!
Marxretorna,então,àquestãoarespeitodotipodetrabalhoqueestáenvolvidonaproduçãode
valor.Ovaloré“trabalhohumanoabstrato[...]objetivado[...]oumaterializado”namercadoria.Como
esse valor pode sermedido? Em primeiro lugar, isso claramente nos remete ao tempo de trabalho.
Contudo,comoobserveiaoestabeleceradiferençaentretrabalhoconcretoeabstrato,elenãopodeser
o tempo de trabalho efetivamente despendido na produção, pois, desse modo, “quanto mais
preguiçosoou inábil forumhomem, tantomaiorovalorde suamercadoria”.Portanto,o“trabalho
queconstituiasubstânciadosvaloresétrabalhohumanoigual,dispêndiodamesmaforçadetrabalho
humana”.Paracompreenderoquesignificaesse“dispêndiodamesmaforçadetrabalhohumana”,é
precisoolharpara“aforçadetrabalhoconjuntadasociedade,queseapresentanosvaloresdomundo
dasmercadorias”(117).
Essa asserção a priori tem enormes implicações.No entanto,Marx não trata delas aqui. Sendo
assim,devo fazer issopor ele, para que vocênão entendamal a teoria do valor. Falar de “forçade
trabalhoconjuntadasociedadeӎinvocartacitamenteummercadomundialquefoiintroduzidopelo
modode produção capitalista.Onde começa e onde termina essa “sociedade”, isto é, omundoda
trocacapitalistademercadorias?Nesteexatomomento,elaestápresentenaChina,noMéxico,no
Japão,naRússia,naÁfricadoSul–trata-sedeumconjuntoglobalderelações.Amedidadovaloré
derivada desse mundo inteiro de trabalho humano.Mas isso também valia, ainda que emmenor
escala,paraaépocadeMarx.NoManifestoComunista,háumadescriçãobrilhantedaquiloquehoje
chamamosdeglobalização:
Pelaexploraçãodomercadomundial,aburguesiaimprimeumcarátercosmopolitaàproduçãoeaoconsumoemtodosospaíses[...]
elarouboudaindústriasuabasenacional.Asvelhasindústriasnacionaisforamdestruídasecontinuamaserdestruídasdiariamente.São
suplantadaspornovas indústrias,cuja introduçãose tornaumaquestãovitalpara todasasnaçõescivilizadas– indústriasque jánão
empregammatérias-primasnacionais,massimmatérias-primasvindasdasregiõesmaisdistantes,ecujosprodutosseconsomemnão
somentenoprópriopaísmasemtodasaspartesdomundo.Aoinvésdasantigasnecessidades,satisfeitaspelosprodutosnacionais,
surgemnovasdemandas,quereclamamparasuasatisfaçãoosprodutosdasregiõesmaislongínquasedeclimasosmaisdiversos.No
lugar do antigo isolamento de regiões e nações autossuficientes, desenvolvem-se um intercâmbio universal e uma universal
interdependênciadasnações.
[a]
Énesseterrenoglobaldinâmicoderelaçõesdetrocaqueovalorédeterminadoeredeterminado
continuamente.Marxescreveunumcontextohistóricoemqueomundoseabriamuitorapidamente
paraomercadoglobalpelanavegaçãoavapor,pelasestradasdeferroepelotelégrafo.Eeleentendeu
muito bem que o valor não era determinado no nosso quintal, ou mesmo no interior de uma
economia nacional, mas surgia de um mundo inteiro de troca de mercadorias. E aqui ele usa
novamente o poder da abstração para chegar à ideia de unidades de trabalho homogêneo, emque
cadauma“éamesmaforçadetrabalhohumanaqueaoutra,namedidaemquepossuiocaráterde
uma força de trabalho socialmédia e atua como tal força de trabalho socialmédia”, como se essa
reduçãoàformadevalorocorresseefetivamentenocomérciomundial.
Issopermiteque ele formule adefiniçãocrucialdovalor como“tempode trabalho socialmente
necessário”, que “é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer sob as condições
socialmentenormaisexistentesecomograusocialmédiodedestrezaeintensidadedotrabalho”.E
conclui:“apenasaquantidadedetrabalhosocialmentenecessárioouotemposocialmentenecessário
de trabalho para a produção de um valor de uso pode determinar a sua grandeza de valor” (117).
Temos aqui a definiçãoque você esperava.É, porém, apenas umadefinição contingente, porque é
interna ao conceito de “sociedade” –mas onde a sociedade começa ou termina?Ela é fechada ou
aberta?Seessasociedadeéomercadomundial,comoelacertamentedeveser,então...?
UmadasrazõesporqueMarxdispensouessaapresentaçãoenigmáticadovalordeuso,dovalorde
trocaedovaloréquequalquerumquetenhalidoRicardopoderiadizer:“IssoéRicardo!”.Eédefato
puro Ricardo, com exceção de um acréscimo. Ricardo enfatizou o conceito de tempo de trabalho
como valor. Marx usa o conceito de tempo de trabalho socialmente necessário. O que Marx fez foi
reproduziroaparatoconceitualricardianoe,aoqueparece,inseririnocentementeumamodificação.
Mas essa inserção, como veremos, faz uma enorme diferença. Somos imediatamente forçados a
perguntar:oqueésocialmentenecessário?Comoissoéestabelecido,eporquem?Marxnãodáuma
resposta imediata, mas esse é um tema que percorre de ponta a ponta O capital. Quais são as
necessidadessociaisembutidasnomododeproduçãocapitalista?
Essa continua sendo para nós a grande questão. Será verdade, como disse certa vezMargaret
Thatcher,que“nãoháalternativa”,oque,decertomodo,equivaleadizerqueasnecessidadessociais
quenosrodeiamsãoimpostastãoimplacavelmentequenãotemosescolhasenãonosconformar?Em
seu fundamento, isso remete à questão primordial sobre por quem e como os “valores” são
estabelecidos.Éclaroquegostamosdepensarque temosnossospróprios“valores”, eacadaeleição
nosEstadosUnidosháumadiscussãointerminávelsobreos“valores”doscandidatos.MasoqueMarx
diz é que há certo tipo e medida de valor que é determinado por um processo que não
compreendemos e que não depende necessariamente de uma escolha consciente, e omodo como
essesvaloressãoimpostosanóstemdeseranalisado.Sequeremosentenderquemsomosequaléo
nosso lugar nesse turbilhão de valores, temos de começar entendendo como os valores das
mercadoriassãocriadoseproduzidos,equaissãosuasconsequências–sociais,ambientais,políticas
etc. Quem acha que pode resolver uma questão tão séria como o aquecimento global sem ter de
enfrentarporquemecomoédeterminadaaestruturadevalorfundadoradanossasociedadeengana
a simesmo. Por issoMarx insiste que temos de entender o que são os valores damercadoria e as
necessidadessociaisqueosdeterminam.
Osvaloresdamercadorianãosãograndezasfixas.Elessãosensíveis,porexemplo,amudançasna
produtividade:
Após a introdução do tear a vapor na Inglaterra, por exemplo, passou a ser possível transformar uma dada quantidade de fio em
tecidoempregandocercadametadedotrabalhodeantes.Naverdade,otecelãomanualinglêscontinuavaaprecisardomesmotempo
de trabalho para essa produção,mas agora o produto de sua hora de trabalho individual representava apenasmetade da hora de
trabalhosociale,porisso,seuvalorcaiuparaametadedoanterior.(117)
Isso chamanossa atençãopara o fatode que o valor é sensível a revoluçõesna tecnologia e na
produtividade. Grande parte do Livro I é dedicada à discussão das origens e do impacto das
revoluçõesnaprodutividadeedasrevoluçõessubsequentesnasrelaçõesdevalor.Masnãosãoapenas
as revoluções na tecnologia que são importantes, porque o valor é determinado “por múltiplas
circunstâncias, dentre outras pelo grau médio de destreza dos trabalhadores, o grau de
desenvolvimentoda ciência ede sua aplicabilidade tecnológica”–Marx émuito cuidadoso como
significado da tecnologia e da ciência para o capitalismo – “a organização social do processo de
produção, o volume e a eficácia dosmeios de produção e as condições naturais” (118).Um vasto
conjuntodeforçaspodeinterferirnosvalores.Astransformaçõesnoambientenaturalouamigração
paralugarescomcondiçõesnaturaismaisfavoráveis(recursosmaisbaratos)revolucionamosvalores.
Osvaloresdasmercadoriasestãosujeitos,emsuma,aumpoderosoconjuntodeforças.Marxnãofaz
uma categorização definitiva de todos eles; quer apenas nos alertar que aquilo que chamamos de
“valor”nãoéumaconstante,masestásujeitoaperpétuastransformaçõesrevolucionárias.
Ocorreentãoumaviradapeculiaremseuargumento.Exatamentenoúltimoparágrafodesseitem,
ele reintroduz a questão dos valores de uso. “Uma coisa pode ser valor de uso sem ser valor.”
Respiramosareatéhojenãoconseguimosengarrafá-loevendê-locomomercadoria,apesardeeuter
certezadequealguémjápensouemfazerisso.Domesmomodo,“umacoisapodeserútileproduto
do trabalho humano sem sermercadoria”. Planto tomates emmeu quintal para comê-los.De fato,
muitaspessoassobocapitalismofazemumasériedecoisasparaelasmesmas(emespecialcomcerta
ajuda de lojas do tipo “faça você mesmo”). Grande parte da atividade laboral (em particular na
economia doméstica) é realizada à margem da produção de mercadorias. Esta última requer a
produçãonão apenasde valoresdeuso,mas tambémde “valoresdeusoparaoutrem”.Não apenas
valoresdeusoparaosenhorfeudalouoarrendador,comofariaoservo,masvaloresdeusodestinados
aoutremporintermédiodomercado.Issoimplica,porém,que“nenhumacoisapodeservalorsemser
objetodeuso.Seelaéinútil,tambémoéotrabalhonelacontido,nãocontacomotrabalhoenãocria,
por isso, nenhum valor” (119). Algumas páginas antes,Marx parece ter dispensado e abstraído os
valoresdeusoparachegaraovalorde trocae,pormeiodeste, aovalor.Masaquieledizque, sea
mercadoria não satisfaz uma carência, um desejo ou uma necessidade humana, ela não tem valor
nenhum!Emsuma,vocêtemdepodervendê-laparaalguémemalgumlugar.
Vamos refletir um instante sobre a estrutura desse argumento. Começamos com o conceito
singular demercadoria e estabelecemos seu caráter duplo: ela tem um valor de uso e um valor de
troca.Osvaloresde troca sãoumarepresentaçãodealgo.Dequê?Umarepresentaçãodevalor,diz
Marx. E valor é tempo de trabalho socialmente necessário.Mas o valor não significa nada, se não
voltaraseconectarcomovalordeuso.Ovalordeusoésocialmentenecessárioparaovalor.Háum
padrãonesseargumento,eeleseparececomoseguinte:
Vamosconsideraragoraasimplicaçõesdesseargumento.Vocêcompraumamercadoriachamada
casa.Vocêestámaisinteressadoemseuvalordeusoouemseuvalordetroca?Provavelmente,você
estáinteressadoemambos.Masháaquiumaoposiçãopotencial.Sevocêquiserrealizarplenamenteo
valor de troca da casa, terá de ceder o valor de uso a outrem. Se quiser o valor de uso, então
dificilmenteteráacessoaovalordetroca,amenosquefaçaumahipotecareversaouumempréstimo
garantidoporhipoteca.Incrementosnovalordeusodacasasignificamincrementosemseuvalorde
troca potencial? (Uma nova cozinha provavelmente sim; uma construção especial para um hobby
provavelmentenão.)Eoqueacontececomnossomundosocialquandoumacasaquefoiconcebida
sobretudo em termos de valor de uso é reconcebida comouma formade gerar poupança de longo
prazo(ummontantedecapital)paraumafamíliadaclassetrabalhadoraoumesmocomoumveículo
queserá“passadoadiante”porqualquerumque tenhaacessoacréditocomo intuitodeobterum
ganhoespeculativodecurtoprazo?Essadicotomiaentrevalordeusoevalordetrocaémuitoútil!
Vamosconsideraroargumentomaisdetalhadamente.Amercadoria,umconceito singular, tem
doisaspectos.Masnãopodemosdividiramercadoriaaomeioedizerqueumaparteéovalordetroca
e a outra é o valor de uso.Não, amercadoria é uma unidade.Mas dentro dessa unidade há um
aspectodual,eesseaspectodualnospermitedefiniralgochamadovalor–outroconceitounitário–
como tempo de trabalho socialmente necessário, e é a este último que o valor de uso de uma
mercadoriaservedesuporte.Mas,paratervalor,amercadoriatemdeserútil.Essarelaçãoentrevalor
evalordeusosuscitatodotipodequestãosobreaofertaeademanda.Seaofertaémuitogrande,o
valordetrocacai;seaofertaémuitopequena,ovalordetrocasobe–portanto,háaquiumelemento
deofertaedemandaenvolvidonos“aspectosacidentaiserelativos”dovalordetroca.Mas,portrás
dessas flutuações, o valor pode permanecer constante (desde que permaneçam constantes todas as
outrasforçasquedeterminamovalor,porexemploaprodutividade).Marxnãoestátãointeressado
narelaçãoentreofertaedemanda.Oqueelequersaberécomosedeveminterpretarasproporçõesde
trocaentremercadorias–comocamisasesapatos–quandoaofertaeademandaestãoemequilíbrio.
Nesse caso, precisamosdeum tipodiferente de análise que aponte para o valor comogeleia dessa
substância social chamada tempo de trabalho socialmente necessário. Até agora, desconsideramos
tacitamente,semperceber,ascondiçõesdeofertaedemandanomercadoparafalardosvaloresdas
mercadorias(comofertaedemandaemequilíbrio)comotempodetrabalhosocialmentenecessário.
ComoométododialéticodeMarxfuncionaaqui?Podemosdizerqueosvaloresdetrocaoriginam
ovalor?Sãoos valoresde trocaqueoriginamo valordeuso, ouo inverso?Essanão éuma análise
causal.Eladizrespeitoarelações,arelaçõesdialéticas.Podemosfalardevalordetrocasemfalarde
valordeuso?Não,nãopodemos.Podemos falardevalor semfalardevalordeuso?Não.Emoutras
palavras,nãopodemosfalardenenhumdessesconceitossemfalardosoutros.Elessãomutuamente
dependentes,sãorelaçõesnumatotalidadededeterminadotipo.
Reconheçoqueusarapalavra“totalidade”édesfraldarumaenormebandeiravermelhaemcertos
círculosintelectuais.Marxnãotinhaamenorideiadoqueviriaaseroestruturalismoemenosainda
opós-estruturalismo.Devemostercuidadoaotratardopensamentomarxianoàluzdessascategorias
(ameu ver, ele não se encaixa nelas demodo nenhum). Contudo,Marx certamente ambicionava
entenderomodocapitalistadeproduçãocomoumatotalidade,demodoqueaúnicaquestãoqueé
importaéexatamentequeconceitodetotalidadeeletinhaemmente?Oqueficamossabendonesse
item é que essa totalidade pode ser mais bem apreendida por meio do triunvirato formado pelos
conceitosdevalordeuso,valordetrocaevalor,construídosemtornodamercadoria.Elereconheceu,
porém,queosvaloresdeusosãoincrivelmentediversos,osvaloresdetrocasãoacidentaiserelativose
o valor tem (ou parece ter) uma “objetividade fantasmagórica”, que está sujeita a perpétuas
revoluções impostas por mudanças tecnológicas e reviravoltas nas relações sociais e naturais. Essa
totalidade não é estática e fechada, mas fluida e aberta, portanto em perpétua transformação.
Seguramente,nãosetratadeumatotalidadehegeliana,masnãopodemosacrescentarmaisnadaaté
quetenhamosavançadonaleituradotexto.
Atéaqui,ahistóriapodeserresumidaassim:Marxdeclaraqueseuobjetivoédesvendarasregras
de operação de um modo de produção capitalista. Ele parte do conceito de mercadoria e
imediatamente estabelece seu caráter duplo: valor deuso e valor de troca.Comoos valores deuso
sempre estiveram a nossa volta, eles dizem pouco sobre a especificidade do capitalismo. Portanto,
Marxosdeixadeladoafimdeestudarosvaloresdetroca.Àprimeiravista,arazãodetrocaentreas
mercadoriaspareceacidental,masopróprioatodetrocapressupõequetodasasmercadoriastêmalgo
em comum, algo que as torna comparáveis e comensuráveis. Esse caráter comumdasmercadorias,
comoafirmaMarxenigmaticamente,éofatodeseremtodasprodutodotrabalhohumano.Comotal,
elas incorporam “valor”, definido de início como o trabalho (médio) socialmente necessário para
produzi-las em dadas condições de produtividade. Mas, para que o trabalho seja socialmente
necessário, é precisoque alguém, em algum lugar, queira, necessite oudeseje amercadoria, o que
significaqueovalordeusotemdeserreintroduzidonoargumento.
Naanálisequesesegue,estestrêsconceitos–valordeuso,valordetrocaevalor–sãomantidos
numarelaçãocontínuae, àsvezes, tensaentre si.Marx raramenteconsideraumdesses conceitos à
parte:oqueimportasãoasrelaçõesentreeles.Noentanto,comfrequência,eleexaminaarelaçãoentre
apenas dois deles, e deixa o terceiro tacitamente de lado. Ao estender-se sobre o caráter duplo do
trabalho incorporadonamercadoriano segundo item,Marx foca a relação entreovalordeusodo
trabalhoeovalorqueesse trabalhoútil incorpora (mantendoconstanteovalorde troca).No item
seguinte,eledeixadeladoovalordeusoeexaminaarelaçãoentrevalordetrocaevalorparaexplicar
a origem e o papel do dinheiro. É importante perceber essas mudanças de foco à medida que o
argumentoédesenvolvido,porqueasafirmaçõesfeitasemcadaitemdependemsempredoconceito
quefoideixadodelado.
Há ainda outro modo de argumentação aqui que exige ser explicado para que possamos
prosseguir.Partindodovalordeusoedovalordetroca–umadicotomia–,Marxchegaaoconceito
unitário de valor, que tem a ver com o trabalho humano, entendido como “tempo de trabalho
socialmentenecessário”(117).Masquetipodetrabalhohumanoésocialmentenecessário?Aprocura
porumarespostarevelaoutradualidade,aquelaentretrabalhoconcreto(efetivo)etrabalhoabstrato
(socialmenterelevante).Essasduasformasdetrabalhoconvergemnovamentenoatounitáriodatroca
demercadorias.Noentanto,oexamedessemomentodatrocarevelaoutradualidade,destavezentre
as formas relativa e equivalente de valor. Esses doismodos de expressão do valor são reunidos no
surgimento de uma mercadoria – a mercadoria-dinheiro – que funciona como um equivalente
universal em relação a todas as outras. O que vemos aqui é um padrão na argumentação, um
desenvolvimentogradualdoargumentoquefuncionaporoposiçõesconvertidasemunidades(comoa
forma-dinheiro) que interiorizam uma contradição, a qual, por sua vez, gera outra dualidade (a
relaçãoentreprocessosecoisas,asrelaçõesmateriaisentrepessoaseasrelaçõessociaisentrecoisas).
EsseéométododialéticoqueMarxutilizanessaargumentaçãoe,comoveremos,emtodoOcapital.
Apresentamosabaixotalpadrãodeargumentaçãonumdiagramasimples:
Omapeamentodaargumentaçãofacilitamuitoacompreensãodoconjunto.Torna-semaisfácil
situar o conteúdo dos itens na linha geral do argumento. Isso não é lógica hegeliana em sentido
estrito,porquenãoháummomentofinaldesíntese,apenasummomentotemporáriodeunidadena
qual é interiorizada outra contradição – uma dualidade – que, para ser compreendida, exige um
desenvolvimento subsequente do argumento. É assim que o processo de representação deMarx se
desdobran’O capital – e trata-se de fatodeumdesdobramento, e nãodeumadedução lógica.Ele
constróiumaestruturaargumentativaemtornodaqualtodosostiposdequestõesconceituaispodem
ser acomodados, demodo que, àmedida que avançamos, temos uma compreensão cada vezmais
ampladasrelaçõesinternasquemantêmocapitalismoemperpétuoestadodeunidadecontraditória
e,portanto,emperpétuomovimento.
Item2:Oduplocaráterdotrabalhorepresentadonasmercadorias
Marxiniciaesseitemcomamodestaafirmaçãodeque“essanaturezadupladotrabalhocontido
namercadoriafoicriticamentedemonstradapelaprimeiravezpormim.Comoessepontoéocentro
emtornodoqualgiraoentendimentodaeconomiapolítica,eledeveserexaminadomaisdeperto”
(119). Como no item 1, ele parte dos valores de uso. Estes são produtos físicos, produzidos por
trabalhoútil,“concreto”.Aenormeheterogeneidadedasformasdeprocessosdetrabalhoconcreto–
alfaiataria,sapataria,fiação,tecelagem,agriculturaetc.–éimportanteporque,semela,nãohaveria
base para nenhum ato de troca (pois obviamente ninguém quer trocar produtos similares) ou
nenhumadivisãosocialdotrabalho.
Valoresdeusonãopodem se confrontar comomercadorias senelesnão residem trabalhosúteis qualitativamentediferentes.Numa
sociedadecujosprodutosassumemgenericamenteaformadamercadoria,istoé,numasociedadedeprodutoresdemercadorias,essa
diferença qualitativa dos trabalhos úteis, executados separadamente uns dos outros como negócios privados de produtores
independentes,desenvolve-secomoumsistemacomplexo,umadivisãosocialdotrabalho.(120)
Marx introduz aqui um temametodológico que repercute em todos os capítulos: omovimento
quevaidasimplicidadeàmaiorcomplexidade,dossimplesaspectosmolecularesdeumaeconomiade
troca até uma compreensão mais sistêmica. Desse modo, ele se desvia da regra de olhar para as
relaçõesa fimdeexaminaraspropriedadesuniversaisdotrabalhoútil.Efaz issoporqueotrabalho,
“como criador de valores de uso, como trabalho útil [...] é, assim, uma condição de existência do
homem,independentedetodasasformassociais”.Otrabalhoútiléuma“eternanecessidadenatural
demediaçãodometabolismoentrehomemenaturezae,portanto,davidahumana”(120).
Essaideiade“metabolismo”,emqueotrabalhoservedemediadorentreaexistênciahumanaea
natureza, é central para o argumentomaterialista-histórico deMarx.Ele retornará a essa ideia em
diversos pontos d’O capital, embora nunca a desenvolva plenamente. Isso também é típico de seu
procedimento.Oqueeledizé:“Veja,háalgoimportanteaqui,vocêdeveriapensarsobreisso[nesse
caso,arelaçãocomanatureza].Nãoexaminareiessaquestãoemtodososseusdetalhes,mas,antesde
passar a outras matérias de interesse mais imediato, quero destacar que ela é significativa”. “Os
valores de uso”, diz ele, “são nexos de dois elementos: matéria natural e trabalho”. Por isso, “ao
produzir, o homem pode apenas proceder como a própria natureza” (120). Este é outro ponto
fundamental:tudoquefizermostemdeserconsistentecomaleinatural.
[Podemos]apenasalteraraformadasmatérias.Maisainda:nesseprópriotrabalhodeformaçãoeleéconstantementeamparadopelas
forçasdanatureza.Portanto,otrabalhonãoéaúnicafontedosvaloresdeusoqueeleproduz,aúnica fontedariquezamaterial.O
trabalhoéopaidariquezamaterial,comodizWilliamPetty,eaterraéamãe.(120-1)
Com a ajuda dessa metáfora geracional – que remonta, nomínimo, a Francis Bacon –,Marx
introduzumadistinçãocrucialentreriqueza(ototaldevaloresdeusosobocomandodealguém)e
valor(otemposocialmentenecessáriodetrabalhoqueessesvaloresdeusorepresentam).
Marxretorna,então,àquestãodosvaloresparacompararsuahomogeneidade(todossãoproduto
do trabalho humano) com a vasta heterogeneidade dos valores de uso e das formas concretas de
trabalho.Dizele:
Alfaiatariaetecelagem,emboraatividadesprodutivasqualitativamentedistintas,sãoambasdispêndioprodutivodecérebro,músculos,
nervos,mãos etc. humanos e, nesse sentido, ambas são trabalho humano. Elas não sãomais do que duas formas diferentes de se
despenderforçahumanadetrabalho.Noentanto,aprópriaforçahumanadetrabalhotemdeestarmaisoumenosdesenvolvidapara
poder ser despendida desse ou daquele modo.Mas o valor da mercadoria representa unicamente trabalho humano, dispêndio de
trabalhohumano.(121-2)
Isso é o queMarx chamade trabalho “abstrato” (59-61).Esse tipo de generalidade do trabalho
contrastacomamiríadede trabalhosconcretosqueproduzemvaloresdeusoefetivos.Aocriaresse
conceitodetrabalhoabstrato,Marxafirmaqueestáapenasespelhandoumaabstraçãoproduzidapor
umintercâmbioextensivodemercadorias.
Assim,eleconceituaovaloremtermosdeunidadesdetrabalhoabstratosimples;essepadrãode
medida “varia, decerto, seu caráter em diferentes países e épocas culturais, porém é sempre dado
numasociedadeexistente”.Aquiencontramosmaisumavezumaestratégiaadotadacomfrequência
n’Ocapital.O padrão demedida é contingente no espaço e no tempo,mas, para os propósitos da
análise, é assumido como dado. Além disso, prossegueMarx, “trabalhomais complexo vale apenas
como trabalho simples potenciado ou, antes,multiplicado, de modo que uma quantidade menor de
trabalhocomplexoéigualaumaquantidademaiordetrabalhosimples”:
Queessa reduçãoocorraconstantementeéalgomostradopelaexperiência.Mesmoqueumamercadoria sejaoprodutodotrabalho
mais complexo, seu valor a equipara ao do produto do trabalhomais simples [...]. Para fins de simplificação, de agora em diante
consideraremos todo tipo de força de trabalho diretamente como força de trabalho simples, com o que apenas nos poupamos o
esforçoderedução.(122)
Marx jamais especificaqual “experiência” tememmente,oque torna essapassagemaltamente
controversa.Naliteraturaespecializada,elaéconhecidacomoo“problemadaredução”,poisnãofica
clarocomootrabalhoqualificadopodesereéreduzidoaotrabalhosimples,independentementedo
valor da mercadoria produzida. Tal como na proposição sobre o valor como tempo de trabalho
socialmentenecessário,aformulaçãodeMarxpareceenigmática,senãodisplicente.Elenãoexplica
como a redução é feita, simplesmente supõe, para os propósitos da análise, que isso é assim e
prosseguecomtalbase.Issosignificaqueasdiferençasqualitativasqueexperimentamosnotrabalho
concreto, útil, e a heterogeneidade deste são reduzidas aqui a algo puramente quantitativo e
homogêneo.
OqueMarxdefende,claro,équeosaspectosabstrato(homogêneo)econcreto(heterogêneo)do
trabalhosãounificadosnoatolaboralunitário.Nãoécomoseotrabalhoabstratoocorresseemuma
parte da fábrica e o trabalho concreto em outra. A dualidade reside no interior de um processo
singulardetrabalho,porexemplonafabricaçãodeumacamisa,queincorporaovalor.Issosignifica
quenãosónãopodehaver incorporaçãodevalorsemotrabalhoconcretodeconfeccionarcamisas,
comotambémnãopodemossaberoqueéovaloranãoserqueascamisassejamtrocadasporsapatos,
maçãs, laranjas e assimpordiante.Há,portanto,uma relaçãoentre trabalhoconcretoe abstrato.É
atravésdamultiplicidadedetrabalhosconcretosquesurgeopadrãodemedidadotrabalhoabstrato.
Todotrabalhoé,porumlado,dispêndiodeforçahumanadetrabalhoemsentidofisiológicoe,graçasaessapropriedadedetrabalho
humanoigualouabstrato,elegeraovalordasmercadorias.Poroutrolado,todotrabalhoédispêndiodeforçahumanadetrabalho
numaformaespecíficae,graçasaessapropriedadedetrabalhoconcretoeútil,eleproduzvaloresdeuso.(124)
Notequeesseargumentorefleteodoprimeiroitem.Amercadoriasingularinteriorizavaloresde
uso,valoresdetrocaevalores.Umprocessodetrabalhoparticularincorporatrabalhoconcretoútile
trabalhoou valor abstrato (tempode trabalho socialmentenecessário)numamercadoriaque seráo
suportedovalorde trocanomercado.Arespostaaoproblemadecomoo trabalhoespecializadoou
“complexo”podeserreduzidoaotrabalhosimpleséparcialmentefornecidanoitemseguinte,quando
Marxacompanhaamercadoriaatéomercadoetratadarelaçãoentrevalorevalordetroca.Passemos,
então,aoitem3.
Item3:Aformadevalorouvalordetroca
Ameuver,esseitemincluiumaenormequantidadedematerialenfadonho,quemuitofacilmente
podeesconderaimportânciadoargumentoprincipal.Comoeujádisse,àsvezesMarxvesteabecado
contabilista,eoresultadoéumaexposiçãoquepodeserabsolutamentetediosa:quandoissoéigual
àquilo e aquilo é igual a isso e isso custa trêspence e aquilo quinze, o resultado é que outra coisa
equivale a... e assim por diante, com o apoio de todo tipo de ilustração numérica.O problema de
considerarosdetalhesemvezdeseconcentrarnavisãodeconjunto–queocorrecomfrequênciaem
Marx–aparecepotencializadoaqui,oquetornaaconselhávelmostrarcomodevemoslidarcomele.
Tratareidessaquestãoemdoisníveis: tomareiumargumento simples, técnico, eentãocomentarei
seusignificadomaisprofundo.
OobjetivodeMarxéexplicaraorigemda forma-dinheiro.Dizele (maisumavezcomamaior
modéstiadomundo!):
Cabe,aqui,realizaroquejamaisfoitentadopelaeconomiaburguesa,asaber,provaragênesedessaforma-dinheiro,portantoseguirde
pertoodesenvolvimentodaexpressãodevalorcontidanarelaçãodevalordasmercadorias,desdesuaformamaissimpleseopacaatéa
ofuscanteforma-dinheiro.Comisso,desaparece,aomesmotempo,oenigmadodinheiro.(125)
Elerealizaessatarefanumasériedepassosdesajeitados,começandocomumasimplessituaçãode
escambo.Eutenhoumamercadoria,vocêtemumamercadoria.Ovalorrelativodaminhamercadoria
seráexpressoemtermosdovalor(otrabalhoincorporado)damercadoriaquevocêpossui.Assim,sua
mercadoria será amedida de valor daminhamercadoria. Invertendo a relação,minhamercadoria
podeservistacomoovalorequivalentedasua.Emsituaçõessimplesdeescambo,todoindivíduoque
tenhaumamercadoriapossui algocomvalor relativoe estáàprocurade seuequivalenteemoutra
mercadoria. Assim como existem tantas mercadorias quanto pessoas e trocas, existem tantos
equivalentesquantomercadoriasetrocas.OqueMarxquermostraréqueoatodetrocatemsempre
um caráter duplo – os polos das formas relativa e equivalente – no qual amercadoria equivalente
figura“comoincorporaçãodetrabalhohumanoabstrato”(134).Aoposiçãoentrevalordeusoevalor,
até aqui interiorizada na mercadoria, “é representada, assim, por meio de uma oposição externa”
entreumamercadoriaqueéumvalordeusoeoutraquerepresentaseuvalornatroca(137).
Num terreno complexo de trocas como é o mercado, minha mercadoria tem inúmeros
equivalentes potenciais e, inversamente, todomundo tem valores relativos numa relação potencial
commeuequivalentesingular.Umacomplexidadecadavezmaiorentreasrelaçõesdetrocaproduz
uma“formadesdobrada”devalorqueseconvertenuma“formauniversal”devalor(§b,138-41,e§c,
141-5).Esta secristaliza,por fim,num“equivalenteuniversal”:umamercadoriaquedesempenhao
papelexclusivodemercadoria-dinheiro(§d,145-6).Amercadoria-dinheirosurgedeumsistemade
trocas, e não o precede, demodo que a proliferação e a generalização das relações de troca são a
condiçãonecessária,crucial,paraacristalizaçãodaforma-dinheiro.
NaépocadeMarx,mercadoriascomooouroeapratadesempenhavamessepapelcrucial,masem
princípio ele poderia ser desempenhadopor conchas de caurim, latas de atumou– como às vezes
ocorre, emcondiçõesdeguerra–cigarros,barrasdechocolate etc.Umsistemademercado requer
umamercadoria-dinheirodealgumtipoparafuncionar,masumamercadoria-dinheirosópodesurgir
comoadventodatrocamercantil.Odinheironãofoiimpostodefora,tampoucofoiinventadopor
alguémqueimaginouqueseriaumaboaideiaterumaforma-dinheiro.Mesmoformassimbólicas,diz
Marx,têmdeserentendidasnessecontexto.
Isso leva uma interessante questão interpretativa que se apresenta várias vezes n’O capital: a
argumentação de Marx é histórica ou lógica? Penso que a evidência histórica que sustenta essa
explanação sobre o surgimento da mercadoria-dinheiro seria considerada, em nossos dias, pouco
convincente. Sistemas emercadorias semimonetários, ícones religiosos, emblemas simbólicos etc. já
existiam haviamuito tempo e expressavam algum tipo de relação social, sem que fosse necessária
qualquer relaçãoprimitiva comas trocasdemercadorias,nemmesmoquando foramgradualmente
introduzidos nessas trocas. Se consultássemos os registros arqueológicos e históricos, muitos deles
mostrariamprovavelmentequea forma-dinheironãosurgiudamaneiraqueMarxpropõe.Tendoa
aceitar esse argumento, porém acrescento o seguinte – e isso remete ao interesse de Marx em
entender o modo de produção capitalista: sob o capitalismo, a forma-dinheiro tem de estar
disciplinadaealinhadacomaposiçãológicadescritaporMarx,demodoqueaforma-dinheiroreflita
asnecessidadesdeumsistemaderelaçõesdetrocaquesepropagacadavezmais.Contudo,ooutro
lado da moeda (desculpe o trocadilho) mostra que é a propagação das relações de troca de
mercadoriasquedisciplinatodaequalquer formasimbólicaprecedenteà forma-dinheironecessária
para facilitar as trocas mercantis. Os precursores da forma-dinheiro, que podem de fato ser
encontradosnos registrosarqueológicosehistóricosdacunhagemdemoedas, têmde seadequara
essalógica,apontodeseremabsorvidosnocapitalismoededesempenharemafunçãodedinheiro.Ao
mesmo tempo, deve estar claro que o mercado não poderia ter evoluído sem esse processo de
disciplinamento.Mesmoqueoargumentohistóricosejafraco,oargumentológicoépoderoso.
Assim,esseitemestabeleceemseuconjuntoarelaçãonecessáriaentreatrocademercadoriasea
mercadoria-dinheiro, além do papel de determinação mútua que cada uma delas cumpre no
desenvolvimento da outra.Mas hámuitos outros aspectos nesse itemquemerecemnossa atenção.
Logonasprimeiraslinhas,Marxdescrevecomo
A objetividade do valor das mercadorias é diferente de Mistress Quickly
[b]
, na medida em que não se sabe por onde agarrá-la.
Exatamenteaocontráriodaobjetividadesensívelecruadoscorposdasmercadorias,naobjetividadedeseuvalornãoestácontidoum
únicoátomodematérianatural.Porisso,pode-sevirarerevirarumamercadoriacomosequeira,eelapermaneceinapreensívelcomo
coisadevalor[Wertding].Lembremo-nos,todavia,dequeasmercadoriaspossuemobjetividadedevalorapenasnamedidaemquesão
expressõesdamesmaunidadesocial,dotrabalhohumano,poissuaobjetividadedevalorépuramentesociale,porisso,éevidenteque
elasópodesemanifestarnumarelaçãosocialentremercadorias.(125)
Este éumponto absolutamentevital,quenãopodemosdeixarde enfatizar:o valor é imaterial,
porém objetivo. Dada a suposta adesão de Marx a um materialismo rigoroso, esse argumento é
surpreendente,edevemosnosdeterumpoucoemseusignificado.Ovaloréumarelaçãosocial,enão
podemos ver, tocar ou sentir diretamente as relações sociais; no entanto, elas têm uma presença
objetiva.Épreciso,portanto,examinarcomcuidadoessarelaçãosocialesuaexpressão.
Marxpropõe a seguinte ideia: os valores, sendo imateriais, nãopodemexistir semummeiode
representação.Éoadventodosistemamonetário,daprópriaforma-dinheirocomomeiotangívelde
expressão,quefazdovalor(comotempodetrabalhosocialmentenecessário)oreguladordasrelações
detroca.Masaforma-dinheirosóseaproximadovalorexpresso–passoapasso,dadooargumento
lógico – à medida que as relações de troca de mercadorias se propagam. Portanto, não existe
nenhuma entidade universal externa chamada “valor” que, depois de muitos anos de luta, é
finalmente expressa pormeio da trocamonetária.O que existe é uma relação interna e recíproca
entreoadventodaforma-dinheiroeasformas-valores.Osurgimentodatrocademercadoriasfazcom
queotempodetrabalhosocialmentenecessáriosetorneaforçanorteadoranointeriordomodode
produção capitalista. Desse modo, o valor como tempo de trabalho socialmente necessário é algo
historicamenteespecíficoaomododeproduçãocapitalista.Elesurgeapenasnumasituaçãoemqueo
mercadocumpreatarefaqueseexigedele.
DaanálisedeMarxresultamduasconclusõeseumaquestãoimportante.Aprimeiraconclusãoé
que as relações de troca, longe de ser epifenômenos que expressam a estrutura profunda do valor,
existemnumarelaçãodialéticacomosvalores,demodoqueestesdependemdaquelas,tantoquanto
aquelasdependemdestes.Asegundaconclusãoconfirmaostatusimaterial(fantasmagórico),porém
objetivo,doconceitodevalor.Todasastentativasdemedirdiretamenteovalorestãocondenadasao
fracasso.Aquestãodizrespeitoaograudeconfiabilidadeeprecisãodarepresentaçãomonetáriado
valorou,emoutraspalavras,acomoarelaçãoentre imaterialidade(valor)eobjetividade(talcomo
capturadapelarepresentaçãomonetáriadovalor)desdobra-senarealidade.
Marxtratadesseproblemanumasériedepassos.Comenta:“Somenteaexpressãodeequivalência
de diferentes tipos de mercadoria evidencia o caráter específico do trabalho criador de valor, ao
reduzirosdiversostrabalhoscontidosnasdiversasmercadoriasàquiloquelhesécomum:otrabalho
humano em geral” (65). Aqui encontramos uma resposta parcial à questão sobre como ocorre a
reduçãodetrabalhohumanoespecializadoecomplexoatrabalhohumanosimples.Maseleprossegue:
“A força humana de trabalho em estado fluido” – e é impressionante a frequência com queMarx
invocao conceitode fluidezn’Ocapital – “ou trabalhohumano, cria valor,masnão é, ela própria,
valor. Ela se torna valor em estado cristalizado, em forma objetiva” (128). Portanto, é preciso
estabelecerumadistinçãoentreoprocessodetrabalhoeacoisaqueéproduzida.Essaideiadeuma
relaçãoentreprocessosecoisas,juntamentecomaideiadefluidez,éimportantenaanálisedeMarx.
Quanto mais as invoca, mais se distancia da dialética como lógica formal e se aproxima de uma
dialéticacomofilosofiadoprocessohistórico.Otrabalhohumanoéumprocessotangível,masnofim
desseprocessochegamosaestacoisa–umamercadoria–que“coagula”ou“cristaliza”valor.Embora
sejaoprocessoefetivooqueimporta,acoisaéquetemvalor,acoisaéquepossuiqualidadesobjetivas.
Assim:“Paraexpressarovalordolinhocomogeleiadetrabalhohumano,elatemdeserexpressacomo
uma‘objetividade’materialmentedistintadoprópriolinhoesimultaneamentecomumaolinhoea
outrasmercadorias”(128).
Oproblemaé:comoérepresentadoovalor,essa“objetividadematerialmentedistintadopróprio
linho”?Arespostaestánaformadamercadoria-dinheiro.Mas,observaele,háalgumaspeculiaridades
nessa relação entre o valor e sua expressão na forma-dinheiro. “A primeira peculiaridade que se
sobressainaconsideraçãodaformaequivalente”,dizMarx,équeumvalordeusoparticular“setorna
aformademanifestaçãodeseucontrário,dovalor”,eisso“escondeemsiumarelaçãosocial”(133-4).
Daí o caráter enigmático da forma de equivalente, que só salta aos olhos crus do economista político quando aparece para ele já
pronta, no dinheiro. Então, ele procura escamotear o carátermístico do ouro e da prata, substituindo-os pormercadoriasmenos
ofuscantes, e, com prazer sempre renovado, põe-se a salmodiar o catálogo inteiro da populaça de mercadorias que, em épocas
passadas,desempenharamopapeldeequivalentedemercadorias.(134)
“Ocorpodamercadoria”,continuaele,“queservedeequivalentevalesemprecomoincorporação
detrabalhohumanoabstratoeésempreoprodutodedeterminadotrabalhoútil,concreto”(134).O
que issoquerdizer?Oouro,porexemplo,éumvalordeusoespecífico,umamercadoriaespecífica,
produzidasobcondiçõesespecíficasdeprodução,e,noentanto,nósoutilizamoscomoummeiode
expressãodetodotrabalhohumanoemqualquerparte–nóstomamosumvalordeusoparticulareo
usamos como um substituto para todo o trabalho social. Isso gera questões complicadas, como
veremosaonosaprofundarnateoriadodinheiro,nocapítulo2.
A segunda peculiaridade é que “o trabalho concreto se torna forma de manifestação de seu
contrário, de trabalho humano abstrato”, e a terceira peculiaridade é que, “embora seja trabalho
privado como todos os outros, trabalho que produz mercadorias, ele é trabalho em forma
imediatamente social” (135). Isso significa não apenas que o equivalente universal, a mercadoria-
dinheiro,estásujeitoaproblemasqualitativosequantitativosinerentesàproduçãodequalquervalor
de uso,mas tambémque a produção e a comercialização damercadoria-dinheiro, assim como sua
acumulação (eventualmente como capital), estão emmãos privadas até quando desempenham sua
função social universalizante.Quando o ouro ainda era umamercadoria dominante e servia como
lastrododinheiroglobalno fimdosanos1960,porexemplo,osdoisprincipaisprodutoresdeouro
eram aÁfrica do Sul e aRússia, e nenhumdos dois era particularmente simpático ao capitalismo
internacional.Adesmaterializaçãodetodoosistemafinanceiro,noiníciodosanos1970,eosistema
de câmbio flutuante, livre do padrão-ouro, tiveram como consequência o enfraquecimento dos
produtoresdeouro(emboraessanãofossearazãoprincipaldesseprocesso).
ÉessetipodecontradiçãoqueaanálisedeMarxnoslevaacontemplar,everemosmaisadiante–
em particular no Livro III, mas também no capítulo 3 do Livro I – como essas peculiaridades e
contradições começam a semanifestar na criação de possibilidades de crises financeiras. Em todo
caso,aconclusãofundamentaléquearelaçãoentreosvaloresesuarepresentaçãonaforma-dinheiro
é cheia de contradições, de modo que não podemos nunca supor uma forma perfeita de
representação. Esse desencontro, por assim dizer, entre valores e sua representação acaba tendo
algumasvantagens,aindaqueprofundamenteproblemáticas,comoveremos.
IssonoslevaaumaimportantepassagemsobreAristóteles.“Atroca”,dizAristóteles,“nãopodese
darsemaigualdade,masaigualdadenãopodesedarsemacomensurabilidade”
[2]
.
Arelaçãoentreas formasrelativaeequivalentedevalorpressupõeuma igualdadeentreaqueles
querealizamastrocas.Esseatributodeigualdadenointeriordosistemademercadoéextremamente
importante;paraMarx, eleé fundamentalparaomodocomoocapitalismo funciona teoricamente.
Aristóteles também entendeu a necessidade da comensurabilidade e da igualdade nas relações de
troca, mas não podia imaginar o que havia por trás disso. Por que não? Marx responde que “a
sociedade grega se baseava no trabalho escravo e, por conseguinte, tinha como base natural a
desigualdadeentreoshomense suas forçasde trabalho” (135-6).Numa sociedadeescravagistanão
podehaverumateoriadovalordotipodaquelaqueencontramosnocapitalismo.Note,maisumavez,
aespecificidadehistóricadateoriadovalorparaocapitalismo.
IssofazcomqueMarxretorneàstrêspeculiaridadesdaforma-dinheiroa fimde identificarsua
oposiçãoemergente:
Aoposiçãointernaentrevalordeusoevalor,contidanamercadoria,érepresentada,assim,pormeiodeumaoposiçãoexterna,istoé,
pelarelaçãoentreduasmercadorias,sendoaprimeira–cujovalordeveserexpresso–consideradaimediataeexclusivamentecomovalor
deuso,easegunda–naqualovaloréexpresso–imediataeexclusivamentecomovalordetroca.(137)
Essaoposiçãoentreaexpressãodevaloreomundodasmercadorias,oposiçãoqueresultanuma
“antinomia”entremercadoriasedinheiro,temdeserinterpretadacomoumaexteriorizaçãodealgo
queestáinteriorizadonaprópriamercadoria.Umavezexteriorizada,aoposiçãosetornaexplícita.A
relaçãoentremercadoriasedinheiroéumprodutodaqueladicotomiaentrevalordeusoevalorde
trocaqueidentificamoscomointernaàmercadorianoiníciodenossaexposição.
Oqueconcluímosdisso?Primeiro,o tempodetrabalhosocialmentenecessárionãopodeoperar
como regulador daquilo que está ocorrendo diretamente, porque é uma relação social. Ele faz isso
indiretamente, por meio da forma-dinheiro. Além disso, o surgimento da forma-dinheiro é o que
permitequeovalorcomeceasecristalizarcomoprincípionorteadordofuncionamentodaeconomia
capitalista.E,ésemprebomlembrar,ovaloréimaterial,porémobjetivo.Ora,issocriaumasériede
problemas para a lógica do senso comum, que supõe que o valor pode ser efetivamente medido;
mesmoalgunseconomistasmarxistasconsomemumtempoinestimávelexplicandocomoconseguem
fazê-lo.Meuargumentoé:issoéimpossível.Seovaloréimaterial,nãohácomomedi-lodiretamente.
Encontrarvalornumamercadoriaapenasolhandoparaelaécomotentardescobriragravidadenuma
pedra.Ovalorsóexisteemrelaçõesentremercadoriasesópodeserexpressomaterialmentenaforma
contraditóriaeproblemáticadamercadoria-dinheiro.
RefletiremosumbrevemomentosobreostatusqueMarxatribuiaostrêsconceitosfundamentais
de valor de uso, valor de troca e valor. Apresentarei ao mesmo tempo minhas próprias reflexões,
derivadasdeinteressesespecíficos,quevocêpodeaceitarourejeitar,comobementender.Essestrês
conceitosdiversosincorporamreferentesespaçotemporaisfundamentalmentedistintos.Osvaloresde
uso existem nomundo físicomaterial das coisas, que pode ser descrito nos termos newtonianos e
cartesianos de um espaço e um tempo absolutos. Os valores de troca se situam no espaço-tempo
relativodomovimentoedatrocademercadorias,aopassoqueosvalores sópodemserentendidos
nostermosdoespaço-temporelacionaldomercadomundial.(Ovalorimaterialrelacionaldotempo
de trabalho socialmente necessário surge no espaço-tempo mutável do desenvolvimento global
capitalista.)Noentanto,comoMarxmostroudemodoconvincente,osvaloresnãopodemexistirsem
valoresdetroca,eatrocanãopodeexistirsemvaloresdeuso.Ostrêsconceitossãodialeticamente
integradosunsaosoutros.
Do mesmo modo, as três formas de espaço-tempo – absoluto, relativo e relacional – estão
dialeticamente correlacionadas no interior da dinâmica histórico-geográfica do desenvolvimento
capitalista.Esseémeuargumentocomogeógrafo.Umadasprincipaisconsequênciaséqueoespaço-
tempodocapitalismonãoéconstante,masvariável(comomostraaaceleração–eaquiloqueMarx
chamade“anulaçãodoespaçopelotempo”
[c]
–provocadapelasconstantesrevoluçõesnotransportee
nascomunicações).Nãopossodeixardeintroduzir issonadiscussãoparaquevocêfaçasuaprópria
avaliação!Mas,sequiserseaprofundarnaquestãodadinâmicaespaçotemporaldocapitalismo,terá
deprocuraremoutrolugar
[3]
.
Item4:Ocaráterfetichistadamercadoriaeseusegredo
Esseiteméescritonumestilocompletamentediferente,quaseliterário–evocativoemetafórico,
imaginativo,lúdicoeemotivo,cheiodealusõesereferênciasamágica,mistériosenecromancias.Ele
contrastacomosóbrioestiloexplanativodoitemanterior.Issoécaracterísticodatáticaempregada
porMarxaolongod’Ocapital;elealternaosestilosdeacordocomoassuntoabordado.Nessecaso,a
alternância pode criar confusão quanto à relevância do conceito de fetichismo no conjunto da
argumentação deMarx (uma confusão agravada pelo fato de que esse item foi transferido de um
apêndice da primeira edição para a posição atual – assim como o item3 – somente na segunda e
definitivaediçãod’Ocapital).Osinteressadosemdesenvolverumateoriapolítico-econômicarigorosa
apartirdeMarx,porexemplo,costumamverofetichismocomoumconceitoestranho,quenãodeve
ser levadomuito a sério.Por outro lado, aqueles de convicçãomais filosófica ou literária tratamo
fetichismomuitasvezescomoapepitadeouro,omomentofundamentaldoentendimentodeMarxa
respeitodomundo.Assim,umadasperguntasque temosde fazeré:dequemaneiraesse itemestá
relacionadocomoconjuntodaargumentaçãodeMarx?
Oconceitodefetichismojáfoiassinaladoemsuadiscussãoacercadomodocomocaracterísticas
importantes do sistema político-econômico são “escondidas” ou confundidas por meio das
“antinomias” e “contradições” entre, por exemplo, as particularidades damercadoria-dinheiro, por
umlado,eauniversalidadedosvaloresfantasmagóricos,poroutro.Tensões,oposiçõesecontradições
apresentadasanteriormentenotextoretornamagoraparaumexamedetalhadonotítulo“Ocaráter
fetichistadamercadoriaeseusegredo”(146).Norestanted’Ocapital,comoveremos,oconceitode
fetichismo aparece várias vezes (em geral, mais implícita do que explicitamente) como uma
ferramenta essencial para desvendar os mistérios da economia política capitalista. Por essa razão,
considero o conceito de fetichismo fundamental tanto para a economia política como para o
argumentodeMarxemseuconjunto.Defato,eleseuneindissoluvelmenteaambos.
Aanáliseéfeitaemdoispassos.Primeiro,eleidentificacomoofetichismosurgeeoperacomoum
aspecto fundamentale inevitáveldavidapolítico-econômicasobocapitalismo.Emseguida,analisa
como esse fetichismo é enganosamente representado no pensamento burguês, em geral, e na
economiapolíticaclássica,emparticular.
Amercadoria,dizeleparacomeçar,é“plenadesutilezasmetafísicasemelindresteológicos”:“O
caráter misterioso da forma-mercadoria consiste [...] simplesmente no fato de que ela reflete aos
homensoscaracteressociaisdeseuprópriotrabalhocomocaracteresobjetivosdosprópriosprodutos
dotrabalho,comopropriedadessociaisquesãonaturaisaessascoisas”(146-7).Oproblemaéque“a
forma-mercadoriaearelaçãodevalordosprodutosdotrabalhoemqueelaserepresentanãotem,ao
contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relaçõesmateriais que dela
resultam”.Nossaexperiênciasensíveldamercadoriacomovalordeusonãotemnadaavercomseu
valor. Asmercadorias são, portanto, “coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais”.O resultado é que
uma “relação social determinada entre os próprios homens [...] assume, para eles, a forma
fantasmagóricadeumarelaçãoentrecoisas”.Eéessacondiçãoquedefineo“fetichismo,quesecola
aosprodutosdotrabalhotãologosãoproduzidoscomomercadoriaseque,porisso,éinseparávelda
produçãodemercadorias”(147-8).
Issoacontece,diz ele,porque“osprodutores só travamcontato socialmediantea trocade seus
produtosdotrabalho”,demodoque“oscaracteresespecificamentesociaisdeseustrabalhosprivados
aparecemapenasnoâmbito”datrocamercantil.Emoutraspalavras,elesnãosabemnempodemsaber
qualéovalordesuamercadoriaantesdelevá-laaomercadoeefetivarsuatroca.“Aestesúltimos[os
produtores], as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são.”
Note especialmente este trecho: aparecem como aquilo que elas são, “isto é, não como relações
diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre
pessoaserelaçõessociaisentrecoisas”(148).
Oque está emquestão aqui?Digamos que você vá ao supermercado para comprar alface. Para
comprá-la, tem de desembolsar certa quantia de dinheiro. A relaçãomaterial entre o dinheiro e a
alfaceexpressaumarelaçãosocial,porqueopreço–o“quanto”–ésocialmentedeterminado,éuma
representaçãomonetáriadovalor.Oqueestáportrásdessatrocamercantildecoisaséumarelação
entre você, o consumidor, e os produtores diretos, aqueles que trabalharampara produzir a alface.
Paracompraraalface,vocênãoprecisa conhecero trabalhodaquelesque incorporaramvalora ela;
contudo, em sistemas altamente complexos de troca, é impossível conhecer a atividade dos
trabalhadores,eéissoquetornaofetichismoinevitávelnomercadomundial.Oresultadoéquenossa
relação social com as atividades laborais dos outros é dissimulada em relações entre coisas. No
supermercado, por exemplo, você não tem como saber se a alface foi produzida por trabalhadores
satisfeitos,miseráveis,escravos,assalariadosouautônomos.Aalfaceémuda,porassimdizer,noque
dizrespeitoacomofoiproduzidaeaquemaproduziu.
Por que isso é importante? Quando eu lecionava cursos introdutórios de geografia na
UniversidadeJohnsHopkins,semprecomeçavaperguntandoaosalunosdeondetinhavindoseucafé
da manhã. Eles geralmente diziam algo como: “Comprei na padaria”. Mas quando eu pedia que
pensassemmais além, eles acabavam vislumbrando um extenso mundo de trabalho, em ambientes
geográficosesobcondiçõessociaisradicalmentediferentes,dosquaisnãosabiamnada,nempodiam
saber,quandoolhavamos ingredientesde seucafédamanhãou iamàpadaria.Opão,oaçúcar,o
café,o leite, as xícaras, as facas,osgarfos, as torradeiras eospratosdeplástico–paranão falarda
maquinaria e dos equipamentos necessários para produzir todas essas coisas – conectavam-nos a
milhões de trabalhadores ao redor domundo.Uma das tarefas do ensino da geografia é despertar
nossa consciência para a variedade de condições socioambientais, interligações espaciais e práticas
laboraisenvolvidasemcadaaspectodavidacotidiana,mesmonoatodiáriodeprepararumsimples
cafédamanhã.
Muitasvezes,osalunostinhamaimpressãodequemeuobjetivoerafazê-lossesentirculpadospor
nãoprestaratençãoaospobrescortadoresdecanadaRepúblicaDominicana,quenãorecebiamquase
nadaporseutrabalho.Quandochegavamaesseponto,costumavamdizer:“Professor,eunãotomei
cafédamanhãhoje!”.Eeucostumavaresponderqueelestalvezgostassemdepassarumasemanasem
almoço,lancheejantar,apenasparasentirnapeleaverdadedaregramarxianabásicadequetemos
decomerparaviver.
Questõesdessetipolevamaaspectosmorais.Háaquelesque,porváriasrazões,propõemtodotipo
de códigomoral nas relações interpessoais,mas não sabem se e como devem estender esse código
moralaocampodatrocademercadoriasnomercadomundial.Nãohánenhumproblemaemquerer
manter“boas”relaçõescomopróximoouserprestativocomovizinho,masqualéovalordissosenão
nos preocupamos nem um pouco com todos aqueles que não conhecemos e jamais conheceremos,
emboratenhamumpapelvitalparanós,fornecendonossopãodiário?Essasquestõessãolevantadas,
porexemplo,pelomovimentoafavordo“comérciojusto”,quetentadefinirumpadrãomoralparao
mundoda trocademercadorias,epelomovimentocontraapobreza,queprocuraangariardoações
paraasmaisdistanteslocalidades.Masnemmesmoessesmovimentosconseguemdesafiarasrelações
sociaisqueproduzemesustentamascondiçõesdadesigualdadeglobal:ariquezadosfilantroposea
pobrezadetodososoutros.
Oque interessa aMarx,porém,não são as implicaçõesmorais. Seu interesse émostrar comoo
sistemademercadoea forma-dinheirodisfarçamas relações reaispormeioda trocadecoisas.Ele
nãoestádizendoqueessedisfarce,queelechamade“fetichismo”(148)(enotequeousoqueMarx
faz desse termo é técnico e absolutamente distinto de outros usos comuns), é mera ilusão, uma
construçãoartificialquepodeserdesmontadaquandobementendermos.Não,defato,oquevocêvê
é a alface, é seu dinheiro, e você toma decisões tangíveis com base nessas informações. Este é o
significado da frase “aparecem como aquilo que elas são”: as coisas são realmente assim no
supermercado,epodemosobservá-lasdessemodo,mesmoqueelasmascaremasrelaçõessociais.
Esse fetichismo é uma condição inevitável do modo de produção capitalista, e tem diversas
implicações.Porexemplo:
[oshomens]nãorelacionamentresiseusprodutosdotrabalhocomovaloresporconsideraremessascoisasmerosinvólucrosmateriais
de trabalho humano de mesmo tipo. Ao contrário. Porque equiparam entre si seus produtos de diferentes tipos na troca, como
valores,elesequiparamentresiseusdiferentestrabalhoscomotrabalhohumano.(149)
Vemosmaisumavezqueosvaloressurgemdeprocessosdetroca,mesmoquandoasrelaçõesde
troca convergem progressivamente para expressar o valor como tempo de trabalho socialmente
necessário.
[Osprodutores]nãosabemdisso,masofazem.Porisso,natestadovalornãoestáescritooqueeleé.Ovalorconverte,antes,todo
produtodotrabalhonumhieróglifo social.Mais tarde,oshomens tentamdecifraro sentidodessehieróglifo,desvelaro segredode
seupróprioproduto social, pois adeterminaçãodosobjetosdeuso comovalores é seuproduto social tantoquanto a linguagem.
(149)
A relação dialética entre a formação e o intercâmbio do valor e as qualidades imateriais e
fantasmagóricasdovalorcomoumarelaçãosocialnãopoderiasermaisbemretratada.
Mas como essa dialética pode ser reproduzida no pensamento? Segundo Marx, muitos
economistaspolíticosentenderam(eaindaentendem)issocomoerrado,porqueveemospreçosnos
supermercadoseachamqueissoétudo,equeessaéaúnicaevidênciamaterialdequeprecisampara
construirsuasteorias.Elessimplesmenteexaminamarelaçãoentreofertaedemandaeasvariaçõesde
preço associadas a ela. Outros, mais atentos, chegam à “descoberta científica tardia de que os
produtosdotrabalho,comovalores,sãomerasexpressõesmateriaisdotrabalhohumanodespendido
emsuaprodução”.Isso“fezépocanahistóriadodesenvolvimentodahumanidade”(149).Aeconomia
políticaclássicaconvergiupoucoapoucoparaumaideiadevalorportrásdasflutuaçõesdomercado
(frequentementedenominadas“preçosnaturais”)ereconheceuqueotrabalhohumanotemavercom
isso.
Masaeconomiapolíticaclássicanãoconseguiucaptarohiatoentreaimaterialidadedosvalores
como tempo de trabalho socialmente necessário “cristalizado” e sua representação como dinheiro;
portanto,tambémnãoconseguiuentenderopapelqueaproliferaçãodatrocatemnaconsolidaçãoda
forma-valor como algo historicamente específico ao capitalismo. Supôs que os valores eram uma
verdadeevidenteeuniversalenãoviuque
o caráter de valor dos produtos do trabalho se fixa apenas por meio de sua atuação como grandezas de valor. Estas variam
constantemente, independentementedavontade,daprevisãoedaaçãodaquelesque realizama troca.Seuprópriomovimento social
possui,paraeles,aformadeummovimentodecoisas,sobcujocontroleelesseencontram,emvezdeelesascontrolarem.(150)
ÉassimqueMarxcomeçaaatacaraconcepçãoliberaldeliberdade.Aliberdadedomercadonãoé
liberdade, é uma ilusão fetichista. No capitalismo, os indivíduos se rendem à disciplina de forças
abstratas (como a mão invisível do mercado, criada em grande parte por Adam Smith), que
efetivamentegovernamsuasrelaçõeseescolhas.Possofabricarumacoisabonitaelevá-laaomercado,
mas,seeunãoconseguirtrocá-la,elanãoteránenhumvalor.Consequentemente,nãotereidinheiro
suficienteparacomprarasmercadoriasdequeprecisoparaviver.Asforçasdomercado,queninguém
controlaindividualmente,regulamtodosnós.EumadascoisasqueMarxpretendefazern’Ocapitalé
falardessepoderreguladorqueocorremesmo“nasrelaçõesdetrocacontingentesesempreoscilantes
de seusprodutos”.As flutuaçõesdeoferta edemandageram flutuaçõesdepreçoem tornodeuma
norma,masnãopodemexplicarporqueumpardesapatosétrocado,emmédia,porquatrocamisas.
No interiorde toda a confusãodomercado, “o tempode trabalho socialmentenecessáriopara sua
produção [damercadoria] se impõe com a força de uma lei natural reguladora, tal como a lei da
gravidadese impõequandoumacasadesabasobreacabeçadealguém”(150).Esseparaleloentrea
gravidadeeovaloréinteressante:ambossãorelações,enãocoisas,eambostêmdeserconceituados
comoimateriais,porémobjetivos.
Isso conduzMarx diretamente à crítica da evolução dos modos burgueses de pensamento em
relaçãoàpropagaçãodasrelaçõesdetrocaedoadventodaforma-dinheiro:
A reflexão sobre as formas da vida humana e, assim, também sua análise científica, percorre um caminho contrário ao do
desenvolvimento real. [...] Assim, somente a análise dos preços das mercadorias conduziu à determinação da grandeza do valor, e
somente a expressãomonetária comumdasmercadorias conduziu à fixaçãode seu caráterde valor.Porém, é justamente essa forma
acabada – a forma-dinheiro – domundo dasmercadorias que velamaterialmente, em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos
privadose,comisso,asrelaçõessociaisentreostrabalhadoresprivados.(150)
Essafalhadevisãoporpartedoseconomistaspolíticosclássicosépatentenomodocomomuitos
abraçaramRobinsonCrusoé,deDanielDefoe
[d]
, comoummodelodeeconomiademercadoperfeita,
quesurgeapartirdeumestadodenatureza:Robinsonnaufraganumailhaeconstróiporsuaprópria
contaummododevidaadequadoaumestadodenatureza,reproduzindopassoapassoalógicade
uma economia de mercado. Mas, como Marx mostra com muito humor, Robinson, além de
supostamente aprender com a experiência, salva de modo muito conveniente, dos “destroços do
navio”,seu“relógio,livrocomercial,tintaepena”epõe-seimediatamente,“comobominglês,afazer
a contabilidade de si mesmo” (151). Em outras palavras, Robinson leva para a ilha as concepções
mentaisdomundo apropriadas à economiademercado e constróiuma relação comanaturezade
acordocomessaimagem.Oseconomistaspolíticosusaramafábulademodoperverso,comointuito
denaturalizaraspráticasdeumaburguesiaemergente.
Durantemuitotempo,acheiqueoseconomistaspolíticostinhamescolhidoahistóriaerradade
Defoe.MollFlanders
[e]
éummodelomuitomelhordefuncionamentodaproduçãoedacirculaçãode
mercadorias. Moll comporta-se como a mercadoria quinta-essencial à venda. Ela especula com os
desejos alheios, e os outros especulam com seus desejos (o grande momento é quando ela,
absolutamente falida, gasta seus últimos tostões alugando um paramento grandioso, que inclui
carruagem,cavalosejoias,evaiaumbaile;láelaconquistaumjovemnobreefogenamesmanoite
comele,masdescobrenamanhãseguintequeeletambémestáfalido;aaventuraterminacomosdois
achandoumaenormegraçanoocorridoedespedindo-seamistosamente).Elaviajapelomundo(vai
atéaVirgíniacolonial),passaumtemponaprisãoporcausadedívidas,esuafortunaflutuaparacima
eparabaixo.Elacirculacomoumobjetomonetárionummardetrocasdemercadorias.MollFlandersé
uma analogia muito melhor para o modo de funcionamento do capitalismo, especialmente o
especulativodeWallStreet.
OseconomistaspolíticosclássicospreferiramomitodeRobinsonCrusoésimplesmenteporqueele
naturaliza o capitalismo. Mas este, como Marx insiste, é um construto histórico, não um objeto
natural. “As categorias da economia burguesa” não são mais do que “formas de pensamento
socialmente válidas e, portanto, dotadas de objetividade para as relações de produção dessemodo
social de produção historicamente determinado, a produção de mercadorias”. Uma olhada nessa
históriamostraaslimitaçõesdassupostasverdadesuniversaisdateoriaburguesa.“Saltemos,então,da
iluminada ilhadeRobinsonparaa sombria IdadeMédiaeuropeia.”Seestaé sombria, suas relações
sociaissão,aocontrário,bastanteclaras.Sobosistemadacorveia,dizMarx,“cadaservosabequeo
que ele despende a serviço de seu senhor é uma quantidade determinada de sua força pessoal de
trabalho”; os vassalos tinham consciência de que “as relações sociais das pessoas em seus trabalhos
aparecem como suas próprias relações pessoais e não se encontram travestidas em relações sociais
entrecoisas,entreprodutosdetrabalho”(152).Omesmovaleparaadinâmicaruralepatriarcalde
umafamíliacamponesa:asrelaçõessociaissãotransparentes,epodemosverquemestáfazendooque
eparaquem.
Taiscomparaçõeshistóricas,juntamentecomaanálisedofetichismo,permitem-nosvislumbrara
natureza contingente, portanto não universal, das verdades estabelecidas pela economia política
burguesa.“Porisso,todoomisticismodomundodasmercadorias,todaamágicaeaassombraçãoque
anuviamosprodutosdotrabalhonabasedaproduçãodemercadoriasdesaparecemimediatamente,
tão logo nos refugiemos em outras formas de produção” (151). Podemos até imaginar as relações
sociaisorganizadascomo“umaassociaçãodehomenslivres”,istoé,ummundosocialistanoqual“as
relações sociais dos homens com seus trabalhos e seus produtos do trabalho permanecem [...]
transparentemente simples, tanto na produção quanto na distribuição” (153). Ao falar da ideia de
associação,Marx ecoamuito do pensamento socialista utópico francês dos anos 1830 e 1840 (em
particular Proudhon, emboraMarx não reconheça isso). Sua esperança é que possamos ir além do
fetichismodasmercadoriasetentarestabelecer,pormeiodeformasassociativas,ummododerelação
diferente. Se isso é viável ounão éumaquestão fundamental quequalquer leitor deMarx temde
considerar;masesseéumdos rarosmomentosn’Ocapital emque temosumvislumbredavisãode
Marxdeumfuturosocialista.
Ofetichismodomercadotrazcomeleumaboabagagemideológica.Marxcomenta,porexemplo,
asrazõesporqueoprotestantismoéaformadereligiãomaisadequadaparaocapitalismo.Argumenta
quenossasformasdepensamento–nãoapenasasdoseconomistaspolíticos–refletemofetichede
nossaépoca,masessaéumatendênciageral.Suasobservaçõessobrereligiãoearelaçãodestacoma
vidapolítico-econômicasãosignificativas:
aeconomiapolíticaanalisou,mesmoqueincompletamente,ovaloreagrandezadevalorerevelouoconteúdoqueseescondenessas
formas.Mas ela jamais sequer colocou a seguinte questão: por que esse conteúdo assume aquela forma, e por que, portanto, o
trabalho se representa no valor e amedida do trabalho, pormeio de sua duração temporal, na grandeza de valor do produto do
trabalho?Taisformas,emcujatestaestáescritoqueelaspertencemaumaformaçãosocialemqueoprocessodeproduçãodominaos
homens,enãooshomensoprocessodeprodução,sãoconsideradasporsuaconsciênciaburguesacomoumanecessidadenaturaltão
evidentequantooprópriotrabalhoprodutivo.(154-6)
Aisso,Marxacrescentaumalongaeimportantenotaderodapé:
Aformadevalordoprodutodotrabalhoéaformamaisabstratamastambémmaisgeraldomodoburguêsdeprodução,queassim
secaracterizacomoumtipoparticulardeproduçãosociale,aomesmotempo,umtipohistórico.Setalformaétomadapelaforma
natural eternadaprodução social, tambémseperdedevistanecessariamente a especificidadeda formadevalor, e assim tambémda
forma-mercadoriae,numestágiomaisdesenvolvido,daforma-dinheiro,daforma-capitaletc.(155,nota32)
Marxsugerequeéumerronaturalizara formadevalorprópriadocapitalismoapenasporqueé
difícil,senãoimpossível,conceberalternativas.
Foi isto que os economistas políticos burgueses fizeram: trataram o valor como um fato da
natureza, não como uma construção social, saída de ummodo particular de produção.Marx está
interessadona transformaçãorevolucionáriada sociedade,e isso significaumrevolucionamentoda
forma-valor capitalista, a construção de uma estrutura de valor alternativa, um sistema de valor
alternativoquenãotenhaocaráterespecíficodaqueleaquesechegousobocapitalismo.Nãoposso
deixardeenfatizaresseponto,porqueateoriadovaloremMarxéinterpretadacomfrequênciacomo
uma norma universal a que deveríamos obedecer. Perdi a conta de quantas vezes ouvi pessoas se
queixaremdequeoproblemaemMarxéqueeleacreditaqueaúnicanoçãodevalorválidaderivado
acréscimo de trabalho. Mas isso não é verdade; a noção de valor é um produto histórico-social.
Portanto,oproblemadosocialista,docomunista,dorevolucionário,doanarquistaoudequemforé
encontrar uma forma-valor alternativa que funcionenos termos da reprodução social da sociedade
numa imagem diferente. Ao introduzir o conceito de fetichismo, Marx mostra que o valor
naturalizadodaeconomiapolíticaclássicaditaumanorma:seobedecermoscegamenteaessanormae
reproduzirmos o fetichismo da mercadoria, fecharemos as portas para as possibilidades
revolucionárias.Nossatarefa,aocontrário,équestioná-la.
Ocapitalismonãotemnenhummeioderegistrarvaloresintrínsecos,“naturais”,emseuscálculos.
“Comoesteúltimoéumamaneirasocialdeterminadadeexpressarotrabalhorealizadonumacoisa,
elenãopodecontermaismatérianaturaldoqueataxadecâmbio”;éilusórioacreditar,porexemplo,
“quearendafundiárianascedaterra,enãodasociedade”(157).
A economia política burguesa vê a aparência superficial. Embora tenha uma teoria do valor-
trabalho, ela jamais investigou a fundo seu significado ou as circunstâncias históricas de seu
surgimento. Isso nos obriga a ir além do fetichismo, não para tratá-lo como uma ilusão,mas para
examinar sua realidade objetiva (86-7, 147-8, 157). Uma resposta possível é seguir o caminho do
“comérciojusto”[fairtrade].Outraédesbravarumcaminhocientífico,umateoriacrítica:ummodo
deinvestigaçãoepesquisaquepossadesvendaraestruturaprofundadocapitalismoesugerirsistemas
alternativosdevalor,baseadosemtiposradicalmentediferentesderelaçõessociaisemateriais.
As duas opções não sãomutuamente excludentes. Uma política que lide com as condições de
trabalho numa base global, desenvolvendo-se nummovimento, digamos, contra a exploração, pode
facilmente conduzir ao campo teórico muito mais profundo que Marx esboça n’O capital
precisamente porque a aparência superficial, ainda que fetichista, sempre indica uma realidade
objetiva.Lembro-me,porexemplo,deumdesfilepromovidopelosestudantesdaUniversidadeJohns
Hopkins,emqueapresentaramroupasdasgrifesLizClaiborneeGapcomcomentáriostantosobreas
peças quanto sobre as condições de trabalho associadas à produção. Esse desfile foi uma maneira
eficientedefalardofetichismoechamaraatençãoparaascondiçõesglobaisdotrabalho,sugerindo
aomesmotempoaimportânciadesefazeralgumacoisaarespeito.
AmissãodeMarxn’Ocapital,porém,éconceberumaciênciaparaalémdofetichismoimediato,
sem negar sua realidade. Ele lançou as bases para isso na crítica da economia política burguesa.
Também mostrou a que ponto somos governados pelas forças abstratas do mercado naquilo que
fazemosecomoestamosconstantementeameaçadosdesergovernadosporconstrutosfetichistas,que
nosimpedemdeveroqueestáacontecendo.Atéquepontovocêpodedizerquevivenumasociedade
livre,caracterizadapelaverdadeiraliberdadeindividual?Asilusõesdeumaordemliberalutópica,na
visãodeMarx, têmdeserdesmascaradascomoaquiloquesão:umaréplicadaquele fetichismoque
perverte as relações sociais entre pessoas, transformando-as em relações materiais entre pessoas e
relaçõessociaisentrecoisas.
CAPÍTULO2:OPROCESSODETROCA
Ocapítulo2nãoéapenasmaiscurto,mastambémmaisfácildeacompanhar.OpropósitodeMarxé
definirascondiçõessocialmentenecessáriasdatrocacapitalistademercadoriasecriarumabasemais
sólidaparaaconsideraçãodaforma-dinheiroqueseráfeitanocapítulo3.
Como as mercadorias não vão para o mercado por si mesmas, precisamos definir primeiro a
relação operativa entre elas e aqueles que as levam. Marx imagina uma sociedade em que “os
guardiões”dasmercadorias“têm[...]desereconhecermutuamentecomoproprietáriosprivados.Essa
relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ele legalmente desenvolvido ou não, é uma relação
volitiva,naqual se refletea relaçãoeconômica. [...]Aqui,aspessoasexistemumasparaasoutras”–
observeoecodoargumentosobreofetichismo–nãocomopessoas,mas“apenascomorepresentantes
damercadoriae,porconseguinte,comopossuidorasdemercadorias”. Isso levaaumaconsideração
mais ampla. Ao longo de todo O capital, “as máscaras econômicas das pessoas não passam de
personificações das relações econômicas”, é “como suporte” – note a repetição do termo – dessas
relaçõeseconômicasque“elassedefrontamumascomasoutras”(160).Marxestámaispreocupado
com os papéis econômicos que os indivíduos desempenham do que com os indivíduos que os
desempenham. Por isso, ele examina as relações entre compradores e vendedores, devedores e
credores, capitalistas e trabalhadores.De fato, n’O capital, o foco estámais nos papéis do que nas
pessoas, eMarx reconhece que os indivíduos podem ocupar – e com frequência ocupam – vários
papéisdiferenteseatémesmoposiçõesprofundamentecontraditórias(comootrabalhadorquetem
umfundodepensãocominvestimentosnomercadodeações).Essefocomaisnospapéisdoquenos
indivíduosétãolegítimoquantoseanalisássemosasrelaçõesentremotoristasepedestresnasruasde
Manhattan:amaioriadenósjáassumiuosdoispapéisesoubeadaptarseucomportamentoacadaum
deles.
Ospapéisnomododeproduçãocapitalistasãoestritamentedefinidos.Osindivíduossãosujeitos
jurídicos dotados da propriedade privada da mercadoria que manejam, e eles a negociam em
condiçõescontratuaisnãocoercitivas.Háumrespeitorecíprocopelosdireitosjurídicosdosoutros;a
equivalência das trocas mercantis baseada em princípios é, como notou Aristóteles, uma virtude
louvável. O queMarx descreve aqui é a política convencional e o arcabouço legal para o devido
funcionamentodosmercados,talcomoimaginadopelateorialiberal.Nessemundo,umamercadoria
é“leveller
[f]
ecínicadenascença”,porqueestá“sempreprontaatrocarnãoapenassuaalma,masseu
corpo com qualquer outra mercadoria”. O proprietário quer cedê-la, e o comprador quer tomá-la:
“Todasasmercadoriassãonão-valoresdeusoparaseuspossuidores,evaloresdeusoparaseusnão-
possuidores.Portanto,elasprecisamuniversalmentemudardemãos”,mas“seotrabalhoéútilpara
outrem,ouseja,seseuprodutosatisfaznecessidadesalheias,éalgoquesópodeserdemonstradona
troca”(160).
Esseargumentoarespeitodaestruturainstitucionalelegalsocialmentenecessáriarequeridapara
queocapitalismofuncioneéhistoricamenteespecífico.Nãoreconheceraespecificidadehistóricada
concepçãoburguesadedireitosedevereslevaasériosequívocos.ÉporissoqueMarxfaz,numalonga
notaderodapé,umavigorosadenúnciacontraoanarquistaProudhon:
[Ele]criaseuidealdejustiça,ajusticeéternelle[justiçaeterna],apartirdasrelaçõesjurídicascorrespondentesàproduçãodemercadorias,
pormeiodoquê,diga-sedepassagem,tambéméfornecidaaprova,consoladoraparatodososfilisteus,dequeaformadaprodução
demercadoriasétãoeternaquantoajustiça.Então,emdireçãoinversa,eleprocuramodelardeacordocomesseidealaproduçãoreal
demercadoriaseodireitorealqueaelacorresponde.(159,nota38)
Defato,Proudhontomaasformasespecíficasdasrelaçõesjurídico-econômicasburguesasetrata-
as como universais e fundadoras do desenvolvimento de um sistema econômico alternativo,
socialmentejusto.DopontodevistadeMarx,issonãoéumaalternativa,porqueapenasreinscreveas
concepçõesburguesasdovalornumaformasupostamentenovadesociedade.Esseproblemacontinua
emnossosdias,nãosópelarenovaçãoanarquistadointeressepelasideiasdeProudhon,mastambém
peloadventodeumapolíticamaisampladedireitoshumanosliberaiscomosupostoantídotocontra
os males sociais e políticos do capitalismo contemporâneo. A crítica de Marx a Proudhon é
diretamenteaplicávelaessapolíticacontemporânea.ADeclaraçãoUniversaldosDireitosHumanos,
de1948,éumdocumentofundamentalparaumindividualismoburguêsbaseadonomercadoe,como
tal, fornece abaseparauma críticaminuciosado capitalismo liberal ouneoliberal.Defenderque a
ordem política capitalista seja coerente com seus próprios princípios fundamentais pode ser útil
politicamente,mas imaginar que essa política possa levar a um deslocamento radical domodo de
produçãocapitalistaé,noentenderdeMarx,umgraveerro.
Oque vema seguir éuma recapitulação–Marx reitera com frequência argumentos anteriores
numa linguagemumpoucodiferente – do fato de que, num ambiente institucional desse tipo, “o
cristalmonetárioéumprodutonecessáriodoprocessodetroca”.Elerepeteotemaquandodizque“a
expansãoeoaprofundamentohistóricosdatrocadesenvolvemaoposiçãoentrevalordeusoevalor
quejazlatentenanaturezadasmercadorias”:
Anecessidadedeexpressarexternamenteessaoposiçãoparaointercâmbioimpeleaumaformaindependentedovalordamercadoriae
nãodescansaenquantonãochegaa seuobjetivo finalpormeiodaduplicaçãodamercadoriaemmercadoriaedinheiro.Portanto,na
mesma medida em que se opera a metamorfose dos produtos do trabalho em mercadorias, opera-se também a metamorfose da
mercadoriaemdinheiro.(161-2)
Marxnãodiznadaquejánãotenhamosvistonositensanteriores,masagoraeleexpõeoqueessa
relação econômica entre coisas implica para as relações entre pessoas. Essa economia de trocas
mercantis,dizele,implicaqueestamoslidandocom“proprietáriosprivados”de“coisasalienáveis”,e
isso,porsuavez, implicaquetemos“pessoasindependentesumasdasoutras”.“Alienáveis”refere-se
aofatodeque“ascoisassão,emsimesmas,exterioresaohomem”,istoé,livrementecambiáveis.Isso
significaqueosoperadoresdatrocanãotêmnenhumvínculopessoalcomascoisasquepossuem.E
implica também relações sociais “de alheamentomútuo”, que são exclusivasdo capitalismo, euma
relaçãoconcomitantedepossejurídicademercadorias(162).
Taiscondiçõesnãoerampredominantesna“famíliapatriarcal”,na“comunidadeindianaantiga”
ounum“Estadoinca”;osprocessosdetrocativeramderomperasestruturassociaisprecedentes.Isso
ocorre aos poucos, sugere ele, àmedida que o comércio ocasional entre comunidades evolui até o
pontoemque“aconstanterepetiçãodatrocatransforma-anumprocessosocialregular”(162):
Na mesma proporção em que a troca de mercadorias dissolve seus laços puramente locais [notem que aqui está subentendida a
expansão geográfica] e o valor dasmercadorias se expande emmaterialidade
[g]
do trabalho humano em geral, a forma-dinheiro se
encarnaemmercadoriasque,pornatureza,prestam-seàfunçãosocialdeumequivalenteuniversal:osmetaispreciosos.(163-4)
Comojáindiquei,esseéumargumentohistóricoumtantoduvidosoarespeitodadissoluçãodas
formassociaispreexistentesdiantedasrelaçõescrescentesdetrocaedoadventodasformasdinheiro.
Masseuconteúdológicoé importanteparademonstrarqueoqueésocialmentenecessárioé“uma
forma adequada de manifestação de valor”, e essa exigência é mais adequadamente satisfeita por
metais preciosos (tais como o outro e a prata), em virtude de suas qualidades naturais. Contudo,
comofrisadoanteriormente,issosignificaqueamercadoria-dinheirointeriorizaumadualidade,pois
tantoémercadoria–nosentidoordináriodeserumprodutodotrabalho–quanto“adquireumvalor
deusoformal,quederivadesuasfunçõessociaisespecíficas”.Nessafunçãosocial formal,“aforma-
dinheiro é apenas o reflexo, concentrado numa únicamercadoria, das relações de todas as outras
mercadorias”(164).
Além disso, é perfeitamente possível substituir amercadoria-dinheiro “por simples signos de si
mesmo” para cumprir esse papel. Mas essa capacidade de substituição não causa surpresa, já que
“cadamercadoriaseriaumsigno,umavezque,comovalor,elaétãosomenteuminvólucroreificado
do trabalho humano nela despendido” (165). Marx acena aqui com a possibilidade de incorporar
diretamente em sua análise muitos aspectos daquilo que atualmente costumamos chamar de
“economiasimbólica”.Elenãotenta fazer isso,porque, semdúvida,exigiriamudançasnomodode
apresentação, mas é importante notar que os aspectos simbólicos do modo de funcionamento do
capitalismonãosãoalheiosaseuargumento.Aquelesqueafirmamqueocapitalismoédiferentehoje,
devidoaograudepreponderânciaqueocapitaleaeconomiasimbólicospassaramaexercer,eque,
emconsequênciadisso,ocapitalismoteriamudadodefoco,deveriamperceberqueascoisasnãosão
necessariamenteassim.
Operigoestáemtrataressasqualidadessimbólicas–quesãomuitoimportantes–comosefossem
puramente imagináriasoucomoprodutosarbitráriosdareflexãodoshomens.OqueMarxsugereé
quemesmo amercadoria-dinheiro não pode realizar seu valor específico sem a troca com todas as
outrasmercadoriascomoequivalentes,aindaque,paraisso,finjaseroequivalenteuniversaldetodas
asoutrasmercadorias.“Adificuldade”,dizele,“nãoestáemcompreenderquedinheiroémercadoria,
masemdescobrircomo,porqueeporquaismeiosamercadoriaédinheiro”(186):“Umamercadoria
nãoparecesetornardinheiroporqueasoutrasmercadoriasexpressamnelaseuvaloruniversalmente,
mas,aocontrário,estaséqueparecemexpressarnelaseusvaloresuniversalmentepelofatodeelaser
dinheiro”(187,grifosmeus).
Emoutraspalavras,umavezqueexistadinheiro, asmercadorias encontramummeiodemedir
seuprópriovalorsimplesmenteagindocomoseoouro,talcomosurge“dasentranhasdaterra”,fosse
“aencarnaçãoimediatadetodotrabalhohumano”.Essa,dizele,éa“mágicadodinheiro”quetemde
ser desvendada. “O enigma do fetiche do dinheiro não é mais do que o enigma do fetiche da
mercadoria,queagorasetornavisíveleofuscaavisão”(167).
Masháoutraquestãovitalnessecapítulo.Coma“mágica”eo“fetiche”dodinheirofirmemente
estabelecidos,
o comportamentomeramente atomístico dos homens em seu processo social de produção e, com isso, a figura reificada de suas
relaçõesdeprodução,independentesdeseucontroleedesuaaçãoindividualconsciente,manifestam-se,deinício,nofatodequeos
produtosdeseutrabalhoassumemuniversalmenteaformadamercadoria.(167)
IssoseparecemuitocomavisãodeAdamSmithdeummercadodefuncionamentoperfeito,cuja
mão invisível guia as decisões individuais.Ninguém está no comando, e cada um tem de agir de
acordocomoqueMarxchamamaistardede“leiscoercitivasdacompetição”(446).
No mundo ideal de Smith, o Estado criaria o arcabouço institucional para o funcionamento
perfeito dosmercados e da propriedade privada e a riqueza doEstado e o bem-estar dos cidadãos
cresceriam rapidamente, àmedidaque a iniciativa individual eo empreendedorismo,guiadospela
mãoinvisíveldomercado,produzissemresultadosquebeneficiassematodos.Nessemundo,segundo
acredita Smith, as intenções e as motivações dos indivíduos (que variam desde a ganância até a
missãosocial)nãoimportam,poisamãoinvisíveldomercadoseencarregariadetudo.
Esse capítulo apresenta-nos uma charada.De um lado,Marx dedica uma nota de rodapé para
condenarofatodeProudhonaceitarasnoçõesburguesasdedireitoselegalidade,alegandoqueisso
nãocontribuiemnadaparaaconstruçãodeumaalternativarevolucionária.Noentanto,nopróprio
textodocapítulo,Marxpareceaceitarateorialiberaldapropriedade,areciprocidadeeaequivalência
datrocamercantilnãocoercitivaentreindivíduosjurídicoseatémesmoamãoinvisíveldomercado
talcomopropostaporAdamSmith.Comoresolveressacontradiçãoaparente?Creioquearespostaé
bastantesimples,masaperguntatemramificaçõesimportantessobreomodocomoleremosorestante
d’Ocapital.
Marx está engajado numa crítica da economia política liberal clássica. Por isso, acredita que é
necessárioaceitarastesesdoliberalismo(e,porextensão,asdoneoliberalismo)paramostrarqueos
economistaspolíticosclássicosestavamprofundamenteequivocadosemseusprópriostermos.Assim,
mais do que dizer que os mercados de funcionamento perfeito e a mão invisível não podem ser
construídosequeomercadoésempredistorcidopelopoderpolítico,eleaceitaavisãoliberalutópica
demercadosperfeitosemãoinvisívelparamostrarqueelesjamaisproduzirãoumresultadobenéfico,
mas, ao contrário, tornarão a classe capitalista inconcebivelmente rica e empobrecerão os
trabalhadoreseorestantedapopulaçãonamesmaproporção.
Issosetraduznumahipótesesobreocapitalismorealmenteexistente:quantomaisestruturadoe
organizado segundo essa visão utópica liberal e neoliberal é esse capitalismo, maiores são as
desigualdadesdeclasse.Eédesnecessáriodizerqueháevidênciassuficientesparaapoiaravisãode
quearetóricadolivremercadoedolivre-comércioeseussupostosbenefíciosuniversais,àqualfomos
submetidos nos últimos trinta anos, produziu exatamente o resultado esperado por Marx: uma
concentração maciça de riqueza e de poder numa ponta da escala social, concomitante ao
empobrecimento crescente de todos os demais. Mas, para prová-lo, Marx tem de aceitar as bases
institucionaisdoutopismoliberal,eéprecisamenteissoqueelefaznessecapítulo.
Issonos levaaumaadvertênciaimportantesobrecomolerOcapital.Devemos terocuidadode
distinguir os momentos em que Marx critica a visão liberal utópica em seu estado perfeito e os
momentos em que ele tenta dissecar o capitalismo realmente existente, com todas as suas
imperfeiçõesdemercado,desequilíbriosdepoder e falhas institucionais.Comoveremos, esses dois
momentos às vezes se confundem.Muitos dos equívocos de interpretação derivamdessa confusão.
Sendo assim, tentarei indicar quando ele está fazendo o quê, bem como identificar os momentos
ocasionaisde confusão, inclusiveosqueaparecemnaprópria análisedeMarx,quandoodesejode
cumprir seu objetivo – a crítica da economia política clássica – atrapalha a tarefa adicional de
entenderadinâmicaefetivadomododeproduçãocapitalista.
Namaioria das vezes, no entanto,Marx faz umuso engenhoso da crítica teórica do utopismo
liberal, em suas várias formas político-econômicas, para lançar uma luz crítica devastadora sobre o
capitalismoefetivamenteexistenteemsuaépoca.Eissoébomparanós,quevivemosnummundoem
queas tesesdoneoliberalismofazemecoeaprofundam,emcertosaspectos,as tesesdo liberalismo,
poisacríticadeMarxaolivremercadoeaolivre-comérciopodelançarumaluztãodevastadorasobre
nossoprópriocapitalismoefetivamenteexistentequantofezcomocapitalismodaépoca.
[1]KarlMarx,ZurKritik der PolitischenÖkonomie (Berlim, 1859), p. 3 [ed. bras.:Contribuição à crítica da economia política, 2. ed., São
Paulo,ExpressãoPopular,2008].
[a]KarlMarxeFriedrichEngels,ManifestoComunista,cit.,p.43.(N.E.)
[b]PersonagemdodramahistóricoHenriqueIV,deShakespeare.Marxusaaformaalemãdonome,WittibHurtig.(N.T.)
[2]CitadoemKarlMarx,Ocapital,cit.,p.135-6.OtrechodeAristótelesépartedaÉticaaNicômaco,livroV,cap.5.
[c]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.432.(N.E.)
[3]DavidHarvey,SpacesofGlobalCapitalism:TowardsaTheoryofUnevenGeographicalDevelopment[Espaçosdocapitalismoglobal:para
umateoriadodesenvolvimentogeográficodesigual](Londres,Verso,2006)..
[d]SãoPaulo,Iluminuras,2004.(N.E.)
[e]SãoPaulo,NovaCultural,2003.(N.E.)
[f]“Niveladora”:referênciaaoslevellers,correntepolíticaatuantenaInglaterraemmeadosdoséculoXVII.(N.T.)
[g]Nooriginalalemão:Materiatur.Essetermo,empregadoporHegelemVorlesungenüberdiePhilosophiederNatur[Liçõessobreafilosofia
da natureza], remete à doutrina hilemórfica escolástico-aristotélica, segundo a qual a “forma” (morphê) se realiza na “matéria” (hylê),
conferindoaestasuadeterminidade(Bestimmtheit,naterminologiahegeliana)ontológica.AMateriaturé,assim,oprincípioqueconstituia
materialidadeemgeraleaquiloquerestaquandoseretira(oquesóépossívelnaimaginação)deumasubstânciaasuaformadeterminada.
VerG.W.F.Hegel,VorlesungenüberdiePhilosophiederNatur(Hamburgo,FelixMeiner,2007),p.213.(N.T.)
2.Dinheiro
CAPÍTULO3:ODINHEIROOUACIRCULAÇÃODEMERCADORIAS
Aestaaltura,estáclaroqueumanoçãoparticulardedinheirosecristalizouaolongodotratamento
que Marx dá à troca de mercadorias. Ela estava implícita na oposição entre as formas relativa e
equivalente do valor, e isso, com a disseminação da troca num ato social geral, conduziu ao
surgimentodeumequivalenteuniversal,quetomouaformadeumamercadoria-dinheirotangível,a
qual,apesardeencobrirasorigensdovalornotempodetrabalhosocialmentenecessário,representa
valor.Vamosanalisarmaisdepertoessaformadevalor.
Ocapítulo3élongoebastanteintricado.Noentanto,contaumahistóriasimples,emlinguagem
quehoje nos soa familiar.Odinheiro é um conceito unitário,mas interioriza funções duplas, que
refletem a dualidade do valor de uso e do valor de troca na própria mercadoria. Por um lado, o
dinheiro opera como umamedida de valor, como um padrão-ouro, por assim dizer, do tempo de
trabalho socialmente necessário. Para cumprir esse papel, ele precisa possuir qualidades distintivas
capazes de fornecer, tanto quanto possível, umpadrão preciso e eficiente demedida do valor. Por
outro lado, o dinheiro também tem de azeitar a expansão da troca e fazê-lo com o mínimo de
espalhafato e dificuldade. Desse modo, ele funciona como um simples meio [medium] para
movimentarumavariedadecadavezmaiordemercadoriasdeumlugarparaooutro.
Háumatensão,umacontradição,entreessasduasfunções.Comomedidadevalor,porexemplo,
oouroparecemuitobom.Eleépermanenteepodeserarmazenadoparasempre;podemosavaliarsuas
qualidades;podemosconhecerecontrolarsuascondiçõesconcretasdeproduçãoecirculação.Oouro,
portanto, é excelente como medida de valor. Mas imagine se toda vez que fôssemos tomar café
tivéssemosdeusarumminúsculogrãodeouroparapagá-lo.Essaéumaformamuitoineficientede
dinheiro,dopontodevistadacirculaçãodeumamiríadedepequenasquantidadesdemercadorias.
Imagine se cada um tivesse de carregar umabolsinha comgrãos de ouro – e o que aconteceria se
alguémespirrasseenquantocontaosgrãos?Oouroéummeioineficientedecirculação,apesardeser
umaexcelentemedidadevalor.
Marx compara o dinheiro como medida de valor (item 1) e o dinheiro como um meio de
circulação(item2).Mas,nofimdascontas,háapenasumtipodedinheiro(item3).Earesolução
dessa tensão entre o dinheiro comomedida efetiva de valor e o dinheiro comomeio eficiente de
circulaçãoéparcialmentedadapelapossibilidadeou–eissoécontroverso–pelanecessidadedeoutra
formadecirculação,queéaexistênciadocrédito.Aconsequenterelaçãoentredevedoresecredores
nãosóabreapossibilidadecomointroduzanecessidadedeoutraformadecirculação:adocapital.
Emoutraspalavras,oqueemergenessecapítuloéapossibilidadedoconceito,assimcomodofato,do
capital.Domesmomodoqueapossibilidadedodinheirosecristalizouapartirdosprocessosdetroca,
apossibilidadedocapitalsecristalizaapartirdacontradiçãoentreodinheirocomomedidadovalor
e o dinheiro como meio de circulação. Essa é a questão principal desse longo capítulo. Se a
mantivermos sempreemmente,muitosdetalhes intricadoseporvezes confusos se encaixarãocom
maisfacilidadenoconjunto.
Item1:Medidadosvalores
Há uma distinção entre “dinheiro” e “mercadoria-dinheiro”. Para consolidar seu argumento
anterior – a saber, o valor não é materialmente mensurável em si mesmo, antes requer uma
representaçãopararegularastrocas–,Marxcomeçapressupondooourocomoamercadoria-dinheiro
singular.Oouroé“aformanecessáriademanifestaçãodamedidaimanentedevalordasmercadorias:
otempodetrabalho”(169).Ovaloréexpresso(outalvezdevêssemosdizer“reside”)narelaçãoentrea
mercadoria-dinheiro como “uma forma demanifestação” do valor e todas asmercadorias que são
trocadas por ela. O valor das mercadorias é irreconhecível e incognoscível sem sua forma de
manifestação.
Isso, no entanto, leva a algumas complicações – e revela algumas contradições – que requerem
uma análise mais detalhada.Marx concentra-se, em primeiro lugar, nomodo como os preços são
vinculadosàsmercadorias.Ospreços,dizele,sãoimaginários,ouideais(querdizer,umprodutodo
pensamentoouumprincípio lógico,emoposiçãoaconclusões“reais”ouempiricamentederivadas)
(170).Eleserefere,aqui,aofatodeque,quandoproduzoumamercadoria,nãotenhoideiadequalé
seuvalorantesdecolocá-lanomercado.Vouaomercadocomumanoçãoimaginária, ideal,deseu
valor.Assim,colonelaumaetiquetacomumpreço.Issoinformaopotencialcompradordovalorque,
paramim,amercadoriadeveriater.Masnãotenhocomosaberseconseguireiessepreçoporela,pois
nãopossoterumaideiapréviadequaléseu“valordemercado”:“Emsuafunçãodemedidadevalor,
oouroserve,portanto,apenascomodinheirorepresentadoouideal.Essacircunstânciadeuvazãoàs
mais loucas teorias. Embora apenas o dinheiro representado sirva à função demedida de valor, o
preçodependeinteiramentedomaterialrealdodinheiro”(171).Estabelece-seumarelaçãoentreos
preçosimaginários,ideais,eospreçosefetivamenterecebidosnomercado.Opreçorecebidodeveria
“idealmente”indicarovalorverdadeiro,maséapenasumaaparência,umarepresentação–imperfeita
–dovalor.
Preferiríamos, é óbvio, que a representação quantitativa do valor fosse um padrão estável de
medida.Oouro,noentanto,éumamercadoriaespecífica; seuvalorédadopelotempodetrabalho
socialmentenecessárioqueneleéincorporado,eeste,comovimos,nãoéconstante.Flutuaçõesnas
condiçõesconcretasdeproduçãoafetamovalordoouro(oudequalqueroutramercadoria-dinheiro).
Mastalmudançadevalor“atingetodasasmercadoriasaomesmotempoecaeterisparibus [todosos
outrosfatorespermanecendoiguais]mantéminalteradosseusvaloresrelativosrecíprocos,mesmoque
estesagoraseexpressemempreçosdeouromaioresoumenoresdoqueantes”(173,grifomeu).
Marx também introduz a prata como uma potencial mercadoria-dinheiro alternativa para
enfatizar o seguinte: embora pareça ser um padrão sólido de valor para a comparação dos valores
relativos de todas as outras mercadorias, o ouro se revela pouco estável para estabelecer o valor
absoluto (173). Se, como aconteceu na corrida do ouro de 1848, omercado é inundado de ouro,
ocorreumaquedarepentinadeseuvalor–amedidarepresentativadotempodetrabalhosocialmente
necessário – e todos os preços dasmercadorias têm de ser reajustados para cima (o que explica a
grande inflação do século XVI, quando os espanhóis introduziram o ouro da América Latina no
mercado).Tratamosamercadoria-dinheirosemprecomoalgodotadodeumvalordeusoconcreto,e
suas próprias condições de produção influenciam o modo como o valor é representado. Em anos
recentes,ospreçosdoourooscilaramparacimaeparabaixoemtodoomundo(porrazõesqueserão
tratadasmaisadiante).OqueMarxdesejaenfatizaraquiéque,mesmoquetodamercadoria-dinheiro
provoqueumamedidaoscilantedevalor,suainconstâncianãofaznenhumadiferençaparaosvalores
relativosdasmercadoriasquesãotrocadasnomercado(173,vertambém130).
Marxobservaaindaque,“comomedidadosvaloresepadrãodospreços,oourodesempenhadois
papéiscompletamentedistintos”.Aqui,surgedateoriadodinheiroumasubdualidadequenãodeve
serconfundidacomadistinçãomaiorentreodinheirocomomedidadevalorecomoummeiode
circulação. A mercadoria-dinheiro é a “medida de valor por ser a encarnação social do trabalho
humano” – essa é a representação “ideal” –, mas é também “o padrão de preços como um peso
metálicoestipulado”.Éesseúltimoaspectoquenospermitedizerquetalmercadoria“vale”defato
tantosgramasdeouro.Essaquantidade,opesodoouro,éoquetemosemmenteantes–eesperamos
ternobolsodepois–da trocadamercadoria.No entanto, “asdenominaçõesmonetáriasdospesos
metálicosseseparamprogressivamentedesuasdenominaçõesoriginaisporrazõesdiversas”(255-6)–
eessasrazõessãorazõeshistóricas.
Não há nenhuma teoria explícita do Estado n’O capital, mas, se mapearmos suas diversas
ocorrênciasaolongodotexto,veremosclaramentequeoEstadoexercefunçõesessenciaisnointerior
dosistemadeproduçãocapitalista(invocamosimplicitamenteessefatonocapítulo2,aoimaginaras
instituições da propriedade privada e ummercado de funcionamento perfeito). Uma das funções
mais importantes do Estado, como veremos, tem a ver com a organização do sistema monetário,
regulandoamoedaemantendoosistemamonetárioefetivoeestável.
Esses processos históricos transformaram emhábito popular a separação entre a denominaçãomonetária dos pesosmetálicos e os
nomes de suasmedidas habituais de peso. Como o padrãomonetário é, por um lado, puramente convencional, mas, por outro,
necessitadevalidadeuniversal,eleé,porfim,reguladoporlei.(174)
Adenominaçãomonetáriaéumconstrutofetichista.“Onomedealgoétotalmenteexterioràsua
natureza.NãoseinadadeumhomemquandoseiapenasqueelesechamaJacó.Domesmomodo,nas
denominaçõesmonetáriaslibra,táler,franco,ducadoetc.desaparecetodosinaldarelaçãodevalor”
(175). Ou seja, a relação com o tempo de trabalho socialmente necessário é, ainda por cima,
dissimulada por essas denominações monetárias. “O preço”, conclui Marx, “é a denominação
monetáriadotrabalhoobjetivadonamercadoria”(176).Adenominaçãomonetária(libras,ducados)
nãoéomesmoqueamercadoria-dinheiro(ouro),esuarelaçãocomovalorcomotempodetrabalho
socialmentenecessáriotorna-secadavezmaisopaca;maséimportantelembraradefiniçãodopreço
comoadenominaçãomonetáriadotrabalhoincorporadonumamercadoria.
Marx prossegue com duas observações importantes. Existe a possibilidade, diz ele, “de uma
incongruência quantitativa entre preço e grandeza de valor, ou o desvio do preço em relação à
grandezadevalor”,eessapossibilidadeéinerenteàprópriaforma-preço.“Issonãoénenhumdefeito
dessaforma,mas,aocontrário,aquiloquefazdelaaformaadequadaaummododeproduçãoemque
aregrasósepodeimporcomoaleimédiadodesregramentoqueseaplicacegamente”(117).Ouseja,
seeulevarminhamercadoriaaomercadoecolocarnelaumpreço(umadenominaçãomonetáriaou
umadadarepresentaçãodevalor),esevocêlevarumamercadoriasimilarecolocarnelaoutropreço,
e se um terceiro levar outra mercadoria similar e colocar nela outro preço, teremos ummercado
repleto de preços diferentes para uma mesma mercadoria. O preço médio que será efetivamente
alcançadoemdeterminadodiadependerádequantaspessoasdesejarãoamercadoriaequantasirão
aomercadoparavendê-la.Assim,opreçomédioalcançadooscilarádeacordocomasflutuaçõesnas
condiçõesdeofertaedemanda.
É por esse mecanismo que ocorre um equilíbrio de preço. Tal equilíbrio, ou aquilo que os
economistaspolíticosclássicoschamamdepreço“natural”,éopreçoalcançadoquandoaofertaea
demandachegamaumequilíbrio.Marxdirámais tardeque,nessepontodeequilíbrio,aofertaea
demanda deixam de explicar tudo. A oferta e a demanda não explicammais por que uma camisa
custa,emmédia,menosdoqueumpardesapatos,tampoucoqualéopreçodiferencialentrecamisas
e sapatos. Na visão de Marx, esse preço diferencial médio reflete o valor, o tempo de trabalho
socialmente necessário incorporado nas diferentes mercadorias. Num determinado dia, porém, as
flutuaçõesdepreçomostramoestadoemqueseencontraarelaçãoentreofertaedemandadesapatos
naquele dia e por que essa relação variou em comparação com o dia anterior. Assim, o fato de
colocarmosdenominaçõesmonetáriasnasmercadoriaseconvertermosamedidadevalornessaforma
ideal,aforma-preço,permitequeasflutuaçõesdepreçoequilibremomercado,aomesmotempoque
facilita a tarefa de identificar uma representação apropriada do valor como equilíbrio ou preço
natural.O que as flutuações nos preços produzem é uma convergência no trabalho médio socialmente
necessário para produzir uma mercadoria. Sem essa incongruência quantitativa não haveria como
transitardasvariaçõesdaofertaedademandanomercadoparaaconvergêncianopreçomédiosocial
querepresentaovalor.
Asegundaobservaçãoéaindamaisdifícildeabsorver:
Masaforma-preçopermitenãoapenasapossibilidadedeumaincongruênciaquantitativaentregrandezadevalorepreço,istoé,entre
a grandeza de valor e sua própria expressãomonetária,mas pode abrigar uma contradição qualitativa, demodo que o preço deixe
absolutamentedeserexpressãodevalor,emboraodinheironãosejamaisdoqueaforma-valordasmercadorias.Assim,coisasqueem
simesmasnãosãomercadorias,comoaconsciência,ahonraetc.,podemsercompradasdeseuspossuidorescomdinheiroe,mediante
seupreço,assumiraforma-mercadoria,demodoqueumacoisapodeformalmenteterumpreçomesmosemtervalor.Aexpressãodo
preçosetornaaquiimagináriatalcomocertasgrandezasdamatemática.Poroutrolado,tambémaforma-preçoimaginária–comoo
preçodosolonãocultivado,quenãotemvalorporquenelenenhumtrabalhohumanoestáobjetivado–abrigaumarelaçãoefetivade
valorouumarelaçãodeladerivada.(177)
Sepodemos colocarumaetiquetadepreçonumacoisa, então, emprincípio,podemos colocá-la
emqualquercoisa,inclusivenaconsciênciaenahonra,paranãofalardecriançasedepartesdonosso
corpo.Podemoscolocá-lanumrecursonatural,navisãodeumaqueda-d’água;podemoscolocá-lana
terra e especular com suas variações de preço. O sistema de preços pode operar em todas essas
dimensões e produzir incongruências tanto qualitativas como quantitativas. Isso coloca a seguinte
questão:seospreçospodemsercolocadosemqualquercoisa, independentementedeseuvalor,ese
podemflutuarquantitativamenteportodaparte,tambémindependentementedeseuvalor,entãopor
que Marx se fixa tanto na teoria do valor-trabalho? Não teriam razão os economistas políticos
convencionais–mesmohojeemdia–aoafirmarquetudooquepodemosobservaretudooquepode
ter um significado real está contido no conceito de preço, e, por conseguinte, a teoria do valor-
trabalhoéirrelevante?
Marx não defende sua escolha; não precisava defendê-la, porque a teoria do valor-trabalho era
amplamente aceita pelos ricardianos da época.Mas, hoje, a teoria do valor-trabalho é largamente
questionada ou abandonada,mesmo por alguns economistasmarxistas, por isso temos de fornecer
algumtipoderesposta.Marx,pensoeu,recorreriaaoconceitodebasematerial:setentássemostodos
viverdoespetáculodasquedas-d’águaoudocomérciodeconsciênciaouhonra,nãosobreviveríamos.
Aproduçãoreal,atransformaçãorealdanaturezapormeiodeprocessoslaborais,écrucialparanossa
existência, e é esse trabalho material que forma a base para a produção e a reprodução da vida
humana.Nãopodemosnosvestirdeconsciênciaehonra(lembre-sedafábuladaroupanovadorei),
tampoucodoespetáculodeumaqueda-d’água;as roupasnãochegamaténósdessemodo,maspor
meio dos processos de trabalho humano e da troca de mercadorias. Mesmo numa cidade como
Washington,quepareceseropalcodeumenormecomérciodeconsciênciasehonras,aquestãode
quemproduziunossocafédamanhã,assimcomoosaparelhoseletrônicos,opapel,osautomóveis,as
casaseasestradasquesustentamnossavidadiária,estásemprepresente.Fazerdecontaquetudoisso
é dadomagicamente pelomercado, facilitado pelamágica do dinheiro que se encontra em nosso
bolso, é sucumbir totalmente ao fetichismo da mercadoria. Para romper com o fetichismo,
necessitamosdoconceitodevalorcomotempodetrabalhosocialmentenecessário.
SeMarxestavacertoouerradoemtomaressaposição,cabeavocêdecidir.Mas,paraentenderO
capitalnospróprios termosdeMarx,você terádeaceitarumargumentodesse tipoao longodestas
linhas,aomenosatéchegaraofimdolivro.TambéméimportantereconhecerqueMarxprofessaalgo
deextremaimportância:osistemadepreçosé,naverdade,umaaparênciasuperficialquepossuisua
própria realidade objetiva (ele é de fato “tal como parece ser”), assim como uma função vital – a
regulaçãodasflutuaçõesdeofertaedemanda,queconvergemnumequilíbriodepreços–,equeesse
sistema, em seus próprios termos, pode facilmente sair do controle. Como veremos ainda nesse
capítulo, as incongruências quantitativas e qualitativas têm sérias consequências para o
funcionamento do sistema de mercado e das formas dinheiro. (Elas podem gerar não só a
possibilidade,mastambémainevitabilidadedecrisesfinanceirasemonetárias!)
Mas o pressuposto deMarx – do qual teremos de compartilhar, se quisermos compreender seu
pensamento–équeovalor,comotempodetrabalhosocialmentenecessário,estánocentrodetudo.
Seassumirmosqueosvaloressãofixos(apesardeasconstantesmudançasnatecnologiaenasrelações
sociaisenaturaismostraremexatamenteocontrário),veremospreçosflutuaremaoredordospreços
“naturais”,queconsistemnoequilíbrio entre aoferta e ademanda.Esse equilíbriodopreçoéuma
mera aparência, uma representação do tempo de trabalho socialmente necessário que gera o valor
cristalizado em dinheiro. E é ao redor desse valor que os preços demercado efetivamente flutuam
(176).Ospreçosdemercadosedesviamdeseusvaloresdemaneiraconstanteenecessária;senãoo
fizessem, não haveria como equilibrar omercado.Quanto às incongruências qualitativas, algumas
(comoaespeculaçãocomovalorearendadaterra)têmumpapelmaterialimportante(quesóserá
examinado no Livro III) nos processos de urbanização e na produção de espaço.Mas essa é uma
questãoquenãopodemosconsideraraqui.
Item2:Omeiodecirculação
EstudarosparágrafosintrodutóriosdeMarxémuitoútil,porquecostumamindicaroargumento
outemageralquedevemosteremvista.Elenoslembraaquique“vimosqueoprocessodetrocadas
mercadorias inclui relações contraditórias e mutuamente excludentes” (178). A que ele se refere?
Vamos voltar ao item sobre as formas relativa e equivalente de valor. Lá, ele identificou três
peculiaridades da mercadoria-dinheiro. A primeira é que “o valor de uso se torna a forma de
manifestação de seu contrário, o valor”; a segunda, o “trabalho concreto se torna [...] expressão do
trabalho humano abstrato”; e a terceira, “esse trabalho concreto [...], embora seja trabalho privado
como todos os outros, trabalho que produz mercadorias, [...] é trabalho em forma imediatamente
social”(132-5).
Oouroéumamercadoriaparticular,produzidaeapropriadaporpessoasprivadas,dotadadeum
valordeusoparticularcontudotodasessasparticularidadesestãodealgummodoocultasnointerior
do equivalente universal da mercadoria-dinheiro. “O desenvolvimento da mercadoria não elimina
essas contradições”, observa Marx, “porém cria a forma em que elas podem se mover.” Aqui há
algumaspistas–presteatençãoemespecialàfrase“aformaemqueelas[ascontradições]podemse
mover”–acercadanaturezadométododialéticodeMarx.Dizele:
Esseé,emgeral,ométodocomquesesolucionamcontradiçõesreais.É,porexemplo,umacontradiçãoofatodequeumcorposeja
atraído por outro e, ao mesmo tempo, afaste-se dele constantemente. A elipse é uma das formas de movimento em que essa
contradiçãotantoserealizacomoseresolve.(178,grifomeu)
Anteriormente, descrevi a dialética como uma forma de lógica expansionista. Algumas pessoas
gostam de pensar que a dialética diz respeito exclusivamente a tese, antítese e síntese,mas o que
Marxdizaquiéquenãoexistesíntese.Oqueexisteéapenasainternalizaçãodacontradiçãoesua
acomodaçãonumgraumais elevado.As contradiçõesnunca sãodefinitivamente resolvidas; podem
ser apenas repetidas num sistema demovimento perpétuo (como a elipse) ou em escala cada vez
maior.No entanto,hámomentos aparentesde resolução,por exemploquando a forma-dinheiro se
cristalizanatrocapararesolveroproblemadacirculaçãoeficientedasmercadorias.Issosignificaque
podemos respirar aliviados,dargraças aDeuspor termosodinheiro,que éumaboa síntese, enão
pensar mais no assunto? Não, diz Marx, temos de analisar as contradições que a forma-dinheiro
interioriza–contradiçõesquesetornamproblemáticasnumaescalamaior.Há,porassimdizer,uma
expansãoperpétuadascontradições.
Por essa razão, fico irritado compessoas que descrevem a dialética deMarx comoummétodo
fechado de análise. Ela não é finita; ao contrário, está sempre em expansão, e aqui ele mostra
precisamentecomoissoocorre.PrecisamosapenasreveraexperiênciaquetivemosaolerOcapital:o
movimento de sua argumentação é uma constante remodelação, recontextualização e expansão do
campodascontradições.IssoexplicaporqueMarxserepetetanto.Cadapassoadianteexigequeele
retorne a uma contradição anterior para explicar a origem da próxima. Refletir sobre as passagens
introdutóriasajudaaesclarecerosentidodopensamentodeMarx,porqueelasdãoumaideiamelhor
sobreaquiloqueeleestátentandofazeremcadaitemàmedidaqueseusargumentossedesdobram.
Podemosveresseprocessoemfuncionamentonosegundoitemdocapítulosobreodinheiro,no
qualMarxexaminaoquechamade“metabolismosocial”e“metamorfosedasmercadorias”pormeio
da troca.A troca, comovimos,produzuma“duplicaçãodamercadoria emmercadoria edinheiro”.
Estes,quandoemação,movem-seemdireçõesopostasacadatrocademãos.Enquantoomovimento
de um (a troca de dinheiro) facilita o da outra (omovimento dasmercadorias), ocorre um fluxo
oposto,quecriaapossibilidadeparaosurgimentode“formasantiéticas”(178-9).Issoabreocaminho
paraaanálisedametamorfosedasmercadorias.
Atrocaéumatransaçãoemqueovalorsofreumamudançadeforma.Marxchamaessacadeiade
movimentos – mercadoria em dinheiro, dinheiro em mercadoria – de relação “M-D-M”. (O
movimento “M-D-M” é diferente domovimento “M-M”,mercadoria pormercadoria, ou escambo;
agora,todasastrocassãomediadaspelodinheiro.)Trata-sedeumaduplametamorfosedovalor:de
MemDedeDemM(179-80).
Superficialmente, essas formas do valor parecem imagens refletidas num espelho, portanto
equivalentes em princípio;mas, na verdade, elas são assimétricas.O ladoM-D da troca, a venda,
implica a mudança de forma de uma mercadoria particular em seu equivalente universal, a
mercadoria-dinheiro. Trata-se de ummovimento do particular para o universal. Para vender uma
mercadoriaparticular, você temdeencontrarnomercadoalguémqueaqueira.Oqueacontece se
vocêvaiaomercadoeninguémquerasuamercadoria?Issolevaaumasériedequestõessobrecomoa
necessidade–eaproduçãodenecessidadespelapropaganda,porexemplo–influenciaoprocessode
troca:
Talvezamercadoriasejaoprodutodeumnovomododetrabalho,quesedestinaàsatisfaçãodeumanecessidaderecém-inauguradaou
pretendeelaprópriaengendrarumanovanecessidade[...].Oprodutosatisfazhojeumanecessidadesocial.Amanhãépossívelqueele
sejatotalouparcialmentedeslocadoporoutrotipodeprodutosemelhante.(180)
Assim,a transformaçãodeMemDécomplicada,emgrandeparte,pelascondiçõesdeofertae
demandaexistentesnomercadonummomentoparticular:
Comosepodever,amercadoriaamaodinheiro,mas“thecourseoftrueloveneverdoesrunsmooth”[emtempoalgumteveumtranquilo
cursooverdadeiroamor]
[g]
.Tãonaturalmente contingentequantooqualitativo éoquantitativodoorganismo socialdeprodução,
queapresentaseusmembradisjecta[membrosamputados]nosistemadadivisãodotrabalho.(182)
Emoutraspalavras,amãoinvisíveldomercado–ocaosdastrocasmercantis,aincertezacrônica
inerente a elas – põe todo tipo de obstáculo à conversão direta da mercadoria em equivalente
universal.
M-D-Méumprocesso singular–uma troca–quepode servistode seusdois “polos” (182).O
ladoD-Mdatroca,acompra,éatransiçãododinheiroparaamercadoria;elerealizaummovimento
douniversalparaoparticular.MasessenãoéapenasooutroladodomovimentoM-D.Emprincípio,
trocardinheiroporumamercadoriaémuitomaisfácil:vocêvaiaomercadocomdinheironobolsoe
compratudooquequiser.Éclaroquecompradorespotenciaispodemeventualmentesefrustrar,não
encontrandooquedesejam;mas,nessecaso,graçasàequivalênciauniversaldamercadoria-dinheiro,
elessemprepodemcompraroutracoisaqualquer.
Noprocessodetroca,portanto,ovalorsemovedeumestado(odamercadoria)paraoutro(odo
dinheiro),evice-versa.Vistoemseuconjunto,esseprocesso
consisteemdoismovimentosantitéticosemutuamentecomplementares,M-DeD-M.Essasduasmutaçõesantiéticasdamercadoria
serealizamemdoisprocessossociaisantitéticosdopossuidordemercadoriase serefletememdoiscaractereseconômicosantiéticos
dessepossuidor[...].Comoamesmamercadoriapercorresucessivamenteasduasmutaçõesinversas,[...]assimomesmopossuidorde
mercadoriasdesempenhaalternadamenteospapéisdevendedorecomprador.(184-5)
AênfasedeMarxnasantítesessinalizaumacontradiçãopotencial,masnãoentrecompradorese
vendedores,porqueestes“nãosãofixos,mas,antes,personagensconstantementedesempenhadospor
pessoas alternadas no interior da circulação de mercadorias”. A contradição tem de estar na
metamorfosedasmercadoriastomadasemconjunto,istoé,nacirculaçãodasmercadoriasemgeral,
umavezque“aprópriamercadoriaéaquideterminadademaneiraantiética”:éaomesmotempoum
nãovalordeusoparaoproprietário e, comoobjetode compra,umvalordeusoparao comprador
(185).
Esseprocesso–acirculaçãodemercadorias–écadavezmaismediadopelodinheiro.Note,mais
umavez,comoaexpansãodasrelaçõesdetrocaéimportanteparaoargumentodeMarx:
Vemos,porumlado,comoatrocademercadoriasrompeasbarreirasindividuaiselocaisdatrocadiretadeprodutosedesenvolveo
metabolismodo trabalhohumano.Poroutro, desenvolve-seumcírculo completode conexõesque, embora sociais, impõemcomo
naturais,nãopodendosercontroladasporseusagentes.(186)
Portanto,ondeestáacontradiçãonoprocessodecirculaçãodemercadorias?Aocontráriodeuma
mercadoriacomprada,que, sendoumvalordeusoparaoconsumidor,pode“sairdecirculação”,o
dinheironãodesaparece.Ele continua a semovimentar, ede talmodoque “a circulação transpira
dinheiroportodososporos”(186).Comisso,Marxlançaumataqueviolentoedefinitivoàchamada
leideSay,quetinhaumpoderextraordinárionaeconomiapolíticaclássicaeaindahojeéumacrença
inabalávelentreoseconomistasmonetaristas
[1]
.OeconomistafrancêsJ.B.Sayafirmavaquenãopode
ocorrerumacrisegeraldesuperproduçãonocapitalismo,porquetodavendaéumacompra,etoda
compraéumavenda.Segundoessalógica,hásemprealgumtipodeequilíbrioentrecomprasevendas
nomercado:mesmoquehajaumasuperproduçãodesapatosemrelaçãoacamisas,oudelaranjasem
relaçãoamaçãs,umasuperproduçãogeneralizadanasociedadeéimpossível,porqueháequivalência
absolutaentrecomprasevendas.
Marxfazaseguinteobjeção:
Nadapodesermaistolodoqueodogmadequeacirculaçãodemercadoriasprovocaumequilíbrionecessáriodevendasecompras,
umavezquecadavendaéumacompra,evice-versa.Seissosignificaqueonúmerodasvendasefetivamenterealizadaséomesmodas
compras,trata-sedepuratautologia[...].Ninguémpodevendersemqueoutrocompre.Masninguémprecisacomprarapenaspelo
fato de elemesmo ter vendido [...].Dizer que esses dois processos independentes e antitéticos [isto é,M-D eM-D] formamuma
unidade interna significa dizer que sua unidade interna se expressa em antíteses externas. Se, completando-se os dois polos um ao
outro, a autonomização externa [...] avança até certo ponto, a unidade se afirma violentamente por meio de uma crise. A antítese,
imanente àmercadoria, entre valor de uso e valor na forma do trabalho privado que aomesmo tempo tem de se expressar como
trabalhoimediatamentesocial,naformadotrabalhoparticulareconcretoqueaomesmotempoétomadoapenascomotrabalhogeral
abstrato,dapersonificaçãodascoisasecoisificaçãodaspessoas–essacontradiçãoimanenteadquirenasantítesesdametamorfoseda
mercadoriasuas formasdesenvolvidasdemovimento.Por isso, tais formas implicamapossibilidadedecrises,masnãomaisquesua
possibilidade.(186-7)
Lamentodizerque,paradesenvolverplenamente essapossibilidadede crise, você teráde leros
livrosIIeIII,alémdostrêsvolumesdeTeoriasdomais-valor,porque,comodizMarx,precisamossaber
muito antes de poder explicar em detalhes de onde surgem as crises. Para o nosso objetivo, no
entanto,éimportantenotarquea“transformaçãodecoisasempessoasedepessoasemcoisas”fazeco
aoargumentoapresentadonoprimeirocapítulosobreofetichismo.
NocentrodaobjeçãodeMarxaSayencontramososeguinteargumento:começocomM,passo
paraD,masnãohánadaquemeobrigueagastarimediatamenteodinheiroemoutramercadoria.Se
eu quisesse, poderia simplesmente guardar o dinheiro; poderia fazer isso, por exemplo, se não
confiasse na economia ou estivesse inseguro quanto ao futuro e quisesse poupar. (O que você
prefeririateràmãoemtemposdifíceis:umamercadoriaparticularouoequivalenteuniversal?)Maso
que aconteceria com a circulação de mercadorias em geral se todo mundo decidisse de repente
guardar seudinheiro?Acompraeacirculaçãodemercadoriascessariam,oque levariaaumacrise
generalizada.Senomundointeiroaspessoasdecidissemnãousarseuscartõesdecréditodurantetrês
dias, a economia global correria um sério perigo. (Lembre como, após o 11 de Setembro, os norte-
americanosforamestimuladosasacarseuscartõesdecréditoevoltaràscompras.)Essaéarazãode
tantoesforçoparatirardinheirodonossobolsoemantê-locirculando.
NaépocadeMarx,amaioriadoseconomistas, inclusiveRicardo,aceitavamaleideSay(187-8,
nota73).Efoiemparteporinfluênciadosricardianosqueessaleidominouopensamentoeconômico
durantetodooséculoXIXeseestendeuatéosanos1930,quandohouveumacrisemundial.Seguiu-
seentãoumcorodeeconomistas(comoatéhojeétípico)quediziacoisascomo:“Nãoteriahavido
crise se a economia tivesse se comportado de acordo com meu manual!”. A teoria econômica
dominante, que negava a possibilidade de crises generalizadas, tornou-se indefensável depois da
GrandeDepressão.
Em1936, JohnMaynardKeynes publicouTeoria geral do emprego, do juro e damoeda
[b]
, em que
abandona de vez a lei de Say. Em Essays in Biography [Ensaios em biografia], de 1933, Keynes
reexaminouahistóriada leideSayeoqueviacomosuasconsequências lamentáveisparaa teoria
econômica.Eledágrandeimportânciaaoquechamadearmadilhadaliquidez,pelaqual,quandohá
umtumultonomercado,aquelesquetêmdinheiroficamnervososedecidampoupá-lo,aoinvésde
investi-lo ou gastá-lo, oqueprovocaumaquedanademandademercadorias.Deumahorapara a
outra, as pessoas não conseguem mais vender suas mercadorias. A incerteza cria cada vez mais
perturbações no mercado, e mais pessoas passam a poupar seu dinheiro, fonte de sua segurança.
Consequentemente,aeconomiainteirainiciaumaespiraldescendente.Keynesdefendiaque,nesses
casos,ogovernodeveriaentraremcenaereverteroprocessopormeiodacriaçãodeestímulosfiscais.
Issoatrairiaodinheiroacumuladodevoltaparaomercado.
Comovimos,Marx tambémconsidera a leideSayumdogma tolon’Ocapital, e desde os anos
1930háumdebate sobrea relaçãoentreas teorias econômicasmarxianas ekeynesianas.Marxestá
claramentedoladodaqueleseconomistaspolíticosquedefendemapossibilidadedecrisesgerais–na
literaturadaépoca,esseseconomistaseramchamadosde teóricosda“superproduçãogeral” [general
glut] e eram relativamente poucos. Um deles era o francês Simondi; outro era Thomas Malthus
(célebrepor sua teoriadapopulação),oquedecerta forma foiuma infelicidade,porqueMarxnão
toleravaMalthus,comoveremosmaisadiante.
Keynes,poroutrolado,louvadesmesuradamenteMalthusemEssaysinBiography,mascitamuito
poucoMarx–talvezporrazõespolíticas.Naverdade,KeynesdizianuncaterlidoMarx.Suspeitoque
eleotenhalido,mas,mesmoquenãootenha,estavacercadodepessoasquehaviamlidoMarx,como
a economista JoanRobinson, e certamente informaramKeynes de que ele rejeitava a lei de Say.A
teoria keynesiana dominou o pensamento econômico no período pós-guerra; seguiu-se então a
revolução anti-keynesiana do fim dos anos 1970. A teoria monetarista e neoliberal, ainda hoje
predominante, tendemuitomaisaaceitar a leideSay.Aquestãodo statuspróprioda leideSayé
interessantecomoobjetodeinvestigaçãoposterior,mas,paraosnossospropósitos,oqueimportaéa
rejeiçãoenfáticadessaleiporMarx.
OpassoseguintenaargumentaçãodeMarxéaanálisedacirculaçãododinheiro.Nãodedicarei
muito tempo aos detalhes dessa questão, pois o que Marx faz é basicamente revisar a literatura
monetaristadaépoca.Aquestãoqueelecolocaaquié:quantodinheiroéprecisoparafazercircular
uma dada quantidade demercadorias? Ele aceita uma versão daquilo que era chamado de “teoria
quantitativa da moeda”, similar à teoria monetária de Ricardo. Após várias páginas de discussão
minuciosa,elechegaaumasupostalei:aquantidadedomeiocirculanteé“determinadapelasoma
dospreçosdasmercadorias emcirculaçãoepelavelocidademédiadocursododinheiro” (196). (A
velocidadedacirculaçãododinheiroésimplesmenteumamedidadataxacomqueamoedacircula,
porexemplo:quantasvezesnumdiaumanotadedólartrocademãos.)Antes,noentanto,eledizque
“os três fatores: omovimentodospreços, aquantidadedemercadorias emcirculação e, por fim, a
velocidadedocursododinheiropodemvariaremdiferentessentidosediferentesproporções”(195).
Portanto, a quantidade necessária de dinheiro varia consideravelmente, dependendo do
comportamento dessas três variáveis.Quando se descobre umamaneira de acelerar a circulação, a
velocidadedodinheirotambémaumenta,comoocorre,porexemplo,comousodecartõesdecrédito
e bancos eletrônicos: quantomaior a velocidade do dinheiro,menos dinheiro é necessário, e vice-
versa. Não há dúvida de que o conceito da velocidade do dinheiro é importante, e ainda hoje o
FederalReservetentaconseguirmedidasomaisprecisaspossível.
ConsideraçõessobreateoriaquantitativadamoedalevamMarxdevoltaaoargumentocitadono
início deste capítulo – o de que, para a circulação de mercadorias, pequenos grãos de ouro são
ineficientes.Émuitomaiseficienteusarobjetos simbólicos,moedas,papelou,comoacontecehoje
emdia,númerosnumateladecomputador.Mas“acunhagemdemoedas”,dizMarx,“assimcomoa
determinação do padrão dos preços, [...] é tarefa que cabe ao Estado” (198). Portanto, o Estado
desempenhaumpapelvitalnasubstituiçãodemercadorias-dinheirodemetalporformassimbólicas.
Marx ilustra isso comuma imagembrilhante: “Nos diferentes uniformes nacionais que o ouro e a
pratavestem,masdosquaisvoltamasedespojarnomercadomundial,manifesta-seaseparaçãoentre
as esferas internas ou nacionais da circulação das mercadorias e a esfera universal do mercado
mundial”(198).Aimportânciadomercadoedodinheiromundialéreafirmadanofimdessecapítulo.
Localmente, a busca por formas eficientes de dinheiro é primordial. “A moeda divisionária é
introduzida,paralelamenteaoouro,paraopagamentodefraçõesdamoedadeourodemenorvalor”,
o que leva então ao “papel-moeda emitido pelo Estado e de circulação compulsória” (200). O
surgimentodesímbolosdodinheirotrazmuitasoutraspossibilidadeseproblemas:“Opapel-moedaé
signodoouroousignodedinheiro.Suarelaçãocomosvaloresdasmercadoriasconsisteapenasem
que estes estão idealmente expressos nas mesmas quantidades de ouro simbólica e sensivelmente
representadaspelopapel”(202).
Marxobservatambém“que,assimcomoodinheirodepapelsurgedafunçãododinheirocomo
meiodecirculação, tambémodinheirocreditíciopossuisuasraízesnaturais-espontâneasnafunção
dodinheirocomomeiodepagamento”(200).Amercadoria-dinheiro,oouro,ésubstituídaportodo
tipo demeio de pagamento, comomoedas, cédulas de papel e crédito. Isso ocorre porque o ouro,
medido por peso, é ineficiente comomeio de circulação. É “socialmente necessário” abandonar o
ourocomopesoeoperarcomessasoutrasformassimbólicasdedinheiro.
Esseéumargumentológico,históricoouambos?Nãohádúvidadequeahistóriadasdiferentes
formasdedinheiroeahistóriadopoderestatalestãointimamenteentrelaçadas.Masascoisastêmde
serassim,istoé,existeumpadrãoinevitávelparaessasrelações?Atéoiníciodosanos1970,amaioria
dos papéis-moeda era supostamente conversível em ouro. Era isso que lhes dava sua pretensa
estabilidade,ou,comodiriaMarx,sua“relacionalidade”comovalor.Noentanto,dosanos1920em
diante,aconversãodedinheiroemourofoiproibidaapessoasprivadasemmuitospaísesereservada
sobretudoparaastrocasentrepaísesparaequilibrarabalançafinanceira.Osistemadesmoronouno
fim dos anos 1960 e início dos anos 1970, e hoje temos um sistema puramente simbólico, sem
nenhumabasematerialclara–umamercadoria-dinheirouniversal.
Querelaçãoexistehojeentreosváriospapéis-moedas(porexemplo,dólares,euros,pesos,ienes)e
ovalordasmercadorias?Emboraaindatenhaumpapelinteressante,oouronãofuncionamaiscomo
base para a representação do valor. A relação entre as moedas e o tempo de trabalho socialmente
necessário,quejáéproblemáticamesmonocasodoouro,tornou-seaindamaisremotaealusiva.Mas
dizer que ela é oculta, remota e alusiva não significa que ela exista. As turbulências nosmercados
financeiros internacionais têm a ver com as diferenças de produtividade material nas diferentes
economias nacionais. A relação problemática entre as formas-dinheiro e os valores-mercadoria
existentes queMarx ressalta persiste até hoje, e estámuitomais aberta à linha de análise que ele
inaugurou,aindaquesuaformaatualdemanifestaçãosejamuitodiferente.
Item3:Dinheiro
Marxexaminouodinheirocomoumamedidadevalore reveloualgumasdesuascontradições,
particularmente no que diz respeito a suas funções “ideais” como o preço e as consequentes
“incongruências” na relação entre preços e valores. Observando o dinheiro do ponto de vista da
circulação, ele revelou outro conjunto de contradições (inclusive a possibilidade de crises
generalizadas).Agora–oqueé típicodeMarx–ele retomaoassuntoediz:no fimdascontas,há
apenasumdinheiro.Issosignificaque,decertomodo,ascontradiçõesentreodinheirocomouma
medidadevaloreodinheirocomoummeiodecirculaçãoprecisamde“espaçoparasemover”,ou
talveztenhammesmodeserresolvidas.
Elecomeçareiterandoaideiafundamentaldodinheirocomo“amercadoriaquefuncionacomo
medidadevalore,dessemodo,tambémcomomeiodecirculação,sejaemseuprópriocorpooupor
meiodeumrepresentante”(203).Voltamosassimaoconceitounitário,masagoratemosdeexaminar
comoas contradições anteriormente identificadaspodemoperar emseu interior.O fimdovínculo
entre o valor e sua expressão dá espaço para manobra, mas à custa do contato com uma base
monetáriarealesólida.Nesseponto,Marxpenetraprofundamentenascontradiçõesquecaracterizam
essaformaevoluídadosistemamonetário.Elecomeçaconsiderandoofenômenodoentesouramento:
Comoprimeirodesenvolvimentodacirculaçãodasmercadorias,desenvolve-setambémanecessidadeeapaixãodereteroprodutoda
primeira metamorfose, a figura transformada da mercadoria ou sua crisálida de ouro. A mercadoria é vendida não para comprar
mercadoria,maspara substituir a forma-mercadoriapela forma-dinheiro.De simplesmeiodometabolismo, essamudançade forma
converte-se em fim de si mesma [...]. Com isso, o dinheiro se petrifica em tesouro e o vendedor de mercadorias se torna um
entesourador.(144)
(Essapassagemprenunciaoutrotipodeprocessodecirculação,noqual,comoveremos,M-D-Mé
vistocomoD-M-D,eaobtençãodedinheirosetornaumfimemsimesmo.)
Masporqueaspessoasfariamisso?Marxofereceumarespostaduplaemuitointeressante.Deum
lado,temosodesejoapaixonadopelopoderdodinheiro,mas,deoutro,temosanecessidadesocial.
Porqueoentesouramentoésocialmentenecessárioparaatrocademercadorias?Marxinvocaaquio
problemada coordenação da venda e da compra demercadorias que consomem tempos diferentes
paraserproduzidaselevadasaomercado.Umagricultorproduznumabaseanual,mascompranuma
basediária;portanto,eleprecisaacumularreservasentreumacolheitaeoutra.Qualquerpessoaque
queiracomprarumartigodegrandemonta(comoumacasaouumcarro)precisaantesentesourar
dinheiro – amenos que tenha acesso ao sistema de crédito. “Dessemodo, em todos os pontos do
intercâmbiosurgemtesourosdeouroeprata,dosmaisvariadostamanhos”(205).
Masacapacidadedeentesourarosmeiosdetroca(numdesafioàleideSay)tambémvemdeuma
paixão, a “avidez por ouro”. “O impulso para o entesouramento”, diz Marx, “é desmedido por
natureza”. Como atesta Cristóvão Colombo: “O ouro é uma coisa maravilhosa! Quem o possui é
senhordetudooquedeseja.Comoouropode-seatémesmoconduzirasalmasaoparaíso”(205).Ao
citarColombo,Marxretornaàideiadeque,sevocêpodecolocarumaetiquetadepreçonumacoisa,
podecolocá-laemqualquercoisa–atémesmonaalmadeumapessoa,comosugereaalusãoàinfame
vendade indulgências (isto é, de perdões papais queprometiam a entradanoCéu) praticadapela
IgrejaCatólicanaIdadeMédia:“Acirculaçãosetornaagranderetortasocial,naqualtudoélançado
paradelasaircomocristaldedinheiro.Aessaalquimianãoescapamnemmesmoosossosdossantos
[...]”(205).
A venda de indulgências é considerada em geral uma das primeiras grandes ondas da
mercantilização capitalista. Certamente lançou as bases para toda aquela riqueza entesourada no
Vaticano.Efala-sedemercantilizaçãodaconsciênciaedahonra!
Não há nada que não sejamensurável em dinheiro; na circulação demercadorias, ele “apaga,
comoumlevellerradical,todasasdiferenças”(205).Essaideiadodinheirocomoum levellerradialé
muito importante. Indica certa democracia, um igualitarismododinheiro: umdólarnomeubolso
tem omesmo valor de umdólar no seu bolso.Tendo dinheiro suficiente, podemos comprar nosso
lugarnocéu,poucoimportandoospecadosquetenhamoscometido!
Masodinheirotambém“é,elepróprio,umamercadoria,umacoisaexterna,quepodesetornara
propriedade privada de qualquer um. Assim, a potência social torna-se potência privada da pessoa
privada” (205). Esse é umpasso vital na argumentação deMarx.Note como ele faz eco à terceira
“peculiaridade”daforma-dinheiroreveladanoitemsobreosvaloresrelativoeequivalente–istoé,a
tendênciadodinheirodetornarotrabalhoprivadoummeiodeexpressãoparaotrabalhosocial.Com
esse passo, no entanto,Marx inverte aquela formulação inicial da relação lógica entre dinheiro e
trabalho. Lá, o problema era que as atividades privadas estavam envolvidas na produção do
equivalenteuniversal.Agora,eledescrevecomopessoasprivadaspodemseapropriardoequivalente
universal para suas próprias finalidades privadas – e começamos a vislumbrar a possibilidade de
concentraçãodepoderprivadoe,eventualmente,depoderdeclasseemformamonetária.
Issonemsempretranscorreubem.“Asociedadeantigaodenuncia[odinheiro][...]comoamoeda
da discórdia de sua ordem econômica emoral” (206). Esse é um tema longamente explorado por
MarxnosGrundrisse, emquedescrevecomoodinheirodestruiuacomunidadeantiga, tornando-se
elemesmoacomunidade,acomunidadedodinheiro
[c]
.Essemundoéomesmoemquevivemoshoje.
Podemosfantasiarquepertencemosaestaouaquelacomunidadecultural,mas,naprática,dizMarx,
nossacomunidadeprimáriaédadapelacomunidadedodinheiro–osistemadecirculaçãouniversal
quepõenossocafédamanhãnamesa–,gostemosdissoounão:“asociedademoderna,quejánasua
infância arrancouPlutodas entranhasda terrapelos cabelos, saúdanoGraaldeouroa encarnação
resplandecentedeserprincípiovitalquelheémaispróprio”(206).
Opodersocialqueodinheiroproporcionanãotemlimite.Maspormaisdesenfreadoquesejao
impulso de entesouramento, há uma limitação quantitativa ao entesourador: a quantidade de
dinheiro que ele possui num dado momento. “Tal contradição entre a limitação quantitativa e a
ilimitação qualitativa do dinheiro empurra constantemente o entesourador de volta ao trabalho de
Sísifo da acumulação” (206, grifosmeus). Essa é a primeiramenção à acumulação n’O capital, e é
importante observar que Marx chega a ela revelando a contradição inerente ao ato de
entesouramentodedinheiro.
Aspotencialidadesilimitadasdaacumulaçãomonetáriasãoumobjetofascinantedereflexão.Há
umlimite físicoàacumulaçãodevaloresdeuso.Dizemque ImeldaMarcospossuíacercade2mil
pares de sapatos, mas essa enorme quantidade de sapatos continua sendo um montante finito.
QuantasFerrarisou“McMansions”vocêpodeter?Comopoderdodinheiro,océuéolimite.Não
importaquantodinheiroganhe, tododiretor executivooubilionárioquer epodeganharmais.Em
2005,osprincipaisgerentesdefundosdeinvestimentodosEstadosUnidosreceberamcercade250
milhões de dólares como remuneração pessoal, mas em 2008 vários deles, inclusive George Soros,
ganharamcercade3bilhõesdedólares.Aacumulaçãodedinheirocomopodersocialilimitadoéum
traçoessencialdomododeproduçãocapitalista.Quandoaspessoasprocuramacumularessepoder
social, começam a se comportar de forma diferente.Uma vez que o equivalente universal se torna
uma representação de todo o tempo de trabalho socialmente necessário, as possibilidades de uma
acumulaçãoprogressivasãoilimitadas.
As consequências são inúmeras. Omodo de produção capitalista é essencialmente baseado na
acumulaçãoinfinitaenocrescimentoilimitado.Outrasformaçõessociais,emalgumpontohistórico
ou geográfico, chegam a um limite e, quando isso acontece, desmoronam.Mas a experiência do
capitalismo,comalgumasfasesóbviasdeinterrupção,caracteriza-seporumcrescimentoconstantee
aparentementeilimitado.Ascurvasdecrescimentoqueilustramahistóriadocapitalismoemtermos
de produto, riqueza e dinheiro em circulação são impressionantes (assim como as consequências
sociais,políticaseambientaisradicaisqueimplicam).Essasíndromedecrescimentonãoseriapossível
se não fosse o modo aparentemente ilimitado de acumulação da representação de valor emmãos
privadas.Nadadissoéexplicitamentemencionadon’Ocapital,maspodenosajudaraestabeleceruma
ligaçãoimportante.Marxestáconstruindoseuargumentosobreacontradiçãoentreapotencialidade
ilimitadadaacumulaçãodedinheiro-podereaspossibilidades limitadasdaacumulaçãodevalorde
uso. Isso, como veremos, prenuncia sua explanação sobre a natureza dinâmica e expansionista do
crescimentodaquiloquehojechamamosdecapitalismo“globalizado”.
Nesseponto,noentanto,elesimplesmenteassumeopontodevistadoentesourador,paraquema
acumulaçãoilimitadadepodersocialnaformadedinheiroéumincentivosignificativo(deixandode
lado o incentivo secundário representado pelo valor estético agregado aos belos objetos de ouro e
prata). Marx observa que o entesouramento tem uma função potencialmente útil em relação à
contradição entre o dinheiro como medida de valor e como meio de circulação. O dinheiro
entesouradoconstituiumareservaquepodeserpostaemcirculação,sehouverumsúbitoaumentona
produçãodemercadorias,epodeserretida,seaquantidadededinheironecessáriaparaacirculação
diminuir(porexemplo,emvirtudedeumaumentodevelocidade).Dessemodo,aformaçãodeum
tesourotorna-secrucialpararegular“asaltasebaixas”dodinheiroemcirculação(207).
Aextensãocomqueumtesouropodeexerceressafunçãodepende,noentanto,dequesejausado
demaneira apropriada.Comoodinheiroentesouradodeve ser colocadonovamente emcirculação,
quandonecessário?Aumentar opreço relativodoouro e daprata, por exemplo, poderia induzir as
pessoas a gastar com mercadorias que se tornaram relativamente mais baratas. A ideia é que “as
reservasservem,aomesmotempo,comocanaisdeafluxoerefluxododinheiroemcirculação,oqual,
assimregulado,jamaisextravasaseuscanaisdecirculação”(207).
Marxanalisaentãoasimplicaçõesdodinheiroqueéusadocomomeiodepagamento.Maisuma
vez,oproblemabásicotratadoaquisurgedetemporalidadescruzadasdediferentestiposdeprodução
demercadorias.Umagricultorproduzumasafraquepodeserpostanomercadoemsetembro.Como
osagricultoresvivemduranteorestodoano?Elesprecisamdedinheirocontinuamente,masganham
todooseudinheirodeumavezsó,umavezporano.Umasolução,emvezdoentesouramento,éusar
odinheirocomomeiodepagamento.Issocriaumhiatotemporalentreatrocademercadoriaseas
trocas monetárias: é preciso estabelecer uma data futura de liquidação. (A Festa de São Miguel
Arcanjotornou-seumadatatradicionaldeacertodecontasnaGrã-Bretanha,representandoociclo
agrícola no país
[d]
.) As mercadorias circulam “fiado”. O dinheiro se converte em moeda contábil,
lançadaemlivrocomercial.Comonenhumdinheiroémovimentadoatéadatadeliquidação,menos
dinheiro agregado é necessário para fazer circular asmercadorias, o que ajuda a resolver a tensão
entreodinheirocomomedidadevalorecomomeiodecirculação(208).
Oresultadoéumnovotipoderelaçãosocial–aqueleentredevedoresecredores–,quedáorigem
aumaespéciediferentedetransaçãoeconômicaeaumadinâmicasocialdiferente.“Ovendedorse
torna credor, e o comprador, devedor. Como aqui se altera a metamorfose da mercadoria ou o
desenvolvimento de sua forma-valor, também o dinheiro recebe outra função. Torna-se meio de
pagamento”(208).
Masnoteque“opapeldecredoroudevedorresulta,aqui,dacirculaçãosimplesdemercadorias”,
masépossíveltambémqueessepapelseoriginedapassagemdeformasocasionais,transitórias,para
umaoposição“suscetíveldeumamaiorcristalização”–peloqueMarxentendeumarelaçãodeclasses
maisdefinida. (Elecomparaessadinâmicaà lutadeclassesnomundoantigoeàdisputana Idade
Médiaqueterminou“comaderrocadadodevedorfeudal,queperdeseupoderpolíticojuntamente
com sua base econômica” (209).)Há, portanto, uma relação de poder no interior da relação entre
devedorecredor,emborasuanaturezaaindatenhadeserdeterminada.
Qual é então o papel do crédito na circulação geral demercadorias? Suponha que eu seja um
credorevocêprecisededinheiro.Eulheemprestocertaquantiaagoracoma ideiaderecebê-lade
voltadepois.AformadacirculaçãoéD-M-D,queémuitodiferentedeM-D-M.Porqueeucolocaria
dinheiroemcirculaçãoparaterdevoltaamesmaquantiadedinheiro?Nãohánenhumavantagem
paramimnessaformadecirculação,anãoserqueeurecebadevoltamaisdinheirodoqueemprestei.
(Talvezjáestejaclaroaondelevaessaanálise.)
Segue-seumapassagemcrucial,cujaimportânciapodefacilmentepassardespercebida,emparte
porqueMarxaapresentanumalinguagemcomplicada.Cito-aquasetoda:
Voltemosàesferadacirculaçãodemercadorias.Deixoudeexistiraapariçãosimultâneadosequivalentesmercadoriaedinheironosdois
polos do processo da venda. Agora, o dinheiro funciona, primeiramente, como medida de valor na determinação do preço da
mercadoriavendida.Seupreçoestabelecidoporcontratomedeaobrigaçãodocomprador,istoé,asomadedinheiroqueeledevepagar
numdeterminadoprazo.Emsegundolugar,funcionacomomeioidealdecompra.Emboraexistaapenasnapromessadedinheirodo
comprador,eleoperanatrocademãosdamercadoria.Éapenasnovencimentodoprazoqueomeiodepagamentoentraefetivamente
emcirculação, isto é,passadasmãosdo compradorpara asdovendedor.Omeiode circulação converteu-se em tesouroporqueo
processo de circulação se interrompeu logo após a primeira fase, ou porque a figura transformada da mercadoria foi retirada da
circulação.Omeiodepagamentoentranacirculação,masdepoisqueamercadoriajásaiudela.Odinheironãomedeiamaisoprocesso.
Eleapenasoconcluidemodoindependente,comoformadeexistênciaabsolutadovalordetrocaoumercadoriauniversal.Ovendedor
converteu mercadoria em dinheiro a fim de satisfazer uma necessidade por meio do dinheiro; o entesourador, para preservar a
mercadorianaforma-dinheiro;odevedor,parapoderpagar.Seelenãopaga,seusbenssãoconfiscadosevendidos.Afiguradevalorda
mercadoria, odinheiro, torna-se, agora, o fimprópriodavenda, e isso emvirtudedeumanecessidade socialquederivadopróprioprocessode
circulação.(209,grifosmeus)
Decodificado,issosignificaqueénecessáriohaverumaformadecirculaçãoemqueodinheiroé
trocadocomafinalidadedeconseguirdinheiro:D-M-D.Essaéumamudançadeperspectivaquefaz
umaenormediferença.Seoobjetivo é conseguiroutros valoresdeusopormeiodaprodução eda
troca de mercadorias, ainda que mediadas pelo dinheiro, estamos lidando com M-D-M. Em
contrapartida,D-M-D é uma forma de circulação em que o objetivo é dinheiro, nãomercadorias.
Para que isso tenha lógica, é preciso que eu consiga de volta mais dinheiro do que aquele que
desembolsei. É nesse ponto d’O capital que vemos pela primeira vez a circulação de capital
cristalizando-seapartirdacirculaçãodemercadorias,mediadapelascontradiçõesdaforma-dinheiro.
Háumagrandediferençaentreacirculaçãodedinheirocomoummediadordatrocademercadorias
e o dinheiro usado como capital.Nem todo dinheiro é capital.Uma sociedademonetizada não é
necessariamenteumasociedadecapitalista.SetudoseresolvessecomoprocessodecirculaçãoM-D-
M,odinheiroseriaumsimplesmediadorenadamais.Ocapitalsurgequandoodinheiroépostoem
circulaçãocomointuitodeconseguirmaisdinheiro.
VamosfazerumapausapararefletirumpoucosobreanaturezadoargumentodeMarxatéaqui.
Neste ponto, podemos dizer que a expansão da troca de mercadorias conduz necessariamente ao
adventodaforma-dinheiroeacontradiçãointernanessaforma-dinheiroconduznecessariamenteao
surgimentodaformacapitalistadecirculação,emqueodinheiroéusadoparaganharmaisdinheiro.
Esseé,emlinhasgerais,oargumentod’Ocapitalatéomomento.
Temosdedecidir,emprimeirolugar,seesseargumentoéhistóricooulógico.Seéumargumento
histórico,entãoexisteumateleologiadahistóriaemgeraleumahistóriacapitalistaemparticular;o
surgimentodocapitalismoéumpassoinevitávelnahistóriahumanaeresultadasexpansõesgraduais
da troca de mercadorias. Podemos encontrar afirmações de Marx que sustentam essa visão
teleológica,eousofrequentequeelefazdapalavra“necessário”certamenteapoiaessainterpretação.
Deminhaparte,nãoestouconvencidodissoe,seMarxacreditavadefatonisso,pensoqueeleestava
errado.
Ficamos então como argumento lógico, que, ameu ver, émuitomais convincente.Ele foca a
metodologiaaplicadanodesenrolardaargumentação:aoposiçãodialéticaerelacionalentreovalor
de uso e o valor de troca incorporados na mercadoria; a exteriorização dessa oposição na forma-
dinheiro, comoummodode representarovalor e facilitar a trocademercadorias; a interiorização
dessacontradiçãopela forma-dinheiro, simultaneamentemeiodecirculaçãoemedidadevalor; ea
resolução dessa contradição pela emergência de relações entre devedores e credores no uso do
dinheirocomomeiodepagamento.Podemosagoraentenderodinheirocomoopontodepartidae
dechegadadeumprocessopeculiardecirculaçãochamadocapital.AlógicadoargumentodeMarx
revela as relações dialéticas interiorizadas que caracterizam um modo de produção capitalista
(entendido como uma totalidade) plenamente desenvolvido, do tipo engendrado (por razões
históricascontingentes)apartirdoséculoXVI,emparticularnaInglaterra.
Épossível,naturalmente, estabelecerumcompromissocomoargumentohistórico,pormeioda
simples conversão do termo “necessidade” em “possibilidade”, ou mesmo “probabilidade” ou
“verossimilhança”.Diríamosentãoqueascontradiçõesnaforma-dinheirocriaramapossibilidadedo
surgimentodaformacapitalistadecirculação,eapontaríamosatémesmoascircunstânciashistóricas
específicasemqueaspressõesqueemanamdessascontradiçõespodemcrescerapontodeprovocara
quebra do capitalismo.Muito do queMarx atribui à “necessidade social” parece indicar isso. Do
mesmo modo, poderíamos indicar as intensas barreiras que tiveram de ser desenvolvidas nas
sociedades “tradicionais” para impedir a dominação da forma capitalista de circulação e as
instabilidadessociaisqueessassociedadesexperimentaramaosersubmetidasaperíodosregularesde
fomeeescassez, sejademercadorias, sejade fornecimentodeouroouprata.Emdiferentesépocas,
diversas ordens sociais (como a chinesa) padeceram a seumodo dessas contradições, sem cair na
dominaçãodocapital.SeaChinacontemporâneajáentrounocampocapitalistaoupodecontinuara
domarotigrecapitalistaéumaquestãodegrandeimportânciaeobjetodemuitosdebates.Devo,no
entanto,concluircomumasériedequestõesqueprecisamserconsideradas.
N’Ocapital,Marxpassaàanálisedequestõesmaisespecíficas.“Afunçãododinheirocomomeio
depagamento”,observaele,“trazemsiumacontradiçãodireta”:
Namedida emque os pagamentos se compensam, ele funciona apenas idealmente, comomoeda da conta oumedida dos valores.
Quandosetratadefazerumpagamentoefetivo,odinheironãoseapresentacomomeiodecirculação,comomeraformaevanescentee
mediadoradometabolismo,mascomoaencarnação individualdotrabalhosocial,existênciaautônomadovalordetroca,mercadoria
absoluta.(210-1)
Querdizer,quandoodinheiroépostoemcirculaçãopararesolveressedesequilíbrio,aquelesque
odesembolsamnãoofazemporbondade,emrespostaàsnecessidadesdosoutrosouàdemandado
mercado por uma oferta maior de dinheiro. Eles o fazem, ao contrário, de modo proposital, por
alguma outra razão, e devemos entender que razão é essa.Mas a “independência” damercadoria
universalesuaseparaçãodacirculaçãocotidianatêmconsequênciasprofundas.
Nesseponto,aargumentaçãodeMarxsofreumareviravoltasurpreendente:
Essa contradição emergenomomentodas crisesdeprodução ede comércio, conhecidas como crisesmonetárias.Ela ocorre apenas
onde a cadeia permanente de pagamentos e um sistema artificial de sua compensação encontram-se plenamente desenvolvidos.
Ocorrendo perturbações gerais nessemecanismo, venham elas de onde vierem, o dinheiro abandona repentina e imediatamente sua
figurapuramenteidealdemoedadecontaeconverte-seemdinheirovivo.Elenãopodemaissersubstituídopormercadoriasprofanas.
(211)
Em outras palavras, você não pode quitar suas dívidas assinandomais notas promissórias; para
pagá-las,vocêprecisaconseguirdinheirovivo,oequivalenteuniversal.Issolevaàquestãosocialem
geral:deondesairáodinheirovivo?Marxcontinua:
Ovalor de uso damercadoria se torna sem valor, e seu valor desaparece diante de sua forma de valor própria. Ainda há pouco, o
burguês,comatípicaarrogânciapseudoesclarecidadeumaprosperidadeinebriante,declaravaodinheirocomoumaloucuravã.Apenas
amercadoriaédinheiro.Masagoraseclamaportodapartenomercadomundial:apenasodinheiroémercadoria!Assimcomooveado
berrapor água fresca, tambémsua almaberrapordinheiro, aúnica riqueza.Nacrise, aoposição entre amercadoria e sua figurade
valor, o dinheiro, é levada até a contradição absoluta. Por isso, a forma demanifestação do dinheiro é aqui indiferente. A fome de
dinheiroéamesma,quersetenhadepagaremouro,emdinheirocreditícioouemcédulasbancáriasetc.(211)
Em2005,acreditava-seunanimementequeumimensoexcedentedeliquidezhaviainundadoos
mercados mundiais. Os banqueiros tinham fundos superabundantes e emprestavam dinheiro para
qualquer um, inclusive, como vimos mais tarde, para pessoas sem nenhum histórico de crédito.
Comprar uma casa sem ter renda? Claro, por que não? O dinheiro não tem importância, pois
mercadorias na forma de imóveis são terreno seguro.Mas os preços das casas pararam de subir e,
quando as dívidas tiveram de ser quitadas, cada vezmenos pessoas podiam pagá-las.Quando isso
acontece,aliquidezdesaparecedesúbito.Ondeestáodinheiro?Repentinamente,oFederalReserve
tevedeinjetarfundosmaciçosnosistemabancário,porque“odinheiroéaúnicamercadoria”.
Como Marx ironiza em outro lugar, em fases de prosperidade econômica todos agem como
protestantes – com base na pura fé. Quando sobrevém a crise, porém, todos buscam refúgio no
“catolicismo”dabasemonetária,noouro.Masénessesmomentosquesecolocaaquestãodosvalores
reaisedaforma-dinheiroconfiável.Qualéarelaçãoentreaproduçãorealeoqueacontecenaquelas
fábricas de dívidas engarrafadas em Nova York? Essas são as questões que Marx nos apresenta,
questões das quais nos esquecemos em épocas de bonança, mas que voltam a nos assombrar nos
momentos de crise. O sistema monetário, destacando-se ainda mais do sistema de valor do que
quando se baseava no padrão-ouro, abre caminho para as possibilidades mais temerárias, com
consequênciasdevastadorasparaasrelaçõessociaisenaturais.
Asúbitaescassezdomeiodecirculação,emcertomomentohistórico,podegerarigualmenteuma
crise.Aretiradadecréditodecurtoprazodomercadopodequebraraproduçãodemercadorias.Um
bomexemplodissoocorreunolesteenosudoestedaÁsiaentre1997e1998.Companhiassaudáveis,
queproduziammercadorias,contraíramdívidasenormes,maspoderiamterescapado facilmenteda
insolvência não fosse uma súbita retirada de liquidez de curto prazo. Os banqueiros fecharam os
canaisdecrédito,aeconomiaquebrouecompanhiasviáveisforamàfalênciaporfaltadeacessoaos
meiosdepagamento.Por fim, foramarrematadasporbancosecapitalocidentaisporquasenada.A
liquidezfoirecuperada,aeconomiarevigoradaeascompanhiasfalidasvoltaramaserviáveis.Aúnica
diferença é que agora elas pertencemaosbancos e aopessoal deWall Street, quepodemvendê-las
comenormelucro.NoséculoXIX,houveváriasdessascrisesdeliquidezeMarxasacompanhoude
perto.Oanode1848foipalcodeumaprofundacrisedeliquidez.Easpessoasqueterminaramaquele
anoimensamentemaisricasepoderosasforam–adivinhequem?–aquelasquecontrolavamoouro,
istoé,osRothschilds.Eleslevaramosgovernosàbancarrotasimplesmenteporquetinhamocontrole
do ouro naquele momento. N’O capital, Marx mostra que a possibilidade desse tipo de crise é
imanenteaomodocomoosistemamonetáriosemovesobocapitalismo(211).
IssolevaMarxamudarateoriaquantitativadamoeda,insistindoquequantomenoréademanda
dedinheiro,maisospagamentosseequilibrammutuamenteemaisdinheiroseconverteemsimples
meiodepagamento. “Circulammercadorias cujo equivalente emdinheiro só apareceránumadata
futura.”Dessemodo, “dinheiro creditício surgediretamenteda funçãododinheiro comomeiode
pagamento,quandocertificadosdedívidarelativosàsmercadoriasvendidas”–oque,emWallStreet,
foiinstitucionalizadocomoobrigaçõesdedívidacolateralizadas[collaterizeddebtobligations–CDOs]–
“circulamafimdetransferiressasdívidasparaoutrem”(212-3).
Poroutro lado,quandoosistemadecréditoseexpande,omesmoocorrecomafunçãododinheirocomomeiodepagamento.[...]
Quandoaproduçãodemercadoriasatingiucertograudedesenvolvimento,afunçãododinheirocomomeiodepagamentoultrapassa
a esfera da circulação das mercadorias. Ele se torna a mercadoria universal dos contratos. Rendas, impostos etc., deixam de ser
fornecimentosinnaturaesetornampagamentosemdinheiro.(213-4)
Com isso, Marx antecipa tanto a monetização de tudo quanto a propagação do crédito e do
capitalfinanceiro,edeummodoquetransformariaradicalmenteasrelaçõessociaiseeconômicas.
Aquestão fundamental é que “odesenvolvimentododinheiro comomeiodepagamento torna
necessária a acumulação de dinheiro para a compensação das dívidas nos prazos de vencimento”
(215).Maisumavez,aacumulaçãoeoentesouramentosãoequiparados,mastêmfunçõesdiferentes:
“Assim, seporum ladooprogressoda sociedadeburguesa fazdesaparecero entesouramento como
formaautônomadeenriquecimento,elaofazcrescer,poroutrolado,naformadefundosdereserva
demeiosdepagamento”(215).
IssolevaMarxamudarateoriaquantitativadamoedaanteriormenteapresentada:aquantidade
totaldedinheirorequeridaemcirculaçãoéasomadasmercadorias,multiplicadaporseuspreçose
modificada pela velocidade e pelo desenvolvimento dos meios de pagamento. A isso devemos
acrescentarumfundodereserva(umtesouro)quepermitiráflexibilidadeemtemposdefluxo(215).
(Nascondiçõesatuais,éevidentequeessefundodereservanãoéprivado,maséprerrogativadeuma
instituiçãopública;nosEstadosUnidos, essa instituição émuito apropriadamentedesignada como
FederalReserve
[e]
.)
OtópicoCdoitem3tratadodinheiromundial.Comovimos,parafuncionar,qualquersistema
monetárioexigeumaprofundaparticipaçãodoEstadocomoreguladordesímbolosemoedasecomo
supervisordaqualidadeedaquantidadedodinheiro(e,naépocaatual,comogerentedofundode
reserva). Estados individuais gerenciam seu sistema monetário de modo particular e, ao fazê-lo,
podemterumgrandepoderdiscricionário.Masexisteummercadomundial,easpolíticasmonetárias
nacionais não podem isentar os Estados dos efeitos disciplinares que derivam das trocas de
mercadoriasrealizadasnessemercadomundial.Assim,seéverdadequeoEstadopodeterumpapel
crucialnaestabilizaçãodosistemamonetáriodentrodesuasfronteirasgeopolíticas,poroutroladoele
estáligadoaomercadomundialesujeitoàsuadinâmica.Marxapontaopapeldosmetaispreciosos:o
ouroeapratatornaram-se,porassimdizer,a linguafrancadosistemafinanceiromundial.Essabase
metálicafoivitaltantointernamentequantonasrelaçõesexternas(internacionais)(216-9).
Assim,asegurançadadaporessabasemetálicaepelaforma-dinheiro(moedas,emparticular)que
deladerivatornou-seessencialparaocapitalismoglobal.Éinteressantenotarque,aomesmotempo
que John Locke pedia tolerância religiosa e condenava a prática de mandar os hereges para a
fogueira,seucolegaIsaacNewtonerachamadoadefenderaqualidadedasmoedascomomestreda
RoyalMint
[f]
. Ele teve de resolver o problema da desvalorização causada pelo costume de raspar a
pratadasmoedaspara fazermaismoedas (um jeito fácil de fazer dinheiro, se pensarmosbem).Os
condenadosporessapráticaerampublicamenteenforcadosemTyburn–ofensascontraDeuseram
perdoadas,masofensascontraocapitalecontraMamonmereciamapenademorte!
Isso nos conduz ao problema da relevância dos argumentos de Marx num mundo em que o
sistemafinanceiro funcionasemumamercadoria-dinheiro,umabasemetálica,comoeraocasoaté
1971. Você pode notar que o ouro continua importante e talvez se pergunte se, nestes tempos
turbulentos, demercados cambiais instáveis, deve entesourar ouro,dólares, eurosou ienes.Oouro
não saiu inteiramente de cena, e há quem defenda o retorno de uma versão do padrão-ouro para
contrabalançar as instabilidades e a especulação caóticaque frequentementeperturba as transações
financeiras internacionais.Oouro,devemos lembrar, édescritoporMarx simplesmente comouma
representaçãodo valor, do tempode trabalho socialmente necessário.Oque aconteceu a partir de
1973 foi uma mudança no modo de representação do valor. Mas o próprio Marx aponta várias
alterações nas formas de representação commoedas, papel-moeda, crédito e coisas do gênero, de
modo que, nesse sentido, não há nada na situação atual que desafie seumodo de análise.O que
ocorre,comefeito,équeovalordeumamoedaparticular,quandoconfrontadocomovalordetodas
as outras moedas, é (ou deveria ser) determinado em termos do valor do conjunto total de
mercadoriasproduzidasnumaeconomianacional.Comoaprodutividadegeraldeumaeconomiaé
umavariávelimportante,aênfaserecainaprodutividadeenaeficiênciadaspolíticaspúblicas.
SeaderirmosàlógicadeMarx,teremosimediatamentedeobservarascontradiçõesquedecorrem
dessasituação.Paracomeçar,háaficçãodeumaeconomianacionalquecorrespondeaos“uniformes
nacionais” dasmoedas nacionais. Tal economia é um “ideal”, uma ficção que se tornou real pela
coletadeumagrandequantidadedeestatísticasdeprodução, consumo, troca,bem-estar etc.Essas
estatísticassãocruciaisparaavaliaroestadodeumanaçãoetêmumpapelimportante,afetandoas
taxas de câmbio entre as moedas. Quando as estatísticas sobre a confiança do consumidor e o
emprego são favoráveis, amoeda sevaloriza.Tais estatísticas constroema ficçãodeumaeconomia
nacional quando, na realidade, isso não existe; nos termos de Marx, trata-se de um construto
fetichista. Mas especuladores podem entrar em ação e desafiar esses dados (muitos dos quais
fundados sobre bases bastante frágeis) ou sugerir que certos indicadores sãomais importantes que
outrose,casoesses indicadoresprevaleçam,elespodemapostarnasvariaçõescambiaiseterganhos
extraordinários. George Soros, por exemplo, ganhou bilhões de dólares em poucos dias apostando
contraalibrainglesaemrelaçãoaoMecanismoEuropeudeTaxasdeCâmbio;acabouconvencendoo
mercadodequetinhaavisãomaisacuradadaeconomianacional.
O que Marx conseguiu com seu modo de análise foi construir um caminho convincente de
entendimento do nexo frágil e problemático entre o valor (o tempo de trabalho socialmente
necessário incorporado nasmercadorias) e as formas comque o sistemamonetário representa esse
valor.Ele revelanão sóoque é fictício e imaginárionessas representações e em suas consequentes
contradições, mas também que o modo de produção capitalista não pode funcionar sem esses
elementos ideais. Não podemos eliminar o fetichismo, como ele mesmo observou, e estamos
condenadosavivernummundoàsavessas,derelaçõesmateriaisentrepessoasederelaçõessociais
entrecoisas.Asoluçãoéavançarnaanálisedascontradiçõesinerentes,entendercomoelassemovem
eabremnovaspossibilidadesdedesenvolvimento(comoosistemadecrédito),bemcomodecrises.O
método marxiano de investigação me parece exemplar, mesmo que tenhamos de adaptá-lo para
compreendernossadelicadasituaçãoatual.
Umúltimoponto.Esse capítulo sobre odinheiro é rico, complicado e difícil de absorvernuma
primeira leitura. Por essa razão, comecei observando que muitas pessoas desistem da leitura d’O
capitalquandochegamaocapítulo3.Esperoqueoquevocêtenhaencontradosejasuficientemente
desafiadorparamotivá-lo a continuarna leitura,mas vai gostarde saberquenãoprecisa entender
todoocapítuloparaprosseguir.Muitodoqueéditoaquiémaisrelevanteparaosoutrosvolumesdo
queparaorestantedoLivroI.Munidosdealgumasproposiçõesbásicas–porémessenciais–desse
capítulo,épossívelcompreenderorestodomaterialsemgrandesdificuldades.Apartirdesteponto,a
argumentaçãosetornamuitomaisfácil.
[a]ReferênciaàfaladeLisandroemSonhodeumanoitedeverão,deShakespeare,emComédias(trad.CarlosAlbertoNunes,RiodeJaneiro,
Agir,2008),ato1,cena1.(N.T.)
[1]Ver a sofisticada defesa dessa lei que o economista conservadorThomas Sowell faz em Says Law: AnHistorical Analysis (Princeton,
PrincetonUniversityPress,1972).
[b]SãoPaulo,NovaCultural,1996.(N.E.)
[c]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.166.(N.E.)
[d]A Festa de SãoMiguel Arcanjo (Michaelmas) é celebrada no dia 29 de setembro. Por ser próxima do equinócio, é tradicionalmente
associadaaocomeçodooutononohemisférionorte.(N.T.)
[e]FederalReserve(literalmente:“ReservaFederal”)éonomedoBancoCentraldosEstadosUnidos.(N.T.)
[f]ACasadaMoedainglesa.(N.T.)
3.Docapitalàforçadetrabalho
Passamos,agora,aocapítulo4
[a]
,quetratadosconceitosdecapitaleforçadetrabalho.Essecapítulo,
como você verá, é muito mais direto e claro do que aqueles que tratamos anteriormente. Há
momentosemqueeleparecequaseóbvio,eàsvezesnossurpreendemosqueideiastãosimplessejam
submetidas a uma discussão tão elaborada, em particular quando ideias tão difíceis foram
apresentadas quase sem explicação nos capítulos anteriores. Até certo ponto, isso é resultado do
período em queMarx escreveu. Qualquer pessoa interessada em economia política naquela época
estavafamiliarizadacomateoriadovalor-trabalho(sebemquenaformaricardiana),aopassoquenós
não só não temos familiaridade com ela, como vivemos numa época em que a maioria dos
economistas,emesmomuitosmarxistas,consideram-naindefensável.SeMarxtivesseescritoOcapital
emnossos dias, teria de apresentar uma forte defesa dessa teoria, em vez de simplesmente supô-la
óbvia.Emcontrapartida,omaterialabordadonospróximoscapítulossignificava,naépocadeMarx,
umdistanciamentoradicalemrelaçãoaopensamentoconvencional,porémsoamuitomaisfamiliar
aosleitoresdehoje.
Nessecapítulo,noentanto,ocorreumagrandetransiçãonoargumento,eéimportantequevocê
perceba isso desde o início.O capital começa com um modelo de troca baseado no escambo de
mercadorias,noqualseimagina(irrealisticamente)quetemposdetrabalhosocialmentenecessáriose
equivalentessãotrocados.MarxpassaentãodessarelaçãoM-Mparaaanálisedecomoastrocassão
mediadas egeneralizadaspelo surgimentoda forma-dinheiro.Umaanálise cuidadosadesse sistema
de trocaM-D-M nos leva, ao fim do capítulo sobre o dinheiro, a identificar a forma D-M-D de
circulação, emqueodinheiro se transforma em finalidade eobjetoda troca.NocircuitoM-D-M,
uma trocade valores equivalentes faz sentido, porque sua finalidade é obter valores deuso.Quero
camisasesapatos,masnãoqueroasmaçãseasperasqueproduzi.Contudo,quandosechegaaD-M-
D, a troca de equivalentes parece absurda. Por que passar por todas as turbulências e riscos desse
processo para, no fim, obter amesma quantia de dinheiro que eu tinha no início?D-M-D só faz
sentidoseresultanumincrementodevalor,D-M-D+ΔD,queédefinidocomomais-valor.
Isso leva à seguintequestão:deondevemessemais-valor, se as leisda troca,D-MeM-D, tais
comopressupostasnaeconomiapolíticaclássica,estabelecemumatrocadeequivalentes?Paraqueas
leisdatrocafuncionemcomoateoriadetermina,énecessárioencontrarumamercadoriaquetenhaa
capacidadedeproduzirumvalormaiordoqueoqueelaprópriapossui.Talmercadoria,diráMarxno
terceiroitemdocapítulo4,éaforçadetrabalho.Essaéagrandetransiçãorealizadaaolongodesse
capítulo.Ofococomeçaamudardatrocademercadoriasparaacirculaçãodocapital.
Há,no entanto,um traço importanteno capítulo4,quemereceuma análisepreliminar. Jáme
perguntaram várias vezes se Marx desenvolve um argumento lógico (baseado numa crítica das
proposições utópicas da economia política liberal clássica) ou um argumento histórico sobre a
evoluçãodocapitalismoefetivamenteexistente.Semprepreferialeituralógicaàhistórica,aindaque
tenhamos importantes insights históricos quando consideramos as circunstâncias necessárias à
facilitaçãodo surgimentodomodode produção capitalista (como a açãodoEstado em relação às
diferentesformasdinheiro).Esseprocedimentoparecesercoerentecomoargumentometodológico
que Marx desenvolve em outro lugar, em que afirma que só podemos entender corretamente a
história se olharmos retrospectivamente do ponto emque nos encontramos hoje. Esse é seu ponto
centralnosGrundrisse:
A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. Por essa razão, as categorias que
expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações de
produçãodetodasasformasdesociedadedesaparecidas,comcujosescombroseelementosedificou-se,partedosquaisaindacarrega
consigocomoresíduosnãosuperados,parte[que]nelasedesenvolvemdemerosindíciosemsignificaçõesplenasetc.Aanatomiado
serhumanoéumachaveparaaanatomiadomacaco.
[b]
Mas,se“osindíciosdeformassuperiores[...]sópodemsercompreendidosquandoaprópriaforma
superior jáéconhecida”, issonãodevenos induziraprocurarosprotótiposdas“relaçõesburguesas
em todas as formas de sociedade” ou a pensar “que as categorias da economia burguesa têm uma
verdade para todas as outras formas de sociedade”
[c]
.Marxnão aceita uma interpretaçãoWhig da
história ou uma simples teleologia. A revolução burguesa reconfigurou fundamentalmente os
elementos preexistentes em novas formas, ao mesmo tempo que nos permitiu ver esses elementos
preexistentessobumanovaluz.
CAPÍTULO4:ATRANSFORMAÇÃODODINHEIROEMCAPITAL
Item1:Afórmulageraldocapital
Nesses três itens, a leitura da história parece ter um papel importante e independente na
teorização. Marx começa o item 1, por exemplo, com uma afirmação histórica: “O comércio e o
mercadomundiais inauguram,no séculoXVI, a históriamoderna do capital”.Oponto de partida
lógicoéaafirmaçãoparaleladequea“circulaçãodasmercadoriaséaprimeiraformadeapariçãodo
capital”(223).Assim,osargumentoslógicosehistóricossãoimediatamentejustapostos.Porisso,se
quisermosentendercomoasprescriçõesmetodológicasdadasnosGrundrissesãopostasemprátican’O
capital,temosdeprestarmuitaatençãoaomodocomoessesargumentosatuamemconjuntonesses
trêsitens.
Marxcomeçaexaminandocomoocapitalismoconfrontouhistoricamenteopoderdapropriedade
fundiária na transição do feudalismo para o capitalismo. Nessa transição, o capital comercial e o
capitalusurário–formasespecíficasdecapital–desempenharamumimportantepapelhistórico.Mas
essasformasdecapitalsãodiferentesda“moderna”formaindustrialdecapitalqueMarxconsidera
essencial para ummododeprodução capitalista plenamentedesenvolvido (223-4).Adissoluçãoda
ordemfeudal,istoé,dopoderdapropriedadefundiáriaedocontrolefeudalsobreaterra,realizou-se
em grande parte pelos poderes do capital comercial e da usura. Esse é um tema que encontramos
fortemente articuladonoManifestoComunista,mas que tambémocupaum lugar lógicon’O capital,
poisoquevemosnocapitalusurário,emparticular,éopodersocialindependentedodinheiro(edos
possuidoresdedinheiro),umpoderque,comodemonstrouocapítulosobreodinheiro,ésocialmente
necessário no modo de produção capitalista. É por meio do desenvolvimento desse poder
independentequeausuraeosusuráriosajudaramaderrubarofeudalismo.
Voltamosaopontodepartidaparaentenderopapeldodinheiro(comoopostoàmercadoria)no
processode circulação.Odinheiropode serusadopara fazer circular asmercadorias,paramediro
valor,paraarmazenarriqueza,eassimpordiante.Ocapital,noentanto,édinheirousadodemodo
determinado.NãoapenasoprocessoD-M-DéumainversãodoprocessoM-D-M,mas,comoMarx
observou no capítulo anterior, “o dinheiro não se apresenta comomeio de circulação, comomera
forma evanescente e mediadora do metabolismo, mas como a encarnação individual do trabalho
social,existênciaautônomadovalorde troca,mercadoriaabsoluta”(211).Arepresentaçãodovalor
(dinheiro), em outras palavras, torna-se o escopo e o objetivo da circulação. Esse processo de
circulação, no entanto, “seria absurdo e vazio se a intenção fosse realizar, percorrendo seu ciclo
inteiro, a trocadeummesmovalor emdinheiropelomesmovalor emdinheiro, ou seja, £100por
£100”(224).Atrocadevaloresiguaiséperfeitamentecorretacomrespeitoavaloresdeuso,portanto
oqueimportaéaqualidade.MasaúnicarazãológicaparaentrarnacirculaçãoD-M-D,comovimos
no capítulo 3, é termais valor no final doqueno começo.Depois de certo esforço,Marx chega à
conclusãobastanteóbvia:
Assim,oprocessoD-M-Dnãodeve seuconteúdoanenhumadiferençaqualitativade seusextremos,poisambos sãodinheiro,mas
apenasàsuadistinçãoquantitativa.Aofinaldoprocesso,maisdinheiroétiradodecirculaçãodoquenelaforalançadoinicialmente.O
algodãocompradopor£100érevendidopor100+£10,oupor£110.Aformacompletadesseprocessoé,portanto,D-M-D’,onde
D’=D+ΔD, istoé,àquantiadedinheiro inicialmenteadiantadamaisumincremento.Esse incremento,ouexcedentesobreovalor
original,chamodemais-valor(surplusvalue).(227)
Com isso, chegamos pela primeira vez ao conceito de mais-valor, que, evidentemente, é
fundamentalparatodaaanálisemarxiana.
Oque acontece é que “o valor originalmente adiantadonão se limita, assim, a conservar-sena
circulação,masnelamodificasuagrandezadevalor,acrescentaaessagrandezaummais-valor,ouse
valoriza. E esse movimento o transforma em capital” (227). Aqui, finalmente, está a definição de
“capital”.ParaMarx,ocapitalnãoéumacoisa,masumprocesso–maisespecificamente,umprocesso
de circulação de valores. Tais valores são incorporados em diferentes coisas em vários pontos do
processo: inicialmente, comodinheiro e, em seguida, comomercadoria, antesde retornar à forma-
dinheiro.
Ora, essa definição do capital como processo é de extrema importância. Ela marca um
distanciamentoradicalemrelaçãoàdefiniçãoqueencontraremosnaeconomiapolíticaclássica,em
que o capital era tradicionalmente entendido como um estoque de recursos (máquinas, dinheiro
etc.),assimcomoemrelaçãoàdefiniçãopredominantenaciênciaeconômicaconvencional,naqualo
capital é visto como uma coisa, um “fator de produção”. Na prática, a ciência econômica
convencional tem uma grande dificuldade emmedir (valorar) o fator de produção que é capital.
Assim,eles simplesmenteorotulamdeKeo inserememsuasequações.Mas,narealidade, sevocê
pergunta “o que éK e como obtemos umamedida dele?”, a questão está longe de ser simples.Os
economistas lançammãode todosos tiposdemedidas,masnãoconseguemchegaraumconsenso
sobreoqueocapitalrealmente“é”.Eleexiste,comefeito,naformadedinheiro,mastambémexiste
comomáquinas,fábricasemeiosdeprodução;ecomoatribuirumvalormonetárioindependenteaos
meiosdeprodução,independentedovalordasmercadoriasqueelesajudamaproduzir?Comoficou
evidenciado na assim chamada controvérsia sobre o capital no início dos anos 1970, toda a teoria
econômica contemporânea corre o perigoso risco de estar fundada numa tautologia: o valor
monetáriodeKnaformafísicaderiquezaédeterminadoporaquiloqueeledeveriaexplicar,asaber,
ovalordasmercadoriasproduzidas
[1]
(186-7).
Uma vez mais, Marx vê o capital como um processo. Eu poderia fazer capital agora mesmo,
bastando tirar dinheiro do meu bolso e colocá-lo em circulação para fazer mais dinheiro. Ou eu
poderiatirarcapitaldecirculaçãosimplesmenteresolvendorecolocarodinheironomeubolso.Segue-
se, então, que nem todo dinheiro é capital. O capital é dinheiro usado de uma certa maneira. A
definição de capital não pode ser divorciada da escolha humana de lançar o dinheiro-poder nesse
mododecirculação.Masissocolocatodoumconjuntodeproblemas.Antesdetudo,háaquestãode
quantoincrementoocapitalpoderender.Lembremo-nosqueumadasdescobertasnocapítulosobreo
dinheiro foi que a acumulação de dinheiro-poder é potencialmente ilimitada;Marx a repete aqui
(210-1,230-1).Seu significadopleno,noentanto, só serádesenvolvidomais tarde (particularmente
noscapítulos21e22).
Diz Marx: “como portador consciente desse movimento, o possuidor de dinheiro se torna
capitalista.Suapessoa,oumelhor, seubolso, éopontodepartidaede retornododinheiro” (229).
Dissosesegueque“ovalordeusojamaispodeserconsideradoafinalidadeimediatadocapitalista”.
Quer dizer, o capitalista produz valores de uso apenas para ganhar valor de troca. Na verdade, o
capitalistanãosepreocupasobrequalouquetipodevalordeusoéproduzido;poderiaserqualquer
tipo de valor de uso, contanto que ele permita ao capitalista obter o mais-valor. A finalidade do
capitalista é, o que não surpreende, o “incessante movimento da obtenção de ganho” (229). Isso
pareceoenredodeEugêniaGrandet,deBalzac
[d]
!
Esseimpulsoabsolutodeenriquecimento,essacaçaapaixonadaaovalorécomumaocapitalistaeaoentesourador,mas,enquantoo
entesourador é apenas um capitalista louco, o capitalista é o entesourador racional.O aumento incessante do valor, objetivo que o
entesouradorprocuraatingirconservandoseudinheiroforadacirculação,éatingidopelocapitalista,que,maisinteligente,recolocao
dinheiroconstantementeemcirculação.(229)
Portanto, o capital é valor em movimento. Mas é valor em movimento que se manifesta em
diferentesformas.“Ora,setomarmosasformasparticularesdemanifestação”–notearepetiçãodesta
frase–“queovalorqueseautovalorizaassumesucessivamentenodecorrerdesuavida,chegaremosa
estas duas proposições: capital é dinheiro, capital é mercadoria” (169). Agora Marx explicita a
definiçãoprocessualdocapital:
Na verdade, porém, o valor se torna, aqui, o sujeito de umprocesso emque ele, aomesmo tempo que assume constantemente a
formadodinheiroedamercadoria,modificasuaprópriagrandeza,distanciando-sedesimesmocomovalororiginalaosetornarmais-
valor,aovalorizarasimesmo.Poisomovimentoemqueeleadicionamais-valoréseuprópriomovimento;suavalorizaçãoé,portanto,
autovalorização.Por servalor, ele recebeuaqualidadeocultadeadicionarvalor.Elepare filhotes,oupelomenospõeovosdeouro.
(230)
ÉóbvioqueMarx está sendoextremamente irônico.Sedigo isso, é apenasporque li, certa vez,
umadissertaçãoquelevavaasérioasqualidadesmágicasdeautoexpansãoatribuídasaocapital.Mas,
num texto denso como esse, é muito fácil não perceber a ironia. Nesse exemplo, as qualidades
“ocultas”docapitalesuacapacidadeaparentementemágicadepôr“ovosdeouro”existemapenasno
reinodaaparência.Masnãoédifícilverporqueesseconstrutofetichistapoderiasertomadocomo
real–osistemadeproduçãocapitalistadependeexatamentedessaficção,comovimosnocapítulo1.
Vocêjáseperguntoudeondevemocrescimento?Tendemosasuporqueessaexpansãosimplesmente
pertenceànaturezadodinheiro.Jávimosperíodos,éclaro,emqueataxadepoupançaeranegativa,
istoé,emqueainflaçãoeratãoaltaeastaxasdejurostãobaixasqueoretornolíquidodopoupador
eranegativo(comoéocasohoje,em2008).Masparecequeodinheiroquevocêtemguardadono
bancocrescedeacordocomataxadejuro.Marxquersaberoqueestáportrásdessefetiche.Esseéo
mistérioquetemdesersolucionado.
Segundoele,háummomentonesseprocessodecirculaçãoaoqualsempreretornamoseque,por
essarazão,parecesermaisimportantequeosoutros.Esseéomomentododinheiro:D-D.Porquê?
Porqueodinheiroéarepresentaçãouniversaleamedidadefinitivadovalor.Portanto,éapenasno
momento do dinheiro – o momento da universalidade capitalista – que podemos perceber onde
estamos em relação ao valor e ao mais-valor. É difícil perceber isso apenas olhando para a
particularidadedasmercadorias.Odinheiro“constitui,porisso,opontodepartidaedechegadade
todoprocessodevalorização”(230).NoexemplodeMarx,aconclusãodoprocesso,quecomeçoucom
um investimentode100 libras, resulta em110 libras: “O capitalista sabeque todamercadoria, por
maismiserávelquesejasuaaparênciaouporpiorquesejaseucheiro,édinheiro,nãosóemsuafé,
mastambémnarealidade;queelaé, internamente,umjudeucircuncidadoe,alémdisso,ummeio
milagrosodesefazermaisdinheiroapartirdodinheiro”(230).
Observaçõesdessetipoderammargemaumdebatesignificativosobreosupostoantissemitismo
deMarx.Defato,éverdadequeessetipodeafirmaçãoaparecedevezemquandoemseustextos.O
contextodaépocaeradeantissemitismodisseminado(porexemplo,apersonagemFagin,emOliver
Twist,deDickens
[e]
).Assim,vocêpodeconcluirqueMarx,filhodejudeusqueseconverterampara
manter o emprego, estava se voltando inconscientemente contra seu passado ou refletindo os
preconceitos da época, ou, pelomenos nesse caso, que a intenção dele era reunir todo o opróbrio
costumeiramentelançadocontraosjudeusemostrarque,naverdade,eledeveriaserlançadocontra
ocapitalistaenquantocapitalista.Cabeavocêtirarsuasprópriasconclusões.
Retornandoaotexto,encontramosMarxaindaàsvoltascomaaparênciafetichista:
Senacirculaçãosimplesovalordasmercadoriasatingenomáximoumaformaindependenteemrelaçãoaseusvaloresdeuso,aquiele
seapresenta,derepente,comoumasubstânciaemprocesso,quemoveasimesmaeparaaqualmercadoriasedinheironãosãomais
do quemeras formas. Emais ainda. Em vez de representar relações demercadorias, ele agora entra, por assim dizer, numa relação
privada consigomesmo.Comovalor original, ele sediferenciade simesmo comomais-valor, tal comoDeusPai sediferenciade si
mesmocomoDeusFilho[...].Ovalorsetorna,assim,valoremprocesso,dinheiroemprocessoe,comotal,capital.(230-1)
Opróximopassonadefiniçãofundamentaldecapitalé:valoremprocesso,dinheiroemprocesso.
Eissoémuitodiferentedecapitalcomoestoquefixoderecursosoufatordeprodução.(MaséMarx,
enãooseconomistas,queécriticadoporsuasformulaçõessupostamenteestáticase“estruturais”!)O
capital “sai da circulação, volta a entrar nela, conserva-se e multiplica-se em seu percurso, sai da
circulaçãoaumentadoecomeçaomesmocircuitonovamente”(231).Opoderososentidodofluxoé
palpável.Capitaléprocesso,epontofinal.
Marxretornabrevementeaoscapitaiscomercialeusurário(seupontodepartidahistórico,mais
doquelógico).Emboraoquerealmentelheimportasejaocapitalindustrial,eletemdereconhecer
queexistemestasduasoutrasformasdecirculação:ocapitalcomercial(comprarbaratoparavender
maiscaro)eocapitalajuros,pormeiodosquaistambémsepoderealizarumaaparenteautoexpansão
dovalor.Vemos,assim,diferentespossibilidades:ocapitalindustrial,ocapitalcomercialeocapitala
juros,todosnaformadecirculaçãoD-M-D+ΔD.Talformadecirculação,concluiele,“éafórmula
geraldocapitaltalcomoeleapareceimediatamentenaesferadacirculação”(231).Éessaformade
circulaçãoquetemosdeanalisaremdetalhesparadesmistificarsuasqualidades“ocultas”.Apergunta,
portanto,é:ocapitalpõeovosdeouro?
Item2:Contradiçõesdafórmulageral
Marx inicia a busca por uma resposta examinando as contradições no interior da forma de
circulaçãoD-M-D+ΔD.Aquestãofundamentalésimplesmenteesta:deondevemoincremento,o
mais-valor? As regras e as leis da troca em forma pura (como pressupostas no liberalismo utópico)
dizemqueéprecisohaverumaregradeequivalêncianastransiçõesdeDparaMedeMparaD.O
mais-valornãopode,portanto,serderivadodatrocaemsuaformapura.“Ondeháigualdade,nãohá
ganho.”Naprática, é certamente “verdadeque asmercadorias podem ser vendidasporpreçosque
nãocorrespondemaseusvalores,masessedesviotemdeserconsideradocomoumainfraçãodaleida
trocademercadorias”.Essasleissãoaquelaspressupostasnomodelodemercadosdefuncionamento
perfeitoprópriodaeconomiapolíticaclássica.“Emsuaformapura,elaéumatrocadeequivalentes,
nãoummeioparaoaumentodovalor”(233-4).
Diantedesseenigma,oscapitalistase seuseconomistas,comoCondillac, tentaramatribuiresse
incrementoaocampodosvaloresdeuso.MasMarxrejeitatalsolução.Nãopodemosapelarparaos
valoresdeusoafimderesolverumproblemaquederivadaequivalênciadosvaloresdetroca.
Sesãotrocadasmercadorias,oumercadoriasedinheirodemesmovalordetroca,portanto,equivalentes,éevidentequecadaumadas
partesnãoextraidacirculaçãomaisvalordoquenelacolocouinicialmente.Nãohá,então,criaçãodemais-valor.Ocorreque,emsua
formapura,oprocessodecirculaçãodemercadoriasexigeatrocadeequivalentes.(235)
Marx sabe perfeitamente que “na realidade, as coisas não ocorrem assim” e, por isso, devemos
“admitirumatrocadenãoequivalentes”.Issodálugaraumasériedepossibilidades.Umadelaséque
ovendedortem“algumprivilégioinexplicável[...][de]venderamercadoriaacimadeseuvalor”.Mas
issonãoseaplicaàrelaçãoentrecompradoresevendedoresemmercadosgeneralizados,assimcomo
não adianta dizer que o comprador tem o privilégio de adquirir mercadorias abaixo de seu valor.
“Portanto, a criaçãodomais-valor [...]nãopode ser explicadanempelo fatodequeunsvendemas
mercadoriasacimadeseuvalor,nempelofatodequeoutrosascompramabaixodeseuvalor”(236).
Marxpassa então aumabreve consideraçãodaquiloquehoje chamamosdedemanda efetiva e
que,naépoca,eradesenvolvidasobretudoporMalthus(emborasurpreendentementeMarxnãofaça
nenhuma referência aoprincipal textodeMalthus sobreo assunto:Princípios de economia política
[f]
)
(236-8). SegundoMalthus, existe nomercado uma clara tendência a umadeficiência da demanda
agregadaparaaabsorçãodoexcedentedemercadoriasqueoscapitalistasproduzemcomoobjetivo
deobtermais-valor.Quemtemopoderdecompraparacomprarasmercadorias?Comooscapitalistas
reinvestem, não consomem tanto quanto poderiam. Já os trabalhadores não podem consumir a
totalidadedoproduto,porquesãoexplorados.Assim,Malthusconcluiqueaclassedosproprietários
fundiários–ou,comosãochamadosporMarx,osparasitasburguesesdetodasasespécies–temum
papelimportante,poisrealizaabenevolentetarefadeconsumirtantoquantopodeafimdemantera
economia estável. Com isso, Malthus justifica a perpetuação de uma classe consumidora não
produtiva(emcontraposiçãoàcríticaricardiana,quetambématachadeparasitasnãoprodutivos).
De certo modo, Malthus mudou seu argumento, sugerindo que essa classe de consumidores
poderiaestarforadanaçãoequeocomércioexterior,oumesmoostributosexternos(porexemplo,
pagamentosemprataparaumpoderimperial),ajudariaaresolveroproblema.Esteúltimoéumdos
principais argumentosdeRosaLuxemburgo,paraquemademanda efetivanecessárianumsistema
capitalista (que, segundo ela, é insuficientemente tratada n’O capital) só pode ser garantida, em
última instância, pelo estabelecimento de uma relação com o exterior – em suma, pela retirada
imperialista impositiva de tributos. A lógica imperialista britânica que levou à Guerra do Ópio
demonstrouaveracidadedessatese:comohaviaumagrandequantidadedepratanaChina,aideia
era vender ópio indiano aos chineses, lucrarmuita prata com a venda e, com essa prata, financiar
todososbensproduzidosemManchestereenviadosparaaÍndia.Quandooschinesessenegarama
abrirsuasportasaocomérciodoópio,arespostabritânicafoiderrubá-laspelaforçamilitar.
Marxrejeitamordazmentea ideiadequehajaemalgumlugarumaclassedeconsumidores,ou
outracoisaqualquer,quetenhaumvalorobtidosabeDeusondeepossadealgummodogeraromais-
valordedentrooude forado sistemadas relações sociais capitalistas.Todosque se encontramno
interiordocapitalismo(mesmoosmembrosdasclassesparasitárias),dizele,têmdeobterseuvalorde
algum lugar e, senãooobtêmno interiordo sistema, éporque se apropriamdosvaloresdeoutros
(como capitalistas ou trabalhadores), daqueles que são responsáveis pela produçãodesse valor.Não
podemosresolveroproblemadaproduçãodomais-valorapelandoparaomercado,ecertamentenão
podemos justificarpor isso aperpetuaçãodeumaclassenãoprodutivade consumidores.No longo
prazo, nem o comércio exterior pode realizar essa façanha; em algum momento, o princípio da
equivalênciatemdeprevalecer(237-8).
Essaspassagenssobreademandaefetivasãoproblemáticasemcertosaspectos,eRosaLuxemburgo
propõeumsériodesafioaMarxquandoafirmaqueoimperialismo,voltando-secontraasformações
sociaisnãocapitalistas,dáumarespostaparcialaoproblemadademandaefetiva
[2]
.Umlongodebate
foitravadosobreessaquestão.Mas,emtaispassagens,Marxestáinteressadosimplesmentenomodo
comoomais-valoréproduzido,nãoemcomopoderiaserpagoerealizadopormeiodoconsumo.O
mais-valor temde serproduzidoantesde ser consumido, enãopodemos apelarparaoprocessode
consumoafimdeentendersuaprodução.
Portanto,essasideiassobreademandaefetivanãopodemexplicarcomoomais-valoréproduzido,
sobretudo se nos mantivermos “nos limites da troca de mercadorias, em que vendedores são
compradores, e compradores, vendedores”. Ora, à primeira vista, essa observação parece um tanto
estranha,dadaarejeiçãoanteriordaleideSay.Tambémnãopareceajudaraafirmaçãodeque“talvez
nossa dificuldade provenha do fato de termos tratado os atores apenas como categorias
personificadas, e não individualmente” (237), ainda que seja importante mostrar, como faremos
adiante,porqueeletomaessecaminho.Ameuver,háaquiumatensãorealnotextodeMarxentrea
confiançanacríticadas tendênciasutópicasdaeconomiapolíticaclássicaeodesejodeentendere
esclareceranaturezadocapitalismoefetivamenteexistente.Oqueeledizéque temosdeprocurar
uma resposta ao problema da origem do mais-valor num modo de produção capitalista
geograficamentefechadoeperfeito;nesseestadodecoisasideal,orecursoàsclassesparasitárias,ao
consumismo ou ao comércio exterior tem de ser excluído. Marx explicitará mais adiante essas
suposiçõesn’Ocapital; aqui, ele as invoca implicitamente quando rejeita qualquer solução externa.
Nessepontodaanálise,eleconsiderairrelevantesasquestõesdedemandaefetivaemgeral,pois,no
LivroI,oquelheinteressaéunicamenteaprodução.Passaráaosproblemasdarealizaçãodosvalores
nomercadoenomundodoconsumoapenasnoLivroII.
Porora,portanto, ficaexcluídaqualqueranálisedasexpansõesgeográficas,doajusteespacial
[g]
,
doimperialismoedocolonialismosocialmentenecessáriosparaasobrevivênciadocapitalismo.Marx
simplesmentesupõeumsistemacapitalistaperfeitoefechado,eéapenasnessestermosqueaorigem
do mais-valor será explicada. Essa suposição, ao mesmo tempo que restringe o alcance de sua
capacidade teórica (em particular com relação ao entendimento das atuais dinâmicas históricas e
geográficas do capitalismo), aprofunda e aguça a análise. Como mostrei em outros lugares – em
especialemOslimitesdocapitaleSpacesofCapital [Espaçosdocapital]–,essasquestõesmaisamplas
foram extremamente importantes para Marx quando tentou formular seu grande projeto de
investigaçãodoEstado,docomércioexterior,docolonialismoedaconstruçãodomercadomundial.
Nessepontod’Ocapital,porém,sólheinteressamostrarqueaproduçãodemais-valornãopodesurgir
das trocas mercantis, independentemente das condições históricas ou geopolíticas predominantes.
Eletemdeencontraroutromodopararesolveracontradiçãodecomoproduzirumanãoequivalência
(istoé,omais-valor)apartirdeumatrocadeequivalentes.
AadoçãodeumfocotãoestreitoexplicatambémporqueMarxpassabrevementeatratarmaisde
indivíduosdoquedepapéissociais.Osindivíduospodemludibriarunsaosoutrosvendendoporum
valormaiore,defato,issoaconteceotempotodo.Mas,quandoconsideradodemaneirasistemática,
em termos sociais, o resultado é apenas roubar de Pedro para pagar Paulo. Um capitalista pode
perfeitamente ludibriar outro,mas nesse caso o ganho do primeiro é igual à perda do segundo, e
nenhummais-valoréagregado.Épreciso,portanto,encontrarumaformaemquetodososcapitalistas
ganhemmais-valor.Umaeconomiasaudável,oudefuncionamentoadequado,éaquelaemquetodos
oscapitalistastêmumataxadelucroconstanteerentável.
Pode-sevirar e revirar como sequeira, eo resultado seráomesmo.Da trocade equivalentesnão resultamais-valor, e tampoucoda
trocadenãoequivalentesresultamais-valor[...].Compreende-se,assim,porque,emnossaanálisedaformabásicadocapital,formana
qualeledeterminaaorganizaçãoeconômicadasociedademoderna,deixamosinteiramentedeconsiderarsuasformaspopularese,por
assimdizer,antediluvianas:ocapitalcomercialeocapitalusurário.(238-9)
Historicamente, pode ser verdade, como observou Benjamin Franklin, que “guerra é roubo,
comércioétrapaça”(239).Nasorigensdocapitalismo,certamentehouvemuitadestruição, fraude,
rouboepilhagemdemais-valorpelomundointeiro.EMarxnãonegaaimportânciahistóricadesse
fato.Omesmoseaplicaaocapitalusurário,atédiantedosestritíssimosearraigadostabusarespeito
da cobrança de juros. Cobrar juros é proibido, por exemplo, pela lei islâmica. Muitas pessoas
provavelmenteignoramque,atémeadosdoséculoXIX,aIgrejaCatólicatambémproibiaacobrança
dejuros,eissoéextremamenteimportante.Porexemplo,naFrança,oscatólicoscomparavammuitas
vezes as casas de investimentos a bordéis e consideravam as operações financeiras uma forma de
prostituição.Restaramdessaépocagrandeschargespolíticassatíricas.Numadelas–queutilizeiem
Paris: Capital of Modernity [Paris: capital da modernidade] – uma jovem mulher tenta atrair um
homemvelhoeassustadoparasuacasadeinvestimentos,dizendo:“Minhataxaderetornoéboapara
qualquerquantiaquevocêqueirainvestir.Voutratarvocêcomgentileza”
[3]
.
Dessemodo,ocapitalmercantileocapitalusurário(ouajuros)têm,ambos,papéisimportantes.
No entanto, como conclui Marx, no “curso de nossa investigação, veremos que tanto o capital
comercialcomoocapitalajurossãoformasderivadas;aomesmotempo,veremosporqueelassurgem
historicamenteantesdamodernaformabasilardocapital”(240).Oqueeleestádizendoéqueessas
formasdecirculaçãodocapitaltiveramumaexistênciahistóricaantesdeocapitalindustrialentrar
em cena.Mas o capital industrial, como veremos, será a forma de capital que definirá omodo de
produçãocapitalistaemseuestadopuro.E,umavezqueocapitalindustrialsetornadominante,ele
precisa tanto do comerciante para vender o produto quanto do capital a juros para variar os
investimentosemrespostaaosproblemasdoinvestimentodecapitalfixodelongoprazo,eassimpor
diante.Paraque isso aconteça, a formaprimáriada circulaçãodo capital temde submeter tantoo
capital financeiro quanto o capital comercial a suas necessidades particulares. No Livro III d’O
capital,Marxanalisarácomoissoaconteceuecomqueconsequências.
Éimportanteavaliar,denossaperspectivaatual,aposiçãodocapitalcomercialedocapitalajuros
nointeriordocapitalismoemgeral.Umaexplicaçãoplausíveléqueelesdeixaramdeserhegemônicos
e dominantes nos séculos XVI e XVII para se tornar subservientes ao capital industrial durante o
século XIX. Mas muitos – inclusive eu – diriam que o capital financeiro se tornou dominante
novamente,sobretudoapartirdosanos1970.Seissoéverdade,devemosinvestigaroquesignificae
pressagia.
Contudo,essanãoéumaquestãoquepossamostrataraqui.Paranossopropósito,oqueimportaé
notarqueMarxpresumia(eeleprovavelmenteestavacertonaépoca)queacirculaçãodocapitalem
suaformaindustrialhaviasetornadohegemônicae,portanto,eraemseuinteriorqueaquestãoda
produçãodemais-valortinhadeserresolvida.Concluiele:
Portanto,ocapitalnãopodesurgirdacirculação,tampoucopodesurgirforadacirculação.Eletemdesurgirnelae,aomesmotempo,
não surgirnela.Temos, assim,umduplo resultado.A transformaçãododinheiroemcapital temde ser explicadacombasenas leis
imanentesdatrocademercadorias,demodoqueatrocadeequivalentessejaopontodepartida.Nossopossuidordedinheiro,que
aindaéapenasumcapitalistaemestadolarval,temdecomprarasmercadoriaspeloseuvalor,vendê-laspeloseuvalore,noentanto,
nofinaldoprocesso,retirardacirculaçãomaisvalordoqueelenelacolocarainicialmente.Suacrisalidaçãotemdesedarnaesferada
circulaçãoenãopodesedarnaesferadacirculação.Essassãoascondiçõesdoproblema.HicRhodus,hicsalta!(241)
Oque,numatoscatraduçãocoloquial,significa:“Abolaésua,chute!”.
Item3:Acompraeavendadeforçadetrabalho
Acontradiçãoéfácilderesolver.Suasoluçãojáéanunciadanotítulodesseitem.Marxestruturao
argumentocomosesegue:
Parapoderextrairvalordoconsumodeumamercadoria,nossopossuidordedinheiroteriadeterasortededescobrirnomercado,no
interiordaesferadacirculação,umamercadoriacujoprópriovalordeusopossuísseacaracterísticapeculiardeserfontedevalor,cujo
próprioconsumofosse,portanto,objetificaçãodetrabalhoe,porconseguinte,criaçãodevalor.Eopossuidordedinheiroencontrano
mercadoumatalmercadoriaespecífica:acapacidadedetrabalhoouforçadetrabalho.(242)
A força de trabalho consiste nas capacidades físicas,mentais e humanas de incorporar valor às
mercadorias. Mas, para ser ela mesma uma mercadoria, a força de trabalho precisa ter certas
características. Em primeiro lugar, “para que seu possuidor a venda comomercadoria, ele tem de
poder dispor dela, portanto, ser o livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa”.
Assim,aideiadotrabalhadorlivreécrucial–aocontráriodaescravidãoedaservidão.Otrabalhador
não pode ceder sua pessoa; tudo que pode fazer é negociar suas capacidades físicas, mentais e
humanasdecriarvalor.Dessemodo,o trabalhadoralienasua forçade trabalho– istoé, transfere-a
para outro –, “sem renunciar [...] a seus direitos de propriedade sobre ela” (242-3). Portanto, o
capitalista não pode possuir o trabalhador; tudo o que pode possuir é a capacidade de trabalhar e
produzirvalorporcertoperíododetempo.
Asegundacondiçãoessencialparaqueopossuidordedinheiroencontrenomercadoaforçadetrabalhocomomercadoriaéqueseu
possuidor,emvezdepodervendermercadoriasemqueseutrabalhoseobjetivou,tenha,antes,deoferecercomomercadoriaàvenda
suaprópriaforçadetrabalho,queexisteapenasemsuacorporeidadeviva.(243)
Emoutraspalavras,ostrabalhadoresnãotêmcondiçõesdetrabalharparasimesmos.
Paratransformardinheiroemcapital,opossuidordedinheirotem,portanto,deencontrarnomercadodemercadoriasotrabalhador
livre,e livreemdois sentidos:odeserumapessoa livre,quedispõedesua forçade trabalhocomosuamercadoria,ede,poroutro
lado, ser alguémquenão temoutramercadoriapara vender, livre e solto, carecendo absolutamentede todas as coisasnecessárias à
realizaçãodesuaforçadetrabalho.(244)
Emsuma,otrabalhadorjátemdeestarprivadodeacessoaosmeiosdeprodução.
O comentário de Marx sobre a liberdade é muito adequado à nossa época. O que significa
liberdade, por exemplo, quando o presidenteGeorgeW.Bush fala damissão de levar liberdade ao
mundo?Eleusouaspalavras“freedom”e“liberty”umascinquentavezesemseusegundodiscursode
posse. Segundo a interpretação crítica de Marx, isso significa que Bush está em campanha para
libertar o maior número de pessoas no mundo de qualquer acesso aos meios de produção, ou de
qualquercontrolediretosobreeles.Sim,os trabalhadores individuais terãodireitossobreseucorpo,
assimcomoterãodireitosindividuaislegaisnomercadodetrabalho.Emprincípio,têmodireitode
vendersuaforçadetrabalhoaquemquiserem,assimcomoodireitodecompraroquequiseremno
mercadocomossaláriosquerecebem.Oqueaformacapitalistadapolíticaimperialvêmfazendonos
últimosdoisséculosécriaressemundo.Populaçõesindígenasecamponesasforamprivadasdoacesso
aosmeiosdeproduçãoeproletarizadasportodooplaneta.Nasversõesneoliberaismaisrecentesdesse
processo, um número cada vez maior de populações em todo o mundo, inclusive nos países de
capitalismoavançado,estãosendoprivadasdeseusrecursos,atémesmodoacessoindependenteaos
meiosdeproduçãoouaoutrosmeiosdesobrevivência(porexemplo,aposentadoriaseoutrosauxílios
doEstado).
A ironia política e ideológica na promoção dessa forma “dúplice” da liberdade burguesa não
escapaaMarx.Hoje,somosdiariamentecatequizadosarespeitodosaspectospositivosdaliberdadee
forçados a aceitar como inevitáveis oumesmo naturais seus aspectos negativos. A teoria liberal se
fundaemdoutrinasdedireitoseliberdadesindividuais.DeLockeaHayek,edaíemdiante,todosos
ideólogos do liberalismo e do neoliberalismo afirmaram que a melhor defesa desses direitos e
liberdades individuais é um sistema de mercado fundado na propriedade privada e nas regras
burguesasdeindependência,reciprocidadeeindividualismojurídicoqueMarxdescreveu(e,parao
propósitodesuainvestigação,aceitou)nocapítulo2.
Por ser difícil protestar contra ideais universais de liberdade, somos facilmente convencidos a
aceitar a ficção de que as boas liberdades (como as da escolha de mercado) são muito mais
importantes que as más liberdades (como a liberdade dos capitalistas de explorar o trabalho dos
outros).E,sefornecessárioapelarparaarepressãoafimdeprivaraspessoasdeseuacessoaosmeios
de produção e assegurar as liberdades de mercado, isso também se justifica. Em pouco tempo,
mergulhamosnomacarthismoounaBaíadeGuantánamo,incapazesdeesboçaramínimaoposição.
WoodrowWilson,ograndepresidente liberaldosEstadosUnidos, idealizadordaLigadasNações,
colocouissodaseguintemaneira,duranteumaconferêncianaUniversidadeColumbia,em1907:
Porqueocomércioignoraasfronteirasnacionaiseoindustrialinsisteemteromundocomoummercado,abandeiradestanaçãotem
deacompanhá-lo,easportasdasnaçõesqueestãofechadasparaeletêmdeserarrombadas.Asconcessõesobtidaspelosfinancistas
têmde ser salvaguardadasporministrosdeEstado,mesmoquea soberaniadenações renitentes sejaultrajada.Colônias têmde ser
conquistadasouimplantadas,paraquenenhumcantoútildomundosejanegligenciadooudesperdiçado.
O objetivo ideológico essencial de Marx é identificar a duplicidade que habita o cerne da
concepção burguesa de liberdade (do mesmo modo que ele questionou o apelo de Proudhon a
concepçõesburguesasde justiça).Ocontrasteentrearetóricada liberdadedeGeorgeW.Bushea
realidadedaBaíadeGuantánamoéexatamenteoquedeveríamosesperar.
Mas como o trabalhador se tornou “livre” nesse duplo sentido? A razão por que o trabalhador
oferecesuaforçadetrabalhoaocapitalistanomercado,observaMarx,“nãointeressaaopossuidorde
dinheiro [...]. E, no presente momento, ela tampouco tem interesse para nós” (244). Marx supõe
simplesmente que a proletarização já ocorreu e um mercado de trabalho já está em pleno
funcionamento.Masqueresclarecer“outracoisa”:
A natureza não produz possuidores de dinheiro e demercadorias, de um lado, e simples possuidores de suas próprias forças de
trabalho,deoutro.Essanãoéumarelaçãohistórico-natural,tampoucoumarelaçãosocialcomumatodososperíodoshistóricos,mas
éclaramenteoresultadodeumdesenvolvimentohistóricoanterior,oprodutodemuitasrevoluçõeseconômicas,daderrocadadetoda
umasériedeformasanterioresdeproduçãosocial.(244)
Queosistemadotrabalhoassalariadotemumaorigemhistóricaespecíficadeveserreconhecido,
nemquesejaparasublinharofatodequeacategoriadotrabalhoassalariadonãoémais“natural”do
queadocapitalistaouadoprópriovalor.Ahistóriadaproletarizaçãoserátratadaemdetalhesmais
adiante,nocapítulo24.Porora,Marxsupõeapenasquejáexisteummercadodetrabalhoempleno
funcionamento.Noentanto,reconhece:
Tambémas categorias econômicasque consideramos anteriormente trazemconsigo asmarcasdahistória.Na existênciadoproduto
como mercadoria estão presentes determinadas condições históricas [...]. Se tivéssemos avançado em nossa investigação e posto a
questão “sob que circunstâncias todos os produtos – ou apenas a maioria deles – assumem a forma da mercadoria?”, teríamos
descobertoqueissosóocorresobreabasedeummododeproduçãoespecífico,omododeproduçãocapitalista.(244)
Somos lembrados que é omododeprodução capitalista, e nãooutrosmodosdeprodução, que
constituiofocodeMarx.
Aproduçãodemercadoriasqueexistiunopassadoemváriasformas,juntamentecomacirculação
monetária,quetambémexistiuemmuitas formas,éclaramenterelacionada,namentedeMarx,ao
adventodasformasdetrabalhoassalariado.Nenhumadessasevoluçõesé independentedaoutrano
processoque conduz àdominaçãodomododeprodução capitalista.Maisumavez,os argumentos
históricos e lógicos se entrelaçam. A relação socialmente necessária que vincula logicamente a
produção de mercadorias à monetização e ambas, por sua vez, à mercantilização do trabalho
assalariado, temuma origemhistórica distinta.O sistemade salário e omercado de trabalho, que
paranósparecemcoisasóbviaselógicas,certamentenãopareciamassimmesmonoperíodofinaldo
feudalismoeuropeu.
[As]condiçõeshistóricasdeexistência[docapital]nãoestãodemodoalgumdadascomacirculaçãodasmercadoriasedodinheiro.Ele
sósurgequandoopossuidordemeiosdeproduçãoedesubsistênciaencontranomercadootrabalhadorlivrecomovendedordesua
força de trabalho, e essa condição histórica compreende toda uma história mundial. Assim, o capital anuncia, desde seu primeiro
surgimento,umanovaépocanoprocessosocialdeprodução.(245)
Noentanto,aforçadetrabalhoéumamercadoriapeculiar,especial,diferentedequalqueroutra.
Antes de tudo, é a única mercadoria que tem capacidade de criar valor. É o tempo de trabalho
incorporadonasmercadorias,esãoostrabalhadoresquevendemsuaforçadetrabalhoaocapitalista.
Este,por suavez,usaessa forçade trabalhoparaorganizaraproduçãodemais-valor.Note,porém,
queaformaemqueaforçadetrabalhocirculaéM-D-M(ostrabalhadorespõemsuaforçadetrabalho
nomercadoeavendememtrocadedinheiro,comoqualpodem,então,comprarasmercadoriasde
quenecessitamparasobreviver).Assim,otrabalhador,lembre-se,estásemprenocircuitoM-D-M,ao
passoqueo capitalista operano circuitoD-M-D’.Há, portanto, regras diferentes paraum e outro
pensarem sua respectiva situação. O trabalhador pode se contentar com a troca de equivalentes,
porqueoque lhe importa sãoos valores deuso.O capitalista, por outro lado, temde solucionar o
problemadaobtençãodemais-valorapartirdatrocadeequivalentes.
Masoque fixao valorda forçade trabalho comomercadoria?A resposta é complexa,porque a
forçade trabalhonão éumamercadoriano sentidousual, não sóporque é aúnicaquepode criar
valor,mas tambémporqueosdeterminantesde seuvalor sãodiferentesdaquelesdas camisas edos
sapatos, tanto em princípio quanto em detalhes. Marx cita essas diferenças sem praticamente
nenhumaelaboraçãoadicional:
O valor da força de trabalho, como o de todas as outras mercadorias, é determinado pelo tempo de trabalho necessário para a
produção– e, consequentemente, tambémpara a reprodução–desse artigo específico.Comovalor, a forçade trabalho representa
apenasumaquantidadedeterminadadotrabalhosocialmédionelaobjetivado[...].Parasuamanutenção,oindivíduovivonecessitade
certa quantidadedemeios de subsistência.Assim, o tempode trabalhonecessário à produçãoda força de trabalho corresponde ao
tempodetrabalhonecessárioàproduçãodessesmeiosdesubsistência,ou,ditodeoutromodo,ovalordaforçadetrabalhoéovalor
dosmeiosdesubsistêncianecessáriosàmanutençãodeseupossuidor.(245)
Ovalordaforçadetrabalhoéfixado,portanto,pelovalordetodasaquelasmercadoriasquesão
necessárias para reproduzir o trabalhador em certa condiçãode vida. Somamoso valor dopão, das
camisas,dossapatosedetudomaisqueénecessárioparasustentarereproduzirostrabalhadores,eo
totaléoquedeterminaovalordaforçadetrabalho.
Pareceserumcálculobastantesimples,semelhanteemprincípioaodequalqueroutramercadoria.
Mascomosãodeterminadasessas“necessidades”?Asnecessidadesdistinguemotrabalhodetodasas
outras mercadorias. Em primeiro lugar, no decorrer da atividade laboral, “gasta-se determinada
quantidadedemúsculos,nervos,cérebroetc.humanos,quetemdeserreposta”.Seostrabalhadores
são exigidosnumcerto tipode trabalho (por exemplo,numaminade carvão),podemprecisar,por
exemplo,demaiscarneebatatasparasustentarseutrabalho.Alémdisso,“aquantidadedosmeiosde
subsistência têm,portanto, de ser suficiente paramanter o indivíduo trabalhador como tal em sua
condiçãonormaldevida”.Masoqueé“normal”?Existem“necessidadesnaturais,comoalimentação,
vestimenta, aquecimento, habitação etc.”, que “são diferentes de acordo com o clima e outras
peculiaridades naturais de um país” (245-6). As necessidades dos trabalhadores são diferentes no
Árticoenaszonastemperadas.Masocorreentãoagrandemudança:
Por outro lado, a amplitude das assim chamadas necessidades imediatas, assim como omodo de sua satisfação, é ela própria um
produtohistóricoe,porisso,dependeemgrandemedidadograudeculturadeumpaís,mastambémdepende,entreoutrosfatores,
desobquaiscondiçõese,porconseguinte,comquaiscostumeseexigênciasdevidaseformouaclassedostrabalhadoreslivresnum
determinadolocal.Diferentementedasoutrasmercadorias,adeterminaçãodovalordaforçadetrabalhocontémumelementohistórico
emoral.(246)
Issoimplicaqueovalordaforçadetrabalhonãoéindependentedahistóriadaslutasdeclasses.
Maisainda,“ograudecivilização”deumpaísvaria,porexemplo,conformeaforçadosmovimentos
burguesesdereforma.Detemposemtempos,osrespeitáveisevirtuososburguesesindignam-secoma
pobrezadasmassase,sentindo-seculpados,concluemqueéinaceitávelque,numasociedadedecente,
amassadapopulaçãovivaassim.Defendementãoaconstruçãodemoradiasdecentes,saúdepública
decente, educação decente, isso decente e aquilo decente. Algumas dessas medidas podem ser
motivadasporinteressepróprio(porqueumsurtodecólera,porexemplo,nãorespeitafronteirasde
classe),masnãohásociedadeburguesaquenãotenhaalgumsensodevalorescivilizados,eessesenso
éfundamentalparadeterminarovalordaforçadetrabalho.
Marx baseia-se no princípio de que há um conjunto de mercadorias que determina o que se
entende por um salário razoável numa sociedade e numa época particulares. Ele não discute essas
particularidades.Aocontrário,podemoscontinuarainvestigaçãoteóricacomoseovalordaforçade
trabalhofossefixoe“dado”,mesmoqueesse“dado”estejaemconstantemovimentoe,dequalquer
modo,tenhadeserflexívelerefletiroutrosaspectos,comooscustosdereproduçãodotrabalhador,
desdeotreinamentoeareproduçãodehabilidadesatéosustentodafamíliaeareproduçãodaclasse
trabalhadora(emtermosqualitativosequantitativos)(245-7).
Outrapeculiaridadedaforçadetrabalhocomomercadoriaédignadenota.Ocapitalistaentrano
mercadoetemdepagarportodasasmercadorias(matérias-primas,maquinariaetc.)antesdepô-las
paratrabalhar.Comaforçadetrabalho,porém,ocapitalistaalugaessaforçadetrabalhoepagaseus
fornecedores apenas depois que eles concluem seu trabalho.Na verdade, o trabalhador adianta ao
capitalistaamercadoriadaforçadetrabalho,esperandoserpagonofimdodia.Masissonemsempre
acontece:empresasquedeclaramfalênciapodemdeixardepagarossaláriosquedevem(247-50).Na
China contemporânea, por exemplo, o salário de grande parte da força de trabalho em certas
indústrias(construçãocivil)eemcertasregiões,particularmentenoNorte,foinegado,oquegerou
grandesprotestos.
OqueMarxdefende aqui éque anoçãodeumpadrãode vida aceitávelparaos trabalhadores
varia de acordo comas circunstâncias naturais, sociais, políticas e históricas.Obviamente, o que é
aceitável numa sociedade (digamos, na Suécia contemporânea) não é omesmo que em outra (na
Chinacontemporânea),eoqueeraaceitávelnosEstadosUnidosem1850nãooémaishoje.Assim,o
valordaforçadetrabalhoéaltamentevariáveledependenãosódasnecessidadesfísicas,mastambém
dascondiçõesdalutadeclasses,dograudecivilizaçãodopaísedahistóriadosmovimentossociais
(algunstêmobjetivosquevãomuitoalémdoslimitesdalutadiretadosprópriostrabalhadores).Há
partidosdemocráticos,porexemplo,quedefendemumsistemauniversaldesaúde,acessoàeducação,
habitação adequada, infraestruturapública–parques, sistemapúblicode transportes, fornecimento
deágua, saneamento–, assimcomooportunidadedeplenoempregoporumsaláriomínimo.Tudo
issopodeserconsideradoobrigaçõesfundamentaisdepaísescivilizados,dependendodesuasituação
socialepolítica.
A conclusão a que chegamos é que a força de trabalho não é uma mercadoria como outra
qualquer.É aúnicamercadoria que cria valor e, aomesmo tempo,umelementohistórico emoral
entranadeterminaçãodeseuvalor.Eesseelementohistóricoemoralestásujeitoàinfluênciadeum
vasto conjunto de forças políticas, religiosas etc. Mesmo o Vaticano escreveu encíclicas vigorosas
sobre as condições de trabalho, e a Teologia da Libertação, quando atingiu o ápice na América
Latina, nas décadas de 1960 e 1970, teve um papel fundamental no fomento de movimentos
revolucionárioscujofocoeramascondiçõesdevidadospobres.Portanto,ovalordaforçadetrabalho
não é constante.Ele flutuanão sóporque varia o custodasmercadoriasnecessárias à subsistência,
mas tambémporquea cestademercadoriasnecessáriaspara reproduziro trabalhadoré afetadapor
todoesseamploespectrodeforças.Claramente,ovalordaforçadetrabalhoésensívelàsalteraçõesno
valor das mercadorias necessárias para sustentá-la. Importações baratas reduzem esse valor, como
mostrouofenômenoWalmart,queteveumimpactosignificativonovalordaforçadetrabalhonos
EstadosUnidos.Comimportaçõesbaratas,ahiperexploraçãodaforçadetrabalhonaChinamantém
baixoovalordaforçadetrabalhonosEstadosUnidos.Issoexplicatambémaresistênciaderedutosda
classecapitalistacontraaimposiçãodebarreirastarifáriasaosprodutoschineses,poisocustodevida
nosEstadosUnidosaumentariaeostrabalhadoresreivindicariamsaláriosmaiores.
Depoisdemencionarrapidamentequestõesdessetipo,Marxasdeixadeladoeconcluique,“no
entanto,aamplitudemédiadosmeiosdesubsistêncianecessáriosaotrabalhadornumdeterminado
paísenumdeterminadoperíodoéalgodado”(246).Marxestabelececomo“dado”numpaísenuma
época determinada aquilo que ele admite como fluido e em fluxo constante. Isso é razoável?
Teoricamente,permitequeMarxavancenaexplicaçãodaproduçãodomais-valor,mascobracerto
preçoporisso.
Namaioriadaseconomiasnacionais,hámeiosdedeterminaresse“dado”.Alegislaçãoreferente
aosaláriomínimo,porexemplo,reconheceaimportânciadeum“dado”fixonumlugarenumaépoca
determinada; ao mesmo tempo, as decisões sobre o aumento ou não do salário mínimo são uma
excelente ilustraçãodopapelquea lutapolíticadesempenhanadeterminaçãodovalorda forçade
trabalho.Emanosrecentes,aslutaslocaisporum“saláriodecente”serviramtambémparailustrara
ideiatantodeum“dado”geralquantodalutasocialporaquiloquedeveriaseresse“dado”.
Um paralelo ainda mais interessante com relação à formulação de Marx encontra-se na
determinaçãodochamadoníveldepobreza.Emmeadosdadécadade1960,MollieOrshanskycriou
ummétodo para definir o nível de pobreza de acordo com o dinheiro necessário para comprar as
mercadoriasconsideradasimprescindíveisparaareprodução,porexemplo,deumafamíliadequatro
pessoas numnívelminimamente aceitável. Esse é o tipo de “dado” a que se refereMarx.Desde a
décadade1960,noentanto,háumdebateincessantesobreessadefinição,quesetornouabasedas
políticaspúblicas (porexemplo,paraosauxíliosda seguridade social).Aquestão sobrequais itensa
cestabásicademercadoriasdeveria conter–quantode transporte,quantodevestuário,quantode
alimentação, quanto de aluguel (e você precisa realmente de um celular?) – tornou-se objeto de
controvérsia. Hoje, o valor necessário a uma família de quatro pessoas varia em torno de 20 mil
dólaresporano.Adireitadizqueessacestaémalcalculadae,porisso,apobrezaésuperestimada;mas
estudos indicamqueemlocaisdealtocustodevida,comoacidadedeNovaYork,acestadeveria
valer cercade26mildólares.Obviamente, argumentoshistóricos,políticos emorais têmumpapel
importantenadeterminaçãodessevalor.
RetornaremosàideiadacirculaçãodaforçadetrabalhopelocircuitoM-D-Meàdiferençaentre
eleeocircuitocapitalistaM-D-M+ΔM.Marxcomenta:
Ovalordeusoque[ocapitalista]recebenatrocamostra-seapenasnautilizaçãoefetiva,noprocessodeconsumodaforçadetrabalho
[...]. O processo de consumo da força de trabalho é simultaneamente o processo de produção da mercadoria e do mais-valor. O
consumodaforçadetrabalho,assimcomooconsumodequalqueroutramercadoria,completa-seforadomercadooudaesferada
circulação.(250)
E,emseguida,agrandemudançadeperspectiva:
Deixemos,portanto,essaesferarumorosa,ondetudosepassaàluzdodia,anteosolhosdetodos,eacompanhemosospossuidores
dedinheiro ede forçade trabalhoatéo terrenoocultodaprodução, emcuja entrada se lê:Noadmittance exceptonbusiness [entrada
permitida apenas para tratar de negócios]. Aqui se revelará não só como o capital produz, mas como ele mesmo, o capital, é
produzido.Osegredodacriaçãodemais-valortem,enfim,deserrevelado.(250)
Marx conclui com uma acusação contra a constitucionalidade e a lei burguesas. Abandonar a
esferada circulação eda troca significa abandonar a esfera constitucionalmente erigida como“um
verdadeiroÉden dos direitos inatos do homem”.Omercado “é o reino exclusivo da liberdade, da
igualdade,dapropriedadeedeBentham”.
Liberdade,poisoscompradoresevendedoresdeumamercadoria,porexemplo,da forçade trabalho, sãomovidosapenaspor suas
vontades livres.Elescontratamcomopessoas livres,dotadasdosmesmosdireitos. [...] Igualdade,poiseles se relacionamumcomo
outro apenas comopossuidoresdemercadorias e trocamequivalentepor equivalente.Propriedade,pois cadaumdispõe apenasdo
que é seu. Bentham, pois cada umolha somente para simesmo.A única força que os une e os põe em relaçãomútua é a de sua
utilidadeprópria,desuavantagempessoal,deseusinteressesprivados.Eéjustamenteporquecadaumsepreocupaapenasconsigo
mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os
auspíciosdeumaprovidênciatodo-astuciosa,realizamemconjuntoaobradesuavantagemmútua,dautilidadecomum,dointeresse
geral.(250-1)
AdescriçãoprofundamenteirônicaqueMarxfazdaforma-padrãodaconstitucionalidadeliberal
burguesaedaleidomercadonosconduzàfasefinaldatransiçãodesseargumento:
Aoabandonarmosessaesferadacirculaçãosimplesouda trocademercadorias,deondeo livre-cambistavulgaris [vulgar] extrai suas
noções, seus conceitos e o padrão de medida com o qual ele julga a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já podemos
perceber uma certa transformação, ao que parece, na fisiognomia de nossas dramatis personae [personagens teatrais]. O antigo
possuidordedinheiro se apresenta, agora, comocapitalista eopossuidorde forçade trabalho, como seu trabalhador.Oprimeiro,
comumardeimportância,confianteeávidopornegócios;osegundo,tímidoehesitante,comoalguémquetrouxesuaprópriapele
aomercadoe,agora,nãotemmaisnadaaesperaralémda...despela.(251)
Essas reflexões adicionais sobre os direitos burgueses, fazendo eco à dualidade da suposta
liberdadedotrabalhador,direcionamoargumentoparaaanálisedeummomentobemmenosvisível
daproduçãoquesedáemgeralnafábrica.ÉaessereinoqueMarxnoslevanopróximocapítulo.
[a]Nooriginal,consta:“ostrêscapítulos(thethreechapters)”.AnumeraçãodoscapítulosdaediçãoinglesadoLivroId’Ocapital,utilizada
porHarvey,nãocoincidecomanumeraçãodasediçõesalemãs,mascomadaediçãofrancesa.Nesta,ostrêssubcapítulosdocapítulo4da
segundaediçãoalemãsãotransformadosemcapítulos(4-6),omesmoocorrendocomossetesubcapítulosdocapítulo24,quepassama
formaroscapítulos26-32.Domesmomodo,altera-seadivisãodasseções:naediçãoalemã,aseçãoVIIencerraaobracomoscapítulos
21-25, ao passo que, nas edições francesa e inglesa, a seção VII compreende apenas os capítulos 21-23 e desloca os dois últimos
capítulosparaumaoitavaseção.Napresentetradução,optamosporalteraranumeraçãoadotadaporHarvey,adequando-aàdivisãode
capítulosestabelecidaporMarxapartirdasegundaediçãoalemãemantidaporEngelsnaterceiraenaquartaedições.Aorganizaçãodos
capítulosaquiadotadacoincideinteiramente,portanto,comaquelautilizadaemnossatraduçãod’Ocapital(SãoPaulo,Boitempo,2013).
(N.T.)
[b]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.58.(N.E.)
[c]Ibidem,p.58-9.(N.E.)
[1]MarxcitaamesmadefiniçãotautológicadocapitalapresentadanateoriadacirculaçãodeJ.B.Say.
[d]EmAcomédiahumana(3.ed.,RiodeJaneiro,Globo,1955),v.5.(N.E.)
[e]SãoPaulo,Hedra,2002.(N.E.)
[f]SãoPaulo,NovaCultural,1996.(N.E.)
[2]RosaLuxemburgo,TheAccumulationofCapital(NovaYork,Routledge,2003),p.104-5[ed.bras.:Aacumulaçãodocapital:contribuição
aoestudoeconômicodoimperialismo,2.ed.,SãoPaulo,NovaCultural,1985].
[g] Segundo Harvey, a cada crise de superprodução o capital busca um ajuste espacial (spatial fix) por meio de investimentos em
infraestrutura e urbanização.VerDavidHarvey,Spaces of Capital: Towards aCriticalGeography [Espaços do capital: para uma geografia
crítica](NovaYork,Routledge,2001),p.284-311.(N.T.)
[3]DavidHarvey,Paris:CapitalofModernity(NovaYork,Routledge,2003),p.119.
4.Oprocessodetrabalhoeaproduçãode
mais-valor
Gostaria de fazer um retrospecto do argumento de Marx até aqui. Para isso, recorro a uma
representação diagramática de sua cadeia dialética de argumentação (ver figura na p. anterior).
Reduzir o argumento de Marx a esse formato é inevitavelmente cometer uma injustiça contra a
riquezade seupensamento,maspensoque seráútil terdeleummapacognitivoparanavegar com
maisfacilidadeporesseredemoinho.
Marxcomeçacomoconceitounitáriodamercadoria,que incorporaadualidadeentrevalorde
uso e valorde troca.Oque encontramospor trásdovalorde troca éo conceitounitáriode valor,
definido como tempo de trabalho socialmente necessário (“socialmente necessário” implica que
alguémqueiraouprecisedovalordeuso).Ovalorinteriorizaumadualidadeentretrabalhoconcreto
etrabalhoabstrato,queseunemnumatodetrocapormeiodoqualovaloréexpressonadualidade
das formas relativa e equivalente de valor. Isso engendra uma mercadoria-dinheiro como
representante da universalidade do valor, porém disfarça o significado interno deste como uma
relação social, produzindo assim o fetichismo dasmercadorias, entendido como relaçõesmateriais
entrepessoaserelaçõessociaisentrecoisas.Nomercado,aspessoasserelacionamentresinãocomo
pessoas, mas como compradores e vendedores de coisas. Nesse ponto,Marx supõe, assim como a
teoria liberal, a existência de direitos de propriedade privada, indivíduos jurídicos emercados em
perfeitofuncionamento.Nointeriordessemundo,odinheiro,arepresentaçãodovalor,assumedois
papéis distintos e potencialmente antagônicos: comomedida de valor e comomeio de circulação.
Mas,nofim,háapenasumdinheiro,ea tensãoentreosdoispapéiséaparentementeresolvidapor
uma nova relaçãomonetária, isto é, a relação entre devedores e credores. Isso transfere o foco da
formaM-D-Mde circulação para a formaD-M-D, que é, obviamente, o protótipo do conceito de
capitaldefinidonãocomoumacoisa,mascomouma formadecirculaçãodovalorqueproduzum
mais-valor(lucro),D-M-D+ΔD.Issocriaumacontradiçãoentreaequivalênciasupostanomercado
de funcionamento perfeito e a não equivalência requerida na produção de mais-valor. E assim
chegamosàconcepçãodeumarelaçãodeclassesentrecapitaletrabalho.
Observe que não se trata de uma cadeia causal de argumentos, mas de um desdobramento
gradual, da sobreposição de diferentes graus de complexidade, à medida que a investigação se
expandedeumasimplesoposiçãonointeriordamercadoriaparainsightsprogressivossobrediferentes
aspectosdo funcionamentodomododeprodução capitalista.Essa expansãodialética continua em
todoo livro,por exemplonaemergênciadeuma relaçãoedeuma lutadeclasses, assimcomonos
conceitosdúplicesdemais-valorabsolutoemais-valorrelativo.Porfim,talexpansãochegaaoplano
damacrodicotomiaentreoLivroI,quetratadomundodaproduçãodemais-valor,eoLivroII,cujo
focoéacirculaçãoearealizaçãodomais-valor.Astensões(contradições)entreproduçãoerealização
sustentamateoriadacrisenoLivroIII.Massigamosadiante.
EssemapacognitivonosajudaavercomoMarx“cultivou”seuargumentoorganicamenteepor
saltos dialéticos.Masnãopodemos esquecer que o diagrama é um simples esqueleto, em tornodo
qualMarxorganizaumaanálisedacarneedosanguereaisdeumdinâmico,evolutivoecontraditório
mododeproduçãocapitalista.
CAPÍTULO5:OPROCESSODETRABALHOEOPROCESSODEVALORIZAÇÃO
Deixamosagoraaesfera“barulhenta”domercado,aesferadaliberdade,daigualdade,dapropriedade
edeBentham,eentramosnoprocessodetrabalho,emcujolimiarestáescrito:“Noadmittanceexcept
onbusiness”.Noentanto,essecapítuloéincomum,emcertoaspecto.Namaiorpartedotexto,Marx
deixa claro que está lidando apenas com categorias conceituais formuladas nomodo de produção
capitalista e adequadas unicamente a esse modo de produção. O valor, por exemplo, não é uma
categoria universal,mas algo exclusivo do capitalismo, um produto da era burguesa (como vimos,
Aristóteles não poderia tê-lo descoberto, dadas as condições de escravidão). Contudo, nas dez
primeiraspáginasdessecapítulo,Marxselançanumadiscussãouniversal,aplicávelatodososmodos
possíveisdeprodução.“Deinício,devemosconsideraroprocessodetrabalhoindependentementede
qualquer forma social determinada” (255), diz ele, confirmando assim a posição assumida
anteriormentedequeotrabalhoé“umacondiçãodeexistênciadohomem,independentedetodasas
formassociais,eternanecessidadenaturaldemediaçãodometabolismoentrehomemenaturezae,
portanto,davidahumana”(120).
Contudo, não devemos interpretar essas afirmações em termos burgueses, familiares, que
pressupõemumaclara separaçãoentre “homemenatureza”, cultura enatureza,natural e artificial,
mental e físico, e nos quais a história é concebida como uma luta titânica entre duas forças
independentes: humanidade e natureza. Na visão de Marx, não existe separação no processo de
trabalho. Este é inteiramente natural e, ao mesmo tempo, inteiramente humano. É construído
dialeticamente como um momento do “metabolismo”, em que é impossível separar o natural do
humano.
Mas no interior dessa concepção unitária do processo de trabalho, assim como no caso da
mercadoria, identificamos de imediato uma dualidade. Segundo Marx, há “um processo entre o
homemeanatureza,processoesteemqueohomem,porsuaprópriaação,medeia,regulaecontrola
seumetabolismocomanatureza”(255).Ossereshumanossãoagentesativosemrelaçãoaomundo
queosrodeia.Assim,
[ohomem]confrontacomamatérianaturalcomocomumapotêncianatural[Naturmacht].Afimdeseapropriardamatérianaturalde
umaformaútilparasuaprópriavida,elepõeemmovimentoasforçasnaturaispertencentesasuacorporeidade:seusbraçosepernas,
cabeça emãos. Agindo sobre a natureza externa emodificando-a pormeio dessemovimento, elemodifica, aomesmo tempo, sua
próprianatureza.(255)
Énessapassagemquevemosmaisclaramentea formulaçãodialéticadeMarxda relaçãocoma
natureza.Não podemos transformar o que se passa ao nosso redor sem transformar a nósmesmos.
Inversamente,nãopodemostransformaranósmesmossemtransformaroquesepassaaonossoredor.
Ocaráterunitáriodessa relaçãodialética,mesmoque impliqueuma“exteriorização”danaturezae
uma“interiorização”dosocial, jamaispodesereliminado.Taldialéticadatransformaçãoconstante
desimesmomediantea transformaçãodomundo,evice-versa,é fundamentalparaentendermosa
evoluçãodassociedadeshumanas,assimcomoaevoluçãodapróprianatureza.Masesseprocessonão
éexclusivodossereshumanos–eleexisteentreasformigas,entreoscastores,entretodosostiposde
organismos.AhistóriadavidanaTerraépródigaeminteraçõesdialéticasdessetipo.JamesLovelock,
por exemplo, defende com sua hipótese de Gaia que a atmosfera que nos mantém neste exato
momentonemsempreexistiu;elateriasidocriadapororganismosquesealimentavamdemetanoe
produziamoxigênio.Adialéticadavidaorgânicaeaevoluçãodomundonaturalfoi,desdesempre,
fundamental.
Emseusprimeirosescritos,Marxdeugrandeênfaseàideiadeum“sergenérico”especificamente
humano (apoiando-se talvez na antropologia kantiana e nas formulações antropológicas tardias de
Feuerbach).Essaideiaérelegadaaumsegundoplanonasformulaçõesd’Ocapital,masvezououtra
temuma influência furtiva, comonesse caso.Oque tornanosso trabalho exclusivamentehumano,
então?Marxescreve:
Umaaranhaexecutaoperaçõessemelhantesàsdotecelão,eumaabelhaenvergonhamuitosarquitetoscomaestruturadesuacolmeia.
Porém,oquedesdeoiníciodistingueopiorarquitetodamelhorabelhaéofatodequeoprimeirotemacolmeiaemsuamenteantes
de construí-la com a cera.No fi nal do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do
trabalhadornoiníciodoprocesso,portanto,umresultadoquejáexistiaidealmente[istoé,mentalmente].(256)
Essa éuma afirmação importante.Temosuma ideia, dizMarx, e a tornamos real.Portanto,há
sempre um momento “ideal” (mental), um momento utópico, envolvido na atividade produtiva
humana.Maisainda,essemomentonãoécontingente:ohomem“nãoselimit[a]aumaalteraçãoda
formado elementonatural; ele realizaneste último, aomesmo tempo, seuobjetivo”.A atividade é
intencional.Eaessepropósito,que“determina,comolei,otipoeomododesuaatividade”,eletem
de“subordinarsuavontade.Eessasubordinaçãonãoéumatoisolado”.Eleprecisa–nósprecisamos–
prestarmuitaatenção,e“tantomaisquantomenosesse trabalho,pelo seupróprioconteúdoepelo
modode sua execução, atrai o trabalhador,portanto,quantomenos esteúltimousufruidele como
jogodesuasprópriasforçasfísicasementais”(256).
Háumasériedepontosnessaspassagenscruciaisquedevemserressaltados–eelassãorealmente
cruciais.Paracomeçar,nãohádúvidadequeMarxcontestaasideiasdeFouriersobreoprocessode
trabalho. Fourier acreditava que o trabalho tinha de ser uma atividade prazerosa, de envolvimento
erótico e apaixonado,ou entãopuramente lúdico.Marxdizqueo trabalhonão énadadisso.Uma
enormedosedeesforçoedisciplinaénecessáriaparaqueoprodutoimaginadosetornereal,paraque
um propósito consciente seja concretizado. Em segundo lugar, ele atribui um papel vital às
concepções mentais, à ação consciente e intencional, o que contradiz um argumento muito
frequentementeatribuídoaele,odequeascircunstânciasmateriaisdeterminamaconsciência,ede
queomodocomopensamoséditadopelascircunstânciasmateriaisdenossavida.OqueMarxdiz
aqui é: não, há um momento em que o ideal (o mental) medeia efetivamente o que fazemos. O
arquiteto – e acho que é importante tratá-lo aqui mais como uma metáfora do que como uma
profissão–temacapacidadedepensaromundoerefazê-losegundoessaimagem.Algunsintérpretes
argumentam que Marx simplesmente se esqueceu de suas próprias máximas nessas passagens, ou
então é esquizofrênico e, nesse caso, existem dois marxismos: um é o Marx dessa passagem, que
afirmaolivrejogodasideiasedasatividadesmentais;ooutroéoMarxdeterminista,quesustenta
que nossa consciência, assim como tudo o que pensamos e fazemos, é determinada pelas
circunstâncias materiais em que vivemos. Penso que nenhuma das duas concepções é plausível. É
improvável que justamente n’O capital, num capítulo fundamental de uma obra que foi
cuidadosamente revisada antes de ser publicada (e posteriormente modificada em resposta às
críticas),Marxassumiriaumaposiçãoquenãofosseprofundamentecoerentecomomodocomoele
compreendiaomundo.Seessaspassagensestivessemnumdeseuscadernosdeanotações,oumesmo
nosGrundrisse,aquestãoseriaoutra.Masesseéumpontode transição fundamentalnoargumento
d’Ocapital.Elemerece,portanto,umaleiturasériaeumainterpretaçãocuidadosa.
Acompreensãodialéticadoprocessode trabalhocomoummomentometabólico implicaqueas
ideiasnãopodemsurgirdonada.Asideiassão,emcertosentido,inteiramentenaturais(umaposição
fundamentalmentecontráriaao idealismohegeliano).Assim,nãohánadaestranhoemdizerqueas
ideias surgem da relaçãometabólica com a naturezamaterial e têm amarca dessa origem.Nossas
concepçõesmentaisdomundonãosãoseparadasdenossasexperiênciasmateriais,denossasrelações
centraiscomomundo,e,portanto,nãosãoindependentesdessasrelações.Contudo(eaquioparalelo
comodinheiroeamercadoriaéinstrutivo),háumaexteriorizaçãoinevitáveldeumarelaçãointerna
e, domesmomodo que omundo do dinheiro (sobretudo quando assume formas simbólicas) pode
aparentar ser e “realmente é” oposto ao mundo das mercadorias e de seus valores de uso (ver a
argumentação sobre o fetichismo), nossas concepçõesmentais transitam para uma relação externa
comomundomaterialqueprocuramosremodelar.Há,portanto,ummovimentodialético,emquea
imaginaçãovoalivreediz“Vouconstruiristo,emvezdaquilo”,remodelandoelementosmateriaise
usandoasforçasnaturais(inclusiveosmúsculoshumanos)paraproduziralgonovoediferente(por
exemplo,ooleirocomseutorno).Certaaberturaparaasideiaseconcepçõesmentaisécaptadapela
formulaçãodeMarx.E,assimcomoosistemamonetáriopodesairdos trilhosegerarcrises,nossas
concepçõesmentais (ou fixações ideológicas) tambémpodem fazê-lo.De fato, essa é exatamente a
posiçãoqueMarxassumeemrelaçãoàvisãoburguesadomundo,comsuasfantasiascomRobinson
Crusoée suacelebraçãodeum individualismopossessivo fictício edemercadosde funcionamento
perfeito.Domesmomodoqueemalgummomentoosistemamonetárioéforçadoaserecomporem
relação ao mundo material do trabalho socialmente necessário, a concepção burguesa do mundo,
ainda hoje tão presente entre nós, precisa dar lugar a uma configuração mais apropriada das
concepções mentais, se quisermos enfrentar os crescentes problemas sociais e ambientais do
capitalismo. A luta por concepções mentais apropriadas (tidas em geral como “meramente”
superestruturais, emboraMarxdiga especificamenteque esse éo reinoemqueoshomens “tomam
consciência”dasquestões e “as enfrentam”
[a]
) temumpapel importantenisso.Porqueoutra razão
Marx se esforçaria tanto para escrever O capital ? Por isso, esse momento em que Marx situa
concepçõesmentais,consciência, intencionalidadeecomprometimentonãoédemodoalgumuma
aberração em relação àdinâmicada evolução social eda transformaçãodanatureza, edanatureza
humana,pormeiodotrabalho.Aocontrário,eleéfundamental.
Marx tambémdiz aqui que, para concluir umprojeto (como construir uma casa), é necessário
trabalhoárduoe,umavezqueembarcamosnumprojeto,muitasvezesficamospresosaseuslimites.Se
quisermosconcluí-lo,temosdenossubmeterasuasdemandas,sujeitarnossaspaixõesenósmesmosà
intensidadedesuaintenção.Semprequeescrevoumlivro,porexemplo,começocomumaideiaque
meparecebrilhanteeanimadora,mas,quandootermino,sintocomosetivessesaídodeumaprisão!
Masháaquiumsignificadomuitomaisamplo.NocentrodasensibilidadecríticadeMarxresidea
ideia de que os seres humanos podem muito facilmente se tornar prisioneiros de seus próprios
produtoseprojetos,paranãofalardesuasfalsasconcepçõesdemundo.Essasensibilidadecríticapode
seraplicadacomamesmacrueldadetantoaocomunismo,aosocialismoeàRomaAntigaquantoao
capitalismo,masénesteúltimoqueMarxadesenvolvecommaisforçaepersuasão.
Háalgomaisnessaspassagensqueastornainteressantes.Ameuver,Marxconfereaoprocessode
trabalhoum sentidonão apenasde criatividade,mas tambémdenobreza.Oargumentomeparece
profundamenteromântico.Indiscutivelmente,Marxfoi influenciadopeloRomantismodoiníciodo
séculoXIX.Seusprimeirosescritostranspiramsentimentosesignificadosromânticos.E,emboraessa
sensibilidadepercaforça,nãoédifícilnotá-laemseusescritosmaduros(aindaqueconceitoscomoa
alienação troquem o caráter profundamente agonístico que tinham nos Manuscritos econômico-
filosóficos
[b]
por significadosmais técnicosn’Ocapital ).Mas aqui ele diz semmeias-palavras queos
seres humanos podem transformar radicalmente o mundo, de acordo com sua imaginação e com
determinado propósito, e ter consciência do que estão fazendo. E que, com isso, têm o poder de
transformarasimesmos.Portanto,precisamosrefletirsobrenossospropósitos,tomarconsciênciade
como e quando intervimos no mundo, transformando a nós mesmos. Podemos e devemos nos
apropriarcomcriatividadedessapossibilidadedialética.Nãohá,portanto,umatransformaçãoneutra
deumanaturezaexterioranós.Oquefazemos“láfora”temmuitoaverconosco“aquidentro”.Marx
nosfazrefletirsobreoqueessadialéticasignificaexatamenteparanós,assimcomoparaanatureza,
daqualsomosapenasumaparte:daíaabordagemuniversalistaparacompreendermosoprocessode
trabalho.Issoimplicaqueanaturezahumananãoéalgodado,masestáemconstanteevolução.
A posição deMarx aqui é controversa (como talvez possa ser tambémminha leitura dela).Há
oportunidadesabundantesdedebate.Porexemplo,vocêpodeconcordarcomaposiçãodeFourier,ou
com alguma versão das posições marxistas autônomas de Antonio Negri, John Holloway e Harry
Cleaver, cujo Reading Capital Politically [Lendo O Capital politicamente]
[1]
oferece uma análise
intensivadamatériaexpostaaqui.Antes,porém,éprecisocompreenderoqueMarxestádizendo;veja
queessaéaposiçãoqueelepróprioassume,essaéavisãoqueeletemdaspotencialidadesdotrabalho
criativoedatransformaçãodomundo.
Entãocomooprocessode trabalho, enquantocondiçãouniversaldepossibilidadedaexistência
humana,podesercaracterizado?Marxdistinguetrêselementosfundamentais:“aatividadeorientada
aum fim, ouo trabalhopropriamentedito [...]; seuobjeto e [...] seusmeios” (256). Inicialmente, o
objetosobreoqualérealizadootrabalhoestádadonoconceitodeterra,nanaturezabruta.Maselese
distanciarapidamentedessaideiaepassaadistinguirentrenaturezabrutaematérias-primas,quesão
aspectosdomundojáparcialmentetransformados,criadosouextraídospelotrabalhohumano.Uma
distinçãosimilaréfeitanocasodosinstrumentosdetrabalho.Estespodemserdadosdiretamente–
paus,pedrasouqualqueroutracoisaquepossamosutilizar–oupodemserconfeccionadosdemodo
consciente,comofacasemachados.Assim,emboraaTerrapossasernosso“estoqueoriginaldemeios
de subsistência” e nosso “arsenal original de instrumentos de trabalho”, há muito tempo os seres
humanosconseguiramtransformartantoaTerraquantoosinstrumentosdetrabalhodeacordocom
umprojetoconsciente.CitandoBenjaminFranklincomcertaparceladeaprovação,Marxdizqueo
homempodeserdefinidocomoum“toolmakinganimal,umanimalquefazferramentas”:“Ousoea
criação demeios de trabalho, embora já existam em germe em certas espécies de animais, é uma
característica específica do processo humano de trabalho” (257). Marx faz então uma rápida
observaçãosobrealgoqueserátratadoemdetalhesmaisadiante:
Oquediferenciaasépocaseconômicasnãoé“oquê”éproduzido,mas“como”,“comquedetrabalho”.Estesnãoapenasfornecem
umamedidadograudedesenvolvimentodaforçadetrabalho,mastambémindicamascondiçõessociaisnasquaissetrabalha.(257)
Isso implica que a transformação em nossos instrumentos de trabalho tem consequências para
nossas relações sociais, e vice-versa; àmedida que nossas relações sociaismudam, nossa tecnologia
também tem de mudar; e, à medida que nossa tecnologia muda, tambémmudam nossas relações
sociais.Assim, ele lança aqui a ideia deumadialética entre tecnologias e relações sociais que será
importantemaisadiante.Comovimos,estaéumaestratégiatípicadeMarx–inserirumcomentário
comointroduçãodoquevirádepois.
Masnãoestamos tratandoapenasde ferramentasemsentidoconvencional.Ascondições físicas
de infraestrutura, também produzidas pelo trabalho humano, não estão diretamente envolvidas no
processoimediatodetrabalho,porémsãonecessáriasàsuarealização.“Meiosdetrabalhodessetipo,
já mediados pelo trabalho, são, por exemplo, oficinas de trabalho, canais, estradas etc.” (258). O
processodetrabalhodependenãoapenasdaextraçãodemateriaisdanaturezabruta,mastambémde
umambienteconstruídodecampos,estradaseinfraestruturaurbana(àsvezescitadacomo“segunda
natureza”).
Eoprocessode trabalhopropriamentedito?Aqui,Marxvoltaaconsideraras relaçõesprocesso-
coisa.Otrabalhoéumprocessoquetransformaumacoisaemoutracoisa.Essatransformaçãoanula
um valor de uso existente e cria um valor de uso alternativo. Além disso, “o que do lado do
trabalhador aparecia sob a forma do movimento, “agora se manifesta, do lado do produto, como
qualidadeimóvel,naformadoser.Elefiou,eoprodutoéumfio”(258).Essadiferençaentreprocesso
ecoisaestásemprepresente.
SempreadmireiissonasformulaçõesdeMarx.Comoeducador,souconstantementeconfrontado
com a relação processo-coisa. O processo de aprendizado de um estudante é julgado por coisas
realizadas, comoensaios escritos.Mas às vezes édifícil, senão impossível, avaliar esseprocessopor
meio de coisas produzidas. Os estudantes podem achar o processo extremamente esclarecedor e
aprendermuito,mas,seredigemumensaioruim,recebemumanotaF.Dizem,então:“Masaprendi
tanto com o curso!”. E eu respondo: “Como você pode escrever um ensaio como este e dizer que
aprendeucomocurso?”.Masesseéumproblemacomquenosdeparamoscomfrequência.Podemos
fracassarestrondosamentequandoproduzimosacoisa,mas terumaprendizado fantásticoao longo
doprocesso.
ParaMarx, o cerne do trabalho está no processo.Domesmomodo que o capital é construído
comoumprocessodecirculação,otrabalhoéconstruídocomoumprocessodefabricação.Maséum
processodefabricaçãodevaloresdeusoe,sobocapitalismo,issosignificafabricarvaloresdeusopara
outrosnaformademercadoria.Essevalordeusoprecisaserdeusoimediato?Nãonecessariamente,
porqueotrabalhorealizadonopassadopodeserarmazenadoparausonofuturo(mesmosociedades
primitivasmantêmumestoquedeprodutosexcedentes).Nomundoatual,umaenormequantidade
detrabalhorealizadonopassadoencontra-searmazenadanoscampos,nascidadesenainfraestrutura
física,eboapartedissodatademuitotempoatrás.Aatividadelaboraldiáriaéumacoisa,masomodo
comootrabalhoéarmazenadoemprodutosecoisastambémtemumpapelfundamental.Maisainda,
o processo de trabalho costuma produzir coisas diversas simultaneamente. É o que chamamos de
“produtoscombinados”.Acriaçãodegadoproduz leite,carneecouro,eaovelhacriadaparacorte
também produz lã, gostemos disso ou não. Isso coloca certos problemas sob o capitalismo, por
exemplo:comoessesmúltiplosprodutoscombinadospodemseravaliadosseparadamente?Ouainda:
como os produtos do trabalho passado se relacionam com o trabalho presente? Isso se torna
particularmenteimportantenocasodovalordasmáquinas:“umamáquinaquenãoservenoprocesso
detrabalhoéinútil”.Consequentemente,
Otrabalhovivotemdeapoderar-sedessascoisasedespertá-lasdomundodosmortos,convertê-lasdevaloresdeusoapenaspossíveis
emvaloresdeuso reais e efetivos.Umavez tocadaspelo fogodo trabalho [e aquiMarx volta a enfatizar a centralidadedo trabalho
comoprocesso],apropriadascomopartesdocorpodotrabalho,animadaspelasfunçõesque,porseuconceitoevocação,exercemno
processolaboral,elas[asmáquinas]serão,sim,consumidas,porémsegundoumpropósito,comoelementosconstitutivosdenovos
valoresdeuso,denovosprodutos,aptosa ingressarnaesferadoconsumo individualcomomeiosde subsistênciaouemumnovo
processodetrabalhocomomeiosdeprodução.(260-1)
Portanto,éocontatocomo trabalhovivoqueressuscitaovalordo trabalhomorto,cristalizado
nos produtos passados. Isso aponta uma distinção vital entre o consumo produtivo e o individual.
Consumoprodutivoéo trabalhopassadoqueéconsumidonumprocessode trabalhopresentepara
produzirumvalordeusointeiramentenovo;consumoindividualéoqueéconsumidopelaspessoas
aoreproduzirasimesmas.
“Oprocessode trabalho”,dizMarxàguisadeconclusão, “éatividadeorientadaàproduçãode
valoresdeuso,apropriaçãodoelementonaturalparaasnecessidadeshumanas,condiçãonecessária
do metabolismo entre homem e natureza” (note mais uma vez como é importante essa ideia de
interaçãometabólicanaanálisedeMarx),“perpétuacondiçãonaturaldavidahumana”(comoelejá
afirmounapágina261)
e,porconseguinte,independentedequalquerformaparticulardessavida,oumelhor,comumatodasassuasformassociais.Poressa
razão,nãonosfoinecessárioapresentarotrabalhadoremsuarelaçãocomoutrostrabalhadores,epudemosnoslimitaraohomeme
seu trabalho, de um lado, e à natureza e seusmateriais, de outro. Assim como o sabor do trigo não nos diz nada sobre quem o
plantou,tampoucoesseprocessonosrevelasobquaiscondiçõeseleserealiza.(198-9)
OqueMarxfaznessaspoucaspáginaséapresentardissecaçõesedescriçõesuniversaisdoprocesso
de trabalho, independente de qualquer formação social, despido de qualquer significado social
particular. Posso descrever com todos os detalhes físicos alguém que esteja cavando um buraco,
inclusive sua relação como trabalho realizadonopassado e incorporadonapá;no entanto, apenas
combasenessadescrição,nãopossosaberseessapessoaéumaristocrataexcêntrico,quecavaburacos
apenaspeloexercício,ou seéumcamponês,umescravo,umassalariadoouumcondenado.Assim,
podemos olhar para o processo de trabalho como um processo puramente físico, sem saber
absolutamentenadaarespeitodasrelaçõessociaisemqueestáassentadoesemnenhumareferência
às concepções ideológicas ementaisque surgem,digamos,domododeproduçãocapitalista.Resta
consideraromodocomoocapitalismofazusopeculiardessascapacidadesepotênciasuniversais.
Aformacapitalistadoprocessodetrabalho
“Voltemos,agora,anossocapitalistainspe[aspirante].Quandoodeixamos,elehaviaacabadode
comprarnomercadotodososfatoresnecessáriosaoprocessodetrabalho,tantoseusfatoresobjetivos”
–istoé,osmeiosdeprodução–“quantoseufatorpessoal,ouaforçadetrabalho”.Duascondiçõesse
apresentam,noentanto,nocontratoentrecapitaletrabalhonoatodecompraevendadaforçade
trabalho comomercadoria. A primeira é que “o trabalhador labora sob o controle do capitalista, a
quempertenceseutrabalho”(262).Issoquerdizerque,quandofirmoumcontratodetrabalhocom
umcapitalista,eletemodireitodedirigirminhaatividadelaboraledeterminarminhastarefas.Isso
pode ser contestado quando o trabalho comporta um risco à vida, mas o princípio geral é que o
trabalhador receberáodinheiropara sobrevivere, emtroca,ocapitalistapoderádirigi-lopara fazer
isto ou aquilo. A força de trabalho é umamercadoria que pertence ao capitalista pelo período do
contrato.Asegundacondiçãoéquetudoqueotrabalhadorproduzirduranteoperíododocontrato
pertenceráaocapitalista,nãoaotrabalhador.Mesmoqueeutenhafeitoamercadoriaeincorporado
nela trabalho concreto e valor, ela não me pertence. Essa é uma transgressão interessante da
concepção de Locke de que aqueles que criam valor ao aplicar seu trabalho à terra tornam-se os
titularesdapropriedadeprivadadaquelevalor.Demodogeral,acreditoquevocêpossaperceberque
essasduascondiçõeslevamàalienaçãototaldotrabalhador(emboraMarxnãouseotermoaqui)em
relaçãoaopotencialcriativoinerentetantoaotrabalhoquantoaoproduto.“Apartirdomomentoque
ele entra na oficina do capitalista, o valor de uso de sua força de trabalho, portanto, seu uso, o
trabalho,pertenceaocapitalista.Medianteacomprada forçade trabalho,ocapitalista incorporao
própriotrabalho,comofermentovivo”–maisumavez,encontramosotrabalhocomoumaatividade,
comoo“fogovivo,conformador”presentenosGrundrisse–“aoselementosmortosqueconstituemo
produtoelhepertencemigualmente”(262).
Essasduascondições,noentanto,permitemqueocapitalistaorganizeaproduçãopara
produzirumamercadoria cujovalor sejamaiordoque a somadovalordasmercadorias requeridaspara suaprodução,osmeiosde
produçãoea forçadetrabalho,paracujacompraeleadiantouseudinheironomercado.Elequerproduzirnãosóumvalordeuso,
masumamercadoria;nãosóvalordeuso,masvalor,enãosóvalor,mastambémmais-valor.
Assim,ocapitalistaune“oprocessodetrabalhoeoprocessodeformaçãodevalor”paracriarum
novo tipodeunidade (263).É isso queo capitalista temde fazer, esse é seupropósito consciente,
porqueaorigemdolucroestánomais-valor,eopapeldocapitalistaébuscarlucro.DizMarx:
Todasascondiçõesdoproblemaforamsatisfeitas,semquetenhaocorridoqualquerviolaçãodasleisdatrocademercadorias.Trocou-
se equivalente por equivalente.Como comprador, o capitalista pagouodevido valor por cadamercadoria: algodão, fusos, forçade
trabalho.Emseguida,fezomesmoquecostumafazertodocompradordemercadorias:consumiuseuvalordeuso.
Isso permite que o capitalista produza mercadorias com mais valor do que aquelas que ele
comprou no início do processo e, assim, obtenhamais-valor. “Esse circuito inteiro”, concluiMarx,
envolve“atransformaçãodeseudinheiroemcapital”e“ocorrenointeriordaesferadacirculaçãoe,
aomesmotempo, foradela”(271).Omaterialea forçadetrabalhosãocompradosnomercadopor
seu valor,mas, uma vez longe dos olhos domercado, são utilizados para incorporarmais valor às
mercadoriasproduzidasnoprocessodeprodução.As condições “satisfeitas” são as estabelecidasno
fimdosegundoitemdocapítulo4:opossuidordedinheiro“temdecomprarasmercadoriaspeloseu
valor,vendê-laspeloseuvalore,noentanto,nofinaldoprocesso,retirardacirculaçãomaisvalordo
quenelacolocouinicialmente”(241).Oresultadoparecemágico,porquenãosóocapitalpareceser
capazdepôrovosdeouro,masporque,“aoincorporarforçavivadetrabalhoàsuaobjetividademorta,
ocapitalistatransformaovalor–otrabalhopassado,objetivado,morto–emcapital,emvalorquese
autovaloriza,ummonstrovivoquesepõea‘trabalhar’comoseseucorpoestivessepossuídodeamor
[aquiMarxcitaFausto]
[c]
”(271).
Aformadacirculaçãopodeserassimdescrita:
FT
D-M.....PT............M-D+ΔD
MP
Vejamos mais de perto os diferentes momentos desse processo. O capitalista tem de comprar
meiosdeprodução(MP):matérias-primas,maquinariaeitenssemimanufaturados,todosprodutosde
trabalhopassado (valores incorporados).E temdepagarpor essasmercadorias seuvalor,de acordo
com as regras da troca. Se ele precisar de um fuso, o tempo de trabalho socialmente necessário
incorporado nos fusos fixa esse valor. Se ele usar um fuso de ouro, então este não é socialmente
necessário.Para queoprocessode trabalho funcione, o capitalista temde ter acesso adequado aos
meiosdeproduçãonomercado.Oqueacompradeforçadetrabalho(FT)possibilitaéareanimação
dessesmeios“mortos”deproduçãopormeiodoprocessodetrabalho(PT).
Duranteoprocessodetrabalho,estepassaconstantementedaformadainquietudeàformadoser,daformademovimentoparaade
objetividade. Ao final de 1 hora, o movimento da fiação está expresso numa certa quantidade de fio, ou seja, numa determinada
quantidadedetrabalho,em1horadetrabalho,estáobjetivadanoalgodão.Dizemoshoradetrabalho,istoé,dispêndiodaforçavital
dofiandeirodurante1hora,poisotrabalhodefiaçãosótemvalidadeaquicomodispêndiodeforçadetrabalho,enãocomotrabalho
específicodefiação.(266)
Emoutraspalavras,étrabalhoabstratoqueestásendoincorporadonoatodefiar,évalorqueestá
sendo adicionado na forma de tempo de trabalho socialmente necessário incorporado no fio. O
resultado é que “quantidades determinadas de produto, fixadas pela experiência, não representam
agoramaisdoquequantidadesdeterminadasdetrabalho,massasdeterminadasdetempodetrabalho
cristalizado”.Alémdisso,“duranteoprocesso,istoé,duranteatransformaçãodoalgodãoemfio,éde
extrema importância que não seja consumido mais do que o tempo de trabalho socialmente
necessário”(266).
Contudo,nofimdajornadadetrabalho,setudocorrerbem,oscapitalistasseveemmagicamente
depossedemais-valor.O “capitalista ficaperplexo”, escreveMarx comextrema ironia.Ovalordo
produtonãodeveriaser“igualaovalordocapitaladiantado”,umasimplesadiçãodetodososvalores
dados inicialmente(267)?Dadaa leideequivalêncianastrocas,deondevemomais-valor?“Maso
caminho para o inferno” – dizMarx com amesma ironia – “é pavimentado com boas intenções”
(268).
Oscapitalistasprocuramexplicaçõesvirtuosasparaomais-valor.Aprimeiraéaabstinência:elesse
abstêmde consumir e investemodinheiroquepoupam.Enãomerecemuma recompensapor essa
abstinência?Esse é um temado longodebate sobre opapel da ética protestanteno surgimentodo
capitalismo.Asegundaexplicaçãoéqueoscapitalistasdãoempregoaopovo.Seelesnãoinvestissem
seu dinheiro, não haveria empregos. Pobres trabalhadores! Os capitalistas fazem um favor a eles
investindoseudinheiro.Oscapitalistasnãomerecemumretornoporisso?Esseargumentoébastante
difundido e, superficialmente, bastante convincente – não é verdade que o investimento cria
empregos? Eu costumava discutir isso com minha mãe. Ela dizia: “É claro que precisamos de
capitalistas!”.Eeu:“Porquê?Porquê?”.Earespostaera:“Quemempregariaostrabalhadoressenão
tivéssemos capitalistas?”. Ela não conseguia conceber outros modos de empregar as pessoas.
“Capitalistas são indispensáveis”, dizia ela, “e émuito importante tê-los ao nosso redor e tratá-los
bem,porque,seelesnãoempregassemostrabalhadores,omundoseriaumlugarterrível.Vejaoque
aconteceunosanos1930!”Aterceiraexplicaçãoéqueoscapitalistastrabalhamduro.Elescontrolamo
processodeprodução,administramascoisas,investemseuprópriotempodetrabalhoeassumemum
mundoderiscos.Sim,defato,muitoscapitalistastrabalham,emuitostrabalhamduro;mas,quando
trabalham,pagamasimesmosduasvezesmais,istoé,pagamasimesmosataxaderetornosobreo
capitalque investiramepagama simesmoscomoadministradores.Remunerama simesmoscomo
diretoresexecutivosecomprammaisaçõesdesuaprópriaempresa.
Marxconsideraessasexplicaçõessubterfúgiosetruquesdeilusionismo:
Ele[ocapitalista]nosrezoutodaessaladainha.Masnãodáporelanemumtostão.Esseseoutrossubterfúgiosetruquesbaratosele
deixaaosprofessoresdeeconomiapolítica,quesãopagosparaisso.Jáele,aocontrário,éumhomemprático,quenemsempresabeo
quedizquandoseencontraforadeseunegócio,massabemuitobemoquefazdentrodele.(269)
Oscapitalistaspodemsermodestosecomedidos,eatéexibirumaatitudebenevolenteemrelação
aos trabalhadores (numa tentativadesesperadademanter suamãodeobra em temposdifíceis, por
exemplo).OargumentodeMarxéqueoscapitalistasnãopoderiamsustentarosistemaapelandopara
avirtude,amoralidadeouabenevolência–ocomportamentoindividualdoscapitalistas,quevaria
da benevolência à mais pura cobiça, é irrelevante para aquilo que eles têm de fazer para ser
capitalistas,istoé,buscarmais-valor.Alémdomais,seupapelédefinido,comodizMarx,pelas“leis
coercitivasdaconcorrência”,queimpelemtodososcapitalistasasecomportardemodosimilar,não
importandosesãopessoasboasounotóriosporcoscapitalistas.
Segue-se daí a resposta ao problema da explicação do mais-valor. Paga-se o valor da força de
trabalho, que é fixado, lembramos, pelo valor das mercadorias necessárias para reproduzir o
trabalhadornumdadopadrãodevida.Otrabalhadorvendeaforçadetrabalho,recebeodinheiroe
compra com ele aquela cesta de mercadorias necessárias para viver.Mas o trabalhador precisa de
apenas um certo número de horas para reproduzir o equivalente do valor da força de trabalho.
Portanto, os “custos diários demanutenção”da força de trabalho e sua criaçãodiária de valor são
coisastotalmentediferentes.“Aprimeiradeterminaseuvalordetroca,asegundaconstituiseuvalor
deuso.”Otrabalho,lembramos,estánocircuitoM-D-M,aopassoqueocapitalestánocircuitoD-
M-D+ΔD.
O fato de quemeia jornada de trabalho seja necessária paramanter o trabalhador vivo por 24 horas demodo algumo impede de
trabalharuma jornada inteira.Ovalorda forçade trabalhoe suavalorizaçãonoprocessode trabalho são,portanto,duasgrandezas
distintas.Éessadiferençadevalorqueocapitalistatememvistaquandocompraaforçadetrabalho[...].Masoqueédecisivoéovalor
deuso específicodessamercadoria,o fatode ela ser fontede valor, edemais valordoque aqueleque elamesmapossui.Esse éo
serviço específico que o capitalista espera receber damercadoria e, dessemodo, ele age de acordo com as leis eternas da troca de
mercadorias.Naverdade,ovendedordaforçadetrabalho[otrabalhador],comoovendedordequalqueroutramercadoria,realizaseu
valordetrocaealienaseuvalordeuso.(270)
Há uma distinção crucial entre o que o trabalho recebe e o que o trabalho cria.Omais-valor
resultadadiferençaentreovalorqueotrabalhoincorporanasmercadoriasnumajornadadetrabalho
e o valor que o trabalhador recebe por entregar ao capitalista a força de trabalho como uma
mercadoria. Em suma, paga-se aos trabalhadores o valor da força de trabalho, e ponto final. O
capitalistaoscolocaparatrabalhardemodoquenãosóreproduzamovalordesuaprópria forçade
trabalho,mastambémproduzamomais-valor.Paraocapitalista,ovalordeusodaforçadetrabalho
estánofatodeelaserumamercadoriaquepodeproduzirvalore,consequentemente,mais-valor.
Há, é claro, inúmeras sutilezas que devemos considerar. No capítulo anterior, por exemplo,
aprendemosqueovalorda forçade trabalhonãoéumagrandeza fixa,masvariadeacordocomas
necessidadesfísicas,ograudecivilizaçãodeumpaís,oestadodalutadeclassesetc.Assim,ovalorda
forçadetrabalhonaSuéciaéradicalmentedistintodovalordaforçadetrabalhonaTailândiaouna
China.Mas,parasimplificaraanálise,Marxsupõeovalordaforçadetrabalhocomoum“dado”fixo;
dessemodo,podemoschegaraovaloraproximadodaforçadetrabalhoemdeterminadasociedadee
emdeterminadaépoca.Issonospermitepresumirqueoscapitalistaspagamovalorplenodessaforça
de trabalho (mesmo que, na prática, empenhem todas as suas forças para pagar menos aos
trabalhadores)eaindaautilizam,independentementedeseuvalor,paracriarmais-valor,explorando
o hiato entre o que o trabalho recebe e o valor que o trabalho cria. Esse hiato pode ser explorado
porqueocapitalistatemocontrolesobre(1)oqueotrabalhadorfaznafábricae(2)oproduto.Mas
esconde-senesseargumentooutravariávelqueMarxtemdeanalisar:porquantotempootrabalhador
écontratadoparatrabalhardiariamente?Seostrabalhadoresproduzemovalorequivalenteàsuaforça
detrabalhoemseishoras,entãoocapitalistasópodeobtermais-valorseoscontratarparatrabalhar
maisdoqueisso.Seajornadadetrabalhoédedezhoras,ocapitalistaganhaquatrohorasdemais-
valor.Éissoquepermiteextrairmais-valorsemviolarasregrasdatroca.
Nesteponto,temosdenosrecordardadualidadedoprojetodeMarx.Oqueelepretendemostrar
aquiéque,mesmonumasociedadeliberalperfeita,emquetodasasregrasdatrocasãoestritamente
obedecidas,oscapitalistastêmummododeextrairmais-valordostrabalhadores.Autopialiberal,no
fimdascontas,revela-senãoutópica,maspotencialmentedistópicaparaostrabalhadores.Marxnão
estádizendoqueadeterminaçãodosaláriofuncionaefetivamentedessemodo,masqueastesesda
economia política liberal clássica (e isso se estende à nossa época neoliberal) são seriamente
deformadas para favorecer o capital. O mundo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de
Benthaméumamáscara,umdisfarceparapermitiraextraçãodemais-valordos trabalhadores sem
violarasleisdatroca.
Tendoestabelecidoesseteoremafundamental–omais-valortemorigemnadiferençaentreoque
o trabalhador recebe por sua força de trabalho comomercadoria e o que o trabalhador produz no
processodetrabalhosobocomandodocapital–,Marxfazimediatamenteumasériedeadvertências.
Observa,porexemplo,que“otrabalhosóimportanamedidaemqueotempogastonaproduçãodo
valordeusoésocialmentenecessário”,eissodependedeaforçadetrabalhofuncionarem“condições
normais”. Isso leva à pergunta: o que é normal? Diz também que a força de trabalho deve ser de
“qualidade normal”,mas deixa em aberto novamente a pergunta sobre o que é normal, indicando
apenas que isso varia de um ramo de atividade para outro e significa “possuir o padrãomédio de
habilidade,eficiênciaeceleridade”adequadoao“ramodeproduçãoemque[a forçade trabalho]é
empregada”.Aforçadetrabalhotambémtem“deseraplicadacomaquantidademédiadeesforçoe
comograudeintensidadesocialmenteusual,eocapitalistacontrolaotrabalhadorparaqueestenão
desperdicenemumsegundodetrabalho”(272).
A introdução casual da questão da “intensidade usual” é significativa aqui e surgemais tarde
comoumaspectocrucialdocontroledotrabalho,pois“ospequenosmomentossãooselementosque
formamolucro”
[d]
.Emtudoisso,ocapitalista“exerceseusdireitos”,garantidospelaleidastrocas,de
fazerplenousodamercadoriaquefoicompradaepuniraquelesquenãocooperamplenamentecom
seusdesejos.Essesdireitosincluemqueotrabalhonãosejadesperdiçado,queseja“vedadoqualquer
consumo desnecessário de matéria-prima e meios de trabalho, pois material e meios de trabalho
desperdiçados representam o dispêndio desnecessário de certa quantidade de trabalho objetivado,
portanto, trabalho que não conta e não toma parte no produto do processo de formação de valor”
(272).
Oqueseressaltaaquiéumacartadedireitosparaassegurarocontrolecapitalistasobreoprocesso
detrabalho,eémedianteaimplementaçãodessecontrolequesedefinemaisclaramenteaquestãodo
que é socialmentenecessárionoprocessode trabalho.O resultado é, adivinhe, umadualidade! “O
processodeprodução,comounidadedosprocessosdetrabalhoedeformaçãodevalor,éprocessode
produçãodemercadorias;comounidadedosprocessosdetrabalhoedevalorização,eleéprocessode
produção capitalista, forma capitalista da produção de mercadorias” (273). Mais uma vez, Marx
distingueentreaproduçãodemercadoriasemgeraleaformaespecificamentecapitalistaqueutiliza
a produção de mercadorias para ganhar mais-valor, estabelecendo assim um tipo diferente de
unidade.
Finalmente, ele retorna à delicada questão de como explicar o impacto das diferenças de
habilidadenointeriordoprocessodetrabalho.Otrabalhoqualificadoéconsiderado“trabalhosocial
médio não qualificado ou trabalho complexo, dotado de um peso específico mais elevado”. Esse
trabalho“éaexteriorizaçãodeumaforçadetrabalhoqueentramcustosmaisaltosdeformação,cuja
produçãocustamais tempode trabalhoeque,por essa razão, temumvalormais elevadodoquea
forçasimplesdetrabalho”e“cria,nomesmoperíododetempo,valoresproporcionalmentemaisaltos
doqueaquelescriadospelotrabalhoinferior”(274).Nanotaderodapé(274,nota18),elemostraque
muitas dessas distinções de habilidade são ilusórias e arbitrárias, determinadas social e
historicamente.Háumalongahistóriaportrásdisso,àqualMarxfazapenasumamenção,masque
poderia terexploradomelhor.Porexemplo,emminhaobrasobreParisduranteoSegundoImpério,
mostroqueadefiniçãode“habilidade”possuíaumviés altamente sexista.Qualquer trabalhoquea
mulherpudesserealizareravistocomonãoqualificado;quandoasmulherescomeçaramaentrarno
mercado,houveumadesqualificaçãogeraldotrabalho.Issoexplicaemparteahostilidadedealguns
grupos de artesãos contra o emprego demulheres e a insistência de Proudhonde que o lugar das
mulheresnãoeramasoficinas,elasdeviamficaremcasa.Aquestãodoempregodasmulherestornou-
se uma grande fonte de tensão na Primeira Internacional, nos anos 1860. Mas isso não ajuda a
explicarotrabalhoqueexigealtotreinamentoe,por isso,custacaroparaserproduzidoemantido.
Marxdribla essa questãomais uma vez, afirmandoque “em todoprocessode formaçãode valor, o
trabalho superior tem sempre de ser reduzido ao trabalho social médio”, e que isso nos permite
pressupor“queotrabalhadorempregadopelocapitalrealizaotrabalhosocialmédionãoqualificado”
(275). Há, de fato, algumas dificuldades sérias nesse argumento, conhecido como o problema da
redução do trabalho qualificado ao trabalho simples. Mas eu também vou driblar essa questão, apenas
sinalizando-aparaexameposterior.
Aextensanotaderodapésobrearelaçãoentreescravidãoetrabalhoassalariado(272-3,nota17)
mereceumcomentário.Quandoosdoissistemasdetrabalhocolidemepassamacompetir,osefeitos
são particularmente perniciosos. A escravidão se torna mais brutal sob o açoite competitivo das
integrações no capitalismo, exercendo ao mesmo tempo fortes pressões negativas tanto sobre os
salários quanto sobre as condições de trabalho. Todas as relações humanas que existiam entre o
senhor e o escravo são igualmente destruídas.Obviamente, a escravidão variamuito,mas não em
relação à produçãode valor no sentido emqueMarx a entende.Ela implica um tipo diferente de
processodetrabalho.Nãoháformadetrabalhoabstratonumsistemaescravagistapuro.Foiissoque
impediuAristótelesdeformularumateoriadovalor-trabalho–porqueessateoriasófuncionanocaso
do trabalho livre. Lembremos: o valor, para Marx, não é universal, mas específico do trabalho
assalariadonointeriordomododeproduçãocapitalista.
CAPÍTULOS6E7:CAPITALCONSTANTE,CAPITALVARIÁVELEATAXADOMAIS-VALOR
Nos dois capítulos seguintes, Marx procura esclarecer e consolidar sua teoria do mais-valor, uma
teoriaque,comoEngelsobservaemsua introduçãoaoLivroIId’Ocapital, “cintiloucomoumraio
numcéuclaro”.Comoessescapítulosnãosãocomplicados,passareirapidamenteporeles.
Marxcomeçaestabelecendoumadistinçãoentreoqueelechamadecapitalconstanteedecapital
variável. Capital constante é o trabalho passado, já incorporado nas mercadorias utilizadas como
meiosdeproduçãonumprocessodetrabalhopresente.Ovalordosmeiosdeproduçãojáestádado,
portantoaquestãoéoqueacontececomovalorquandoéincorporadononovoprocessodetrabalho.
Marx sustenta que o valor é simplesmente transferido para a novamercadoria. Esse valor varia de
acordocomaprodutividadedas indústriasqueproduzemmatéria-prima,maquinariaetc.,demodo
quechamaressecapitalde“constante”nãosignificaconsiderá-lofixo.OqueMarxquermostraraqui
équeovalordosmeiosdeproduçãofluiatravésdoprocessodetrabalhoatéserincorporadonanova
mercadoria.Enquantoflui,ovalorpermanececonstante.
Oprocessoefetivode transferênciadevalor é complicadoporumavariedadedecircunstâncias
especiais.Oalgodãotransformadoemcamisatorna-se,nofimdoprocesso,asubstânciadacamisa,o
quenospermitedizerqueovalordo algodão está incorporadona camisa.Mas a energiausadana
produção da camisa não se torna camisa. E, com toda a certeza, você não gostaria que pequenos
pedaços de máquina fossem incorporados na sua camisa. Há uma distinção, portanto, entre as
transferênciasfísicaseacirculaçãodevalores.Osdoisprocessosdecirculaçãosãodistintosporqueo
algodão é um valor de uso físico, material, mas o valor é imaterial e social (embora seja, como
dissemos anteriormente, objetivo). As matérias-primas também contêm certa quantidade de valor
passado, domesmomodo que asmáquinas e outros instrumentos de trabalho.Todos esses valores
passadosacumulados são trazidosparaumnovoprocessodeprodução,na formade trabalhomorto
queo trabalhovivo reanima.Assim,o trabalhadorpreservaos valores já incorporadosnasmatérias-
primas, nos produtos parcialmente manufaturados, nas máquinas etc., e faz isso utilizando-os (no
consumoprodutivo).Marxdágrandeênfaseaofatodequeotrabalhadorfazessefavoraocapitalista
gratuitamente.
Essesvaloresdeusopassadoseseusvaloresincorporadosnãocriamnempodemcriarnadanovo.
Sãosimplesmenteusadoseconservados.Asmáquinas,porexemplo,nãopodemcriarvalor.Esseéum
ponto importante, jáque sedizcomfrequência, “fetichisticamente”,queasmáquinas são fontede
valor.NoesquemadeMarx,porém,elasnãosãonadadisso.Oqueocorreéqueovalordamáquinaé
transferidoparaamercadoriaduranteoprocessode trabalho.Masháumproblemaaí,porqueuma
máquinapodedurarvinteanos,evocêpodeproduzirumaenormequantidadedecamisascomela,de
modoque a questão é: quantodo valor damáquina é incorporado em cada camisa?Omodomais
simplesdeexplicarofluxodevalordamáquinaparaacamisaédizer,porexemplo,que
1
/
20
dovalor
deumamáquinaqueduravinteanoséincorporadoacadaanonascamisasproduzidasnesseperíodo.
Oprocessodetrabalhopreservatodosessesvalores,incorporando-osnamercadoriaqueévendidano
mercado.Enotequeéapenasporqueovaloréimaterial,porémobjetivo,queelepodesersocialmente
equacionadodessemodo.
Há também o capital variável, o valor dado em troca do aluguel dos trabalhadores.Como esse
capitalcircula,ecomqueconsequências?Otrabalhomortoéressuscitadoeincorporadonovalorda
nova mercadoria por meio do trabalho vivo. Essa é uma ideia muito importante para Marx, e
percebemos imediatamente seu peso político. Os trabalhadores têm o poder de destruir o capital
constante(porexemplo,asmáquinas)simplesmenteserecusandoatrabalharcomelas.Seotrabalhoé
paralisado (e cessa o “consumo produtivo”), a transferência de capital damáquina para o produto
finaléinterrompidaeovalordocapitalconstanteédiminuídooutotalmenteperdido.Otrabalhador
ganha um enorme poder com isso e, dado o grau em que exerce essa função, certamente deveria
reivindicaralgumtipoderemuneraçãoporisso.Afinal,seoscapitalistaspodemjustificarseudireito
ao mais-valor argumentando que são eles que criam empregos para os trabalhadores, por que os
trabalhadores não podem argumentar que merecem o mais-valor pois sem seu esforço o capital
constanteapropriadopeloscapitalistasperderiaseuvalor?
Os trabalhadores também adicionam valor incorporando tempo de trabalho necessário nos
produtos. Mas o valor que eles criam tem dois componentes. Primeiro, os trabalhadores têm de
produzir valor suficiente para cobrir os custos de seu próprio aluguel. Isso, quando convertido em
forma-dinheiro,permite a reproduçãoda forçade trabalhonumdadopadrãodevida,num lugar e
nummomentodeterminados.Ostrabalhadoresgastamseudinheirocomprandoasmercadoriasque
querem,desejamoudequeprecisamparaviver.Dessemodo,ocapitalvariávelcircula literalmente
pelocorpodotrabalhadornoprocessoM-D-M,quereproduzotrabalhadorvivomedianteoconsumo
individualeareproduçãosocial.Osegundocomponentedocapitalvariáveldizrespeitoàprodução
de mais-valor, a produção de valor além e acima daquele que seria necessário para reproduzir os
trabalhadoresnumdadopadrãodevida.Essemais-valorproduzereproduzocapitalista.OqueMarx
propõe,naverdade,éumateoriadaproduçãodemais-valorbaseadanaadiçãodevalor.
Ovalortotaldamercadoriaéconstituídodasomadovalordoscapitaisconstanteevariáveledo
mais-valor(c+v+mv).Paraqueocapitalistaganhemais-valor,apartevariáveltemdesercontrolada.
Afinal, máquinas não fazem greve, tampouco se aborrecem (embora às vezes pareçam
temperamentais). O elemento ativo no processo de trabalho é o capital variável. Ele é o “fogo
conformador”dotrabalhovivoaplicadoàprodução.Maisumavez,háumaimplicaçãopolíticanesse
argumento. Marx está dizendo: “Vejam, caros trabalhadores, são vocês que estão fazendo todo o
trabalho.Sãovocêsquepreservamosvalorespassados,reproduzemasimesmospormeiodotrabalhoe
produzemomais-valorqueocapitalapropriaparaqueoscapitalistaspossamviver,quasesempreno
luxo.Éóbvioqueoscapitalistastêmtodoointeresseemassegurarquevocêsnãoreconheçamopapel
fundamentalqueexercemeosenormespoderesdequedispõem.Elespreferemquevocêsimaginem
quetrabalhamapenasporumsaláriodecente,paraentãovoltarparacasaereproduzirasimesmosea
suas famílias, de preferência com disposição suficiente para retornar ao trabalho no dia seguinte.
VocêsestãonumprocessodecirculaçãoM-D-M,eelesachamquevocêsdevemlimitarsuasambições
devidaaesseestágio”.Marxquerrebateressafetichizaçãodeliberadachamandoaatençãodaclasse
trabalhadoraparasuaverdadeiraposiçãonaproduçãodemais-valorenaacumulaçãodocapital.
Assim,todooprocessodecirculaçãodocapitalfoidefinido,easdefiniçõesdecapitalconstantee
variávelestãopostas.ComoMarxescrevesumariamente:
Portanto,apartedocapitalqueseconverteemmeiosdeprodução,istoé,emmatérias-primas,matériasauxiliaresemeiosdetrabalho,
não altera sua grandeza de valor no processo de produção. Por essa razão, denomino-a parte constante do capital, ou, mais
sucintamente:capitalconstante.Poroutrolado,apartedocapitalconstituídapelaforçadetrabalhomodificaseuvalornoprocessode
produção.Elanãosóreproduzoequivalentedeseuprópriovalor,comoproduzumexcedente,ummais-valor[...].Denomina-o,por
isso,partevariáveldocapitalou,maissucintamente:capitalvariável.(286)
Isso nos conduz ao capítulo 7, em que Marx emprega as categorias que acabou de definir e
examina as relações entre elas demaneiramais estruturada.Volta a vestir a beca de contabilista e
procura“umaexpressãoexata”dograudeexploraçãodaforçadetrabalho.Masmuitasdasequações
que ele estabelece são importantes. Considere, por exemplo, a razão entre os capitais constante e
variável,c/v.Essarazãoéumamedidadaprodutividadedotrabalho,ovalordosmeiosdeprodução
queumaúnicaunidadedevalordeforçadetrabalhopodetransformar.Quantomaiorarazão,mais
produtivoéotrabalho.Considereagoraarazãoentreomais-valoreocapitalvariável,mv/v.Elamede
a taxa de exploração da força de trabalho.Quantomaior a razão,maior a exploração da força de
trabalho.Por fim,háa taxade lucro,queéa razãoentreomais-valoreovalor totalusado(capital
constantemaiscapitalvariável)oumv/(c+v).Ataxadelucroédiferentedataxadeexploração.Esta
capturaaquantidadedetrabalhoextraqueostrabalhadoresfornecemaocapitalistaemtrocadovalor
queelesrecebemparareproduzirasimesmosnumdadopadrãodevida.Vocêpodeverclaramente
quea taxade lucroé sempremaisbaixaquea taxadeexploração.Sevocê reclamardaalta taxade
exploração,oscapitalistasvãoexibirseuslivrosparaprovarqueataxadelucroébaixa.Esperamque
assimvocêsintapenadeleseseesqueçadaaltataxadeexploração!Quantomaiorocapitalconstante
empregado,menorataxadelucro(mantidosiguaisosdemaisfatores).Umataxadelucrobaixapode
acompanharumaalta taxadeexploração.EsseéumargumentocrucialnoLivroIIId’Ocapital.Os
próprios capitalistas trabalhamcombasena taxade lucro e tendema alocar seu capital onde ela é
maisalta.Oresultadoéumatendência(movidapelaconcorrência)aonivelamentodataxadelucro.
Seanalisoasituaçãoevejoquepossoobterumataxadelucromaisaltaemoutrolugar,aplicomeu
capital ali. Mas isso não me leva necessariamente a tomar boas decisões do ponto de vista da
maximizaçãodataxadeexploração,quedeveseroprincipalinteressedocapitalista.Defato,éaqui
queofetichismodosistemapegaocapitalista.Mesmoquereconhecessemtudoisso,oscapitalistas
nãopoderiam fazer nada.Eles são impelidos pela concorrência a tomar decisões combasemais na
taxadelucrodoquenataxadeexploração.Seprocuraremumbancoparatomardinheiroemprestado,
obancotomarásuasdecisõesbaseadonataxadelucro,enãonataxadeexploração.
Certamente, a relaçãodomais-valornão apenas comapartedo capitaldeonde ele resultadiretamente e cujamudançadevalor ele
representa,mastambémcomocapitaltotaladiantadoédeextremaimportânciaeconômica.Poressarazão,trataremosdetalhadamente
dessarelaçãonoLivroIIIdestaobra.(291)
NoLivro III,Marx procuramostrar que esse é umdosmecanismos que levamo capitalismo a
crisesperiódicasde taxasdecrescentesde lucro.Comonãopossodesenvolver essaquestãomaisdo
queMarxofez,queroapenasenfatizarquevocêdeveprestarmuitaatençãoàdistinçãoentreataxa
delucro,mv/(c+v),eataxadeexploração,mv/v.
ParaMarx,eparaostrabalhadores,oquerealmenteimportaéataxadeexploração.Alémdisso,a
compreensãodadinâmicadocapitalismoexigemaisaanálisedataxadeexploraçãodoquedataxade
lucro.Essaanálise,portanto,éoobjetodeMarxnessecapítulo.Ataxadeexploração,dizele,podeser
vista de diversas formas. Podemos pensá-la como a relação entre mais-trabalho (apropriado pelo
capitalista)etrabalhonecessário(otrabalhorequeridoparareproduçãodovalordaforçadetrabalho),
como o tempo de trabalho necessário em relação ao tempo demais-trabalho ou, demaneiramais
formal, como a razão entre o valor gastona comprada força de trabalho e o valor total produzido
menosovalorpagopela forçade trabalho.Oproblema,porém,éque todas essas equações, embora
façam sentido, nãopodem ser observadas na prática.Nãohá um sino, por exemplo, que toque em
determinadomomentodajornadadetrabalhoparaavisarostrabalhadoresdequejáreproduziramo
valordev(oujágastaramotemponecessárioparaproduzirv),demodoquesaibamque,apartirdali,
estãoproduzindomais-valor(oucedendoseutempogratuitamente)paraocapitalista.Oprocessode
trabalhoéumprocessocontínuo,queterminacomumamercadoria,cujovalorécompostodec+v+
mv.
Emboraosdiferenteselementosdevalorincorporadosnamercadorianãosejamvisíveisaolhonu,
Marxsustenta(oquevocêtalveznãogostedesaber)queessemododeanáliseproduzumaciênciada
economia política muito superior, precisamente porque vai além do fetichismo do mercado. A
burguesiaproduziuumaciênciaboadopontodevistadomercado,masnãoentendecomoosistema
funcionadopontodevistadoprocessodetrabalhoe,quandooentende,tentaclaramenteescamoteá-
lo.Ela tem todo o interesse emdizer aos trabalhadores que o trabalho é apenas umdos fatores de
produção que eles levam ao mercado – essa é a contribuição deles, e eles recebem por ela uma
remuneraçãojusta,conformeataxadesalárioemvigor.Elanãopodeadmitirqueotrabalhoéofogo
conformador, o elemento fluido e criativo na transformação da natureza que está no centro de
qualquer modo de produção, inclusive do capitalismo. Tampouco podemos imaginar o capitalista
louvandoostrabalhadoresportodovalorqueproduzem,inclusive,éclaro,omais-valorquealimenta
olucrocapitalista.
Marxconcluiessecapítulocomumfantásticoretratodarepresentaçãoburguesatípicadomundo
dotrabalho:“Numabelamanhãdoanode1836,NassauW.Senior,célebreporsuaciênciaeconômica
e seu belo estilo, praticamente oClauren dos economistas ingleses, foi transferido deOxford para
Manchester,afimdeaprendereconomiapolíticanestacidade,emvezdeensiná-laemOxford”(299).
OsindustriaisdeManchesterestavamassustadoscomaagitaçãopolíticaquepretendialimitara
ampliaçãodajornadadetrabalhopara“civilizadas”dezhoras,depoisquearasaepoucoefetivaLei
Fabrilde1833mostrouque,aomenosemprincípio,oaparatoestatalestavapreparadoparalegislaras
horas legais de trabalho.Num panfletominucioso, Senior afirma que, nas primeiras oito horas da
jornadadetrabalho,otrabalhadortemdeproduzirovalorequivalenteatodososmeiosdeprodução
utilizados (o capital constante, nos termos de Marx). Como não lhe passa pela cabeça que o
trabalhadorpossatransferirosvaloresjáincorporadosnasmercadorias,eledefendeaideiaridículade
queotrabalhadortemdereproduzirefetivamenteaquelesvalores.Segundoele,astrêshorasseguintes
sãousadaspara reproduzirovalorda forçade trabalho empregada (o capital variável), e apenasna
últimahoraproduz-seolucrodocapitalista(omais-valor).Dessemodo,umajornadadetrabalhode
doze horas é absolutamente essencial para obter lucro. Se a duração da jornada de trabalho fosse
reduzidadedozeparadezhoras,todoolucrodesapareceriaeaindústriapararia.ArespostadeMarx
émordaz:“eosr.professorchamaissode‘análise’!”(300).A“últimahoradeSenior”éumargumento
econômicogrosseiro,concebidounicamenteparapromoverosinteressesdosindustriais.
Comicamente,noentanto,SeniorconfirmaaprópriateoriadeMarx.Otempodostrabalhadores
tem valor crucial para os capitalistas, por isso eles precisam tão desesperadamente dessa décima
segunda hora. A luta pelo controle do tempo do trabalhador está na origem do lucro, que é
exatamenteoquedizateoriamarxianadomais-valor.IssoreafirmaarelevânciadadefiniçãodeMarx
do valor como tempo de trabalho socialmente necessário. Então o que é socialmente necessário na
temporalidadedotrabalho?Oscapitalistasnãoapenascontrolamoprocessodetrabalho,oprodutoe
o tempodo trabalhador,mas tambémtentamcontrolar anatureza socialdaprópria temporalidade.
Seniorreconheceessaverdadefundamental,eMarx,usandosuasferramentascríticasesuaposiçãoa
favordostrabalhadores,derrubaseuargumentonummomentorevelador.Assim,acríticadaúltima
hora de Senior adquire uma dupla importância. Por um lado, permite a Marx descrever as
profundezas em que os economistas podem afundar quando tentam criar argumentos apologéticos
para a classe capitalista; por outro, dá a Marx a oportunidade de tomar a verdade fundamental
reveladapelapolêmicadeSenior: adequeocontrole sobreo tempoéumvetor centralda lutano
interiordomododeproduçãocapitalista.OexamedaúltimahoradeSeniorpermite,portanto,uma
transiçãoastuciosaparaocapítuloseguinte,dedicadointeiramenteaotempocapitalista.
[a] “Tem início, então,umaépocade revolução social.Comaalteraçãodabase econômica revoluciona-se todaa enorme superestrutura
commaioroumenorrapidez.Naconsideraçãodetais revolucionamentos,éprecisosempredistinguirentreorevolucionamentomaterial
das condições econômicas de produção, que pode ser constatadopelas ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, numapalavra,
ideológicas,nasquaisoshomenstomamconsciênciadesseconflitoeoenfrentam”(KarlMarx,ZurKritikderPolitischenÖkonomie,MEW,
7.ed.,1971,v.13,p.8[ed.bras.:Contribuiçãoàcríticadaeconomiapolítica,cit.]).(N.T.)
[b]SãoPaulo,Boitempo,2004.(N.E.)
[1]HarryCleaver,ReadingCapitalPolitically[LendoOCapitalpoliticamente](Leeds,AKPress/AntiThesis,2000).
[c]Nooriginal:“alshätt’esLieb’imLeibe”,literalmente:“comosetivesseamornocorpo”(Goethe,Fausto,primeiraparte,quadroVI,cenaI).
Nocontextooriginal,afraseserefereàreaçãodeumaratazanarecém-envenenada.(N.T.)
[d]Nooriginal,“momentsaretheelementsofprofit”,citaçãodoReportoftheInspectorsofFactoriesfor30thApril1860,p.56,emKarlMarx,O
capital,cit.,p.317.(N.T.)
5.Ajornadadetrabalho
CAPÍTULO8:AJORNADADETRABALHO
Ocapítulo8apresentaumaestruturaeumestilodiferentesdaquelesdoscapítulosprecedentes.Éleve
quanto à teoria, mas carregado de detalhes históricos. E também invoca categorias abstratas que
aindanãoforamapresentadas.IssoaconteceporqueofocodeMarxaquiéahistóriadalutadeclasses
em torno da duração da jornada de trabalho. Já mencionei o complexo entrelaçamento dos
argumentoslógicosehistóricosn’Ocapital,e,namaioriadoscasos,afirmeisermaissegurooptarmos
pelo argumento lógico. Aqui, porém, o que importa é a narrativa histórica – embora não seja
desprovidadeimportânciateórica.Encontramosnessecapítuloumaprofundateorizaçãodanatureza
dotempoedatemporalidadesobocapitalismoe,aomesmotempo,vemoscommaisclarezaporqueo
modode produção capitalista é necessariamente constituído pela luta de classes e semove no seu
interior.
Marxcomeçalembrandoqueháumaenormediferençaentreateoriadovalor-trabalhoeovalor
daforçadetrabalho.Ateoriadovalor-trabalhotratadomodocomootempodetrabalhosocialmente
necessárioéincorporadonasmercadoriaspelotrabalhador.Esseéopadrãodevalorrepresentadopela
mercadoria-dinheiro e pelo dinheiro em geral. O valor da força de trabalho, por outro lado, é
simplesmenteovalordaquelamercadoriavendidanomercadocomoforçadetrabalho.Emboraseja
uma mercadoria como outra qualquer em certos aspectos, ela também tem algumas qualidades
especiais, de caráter histórico emoral.Uma distinção falha entre o valor da força de trabalho e a
teoriadovalor-trabalhopodeacarretargravesequívocos.
“Partimosdopressuposto”,dizMarx,“dequeaforçadetrabalhoécompradaevendidapeloseu
valor”, e de que seu valor, “como o de qualquer outra mercadoria, é determinado pelo tempo de
trabalho necessário à sua produção” (305). Este equivale ao tempo de trabalho consumido para
produzir asmercadorias necessárias à reprodução do trabalhador num dado padrão de vida.Marx
supõequeessevalorsejafixo,apesardesabermos(assimcomoele)queestáemconstantemudança,
dependendodocustodasmercadorias,dograudecivilizaçãoedascondiçõesda lutadeclassesno
país.
Ostrabalhadoresadicionamvaloràsmercadoriasnoprocessodetrabalhoatécriaroequivalente
exatodovalordesuaprópriaforçadetrabalho.Suponhamos,dizMarx,queissoocorradepoisdeseis
horasdetrabalho.Omais-valorsurgeporqueostrabalhadorestrabalhamalémdaquantidadedehoras
necessáriasparareproduzirovalorequivalentedesuaforçadetrabalho.Quantashorasextraselestêm
detrabalhar?Issodependedaduraçãodajornadadetrabalho.Essaduraçãonãopodesernegociada
no mercado como uma forma de troca de mercadorias, em que o equivalente é trocado pelo
equivalente(comoocorrecomossalários).Nãoéumaquantidadefixa,masfluida.Podevariarde6a
10,12ou14horas,comumlimitede24horas–oqueéimpossível,emvirtudedo“limitefísicoda
forçade trabalho” edo fatodeque “o trabalhadorprecisade tempopara satisfazer asnecessidades
intelectuais e sociais [...]. A variação da jornada de trabalho semove, assim, no interior de limites
físicosesociais”(306).
Marximaginaentãoumadiscussãofictíciaentreumcapitalistaeumtrabalhador.Ocapitalista,
comocompradorda forçade trabalho,dizque temdireitodeusá-lapelo tempoquepuder.Afinal,
como capitalista, ele é “apenas capital personificado” (lembramos queMarx fala de papéis, não de
pessoas). “Sua alma é a alma do capital”, e este “tem um único impulso vital, o impulso de se
autovalorizar,decriarmais-valor”.Ocapital,dizMarx,“étrabalhomorto,que,comoumvampiro”–e
nesse capítulo temos muitos vampiros e lobisomens, a léguas de distância dos modos usuais da
teorizaçãopolítico-econômica–, “vive apenasda sucçãode trabalhovivo, e vive tantomaisquanto
mais trabalho vivo suga”. Se o trabalhador faz pausas ou diminui o ritmo de trabalho, “furta o
capitalista[...].Ocapitalistaseapoia,portanto,naleidatrocademercadorias.Comoqualqueroutro
comprador,elebuscatiraromaiorproveitopossíveldovalordeusodesuamercadoria”(307-8).
Os trabalhadores, ao contrário das máquinas e de outras formas de capital constante, podem
reagir.Sabemquetêmessapropriedadechamadaforçadetrabalhoeédeseuinteresseconservaresse
valorparausofuturo.Ocapitalistanãotemodireitodesugá-ladiariamente,abreviandoassimavida
laborativadostrabalhadores.Dizotrabalhador:
“Isso ferenossocontratoea leida trocademercadorias.Exijo,portanto,uma jornadade trabalhodeduraçãonormal,eaexijo sem
nenhumapeloateucoração,poisemassuntosdedinheirocessaabenevolência.[...]Exijoajornadadetrabalhonormalporque,como
qualqueroutrovendedor,exijoovalordeminhamercadoria.”(308)
Notequetantoostrabalhadoresquantooscapitalistastomamsuasposiçõesdeacordocomasleis
datroca.Aocontráriodoqueesperaríamosdeumpensadorrevolucionário,Marxnãopregaaabolição
dosistemadesalários,masquerqueambos,trabalhadoresecapitalistas,concordememobedeceràlei
fundamentaldatroca:equivalenteporequivalente.Aúnicacoisaqueimportaésaberquantodevalor
deuso(capacidadedeincorporarvalornasmercadorias)otrabalhadorcederáaocapitalista.Marxfaz
isso porque, como enfatizei, um dos objetivos principais d’O capital é desconstruir as proposições
utópicas da economia política liberal clássica em seus próprios termos. “O capitalista exerce seus
direitoscomocompradorquandotentaalongaraomáximoajornadadetrabalho.”
Eo trabalhador faz valer seudireito comovendedorquandoquer limitar a jornadade trabalho aumaduraçãonormaldeterminada.
Tem-se aqui,portanto,umaantinomia,umdireito contraoutrodireito, ambos igualmente apoiadosna leida trocademercadorias.
Entredireitos iguais, quemdecide é a força.E assima regulamentaçãoda jornadade trabalho se apresenta,nahistóriadaprodução
capitalista,comoalutaemtornodoslimitesdajornadadetrabalho–umlutaentreoconjuntodoscapitalistas,i.e.,aclassecapitalista,
eoconjuntodostrabalhadores,i.e.,aclassetrabalhadora.(309)
Assim,após309páginas,chegamosàideiadalutadeclasses.Finalmente!
Háaquiuma sériedequestõesque exigemesclarecimento.Aaceitação,por ambosos lados,de
umanoçãode“direitos”éumadeclaraçãodefatoquedizrespeitoàhegemoniadasnoçõesburguesas
dedireitos.Marx,porém,mostraimediatamentequeoproblemadaduraçãodajornadadetrabalho
nãopodeserresolvidocomumapeloadireitoseàsleiselegalidadesdatroca(umargumentoparalelo
a seuataquecontrao conceitoproudhonianode justiça eterna).Questõesdesse tipo sópodemser
resolvidaspormeiodalutadeclasses,naquala“força”decideentre“direitosiguais”.Essadescoberta
temramificaçõesnoentendimentodapolíticadocapitalismocontemporâneo.Emtemposrecentes,
houveumaumentoconsiderávelderightstalk[conversassobredireitos]einvestiu-seumaquantidade
enormedeenergiana ideiadequeapromoçãodedireitoshumanos individuaiséumcaminho(se
nãoo caminho) paramoldar um sistema capitalistamais humano.O queMarxmostra aqui é que
muitas questões importantes, postas em termosdedireitos, nãopodem ser resolvidas senão forem
reformuladasemtermosdelutadeclasses.AAnistiaInternacional,porexemplo,lidasuficientemente
bem com direitos políticos e civis, mas tem dificuldade para estender seus interesses à esfera dos
direitoseconômicos,porquenãohácomoresolvê-lossemtomarpartido,ouafavordocapital,oua
favor do trabalho. Percebemos aqui o cerne do argumento de Marx. Não há como julgar
“imparcialmente” entre direitos iguais (ambos com a chancela da lei da troca). A única coisa que
podemos fazer é lutar pelo nosso lado do argumento. Por isso, esse capítulo termina com uma
observaçãobastante cética sobreum“pomposo catálogodos ‘direitoshumanos inalienáveis’” (374),
emoposiçãoaoquepodemosconseguircomalutadeclasses.
“Força”,nessecontexto,nãosignificanecessariamenteforçafísica(emboraestasejanecessáriaem
certos casos). A ênfase desse capítulo recai antes na força política, na capacidade de mobilizar e
construir aliançaspolíticas e instituições (como sindicatos)para influenciaro aparelho estatal, que
temopoderdelegislarajornadadetrabalho“normal”.ParaMarx,háoportunidadesquepodemser
aproveitadasouperdidas,dependendodascontingênciasdasituaçãopolíticaedasrelaçõesdeforça
queestãoemjogo.AtécnicaaquiésimilaràquelaquefoiapresentadacomtantobrilhantismoemO
18debrumário,emqueMarxanalisacomoLuísBonapartechegouaopodernaesteiradafracassada
Revoluçãode1848 emParis.Omaterial apresentadonesse capítulo lançauma luz especial sobre a
trajetória deMarx embusca de uma teoria domodode produção capitalista, articulada comuma
compreensão profunda dos processos de transformação histórica das formações sociais capitalistas
efetivamenteexistentes.Osresultadosdalutadeclassesnãosãodeterminadosdeantemão.
Aintroduçãodalutadeclassesmarcaumarupturaradicalcomosalicercesdateoriaeconômica
clássicaecontemporânea.Elamudaradicalmentealinguagememqueaeconomiaédescritaealtera
seu foco. Em cursos introdutórios de economia, é pouco provável que a duração da jornada de
trabalho seja tratada como uma questão importante. Isso também não era discutido na economia
políticaclássica.Noentanto,ahistóriafoipalcodeumalutamonumentalepermanenteemtornoda
duraçãodajornadadetrabalho,dasemanadetrabalho,doanodetrabalho(fériaspagas)edavidade
trabalho (a idade de aposentadoria), e essa luta perdura até hoje. Isso constitui claramente um
aspectofundamentaldahistóriacapitalistaeumaquestãocentralnomododeproduçãocapitalista.
Dequeadiantamteoriaseconômicasqueignoramtalaspecto?
Em contrapartida, a teoria do valor de Marx conduz diretamente a essa questão central. Isso
aconteceporqueovalor é tempo de trabalho socialmentenecessário, oque significaqueo tempo é
essencialnocapitalismo.Comodizoditado,“tempoédinheiro”!Ocontroledotempo,emparticular
dotempoalheio,temdesercombatidocoletivamente.Elenãopodesercomercializado.Portanto,a
lutadeclassestemdeocuparumlugarcentralnateoriapolítico-econômica,assimcomoemtodasas
tentativasdecompreenderaevoluçãohistóricaegeográficadocapitalismo.Énessepontod’Ocapital
que podemos começar a apreciar o “valor de uso” da teoria do valor-trabalho e do mais-valor. E,
emborasejaerradoconsideraresseargumentoumaprovaempíricadoaparatoteórico,elecertamente
ilustraautilidadedateoriaparaarealizaçãodeumainvestigaçãoteóricaempiricamenteesclarecida.
ComoMarxnosguiaporessahistóriada lutaemtornodaduraçãoda jornadadetrabalho?Ele
começaobservandoqueo capitalismonãoéoúnico tipode sociedade emqueomais-trabalhoeo
mais-produtosãoextraídosparaobenefíciodeumaclassedominante:“Ondequerqueumaparteda
sociedadedetenhaomonopóliodosmeiosdeprodução,otrabalhador,livreounão,temdeadicionar
ao tempo de trabalho necessário a sua autoconservação um tempo de trabalho excedente a fim de
produzirosmeiosdesubsistênciaparaopossuidordosmeiosdeprodução”(309).
No capitalismo, porém, o mais-trabalho é convertido emmais-valor; assim, a produção de um
mais-produto é um meio de o capitalista obter mais-valor. Isso fornece qualidades particulares à
exploraçãocapitalista,porqueaacumulaçãodevalornaforma-dinheiro,comovimos,éilimitada.
Emtodaformaçãoeconômicadasociedadeondepredominanãoovalordetroca,masovalordeusodoproduto,omais-trabalhoé
limitadoporumcírculomais amplomais amplooumais estreitodenecessidades,masnenhumcarecimentodescomedidodemais-
trabalhosurgedoprópriocaráterdaprodução.(309-10)
Alémdisso,comoessaapropriaçãoocorrenumasociedadecaracterizadapelotrabalhoassalariado,
os trabalhadores não experimentam sua produção demais-valor domesmomodo comoos servos e
escravos experimentam o mais-trabalho (o fetichismo do mercado a esconde). Marx usa como
ilustraçãoacorveianaEuropaCentral.Nessesistema,otrabalhadoreraforçadoacedercertonúmero
de dias de trabalho ao proprietário da terra, de modo que a apropriação do mais-trabalho era
totalmentetransparente.Alibertaçãodosservospeloéditorussode1831criouumasituaçãoemque
o novo sistema de corveia, organizado sob oRèglementOrganique [RegulamentoOrgânico], tornou
fluida e aberta adefiniçãode jornadade trabalho.Osproprietários rurais (osboiardos)diziamque
umajornadadetrabalhonãoémedidaporumdiareal,maspelaquantidadedetrabalhoquedeveria
serrealizada.Comoessaexigênciadetrabalhonãopodiasercumpridaemumdia,eramnecessários
vários dias para completar um dia formal de trabalho, de modo que “os 12 dias de corveia do
RèglementOrganique[...]correspondemaos365diasdoano!”(313).
Encontramosemgermeaquiumaideiamuitoimportante,queaparecediversasvezesn’Ocapital.
Amedidadetempoéflexível,podeseresticadaemanipuladaparafinssociais.Nessecaso,12diasde
trabalhosetransformamem365diasefetivos.Essamanipulaçãosocialdotempoedatemporalidadeé
tambémumtraçofundamentaldocapitalismo.Logoqueaextraçãodetempodetrabalhoexcedente
setornafundamentalparaasrelaçõesdeclasses,aquestãoarespeitodoqueéotempo,quemomede
ecomoa temporalidadedeveserentendidapassaparaa linhade frentedaanálise.Otemponãoé
simplesmentedado;eleésocialmenteconstruídoeestácontinuamentesujeitoareconstruções(basta
pensarnosetorfinanceiroenamudançadopadrãodetempodastomadasdedecisõesqueocorreu
nos últimos anos). No caso do Règlement Organique, o esticamento do tempo era óbvio. Os
trabalhadoressabiammuitobemquantodemais-trabalhocediamaosenhorecomooprolongamento
dotempoestabelecidoporumaclassedominantecontribuiuparaisso.MasoobjetivodasLeisFabris
naGrã-Bretanhano séculoXIX– o interesse principal de grandeparte desse capítulo – eramuito
diferente: “essas leis refreiam o impulso do capital por uma sucção ilimitada da força de trabalho,
medianteuma limitaçãocompulsóriada jornadade trabalhopeloEstadoe,maisprecisamente,por
umEstadodominadopelocapitalistaepelolandlord”(313).
A formulação de Marx leva a uma questão importante: por que um Estado governado por
capitalistaseproprietáriosfundiáriosaceitaria,oumesmocogitaria,limitaraduraçãodajornadade
trabalho?Emais:seatéaquisóencontramosasfigurasdotrabalhadoredocapitalistan’Ocapital,o
quefazoproprietáriofundiárionessecapítulo?Éevidenteque,paraanalisarumasituaçãohistórica
real,Marxtemdeolharparaaconfiguraçãodeclasseexistenteeconsiderarcomoasaliançasdeclasse
funcionamquando os trabalhadores não têm acesso direto ao poder estatal.OEstado britânico da
primeirametadedoséculoXIXeraessencialmenteorganizadopelarelaçãodepoderentrecapitalistas
e proprietários fundiários, e seria impossível analisar a política desse período sem levar em conta o
papelqueaaristocraciaruraldesempenhavanessarelação.Opoderdomovimentodostrabalhadores
aindaerasecundário.“Abstraindodeummovimentodostrabalhadoresquesetornaacadadiamais
ameaçador”,escreveMarx,
a limitação da jornada de trabalho nas fábricas foi ditada pela mesma necessidade que forçou a aplicação do guano nos campos
ingleses.Amesmarapacidadecegaque,numcaso,exauriuosolo,nooutromatounaraizaforçavitaldanação.Epidemiasperiódicas
são,aqui,tãoeloquentesquantoadiminuiçãodaalturadossoldadosnaAlemanhaenaFrança.(313)
Seotrabalho,assimcomoaterra,éumrecursofundamentalparaacriaçãodariquezanacional,e
se é superexplorado e degradado, a capacidadedemanter a produçãodemais-valor é prejudicada.
MastambémédeinteressedoEstadotertrabalhadoresquepossamintegrarumaforçamilitarefetiva.
Asaúdeeaboaformafísicadaclassetrabalhadoratêm,portanto, interessepolíticoemilitar(como
Marxobservana longanotade rodapé).NaGuerraFranco-Prussianade1870-1871,porexemplo,a
rápida derrota dos franceses pelos alemães foi atribuída, em parte, à boa saúde dos camponeses
alemães,emcomparaçãocomapobreclassecamponesaeoperáriadaFrança.Aimplicaçãopolíticaé
de que é militarmente perigoso permitir a degradação das classes trabalhadoras. Essa questão se
tornouimportantenosEstadosUnidosduranteaSegundaGuerraMundial,emparticularquandose
tratou de mobilizar indivíduos oriundos de populações pobres e, em alguns casos, racialmente
distintas.
AsleisfabrisanalisadasporMarxforamimpostaspeloEstadobritânicoeconcebidas–porrazões
tantoeconômicasquantopolítico-militares–paralimitaraexploraçãodotrabalhovivoeprevenirsua
degradaçãoexcessiva.Masaleiéumacoisa,esuaaplicaçãoéoutrabemdiferente.Issonosremeteà
importante figura dos inspetores de fábrica: quem eram e de onde vinham?Certamente não eram
marxistasradicais!Elesvinhamdaburguesiaprofissional.Eramservidorespúblicoscivis,masfizeram
um belo trabalho de coleta de informações e uma enorme pressão para disciplinar os interesses
industriaissegundoasexigênciasdoEstado.Marxnãoteriaescritoessecapítulosemasinformações
abundantes fornecidas por eles.Mas por que um Estado regulado pelo capital e por proprietários
fundiáriosusaria inspetoresde fábricapara fazer esse trabalho?Énestepontoqueentra “ograude
civilizaçãodeumpaís”, assim comoamoralidadeburguesa e os interessesmilitaresdoEstado.Na
Grã-Bretanha do século XIX, havia fortes correntes do reformismo burguês (por exemplo, Charles
Dickens)quejulgavamquealgumaspráticaslaboraisemvigornãodeveriamexistirnumasociedade
civilizada.Issotrazparaadiscussãoaquelemesmo“elementohistóricoemoral”queafetaovalorda
força de trabalho. Embora o movimento operário estivesse crescendo, ele não teria ido tão longe
quantofoisemaajudadoreformismoburguês,emparticulardosetorrepresentadopelosinspetores
defábrica.
Os inspetores de fábrica tiveram de enfrentar o problema da definição prática da jornada de
trabalho.Aquehorasostrabalhadoresdeviamcomeçaratrabalhar?Otempodetrabalhocomeçaaser
contadodentroouforadafábrica?Easpausasparaasrefeições?Marxcitaorelatóriodeuminspetor:
Para muitos fabricantes, o lucro extra a ser obtido com o sobretrabalho além do tempo legalmente estabelecido parece ser uma
tentação grande demais para que possam resistir a ela [...]. Esses “pequenos furtos” que o capital realiza do tempo reservado às
refeiçõeseaodescansodotrabalhadortambémsãodesignadospelosinspetoresdefábricacomo“pettypilferingsofminutes”,pequenos
surrupiosdeminutos,“snatchingafewminutes”,furtadelasdealgunsminutos,ou,nalinguagemtécnicadostrabalhadores,“nibbling
andcribblingatmealtimes”[roerepeneiraràsrefeições].(316)
Marxcitaumaideiafundamental:“Ospequenosmomentossãooselementosqueformamolucro”
(317). Para mim, essa formulação é crucial. Os capitalistas tentam aproveitar todo e qualquer
momentodotempodotrabalhadornoprocessodetrabalho.Oscapitalistasnãosócompramaforçade
trabalhodeumtrabalhadorpordozehoras, comotêmdeassegurarquecadamomentodessasdoze
horas seja usado com omáximo de intensidade. E isso, é claro, é a essência de um sistema fabril
disciplinadorefiscalizador.
Se acreditarmos nos filmes antigos, houve uma época em que as telefonistas tinham tempo de
conversarconosco(souvelhoosuficienteparateralembrançadeatéterpaqueradoalgumas).Hojeos
telefonistastêmumametarígidadechamadasquedevematenderporhora.Senãoacumprem,são
demitidos.Eametaaumentaconstantemente.Vocêpodeseconsiderarumprivilegiadoseconseguir
maisdedoisminutosdotempodeles.Liumanotíciasobreumtelefonistaqueficoumeiahoranuma
ligação comumacriança cujamãehaviamorrido e foidemitidopornão cumprir suameta. Isso é
comumemtodososprocessosdetrabalho.Ocapitalistaquerotempo,queraquelesmomentosque
sãooselementosdolucro.Issoéumcoroláriodofatodequeovalorétempodetrabalhosocialmente
necessário. Apesar de toda a sua abstração, a teoria do valor revela algo importante a respeito das
práticas e experiências diárias no chão de fábrica. Ela toca a realidade do comportamento do
capitalista,tocaarealidadedavidadotrabalhador.
No terceiro item desse capítulo, Marx trata longamente dos “ramos da indústria inglesa sem
limites legais à exploração”. Não me deterei nessa parte, porque os relatos terríveis das práticas
laborais na indústria de palitos de fósforo, papéis de parede, linho e panificação (onde o trabalho
noturno e a adulteração dopão eramquestões candentes) são autoevidentes o bastante.Marx cita
também acidentes provocados pelo sobretrabalho, um deles numa ferrovia e, segundo o médico
legista,causadopelasexcessivashorasdetrabalhoimpostasaostrabalhadores.Hátambémofamoso
casodeMaryAnneWalkley,“de20anosdeidade,empregadanumamanufaturademodasdeveras
respeitável”–numasituaçãoemque“essasmoçascumpremumajornadaemmédiade16½horase,
duranteaseason
[a]
,chegamfrequentementeatrabalhar30horasininterruptas,suaevanescente‘força
detrabalho’costumaserreanimadacomaofertaeventualdexerez,vinhodoPortooucafé”–eque
simplesmentemorreuporexcessodetrabalho(327).Morrerporexcessodetrabalhonãoéalgorestrito
ao século XIX.Os japoneses têm um termo técnico para isso: karoshi.Muitas pessoasmorrem por
excessodetrabalho,eavidadeoutrastantaséabreviadaporissoeporcausadecondiçõesinsalubres
detrabalho.Em2009,aUnitedFarmWorkersprocessouaCaliforniaOccupationalSafetyandHealth
Administration(Cal/Osha)pornãoprotegerostrabalhadoresagrícolascontraamorteporexcessode
calor,citandotrêscasosdemortesporexaustãocausadaporessemotivo.
Marx descreve o que acontece quando a relação de poder entre capital e trabalho torna-se tão
distorcida que a força de trabalho é reduzida a uma condição de degradação e até de morte
prematura.Esseproblemaéexacerbadopelaintroduçãodosistemadeturnosdescritonoquartoitem
desse capítulo. O capital que não é aplicado é capital perdido, e capital, lembre-se, não é uma
máquinaouumasomadedinheiro,masvaloremmovimento.Seumamáquinanãoéusada,écapital
morto,porissohápressãoparausá-laotempotodo.Acontinuidadedoprocessodeproduçãotorna-se
importanteemparticularnasindústriasqueempregamgrandesquantidadesdecapitalfixonaforma
deequipamentos,comoéocasodosaltos-fornosnaindústriametalúrgica.Anecessidadedemanter
empregado o capital fixo leva a uma jornada de trabalho de 24 horas. Como os trabalhadores não
podem trabalhar24horaspordia,o sistemade turnos é introduzido e suplementadopelo trabalho
noturnoepelosistemaderevezamento.Lembre-se:ostrabalhadoresnãoapenasproduzemmais-valor,
mas reanimam o capital constante. O resultado é o revezamento por meio de turnos. Não há,
portanto, uma “jornada natural de trabalho”, apenas várias construções da jornada de trabalho em
relaçãoàdemandacapitalistademanteratodocustoacontinuidadedofluxo.
O item 5 trata da luta por uma jornada de trabalho normal. Por quanto tempo o capital pode
consumiraforçadetrabalhoqueelecomprouporseuvalordiário?Nãohádúvidadequeocapital
extrairádelatantoquantopuder.Paraocapital,
éevidentequeotrabalhador,durantetodaasuavida,nãoésenãoforçadetrabalho,razãopelaqualtodooseutempodisponívelé,
pornaturezaepordireito,tempodetrabalho,quepertence,portanto,àautovalorizaçãodocapital[istoé,aproduçãodemais-valor].
Tempopara a formaçãohumana,paraodesenvolvimento intelectual,parao cumprimentode funções sociais,para relações sociais,
parao livre jogodasforçasvitais físicase intelectuais,mesmootempolivredodomingo[...]épurafutilidade!Masemseuimpulso
cegoedesmedido, suavoracidadede lobisomempormais-trabalho,ocapital transgridenãoapenasos limitesmoraisda jornadade
trabalho,mas também seus limites puramente físicos. Ele usurpa o tempopara o crescimento, o desenvolvimento e amanutenção
saudável do corpo.Rouba o tempo requeridopara o consumode ar puro e de luz solar.Avança sobre o horário das refeições e o
incorpora,semprequepossível,aoprocessodeprodução.(337)
Quandoleioessaspassagens,sempremelembrodeTemposmodernos,deCharlieChaplin.
[Ocapitalreduzo]sonosaudável,necessárioparaarestauração,renovaçãoerevigoramentodaforçavital[...]anãomaisdoqueum
mínimodehorasdetorporabsolutamenteimprescindíveisaoreavivamentodeumorganismocompletamenteexaurido[...].Ocapital
nãoseimportacomaduraçãodevidadaforçadetrabalho.Oquelheinteressaéúnicaeexclusivamenteomáximodeforçadetrabalho
quepodeserpostoemmovimentonumajornadadetrabalho.Eleatingeesseobjetivopormeiodoencurtamentodaduraçãodaforça
detrabalho,comoumagricultorgananciosoqueobtémumamaiorprodutividadedaterraroubandodelasuafertilidade.(338)
O paralelo entre a exaustão do solo e as forças vitais do trabalhador faz eco à formulação do
capítulo1,emqueMarxcitaocomentáriodeWilliamPettydeque“o trabalhoéopaida riqueza
material, [...] e a terra é a mãe” (121). Mas isso também implica que a exploração excessiva dos
recursosnecessáriosparaproduzirtodaariquezaéumperigoparaoprópriocapitalismo.Umahora
ououtra,ocapitalistachegaráàconclusãodequeumajornadanormaldetrabalhopodenãoseruma
máideia.
Assim, se o prolongamento antinatural da força de trabalho, que o capital visa necessariamente por objetivo em seu impulso
desmedidodeautovalorização,encurtaotempodevidadotrabalhadorsingulare,comisso,aduraçãodesuaforçadetrabalho,torna-
senecessáriaumasubstituiçãomaisrápidadostrabalhadoresqueforamdesgastadose,portanto,ainclusãodecustosdedepreciação
maioresnareproduçãodaforçadetrabalho,domesmomodocomoapartedovaloraserdiariamentereproduzidadeumamáquinaé
tantomaior quantomais rapidamente ela se desgasta.Uma jornada de trabalho normal parece, assim, ser do próprio interesse do
capital.(281)
Oproblema,no entanto, é queos capitalistas em situaçãode concorrência entre si nãopodem
deixardeforçarasuperexploraçãodesuasbasesfundamentaisderecursos:otrabalhoeaterra.Existe
potencial para um conflito entre o interesse de classe dos capitalistas por uma força de trabalho
“sustentável” e seus comportamentos individuais de curto prazo diante da concorrência. Portanto,
algumlimitetemdeserimpostonaconcorrênciaentreeles.
Os proprietários de escravos, dizMarx, podemmatá-los por excesso de trabalho, contanto que
tenhamàmãoumafontedeescravosbaratos.Masissotambémvaleparaomercadodetrabalho:
Basta ler, no lugar demercado de escravos,mercado de trabalho, no lugar deKentucky eVirgínia, Irlanda e distritos agrícolas da
Inglaterra,EscóciaePaísdeGales,e,nolugardaÁfrica,Alemanha!OuvimoscomoosobretrabalhodizimaospadeirosemLondres,e,
apesardisso,omercadodetrabalholondrinoestásempretransbordandodealemãeseoutroscandidatosàmortenaspadarias.(339)
Marx introduz aqui outro conceito importante: o de população excedente. Esta permite aos
capitalistassuperexplorarostrabalhadores,semlevaremcontasuasaúdeoubem-estar.Éclaroquea
população excedente tem de ser acessível ao capital.Marx cita o caso dos comissários da Lei dos
Pobres,que eram instruídos a “enviarparaoNorteo ‘excessodepopulação’dosdistritos agrícolas,
com o argumento de que ‘os fabricantes os absorveriam e consumiriam’” (339-40). Os distritos
agrícolas livraram-se convenientementede suas obrigações comaLeidosPobres, aomesmo tempo
queforneceramtrabalhoexcedenteparaosdistritosmanufatureiros.
Oqueaexperiênciamostraaoscapitalistasé,emgeral,umaconstantesuperpopulação,istoé,umexcessodepopulaçãoemrelaçãoàs
necessidades momentâneas de valorização do capital, embora esse fluxo populacional seja formado de gerações de seres humanos
atrofiados,devidacurta,quesubstituemunsaosoutrosrapidamenteesão,porassimdizer,colhidosantesdeestaremmaduros.No
entanto,aexperiênciamostraaoobservadoratento,poroutrolado,oquãorápidaeprofundamenteaproduçãocapitalista,que,em
escalahistórica,dataquasedeontem,temafetadoaforçadopovoemsuaraizvital,comoadegeneraçãodapopulaçãoindustrialsóé
retardadapelaabsorçãocontínuadeelementosvitaisnaturais-espontâneosdocampoecomomesmoostrabalhadoresrurais,apesar
doarpuroedoprincipleofnaturalselection[princípiodaseleçãonatural]quereinatãosoberanoentreelesesópermiteasobrevivência
dosindivíduosmaisfortes,jácomeçamaperecer.(341-2)
Apopulaçãoexcedentepõeemquestãoointeressedocapitalistapelasaúde,pelobem-estarepela
expectativadevidadaforçadetrabalho.Comosereshumanos,oscapitalistaspodemseimportarcom
isso,mas,sendoforçadosamaximizarolucroemcondiçõesdeconcorrência,elesnãotêmescolha.
“Aprèsmoiledéluge!”[Depoisdemim,odilúvio!]
[b]
éolemadetodocapitalistaetodanaçãocapitalista.Ocapitalnãotem,porisso,a
mínimaconsideraçãopelasaúdeeduraçãodavidadotrabalhador,amenosquesejaforçadopelasociedadeateressaconsideração.Às
queixas sobre a degradação física emental, amorte prematura, a tortura do sobretrabalho, ele responde: deveria essemartírio nos
martirizar,elequeaumentanossogozo(olucro)
[c]
?Demodogeral,noentanto, issotampoucodependedaboaoumávontadedo
capitalista individual.A livre-concorrência impõeaocapitalista individual,comoleiseternas inexoráveis,as leis imanentesdaprodução
capitalista.(342)
Os capitalistas, tendo coração ou não, são forçados pela concorrência a promover as mesmas
práticaslaboraisdeseusconcorrentes.Seosconcorrentesabreviamavidadeseustrabalhadores,você
tambémtemdeabreviá-la.Assimfuncionamasleiscoercitivasdaconcorrência.Estaexpressão–“leis
coercitivasda concorrência”– aparecerádiversasvezesno texto.Eé importantenotarque tais leis
coercitivasdesempenhamumpapeldecisivo,comonocasopresente.
Marxpassaentãoaanalisara“lutadequatrocentosanosentrecapitalistaetrabalhador”quelevou
à“consolidaçãodeumajornadadetrabalhonormal”.Elenotaque“ahistóriadessalutamostraduas
correntesantagônicas”(343).Naépocamedieval,eramuitodifícilqueaspessoastrabalhassemcomo
assalariadas. Quem não tirava seu sustento da terra tornava-se vagabundo, mendigo ou ladrão de
estrada (como Robin Hood). Por isso, criou-se uma legislação para codificar a relação salarial,
estendera jornadade trabalhoecriminalizarmendigosevagabundos.E,comefeito,estabeleceu-se
umaparatodisciplinar(eMarxretomaessepontonocapítulo24)parasocializarapopulaçãonopapel
detrabalhadoresassalariados.Osvagabundoseramaçoitadoseamontoadosantesdeseremmandados
paraumaboajornadadetrabalho.Enosprimeirosdecretos,quedatamde1349,umaboajornadade
trabalhoeradefinidacomoumdiadetrabalhodedozehoras.Assimfoiimpostaadisciplinalaboralna
Grã-Bretanha.Háqueixas semelhantesporpartedas autoridades coloniaisno séculoXIXedepois;
afirmam,porexemplo,queoproblemanaÍndiaounaÁfricaéquenãoseconseguequeapopulação
indígena trabalhe um dia de trabalho “normal”, que dirá uma semana de trabalho “normal”! Eles
trabalham por um breve período e desaparecem. A noção de temporalidade dos nativos não se
coadunacomaideiadotempodorelógioeatravancaacapacidadedoscapitalistasdeextrairvalor
dos “pequenos momentos” que formam o lucro. A falta de disciplina temporal era uma queixa
frequente entre os administradores coloniais, e esforços tremendos foram feitos para incutir nas
populações locais uma disciplina laboral e um senso adequado de temporalidade. (Ouço queixas
semelhantesdediretoresdeuniversidadesarespeitodosestudantes,etivedeassistiraumcursode
gêniospedagógicosdeHarvardqueinsistiamqueaprimeiracoisaquetínhamosdefazernumcurso
degraduaçãoeraincutirnosalunosumsentidoapropriadodedisciplinatemporal.)
Hojeháumaextensaliteraturasobreaatitudemedieval(emedievaltardia)emrelaçãoaotempo,
bemcomosobreasmudançasna temporalidadeocorridascomoadventodocapitalismo(ou,como
algunspreferem,da“modernidade”).Porexemplo,dificilmentenoslembramosdequeahorafoi,em
grandeparte,umainvençãodoséculoXIII,ominutoeosegundosósetornarammedidascomunsno
séculoXVIIetermoscomo“nanossegundos”surgiramapenasemtemposrecentes.Essasmedidasnão
são determinações naturais, mas sociais, e sua invenção não foi irrelevante para a transição do
feudalismo ao capitalismo. Quando Foucault fala do advento da governamentalidade, ele está se
referindoaomomentoemqueaspessoascomeçaramainteriorizarosentidodadisciplinatemporale
a aprender a viverde acordo comela, quase sempensar.Umavezque interiorizamos esse sentido,
acabamospresos a certa concepçãoda temporalidade e apráticas vinculadas a ela.ParaMarx, essa
temporalidadesurgeemassociaçãocomaemergênciadovalorcomotempodetrabalhosocialmente
necessário. E, para ele, o papel da luta de classes é fundamental, um papel que Foucault tende a
ignorarousubestimar.DizMarx:
Vimos que essas determinaçõesminuciosas, que regulam com uma uniformidade tãomilitar os horários, os limites, as pausas do
trabalhodeacordocomosinodorelógio,nãoforamdemodoalgumprodutodaslucubraçõesparlamentares.Elassedesenvolveram
paulatinamenteapartirdascircunstâncias,como leisnaturaisdomododeproduçãomoderno.Sua formulação, seureconhecimento
oficialesuaproclamaçãoestatalforamoresultadodelongaslutasdeclasses.(354)
Nãosetratamaisdedizerque“entredireitosiguais,aforçadecide”,masdereconhecerocaráter
classistadasformashegemônicasdetemporalidade.Eaquestãoaquinãoselimitaàtemporalidade,
masenvolvetambémaespacialidade.ParaideólogoscomooautoranônimodeAnEssayonTradeand
Commerce [Um ensaio sobre o intercâmbio e o comércio], de 1770, o problema é uma inclinação
“fatal”ao“ócioeàindolência”dapartedapopulaçãotrabalhadora.Marxcitaoensaio:
“Acuranãoestarácompletaatéquenossospobresoperáriosaceitemtrabalharseisdiaspelamesmaquantiaqueelesagorarecebem
porquatrodiasdetrabalho.”Paraessefim,eparaa“extirpaçãodapreguiça,dalicenciosidadeedodevaneioromânticodeliberdade”,
ditto“paraareduçãodonúmerodepobres,ofomentodoespíritodaindústriaeadiminuiçãodopreçodotrabalhonasmanufaturas”,
nosso fiel Eckart do capital propõe este instrumento de eficácia comprovada: trancafiar esses trabalhadores, que dependem da
beneficência pública, numa palavra, os paupers, numa “casa ideal de trabalho” (an ideal workhouse). “Tal workhouse ideal deve ser
transformada numaCasa doTerror (House of Terror).” Nessa “Casa do Terror”, esse “ideal de uma casa de trabalho” [workhouse],
devem-se trabalhar “catorze horas diárias, inclusive o tempo reservado às refeições, demodo que restam doze horas completas de
trabalho”.(348)
Marxdáentãosuaréplica.Oequivalenteatalcasadoterrorparaospaupers,escreveele,“coma
qualaalmadocapitalaindasonhavaem1770,ergueu-sealgunsanosmaistardecomoumagigante
‘casade trabalho’paraospróprios trabalhadoresdamanufatura.Chamou-se fábrica.E,dessa vez, o
idealempalideceudiantedarealidade”(349).
A organização espacial é parte do aparato disciplinar imposto ao trabalhador. Muito
provavelmente,issoinspirouváriosestudosdeFoucaultsobreosaparatosdisciplinaresespacialmente
organizados(tendoopanópticocomomodelo)emobrascomoHistóriada loucuranaidadeclássica
[d]
,
Vigiarepunir
[e]
eOnascimentodaclínica
[f]
.Éumaironia,pensoeu,quenouniversolinguísticoanglo-
saxãoFoucaultsejavistonormalmentecomoumpensadorradicalmentecontrárioaMarx,apesarde
ser bastante claro que as análisesmarxianas da jornadade trabalho sãoumade suas inspirações.A
meuver,FoucaultfazumexcelentetrabalhodegeneralizaçãoesubstanciaçãodoargumentodeMarx.
Emboraemalgumasdesuasobrastardiaselepartadaquiloqueosmarxistas(e,maisparticularmente,
osmaoistaseoscomunistasdaFrançadeentão)diziam,seusprimeirostextosfundamentais(sobreos
manicômios, as prisões e as clínicas) deveriam ser lidos não como afastamento, mas como
continuaçãodosargumentosdeMarxarespeitodoadventodeumcapitalismodisciplinar,noqualos
trabalhadorestêmdesersocializadosedisciplinadosparaaceitaralógicaespaçotemporaldoprocesso
detrabalhocapitalista.
Oproblemadecomocriaremanteradisciplinadotrabalhadorpermanece,éclaro.Trazconsigoo
problemadoquefazercomaquelesquenãosesujeitamaessadisciplinaepor issosãotachadosde
esquisitos oumesmode transgressores.E este é oponto fundamental tanto emFoucault como em
Marx: eles são chamadosde loucosou antissociais e presos emmanicômiosoupresídios; ou, como
observaMarx,sãoamontoados,humilhadosepunidos.Serumapessoa“normal”,portanto,éaceitar
certo tipodedisciplinaespaçotemporal convenienteaomododeproduçãocapitalista.OqueMarx
mostraéqueissonãoénadanormal;trata-sedeumconstrutosocialquesurgiuduranteesseperíodo
histórico,demodoparticulareporrazõesparticulares.
É claro que os capitalistas tiveram inicialmente de lutar para ampliar a jornada de trabalho e
normalizá-laem,digamos,dezoudozehoras(comoeranaépocadeMarx).O“tempodetrabalho”
nassociedadespré-capitalistasvariavamuito,conformeascircunstâncias,masemmuitoscasosnão
ultrapassavaquatrohoraspordia,eorestododiaeradestinadoàsocializaçãoeaoutrasatividades
que não poderiam ser chamadas de “produtivas”, no sentido de contribuir para a sobrevivência
material.Na forma atualde sociedade,uma jornadade trabalhodequatrohoras seria considerada
ridícula,despropositadaeincivilizada,oquenoslevaàquestãosobreo“graudecivilização”danossa
própria cultura. Presumivelmente, uma alternativa socialista deve ter como objetivo recuperar a
jornadadetrabalhodequatrohoras!
No item 6, Marx relata o que aconteceu nos anos 1830 e 1840, quando os trabalhadores se
revoltaram contra a duração excessiva da jornada de trabalho na Grã-Bretanha industrial. Ele
descreveumadinâmicapolíticaparticularmaisoumenosdaseguinteforma(eaquicontoahistóriaà
minhamaneira para ajudar a esclarecer a descrição deMarx).Nos anos 1820, naGrã-Bretanha, a
aristocracia rural ainda dominava o poder político. Ela controlava o Parlamento, a Câmara dos
Lordes,amonarquia,asForçasArmadaseoJudiciário.Mashaviatambémumaburguesiaascendente,
parcialmenteformadaporinteressesmercantisefinanceirostradicionais(estabelecidaemLondrese
em cidades portuárias, como Bristol e Liverpool, que ganhavam muito dinheiro com o trabalho
escravo), e agora somada a um interesse industrial cada vez mais poderoso, concentrado nos
fabricantes de algodão da região deManchester. Estes se tornaram poderosos defensores de uma
versão particular da teoria econômica, dominada pelas ideias de liberdade de mercado e livre-
comércio(lembre-sedequefoiemManchesterqueSeniorfoiensinarsuaeconomia).Apesardecada
vezmaisricos,oscapitalistasindustriaistinhamcadavezmenospoderpolítico,emcomparaçãocom
a aristocracia fundiária. Eles tentaram então reformar o sistema parlamentar para ter mais poder
dentrodoaparelhoestatal.Paraisso,tiveramdetravarumasériabatalhacontraaaristocraciarural.E,
ao travar essa batalha, buscaram o apoio damassa da população, em particular das classesmédias
profissionais e de uma classe trabalhadora articulada, educada por seus própriosmeios e artesanal
(distinta damassa de trabalhadores incultos). Em resumo, a burguesia industrial tentou fazer uma
aliança com movimentos da classe trabalhadora artesanal contra a aristocracia fundiária. E, com
agitações emmassano fimdos anos1820, impuseramapromulgaçãodaReformActde1832,que
mudouosistemaderepresentaçãoparlamentaraseufavoreliberalizouocensoeleitoral,concedendo
aospequenosproprietáriosodireitodevotar.
Contudo, ao longo do movimento que levou à reforma, os capitalistas fizeram todo tipo de
promessapolítica às classes trabalhadoras, inclusive a extensãodovoto aos artesãos, a regulaçãoda
jornada de trabalho e a adoção de medidas contra as condições opressivas de trabalho. Os
trabalhadoresnãodemoraramachamaraReformActde“agrande traição”.Aburguesia industrial
conseguiu a maioria das reformas que desejava, enquanto as classes trabalhadoras não obtiveram
quase nada. A primeira Lei Fabril para regular a duração da jornada de trabalho, promulgada em
1833,erafracaeineficaz(emboratenhaservidocomoprecedenteparaalegislaçãoestatalsobreessa
questão).Revoltadoscomatraição,ostrabalhadoresorganizaramummovimentopolítico,chamado
cartismo,paraprotestarcontraascondiçõesdevidadamassadapopulaçãoeasterríveiscondiçõesde
trabalho nas fábricas. Enquanto isso, os aristocratas fundiários assumiram uma posição aindamais
antagônica ao poder crescente da burguesia industrial (essa tensão é onipresente nos romances de
Dickens ou Disraeli). Tenderam a apoiar as demandas dos trabalhadores, em parte movidos pelo
interesse nacional (militar), mas também pela típica política aristocrática da noblesse oblige, e
descreviam-se como a boa gente paternalista que não explorava o povo como faziam os perversos
industriais.Foiempartedaíque saíramos inspetoresde fábrica,promovidospelaaristocracia rural
para contrapor o poder de uma burguesia cruel. Nos anos 1840, a burguesia industrial viu-se
pressionadaporessacoalizãoentreaaristocraciafundiáriaeummovimentooperárioque,comodiz
Marx, tornava-se “a cada dia mais ameaçador” (313). Versões mais incisivas da Lei Fabril foram
propostaseaprovadasem1844,1847e1848.
Há, porém, outra peça nesse quebra-cabeça de relações entre classes e formação de alianças. A
EscoladeManchestereragrandedefensoradolaissez-faireedolivre-comércio.Issolevouaumaluta
contraasCornLaws [LeisdosCereais]
[1]
. Altos impostos sobre a importação de grãos protegiamos
ganhosdaaristocraciafundiáriacontraaconcorrênciaestrangeira.Masoresultadoeraoaltocusto
dopão,umalimentobásicodasclasses trabalhadoras.Aburguesia industrial lançouumacampanha
política,lideradaporCobdeneBrightemManchester,afavordaaboliçãodasCornLaws,dizendoaos
trabalhadoresqueissobarateariaopão.Houvetentativasdefirmarumaaliançacomostrabalhadores
(nãomuitobem-sucedidas,porqueelesaindaguardavamvivanamemóriaa“grande traição”).Nos
anos1840, reformaseventuaisnasCornLaws reduziramos impostos sobre a importaçãodegrãos, e
issoteveumsério impactosobreariquezadaaristocracia fundiária.Mas,comopãomaisbarato,a
burguesia industrial reduziu os salários. Nos termos de Marx, como parte do valor da força de
trabalhoeradeterminadapelopreçodopão,aimportaçãomaisbaratadetrigodiminuiuopreçodo
pãoe,porconseguinte(mantidosiguaisosdemaisfatores),provocouumaquedanovalordaforçade
trabalho.Osindustriaispodiampagarmenosaseustrabalhadoresporqueestesprecisavamdemenos
dinheiroparacomprarseupãodiário!Nessaalturadosanos1840,omovimentocartistasefortaleceu
easreivindicaçõesdostrabalhadoreseomovimentooperárioseintensificaram,masnãohaviauma
aliança sólida contra eles, porque os interesses industriais (burgueses) e rurais (aristocráticos)
divergiamprofundamente.
Aburguesia industrial tentouminarapráticadasLeisFabrisdosanos1840.Comoosboiardos,
manipulavaanoçãodetemporalidade.Aproveitando-sedofatodequeostrabalhadoresnãotinham
relógio, os empregadores alteravam os relógios da fábrica para ganhar tempo extra de trabalho.
Dividiam o trabalho em pequenas partes e empurravam o trabalhador “de lá para cá em porções
fragmentadasdetempo”(362);dessemodo,otrabalhador,comoumatornopalco,participavadedez
horasdetrabalho,maspermaneciaquinzenafábrica.Via-se“forçadoaengolirsuarefeiçãooranesse
pedaçodetemponãoutilizado,oranoutro”(363).Osempregadoresusavamosistemadeturnospara
confundir o tempo e “denunciaramos inspetores de fábricas comouma espécie deComissários da
Convenção
[g]
, que sacrificavam impiedosamente os desditosos trabalhadores a seus delírios de
reforma domundo” (356). A legislação inicial dirigia-se especialmente ao emprego demulheres e
criançasedesencadeouumdebatesobrea idadeemqueascriançasse tornamadultas.“Deacordo
comaantropologiacapitalista,a idade infantilacabavaaos10,ou,nomáximo,aos11anos” (352).
Isso é suficiente para mostrar o grau de civilização da burguesia industrial! E, como denunciou
veementementeoinspetordefábricaLeonardHorner,nãoadiantavarecorreraostribunais,porqueo
máximo que faziam era eximir os empregadores.No entanto, dizMarx, “os tories” – a aristocracia
rural–,“ávidosporvingança”(355)porcausadaaboliçãodasCornLaws,patrocinaramaLeiFabrilde
1848,quelimitouajornadadetrabalhoadezhoras.
Mas em 1848 aconteceu uma daquelas crises periódicas do capitalismo: uma grande crise de
superacumulação de capital, uma enorme crise de desemprego em grande parte da Europa. Isso
provocoumovimentos revolucionários intensosemParis,Berlim,Vienaeoutros lugares; aomesmo
tempo, a mobilização cartista chegou ao auge na Grã-Bretanha. A burguesia começou a temer o
potencial revolucionário da classe trabalhadora. Em Paris, em junho de 1848, os movimentos
operáriosqueexigiampoderforamviolentamentereprimidoseestabeleceu-seumregimeautoritário
quesetornaria,em1852,oSegundoImpério,instituídoporLuísBonaparte.
NaGrã-Bretanha,osacontecimentosnãoforamtãodramáticos,masomedodeumarevoltaera
disseminado.
[O]fiascodopartidocartista,comseuslíderesencarceradosesuaorganizaçãofragmentada,jáhaviaabaladoaautoconfiançadaclasse
trabalhadora inglesa. Logo depois disso, a Insurreição de Junho em Paris e sua sangrenta repressão provocaram, na Inglaterra do
mesmomodoquenaEuropacontinental,auniãodetodasas fraçõesdasclassesdominantes,proprietários fundiáriosecapitalistas,
chacais das bolsas de valores e varejistas, protecionistas e livre-cambistas, governo e oposição, padres e livres-pensadores, jovens
prostitutas e velhas freiras [francamente, não tenho amenor ideia do que elas tinham a ver com isso], sob a bandeira comum da
salvaçãodapropriedade,dareligião,dafamíliaedasociedade!(357)
Éespantosocomquefrequência“apropriedade,areligião,afamíliaeasociedade”sãorepetidas
comoummantra ideológicoparaprotegeraordemburguesaestabelecida.Nãoprecisamos irmuito
longe para encontrar um exemplo disso: na história recente dos Estados Unidos, o Partido
Republicano, em particular, não existiria se não fosse sua veemente declaração de lealdade a esses
princípios.NaGrã-Bretanha de 1848, “a classe trabalhadora foi por toda parte execrada, proscrita,
submetidaà loidessuspects [leisobreossuspeitos]
[h]
.Ossenhores fabricantes jánãotinhammaispor
queseconstranger”e“revoltaram-seabertamentenãosócontraaLeidas10Horas,mascontratodaa
legislação que, desde 1833, procurava de algum modo restringir a ‘livre’ exploração da força de
trabalho”.A“rebelião”foi“conduzidapormaisdedoisanoscomumcínicodespudoreumaenergia
terrorista,ambostantomaisbanalizadosquantoocapitalistarebeldenãoarriscavanadaalémdapele
de seus trabalhadores” (357). Tudo isso lembra muito a contrarrevolução neoliberal de Reagan e
Thatcher nos anos 1980. Sob o governo Reagan, grande parte dos avanços obtidos no campo das
relações de trabalho (com oNational Labor Relations Board e a Occupational Safety andHealth
Administration)foirevogadaouficousemaplicação.Tambémnessecaso,ocaráterinstáveldopoder
declasseedasaliançasdeclassenointeriordoaparatoestatalteveumpapelfundamental.
NaGrã-Bretanha,aconteceuumacoisainteressanteapós1850:
Masa esse triunfoaparentementedefinitivodocapital seguiu-se imediatamenteuma reviravolta.Os trabalhadoreshaviam,até então,
oferecidouma resistênciapassiva, aindaque inflexível ediariamente renovada.Elesprotestavam,agora, emameaçadores comícios em
LancashireeYorkshire.AsupostaLeidas10Horasera,paraeles,meraimpostura,umatrapaçaparlamentar,ejamaisteriaexistido!Os
inspetoresdefábricasalertaramurgentementeogovernodequeoantagonismodeclasseschegaraaumgraudetensãoinacreditável.
Uma parte dos próprios fabricantes murmurou: “Devido às decisões contraditórias dos magistrados, reina um estado de coisas
totalmenteanormaleanárquico.UmaleivigoraemYorkshire,outraemLancashire,outraleinumaparóquiadeLancashire,outraem
suavizinhançaimediata.(363)
Naverdade,oqueoscapitalistas fizeramfoiusara leiparadividirasdecisõesaqui,alieacolá,
privando-aassimdequalquereficácia.Mas,diantedeumasériaameaçaderevoltaem1850,
fabricantesetrabalhadoreschegaramaumcompromisso,querecebeuoseloparlamentarnanovaleifabriladicionalde5deagostode
1850.Ajornadadetrabalhopara“jovensemulheres”foiprolongada,nosprimeiroscincodiasdasemana,dedezhorasparadezhoras
emeia,ediminuídaparasetehorasemeiaaossábados.(364)
Certos grupos, como os fabricantes de seda, procuraram isenções, e as crianças foram
simplesmentemassacradas“peladelicadezadeseusdedos”(365).Contudo,em1850,
oprincípiotriunfoucomsuavitórianosgrandesramosdaindústria,queconstituemacriaturamaiscaracterísticadomodernomodo
deprodução. Seu admirável desenvolvimento entre 1853 e 1860, lado a lado como renascimento físico emoral dos trabalhadores
fabris,saltavamesmoaosolhosmaiscegos.Osprópriosfabricantes,aosquaisaslimitaçõeseregulaçõeslegaisdajornadadetrabalho
foramgradualmentearrancadasao longodemeio séculodeguerracivil, apontavamjactanciososparaocontrastecomos setoresda
exploraçãoqueaindaseconservam“livres”.Osfariseusda“economiapolítica”proclamaram,então,acompreensãodanecessidadede
umajornadadetrabalhofixadaporleicomoumanovaconquistacaracterísticadesua“ciência”.Compreende-sefacilmenteque,depois
deosmagnatasdasfábricasteremseresignadoesereconciliadocomoinevitável,aforçaderesistênciadocapitaltenhaseenfraquecido
gradualmente,aomesmotempoqueopoderdeataquedaclassetrabalhadoracresceuapardonúmerodeseusaliadosnascamadas
sociaisnãodiretamenteinteressadas.(367)
Quemeramessesaliados?Marxnãodiz,maséprovávelquefossemasclassesprofissionaiseaala
progressistadaburguesia reformista.Elas eramelementoscruciaisnuma situaçãoemqueas classes
trabalhadorasnãotinhamdireitoaovoto.“Daíoprogressorelativamenterápidoocorridoapartirde
1860”(367).
Embora Marx não mencione o fato, esse reformismo não estava confinado às condições do
trabalhofabrile,àmedidaquese tornavaclaroquetambémpodiamsebeneficiar,oscapitalistas se
interessaramcadavezmaisemparticipar.IssoébemilustradoporJosephChamberlain,umindustrial
deBirminghamquesetornouprefeitodacidadeefoichamadomuitasvezesdeRadical Joepor seu
empenho para promover melhorias na educação, na infraestrutura (abastecimento de água,
saneamento, iluminaçãoagásetc.)enascondiçõesdemoradiadosmaispobres.Nosanos1860,ao
menos uma parte da burguesia industrial havia aprendido que, para manter o lucro, não era
necessárioterumaposiçãoreacionáriaemrelaçãoaessasquestões.
Essa dinâmica exige um comentário. Os dados mostram que, até cerca de 1850, a taxa de
exploração no sistema industrial britânico era terrível, e as horas de trabalho eram igualmente
terríveis,comconsequênciaspavorosasparaascondiçõesdetrabalhoevida.Masessasuperexploração
diminuiuapós1850,semnenhumefeitonegativosobreolucroouaprodutividade.Issoocorreu,em
parte, porque os capitalistas encontraramumnovomeiode obtermais-valor (que analisaremos em
breve). Mas eles também descobriram que uma força de trabalho saudável e eficiente, com uma
jornada de trabalho menor, podia ser mais produtiva do que uma força de trabalho doente,
ineficiente,dispersa,comcolapsosemortesfrequentes,comoaquelaquefoiutilizadanosanos1830e
1840.Oscapitalistaspuderamsegabardessadescobertaedesuabenevolência,ealgumasvezesapoiar
publicamentecertograuderegulaçãocoletivaeinterferênciadoEstadoparalimitarosefeitosdasleis
coercitivas da concorrência. Mas, se do ponto de vista da classe capitalista limitar a duração da
jornadadetrabalhorevelou-seumaboaideia,oquedizerdalutadostrabalhadoresedeseusaliados
poressemesmofim?Ostrabalhadorespodemmuitobemterfeitoumfavoraocapital.Oscapitalistas
foram empurrados para uma reforma que não era necessariamente contrária a seus interesses de
classe. Em outras palavras, a dinâmica da luta de classes pode tanto ajudar a equilibrar o sistema
quantoderrubá-lo.OqueMarxconstata éque, apóscinquentaanosde luta,quando finalmente se
renderamàideiaderegularajornadadetrabalho,oscapitalistasviramqueelanãoatendiamenosa
seusinteressesdoqueaosinteressesdostrabalhadores.
No item 7, Marx examina o impacto da legislação fabril britânica em outros países,
principalmenteaFrançaeosEstadosUnidos.Começareconhecendoainsuficiênciadeummodode
análisequefocasimplesmenteotrabalhadorindividualeseucontratodetrabalho.
Ahistóriadaregulaçãoda jornadadetrabalhoemalgunsmodosdeprodução,bemcomoa lutaque,emoutros,aindase travapor
essa regulação, provam palpavelmente que, quando o modo de produção capitalista atinge certo grau de amadurecimento, o
trabalhadorisolado,otrabalhadorcomo“livre”vendedordesuaforçadetrabalho,sucumbeaelesempoderderesistência.Acriaçãode
umajornadanormaldetrabalhoé,porisso,oprodutodeumalongaemaisoumenosocultaguerracivilentreasclassescapitalistae
trabalhadora.(370)
Em outros países, essa luta é afetada pela natureza das tradições políticas (o “método
revolucionário francês”, por exemplo, é muito mais dependente das declarações de “direitos
universais”)epelascondiçõesefetivasdetrabalho(nosEstadosUnidos,emcondiçõesdeescravidão,
“otrabalhodepelebrancanãopodeseemanciparondeotrabalhodepelenegraémarcadoaferro”)
(372). Em todos os casos, porém, o trabalhador que aparece como um “agente livre” no mercado
descobrequenãoéumagentelivrenoreinodaprodução,onde“seuparasita[Sauger]nãoodeixará
‘enquantohouverummúsculo,umnervo,umagotadesangueparaexplorar’”(373).Aqui,Marxcita
Engels
[i]
.Aliçãoquesedeveaprenderé:
Para“seproteger”contraaserpentedesuasaflições
[ j]
,ostrabalhadorestêmdeseunire,comoclasse,forçaraaprovaçãodeumalei,
umabarreirasocialintransponívelqueosimpeçaasimesmosde,pormeiodeumcontratovoluntáriocomocapital,venderasiesuas
famílias à morte e à escravidão. No lugar do pomposo catálogo dos “direitos humanos inalienáveis”, tem-se a modestaMagna
Charta
[k]
deuma jornadade trabalho legalmente limitada,que “afinaldeixa claroquandoacabao tempoqueo trabalhadorvende e
quandocomeçaotempoquelhepertence”.(373-4)
Algumasquestõesvêmàtonacomessaconclusão.Arejeiçãodos“direitosinalienáveisdohomem”
é a reafirmação de que a rights talk não conseguirá dar conta de questões fundamentais, como a
determinação da duração da jornada de trabalho. Nem os tribunais.Mas aqui, pela primeira vez,
Marxargumentaqueostrabalhadores“têmdeseunir”eatuarcomoclasse,eomodocomofizerem
isso teráumenorme impacto sobre as condiçõesde trabalho e adinâmicado capitalismo.A luta é
fundamentalparaaprópriadefiniçãodeliberdade.CitoaquiumapassagemdoLivroIIId’Ocapital:
O reino da liberdade só começa, de fato, onde termina o trabalho determinado pela necessidade e pela conveniência externa; ele se
encontra,porsuapróprianatureza,paraalémdaesferadaproduçãomaterialpropriamentedita.Assimcomooselvagem,tambémo
homemcivilizadotemdelutarcomanaturezaparasatisfazersuasnecessidades,paraconservarereproduzirsuavida,etemdefazê-lo
em todas as formas sociais e sob todos os modos de produção possíveis. Com seu desenvolvimento, expande-se esse reino da
necessidadenatural,porquetambémseexpandemsuasnecessidades;aomesmotempo,porém,expandem-seasforçasprodutivasque
as satisfazem. A liberdade nesse terreno só pode consistir em que o homem socializado, os produtores associados, regulem seu
metabolismocomanatureza,submetam-noaseucontrolecoletivo,emvezdeseremdominadosporelecomoporumapotênciacega,
e que o realizem comomínimodispêndiode energia e sob as condiçõesmais dignas e adequadas à suanaturezahumana.Mas ele
permanece sempre um reino de necessidade. Para além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si
mesmo,overdadeiroreinoda liberdade,que,noentanto,sópodeflorescersobreabasedaquelereinodanecessidade.Areduçãoda
jornadadetrabalhoéaprecondiçãofundamental.
[ l]
Masvemostambémqueoscapitalistas,movidospelasleiscoercitivasdaconcorrência,costumam
se comportar de maneira prejudicial a suas perspectivas de reprodução como classe. Se os
trabalhadores se organizam como classe e, com isso, forçam os capitalistas a mudar seu
comportamento, o poder coletivo dos trabalhadores ajuda a salvar os capitalistas de sua própria
estupidezemiopia individuais, forçando-osa reconhecer seu interessedeclasse. Isso implicaquea
luta de classes pode atuar como um estabilizador na dinâmica capitalista. Se os trabalhadores são
completamentedesprovidosdepoder,osistematorna-sedeficiente,porqueo“aprèsmoiledéluge!”não
éummodoviáveldeconduzirumaeconomiacapitalistaestável.Issoéumproblemasério,noquediz
respeitotantoàsuperexploraçãodaterraeàpilhagemdosrecursosnaturaisquantoàqualidadeeà
quantidadedeofertadetrabalho.
Masessaéumaconclusãodifícil,porqueMarxésupostamenteumpensadorrevolucionário.Nesse
capítulo,eleiniciasuaexposiçãocomatesedequetantoocapitalquantootrabalhoprocuramseus
direitosnostermosdasleisdatroca.Nessestermos,oúnicoresultadopossívelparaostrabalhadoresé
uma“modestaMagnaCarta”deumsaláriodiáriojustoparaumajornadadetrabalhojusta.Nãohá
aquinenhumamençãoàderrubadadaclassecapitalistaouàaboliçãodasrelaçõesdeclasse.Alutade
classesserveapenasparaequilibrararelaçãoentrecapitaletrabalho.Elapodesermuitofacilmente
interiorizadanadinâmicacapitalistacomoumaforçapositivaquesustentaessemododeprodução.
Se,porumlado, issosignificaquea lutadeclassesé tanto inevitávelcomosocialmentenecessária,
poroutro,lançapoucaluzsobreasperspectivasdeumaderrubadarevolucionáriadocapitalismo.
Como devemos interpretar o elemento político envolvido nisso tudo? Minha inclinação é
concordar com a proposição de que um certo ganho de poder do movimento trabalhador é
socialmentenecessáriopara o funcionamento efetivodo capitalismo e, quanto antes os capitalistas
reconheceremesesubmeteremaessefato,melhorparaeles.Háevidênciashistóricassuficientespara
apoiaressaconclusão,comooNewDeal,peloqualosEstadosUnidosfortaleceramdeliberadamenteo
movimentosindicalnãoparaderrubarocapitalismo,masparaajudaraestabilizá-lo.Aslutasemtorno
dovalordaforçadetrabalhoedaduraçãodajornadadetrabalhosãofundamentaisparachegaraum
mínimo de estabilidade no capitalismo, tanto por razões sociais e políticas quanto por razões
puramenteeconômicas.Talveznãosejaporacasoqueafasedegovernosocial-democratamaisforte
naEuropanosanos1950e1960ea aliança social entreocapital eo trabalhonosEstadosUnidos
estejam associadas a um robusto crescimento capitalista, e que os Estados escandinavos, com seus
poderosos sistemasde bem-estar social, tenham continuado como concorrentes relativamente bem-
sucedidosnaarenamundial,mesmodurantearecenteviradaneoliberal.Marxtambémdiráque,para
compreender a dinâmica do capitalismo, é necessário introduzir a descoberta da existência
socialmente necessária da luta de classes numa economia política burguesa, que, por si mesma,
silenciaessefato.
Mashátambémumpontoemquealutaemtornodaduraçãodajornadadetrabalhoeoganho
de poder do movimento trabalhador podem ir além da consciência sindical e se transformar em
reivindicaçõesmaisrevolucionárias.Umacoisaédizerqueajornadadetrabalhodeveriaserlimitada
aoitooudezhoras,masoque aconteceria seos trabalhadores exigissemuma reduçãoparaquatro
horas?Nesseponto,oscapitalistasficamassustados.ComoaconteceunaFrança,mesmoumasemana
detrabalhode35horasefériasde6semanasforamvistascomoexcessivasedesencadearamumforte
movimentoporpartedaclassecapitalistaedeseusaliadosafavordeumamaior“flexibilidade”nas
leis trabalhistas. A questão é: em que ponto a reforma se excede e desafia a própria base do
capitalismo?
Seexisteumpontodeequilíbrionalutadeclasses,elenãoéfixo,tampoucoconhecido.Masesse
pontodependedanaturezadasforçasdeclasseedograudeflexibilidadedoscapitalistasemrelação
àsnovasdemandas.Porexemplo,umajornadadetrabalhomuitomaiscurtapermiteaoscapitalistas
forçar a intensidade e a eficiência do trabalho para compensar as horas reduzidas. É virtualmente
impossívelmanterumaltograudeintensidadenumajornadadetrabalhodedozehoras.Umexemplo
interessanteocorreunagrevedosmineiroscontraogovernodeEwardHeath,naGrã-Bretanha,nos
anos1970.Diantedaescassezdeenergia,Heathdecretouumajornadadetrabalhodetrêsdias,mas
dados subsequentes mostraram que a atividade produtiva não diminuiu namesma proporção. Ele
decretoutambémofimdastransmissõesdetelevisãoapósasdezhorasdanoite,eissolhecustouo
mandatonaeleiçãoseguinte(tambémhouveuminteressanteaumentononúmerodenascimentos,
cercadenovemesesdepois).
Nãopossodeixardeconcluirestecapítulocomalgunscomentários sobre sua relevânciaparaas
condiçõesatuais.Estáclaroque,desdeostemposdeMarx,adinâmicadalutadeclasses(inclusiveda
formaçãode aliançasde classe) continuouadesempenharumpapel crucial tantonadeterminação
dosdias,semanas,anosevidadetrabalhoquantonograuderegulaçãodascondiçõesdetrabalhoe
dosníveisdesalários.Mesmoqueemcertoslugareseépocasascondiçõesmaisterríveisdescritaspor
Marx tenham sido lentamente corrigidas, as questões gerais que ele descreve (por exemplo, a
expectativadevidamuitomenordoqueamédiaemmuitasocupações,comomineração,metalurgia
econstrução)nuncaforamresolvidas.Mas,nosúltimostrintaanos,comacontrarrevoluçãoneoliberal
–quedámuitomaisênfaseàdesregulamentação–eaprocuradeforçasdetrabalhomaisvulneráveis
pormeiodaglobalização,houveumarecrudescênciadaquelascondiçõesqueosinspetoresdefábrica
descreveram com tantos detalhes na época deMarx. Emmeados dos anos 1990, por exemplo, eu
passavao seguinteexercícioaosestudantesque frequentavammeucurso sobreOcapital: pedia que
imaginassemquehaviamrecebidoumacartadeseuspaisemqueestesdiziamqueOcapital,apesarde
ter certa relevância histórica, descreve condições que foram superadas há muito tempo. Eu lhes
apresentava uma quantidade enorme de excertos de relatórios oficiais (do Banco Mundial, por
exemplo) e recortes de jornais respeitáveis (New York Times etc.) que descreviam as condições de
trabalhonasfábricasdaGapnaAméricaCentral,daNikenaIndonésiaenoVietnãedaLeviStrauss
noSudoesteAsiáticoediziamquãochocadahaviaficadoKathieLeeGifford,grandedefensoradas
crianças,aodescobrirqueasroupasqueelahaviacriadoparaoWalmarthaviamsidoproduzidasem
fábricas hondurenhas que empregam crianças pequenas por salário inexistente ou em fábricas
clandestinas em Nova York em que os trabalhadores ficam semanas sem salário. Os estudantes
escreviamensaiosexcelentes,mashesitavamquandoeusugeriaque talvezgostassemdeenviá-losa
seuspais.
Lamentavelmente,ascondiçõespioraram.Emmaiode2008,umainspeçãodaImmigrationand
Customs Enforcement num frigorífico em Iowa descobriu 389 pessoas suspeitas de ser imigrantes
ilegais, entre elas váriosmenores de idade emuitas trabalhando doze horas por dia, seis dias por
semana.Os imigrantes foramtratadoscomocriminosos;muitosdos297condenadosficarampresos
cinco meses ou mais, até que foram deportados; enquanto isso, as autoridades começarammuito
lentamenteatomarmedidascontraofrigoríficoporsuaspráticasdetrabalhochocantes,masapenas
depoisqueoultrajeganhourepercussãopública.Comomeusestudantespuderamconcluir,émuito
fácilincluirdadosatuaissobreaspráticaslaboraisnocapítuloemMarxdiscuteajornadadetrabalho,
sem que se note nenhuma diferença. Foi a isso que nos levaram a contrarrevolução neoliberal e o
enfraquecimento do movimento trabalhista. Infelizmente, a análise de Marx é absolutamente
relevanteparanossacondiçãocontemporânea.
CAPÍTULO9:TAXAEMASSADOMAIS-VALOR
Ocapítulo9éumtípicocapítulodetransição.Elepartedeumconjuntodequestõesparaintroduzir
outro.Marxretomaa formaárida,algébrica,antesdedarumaguinadasubstancial.Oscapitalistas,
sugere ele, estãomuito interessados emmaximizar amassa domais-valor porque seu poder social
individual depende da quantidade total de dinheiro que controlam.Amassa domais-valor é dada
pela taxa de mais-valor multiplicada pelo número de trabalhadores empregados. Se esse número
diminui,amesmamassademais-valorpodeserganhacomumaumentodataxademais-valor.Mas
háumlimiteparaataxademais-valor,dadonãoapenaspelofatodeodiaterapenas24horas,mas
também por todas as barreiras sociais e políticas discutidas anteriormente.Diante desse limite, os
capitalistaspodemaumentaronúmerodetrabalhadoresempregados.Numcertoponto,porém,outro
limite se apresenta: o do total de capital variável disponível e da oferta total de população
trabalhadora.Obviamente,oúltimolimiteseriaapopulaçãototal,masexistemoutrasrazõesparaque
aforçadetrabalhodisponívelsejamuitomenordoqueela.Diantedessesdoislimites,ocapitaltem
delançarmãodeumaestratégiainteiramentediferenteparaaumentaramassadomais-valor.
Como ocorre com frequência em capítulos transitórios,Marx apresenta, de forma sucinta, um
mapaconceitualdocaminhopercorridoedoqueaindarestapercorrer:
No interior doprocesso de produção, o capital se desenvolveu para assumir o comando sobre o trabalho, isto é, sobre a força de
trabalho em atividade ou, em outras palavras, sobre o próprio trabalhador.O capital personificado, o capitalista, cuida para que o
trabalhadorexecuteseutrabalhoordenadamenteecomograuapropriadodeintensidade[...].[Mas]ocapitaldesenvolveu-se,ademais,
numa relação coercitiva, que obriga a classe trabalhadora a executar mais trabalho do que o exigido pelo círculo estreito de suas
própriasnecessidadesvitais.(381)
Ocapitalpersonificado,emsuasedepormais-trabalhoesuabuscaincessantedemais-valor,
excede em energia, desmedida e eficiência todos os sistemas de produção anteriores baseados no trabalho direto compulsório [...].
Inicialmente,[porém],ocapitalsubordinaotrabalhoconformeascondiçõestécnicasemqueelehistoricamenteseencontra.Portanto,
elenãoalteraimediatamenteomododeprodução,razãopelaqualaproduçãodemais-valor,naformacomoaconsideramosatéagora,
mostrou-seindependentedequalquermudançanomododeprodução.(381-2)
Masissoestáprestesamudartantológicacomohistoricamente.Quando“observamosoprocesso
deproduçãodopontodevistadoprocessodevalorização”,percebemosqueos“meiosdeprodução
converteram-seimediatamenteemmeiosparaasucçãodetrabalhoalheio.Nãoémaisotrabalhador
queempregaosmeiosdeprodução,masosmeiosdeproduçãoqueempregamo trabalhador”.Essa
mudançalógicaehistóricaocupaocernedeumatransformaçãoradicalnaformacomoomodode
produção capitalista temde ser entendido. “Emvez de serem consumidos por ele como elementos
materiaisdesuaatividadeprodutiva”,sãoosmeiosdeproduçãoque“oconsomemcomofermentode
seupróprioprocessovital,eoprocessovitaldocapitalnãoémaisdoqueseumovimentocomovalor
quevalorizaasimesmo”(382).Issoseseguedosimplesfatodequeovalordosmeiosdeprodução(o
trabalhomorto congeladonas fábricas,nos fusos enasmáquinas) sópode serpreservado (paranão
dizeraumentadonaformademais-valor)pelaabsorçãodaofertadetrabalhovivosemprerenovada.
Parao“cérebroburguês”,aconclusãoéqueostrabalhadoresexistemapenasparavalorizarocapital
pormeiodaaplicaçãodesuaforçadetrabalho!
Ocapitalismoabominaqualquertipodelimite,precisamenteporqueaacumulaçãodedinheiroé,
emprincípio, ilimitada.Porisso,ocapitalismoseesforçaconstantementeparatranscendertodosos
limites (ambientais, sociais, políticos e geográficos) e transformá-los em barreiras que possam ser
transpostasoucontornadas.Issodáumcaráterdefinidoeespecialaomododeproduçãocapitalistae
impõeconsequênciashistóricasegeográficasaoseudesenvolvimento.Vamosanalisaragoracomoos
limites encontrados neste capítulo – da força de trabalho disponível e da taxa de exploração – são
transformadospelocapitalnumabarreiraquepodeserultrapassada.
[a]ALondonseasoneraoperíododoanoemqueaelitebritânica,compostamajoritariamentedearistocratasrurais,instalava-senacapitala
fimdetravarcontatossociaiseengajar-senapolítica.A season londrinacoincidiacomo iníciodasatividadesdoParlamentoeestendia-se
porcercadecincomeses,começandonofimdedezembroeencerrando-senofimdejunho.(N.T.)
[b]Referência à frase deMadamedePompadour, “Après nous le déluge !” (Depois de nós, o dilúvio!), em resposta à advertência de um
membrodacortearespeitodosefeitosnocivosdasextravagânciasdarealezasobreadívidapúblicafrancesa.(N.T.)
[c]ReferênciadeMarxaumversodopoema“Suleika”,daobraWestöstlicherDivan,deJ.W.deGoethe.(N.T.)
[d]SãoPaulo,Perspectiva,1972.(N.E.)
[e]36.ed.,Petrópolis,Vozes,2007.(N.E.)
[f]7.ed.,RiodeJaneiro,ForenseUniversitária,2011.(N.E.)
[1]NaGrã-Bretanha,cornreferia-sesobretudoaotrigo,enãoaomilho,comonaAmérica.
[g]Assimeramchamados,duranteaRevoluçãoFrancesa,osrepresentantesdaConvençãoNacionalque,investidosdepoderesespeciais,
atuavamnosdepartamentosenasfileirasmilitares.(N.T.)
[h] Lei sobremedidas de segurança geral, aprovada peloCorps Législatif em 19 de fevereiro de 1858. A lei dava ao imperador e a seu
governoodireito irrestritodedeterqualquerpessoasuspeitadeposturahostilaoSegundoImpérioedemantê-lanaprisãoportempo
indeterminado,exilá-lanaArgéliaouexpulsá-ladoterritóriofrancês.(N.T.)
[i] Friedrich Engels, “Die englische Zehnstundenbill” [A lei inglesa da jornada de trabalho de dez horas], emNeue Rheinische Zeitung.
Politsch-ÖkonomischeRevue[NovaGazetaRenana.Revistadeeconomiapolítica],cadernodeabril,1850,p.5.(N.T.)
[j]Referênciaa“Heinrich”,poemadeHeinrichHeine:“Du,meinliebestreuesDeutschland,/DuwirstauchdenManngebären,/DerdieSchlange
meinerQualen/NiederschmettertmitderStreitaxt”(Tu,Alemanhaamadaefiel/Darásàluztambémaohomem/Queabateráamachadadas/A
serpentedeminhasaflições).(N.T.)
[k]MagnaChartaLibertatum:documentoimpostoaoreiinglêsJoãoI(chamado“JoãosemTerra”)pelosgrandessenhoresfeudais,barões
epríncipeseclesiásticos,apoiadospelanobrezaruralepelasmunicipalidades.ACharta,assinadaem15dejunhode1215,limitavaopoder
do rei, principalmente em favor dos senhores feudais, e fazia várias concessões à nobreza rural; àmassa da população, os camponeses
servos, a Charta não concedia qualquer direito. Marx refere-se aqui à lei para a limitação da jornada de trabalho, pela qual a classe
trabalhadorainglesatevedetravarumalongaepersistenteluta.(N.T.)
[l]MEW,DasKapital(Berlim,Dietz,1983),v.25,p.828.(N.T.)
6.Omais-valorrelativo
CAPÍTULO10:OCONCEITODEMAIS-VALORRELATIVO
Ocapítulo10propõeumargumentosimples,compoucosdetalhescomplicados.Aindaassim,éum
capítuloquepodemuitofacilmentesermalcompreendido.Oargumentoinicialéoseguinte:ovalor
deumamercadoriaédeterminadopelotempodetrabalhosocialmentenecessárioincorporadonela,e
esse valor diminui à medida que a produtividade aumenta. Em suma “quanto maior é a força
produtivadotrabalho,menoréotempodetrabalhorequeridoparaaproduçãodeumartigo,menora
massadetrabalhonelecristalizadaemenorseuvalor”(118).
Ovalordaforçadetrabalhocomomercadoriaéafetadoportodotipodecircunstânciahistórica,
cultural e social.Mas ao valor dasmercadorias também está ligado o fato de que os trabalhadores
precisamreproduzirasimesmoseaseusdependentesnumdadopadrãodevida.“Ovalordaforçade
trabalho se resume no valor de uma quantidade determinada de meios de subsistência e varia,
portanto,comovalordessesmeiosdesubsistência,istoé,deacordocomamagnitudedotempode
trabalhorequeridoparaasuaprodução”(247).Assim,osdemaisfatorespermanecendoiguais,ovalor
da força de trabalho diminuirá à medida que aumenta a produtividade naquelas indústrias que
produzemosbensqueostrabalhadoresnecessitamparareproduzirasimesmos.
Para reduzir o valor da força de trabalho, o aumento da força produtiva tem de afetar os ramos da indústria cujos produtos
determinamovalordaforçadetrabalho,portanto,aquelesramosqueoupertencemaocírculodosmeiosdesubsistênciahabituaisou
podemsubstituí-losporoutrosmeios.(390)
Issopermiteaoscapitalistasgastarmenoscomocapitalvariável,porqueostrabalhadoresprecisam
demenosdinheiroparaatenderasuasnecessidades(taiscomofixadasporumdadopadrãodevida).
Seoscapitalistaspodemgastarmenoscomocapitalvariável,arazãom/v–ouataxadeexploração–
aumenta,mesmoqueaduraçãodajornadadetrabalhosejafixa.Dessemodo,ocapitalistaconsegue
umamassamaiordemais-valor,aindaqueaduraçãodajornadadetrabalhosejafixa.
Esse processo não infringe as leis da troca. É claro que os capitalistas procurarão comprar o
máximodeforçadetrabalhopossívelabaixodeseuvalor,eissoaumentaráamassademais-valorque
recebem.“Apesardoimportantepapelquedesempenhanomovimentorealdosalário,essemétodoé
aqui excluído pelo pressuposto de que as mercadorias, portanto também a força de trabalho, são
compradasevendidasporseuvalorintegral”(389).Aaceitaçãodalógicadomercadoedastesesda
economiapolíticaclássicatemprecedênciasobreoestudodaspráticasefetivas,demonstrandomais
uma vez o compromisso de Marx com a desconstrução das teses utópicas da economia política
clássicaemseusprópriostermos.Outroresultadopeculiarsegue-sedomododeraciocinardeMarx.
“Emcontrapartida,nos ramosdeproduçãoquenão fornecemmeiosde subsistêncianemmeiosde
produção para sua fabricação, a força produtiva aumentada deixa intocado o valor da força de
trabalho” (390). Portanto, a redução do valor de artigos de luxo em consequência do aumento de
produtividadenãointerferenomais-valorrelativo.Oqueimportaéapenasadiminuiçãodovalordos
produtosquecompõemosalário.
Isso leva a uma charada. Por que os capitalistas aumentariam a produtividade de sua própria
produção de artigos de primeira necessidade se todos os capitalistas se beneficiassem com esse
aumento?Issoéoquechamamoshojede“problemadeparasitismo”[free-riderproblem].Ocapitalista
individual,queinovaereduzopreçodeumartigodeprimeiranecessidade,contribuindoassimpara
areduçãodovalordetodaaforçadetrabalho,nãoconseguecomissonenhumbenefícioparticularou
singular.Obenefícioatingetodaaclassecapitalista.Qualéoincentivoindividualparafazê-lo?
O mais-valor poderia ser produzido por meio de uma estratégia de classe? Embora Marx não
mencioneissonessecapítulo,elerelataumcasoemquetalfatoaconteceu–aaboliçãodasCornLaws
comoresultadodaarticulaçãodos industriaisdeManchester.As importaçõesmaisbaratasdegrãos
provocaramumaquedanopreçodopão,oque,porsuavez,permitiuareduçãodossalários.Essetipo
de estratégia de classe teve grande importância histórica. O mesmo raciocínio é usado hoje nos
Estados Unidos em relação às supostas vantagens do livre-comércio. O fenômeno Walmart e as
importaçõesbaratasdaChinasãobem-vindosporqueprodutosbaratosreduzemocustodevidadas
classes trabalhadoras. O fato de que os salários dessas classes não tenham aumentado muito nos
últimos trinta anos torna-se mais palatável, porque a quantidade física de bens que elas podem
compraraumentou (desdequecompremnoWalmart).Assimcomoaburguesia industrialbritânica
do séculoXIX queria reduzir o valor da força de trabalho permitindo importações baratas, a atual
relutância em frear as importações baratas nos Estados Unidos deriva da necessidade de manter
estável o valor da força de trabalho. Tarifas protecionistas, embora pudessem ajudar a manter o
empregonosEstadosUnidos,provocariamumaumentodepreçose,porconseguinte,desalários.
Há muitos registros na história de estratégias do Estado para intervir no valor da força de
trabalho.Porexemplo,porqueoEstadodeNovaYorknãotaxaavendadealimentos?Porqueelaé
vista como fundamental para determinar o valor da força de trabalho. Vez por outra, a burguesia
industrial apoiou controles de renda, programas habitacionais e subsídios de produtos agrícolas,
porqueissotambémmantinhabaixoovalordaforçadetrabalho.Assim,podemosidentificarmuitas
situaçõesemquehouve,eaindahá,estratégiasdeclasse,implementadaspormeiodoaparatoestatal,
parareduzirovalordaforçadetrabalho.Namedidaemqueconquistaramummínimodeacessoao
poder estatal, as classes trabalhadoras puderam usá-lo para aumentar seu ganho (pela provisão do
Estadodediversosbense serviços)eovalorde sua forçade trabalho (naverdade,exigindopara si
mesmasumapartedomais-valorrelativopotencial).
Marxnãofazmençãoaessasquestõesnessecapítulo,muitoprovavelmentepelamesmarazãopor
queignorouofatodequeoscapitalistasprocuramconstantementecomprarforçadetrabalhoabaixo
deseuvalor.Estratégiasconscientesdeclasseeintervençõesestataisnãosãoadmissíveisnomodelo
teórico construído por Marx. Não precisamos necessariamente segui-lo à risca nesse ponto, em
particularporqueestamosinteressadosemacontecimentosreais.Mas,aodesmontarospressupostos
restritivos do utopismo do livre-comércio, ele faz algomuito profundo:mostra como e por que os
capitalistas individuaispoderiamser impelidosa inovar(semnenhumaintervençãodeclasseoudo
Estado),mesmoseoretornoporsuainovaçãofossedistribuídoentretodaaclassecapitalista.
“Se, por exemplo, um capitalista individual barateia camisas por meio do aumento da força
produtivadotrabalho,issodemodoalgumimplicaqueeletenhaemvistareduzirovalordaforçade
trabalho e, com isso, o tempo de trabalho necessário pro tanto.” O capitalista individual, mesmo
contribuindo “para aumentar a taxa geral domais-valor”, não age com base numa consciência de
classegeneralizada.Marxadverte:“éprecisoqueastendênciasgeraisenecessáriasdocapitalsejam
diferenciadasdesuasformasdemanifestação”.Essaformulaçãopeculiarésinaldequealgoespecial
estáacontecendo(hácheirodefetichismonoar).Oquê?
Nãonosocuparemos,porora,domodocomoas leis imanentesdaproduçãocapitalista semanifestamnomovimentoexternodos
capitais,impondo-secomoleiscompulsóriasdaconcorrênciaeapresentando-seàmentedocapitalistaindividualcomoaforçamotriz
desuasações.Porém,esclareçamosdeantemão:aanálisecientíficadaconcorrênciasóépossívelquandoseapreendeanaturezainterna
docapital,domesmomodoqueomovimentoaparentedoscorposcelestessóécompreensívelparaquemconheceseumovimento
real,apesardesensorialmenteimperceptível.(390-1)
Temosdepensarmuito,críticaecuidadosamente,sobreoqueeledizaqui.Sugeriquedeveríamos
ficaratentosaomomentoemqueasleiscoercitivasdaconcorrênciaaparecessemnaargumentação.
Esteé,semdúvida,omomentoaquemereferi.Marx,porém,parecequererdiminuiraimportância
dessas leis, mesmo reconhecendo que não pode prescindir delas. Em relação a esse ponto, posso
oferecerapenasminhaprópriainterpretação,tendoplenaconsciênciadequemuitosdiscordarãode
mim.PensoqueháumparaleloentreomodocomoMarxanalisaopapeldasflutuaçõesdaofertaeda
demandaeopapeldaconcorrência.Nocasodaofertaedademanda,Marxadmitequetaiscondições
têmumpapelvitalnageraçãodevariaçõesdepreçodeumamercadoriaemparticular,mas,quandoa
ofertaeademandaestãoemequilíbrio,dizele,elasdeixamdeexplicartudo.Aexplicaçãotemdevir
dealgo totalmentedistinto,a saber,o tempode trabalhosocialmentenecessário,ouvalor. Issonão
significa que a oferta e a demanda sejam irrelevantes – sem elas não poderia haver equilíbrio de
preços.Asrelaçõesdeofertaedemandasãoumaspectonecessáriodomododeproduçãocapitalista,
mas não suficiente. A concorrência entre capitalistas individuais no interior de dada linha de
produçãodemercadoriasdesempenhaumpapel similar.Nesse exemplo,no entanto, ela redefine a
posiçãodeequilíbrio–opreçomédioouvalordamercadoria–pormeiodemudançasnonívelgeral
da produtividade naquela linha de produção de mercadorias. A concorrência, tal como Marx a
descreveaqui,éumaespéciedeepifenômenoqueocorrenasuperfíciedasociedade,masque,comoa
própria troca, tem algumas consequências mais profundas, que não podem ser entendidas com
referênciaàconcorrência.EstaéaposiçãoqueeleassumenosGrundrisse:acompetiçãonãoestabelece
asleisdemovimentodocapitalismo,
mas é sua executora. Por essa razão, a concorrência ilimitada não é o pressuposto para a verdade das leis econômicas, mas a
consequência – a forma de manifestação em que sua necessidade se realiza. [...] Por isso, a concorrência não explica essas leis; ao
contrário,astornavisíveis,masnãoasproduz.
[a]
Vejamoscomo talprocesso sedánesse exemplo. “Paraque se compreendaaproduçãodomais-
valorrelativocombaseapenasnosresultadosjáobtidos,devemosprocederàsseguintesobservações”
(391). Lembramos que o valor de uma mercadoria é fixado pelo “tempo de trabalho socialmente
necessário[...]requeridoparaproduzirumvalordeusoqualquersobascondiçõesnormaisparauma
dada sociedade e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho” (117). O que
acontece se um capitalista individual parte dessa média social e cria um sistema produtivo
supereficiente,que,emvezdeproduzirdezartigosemumahora,produzvinte?Seumcapitalistafaz
isso, enquantoosoutroscontinuamaproduzirdezartigosporhora, entãoelepodevenderporum
preço social médio de dez, embora produzindo e vendendo vinte. “O valor individual dessa
mercadoriaseencontra,agora,abaixodeseuvalorsocial,istoé,elacustamenostempodetrabalhodo
que a grande quantidade do mesmo artigo produzida em condições sociais médias” (391). O
capitalistainovadorganhaumlucroextra,ummais-valorextra,aovenderporumpreçosocialmédio,
emborasuaprodutividadesejamuitomaiordoqueamédiasocial.Essadiferençaécrucialegerauma
formademais-valorrelativoparaocapitalistaindividual.Nessecaso,nãoimportaseocapitalistaestá
produzindobensdeprimeiranecessidadeouartigosdeluxo.Mascomoessecapitalistavendeosdez
artigosextrasqueproduziuemumahorapelopreçosocialmédioantigo?Aquientramemcenaasleis
daofertaedademanda.Earespostaé,provavelmente,queessesartigosnãopodemservendidospelo
preçoantigo.Logo,ospreçostêmdecair,oquefazcomqueosoutroscapitalistastenhamumlucro
menor.Issoprovocaumaredistribuiçãodomais-valordaquelesqueempregamtecnologiasinferiores
paraaquelesqueempregamtecnologiassuperiores.Osquetrabalhamcomtecnologiasinferiorestêm
umestímulocompetitivomaiorparaadotaranovatecnologia.Umavezquetodososcapitalistasque
atuamnessalinhadeproduçãoadotemanovatecnologiaeproduzamvinteartigosporhora,ocorre
umaquedadotempodetrabalhosocialmentenecessárioincorporadonosartigos.
Essa forma de mais-valor relativo apropriada pelo capitalista individual só dura enquanto ele
possuirumatecnologiasuperioràdosoutroscapitalistas.Elaéefêmera.
Essemais-valoradicionaldesapareceassimqueonovomododeproduçãoseuniversalizaeapaga-seadiferençaentreovalorindividual
dasmercadoriasbarateadas e seuvalor social.Amesma leidadeterminaçãodovalorpelo tempode trabalho,que se apresentou ao
capitalista, juntamentecomonovométododeprodução, soba formadequeele éobrigadoavender suamercadoriaabaixode seu
valorsocial,forçaseusconcorrentes,comoleicompulsóriadaconcorrência,àaplicaçãodonovomododeprodução.(393)
Assim, a primeira forma de mais-valor relativo considerada nesse capítulo é um fenômeno de
classe.Eleéapropriadoportodaaclassecapitalistaeduraenquantopermitiremascondiçõesdaluta
de classes em tornodo valor da força de trabalho.A segunda forma é individual e efêmera.É essa
segundaformaqueconfereaquelavantagemindividualqueoscapitalistassãoobrigadosaprocurar
pelasleiscoercitivasdaconcorrência.Oresultadoéquetodososcapitalistas,umahoraououtra,são
forçados a adotar amesma tecnologia. As duas formas demais-valor relativo também têm relação
entresi,umavezqueinovaçõesefêmerasnosetordeprodutosdeprimeiranecessidadeforçarãopara
baixo o valor da força de trabalho. “Vê-se, assim, o impulso imanente e a tendência constante do
capital a aumentar a força produtiva do trabalho para baratear amercadoria e, com ela, o próprio
trabalhador”(394).
Masumcapitalistacomedidosabequesemprepodeobteressa segundaformaefêmerademais-
valorrelativo,contantoquetenhaumatecnologiasuperior.Issolevaaalgunsresultadosinteressantes.
Suponhamosqueanovatecnologiasejaumanovamáquina.Marxafirmouqueasmáquinas,porque
sãotrabalhomorto,nãoproduzemvalor.Masoqueacontecesevocêconsegueummais-valorrelativo
extraporcausadeumanovamáquina?Emboranãosejamumafontedevalor,máquinaspodemser
uma fonte demais-valor relativopara o capitalista individual!Assimque elas se generalizam,pode
parecerque sãouma fontedemais-valor relativopara a classe capitalista,por causadadiminuição
provocadanovalordaforçadetrabalho.Issogeraumresultadopeculiar:asmáquinasnãopodemser
umafontedevalor,maspodemserumafontedemais-valor.
Domodo comoMarx expõe o argumento, vemos que há um tremendo incentivo para que os
capitalistasindividuaisadoteminovaçõestecnológicas.Saionafrente,tenhoumsistemadeprodução
superior,maiseficientedoqueoseu,edurantetrêsanosganhomais-valorefêmero;entãovocême
alcança, ou até me ultrapassa, e consegue mais-valor efêmero durante três anos, e assim
sucessivamente. Os capitalistas estão todos à caça de mais-valor efêmero por meio de novas
tecnologias.Decorredaíodinamismotecnológicodocapitalismo.
A maioria das teorias da mudança tecnológica trata a inovação como uma espécie de deus ex
machina, uma variável exógena, externa ao sistema, que pode ser atribuída ao gênio inerente dos
empresáriosousimplesmenteàcapacidadedeinovaçãoprópriadossereshumanos.MasMarxreluta
em atribuir algo tão crucial a uma potência externa. O que faz aqui é encontrar uma explicação
interna (endógena, como preferimos dizer) para o fato de o capitalismo ser tão incrivelmente
dinâmicodopontodevistatecnológico.Eletambémexplicaporqueoscapitalistassustentamavisão
fetichistadequeasmáquinassãoumafontedevalor,eporquetodosnósestamossujeitosàmesma
concepção fetichista. Mas ele está convencido de que as máquinas são uma fonte de mais-valor
relativo, e não de valor. Como os capitalistas estão interessados na massa de mais-valor, e como
geralmente preferem ganhar mais-valor relativo do que travar uma luta de classes pelo mais-valor
absoluto, a crença fetichista num “remédio tecnológico” como resposta a suas ambições é
perfeitamentecompreensível.Temosatédefazerumgrandeesforçoparanoslivrardessacrença.
Mas há uma questão interessante queMarx não considera, embora faça alusão a ela em outro
lugar.Suponhaqueostrabalhadoresvivamapenasdepão,equeocustodopãocaiapelametadeem
razãodeumaumentonaprodutividade.Suponhatambémqueoscapitalistascortemossaláriosem
umquarto.Comisso,elesganhamaformacoletivademais-valorrelativoeaumentamataxageralde
exploração. Aomesmo tempo, porém, os trabalhadores podem comprar mais pão e aumentam seu
padrão de vida físico. A questão geral que se coloca é: como os ganhos derivados do aumento da
produtividade são distribuídos entre as classes? Uma possibilidade, que Marx infelizmente não
enfatiza, équeopadrãodevida físicodos trabalhadores–medidopelosbensmateriais (valoresde
uso)queelestêmcondiçõesdeadquirir–podeaumentar,aomesmotempoqueaumentaataxade
exploração (mv/v).Esse éumponto importante,porqueumadas críticasmais frequentes aMarx é
queeleacreditanumataxacrescentedeexploração.Comoissoépossível,perguntamoscríticos?Seos
trabalhadores (ao menos nos países capitalistas avançados) têm carros e muitos outros bens de
consumo,éóbvioqueataxadeexploraçãonãopodeestaraumentando!Ostrabalhadoresnãoestão
vivendoemcondiçõesmuitomelhores?Partedarespostaéqueéperfeitamentepossível,nostermos
postulados pela teoria deMarx, que aumentos constantes no padrão de vida do trabalhador sejam
acompanhadosdeumataxadeexploraçãocrescenteouconstante.(Outrapartedarespostapodeser
encontrada nos benefícios que uma parcela da classe trabalhadora global tem com as práticas
imperialistasdeexploraçãodaoutraparcela,masnãopodemosusaresseargumentoaqui.)
DigoqueélamentávelqueMarxnãotenhaenfatizadoesseponto,emparteporqueteriaevitado
uma linhaerrôneaeespúriadecrítica teóricaehistórica.Mas tambémporquenos faria focarmais
claramenteoaspectocrucialdahistóriada lutadeclasses: aquestãodadistribuiçãodosbenefícios
obtidoscomosganhosdeprodutividade.NocasodosEstadosUnidos,umapartedosganhosobtidos
com o aumento da produtividade foi destinada aos trabalhadores a partir da Guerra Civil. Uma
estratégia de barganha tipicamente sindical colabora, de fato, para a obtenção de saláriosmaiores
como recompensa por uma produtividade maior. Se os benefícios obtidos com o dinamismo
tecnológicosãodistribuídos,aoposiçãoaessedinamismotecnológicotorna-seimpotente,aindaque
oscapitalistasaumentemataxadeexploração.Épossíveltambémque,pelofatodeostrabalhadores
terem enfim alcançado um bom padrão de vida, a oposição política ao capitalismo em geral seja
menos estridente, mesmo com uma taxa de exploração crescente. O que é estranho no caso dos
EstadosUnidoséqueostrabalhadoresdeixaramdeganharcomoaumentodaprodutividadeapenas
nosúltimostrintaanos.Aclassecapitalistapassouaseapropriardequasetodososbenefícios.Issoestá
nocernedacontrarrevoluçãoneoliberal e éoqueadistinguedoperíodokeynesianodoEstadode
bem-estar social, quando os ganhos obtidos com o aumento da produtividade tendiam a ser
distribuídos mais equitativamente entre o capital e o trabalho. O resultado foi, como está bem
documentado, um tremendo aumento nos níveis de desigualdade social em todos os países que
adotarampolíticasneoliberais.Issotemaverempartecomoequilíbriodeforçasentreasclassesea
dinâmicadalutadeclasses,masespecificamentenosEstadosUnidosasimportaçõesmaisbaratas(e
as práticas imperialistas) também ajudaram a manter a ilusão dos trabalhadores de que talvez
estivessem se beneficiando como imperialismo capitalista.Mas isso vaimuito alémdaquilo que o
textodeMarxnospropõe.Noentanto,acreditoquesejaútilestenderosinsightsmaisimportantesde
Marxnessadireção.
CAPÍTULO11:COOPERAÇÃO
Ostrêscapítulosseguintes tratamdosváriosmodoscomooscapitalistaspodemprocurarconseguir
mais-valorrelativodotipoindividual.Ofocogeraléoqueaumentaaprodutividadedotrabalho,eé
claroqueissodependedeformasorganizacionais(cooperaçãoedivisãodotrabalho),assimcomode
maquinariaeautomação(oquechamamosemgeraldetecnologia).Issopodedarmargemaconfusão,
porqueàsvezesMarxreúnetodasessasestratégiassobarubrica“forçasprodutivas”,mas,emoutras
passagens,empregaotermo“tecnologia”,comoseambostivessemomesmosignificado.Eleestátão
interessadonaformaorganizacional(nosoftware,porassimdizer)quantonasmáquinas(nohardware).
PensoqueomelhorsejapressuporqueateoriadeMarxdatecnologia/forçasprodutivasconsistana
maquinaria mais a forma organizacional. A meu ver, isso é particularmente relevante porque, em
tempos recentes, as transformações na forma organizacional – subcontratação, sistemas just-in-time,
descentralizaçãocorporativaecoisasdogênero–desempenharamumpapelpreponderantenabusca
doaumentodaprodutividade.SeosaltoslucrosdoWalmartrepousamsobreaexploraçãodamãode
obrachinesabarata,éaeficiênciadesuaformaorganizacionalqueocolocaàfrentedemuitosdeseus
concorrentes. De modo similar, a conquista do mercado norte-americano de automóveis pelos
japoneses, à custa de Detroit, teve a ver tanto com a forma organizacional (just-in-time e
subcontratações) das indústrias automobilísticas japonesas quanto com o novo hardware e a
automaçãoempregadosporelas.Defato,desdequeacronoanálise[time-and-motionstudies](eaquilo
quesepassouachamartaylorismo)setornoumodanoiníciodoséculoXX,houvesempreumforte
vínculoentreohardwareeosoftwaredossistemasdeproduçãocapitalista.
Marx começa examinando como duas formas organizacionais – a cooperação e a divisão do
trabalho–podemserusadaspelocapitalemcondições tecnológicasde trabalhoartesanalemanual
para aumentar a produtividade. As inovações nesses dois aspectos da forma organizacional foram
fatores integrantes da aquisição de mais-valor relativo ao longo da história do capitalismo, e não
devemosnuncanosesquecerdisso.Contudo,assimcomonocapítulosobreoprocessodetrabalho,em
queanobrezapotencialdoprocessoérealçadaporoposiçãoàsuaformaalienadasobocapitalismo,
Marx não lança uma luz inerentemente negativa nem sobre a cooperação nem sobre a divisão do
trabalho. Ele as vê como potencialmente criativas, benéficas e gratificantes para o trabalhador. A
cooperação e a divisão bem organizada do trabalho são capacidades humanas esplêndidas, que
incrementamnossospoderescoletivos.Osocialismoeocomunismoteriampresumivelmentegrande
necessidadedelas.OqueMarxtentamostrarécomoessaspotencialidadespositivassãoapropriadas
pelocapitalparaseubenefícioparticularetransformadasemalgonegativoparaotrabalhador.
“Aformadetrabalhodentrodaqualmuitosindivíduostrabalhamdemodoplanejadounsaolado
dosoutroseemconjunto,nomesmoprocessodeproduçãoouemprocessosdeproduçãodiferentes
porém conexos chama-se cooperação.” Note a palavra “planejadamente”, pois ela será uma ideia
importante.Acooperaçãopermite,porexemplo,umaescalaaumentadadeprodução,easeconomias
deescalaquedaíresultampodemgeraraumentonaeficiênciadotrabalhoenaprodutividade.Esseé
umobjetocomumdateoriaeconômicaconvencional,eMarxnãoonega.“Aquinãosetratasomente
do aumento da força produtiva individual pormeio da cooperação,mas da criação de uma força
produtivaquetemdeser,emsimesma,umaforçademassas”(400-1).
[Essaforçademassas]provoca,namaiorpartedostrabalhosprodutivos,emulaçãoeexcitaçãoparticulardosespíritosvitais[animal
spirits] que elevam o rendimento dos trabalhadores individuais, fazendo com que uma dúzia de pessoas forneça, numa jornada de
trabalho simultâneade144horas,umproduto totalmaiordoque12 trabalhadores isolados, cadaumdeles trabalhando12horas.
(401)
Alémdisso,“acooperaçãopermiteestenderoâmbitoespacialdotrabalho”,aomesmotempoque
tornapossível,emproporçãoàescaladaprodução,oestreitamentoespacialdaáreadeprodução.Essalimitaçãodoâmbitoespacialdo
trabalhoea simultâneaampliaçãode suaesferadeatuação,quepoupaumagrandequantidadede falsoscustos [...], é resultadoda
conglomeraçãodostrabalhadores,dareuniãodediversosprocessosdetrabalhoedaconcentraçãodosmeiosdeprodução.(404)
Há aqui uma tensão interessante entre expansão geográfica (o trabalho realizado numa ampla
área)econcentraçãogeográfica(aconcentraçãodetrabalhadoresnummesmolocalcomopropósito
dehavercooperação).Estaúltima,comoafirmaMarx,pode terconsequênciaspolíticas,namedida
emqueostrabalhadoressereúnemeseorganizam.
Eleinsiste,noentanto,que“aforçaprodutivaespecíficadajornadadetrabalhocombinadaéforça
produtivasocialdotrabalhoouforçaprodutivadotrabalhosocial.Eladerivadaprópriacooperação”.
Além disso, “ao cooperar com outros de modo planejado, o trabalhador supera suas limitações
individuais e desenvolve sua capacidade genérica” (405). Esse é um daqueles casos em queMarx
retorna à noção de ser genérico universal, que foi um tema importante nosManuscritos econômico-
filosóficos de 1844.Neste ponto, é difícil ver a discussão sobre a cooperação sob uma luz negativa.
Removemos os grilhões que tolhem nossa individualidade e desenvolvemos as potencialidades da
espécie.Cabe-nos,portanto,realizaressaspotencialidadesdogênerohumano.
Masoqueacontecequandovoltamosaomundodonosso“aspiranteacapitalista”?Antesdemais
nada, o capitalista precisa de umamassa inicial de capital para organizar a cooperação. Qual é a
quantidadedessamassaedeondeelavem?Háaquiloaquechamamoshojedebarreirasàentradaem
qualquerprocessodeprodução.Emalgunscasos,oscustosiniciaispodemserconsideráveis.Mashá
modosdeamenizaresseproblema.Marxintroduzaquiumaimportantedistinção.“Domesmomodo,
ocomandodocapitalsobreotrabalhopareciainicialmenteserapenasumadecorrênciaformaldofato
deotrabalhadortrabalharnãoparasi,masparaocapitalistae,portanto,sobocapitalista.”Contudo,
“com a cooperação de muitos trabalhadores assalariados, o comando do capital se converte num
requisitoparaaconsecuçãodopróprioprocessodetrabalho,numaverdadeiracondiçãodaprodução”
(406).Adistinçãoaquiéentreasubsunção“formal”dotrabalhosobocapitalesuasubsunção“real”.
Oque significa essadiferença? Sobo chamado sistemaputting-out, os capitalistas entregavamo
materialaostrabalhadoresemseuscottagese retornavammais tardepararecolheroprodutopronto.
Os trabalhadores não eram supervisionados e competia a eles a tarefa de regular o processo de
trabalho(quecomfrequênciaenvolviaotrabalhofamiliareeracombinadocompráticasagrícolasde
subsistência).Masessestrabalhadoresemdomicíliodependiamdoscapitalistasparaobterseuganho
monetário e não possuíam aquilo que produziam. É isso queMarx entende por subsunção formal.
Quandoostrabalhadoressãoempregadosnumafábricaporumsalário,tantoelesquantooprocesso
de trabalhoestão soba supervisãodiretadocapitalista.Essaéa subsunçãoreal.Assim,a subsunção
formal é externa, dependente, ao passo que a subsunção real se dá no interior da fábrica, sob a
supervisão do capitalista. A subsunção real implica mais custos iniciais, mais capital inicial; nos
primeirosestágiosdocapitalismo,quandoocapitaleraescasso,osistemaformaldeexploraçãopodia
sermaisvantajoso.Marxacreditavaque,comotempo,asubsunçãoformaldarialugaràreal.Masnão
estava necessariamente certo. O retorno da subcontratação, do trabalho em domicílio e de outras
práticas adotadas em nossa época indica que é sempre possível haver um retrocesso a tipos de
subsunçãoformal.
Quando os trabalhadores são reunidos numa estrutura coletiva de cooperação na fábrica, eles
ficamsobaautoridadedirigentedocapitalista.Todaatividadecooperativa requerumaautoridade
dirigentequalquer,comoummaestroquedirigeumaorquestra.Oproblemaéqueessa“funçãode
direção, supervisão emediação torna-se funçãodo capital assimque o trabalho a ele submetido se
tornacooperativo”.Alémdisso,“comofunçãoespecíficadocapital,adireçãoassumecaracterísticas
específicas”(406).Talfunçãoconsisteemreconhecerque“ospequenosmomentossãooselementos
que formam o lucro” (317) e sugar omáximo de trabalho possível do trabalhador. Por outro lado,
“conforme a massa dos trabalhadores simultaneamente ocupados aumenta, aumenta também sua
resistênciae,comela,apressãodocapitalparasuperá-la”(406).
A luta entre capital e trabalho, que encontramos antes no mercado de trabalho, é agora
interiorizadanafábrica.Issoocorreporqueacooperaçãoéorganizadapormeiodopoderdocapital.
Oqueanteseraumpoderdotrabalhoapareceagoracomoumpoderdocapital.“Porisso,aconexão
entre seus trabalhos aparece para os trabalhadores, idealmente, como plano preconcebido e,
praticamente,comoautoridadedocapitalista,comoopoderdeumavontadealheiaquesubmeteseu
agiraoseupróprioobjetivo”(407).
O propósito do capitalista é assegurar, “por um lado, [um] processo social de trabalho para a
produçãodeumprodutoe,poroutro,[o]processodevalorizaçãodocapital”, istoé,aproduçãode
mais-valor.Issoimplicaodesenvolvimentodeumtipoespecíficodeprocessodetrabalho,emque“a
funçãodesupervisãodiretaecontínuadostrabalhadoresindividuaisedosgruposdetrabalhadores”é
conferida“aumaespécieparticulardeassalariados.Domesmomodoqueumexércitonecessitade
oficiaismilitares,tambémumamassadetrabalhadoresquecooperasobocomandodomesmocapital
necessitadeoficiais(dirigentes,gerentes)esuboficiais(capatazes,foremen,overlookers, contre-maîtres)
industriaisqueexerçamocomandoduranteoprocessodetrabalhoemnomedocapital”.Surgecerta
estruturadesupervisãodostrabalhadoresdecaráterautoritárioe“despótico”.Ocapitalistaadquire
um papel distintivo, como orquestrador do processo de trabalho em todos os seus aspectos. “O
capitalistanãoécapitalistaporserdiretordaindústria;aocontrário,elesetornachefedaindústria
porsercapitalista.Ocomandonaindústriatorna-seatributodocapital”(407-8).Apenaspormeiodo
comandodoprocessodetrabalhoocapitalpodeserproduzidoereproduzido.Ostrabalhadores,por
outrolado,
entramnumarelaçãocomomesmocapital,masnãoentresi.Suacooperaçãocomeçaapenasnoprocessodetrabalho,masentãoeles
já não pertencemmais a si mesmos. Com a entrada no processo de trabalho, são incorporados ao capital. Como cooperadores,
membrosdeumorganismolaborativo,elesprópriosnãosãomaisdoqueummododeexistênciaespecíficodocapital.
Os trabalhadores perdem sua individualidade e tornam-semero capital variável. É o queMarx
entendeporsubsunçãodotrabalhadorsobocapital.
A força produtiva que o trabalhador desenvolve como trabalhador social é, assim, força produtiva do capital, a qual se desenvolve
gratuitamentesemprequeostrabalhadoresseencontremsobdeterminadascondições,eéocapitalqueoscolocasobessascondições.
Pelo fatodea forçaprodutiva socialdo trabalhonãocustarnadaaocapital, eporque,poroutro lado, elanãoédesenvolvidapelo
trabalhadorantesqueseuprópriotrabalhopertençaaocapital,elaaparececomoforçaprodutivaqueocapitalpossuipornatureza,
comosuaforçaprodutivaimanente.(408)
Umpoderinerentedotrabalho,opodersocialdecooperação,éapropriadopelocapitaleaparece
comoumpoderdocapitalsobreostrabalhadores.Háexemploshistóricosabundantesdecooperação
forçada–aIdadeMédia,aescravidão,ascolônias–,massobocapitalismoovínculodacooperação
organizadacomotrabalhoassalariadomanifesta-sesobformasespecíficas.Issoteveumpapelcrucial
noadventodocapitalismo.
[A]ocupaçãosimultâneadeumnúmeromaiordetrabalhadoresassalariadosnomesmoprocessodetrabalho[...]constituiopontode
partida da produção capitalista, que por sua vez coincide com a existência do próprio capital. Se, portanto, omodo de produção
capitalistaseapresenta,porumlado,comonecessidadehistóricaparaatransformaçãodoprocessodetrabalhonumprocessosocial,
essaformasocialdoprocessodetrabalhoseapresenta,poroutrolado,comoummétodoempregadopelocapitalparaexplorá-lode
maneiramaislucrativapormeiodoaumentodesuaforçaprodutiva.(410)
Essestatusoriginaldecertaformadecooperaçãomanteve-seconstantedurantetodaahistóriado
capitalismo.
Acooperaçãosimplescontinuaapredominarnaquelesramosdeproduçãoemqueocapitaloperaemgrandeescala,semqueadivisão
dotrabalhoouamaquinariadesempenhemumpapelsignificativo.
Acooperaçãocontinuaaseraformabasilardomododeproduçãocapitalista,emborasuaprópriafigurasimplesapareçacomoforma
particularaoladodesuasformasmaisdesenvolvidas.(410)
Éimpossívelimaginaromododeproduçãocapitalistasemcooperação,aindaquesejacooperação
sobodespotismodos capitalistas, que organiza e dirige uma autoridade supervisora e fragmenta a
classetrabalhadoraemgruposhierárquicosdistintos.Portanto,nãofazmaissentidopensarapenasno
trabalhador assalariado, porque a classe trabalhadora é estratificada de acordo com o status e a
remuneração correspondentes às diferentes funções constitutivas de um aparato cooperativo
despótico,dedicadounicamenteàproduçãodemais-valor.
CAPÍTULO12:DIVISÃODOTRABALHOEMANUFATURA
Ocapítulo12examinaadivisãodotrabalho.Marxconcentra-seaquinareorganizaçãodoartesanato,
dos ofícios, das tecnologias e outros num novo sistema que ele chama de “manufatureiro”. A
reorganizaçãopodeserfeitadedoismodos.Noprimeiro,sãoreunidos,“sobocontroledeummesmo
capitalista, trabalhadores de diversos ofícios autônomos” (411). O exemplo que ele dá é o da
manufatura de carruagens, em que as rodas, o estofamento, a carroceria etc. têm de ser feitos
separadamente e então reunidos. Esse tipo de reorganização contrasta com a da fabricação de
alfinetes ou agulhas.Nesse caso, o processo inicia-se com amatéria-prima e percorre um processo
contínuoatéresultarnoalfineteounaagulha.Emambososcasos,porém,“sejaqualforseupontode
partidaparticular, suaconfiguração finaléamesma:ummecanismodeprodução,cujosórgãos são
sereshumanos”.Querdizer,sereshumanossãopostosnumcertotipoderelaçãomútuanointeriordo
regimecooperativo.
Essas reorganizações, no entanto, não deixam incólumes os ofícios originais. “A análise do
processodeproduçãoem suas fasesparticulares coincideplenamente comadecomposiçãodeuma
atividadeartesanalemsuasdiversasoperaçõesparciais”(413).Quandooprocessodeproduçãoévisto
comoumtodo, surgemoportunidadesde fragmentá-loeencarregar trabalhadoresespecializadosde
executarcadafragmento,sejaemtermosdasequênciacontínua,sejaemtermosdaheterogeneidade
de ofícios distintos. Todavia, “o trabalho artesanal permanece sendo a base”, uma “base técnica
limitada” que “exclui uma análise verdadeiramente científica do processo de produção, pois cada
processoparcialqueoprodutopercorretemdeserexecutávelcomotrabalhoparcialartesanal”.Isso
constituiumabarreiraclaraaoprogressodaproduçãocapitalistae,comoafirmei,ocapitalnãogosta
debarreiras,porissotentaconstantementesuperá-las.Adificuldade,nessecaso,éque:
cadaprocessoparcialqueoprodutopercorretemdeserexecutávelcomotrabalhoparcialartesanal.Éjustamenteporqueahabilidade
artesanal permanece como a base do processo de produção que cada trabalhador passa a dedicar-se exclusivamente a uma função
parcialsua,esuaforçadetrabalhoétransformadanoórgãovitalíciodessafunçãoparcial.(413)
Oresultadoéqueostrabalhadores,aoinvésdeteraliberdadedesemoverentreumaatividadee
outra,veem-sepoucoapoucoacorrentadosaumafunçãoparticular,aumofícioparticular,aousode
um conjunto particular de ferramentas especializadas. “Um trabalhador que executa uma mesma
operação simples durante toda vida transforma seu corpo inteiro num órgão automaticamente
unilateral dessa operação” (414).É o trabalhador que controla a ferramenta ou é a ferramenta que
controla o trabalhador? Marx sugere que o agrilhoamento social dos trabalhadores a uma
especializaçãoparticularnointeriordadivisãodotrabalhovincula-osdetalformaasuasferramentas
especializadasqueelesacabamperdendosualiberdade.Issonemsemprefoiassim.“Umartesãoque
executasucessivamenteosdiversosprocessosparciais[...]éobrigadoamudaroradedelugar,orade
instrumentos.Apassagemdeumaoperaçãoparaoutrainterrompeofluxodeseutrabalho,formando,
emcertamedida,porosemsuajornadadetrabalho”(415).Masocapitalnãogostadesseslapsosna
jornadadetrabalho,pois“ospequenosmomentossãooselementosqueformamolucro”(317).Esses
lapsos acabam “assim que ele passa a executar continuamente uma única emesma operação o dia
inteiro”. Por outro lado, isso pode ser contraprodutivo, uma vez que “a continuidade do trabalho
uniforme aniquila a força tensional e impulsiva dos espíritos vitais, que encontram na própria
mudançadeatividadeseudescansoeestímulo”(415).
Essa é uma concessão parcial à visão de Fourier a respeito da importância da variedade e do
estímulonoprocessodetrabalho,emoposiçãoaoagrilhoamentomaçanteevitalíciodeumapessoaa
umaferramentanadivisãodotrabalho.Osaspectospositivosenegativosdadivisãodotrabalhosobo
controle capitalista começam a ser introduzidos na discussão. Esta não se esgotou, mesmo sob o
capitalismo.Atentativadeaumentaraeficiênciaeaprodutividadedoprocessodetrabalhopormeio
da introdução de “círculos de controle de qualidade” e de uma variedade de tarefas para
contrabalançaramonotoniadotrabalhotemsidoalvodemuitasexperiênciasdeempresascapitalistas
emcertaslinhasdeprodução.
No item 3,Marx apresenta um contrastemais sistemático entre duas formas fundamentais de
manufatura:aheterogênea(quereuniumuitosofícios,comoaproduçãodecarruagenselocomotivas)
eaorgânica(contínua,comoaproduçãodealfinetesouagulhas).Masaquieleaproveitaaocasião
para introduzir o conceito de “trabalhador coletivo”, que seria “resultado da combinação de
trabalhadoresdetalhistas,puxaoarameaomesmotempoque,simultaneamente,comoutrasmãose
outrasferramentas,oestica,comoutrasocorta,oapontaetc.Deumasucessãotemporal,osdiversos
processos graduais se convertemnuma justaposição espacial” (419).A produtividade e a eficiência
dependemnãodotrabalhadorindividual,masdaorganizaçãoadequadadotrabalhocoletivo.
Issosignificaquesedeveprestarmuitaatençãoàorganizaçãodoespaço-tempodaproduçãoeà
eficiência que pode ser obtida com a reconstrução espaçotemporal do processo de trabalho.Marx
observaque,nãoperdendotempo,temosumganhodeprodutividade.Racionalizandoomodocomoo
espaço é organizado, podemos economizar os custos do deslocamento. Assim, toda a estrutura
espaçotemporaltorna-seumaquestãoorganizacionalparaomododefuncionamentodocapitalismo.
Essafoiagrandeinovaçãoqueosjaponesesintroduziramnoprocessodetrabalhonosanos1970,com
aproduçãojust-in-time,umaprogramaçãorígidadofluxodemercadoriasnoespaçoenotempoque
evita quase toda produção excedente em qualquer ponto do sistema. Essa foi a inovação que deu
vantagemcompetitivaà indústriaautomobilística japonesaemrelaçãoa todasasoutrasduranteos
anos 1980, e os japoneses absorveram sozinhos a forma efêmera do mais-valor relativo até ser
alcançados.Oponto fracodesse sistemaéqueele évulnerável a interrupções.Seumelonacadeia
espaçotemporalérompido–porexemplo,porumagreve–,ofornecimentoéparalisado,porquenão
háestoquesdereserva.
Marxreconhececlaramentequeumaspectoorganizacionalfundamentaldosistemacapitalistaé
comooespaçoeotemposãoestruturadoseentendidos.Ocapitalistatemdeelaborarumplanopara
umsistemadeproduçãoeficientedopontodevistaespaçotemporal.Mas isso implica,por suavez,
uma importante distinção entre o que ocorre nomercado e o que ocorre na empresa. “Quenuma
mercadoria seja aplicadoapenaso tempode trabalho socialmentenecessário à suaproduçãoé algo
queaparecenaproduçãodemercadoriasemgeralcomocoerçãoexternadaconcorrência”(note,mais
umavez,aimportânciadaconcorrência).Mas“namanufatura,aocontrário,ofornecimentodeuma
dada quantidade de produtos em dado tempo de trabalho torna-se uma lei técnica do próprio
processodeprodução”(420).Essadistinção(contradição)entreoquealógicadomercadoexigeeo
quepodeserfeitopeloplanejamentointernoévitalparaoargumentoseguinte.Noentanto,opleno
desenvolvimentodessacontradiçãoéimpedidopelaexistênciadeumobstáculo,quesedeveaofato
dequeaindaestamostratandodeofíciosetrabalhoartesanal.Issopermiteumcomentáriogeralde
certaimportância:
A forma elementar de todamaquinaria foi-nos transmitida pelo Império romano comomoinhode água.Operíododo artesanato
deixoucomolegadoasgrandesinvenções:abússola,apólvora,aimpressãodelivroseorelógioautomático.Emgeral,noentanto,a
maquinariadesempenhaaquelepapelsecundárioqueAdamSmithlheconfereaoladodadivisãodotrabalho.(422)
Em outras palavras, até o fim do século XVIII os capitalistas ainda não investiam em novas
máquinascomoummeioprimáriodeaumentarsuaeficiênciaprodutiva.Emgeral,contentavam-se
emusarosmétodosdeproduçãoexistentesereorganizá-los.Houveinovações,éclaro,comoabússola
e a pólvora, entre outras, mas o capitalismo ainda não havia interiorizado no centro do próprio
processodetrabalhoadinâmicadaconstanteinovaçãotecnológica.Issosóocorreumaistarde,como
adventodamaquinariaedaindústriamoderna(temadocapítulo13).
Areorganizaçãocapitalistadosprocessosdetrabalhotemsériosimpactossobreotrabalhador.“O
hábito de exercer uma função unilateral transforma o trabalhador parcial seu órgão natural – e de
atuaçãosegura–dessafunção,aomesmotempoquesuaconexãocomomecanismototalocompelea
operarcomaregularidadedeumapeçademáquina.”Ostrabalhadores“sãoseparados,classificadose
agrupadosdeacordocomsuasqualidadespredominante”,eoresultadoéuma“hierarquiadasforças
de trabalho, a que corresponde uma escala de salários” (422-4). A distinção entre trabalhadores
qualificadosenãoqualificadostorna-separticularmentemarcada.
Juntamente com a gradação hierárquica, surge a simples separação dos trabalhadores emqualificados e não qualificados. Para estes
últimos,oscustosdeaprendizagemdesaparecemporcompleto,eparaosprimeirosessescustossãomenores,emcomparaçãocomo
artesão[...].Emambososcasoscaiovalordaforçadetrabalho.
Asreorganizaçõesereconfiguraçõescapitalistasdastarefastendemaproduzirdesqualificação,na
medidaemquetarefasqueanteseramcomplexassãosimplificadasemsuaspartesconstitutivas.Isso
tambémprovocaareduçãodovalordaforçadetrabalhoempregada.
Adesvalorizaçãorelativada forçadetrabalho,decorrentedaeliminaçãooureduçãodoscustosdeaprendizagem, implicadiretamente
umamaior valorização do capital, pois tudo que encurta o tempo de trabalho necessário para a reprodução da força de trabalho
estendeosdomíniosdomais-trabalho.
Mas“exceçõesocorremnamedidaemqueadecomposiçãodoprocessodetrabalhogerafunções
novaseabrangentesquenoartesanato,ounãoexistiamounãonamesmaextensão”(424).Devemos
reconhecerque,emtodareorganizaçãodoprocessodetrabalho,podeocorrerumduplomovimento
dedesqualificaçãoemmassausualmenteacompanhadadarequalificaçãodeumgrupomuitomenor
(por exemplo, engenheiros de linha de produção). Esses segmentos da classe trabalhadora são
normalmentefortalecidoseprivilegiadosemrelaçãoaosoutrossegmentosdotrabalho.
Oitem4, intitulado“Divisãodotrabalhonamanufaturaedivisãodotrabalhonasociedade”,é
importanteetemalgumasimplicaçõespotencialmenteproblemáticas.Marxretornaàdistinçãoentre
adivisãodotrabalhonaoficina,queocorresoboplanejamentoeasupervisãodiretadocapitalista,e
adivisãodotrabalhorealizadapormeiodaconcorrêncianomercado.Essasduasformastêmpontos
departida“diametralmenteopostos”,masestãorelacionadas.Marxapresentaumadiscussãobrevee,
eu diria, não plenamente satisfatória a respeito do movimento histórico. “Numa família ou, com
desenvolvimentoulterior,numatribo,surgeumadivisãonatural-espontâneadotrabalhofundadanas
diferenças de sexo e de idade, portanto, sobre uma base puramente fisiológica.” Essa é uma
simplificaçãoexcessiva,baseadaemevidênciasescassas,comonocasodeoutrosdeseuscomentários
históricos.Prossegueele:
atrocadeprodutossurgenospontosemquediferentesfamílias,tribos,comunidadesentrammutuamenteemcontato,poisnãosão
pessoas privadas,mas sim famílias, tribos etc. que, nos primórdios da civilização, defrontam-se de forma autônoma.Comunidades
diferentes encontramem seu ambientenaturalmeiosdiferentesdeprodução ede subsistência.Por isso, também sãodiferentes seu
mododeprodução,seumododevidaeseusprodutos.
As relações de troca surgem entre comunidades diferentes, com recursos diferentes e produtos
diferentes.“Abasedetodadivisãodotrabalhodesenvolvidaemediadapelatrocademercadoriaséa
separação entre cidade e campo.” A dialética das relações entre cidade e campo é historicamente
importante,comosugereMarx(corretamente,ameuver),maselenãodizcomonemporquê.Além
disso, a “grandeza da população e sua densidade” também é relevante para o surgimento do
capitalismo,como“pressupostomaterial”da“divisãodotrabalhonasociedade”(425-6).
Mas essa tal densidade é algo relativo.Um país de povoamento relativamente esparso, commeios de comunicação desenvolvidos,
possuiumpovoamentomaisdensodoqueumpaísmaispovoado,porémcommeiosdecomunicaçãopoucodesenvolvidos,demodo
que,porexemplo,osEstadossetentrionaisdaUniãoAmericanasãomaisdensamentepovoadosdoqueaÍndia.
OrecursodeMarxaumateoriarelativadasrelaçõesdeespaço-tempoéabsolutamenteinovador.
Oterrenogeográficoemqueocapitalismosedesenvolveunãoerafixo,masvariável,edependianão
apenasdadensidadedaspopulações,mastambémdotransporteedastecnologiasdecomunicação.O
argumento central é que a divisão do trabalho namanufatura pressupõe que a sociedade já tenha
atingido “certo grau de desenvolvimento [...]. Inversamente, por efeito retroativo, a divisão
manufatureirado trabalhodesenvolve emultiplica aqueladivisão socialdo trabalho” (426-7).Marx
defende o chamado “período de rotação” [roundaboutness] e a complexidade da produção. O
movimentopassadeumasimplessituaçãoemquealguémfazalgumacoisaaumasituaçãoemque
váriaspessoasfazempartesdeumamesmacoisaenegociamessaspartesnomercado,atéque,nofim
doprocesso,todasaspartessãoreunidasporumaterceirapessoa.Esseperíododerotaçãocrescente
geraumapossibilidadecadavezmaiordeespecializaçãoterritorial.
Adivisãoterritorialdotrabalho,queconcentraramosparticularesdeproduçãoemdistritosparticularesdeumpaís,obtémumnovo
impulsodaindústriamanufatureira,queexploratodasasparticularidades.Aampliaçãodomercadomundialeosistemacolonial,que
integramascondiçõesgeraisdeexistênciadoperíododamanufatura[umpontoimportanteaquedevemosprestaratenção],fornecem
aesteúltimoumricomaterialparaodesenvolvimentodadivisãodotrabalhonasociedade.(427-8)
Massehá“analogiasenexos”entreadivisãodotrabalhonasociedadeenaoficina,“adiferença
entreelasénãoapenasdegrau,masdeessência”(AdamSmithtinhaconsciênciadisso,comoMarx
reconhece)(428).
Enquantoadivisãodotrabalhosociedadeémediadapelacompraevendadosprodutosdediferentesramosdetrabalho,aconexãodos
trabalhosparciaisnamanufaturaoépelavendadediferentesforçasdetrabalhoaomesmocapitalista,queasempregacomoforçade
trabalhocombinada.Enquantoadivisãomanufatureiradotrabalhopressupõeaconcentraçãodosmeiosdeproduçãonasmãosdeum
capitalista, a divisão social do trabalho pressupõe a fragmentação dosmeios de produção entremuitos produtores demercadorias
independentes entre si. Diferentemente da manufatura, onde a lei de bronze da proporção ou da proporcionalidade submete
determinadasmassasdetrabalhadoresadeterminadasfunções,nasociedadeéodiversificadojogodoacasoedoarbítrioquedetermina
adistribuiçãodosprodutoresdemercadoriasedeseusmeiosdeproduçãoentreosdiferentesramossociaisdetrabalho.(429)
Noúltimocaso,dizele,“asdiferentesesferasdeproduçãoprocuramconstantementepôr-seum
equilíbrio”(429),massófazemissopelosmecanismosdomercado.Então,recorrendoàsleisdatroca
de mercadorias, ele explica por que isso acontece. Isso significa que a “tendência constante das
diferentes esferas de produção de se pôr em equilíbrio é exercida apenas como reação contra a
constantesupressãodessemesmoequilíbrio”.Querdizer,quandoaofertaeademandasedesajustam
(enotequenãopodemosprescindirdosmecanismosdeofertaedemanda),asflutuaçõesdospreços
no mercado forçam o ajuste necessário nas relações de valor subjacentes, fazendo os produtores
mudaremoqueestãoproduzindoesuaescaladeprodução.Oresultadoéumnítidocontrasteentre
“aregraapriorieplanejadamenteseguidanadivisãodotrabalhonointeriordaoficina”ea“divisão
dotrabalhonointeriordasociedade”.Nesta,aregraaprioriatua
apenasaposteriori,comonecessidadenatural,interna,muda,quecontrolaoarbítriodesregradodosprodutoresdemercadoriasepode
ser percebida nas flutuações barométricas dos preços do mercado. A divisão manufatureira do trabalho pressupõe a autoridade
incondicional do capitalista sobre homens que constituemmeras engrenagens de ummecanismo total que a ele pertence; a divisão
socialdotrabalhoconfrontaprodutoresautônomosdemercadorias,quenãoreconhecemoutraautoridadesenãoadaconcorrência,da
coerçãoquesobreeleséexercidapelapressãodeseusinteressesrecíprocos,assimcomonoreinoanimalabellumomniumcontraomnes
[guerradetodoscontratodos]preservaemmaioroumenorgrauascondiçõesdeexistênciadetodasasespécies.(430)
Noteque,nessaspassagens,tantoosmecanismosdeofertaedemandaquantoasleiscoercitivas
da concorrência são admitidos comonecessários para a obtençãode um tipode equilíbrio emque
prevaleçamasrelaçõesdevalor.
O capitalismo, concluiMarx, vive sempre emmeio à contradição entre “a anarquia da divisão
social do trabalho e o despotismo da divisão manufatureira do trabalho”. Além disso, esses dois
aspectos da divisão do trabalho “se condicionammutuamente”. A essa conclusão, no entanto, ele
acrescentaumcomentáriocontroversoecomsériasimplicaçõespolíticas:
Poressarazão,amesmaconsciênciaburguesaquefestejaadivisãomanufatureiradotrabalho,aanexaçãovitalíciadotrabalhadorauma
operação detalhista e a subordinação incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organização do trabalho que
aumentaaforçaprodutivadenunciacomomesmoalardetodoequalquercontroleeregulaçãosocialconscientedoprocessosocialde
produção como um ataque aos invioláveis direitos de propriedade, liberdade e à “genialidade” autodeterminante do capitalista
individual.Émuitocaracterísticoqueosmaisentusiasmadosapologistasdosistemafabrilnãosaibamdizernadamaisofensivocontra
todaorganizaçãogeraldotrabalhosocialalémdequeelatransformariaasociedadeinteiranumafábrica.(430)
Essasafirmaçõesrequeremumaanálisecuidadosa.Oscapitalistasamamaorganizaçãoplanejada
da produção em suas fábricas,mas abominam a ideia de qualquer tipo de planejamento social da
produção na sociedade.A acusação ideológica de que o planejamento é nocivo e, emparticular, a
crítica dos capitalistas de que ele reformularia o mundo à imagem de suas terríveis fábricas é
reveladora.A condenaçãodoplanejamentonão se confunde comoque acontecenaToyotaouno
Walmart.Empresasdesucessoempregamtécnicassofisticadasdegerenciamentodequalidadetotal,
análises de input-output, planejamento edesign de otimização, prevendo tudo até em seusmínimos
detalhes. Para Marx, porém, uma coisa é denunciar a hipocrisia dos capitalistas em relação ao
planejamentono terreno social eoutrabemdiferente é sugerirque suas técnicas indubitavelmente
sofisticadas, aplicadas para obtenção do mais-valor relativo, possam ser apropriadas para o
planejamento de uma sociedade socialista, cuja finalidade é o aumento do bem-estar material de
todos.Emsuma,seriarazoáveltransformaromundonumaeconomiacomplanejamentocentralizado
ounumagrandefábricaparachegaraosocialismo?Obviamente,haveriaproblemas,seconsiderarmos
adescriçãoqueMarxfazdasterríveiscondiçõesdetrabalhonasfábricas.Masseoproblemanãoestá
nastécnicasemsi,masnofatodequesãousadasparaobtermais-valorrelativoparaocapitalista,e
não para produzir artigos voltados para a satisfação das necessidades de todos, então a defesa de
Lenin do sistema fordista de produção como um objetivo para a indústria soviética torna-semais
compreensível.Voltaremosaessaquestãomaisadiante.
Certamente,oargumentodequeoplanejamentocentralizadoéimpossívelporcausadoseugrau
de complexidade ou porque fere as relações de propriedade privada não convence; basta pensar na
complexidade envolvida em qualquer grande indústria que produza, por exemplo, produtos
eletrônicos e na despossessão do direito dos trabalhadores aos frutos de seu próprio trabalho. As
incríveis deficiências do sistema de mercado (particularmente em relação ao meio ambiente) e a
brutalidade periódica das leis coercitivas da concorrência, além do crescente despotismo que essa
coerçãoproduznoslocaisdetrabalho,sãograndesargumentosafavordasuperioridadedaregulação
do mercado. E a ideia de que a inovação só é possível quando são assegurados os direitos da
propriedadeindividualeodomíniodasleisdaconcorrênciaécertamenteinverossímil,tantológica
quantohistoricamente.Pois,ameuver,oquemaisimpressionaMarxaquiéaapropriaçãodasforças
produtivas do trabalho pelo capital. Ele insiste em dizer à classe trabalhadora que essas forças de
cooperaçãoedivisãodotrabalhosãosuasforçasprodutivasequeocapitalestáseapropriandodelas.
Por isso, a força produtiva que nasce da combinação dos trabalhos aparece como força produtiva do capital. A manufatura
propriamenteditanão só submete ao comando e àdisciplinado capital o trabalhador antes independente, como tambémcriauma
estruturahierárquicaentreosprópriostrabalhadores.
Asimplicaçõesparaostrabalhadoressãoenormes.
Elaaleijaotrabalhador,converte-onumaaberração,promovendoartificialmentesuahabilidadedetalhistapormeiodarepressãodeum
mundodeimpulsosecapacidadesprodutivas,domesmomodocomo,nosEstadosdeLaPlata,umanimalinteiroéabatidoapenas
para a retirada da pele ou do sebo.Não só os trabalhos parciais específicos são distribuídos entre os diversos indivíduos, como o
próprioindivíduoédivididoetransformadonomotorautomáticodeumtrabalhoparcial,conferindoassimrealidadeàfábulaabsurda
deMenênioAgripa
[b]
,querepresentaumserhumanocomomerofragmentodeseuprópriocorpo.(434)
Assim, o corpo político é configurado de modo tal que os trabalhadores são reduzidos a
fragmentos vivosde simesmos. “Por suapróprianatureza incapacitado”– eMarx é irônico aqui–
“para fazer algo autônomo, o trabalhador manufatureiro só desenvolve atividade produtiva como
elementoacessóriodaoficinadocapitalista.”Infelizmente,
As potências intelectuais da produção, ampliando sua escala, por um lado desaparecempormuitos lados.Oque os trabalhadores
parciaisperdemconcentra-sedefronte a elesno capital.Éumprodutodadivisãomanufatureirado trabalhoopor-lhes aspotências
intelectuaisdoprocessomaterialdeproduçãocomopropriedadealheiaecomopoderqueosdomina.
O trabalho intelectual torna-se uma função especializada, separando o trabalhomental daquele
manualesubmetendocadavezmaisoprimeiroaocontroledocapital.
Esseprocessodecisãocomeçanacooperaçãosimples,emqueocapitalistarepresentadiantedostrabalhadoresindividuaisaunidadee
avontadedocorposocialdetrabalho.Elesedesenvolvenamanufatura,quemutilaotrabalhador,fazendodeleumtrabalhadorparcial,
ele se consuma na grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a obriga a servir ao
capital.(435)
Oresultadodissoéum“empobrecimentodotrabalhador”eumasériaperdade“forçasprodutivas,
individuais”. As subjetividades políticas e intelectuais não permanecem imunes. E aquiMarx cita
AdamSmith,nãonecessariamenteemtomdeaprovação,mascomoumtestemunhodealgoquese
torna,cadavezmais,umamatériadefato:
“Amente da grandemaioria dos homens”, diz A. Smith, “desenvolve-se necessariamente a partir de e pormeio de suas ocupações
diárias.Umhomemqueconsometodaasuavidanaexecuçãodeumaspoucasoperaçõessimples[...]nãotemnenhumaoportunidade
deexercitarsuainteligência.[...]Elesetorna,emgeral,tãoestúpidoeignorantequantoépossívelaumacriaturahumana.”E,depoisde
descrever a estupidificação do trabalhador parcial, Smith prossegue: “A uniformidade de sua vida estacionária também corrompe,
naturalmente,acoragemdesuamente.[...]Elaaniquilaatémesmoaenergiadeseucorpoeotornaincapazdeempregarsuaforçade
modovigorosoeduradouro,anãosernaoperaçãodetalhistaparaaqualfoiadestrado.Suadestrezaemseuofícioparticularparece,
assim,tersidoadquiridaàcustadesuasvirtudesintelectuais,sociaiseguerreiras.Masemtodasociedadeindustrialecivilizadaéesseo
estadoaquenecessariamentetemdesedegradaropobrequetrabalha(thelabouringpoor),istoé,agrandemassadopovo”.(436)
Marx parece inclinado a aceitar, até certo ponto, a caracterização da situação apresentada por
Smith, epensoque é importante levantar a seguintequestãogeral: emquemedidanosso emprego
corrompeacoragemdenossamente?Pensoqueoproblemaégeneralizado,nãoserestringeapenas
aos operários. Jornalistas, personalidades da mídia, professores universitários – todos temos esse
problema(tenhoexperiênciapessoalsuficientenessesentido).Arelutânciageneralizadaemprotestar
contraomilitarismo,asinjustiçassociaiseasrepressõesquenosrodeiamtêmtantoaver(edeforma
aindamaisinsidiosa)comasmentalidadesesubjetividadespolíticasquederivamdenossoemprego
quantocomasofisticadaorganizaçãodarepressãoburguesa.“Certaatrofiamentoespiritualecorporal
éinseparávelmesmodadivisãodotrabalhoemgeraldasociedade”,admiteMarx,eresultanoqueele
chama de “patologia industrial” (437). Mais uma vez, pisamos em terreno perigoso. Seria correto
tratar como patológica a classe trabalhadora? No entanto, seria utópico supor que isso não tenha
nenhumimpactosobreacapacidadedaspessoasdereagir,pensar.Quemjáseorganizoucompessoas
quetêmdoisempregos(oitentahorasporsemana)conhecemuitobemesseproblema.Trabalhadores
nessascondiçõesdispõemdepoucoounenhumtempoparapensar(quediráler)sobremuitascoisasa
respeito das quais achamos que eles deveriam pensar, dada sua posição de classe. Eles estão tão
ocupadostentandojuntarasduaspontas,sustentarosfilhosedarcontadastarefasdomésticas,que
nãosobratempoparanadaalémdotrabalho.Smithlevouoargumentoaoextremoechegouàinfeliz
conclusãodequecaberiaaumapequenaeliteatarefaeodeverdepensareorganizar,masháalgona
descriçãodeMarxquenegamosparanossopróprioriscopolítico.
A reorganização da divisão do trabalho, tanto no interior do processo de trabalho como na
sociedade em seu conjunto, é a marca daquilo que Marx chama de “período manufatureiro” na
história capitalista.Mas esse sistemamanufatureiro tem limites. “Aomesmo tempo, amanufatura
nempodiaseapossardaproduçãosocialemtodaasuaextensão,nemrevolucioná-laemsuasbases.
Como obra de arte econômica” – eMarx admira isso – “ela se erguia apoiada sobre o amplo do
artesanatourbano eda indústria doméstica rural. Suaprópria base técnica estreita, tendo atingido
certo grau de desenvolvimento, entrou em contradição com as necessidades de produção que ela
mesma criara” (442). A pressão empurrava para além dessas barreiras. São as máquinas que
“suprassumem[aufheben]aatividadeartesanalcomoprincípioreguladordaproduçãosocial.Porum
lado, portanto, é removido o motivo técnico da anexação vitalícia do trabalhador a uma função
parcial”(443).Issonosconduzaopróximocapítulo,emqueasmáquinaseaformaorganizacionalda
fábricamodernaocupamocentrodopalco.
[a]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.456.(N.E.)
[b]Em494d.C.ocorreuoprimeirograndeconflitoentrepatrícioseplebeusemRoma.Segundoalenda,opatrícioMenênioAgripateria
usadodeumaparábolaparaconvencerosplebeusaumaconciliação.Segundoele,arevoltadosplebeusseassemelhavaaumarecusados
membrosdocorpohumanoapermitirqueoalimentochegasseaoestômago,oquetinhacomoconsequênciaqueosprópriosmembros
definhavam.ArecusadosplebeusacumprirsuasobrigaçõeslevariaassimàruínadoEstadoromano.(N.T.)
7.Oqueatecnologiarevela
CAPÍTULO13:MAQUINARIAEGRANDEINDÚSTRIA
Naintrodução,afirmeiqueMarxraramentecomentasuametodologia.Elatemdeserreconstruída,
portanto, por uma leitura atenta dos comentários ocasionais, suplementada por um estudo das
práticas.O capítulo 13, “Maquinaria e grande indústria”, nos dá a oportunidadede enfrentar essa
questão ao mesmo tempo em que antecipa os argumentos gerais quanto ao caráter do modo de
produçãocapitalista.Ocapítuloélongo,masositenssãologicamenteordenados.Valeapenaseguir
esseordenamentológicotantoantesquantodepoisdeestudaressecapítulo.
Umanotaderodapéimportante
Começarei, no entanto, com a quarta nota do capítulo, em que Marx, nos mesmos termos
enigmáticos que emprega com frequência ao fazer considerações metodológicas, interconecta um
grandenúmerodeconceitosnumaconfiguraçãoqueforneceumarcabouçogeralparaomaterialismo
dialéticoehistórico.Anotaderodapésedesdobraemtrêsfases.Aprimeiraconcentra-senarelação
deMarxcomDarwin.MarxleuAorigemdasespécieseficouimpressionadocomométodohistóricode
reconstruçãoevolucionáriadesenvolvidoporDarwin.Eleviasuaprópriaobracomoumaespéciede
continuação da obra de Darwin, com ênfase na história humana e na história natural (e não em
oposição a ela). Seu objetivo, como ele observa no prefácio à primeira edição, é apreender “o
desenvolvimentodaformaçãoeconômicadasociedadecomoumprocessohistórico-natural”.Apartir
dessepontodevista,oindivíduo“podemenosdoquequalqueroutroresponsabilizaroindivíduopor
relações das quais ele continua a ser socialmente uma criatura, pormais que, subjetivamente, ele
possasecolocaracimadelas”(80).
Nanotaderodapé,Marxfocaprimeiramenteuma“históriacríticadatecnologia”.
[Esta]provariaoquãopoucoqualquerinvençãodoséculoXVIIIpodeseratribuídaaumúnicoindivíduo.Atéentão,talobrainexiste.
Darwin atraiu o interesse para a história da tecnologia natural, isto é, para a formaçãodos órgãos das plantas e dos animais como
instrumentosdeproduçãoparaavida.Nãomereceriaigualatençãoahistóriadaformaçãodosórgãosprodutivosdohomemsocial,da
basematerialdetodaorganizaçãosocialparticular?Enãoseriaelamaisfácildesercompilada,umavezque,comodizVico,ahistória
doshomenssediferenciadahistórianaturalpelofatodefazermosumaenãoaoutra?(446,nota89)
O argumento de Vico é que a história natural é o domínio de Deus e, como Deus age por
caminhosmisteriosos,elaestáalémdoentendimentohumano;jáanossahistória,porqueéfeitapor
nós mesmos, pode ser conhecida. Anteriormente, Marx mencionou a abordagem histórica das
mudançastecnológicaseapontoualgumastransiçõesvitaisassociadasàstransformaçõesdomodode
produção.DepoisdeconcordarcomadefiniçãodeBenjaminFranklinnocapítulo5dequeohomem
éum“animalquefabricaferramentas”,eleprossegue:
Amesmaimportânciaqueasrelíquiasdeossostêmparaoconhecimentodaorganizaçãodasespéciesdeanimaisextintastêmtambém
asrelíquiasdemeiosdetrabalhoparaacompreensãodeformaçõessocioeconômicasextintas.Oquediferenciaasépocaseconômicas
nãoé“oquê”éproduzido,mas“como”,“comquemeiosdetrabalho”.(257)
Então,numanotaderodapé,eleobservaquãoínfimoéo“conhecimentoqueahistoriografiade
nossosdiaspossuidodesenvolvimentodaproduçãomaterial,portanto,dabasedetodavidasociale,
porconseguinte,detodahistóriaefetiva”(258).Nocapítulo12,afirma:
A forma elementar de todamaquinaria foi-nos transmitida pelo Império romano com omoinho d’água.O período do artesanato
deixou como legadograndes invenções: abússola, apólvora, a impressãode livros eo relógio automático.Emgeral,no entanto, a
maquinariadesempenhaaquelepapelsecundárioqueAdamSmithlheconfere,aoladodadivisãodotrabalho.(422)
Essa ideia de que houve um processo humano evolucionário, no qual podemos discernir
mudançasradicaisnãoapenasnastecnologias,mastambémnosmodosdevidasocial,éclaramente
degrandeimportânciaparaMarx.
Marx não leu Darwin de maneira acrítica. “É notável”, escreveu ele a Engels, “como Darwin
reconhece, entre os animais e as plantas, a sociedade inglesa de seu tempo, com sua divisão de
trabalho, concorrência, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a ‘luta pela existência’
malthusiana.”
[a]
ParaMarx,oproblemaestavanaconcepçãodarwinianadeumaevoluçãopuramente
natural, sem nenhuma referência ao papel da ação humana na transformação da face da terra. A
referênciaaMalthustambémésignificativa,porque,na introduçãodeAorigemdas espécies,Darwin
atribuiualgumasdesuas ideiasprincipaisaMalthus.E,comoMarxnãotoleravaMalthus,deveter
sidodifícilparaeleengoliraideiadequeestetivesseinspiradoDarwin.Éinteressantenotarqueos
evolucionistas russos, que não estavam expostos ao impiedoso industrialismo inglês (Darwin era
casadocoma filhade JosiahWedgwood,o famoso fabricantede cerâmica, epor isso tinhagrande
familiaridadecomaconcorrênciaeadivisãodotrabalhoedas funções),enfatizavammuitomaisa
cooperação e a ajudamútua, ideias que o geógrafo russoKropotkin traduziu nos fundamentos do
anarquismosocial.
Mas o que Marx apreciava em Darwin era a ideia da evolução como um processo aberto à
reconstruçãohistórica e à investigação teórica.Marx entendeoprocesso evolucionáriohumanode
maneirasemelhante.Énessepontoquesemostrasuaênfasenosprocessos,emvezdenascoisas.O
capítulosobreamaquinariaeagrandeindústriadeveriaserlidocomoumensaionessalinhasobrea
históriadatecnologia.Elefaladosurgimentodaformaindustrialdocapitalismoapartirdomundo
doartesanatoedamanufatura.Atéentão,ninguémhaviapensadoemescrevertalhistória;assim,esse
capítulo é um esforço pioneiro que levaria mais tarde a todo um campo de estudos acadêmicos
chamadohistóriadaciênciaedatecnologia.Lidadessemodo,aargumentaçãodocapítulofazmuito
maissentido.Mas,assimcomoateoriadeDarwin,hámuitomaisaquidoqueapenashistória.Há
umengajamentoteóricocomosprocessosdetransformaçãosocial,portantohámuitacoisaparaser
discutida.
A segunda parte da nota de rodapé faz uma afirmação curta, mas, a meu ver, extremamente
importante,erequeranálise.“Atecnologiadesvelaaatitudeativadohomememrelaçãoànatureza,o
processoimediatodeproduçãodesuavidae,comisso,tambémdesuascondiçõessociaisdevidae
dasconcepçõesespirituaisquedelasdecorrem”(446,nota89).Numaúnicasentença,Marxarticula
seis elementos conceituais identificáveis. Há, antes de tudo, a tecnologia. Há a relação com a
natureza. Há o processo efetivo de produção e, em forma bastante nebulosa, a produção e a
reproduçãodavidacotidiana.Há,enfim,asrelaçõessociaiseasconcepçõesmentais.Esseselementos
não são estáticos, mas móveis, vinculados entre si pelos “processos de produção” que guiam a
evoluçãohumana.Oúnicoelementoqueelenãodescreveexplicitamenteemtermosdeproduçãoéa
relaçãocomanatureza.Obviamente,essarelaçãomudouaolongodotempo.Queanaturezaéalgo
queestásempresendoproduzido,empartepelaaçãohumana,éumaideiaantiga;naversãomarxista
(esboçada no capítulo 5), ela é mais bem apresentada por meu colega Neil Smith, em seu livro
Desenvolvimentodesigual
[b]
,emqueosprocessoscapitalistasdeproduçãodanaturezaedoespaçosão
explicitamenteteorizados.
Como construir as relações entre esses seis elementos conceituais? Embora sua linguagem seja
sugestiva,Marxdeixaessaquestãoemaberto,oqueélamentável,porqueabreespaçoparatodotipo
de interpretação. Marx é descrito muitas vezes, tanto por amigos como por inimigos, como um
deterministatecnológico,queacreditaquemudançasnasforçasprodutivasditamocursodahistória
humana, inclusiveaevoluçãodas relações sociais,asconcepçõesmentais,a relaçãocomanatureza
etc.O jornalistaneoliberalThomasFriedman,porexemplo, admite tranquilamenteemseu livroO
mundoéplano
[c]
queéumdeterministatecnológico;quandolhedisseram(equivocadamente)queessa
era a posição de Marx, ele expressou sua admiração por Marx e citou uma longa passagem do
Manifesto Comunista para provar seu argumento. Numa resenha do livro de Friedman, o filósofo
político conservador John Gray confirmou o determinismo tecnológico de Marx e afirmou que
FriedmanestavaapenasseguindoospassosdeMarx
[1]
.Essasobservações, feitasporpessoasqueem
geralsãoantipáticasaopensamentodeMarx,encontramparalelonatradiçãomarxista.Aversãomais
sólidadatesedequeasforçasprodutivassãooagentecondutordahistóriaédeG.A.Cohen,emKarl
Marx’sTheoryofHistory:ADefence
[2]
.DepoisdeestudartodosostextosdeMarxdopontodevistada
filosofiaanalítica,Cohendefendeessainterpretaçãodateoriamarxiana.
Nãoconcordocomtalinterpretação.AchoqueéinconsistentecomométododialéticodeMarx
(considerado lixo por filósofos analíticos como Cohen). Em geral, Marx evita a linguagem causal
(desafiovocêaencontrarpassagensdessetipon’Ocapital).Nessanotaderodapé,elenãodizquea
tecnologia “causa” ou “determina”, mas “revela” ou, em outra tradução, “desvela” a relação do
homemcomanatureza.ÉclaroqueMarxdámuitaatençãoaoestudodastecnologias(inclusivedas
formasorganizacionais),masissonãoolevaatratá-lascomoprincipaisagentesdaevoluçãohumana.
O queMarx diz (emuitos discordarão demim) é que as tecnologias e as formas organizacionais
interiorizamcertarelaçãocomanatureza,assimcomocomconcepçõesmentaiserelaçõessociais,com
avidacotidianaeosprocessosdetrabalho.Emvirtudedessainteriorização,oestudodastecnologias
e formas organizacionais pode “revelar” ou “desvelar” muito dos outros elementos. Inversamente,
todosessesoutroselementosinteriorizamalgodatecnologia.Umestudodetalhadodavidacotidiana
sobocapitalismo“revelará”,porexemplo,muitadanossarelaçãocomanatureza,astecnologias,as
relações sociais,asconcepçõesmentaiseosprocessos laborais.Domesmomodo,oestudodanossa
relação com a natureza não pode ir muito longe, se não examinar a natureza de nossas relações
sociais,nossossistemasdeprodução,nossasconcepçõesdomundo,astecnologiasqueempregamose
comoconduzimosnossavidacotidiana.Todosesseselementosconstituemumatotalidade,etemos
deentendercomfuncionamasinteraçõesmútuasentreeles.
Pensoqueesseéummodoprofícuodepensaromundo.Porexemplo,fuimembrodeumjúripara
selecionarideiasparaoplanejamentodeumanovacidadenaCoreiadoSul.Nós,osmembrosdojúri,
tínhamostodososprojetosànossafrente.Ojúrieraformadosobretudoporengenheiroseurbanistas,
além de uns poucos arquitetos e paisagistas célebres. Estes últimos dominaram a discussão inicial
sobre o critério que deveríamos adotar emnossas decisões, o que gerouprincipalmente umdebate
sobre a força simbólica relativa e as implicações práticas de círculos e cubos em estruturas
arquitetônicas.Emoutraspalavras,asdecisõesteriamdesertomadas,emgrandeparte,combaseem
critériosgeométricosesimbólicos.Numdeterminadomomento,perguntei:sevocêestáconstruindo
umanovacidade,quecoisasvocêachaimportantesaber?Paramim,éimportantesaber:quetipode
relaçãocomanaturezaserácriadonessacidade(oaspectoambientaletc.)?Quetipodetecnologias
serão incorporadas lá e por quê? Que tipo de relação social se tem em vista? Quais sistemas de
produção e reprodução serão incorporados?Como será a vida cotidiana lá, e esse é o tipo de vida
cotidiana que gostaríamos de criar? E que concepções mentais, simbólicas etc. serão implantadas?
Estamosconstruindoummonumentonacionalistaouumespaçocosmopolita?
Osoutrosjuradosacharamessaformulaçãoinovadoraeinteressante.Discutimosissoporalgum
tempo, até que a questão se tornou um pouco complicada demais em relação ao tempo de que
dispúnhamos.Umdos arquitetos disse então que, dos seis critérios formulados pormim, apenas o
relativo às concepçõesmentais era realmente importante, e voltamos à questão do simbolismo das
formas e das forças relativas dos círculos e dos cubos!Mais tarde, porém,muitosme perguntaram
onde poderiam encontrar mais sobre aquele modo tão interessante de pensar. Cometi o erro de
indicaranota89docapítulo13d’Ocapital.Nãodeveriaterfeitoisso,porqueháduasreaçõestípicas
emcasosassim.Umaénervosa,eatétemerosa,poisadmitirqueMarxpossaterditoalgotãoóbvioe
interessantesignificaadmitirsimpatiasmarxistas,eissoseriaterrívelparaasambiçõesprofissionaise
atémesmopessoaisdealguém.Aoutraéolharparamimcomoseeufosseumidiota,umapessoatão
desprovidadeideiasquesóconseguepapagaiaroqueMarxdize,piorainda,chegaraopontodecitar
uma mera nota de rodapé! E assim termina a conversa. Mas acredito que essa é uma maneira
interessantedeavaliarumplanejamentourbanoecriticarasqualidadesdavidaurbana.
Essearcabouçoéessencialparaa fundamentaçãodateoriadomaterialismohistórico,eháuma
forte evidência, como esperodemonstrar, de que ele fundamenta grandeparte da compreensãode
Marxdaevoluçãodocapitalismo.Devomedeterummomentonesseponto.Imagineumarcabouço
emqueessesseiselementosestãoreunidosnummesmoespaço,masemintensainter-relação(vera
figuraaseguir).Cadaumdesseselementoséinternamentedinâmico,oquenospermitevercadaum
comoum“momento”noprocessodaevoluçãohumana.Podemosestudaressaevoluçãodaperspectiva
deumdessesmomentosouexaminarasinteraçõesentreeles,comoastransformaçõesnatecnologia
ou nas formas organizacionais com referência às relações sociais e às concepções mentais. Como
nossasconcepçõesmentaissãoalteradaspelastecnologiasqueestãoànossadisposição?Nãovemoso
mundo com outros olhos quando dispomos de microscópios, telescópios, satélites, raios X e
tomografia computadorizada? Entendemos e pensamos o mundo hoje de modo muito, muito
diferenteporcausadastecnologiasquetemos.Damesmaforma,alguémdevetertidoaconcepção
mental de que construir um telescópio seria algo interessante (lembre-se da passagem d’O capital
sobreoprocessodetrabalhoeoarquitetoincompetente).E,quandoteveessaideia,essapessoateve
deencontrarumóptico,umvidreiroetodososelementosnecessáriosparatransformaremrealidade
aideiadaconstruçãodotelescópio.Tecnologiaseformasorganizacionaisnãocaemdocéu.Elassão
produzidasapartirdeconcepçõesmentais.Tambémsurgemdenossasrelaçõessociaiseemresposta
àsnecessidadespráticasdavidacotidianaoudosprocessosdetrabalho.
AprecioomodocomoMarxestabeleceessasrelações,desdequesejamvistasdialeticamente,enão
causalmente. Essa maneira de pensar permeia O capital, e deveríamos lê-lo tendo em mente tal
arcabouçoconceitual.Eletambémofereceumpadrãodecrítica,porquepodemosanalisaropróprio
desempenho de Marx a partir do modo como ele inter-relaciona esses diferentes elementos. Mas
comoexatamenteeleinterconectaconcepçõesmentais,relaçõessociaisetecnologias?Elefazissode
formaadequada?Háaspectos,comoapolíticadavidacotidiana,quesãodeixadosdelado?Emoutras
palavras,adialéticaentreessaformulaçãoeaspráticasdeMarxtemdeserinvestigada.
Façamosumresumodaquestão.Osseiselementosconstituemmomentosdistintivosnoprocesso
deevoluçãohumana,entendidocomoumatotalidade.Nenhummomentoprevalecesobreosoutros,
mesmoquenointeriordecadaumexistaapossibilidadedodesenvolvimentoautônomo(anatureza
mudaeevolui,domesmomodoqueas ideias,asrelaçõessociais,as formasdavidacotidianaetc.).
Todos esses elementos sedesenvolvememconjunto e estão sujeitos a renovações e transformações
perpétuas como momentos dinâmicos no interior da totalidade. Mas essa totalidade não é uma
totalidadehegeliana,emquecadamomentointeriorizaestreitamentetodososoutros,massimuma
totalidade ecológica, o que Lefebvre chama de “conjunto” [ensemble] e Deleuze, de “junção”
[assemblage] de momentos que se codesenvolvem de modo aberto, dialético. O desenvolvimento
desigualentreoselementosproduzcontingêncianaevoluçãohumana(demaneiramuitosemelhante
comoasmutaçõesimprevisíveisproduzemcontingêncianateoriadarwiniana).
Na teoria social, o perigo é ver um dos elementos como determinante de todos os outros. O
determinismo tecnológico é tão equivocado quanto o determinismo ambiental (a natureza
condiciona), o determinismo da luta de classes, o idealismo (as concepções mentais estão na
vanguarda), o determinismo do processo de trabalho ou o determinismo resultante dasmudanças
(culturais)navidacotidiana(essaéaposiçãopolíticadePaulHawkenemseuinfluenteBlessedUnrest
[Abençoada inquietação]
[3]
).Grandes transformações, como omovimento do feudalismo (ou outra
configuração pré-capitalista) para o capitalismo, ocorrem por meio de uma dialética de
transformaçõesqueatravessatodososmomentos.Essecodesenvolvimentosedeudemododesigual
no espaço e no tempo, produzindo todo tipo de contingências locais, apesar de limitadas pela
interaçãonointeriordoconjuntodeelementosimplicadosnoprocessoevolucionárioepelacrescente
integração espacial (e, às vezes, competitiva) dos processos de desenvolvimento econômico no
mercadomundial.Talvezumdosmaioreserrosnatentativaconscientedeconstruirosocialismoeo
comunismosobreabasedocapitalismotenhasidoaincapacidadedereconheceranecessidadedeum
engajamento político que atravessasse todos esses momentos e fosse sensível às especificidades
geográficas. A tentação do comunismo revolucionário foi reduzir a dialética a um simplesmodelo
causal,emqueumououtromomentoeracolocadonavanguardadamudançaeencaradorealmente
comotal.Ofracassoerainevitável.
À primeira vista, a terceira fase da nota de rodapé parece contradizerminha interpretação da
segunda:
Mesmotodahistóriadareligiãoqueabstraidessabasematerialéacrítica.Defato,émuitomaisfácilencontrar,pormeiodaanálise,o
núcleoterrenodasnebulosasrepresentaçõesreligiosasdoque,inversamente,desenvolver,apartirdascondiçõesreaisdevidadecada
momento,suascorrespondentesformascelestializadas.Esteéoúnicométodomaterialistae,portanto,científico.(446,nota89)
Marxseconsideravaumcientista,eaquieledizqueissosignificaumcomprometimentocomo
materialismo.Masessematerialismoédiferentedaqueledoscientistasnaturais.Eleéhistórico.“O
defeito do materialismo abstrato da ciência natural, que exclui o processo histórico, pode ser
percebido já pelas concepções abstratas e ideológicas de seus porta-vozes, onde quer que eles se
aventuremalémdos limitesdesuaespecialidade”(446,nota89).AsdescobertasdeDarwinsobrea
evoluçãoeramfalhas,porqueeleignoravaoimpactodocontextohistóricoemsuateorização(opoder
dasmetáforasqueeleextraiudocapitalismobritânico)enãoestendeunemintegrouseusargumentos
àevoluçãohumana.Marx,éclaro,escreveuOcapitalantesdeodarwinismosocialsetornarpopular,
mas eleprefigurauma resposta crítica aosdarwinistas sociais, que legitimaramo capitalismocomo
“natural” apelando para a teoria da evolução de Darwin. Como a teoria de Darwin extraía suas
principaismetáforasdocapitalismoeerainspiradapelateoriasocialdeMalthus,nãosurpreendiaque
visseocapitalismocomoplenamentecoerentecomprocessosdecompetiçãosupostamentenaturais,a
luta pela sobrevivência e, é claro, a sobrevivência do mais adaptado (sem levar em conta a ajuda
mútuadeKropotkin).
OargumentogeraldeMarxéqueoscientistas,pornãoterementendidoomomentohistóricoe
estarem impedidos por seus compromissos metodológicos de integrar a história humana a seus
modelosdemundo,chegarammuitasvezesainterpretaçõesdessemundoqueserevelaramfalsasou,
namelhordashipóteses,parciais.Napiordashipóteses,ocultarampressupostoshistóricosepolíticos
sobumaciênciasupostamenteneutraeobjetiva.Essaperspectivacrítica,inauguradaporMarx,éhoje
prática-padrão no campo dos estudos científicos e mostra que introduzir metáforas sobre gênero,
sexualidadeehierarquiassociaisnaciênciaconduzatodotipodeequívocosobreomundonatural,
aindaqueadmitaque,semmetáforas,apesquisacientíficanãochegaalugarnenhum.
Masdevemosexaminarumaquestãomuitomaisprofunda.Faleinocapítulo1doprocedimento
descendentedeMarx:elepartedaaparênciasuperficialedesceatéosfetichismosparadescobrirum
aparato teórico conceitual capazde capturar omovimento subjacente dos processos sociais.Então,
passoapasso,esseaparatoteóricoétrazidodevoltaàsuperfícieparainterpretaradinâmicadavida
cotidiana sob uma nova luz. Esse é, segundoMarx confirma na nota de rodapé, “o únicométodo
materialistae,portanto,científico”.Nocapítulosobreajornadadetrabalho,vimosumexemplotípico
desse método. O valor, como tempo de trabalho socialmente necessário, interioriza uma
temporalidadeespecificamentecapitalista,edissoresultaumvastocampodelutassociaisemtorno
daapropriaçãodotempoalheio.Ofatodeque“ospequenosmomentossãooselementosqueformam
olucro”geranoscapitalistasumaobsessãopeladisciplinatemporalepelocontroledotempo(e,em
breve,explicaráporqueelessãoobcecadospelarapidez).
Mascomopodemospensar a relaçãoentre,digamos, a teoriado“valorprofundo”eo fermento
imprevisíveldaslutasemtornodaduraçãodajornadadetrabalho?Devoltaàpágina157,Marxcita
(emoutra nota de rodapé!) umapassagem famosa de umaobra anterior, aContribuição à crítica da
economiapolítica:
Osmodosdeterminadosdeproduçãoeasrelaçõesdeproduçãoquelhescorrespondem,emsuma,deque“aestruturaeconômicada
sociedadeéabaserealsobreaqualseergueumasuperestruturajurídicaepolíticaeàqualcorrespondemdeterminadasformassociais
deconsciência” [concepçõesmentais, sevocêpreferir],deque“omododeproduçãodavidamaterialcondicionaoprocessodavida
social,políticaeespiritualemgeral”.
Eledeixadeforaafraseseguinte,queafirmaqueénasuperestruturaquetomamosconsciência
dasquestõespolíticaseasenfrentamos.
Éissoqueécitadocomfrequênciacomoomodelobase-superestrutura.Marxsupõequeháuma
baseeconômicasobreaqualseerguemosarcabouçosdopensamento,assimcomoumasuperestrutura
políticaelegalquedefinecoletivamentecomotomamosconsciênciadosproblemaseosenfrentamos.
Essa formulaçãoé lidaàsvezesdemododeterminista:abaseeconômicadetermina a superestrutura
política e legal, determina as formas de luta que são travadas nessa superestrutura e, conforme as
transformaçõesocorridasnabaseeconômica,determinaosresultadosdaslutaspolíticas.Masnãovejo
comooargumentopodeserconsideradodeterminista,oumesmocausal.Nãoéassimqueocapítulo
sobre a jornada de trabalho é desenvolvido. Há alianças de classe, possibilidades conjunturais,
mudanças discursivas nos sentimentos, e o resultado jamais é seguro. Contudo, há sempre uma
preocupaçãotãoprofundacomaapropriaçãodotempoalheioqueaquestãonuncaseesgota.Trata-se
deumeternopontodecontestação“entredireitosiguais”nointeriordocapitalismoquenãochega
jamais a uma solução definitiva. A luta pelo tempo é fundamental para o modo de produção
capitalista. É o que a teoria profunda nos diz, e, independentemente do que aconteça na
superestrutura,esseimperativonãopodesersuperadosemaderrubadadocapitalismo.
Em todo caso, as forças produtivas e as relações sociais não podem existir sem expressão e
representaçãocorrespondentesnasuperestruturapolíticaelegal.Vimosissocomrelaçãoaodinheiro,
queéumarepresentaçãodovalorcercadaportodosostiposdearranjosinstitucionaiselegaiseum
objetode lutaemanipulaçãopolítica(comotambémocorrecomosarcabouços legaisdodireitode
propriedadeprivada).Contudo,Marxmostroutambémque,semodinheiro(ouumarcabouçolegal
dodireitodepropriedadeprivada),ovalornãopoderiaexistircomoumarelaçãoeconômicabásica.
Naesferamonetária,ascoisastranscorremdemaneirasmuitodistintas,conformeadinâmicadaluta
declasses,eissotemimplicaçõesnofuncionamentodateoriadovalor.Afinal,odinheiropertenceà
superestruturapolíticaouàbaseeconômica?Nãohádúvidadequearespostadeveser:aambas.
De modo semelhante, o capítulo sobre a jornada de trabalho não nos permitiria dizer que o
resultado da luta pela jornada de trabalho foi determinado pelos movimentos ocorridos na base
econômica.Alémdisso,arestriçãopolíticaàduraçãodajornadadetrabalholevouoscapitalistas,em
parte, a procurar outro modo de ganhar mais-valor, isto é, mais-valor relativo. Claramente não é
intençãodeMarxqueessemodelobase-superestruturaoperedemodomecânicooucausal,massim
dialético.
Noentanto,éverdadetambémquea“resolução”quesedánoreinodalutaemtornodaduração
da jornada de trabalho diz respeito ao fato fundamental de que os “pequenos momentos são os
elementos que formam o lucro”, o que deriva da definição do valor como tempo de trabalho
socialmentenecessário.Nas sociedadespré-capitalistas,oumesmonaRomaAntiga,nãohaviauma
luta concertada em torno da duração da jornada de trabalho. Esse tipo de luta só faz sentido no
interior das regras de um modo de produção capitalista. Questões formais, como a duração da
jornada de trabalho (semanal, anual, vitalícia), vêm à tona precisamente por causa da estrutura
profundadocapitalismo.Comoessas lutassãoresolvidaséalgoquedependedevocê,demimede
todososoutros.E,defato,alutapoderiaserresolvidademaneiraqueacarretasseofimdomodode
produçãocapitalista.Poderíamosconstruirumasociedadeemqueospequenosmomentosnãofossem
os elementos que formam o lucro. Você consegue imaginar como seria essa sociedade? Parece
interessante,não?
Oquequerodizeréqueomodocomoessascoisassãoresolvidas–pormeiospolíticosejurídicos,
peloequilíbriodas forçasdeclasse,dasconcepçõesmentaisetc.–nãoé irrelevanteparaoconceito
profundodacirculaçãodovalorcomocapital.Ométodorealmentecientíficoconsisteemidentificar
tais elementos profundos que explicampor que certas coisas acontecemdedeterminada forma em
nossa sociedade.Vimos issona luta em tornodaduraçãoda jornadade trabalho, e podemos vê-lo
tambémna luta em tornodomais-valor relativo, que explica por queo capitalismo temde ser tão
dinâmico tecnologicamente. Parece que não temos escolha entre crescer ou não, inventar ou não,
porqueéissoquemandaaestruturaprofundadocapitalismo.Aúnicaquestãoqueimporta,portanto,
écomosedaráessecrescimento,ecomquetipodemudançatecnológica.Issonosobrigaaconsiderar
asimplicaçõesnoquedizrespeitoàsconcepçõesmentais,àrelaçãocomanaturezaeatodososoutros
momentos.E,senãogostamosdessas implicações,nãotemosoutrasaídasenãonosengajarnaluta,
nãoapenasemtornodeumououtrodessesmomentos,masdetodosaomesmotempo,atéque,por
fim,tenhamosdeenfrentaratarefadetransformaraprópriaregradovalor.
A circulação do capital, no entanto, é o móvel da dinâmica sob o capitalismo. Mas o que é
socialmente necessário para que esse processo se sustente? Considere, por exemplo, as concepções
mentaisnecessárias.SevocêfosseaWallStreetcomumcartazdizendo“Ocrescimentoéruim,abaixo
ocrescimento!”, isso seria consideradoumsentimentoanticapitalista?Pode ter certezadeque sim.
Mas você seria condenado não necessariamente por ser anticapitalista, e sim por ser contra o
crescimento,porqueocrescimentoéconsideradoinevitávelebom.Crescimentozeroésinaldesérios
problemas.OJapãonãocresceumuitonosúltimostempos,pobredopovo!JáocrescimentonaChina
tem sido espetacular, e os chineses são uma grande história de sucesso.Como podemos imitá-los?
Cruzamosalegrementeosbraçosedizemosqueocrescimentoébom,amudançatecnológicaéboa,
portantoocapitalismo,querequeressasduascoisas,énecessariamentebom.Esseéumtipodecrença
comum ao qual Gramsci se refere frequentemente como “hegemonia”. Omesmo tipo de questão
emergedosarranjosinstitucionais.Parafuncionardemaneiraeficiente,ocapitalismorequerarranjos
legaisadequados.Quantomaisoschinesessedirigiamparaocapitalismo,menosplausívelsetornava
amanutenção de um sistema legal que não reconhecesse alguns tipos de direitos de propriedade
privada.Masháumaboadosede liberdadede açãoe contingêncianos arranjos institucionaisque
podemsercriados.
Itens1a3:Odesenvolvimentodamaquinaria,atransferênciadevaloreosefeitossobreo
trabalhador
Examinaremos agora o material reunido nesse longo capítulo. Sugiro que você preste muita
atençãoàsequênciadostítulosdositens.Elesdefinemalinhalógicadeargumentaçãoqueestrutura
ainvestigaçãodeMarxsobreosurgimentodosistemafabriledousodamaquinaria.Elecomeça,no
entanto, com a surpresa de John Stuart Mill diante do fato de que as invenções mecânicas,
supostamenteconcebidasparaaliviarofardodotrabalho,nãoserviramparanadadisso.Naverdade,
emgeral,tornaramascoisasaindapiores.Marxnãosesurpreendecomisso,porqueasmáquinassão
usadasparaproduzirmais-valor,enãoparadiminuiracargadetrabalho.Issosignifica,notebem,que
amáquina “é ummeio para a produção demais-valor” (445). Isso soa estranho, dada a afirmação
anteriordeMarxdequeasmáquinas sãotrabalhomorto(capitalconstante)enãopodemproduzir
valor.Noentanto,elaspodemserumafontedemais-valor.Areduçãonovalordaforçadetrabalho
pormeio da produtividade aumentada geramais-valor para a classe capitalista, e o capitalista que
possuiramelhormaquinariaadquiriráaformatemporáriademais-valorrelativoquetrazganhospara
oprodutorcommaiorprodutividade.Nãoadmiraqueoscapitalistasseapeguemàcrençafetichista
dequeasmáquinasproduzemvalor!
Marx examina então adiferença entre ferramentas emáquinas.Definir “ferramenta comouma
máquina simples, e máquina como uma ferramenta composta”, e não ver aí “nenhuma diferença
essencial”, significa perder algo fundamental,mais especificamente “o elemento histórico” (aquele
elementoquemereceutantaatençãonanotaderodapé)(446).Marxfoiumdosprimeirosausaro
termo “revolução industrial” e a torná-lo essencial para sua reconstrução histórica. Mas o que
constituiocernedessarevoluçãoindustrial?Foielaumasimplesmudançatecnológica,ofatodeas
ferramentasteremsetornadomáquinas?Consisteadiferençaentremáquinaseferramentasnofato
deasmáquinasteremumafonteexternadeforça?Ouarevoluçãoindustrialprovocoutambémuma
mudança radical nas relações sociais, paralelamente às transformações nas forças produtivas? A
respostaaessasperguntaséigualmenteafirmativa.
Amáquina da qual parte aRevolução Industrial substitui o trabalhador quemaneja uma única ferramenta por ummecanismo que
operacomumamassadeferramentasiguaisousemelhantesdeumasóvezeémovidoporumaúnicaforçamotriz,qualquerqueseja
suaforma.Temos,aqui,amáquina,masapenascomoelementosimplesdaproduçãomecanizada.(449)
Isso se refere, no entanto, à transformação operada na posicionalidade (relação social) do
trabalhador, que é tão importante quanto a própriamáquina.Mesmo que os trabalhadores possam
continuaraproporcionara forçamotriz,emalgummomentosurgeanecessidadede suplementá-la
com uma fonte externa. A força hidráulica foi utilizada desdemuito cedo, mas sua aplicação era
limitadapelalocalização.
SomentecomasegundamáquinaavapordeWatt,aassimchamadamáquinaavapordeaçãodupla,encontrou-seumprimeiromotor
capazdeproduzirsuaprópriaforçamotrizpormeiodoconsumodecarvãoeágua,ummotorcujapotênciaencontra-seplenamente
sobcontrolehumano,queémóveleummeiodelocomoçãoeque,aocontráriodarodad’água,éurbanoenãorural,permitindoa
concentraçãodaproduçãonascidades,aoinvésdedispersá-lapelointerior.Alémdisso,éuniversalemsuaaplicaçãotecnológica,esua
instalaçãodependerelativamentepoucodecircunstânciaslocais.(451)
Amáquina a vapor liberou o capital da dependência de fontes localizadas de poder, porque o
carvão era uma mercadoria que, em princípio, podia ser transportada para qualquer lugar. Mas
cuidadoparanão superestimaressa invenção,porque“aprópriamáquinaavapor [...]nãoprovocou
nenhuma revolução industrial.Oque sedeu foi o contrário: a criaçãodasmáquinas-ferramentas é
quetornounecessáriaamáquinaavaporrevolucionada”(449).
E,emboraMarxnãomencioneo fato,ocarvãotambémeliminouaagudarivalidade,quehavia
limitadoatéentãoodesenvolvimentoindustrial,entreousodaterraparaaproduçãodealimentose
ousodesuabiomassacomofontedeenergia.Enquantoamadeiraeocarvãovegetalforamasfontes
primárias de combustível, a disputa pela terra aumentou o custo tanto dos alimentos quanto dos
combustíveis.Comocarvão,foipossívelextrairaenergiaarmazenadanoperíodocarboníferoe,como
petróleo,aquelaarmazenadanoperíodocretáceo.Issoliberouaterraparaaproduçãodealimentose
outrasformasdematéria-primaepermitiuqueaindústriaseexpandisseusandocombustíveisbaratos,
com todo o tipo de consequência tanto para a urbanização quanto, é claro, para o modo como
vivemos nossa vida neste exatomomento. É interessante notar que, em tempos recentes, uma das
respostas para a escassez de combustíveis tem sido recorrer à terra para produzi-los (etanol, em
particular),e issotevecomoconsequênciaprevisívelorápidoaumentodopreçodosalimentosede
outras matérias-primas (com todo os tipos de consequências sociais, como rebeliões e fome; até
mesmoopreçodomeubagelsubiutrintacentavos).Estamosrecriandoasbarreirasàacumulaçãodo
capital que amudançaparaos combustíveis fósseis contornou com tanto sucessono fimdo século
XVIIIaorevolucionarnossarelaçãocomanatureza.
Mas a marca da revolução industrial foi mais do que uma simples mudança na produção de
energia.“Pormeiodadivisãodotrabalho,reapareceacooperaçãopeculiaràmanufatura,masagora
como combinação de máquinas de trabalho parciais”. Há uma evolução significativa nas relações
sociais.
Namanufatura,ostrabalhadores,individualmenteouemgrupos,têmdeexecutarcadaprocessoparcialespecíficocomsuaferramenta
manual. Se o trabalhador é adaptado ao processo, este último também foi previamente adaptado ao trabalhador. Esse princípio
subjetivo da divisão deixa de existir na produção mecanizada. O processo total é aqui considerado objetivamente, em si mesmo,
analisadoemsuas fasesconstitutivas,eoproblemadeexecutarcadaprocessoparcialedecombinarosdiversosprocessosparciaisé
solucionadomedianteaaplicaçãotécnicadamecânica,daquímicaetc.
O resultado é a evolução de “um sistema articulado que reúne tanto máquinas de trabalho
individuais de vários tipos quanto diversos grupos dessas máquinas”, sistema que é tanto mais
perfeito“quantomaiscontínuoforseuprocessototal”(454).
Devemos ressaltar alguns pontos nessa afirmação. Em primeiro lugar, a importância da
continuidade no processo de produção, que é crucial por ser requerida pela continuidade da
circulaçãodo capital, e amaquinaria ajuda a realizar isso.Em segundo lugar,noteque as relações
sociais são transformadas juntamente com as relações técnicas. Em terceiro lugar, a análise do
processo de produção em suas fases constitutivas acarreta uma transformaçãomental que faz uma
ciência (a química, por exemplo) gerar tecnologia. Em outras palavras, há uma evolução nas
concepçõesmentais.Aomenos três dos elementos examinados na nota de rodapé entram em ação
aqui,aomesmotempoquearelaçãocomanaturezaeasexigênciaslocaissealteramàmedidaqueo
carvãosubstituiasquedasd’águaeabiomassacomofonteprimáriadeenergia.Éemparágrafosdesse
tipo que vemos como funciona o raciocínio de Marx na nota de rodapé. Diferentes elementos
confluem perfeitamente para formar uma narrativa convincente de coevolução, mais do que de
causação.Oresultadoéum“sistemaarticuladodemáquinasdetrabalhomovidasporumautômato
central”. Nesse sistema, diz ele, “a produçãomecanizada atinge sua formamais desenvolvida. No
lugardamáquinaisoladasurge,aqui,ummonstromecânico”–comovimos,Marxadoraessetipode
imagem–,“cujocorpoocupafábricasinteirasecujaforçademoníaca,inicialmenteescondidasobo
movimentoquasesolenementecomedidodeseusmembrosgigantescos,irrompenoturbilhãofurioso
e febril de seus incontáveis órgãos de trabalho”. No entanto, Marx lembra que “as invenções de
Vaucanson,Arkwright,Wattetc.sópuderamserrealizadasporqueessesinventoresencontraramàsua
disposição, previamente fornecida pelo período manufatureiro, uma quantidade considerável de
hábeistrabalhadoresmecânicos”.Ouseja,nãohaverianovastecnologiassemaexistênciapréviadas
necessárias relações sociais e habilidades laborais.Uma parte desses trabalhadores “era formada de
artesãos autônomosdediversasprofissões”, enquanto “outraparte estava reunida emmanufaturas”
(455).
Mas o processo evolucionário teve um impulso próprio. “Com o aumento das invenções e a
demanda cada vezmaiorpormáquinas recém-inventadas,desenvolveram-se cada vezmais,porum
lado,acompartimentaçãodafabricaçãodemáquinasemdiversosramosautônomose,poroutrolado,
a divisão do trabalho no interior dasmanufaturas de construção demáquinas.”As relações sociais
estavam em pleno processo de transformação. “Na manufatura, portanto, vemos a base técnica
imediatadagrandeindústria.Aquelaproduziuamaquinaria,comaqualestasuprassumiu[aufhob]os
sistemas artesanal e manufatureiro nas esferas de produção de que primeiro se apoderou.” Após
“revolucionar essa base – encontrada já pronta e, depois, aperfeiçoada de acordo com sua antiga
forma”–,osistemafinalmentecriou“parasiumanova,apropriadaaseuprópriomododeprodução”
(456). Em suma, o capitalismo descobriu uma base tecnológica mais adequada a suas regras de
circulação.
Esseé,ameuver,umargumentoevolucionário,nãodeterminista.Ascontradiçõesdocapitalismo,
naformaemquesurgemnoperíodomanufatureiroeartesanal,nãopodiamserresolvidascombase
nastecnologiasexistentes.Houve,portanto,umapressãoconsiderávelparaquesecriasseumanova
combinação de tecnologias. Marx conta como o capitalismo criou “para si uma nova [base],
apropriadaa seuprópriomododeprodução”.Mas todoesseprocessopermaneceucondicionadoao
“crescimentodeumacategoriadetrabalhadoresque,dadaanaturezasemiartísticadeseunegócio,só
podiaseraumentadademodogradual,enãoaossaltos.Emcertograudedesenvolvimento,porém,a
grandeindústriaentroutambémtecnicamenteemconflitocomsuabaseartesanalemanufatureira”
(456).Aforçaexpansionistadocapitalencontrouumlimite.Osistemacapitalistachegouaoponto
em que necessitava de trabalhadores qualificados para construir as máquinas que facilitariam seu
desenvolvimento, ao mesmo tempo que sua própria base tecnológica servia como impulso para a
capacidadedeconstruirmáquinas.
Maseradifícildeteroprocessoevolucionário.“Orevolucionamentodomododeproduçãonuma
esferada indústria condiciona seu revolucionamento emoutra.”Note aqui ousoqueMarx fazdo
termo“mododeprodução”.Emcertaspassagens,comonoparágrafoiniciald’Ocapital, eleusaesse
termoparacontrapor,digamos,osmodosdeproduçãocapitalistaefeudal.Mas,aqui,otermoganha
um significado muito mais específico: o modo de produção numa indústria particular. Esses dois
significadosestãorelacionados:omododeproduçãonumaindústriaparticularcrianovasformasde
máquinasquesãoadequadasaomododeproduçãocapitalistaentendidoemseusentidomaisamplo.
Aqui,noentanto,estamosfalandodetransformaçõesespecíficasnosmodosdeproduçãoemesferas
particularesdaindústriaedasinteraçõesdinâmicasentreelas.
Issovale,antesdemaisnada,paraosramosdaindústriaisoladospeladivisãosocialdotrabalho–cadaumdelesproduzindo,porisso,
umamercadoria autônoma–,porémentrelaçados como fasesdeumprocessoglobal.Assim, a fiaçãomecanizada tornounecessário
mecanizar a tecelagem, e ambas tornaram necessária a revolução mecânico-química no branqueamento, na estampagem e no
tingimento.
Oalastramento entre diferentes segmentos de umprocesso de produção criamudanças que se
reforçammutuamente.Alémdisso,“arevoluçãonomododeproduçãodaindústriaedaagricultura
provocou também uma revolução nas condições gerais do processo de produção social, isto é, nos
meios de comunicação e transporte” (457). Isso introduz um tema que acho extremamente
interessante emMarx: a importânciadaquiloqueele chamanosGrundrisse de “anulaçãodo espaço
pelo tempo”
[d]
. A dinâmica evolucionária do capitalismo não é neutra em relação a sua forma
geográfica. Já vimos pistas disso na discussão sobre a urbanização, a concentração provocada pela
introduçãodamáquinaavaporealiberdadedemovimentopropiciadapelovaporcomoforçamotriz.
Aconectividadenomercadomundialtambémfoialterada.
Assim, abstraindo da construção de veleiros, que foi inteiramente revolucionada, o sistema de comunicação e transporte foi
gradualmenteajustadoaomododeproduçãodagrandeindústriapormeiodeumsistemadenaviosfluviaisetransatlânticosavapor,
ferroviasetelégrafos.Masasterríveisquantidadesdeferroquetinhamdeserforjadas,soldadas,cortadas,furadasemoldadasexigiam,
porsuavez,máquinasciclópicas,cujacriaçãoestavaalémdaspossibilidadesdaconstruçãomanufatureirademáquinas.
Eaquisurgeoúltimoelodaargumentação:“Agrandeindústriateve,pois,deseapoderardeseu
meio característico de produção, a própria máquina, e produzir máquinas por meio de máquinas.
Somente assim ela criou sua base técnica adequada e se firmou sobre seus próprios pés” (457-8).A
capacidadedeproduzirmáquinascomaajudademáquinasé,emsuma,abasetécnicadeummodo
de produção capitalista absolutamente maduro e dinâmico. Em outras palavras, o crescimento da
engenhariaedaindústriademáquinas-ferramentaséafasefinaldeumarevoluçãoquecrioua“base
técnica adequada” para o modo de produção capitalista em geral. “Comomaquinaria, o meio de
trabalhoadquireummododeexistênciamaterialquecondicionaasubstituiçãodaforçahumanapor
forçasnaturaisedarotinabaseadanaexperiênciapelaaplicaçãoconscientedaciêncianatural.”Isso
acarretaumarevoluçãonãoapenasdasconcepçõesmentais,mastambémdesuaaplicação.
Namanufatura,aarticulaçãodoprocessosocialdetrabalhoépuramentesubjetiva,combinaçãodetrabalhadoresparciais;nosistema
damaquinaria,agrande indústriaédotadadeumorganismodeprodução inteiramenteobjetivo,queotrabalhadorencontra jádado
comocondiçãomaterialdaprodução.(459)
Anaturezadacooperaçãoéfundamentalmentealterada,porexemplo.
Detive-me nesse item para mostrar que a propagação sinérgica das revoluções na tecnologia
baseia-se,eaomesmotempoprovocatransformações,nasrelaçõessociais,nasconcepçõesmentaise
nos modos de produção (em sentido concreto e particular), assim como nas relações espaciais e
naturais.O surgimentodessenovo sistema tecnológico adequado aomododeprodução capitalista
(em sentido amplo) é umahistória evolucionária emque todos os elementos presentes na nota de
rodapédeMarxsedesenvolvememconjunto.
No segundo item do capítulo,Marx levanta a seguinte questão: como o valor é transferido da
máquinaparaoproduto?Osoutrosdoismodosdeaquisiçãodemais-valorrelativo–pelacooperação
e pela divisão do trabalho – não custam nada ao capital, exceto algum gasto fortuito. Mas uma
máquina é uma mercadoria que tem de ser comprada no mercado. Isso é muito diferente, por
exemplo,deumasimplesreconfiguraçãodadivisãodotrabalhonafábrica.Asmáquinastêmumvalor,
eessevalortemdeserpago.Ovalorincorporadonamáquinatemdesertransferidodealgummodo
“aoprodutopara cujaprodução ela serve”,mesmoquenãoocorranenhuma transferência físicade
matéria (460). Inicialmente,Marx apelapara a ideiadadepreciação linear. Se amáquinaduradez
anos,umdécimodeseuvaloréincorporadoaoprodutoacadaanodesseperíodo.Maseleestabelece
umlimiteimportanteparaodesenvolvimentodamaquinaria:
Consideradoexclusivamentecomomeiodebarateamentodoproduto,olimiteparaousodamaquinariaestádadonacondiçãodeque
suaprópriaproduçãocustemenostrabalhodoqueotrabalhoquesuaaplicaçãosubstitui.Paraocapital,noentanto,esse limitese
expressadeformamaisestreita.Comoelenãopagaotrabalhoaplicado,masovalordaforçadetrabalhoaplicada,ousodamáquina
lheérestringidopeladiferençaentreovalordamáquinaeovalordaforçadetrabalhoporelasubstituída.(466)
Isso supõe (como amaioria dos economistas tende a fazer) que os capitalistas tomamdecisões
racionais. Se umamáquina é cara e você economizamuito pouco trabalho com ela, então por que
comprá-la?Quantomaisbarataamáquinaemaiscarootrabalho,maioréoincentivoparaempregar
maquinaria.Ocálculoqueocapitalistatemdefazer,portanto,éentreovalorgastoparacomprara
máquina e o valor economizado no trabalho empregado (capital variável). Esse limite para o
desenvolvimento da maquinaria é tipicamente imposto pelas leis coercitivas da concorrência. Os
capitalistasquecomprammáquinascaras,maseconomizampoucotrabalhocomelas,serãoexcluídos
domercado.
Quantocapitalvariáveléeconomizadodepende,noentanto,dovalordaforçadetrabalho.“Isso
explicaporquehoje,naInglaterra,sãoinventadasmáquinasquesóencontramaplicaçãonaAmérica
doNorte”(466).NaAméricadoNorte,arelativaescassezdetrabalhoencareciaocustocomamão
deobraeestimulavaoempregodemáquinas,aopassoquenaGrã-Bretanhaoexcedentedemãode
obrasignificavatrabalhomaisbaratoe,portanto,menosincentivoaousodemáquinas.Essecálculo
dascondiçõeslimitantesdoempregodamaquinariaéimportantetantonateoriaquantonaprática.
HáexemplosnaChina,onde,porabundânciademãodeobra,umartigoqueéfeitonumamáquina
caraesofisticadanosEstadosUnidosfoifragmentadoemprocessosdetrabalhomenores,quepodem
ser feitos à mão. Em vez de empregar uma máquina muito cara e 20 trabalhadores nos Estados
Unidos, você emprega 2mil trabalhadores naChina e ferramentasmanuais. Esse exemplo refuta a
ideia de que o capitalismo marcha inevitavelmente em direção a uma mecanização e a uma
sofisticaçãotecnológicacadavezmaiores.Dadaaimportânciadascondiçõeslimitanteseasrelações
devalor,todosostiposdeoscilaçãopodemocorrernodesenvolvimentodastecnologiasmecânicas.
Noterceiroitem,Marxconsideratrêsconsequênciasdoempregodamáquinaparaotrabalhador.
A maquinaria facilitou a “apropriação de forças de trabalho subsidiárias pelo capital”, o “trabalho
feminino e infantil”. De fato, as tecnologias mecânicas destruíram a base técnica que existia no
períodoartesanal.Tornou-semuitomaisfácilempregarmulheresecriançassemqualificaçãotécnica.
Isso trouxe uma série de consequências. Foi possível substituir o salário familiar pelo salário
individual. Este pôde ser reduzidoenquanto salário familiar, com a entrada das mulheres e das
crianças no mercado de trabalho, pôde permanecer constante. Esse foi um tema interessante e
persistente na história do capitalismo. Nos Estados Unidos, desde os anos 1970, os salários
individuais caíram ou permaneceram praticamente constantes em termos reais, mas os salários
familiares tenderam a crescer àmedida quemaismulheres começavam a trabalhar.Oque a classe
capitalistaganhacomissosãodoistrabalhadorespelopreçodeum.Omilagreeconômicobrasileiro
nosanos1960foiigualmentedominadoporumadiminuiçãocatastróficadossaláriosindividuaissob
a ditadura militar, mas os salários familiares conseguiram se estabilizar por causa não apenas do
trabalho das mulheres, mas também das crianças (nessa época, o trabalho infantil começou a ser
empregado nasminas de ferro). Isso levou ao famoso comentário do presidente EmílioGarrastazu
Médicideque“aeconomia”(eledeveriaterditoaclassecapitalista)“vaibem,masopovovaimal”.
Hámuitas circunstâncias históricas emque os capitalistas apelarampara essa solução para ganhar
mais-valor.
Issotrazàtonatambémaquestãodarelaçãoentreossaláriosindividualefamiliar.Esteúltimoé
necessáriopara a reproduçãoda classe trabalhadora.Masquemassumeo custode sua reprodução?
Marx, comomuitos apontaram, não émuito sensível a questões desse gênero,mas numa nota de
rodapéelereconheceaimportânciadarelaçãoentretrabalhodomésticoeacompraevendadeforça
detrabalhonomercado.Seamulherparticipadaforçadetrabalho,
énecessáriosubstituirpormercadoriasprontasostrabalhosdomésticosqueoconsumodafamíliaexige,comocosturar,remendaretc.
Aumdispêndiomenorde trabalhodomésticocorresponde,portanto,umdispêndiomaiordedinheiro,demodoqueos custosde
produçãodafamíliaoperáriacrescemecontrabalançamareceitaaumentada.Aissoseacrescentaqueaeconomiaeaeficiêncianousoe
napreparaçãodosmeiosdesubsistênciasetornamimpossíveis.(469,nota121)
A análise do salário familiar traz outras questões.Na época deMarx, eramuito comumque o
homem,emespecialnospaísescomqueMarxtinhafamiliaridade,distribuísseotrabalhoparatodaa
família. Daí resultou o “gang system” [sistema de turmas] para a provisão de trabalho. Um homem
adultopodiaserresponsávelpelofornecimentodaforçadetrabalhodeváriascrianças,talvezdeuma
mulhereumairmã,assimcomodesobrinhoseoutrosparentes.NaFrança,omercadodetrabalhoera
formadocomfrequênciaporumgangsystememqueafigurapatriarcalcomandavaotrabalhodetodos
ao seu redor e entregava esse trabalho a seus empregadores, que, por sua vez, deixavam a cargo
daquela figura patriarcal a remuneração do trabalho e a distribuição dos benefícios. Sistemas desse
tipo não são raros na Ásia e podem ser encontrados na organização de grupos de imigrantes na
Europa e na América do Norte. Como aponta Marx na nota de rodapé, os piores aspectos desse
sistema se evidenciaram (e continuam a se evidenciar) no tráfico de crianças e no trabalho em
condições análogas à escravidão. Baseando-se em grande medida nos relatórios dos inspetores de
fábrica (imbuídos de umamoralidade vitoriana queMarx não critica) e no relato de Engels emA
situaçãodaclassetrabalhadoranaInglaterra
[e]
,Marxfocaa“corrupçãomoraldecorrentedaexploração
capitalista do trabalho demulheres e crianças” e as débeis tentativas da burguesia de conter essa
degradação moral por meio da educação (473). Assim como no caso das Leis Fabris, há uma
contradiçãoentreoqueasleiscoercitivasdaconcorrênciaobrigamoscapitalistasindividuaisafazer
eoqueoEstadotentarealizarpormeiodaeducaçãodascrianças.Marx,portanto,levantaquestões,
emborademodopoucoapropriado,sobreareproduçãodavida(outroelementoimportante,apesarde
negligenciado,danota89).
A segundaparte (b)desse itemtratado“prolongamentoda jornadade trabalho”.Amaquinaria
criadefatonovascondições,nãoapenaspermitindoaocapitalestendera jornadadetrabalho,mas
criando “novos incentivos” para isso. “Como capital, e como tal o autômato tem no capitalista
consciência e vontade, a maquinaria é movida pela tendência a reduzir ao mínimo as barreiras
naturais humanas, resistentes, porém elásticas.” A máquina é concebida, em parte, para vencer a
resistênciado trabalhador,que é, “de todomodo, reduzidapela aparente facilidadedo trabalhona
máquinaepelamaiorductibilidadeeflexibilidadedoelementofemininoeinfantil”(476).Éevidente
quetemosaquiumtípicopreconceitovitoriano.Naverdade,asmulheresnãoeramnadadóceis,nem
ascrianças.
Mas,aqui,ocernedoproblemaéatemporalidadeeacontinuidadedaprodução.Quantomaisa
máquina é usada,mais ela se desgasta; isso explica o forte incentivo para que asmáquinas fossem
empregadasomaisrápidopossível.Paracomeçar,“odesgastematerialdamáquinaéduplo.Umdeles
decorredeseuuso”eooutrodeseunãouso,istoé,quandoamáquinasimplesmenteenferruja.“Mas,
alémdodesgastematerial,amáquinasofre,porassimdizer,umdesgastemoral.”Essetermosempre
mepareceestranho.OqueMarxquerdizeré“obsolescênciaeconômica”.Secompreiumamáquina
por2milhõesdedólaresnoanopassadoe,nesteano,todososmeusconcorrentespodemcomprá-la
por1milhão(ou,oquedánomesmo,pagar2milhõesdedólaresporumamáquinaduasvezesmais
eficientedoqueaminha),entãoovalordasmercadoriasproduzidascairáeperdereimetadedovalor
daminhamáquina.“Emambososcasos,seuvalor,pormais jovemevigorosaqueamáquinaainda
possaser,jánãoédeterminadopelotempodetrabalhoefetivamenteobjetivadonelamesma,maspelo
tempodetrabalhonecessárioàsuaprópriareproduçãoouàreproduçãodamáquinaaperfeiçoada.”O
perigoéqueamáquinasedesvalorize“emmaioroumenormedida”(477).Para seprotegercontra
esse perigo, os capitalistas são levados a usar sua maquinaria o mais rápido possível (se possível,
mantendo-a em uso 24 horas por dia). Isso significa estender a jornada de trabalho (ou, como
veremos,introduzirotrabalhoporturnoseossistemasderevezamento).Máquinasempregadaspara
estenderajornadadetrabalhoestimulamanecessidadedeestendê-laaindamais.
Oscapitalistas sãoapaixonadospelasmáquinasporqueelas sãoumafontedeexcedenteemais-
valorrelativo.Ofetichedeum“ajustetecnológico”[technologicalfix] torna-sealgoarraigadoemseu
sistemadecrenças.Noentanto,asmáquinastambémsãofontedeuma“contradiçãoimanente,jáque
doisfatoresquecompõemomais-valorfornecidoporumcapitaldedadagrandeza,umdeles,ataxa
demais-valor,aumentasomentenamedidaemquereduzooutrofator,onúmerodetrabalhadores”
(480).E,comoamassademais-valor,tãocrucialparaocapitalista,dependedataxademais-valore
donúmerode trabalhadores, as inovaçõesquepoupamtrabalhopodemnãomelhorara situaçãodo
capitalista.Dessepontodevista,substituirtrabalhadoresporinovaçõestecnológicasnãopareceuma
boaideia,poissignificariaeliminardaproduçãoosverdadeirosprodutoresdevalor.Essacontradição
étratadaemdetalhesnoLivroIIId’Ocapital,emqueasdinâmicasdainovaçãotecnológicasãovistas
comodesestabilizadorasefontedesériastendênciasacrises.
Mas o incentivo para que os capitalistas continuem a inovar é todo-poderoso. Apesar das
contradições,abuscacompetitivapelaefêmeraformademais-valorrelativoéirresistível.Emresposta
às leis coercitivas da concorrência, os capitalistas individuais comportam-se de ummodo que não
coincidenecessariamentecomosinteressesdaclassecapitalista.Masasconsequênciassociaisparao
trabalhotambémpodemsercatastróficas.
Se,portanto,aaplicaçãocapitalistadamaquinariacria,porumlado,novosepoderososmotivosparaoprolongamentodesmedidoda
jornada de trabalho, revolucionando tanto omodo de trabalho como o caráter do corpo social de trabalho e, assim, quebrando a
resistência a essa tendência, ela produz, por outro lado, em parte mediante o recrutamento para o capital de camadas da classe
trabalhadoraqueanteslheeraminacessíveis,emparteliberandoostrabalhadoressubstituídospelamáquina,umapopulaçãooperária
redundante,obrigadaaaceitaraleiditadapelocapital.Daíestenotávelfenômenonahistóriadaindústriamoderna,asaber,dequea
máquina jogapor terra todas as barreirasmorais enaturais da jornadade trabalho.Daí oparadoxo econômicodequeomeiomais
poderosoparaencurtarajornadadetrabalhoseconvertenomeioinfalíveldetransformartodootempodevidadotrabalhadorede
suafamíliaemtempodetrabalhodisponívelparaavalorizaçãodocapital.(480)
PodemosentenderagoraporqueJohnStuartMillestavacerto.
A terceira parte (c) desse item trata explicitamente da intensificação. Antes mencionada de
passagem (por exemplo, na definição do tempo de trabalho socialmente necessário), a questão é
devidamentetratadaaqui.Oscapitalistaspodemusaratecnologiamecanizadaparaalterareregulara
intensidade e o ritmo do processo de trabalho. A redução da chamada porosidade da jornada de
trabalho (momentos em que o trabalho não é realizado) é o alvo principal. Quantos segundos o
trabalhador pode desperdiçar durante a jornada de trabalho? Se trabalham com ferramentas, os
trabalhadorespodem largá-las epegá-lasnovamente.Podemtrabalhar emseupróprio ritmo.Coma
tecnologiamecanizada,avelocidadeeacontinuidadesãodeterminadaspelosistemadamáquina,e
os trabalhadores têm de se adequar ao movimento da linha de produção, por exemplo (como em
Temposmodernos, de Charles Chaplin). Ocorre uma inversão nas relações sociais: os trabalhadores
tornam-seapêndicesdamáquina.Umdosgrandesavançosocorridosapós1850,quandoaburguesia
industrialaceitouqueteriadeconvivercomasLeisFabrisecomaregulaçãodaduraçãodajornada
de trabalho, foi os capitalistas terem descoberto que jornadas de trabalho mais curtas eram
compatíveiscomintensidadesaumentadas.Essereposicionamentodotrabalhadorcomoumapêndice
doprocessodetrabalhoéextremamenteimportanteparaoquevemaseguir.
[a]CartadeMarxaEngels,19dejunhode1862(MEW,cit.,v.30,p.249).Traduzidaaquidooriginalalemão.(N.T.)
[b]RiodeJaneiro,BertrandBrasil,1988.(N.T.)
[c]3.ed.,RiodeJaneiro,Objetiva,2009.(N.T.)
[1]JohnGray,“TheWorldisRound”,TheNewYorkReviewofBooks,v.52,n.13,11ago.2005.
[2]Ed.ampl.,Princeton,PrincetonUniversityPress,2000.
[3]NovaYork,Viking,2007.
[d]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.432.(N.E.)
[e]SãoPaulo,Boitempo,2008.(N.E.)
8.Maquinariaegrandeindústria
Nocapítuloanterior, sugeriqueolhássemoso longocapítulosobreamaquinariapela lentedanota
89,prestandoparticularatençãoaomodocomoa“tecnologiadesvelaaatitudeativadohomemem
relação à natureza, o processo imediato de produção de sua vida e, com isso, também de suas
condiçõessociaisdevidaedasconcepçõesespirituaisquedelasdecorrem”.Éinteressanteque,aoler
essecapítulo,vocêobservequeMarxestabeleceinter-relaçõesentreessesdiferentes“momentos”não
apenas para entender a evolução das tecnologias capitalistas, mas também para mostrar o que o
estudo desse processo evolutivo revela sobre o modo de produção capitalista visto como uma
totalidade(umconjuntooujunçãodeelementosinterativos).Sevocêlê-loassim,veráumconjunto
dedeterminaçõesmuitomaisricodoqueumasimpleshistóriadasmudançastecnológicas.
Paraaleituradessecapítulogigantesco(emqueémuitofácilseperder),tambémdissequeseria
útil prestar atenção aos títulos dos itens para ter uma ideia do dinamismo da argumentação.
Considere a história até aqui.Nosprimeiros itens,Marx explicou comoo capitalismodesenvolveu
uma base tecnológica ímpar, revolucionando as tecnologias associadas ao artesanato e à indústria
manufatureira. Essa base se formoupela produção demáquinas pormáquinas e pela associação de
muitasmáquinasnumsistemafabril.Masmáquinassãomercadoriasquetêmdeserpagas,portanto
seuvalortemdecircularcomocapitalconstanteduranteseutempodevida.Seessetempodevidaé
dedezanos,entãoumdécimodovalordamáquinaéincorporadonoprodutoacadaano.Masisso
impõe um limite – o valor depreciado damáquina tem de ser menor do que o valor do trabalho
substituídoporela.Issocriaapossibilidadedeumdesenvolvimentogeográficodesigual.Seocustodo
trabalho é maior nos Estados Unidos do que na Grã-Bretanha, então o incentivo para empregar
maquinarianosEstadosUnidosémaior.OpoderdossindicatosnaAlemanhaOcidentalapartirde
meadosdadécadade1970garantiualtossalários,oqueprovocouumforteincentivoparaainovação
tecnológica. Assim, a vantagem tecnológica permitiu à Alemanha Ocidental ganhar mais-valor
relativocomrelaçãoaorestodomundo,masaomesmotempoproduziuumdesempregoestrutural.
Noterceiroitem,Marxexaminouasimplicaçõesparaotrabalhador(arelaçãoentretecnologiase
relações sociais). A transformação de ofícios qualificados em supervisão de máquinas permitiu o
emprego de mulheres e crianças de um modo que antes não era possível. Isso possibilitou a
substituição do trabalho familiar (salário familiar) pelo trabalho individual (salário individual) e
economiaparaocapitalista,mastevegrandesconsequênciasparaasestruturasfamiliareseasrelações
de gênero e provocoumudanças no papel e na forma das economias domésticas. A introdução da
maquinaria, porém, também criou um incentivo para prolongar a jornada de trabalho e, com isso,
enfrentaroproblemada“depreciaçãomoral”(obsolescênciaeconômica)eoperigodadesvalorização
damaquinaria antiga emrazãoda introduçãodemaquinarianova emais eficiente.Oscapitalistas
esforçaram-se, portanto, para recuperar omais rápidopossível o valor incorporadonasmáquinas, o
que implicava usá-las 24 horas por dia, se possível. A maquinaria também pôde ser usada para
intensificaroprocessodetrabalho.Oscapitalistaspuderamassumirocontroletantodacontinuidade
quandodavelocidadedoprocessodetrabalhoe,assim,reduziraporosidadedajornadadetrabalho.A
intensificação surgiu como uma importante estratégia capitalista para tirar mais mais-valor do
trabalhador.Essaéahistóriaatéaqui.
Itens4a10:Trabalhadores,fábricas,indústria
Osúltimosseteitensdocapítulosobreamaquinariaaprofundameampliamnossaperspectivaa
respeitodoquepodeser“revelado”sobreocapitalismoapartirdoexamedaevoluçãotecnológica.No
item4,Marxexaminaafábricaperse.Estaéoobjetoprincipaldesuapreocupação,nãoapenascomo
uma coisa de caráter técnico, mas também como uma ordem social. Devo fazer aqui, contudo,
algumas advertências críticas. A experiência de Engels com o industrialismo de Manchester foi
crucialesuplementadacomosescritosdeBabbageeUre,osprincipaisideólogospró-capitalistasna
épocaepromotoresdosprincípiosdegerenciamentoindustrialeficiente.Marxtendeauniversalizaro
queaconteceuemManchestercomosefosseaformaacabadadoindustrialismocapitalistae,ameu
ver,aceitaumpoucodemaisas ideiasdeBabbageeUre.SeEngels tivesse idoparaBirmingham,o
argumento de Marx teria sido muito diferente. A estrutura industrial na cidade era de pequena
escala,masestavareunidadeformaapoupardeslocamentos.Eramaisorientadaparaosofícios,com
oficinas de armas, joias e produtos metalúrgicos, aparentemente dotada de grande eficiência e
caracterizada por relações de trabalho muito diferentes das encontradas nas imensas fábricas de
algodão de Manchester. Evidentemente, Marx conhecia muito pouco daquilo que poderíamos
chamardemodelobirminghamnianode industrialismo capitalista, por issonão foi capazde traçar
uma distinção importante na história do desenvolvimento capitalista. Desde a década de 1960, o
industrialismo sul-coreano é do tipo manchesteriano, mas o de Hong Kong é mais do tipo
birminghamniano.ABaviera,achamadaTerceiraItáliaeoutrosdistritosindustriaisorganizadosde
modosemelhante(oValedoSilícioéumcasoparticular)foramextremamenteimportantesnasfases
recentes do industrialismo, e são muito diferentes das formas industriais de tipo manchesteriano
instaladasnodeltadoRiodasPérolas,naChina.Aquestão,noentanto,équeomundoindustrialnão
podiaenãopodeserreduzidoàsfábricasdeManchester.AanálisedeMarxsobreasfábricas,ainda
quesejaconvincente,éunilateral.
Eleobserva:
coma ferramentade trabalho, tambéma virtuosidade em seumanejo é transferidado trabalhadorpara amáquina.A capacidadede
rendimentodaferramentaéemancipadadaslimitaçõespessoaisdaforçahumanadetrabalho.Comisso,supera-seabasetécnicasobre
aqualrepousaadivisãodotrabalhonamanufatura.Nolugardahierarquiadetrabalhadoresespecializadosquedistingueamanufatura,
surgenafábricaautomáticaatendênciaàequiparaçãoouaonivelamentodostrabalhosqueosauxiliaresdamaquinariadevemexecutar;
nolugardasdiferençasgeradasartificialmenteentreostrabalhadores,vemospredominarasdiferençasnaturaisdeidadeesexo.
Adivisãodotrabalhoquereaparecenafábricaautomáticaconsiste,antesdetudo,nadistribuiçãodostrabalhadoresentreasmáquinas
especializadas.(491-2)
Ostrabalhadorespodemirdeumamáquinaparaoutra.Elesse tornam,de fato, supervisoresde
máquinas.
Marxdescreveadesqualificaçãoqueacompanhaoadventodosistemafabril,demodoquepouco
apouco todo trabalho se tornahomogêneo.Sevocêpodevigiar estamáquina, tambémpodevigiar
aquela.Osignificadocontínuodadesqualificaçãoatravésdahistóriadocapitalismofoiobjetodeum
debate considerável em tempos mais recentes (a começar por Trabalho e capital monopolista: a
degradaçãodotrabalhonoséculoXX,deHarryBraverman
[a]
,queprovocouumasériedecomentáriose
estudos a partir dos anos 1970). Além disso, “como o movimento total da fábrica não parte do
trabalhador e sim da máquina, é possível que ocorra uma contínua mudança de pessoal sem a
interrupçãodoprocessodetrabalho”(493).Oresultadoéqueostrabalhadoressãoreduzidosàtarefa
vitalíciade servir amáquinasparticulares.Assim,o trabalhador e as relações sociaismudamcoma
atividadelaboral,detalmodoqueostrabalhadoressetornammerosapêndicesdasmáquinas.
Namanufatura eno artesanato, o trabalhador se serveda ferramenta;na fábrica, ele serve àmáquina.Lá, omovimentodomeiode
trabalhoparte dele; aqui, ao contrário, é ele quem temde acompanhar omovimento.Namanufatura, os trabalhadores constituem
membros de ummecanismo vivo.Na fábrica, tem-se ummecanismomorto, independente deles e ao qual são incorporados como
apêndicesvivos.[...]Mesmoafacilitaçãodotrabalhosetornaummeiodetortura,poisamáquinanãolivraotrabalhadordotrabalho,
masseutrabalhodeconteúdo.[...]nãoéotrabalhadorquemempregaacondiçãodetrabalho,mas,aocontrário,sãoestasúltimasque
empregamotrabalhador;porém,apenascomamaquinariaessainversãoadquireumarealidadetecnicamentetangível.Pormeiodesua
transformaçãonumautômato,oprópriomeiode trabalho se confronta,duranteoprocessode trabalho, como trabalhador como
capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de trabalho viva. A cisão entre as potências intelectuais do processo de
produçãoeotrabalhomanual,assimcomoatransformaçãodaquelasempotênciasdocapitalsobreotrabalho,consuma-se,comojá
indicadoanteriormente,nagrandeindústria,erguidasobreabasedamaquinaria.(494-5)
Em outras palavras, as concepçõesmentais são separadas do trabalho físico. Elas ficam com os
capitalistas – são eles que concebem as coisas. Os trabalhadores não precisam pensar, apenas dar
assistênciaàsmáquinas.Issopodenãoserverdadenaprática,éclaro,masoqueimportaéqueessaé
a estrutura pela qual a classe capitalista luta dia e noite e, por conseguinte, toda a estrutura das
concepçõesmentais, das relações sociais, da reprodução da vida, da relação com a natureza etc. é
transformadasegundoposiçõesdeclasse.
Ahabilidadedetalhistadooperadordemáquinas individual,esvaziado,desaparececomocoisadiminutaesecundáriaperanteaciência
[leia-seconcepçõesmentais],peranteasenormespotênciasdanatureza[leia-serelaçãocomanatureza]eotrabalhosocialmassivoque
estãocorporificadasnosistemadamaquinariaeconstituem,comesteúltimo,opoderdo“patrão”(master).(495)
Mas essa transformação se baseia na capacidade de degradar de tal maneira a situação dos
trabalhadoresqueelesacabamsetransformandoemmerosapêndicesdasmáquinas,incapazesdeusar
seu podermental e sujeitos ao “poder autocrático” (496) e às regras despóticas dos capitalistas. A
habilidaderesideagoranaquelesqueprojetamasmáquinas,nosengenheirosetc.,quesetornamum
pequeno grupo de trabalhadores altamente especializados. Mas em contrapartida, como Marx
observou anteriormente, surge “uma classe superior de trabalhadores, com formação científica ou
artesanal,situadaàmargemdocírculodosoperáriosfabrisesomenteagregadaaeles”(492).
Transformações desse tipo só poderiam gerar resistência, em particular dos trabalhadores
qualificados.Esseéofocodoitem5,quetratada“lutaentreotrabalhadoreamáquina”.Oludismo
(assimbatizadoemreferênciaaumapersonagemficcionalchamadaNedLudd)foiummovimento
de protesto contra a desqualificação e a perda de trabalho em que os trabalhadores destruíam as
máquinas. Eles consideravam que as máquinas eram suas concorrentes, que elas destruíam suas
habilidades e criavam insegurança em relação aos postos de trabalho. Marx, porém, observa uma
evoluçãonapolíticadessarevolta:
A destruição massiva de máquinas que, sob o nome de ludismo, ocorreu nos distritos manufatureiros ingleses durante os quinze
primeirosanosdoséculoXIXequefoiprovocadasobretudopelautilizaçãodotearavapor,ofereceuaogovernoantijacobinodeum
Sidmouth,Castlereaghetc.opretextoparaaadoçãodasmaisreacionáriasmedidasdeviolência.Foiprecisotempoeexperiênciaatéque
otrabalhadordistinguisseentreamaquinariaesuaaplicaçãocapitalistae,comisso,aprendesseatransferirseusataques,antesdirigidos
contraoprópriomeiomaterialdeprodução,paraaformasocialdeexploraçãodessemeio.(501)
Essa afirmação requer uma análise cuidadosa.Marx parece sugerir que o problema não são as
máquinas (a tecnologia), mas o capitalismo (as relações sociais). A partir daí, podemos deduzir
(erroneamente,ameuver)queasmáquinassãoneutrasemsimesmas,portantopoderiamserusadas
na transiçãoparao socialismo.Historicamente,parece serverdadeiroqueos trabalhadorespararam
dequebrarmáquinasesevoltaramcontraoscapitalistasqueutilizavamessatecnologiademodomais
brutal.Mas issopareceviolara linhageraldeargumentaçãodeMarx, sobretudose forconsiderada
minhaleituradanota89,naqualastecnologiaseasrelaçõessociaisestãomutuamenteintegradas.
Deacordocomessaleitura,háumproblemaquedizrespeitoàsprópriasmáquinas,porqueelasforam
concebidas e introduzidas para interiorizar certas relações sociais, concepçõesmentais emodos de
produzir e viver. Certamente, não é uma coisa boa que os trabalhadores se tornem apêndices das
máquinas.Nemaprivaçãodascapacidadesmentaisassociadaaoempregodastecnologiasmecânicas
capitalistas.Assim,quandoLeninlouvouastécnicasfordistasdeprodução,introduziusistemasfabris
semelhantes aos das fábricas norte-americanas e afirmou que a transformação das relações sociais
ocasionada pela revolução era o que importava, ele entrou num terreno perigoso.O próprioMarx
pareceambíguonessaspassagens.Emoutraspartesdesuaobra,eleémaiscríticoacercadanatureza
dastecnologiasemqueocapitalismoassentousuasbases.Astecnologiasdiscutidasnessecapítulosão
adequadasaomododeproduçãocapitalista.Issodeverianoslevarautomaticamenteaoproblemadas
tecnologiasadequadasaomododeproduçãosocialistaoucomunista.Sevocêpegarastecnologiasdo
modo de produção capitalista e tentar construir o socialismo com elas, que resultado você terá?
Provavelmente uma versão diferente de capitalismo, como tendeu a acontecer naUnião Soviética
após a disseminação das técnicas fordistas. Apesar de criticar Proudhon por ter simplesmente se
apropriadodasnoçõesburguesasdejustiça,Marxcorreorisco,aqui,deendossaraapropriaçãodas
tecnologiascapitalistas.
UmaformadedefenderMarxéretornaràsuadescriçãodoadventodocapitalismo.Noperíodo
manufatureiro,odesenvolvimentocapitalistabaseava-senoartesanatofeudaltardioenastecnologias
manufatureiras (ainda que modificando sua forma de organização) e, dadas as condições
conjunturais,nãohaviacomoserdeoutromodo.Apenasmaistardeocapitalismoconseguiudefinir
uma base tecnológica específica. Exatamente domesmomodo, o socialismo foi obrigado a usar as
tecnologiascapitalistasemseuestágiorevolucionárioiniciale,dadasasexigênciasdascircunstâncias
(guerraedesordemsocial),Leninestavacertoemadotarasmaisavançadasformastecnológicasdo
capitalismopararecuperaraproduçãoe,comisso,protegerarevolução.Mas,considerando-seminha
leitura da nota de rodapé, um projeto socialista revolucionário de longo prazo não pode evitar a
questãodadefiniçãodeumabasetecnológicaalternativa,ouderelaçõesalternativascomanatureza,
relações sociais alternativas, sistemas de produção alternativos, reprodução alternativa da vida
cotidianaeconcepçõesdemundoalternativas.Eessefoi,pensoeu,umdosgraveserrosnahistória
doscomunismosexistentes.Éclaroqueessedebateémaisamplodoqueocomunismo,umavezquea
questãodas tecnologias apropriadaspara a realizaçãode certosobjetivos sociais epolíticos– sejam
elesfeministas,anarquistas,ambientalistasouoquefor–éumproblemageral,quemereceumexame
detalhado.As tecnologias, temos de concluir, não são neutras em relação aos outrosmomentos da
totalidadesocial.
O problemático caráter de classe das tecnologias capitalistas é confirmado no texto de Marx.
Segundoele:
[Amaquinaria]nãoatuaapenascomoconcorrentepoderoso,sempreprontoatornar“supérfluo”otrabalhadorassalariado.Ocapital,
demaneira aberta e tendencial, proclama emaneja amaquinaria como potência hostil ao trabalhador. Ela se converte na armamais
poderosaparaarepressãodasperiódicasrevoltasoperárias,grevesetc.contraaautocraciadocapital.SegundoGaskell,amáquinaa
vaporfoi,desdeoinício,umantagonistada“forçahumana”,orivalquepermitiuaoscapitalistasesmagarascrescentesreivindicações
dostrabalhadores[...].Poder-se-iaescreverumahistóriainteiradosinventosque,apartirde1830,surgirammeramentecomoarmasdo
capitalcontraosmotinsoperários.(508)
Assim,oscapitalistasdesenvolvemconscientementenovastecnologiascomoinstrumentosdaluta
declasses.Essastecnologiasnãoapenasservemparadisciplinarotrabalhadordentrodoprocessode
trabalho,comotambémajudamacriarumexcedentedetrabalhoquereduzossalárioseasambições
dotrabalhador.
Marx introduz aqui, pela primeira vez, a ideia do desemprego ocasionado pela tecnologia. As
inovações que poupam trabalho provocam demissões. De fato, ao longo dos últimos trinta anos,
profundas mudanças econômicas e aumentos de produtividade incríveis causaram desemprego e
insegurançanoempregoetornarammuitomaisfácilatarefadedisciplinarpoliticamenteotrabalho.
HouvecertatendênciaaculparasubcontrataçãoeaconcorrênciadamãodeobrabaratadoMéxicoe
daChinapelosmalesdaclassetrabalhadoranorte-americana,masestudosmostramquecercadedois
terçosdaperdadepostosdetrabalhonosEstadosUnidossedevemamudançastecnológicas.Quando
memudeiparaBaltimore,em1969,aBethlehemSteelempregavamaisde25miltrabalhadores;20
anosdepois,empregavamenosde5mileproduziaamesmaquantidadedeaço.“Oinstrumentode
trabalholiquidaotrabalhador”(504).
Nãoédifícilfundamentaroargumentodequeastecnologiassãousadascomoarmasdalutade
classes.Lembro-medeterlidoasmemóriasdeumindustrial,uminovadornocampodasmáquinas-
ferramentasnaParisdoSegundoImpério.Eledavatrêsmotivaçõesparaainovação:primeiro,reduzir
o preço damercadoria emelhorar a competitividade; segundo,melhorar a eficiência e eliminar o
desperdício;terceiro,colocarostrabalhadoresemseudevidolugar.Desdeomovimentodosludistas,
alutadeclassesemtornodasformastecnológicasfoiumtraçoconstantedocapitalismo.
O item 6, sobre a “teoria da compensação”, concentra-se nas alterações que as mudanças
tecnológicas provocam na relação entre capital e trabalho. Se os capitalistas economizam capital
variávelaoempregarmenostrabalhadores,oquefazemcomocapitaleconomizado?Seexpandemsuas
atividades, então parte do trabalho que se tornou supérfluo é reabsorvido. Com base nisso, os
economistasburguesesdaépocainventaramumateoriadacompensaçãoparaprovarqueasmáquinas
nãocausavamdesemprego.Marxnãonegaquehajacertacompensação,masagrandezadestaúltima
éproblemática.Vocêpodereabsorver10%dostrabalhadoresquesetornaramsupérfluos,ou20%.Não
há nenhuma razão imediata para que todos sejam reabsorvidos. “Apesar de a maquinaria
necessariamentedeslocar trabalhadoresnos ramosde atividade emque é introduzida, elapode,no
entanto,gerarumaumentodaocupaçãoemoutrosramosdotrabalho.Masesseefeitonadatemem
comumcomaassimchamadateoriadacompensação”(514).Mesmoqueamaioriadostrabalhadores
sejareempregada,háaindaumsérioproblemadetransição.“Assimqueamaquinarialiberaumaparte
dostrabalhadoresatéentãoocupadosemdeterminadoramoindustrial,distribui-setambémopessoal
dereserva”–istoé,oexércitoindustrialdereserva,queestásempreàdisposição–,“queéabsorvido
emoutrosramosdetrabalho,enquantoasvítimasoriginais”–dispensadasdotrabalho–“definhame
sucumbem, em suamaior parte, durante o período de transição” (513).Há também problemas de
adaptação:metalúrgicosnãopodemsetornarprogramadoresdecomputadordanoiteparaodia.
Como,portanto,consideradaemsimesma,amaquinariaencurtaotempodetrabalho,aopassoque,utilizadademodocapitalista,ela
aumentaajornadadetrabalho;como,emsimesma,elafacilitaotrabalho,aopassoque,utilizadademodocapitalista,elaaumentasua
intensidade;como,emsimesma,elaéumavitóriadohomemsobreasforçasdanatureza,aopassoque,utilizadademodocapitalista,
elasubjugaohomemporintermédiodasforçasdanatureza;como,emsimesma,elaaumentaariquezadoprodutor,aopassoque,
utilizadademodocapitalista,elaoempobreceetc.,oeconomistaburguêsdeclarasimplesmentequeaobservaçãodamaquinariaemsi
mesmademonstracomabsolutaprecisãoqueessascontradiçõespalpáveisnãosãomaisdoqueaaparênciadarealidadecomum,não
existindoemsimesmase,portanto,tampouconateoria.(513-4)
Assim,amaquinariatemsempredeservistanarelaçãocomousocapitalistaquesefazdela.Ea
única questão que realmente importa é que o uso capitalista da maquinaria é em geral cruel e
desnecessariamenteopressivo.Masseamáquinaévista“emsimesma”comouma“vitóriadohomem
sobreasforçasdanatureza”edotadadepossibilidadespotencialmentevirtuosas(comoaliviarofardo
do trabalho e aumentar o bem-estar material), então retornamos à dúbia afirmação de que a
tecnologia capitalista, “em simesma”, pode servir de base para formas alternativas de organização
social,semnecessidadedegrandesajustesoutransformaçõesrevolucionárias.Caímosmaisumavez
na questão da posicionalidade das formas organizacionais, das tecnologias e das máquinas na
transiçãodofeudalismoparaocapitalismoedocapitalismoparaosocialismooucomunismo.Essaé
umadasgrandesquestõeslevantadasnessecapítulo,questãoquemereceumaanáliselongaerigorosa.
Acompensaçãotambémécausadapelofatodeaintroduçãodasmáquinasaumentaroemprego
naindústriademáquinas-ferramentas.Maslembre-sedequeo“aumentodetrabalhoexigidoparaa
produção do próprio meio de trabalho – maquinaria, carvão etc. – tem de ser menor do que a
diminuição de trabalho ocasionada pela utilização da maquinaria” (514). Portanto, existe a
possibilidade de um aumento do emprego na extração de matérias-primas. No caso do algodão,
porém,issosignificounãoaexpansãodotrabalhoassalariado,masaintensificaçãoeadisseminação
do trabalho escravo no sul dos Estados Unidos. Se todas essas possibilidades de compensação são
inibidas,porém,permaneceoproblemadoqueoscapitalistasdevemfazercomocapitalexcedente.
Elesadquiremesseexcedente–individualmenteoucomoclasse–àmedidaqueovalordaforçade
trabalhodiminuieonúmerodetrabalhadoresempregadostendeacair.
Oqueépostoaqui,aindaqueformaumtantonebulosa,éoproblemadoqueaburguesiadeve
fazercomtodooseucapitalexcedente.Esseéumproblemaenormeefundamental.Euochamode
problema da absorção do capital excedente. No fim de cada dia, os capitalistas acabam
necessariamente comum excedente e têmde decidir o que fazer com ele no dia seguinte. Se não
encontramaplicaçãoparaele,estãonumaenrascada.EsseéoproblemaprincipalanalisadoporMarx
nosdois volumes seguintes d’Ocapital. Ele não o examina em todos os detalhes aqui,mas levanta
algumassugestões:“Oresultadoimediatodamaquinariaéaumentaromais-valore,aomesmotempo,
amassadeprodutosemqueeleserepresenta–portanto,aumentar,juntamentecomasubstânciade
que a classe dos capitalistas e seus sequazes se alimentam, essas próprias camadas sociais” (517).
Assim,“cresceaproduçãodeartigosdeluxo”,eomercadodaproduçãoexcedentepodeserampliado
pela expansão do comércio exterior. “O aumento dos meios de produção e de subsistência,
acompanhadodadiminuição relativadonúmerode trabalhadores, leva à expansãodo trabalho em
ramosdaindústriacujosprodutos–comocanais,docas,túneis,pontesetc.–,sótrazemretornonum
futuromais distante” (517). Investimentos em infraestrutura física de longo prazo, que não rende
frutospormuitosanos,podemsetornarumveículoparaaabsorçãodoexcedente.Observaçõesdesse
tipomelevaramaexaminar,emOslimitesdocapital,opapelcrucialdasexpansõesgeográficasedos
investimentosdelongoprazo(particularmenteemurbanização)naestabilizaçãodocapitalismo.Além
disso,
o extraordinário aumento da força produtiva nas esferas da grande indústria, acompanhado como é de uma exploração intensiva e
extensivamenteampliadadaforçadetrabalhoemtodasasoutrasesferasdaprodução,permiteempregardemodoimprodutivouma
partecadavezmaiordaclassetrabalhadorae,dessemodo,reproduzirmassivamenteosantigosescravosdomésticos,agorarebatizados
de“classeserviçal”,comocriados,damasdecompanhia,lacaiosetc.
Essaclasseimprodutivainclui
osmuito velhos oumuitos jovens para o trabalho, todas asmulheres, jovens e crianças “improdutivos”, seguidos dos estamentos
“ideológicos”,comogoverno,clero, juristas,militaresetc.,alémdetodosaquelescujaocupaçãoexclusivaéconsumir trabalhoalheio
sobaformaderendadaterra,jurosetc.,e,porfim,osindigentes,vagabundos,delinquentesetc.(518)
Todaessaenormepopulaçãotemdesersustentadacomoexcedente.ComreferênciaàInglaterra
eaoPaísdeGales,Marxcitaosnúmerosdocensode1861,quemostramque“osocupadosemtodas
asfábricastêxteis[...]somadosaopessoaldetodasasmetalúrgicasemanufaturasdemetais”formam
um total de 1.039.605 pessoas, enquanto aquelas empregadas nas minas somam 565.835, em
comparação com as 1.208.648 que compõem a classe dos serviçais (ou “escravos domésticos
modernos”)(519).Tendemosapensarqueamudançaradicalquetransferiuopesodaeconomiada
manufaturaparaosetordeserviçosocorreunofimdoséculopassado,masessesdadosmostramqueo
setordeserviçosnãoénovo.AgrandediferençaéqueamaiorpartedaclassedosserviçaisdeMarx
não era organizada de modo capitalista (muitos moravam na casa dos patrões). Não havia
estabelecimentos anunciando “manicures”, “faxineiros”, “cabeleireiros” etc. Mas a parcela da
população envolvida nessa forma de emprego sempre foi grande e muito frequentemente
negligenciadanasanáliseseconômicas(inclusiveasdeMarx),emborafossemaisnumerosadoquea
classetrabalhadoranosentidoclássicodeoperários,mineirosetc.
O item 7, sobre a “Repulsão e atração de trabalhadores com o desenvolvimento da indústria
mecanizada”, examina os ritmos temporais de emprego segundo as altas e as baixas dos ciclos
econômicos. Os lucros, diz Marx, “não só constituem, em si mesmos, uma fonte de acumulação
acelerada,comoatraemàesferafavorecidadaproduçãograndepartedocapitalsocialadicionalque
se forma constantemente e busca novas aplicações”. Mas, quando flui para essas novas áreas
favorecidas,ocapitalexcedenteencontracertasbarreiras,comoaquelasgeradaspela“insuficiênciade
matéria-prima edemercadopor onde escoar seus próprios produtos” (522).Onde você conseguirá
novasmatérias-primaseparaquemvenderáseusprodutos?Essaperguntaécrucial,evoltaremosaela
noúltimoitem,“Reflexõeseprognósticos”.
A respostadeMarx é... a Índia!Vocêdestrói as indústrias indianas e transforma aquela imensa
população emmercado seu, e aomesmo tempo transforma o país emprodutor dematérias-primas
paraesseseumercado.Emoutraspalavras,vocêadotapráticascolonialistaseexpansõesgeográficas.
Oproblema é resolvidopor aquilo que chamode ajuste espacial.O resultado é “umanovadivisão
internacional do trabalho, adequada às principais sedes da indústria mecanizada, divisão que
transformaumapartedogloboterrestreemcampodeproduçãopreferencialmenteagrícolavoltadoa
suprir as necessidades de outro campo, preferencialmente industrial” (523).Naquelemomento, no
entanto,issoestavaforadoalcancedoaparatoteóricodeMarx.Oquevemosclaramentenesseitemé
anecessidadesocialinerenteaomododeproduçãocapitalistaderevolveroproblemadeaplicaçãodo
excedentedecapitalpormeiodedeslocamentosgeográficosetemporais.
Altasebaixasnocicloindustrialsãocaracterísticasdocapitalismo.
A enorme capacidade, própria do sistema fabril, de expandir-se aos saltos e sua dependência do mercado mundial geram
necessariamente uma produção em ritmo febril e a consequente saturação dos mercados, cuja contração acarreta um período de
estagnação.Avidada indústria se convertenuma sequênciadeperíodosdevitalidademediana,prosperidade, superprodução, crise e
estagnação. A insegurança e a instabilidade a que a indústria mecanizada submete a ocupação e, com isso, a condição de vida do
trabalhador tornam-se normais com a ocorrência dessas oscilações periódicas do ciclo industrial. Descontadas as épocas de
prosperidade, grassa entre os capitalistas a mais encarniçada luta por sua participação individual no mercado. Tal participação é
diretamenteproporcionalaobaixopreçodoproduto.Alémdarivalidadequeessalutaprovocapelousodemaquinariaaperfeiçoada,
substitutiva de força de trabalho, e pela aplicação de novosmétodos de produção, chega-se sempre a umponto emque se busca
baratearamercadoriapormeiodareduçãoforçadadossaláriosabaixodovalordaforçadetrabalho.(524-5)
Essadescriçãogenéricadosmovimentoscíclicosnaeconomiacarecedesustentaçãoteórica,eos
mecanismosexatosqueproduzemtaismovimentosnãosãoexplorados.Marxpassa,porassimdizer,
do terreno da teoria para uma descrição esquemática dos ciclos de alta e baixa característicos da
economiabritânicadaépoca.Oqueeleapresentaemseguida,comoúnicopropósitodeilustrarseu
argumentohistórico,éahistóriadosciclosdealtaebaixadaindústriaalgodoeiranaGrã-Bretanha.
Eleresumeahistória:
Portanto,nosprimeiros45anosdaindústriaalgodoeirabritânica,de1770a1815,encontramosapenas5anosdecriseeestagnação,
masessefoioperíododeseumonopóliomundial.Osegundoperíodo,ouseja,os48anosquevãode1815a1863,contaapenas20
anosderecuperaçãoeprosperidadecontra28dedepressãoeestagnação.De1815a1830,teminícioaconcorrênciacomaEuropa
continental e os EstadosUnidos. A partir de 1833, a expansão dosmercados asiáticos se impõe pormeio da “destruição da raça
humana”.(530)
Uma nota de rodapé esclarece que a “destruição da raça humana” a que Marx se refere foi
protagonizadapelosbritânicos,queobrigaramaÍndiaaplantarópioevendê-loàChinaemtrocade
prata,aqual,porsuavez,seriausadaparacomprarprodutosdaGrã-Bretanha.
No item 8, “O revolucionamento da manufatura, do artesanato e do trabalho domiciliar pela
grandeindústria”,Marxexaminaoqueacontecequandosistemasdetrabalhodiferentesentramem
concorrênciamútua.Esseitemlevantaalgumasquestõesintrigantes.NaépocadeMarx,sistemasde
trabalho domésticos, sistemas artesanais, sistemas manufatureiros e sistemas fabris coexistiam, às
vezes na mesma região. Quando foram postos em concorrência uns com os outros, esses sistemas
sofreramadaptaçõese,emalgunscasos,produziramnovasformashíbridas,masoresultadogeralfoi
tornar as condições de trabalho terríveis, se não absolutamente intoleráveis, em todos os setores.
Trabalhadores artesanais,por exemplo, tinhamde trabalhar cincovezesmaispara competir comos
produtosfabricadosnostearesavapor.MasMarxpareceacreditarque,nofimdascontas,osistema
fabril prevaleceria. Se digo “parece”, é porque ele não diz isso explicitamente.Contudo, hámuitas
pistasaquideumaespéciedeprogressãoteleológica,emqueocapitalismosemovenecessariamentee
cadavezmaisemdireçãoaumsistemafabril.Osantigossistemashíbridosdetrabalho,baseadosem
sistemasdeexploraçãocompletamentedesumanos(queMarx,comaajudadosinspetoresdefábrica,
descreve em detalhes), não podiam durar. Se é isso que ele está dizendo, então temos razões para
discordar.
Prefirolê-lodeoutromodo,talvezcontraopanodefundodeseuprópriopensamento.Diriaque
oscapitalistasgostamdepreservaropoderdeescolherosistemadetrabalho.Senãoconseguemlucro
suficientecomosistemafabril,queremteraopçãoderetornaraosistemadoméstico.Seaindaassim
não conseguirem lucro, recorrerão a um sistema quasemanufatureiro. Isto é, em vez de tomar as
condições queMarx descreve nesse capítulo como temporárias e transicionais, prefiro lê-las como
características (opções) permanentes de ummodo de produção capitalista em que a concorrência
entre diferentes sistemas de trabalho se torna uma arma do capital contra o trabalho na luta para
conseguirmais-valor.UsardessemodoaexplicaçãodeMarxparaasconsequênciasdevastadorasda
concorrência entre os sistemas de trabalho permite uma melhor compreensão do que está
acontecendo hoje no mundo. O ressurgimento de oficinas clandestinas e sistemas familiares de
trabalho, subcontratação e coisas do gênero foi a marca do capitalismo neoliberal nos últimos
quarentaanos.Osistemafabrilnemsempretrouxevantagensparaocapital,eMarxtembonsinsights
do porquê.Os trabalhadores, quando reunidos numa grande fábrica, podem tomar consciência de
seusinteressescomunseconstituirumaforçapolíticapoderosa.AindustrializaçãonaCoreiadoSula
partirdadécadade1960produziuumsistemafabrildelargaescala,eumadesuasconsequênciasfoi
ummovimentosindicalforte;atéserdisciplinadopelacrisede1997-1998,essemovimentofoiuma
forçapoliticamentepoderosa.EmHongKong,osistemadetrabalhobaseava-senotrabalhofamiliar
clandestino e em estruturas de subcontratação, e o movimento sindical é quase inexistente.
Obviamente,háoutros fatoresemjogo,masaquestãoprincipaléqueapossibilidadedeescolhero
sistemadetrabalhoqueseráaplicadoéimportanteparaocapitalnadinâmicadalutadeclasses.
Por isso, acredito que é mais proveitoso ler esses itens d’O capital na forma de uma história
exemplardecomooscapitalistas,tendoopoderdeescolheroprocessoeosistemadetrabalho,usam
essaescolhacomoumaarmanalutadeclassespelageraçãodemais-valor.Ostrabalhadoresfabrissão
disciplinados pela concorrência com as oficinas clandestinas e vice-versa. O acirramento da
concorrênciaentreessessistemaspiorouascoisasparaotrabalhador,emcomparação,porexemplo,
com as décadas de 1960 ou 1970, quando havia, emmuitas partes domundo capitalista, grandes
sistemasfabriseorganizaçõestrabalhistasfortesqueapoiavamosmovimentossociaiscomcertograu
de influência e poder político. Na época, era tentador imaginar que o sistema fabril acabaria
eliminandoosoutroseapolíticadecorrentedesseprocessoconduziriaaosocialismo.Muitosdosque
leramOcapitalnosanos1960favoreceramessainterpretaçãoteleológica.
Analisaremos agora a explanação de Marx em detalhes. Em primeiro lugar, temos o subitem
“Suprassunção da cooperação fundada no artesanato e na divisão do trabalho”, que descreve um
deslocamentodistintivodeumsistemadetrabalhoparaoutro.Emsegundolugar,oimpactosobrea
manufatura e as indústrias domésticas é examinado. Nesse caso, o tema é a adaptação, e não a
supressão. “Por toda parte torna-se determinante o princípio da produção mecanizada, a saber,
analisaroprocessodeproduçãoemsuas fasesconstitutivaseresolverosproblemasassimdadospor
meiodaaplicaçãodamecânica,daquímicaetc.,emsuma,dasciênciasnaturais”(532-3).Emoutras
palavras, as concepções mentais associadas às tecnologias mecânicas introduziram-se na
reorganizaçãodossistemasantigos.Aciênciaeatecnologiasócomeçaramainteragircomaindústria
noséculoXIX,oquefezcomqueosprocessosdetrabalhofossemcientificamentefragmentadosem
fases constitutivas e transformados em processos repetitivos e mecânicos. Mas isso implicou uma
revoluçãomentalnomodocomoentendíamosomundo, eométodocientíficopôde ser aplicadoa
todos os sistemas de trabalho (inclusive os artesanais). É claro quenamanufatura e nas indústrias
domésticas,emqueformasmaisantigasdepensamentoprevaleciamhaviamuitotempo,amudança
não foi automática. Mas as consequências para as indústrias que se reformularam segundo os
princípios científicos e técnicos foram terríveis, comomostra a descrição deMarx da produçãode
renda(490-3).
Aformaqueaindústriadomésticaassumiunãotinhanada“emcomum,anãoseronome,com
aquela indústria domiciliar antiquada”. Ela se converteu “no departamento externo da fábrica, da
manufatura ou da grande loja”. Desse modo, “o capital movimenta, por fios invisíveis, um outro
exército”detrabalhadores(533).Marxcitaoexemplodeumafábricadecamisas“queempregamil
trabalhadores na fábrica e 9mil trabalhadores domiciliares espalhados pelo campo”. Essa forma de
organização do trabalho ainda é comum nos dias atuais, sobretudo na Ásia, onde a indústria
automobilísticajaponesa,porexemplo,baseia-senumavastarededetrabalhadoressubcontratadosque
produzemaspeças.Essa exploração “desavergonhada” é característicadessas formas “modernas”de
indústria domiciliar, em parte porque “a capacidade de resistência dos trabalhadores diminui em
consequênciade suadispersão”eemparteporque“todaumasériedeparasitas rapaces se interpõe
entreoverdadeiropatrãoeotrabalhador”(533).
As transformações generalizadas em todos os sistemas de trabalho apresentam complicações
específicas. “O revolucionamento do modo social de produzir, esse produto necessário da
transformaçãodomeiodeprodução,consuma-senumemaranhadocaóticode formasdetransição”
(543). Mas isso é o mais perto que Marx chega de endossar uma perspectiva teleológica, “a
diversidadedas formasde transiçãonãoesconde[...]a tendênciaà transformaçãodessas formasem
sistema fabrilpropriamentedito” (544).Noentanto, isso éuma tendência,nãouma lei, e,quando
Marx usa a palavra “tendência”, é importante notar que quase sempre ele tenciona contrapor
tendências que tornam incertos os resultados reais. Nesse exemplo, porém, ele não examina
contratendênciaspotenciais.
Ele descreve como essa “revolução industrial, que transcorre de modo natural-espontâneo, é
artificialmenteaceleradapelaexpansãodasleisfabrisatodososramosdaindústriaemquetrabalhem
mulheres, adolescentes e crianças” (545). Apenas os grandes ramos industriais, observa ele, têm
recursosparacumprirasregulamentações.
Masse,dessemodo,a lei fabrilaceleraartificialmenteamaturaçãodoselementosmateriaisnecessáriosàtransformaçãodaprodução
manufatureira em fabril, ela ao mesmo tempo acelera, devido à necessidade de um dispêndio aumentado de capital, a ruína dos
pequenospatrõeseaconcentraçãodocapital.(548)
O grande capital costuma suportar as imposições de todos os tipos de marcos regulatórios –
relativos,porexemplo,àsegurançadotrabalhoeàpreservaçãodasaúdedotrabalhador–,sobretudo
seaspequenasempresasnãopodemarcarcomesses custos edeixamomercadoparaasgrandes.A
chamada“capturaregulatória”[regulatorycapture]existehámuito temponahistóriadocapitalismo.
Asempresascapturamoaparatoreguladoreousamparaeliminaraconcorrência.QuandoosMini
Cooper chegaram àGrã-Bretanhano iníciodos anos 1960, eles haviam sidoproibidos pelo regime
regulatóriodosEstadosUnidos,porqueadistânciadosfaróisemrelaçãoaosolonãoerasuficiente,
era alguns milímetros menor do que a necessária. É o bastante quanto às práticas reais do livre-
comércio!
Asazonalidadequecaracterizaalgumaslinhasdeproduçãopõeoutroconjuntodeproblemasaos
quaisocapitaltemdeseadaptar.UmadasrazõesporqueconsideroOcapitalumlivrotãopresciente
équecomfrequênciaMarxidentificatendênciasnocapitalismodesuaépocaquesãomuitofáceisde
identificarnocapitalismodehoje.Porexemplo,haviaumatendêncianocapitalismodecriaraquilo
que nos anos 1980, como resultado da inovação japonesa, seria chamado de sistemas just-in-time.
Marx observou em sua época que as flutuações de oferta e demanda, tanto sazonais como anuais,
exigiammodosderespostaflexíveis.Elecitaumcomentadordaépoca:
“A expansão do sistema ferroviário […] por todo o país estimulou bastante o hábito das encomendas de curto prazo. Agora os
compradores vêm de Glasgow, Manchester e Edimburgo, uma vez por quinzena, ou então compram por atacado nos grandes
armazéns daCity, aos quais fornecemos as mercadorias. Fazem encomendas que têm de ser atendidas imediatamente, em vez de
comprarem as mercadorias do estoque, como antes era o costume. Em anos anteriores, sempre conseguíamos adiantar o serviço
durante a estação baixa para a demanda da temporada seguinte, mas agora ninguém pode prever qual será, então, o objeto da
demanda.”
Para ter essa flexibilidade, no entanto, era necessário criar uma infraestrutura adequada de
transporteecomunicação.“Ohábitodessasencomendasseexpandecomasferroviaseatelegrafia”
(548).
Oitem9,sobreas“cláusulassanitáriaseeducacionais”dalegislaçãofabril,põeoutroconjuntode
contradições interessantes. “A legislação fabril”, observa Marx, “essa primeira reação consciente e
planejada da sociedade à configuração natural-espontânea de seu processo de produção, é, como
vimos,umprodutonecessáriodagrandeindústriatantoquantooalgodão,as selfactors eo telégrafo
elétrico”(551).AsLeisFabrisnãosóprocuravamregularashorasde trabalho,mas tambémtinham
algo a dizer sobre a saúde e a educação, temas a quemuitos industriais resistiam ferozmente.No
entanto,
dosistemafabril,comopodemosveremdetalhenaobradeRobertOwen,brotaogermedaeducaçãodofuturo,quehádeconjugar,
paratodasascriançasapartirdecertaidade,otrabalhoprodutivocomoensinoeaginástica,nãosócomométododeincrementara
produçãosocial,mascomoúnicométodoparaaproduçãodesereshumanosdesenvolvidosemseusmúltiplosaspectos.(554)
Por que estamos falando, de repente, de “seres humanos desenvolvidos em seus múltiplos
aspectos”,numcapítulocheiodehistóriasdedignidadedestruídaeapropriaçãodascapacidadesdo
trabalhador pelo capital? Talvez porque a resistência do capitalista a medidas sanitárias e
educacionaisseja irracionaldopontodevistadaclassecapitalista?“Comovimos,aomesmotempo
que a grande indústria suprime tecnicamente a divisão manufatureira do trabalho”, ela reproduz
“aquela divisão do trabalho demaneira aindamaismonstruosa, na fábrica propriamente dita, por
meiodatransformaçãodotrabalhadoremacessórioautoconscientedeumamáquinaparcial”(554).
Osefeitossobreascriançassãoparticularmentedevastadores.Mashásinaispositivosnissotudo.
Écaracterísticoque, jáno séculoXVIII, ainda sedenominassemmistérios (mystères) os diversos ofícios em cujos segredos só podia
penetraro iniciadoporexperiênciaeporprofissão.Agrande indústria rasgouovéuqueocultavaaoshomensseupróprioprocesso
socialdeproduçãoequeconvertiaosdiversos ramosdaprodução,que sehaviamparticularizadodemodonatural-espontâneo, em
enigmasunsemrelaçãoaosoutros,einclusiveparaoiniciadoemcadaumdessesramos.(556)
A moderna ciência da tecnologia provocou uma verdadeira revolução em nossas concepções
mentaisdomundo.“Asformasvariegadas,aparentementedesconexaseossificadasdoprocessosocial
deprodução se dissolveram,de acordo como efeitoútil almejado, em aplicações conscientemente
planificadasesistematicamenteparticularizadasdasciênciasnaturais”(556-7).
Oresultadofoiumarevoluçãoindustrialemtodosossentidosdotermo.
Aindústriamodernajamaisconsideranemtratacomodefinitivaaformaexistentedeumprocessodeprodução.Suabasetécnicaé,por
isso, revolucionária, ao passo que a de todos os modos de produção anteriores era essencialmente conservadora. Por meio da
maquinaria,deprocessosquímicoseoutrosmétodos,elarevolucionaconstantemente,juntamentecomabasetécnicadaprodução,as
funções dos trabalhadores e as combinações sociais do processo de trabalho. Desse modo, ela revoluciona de modo igualmente
constanteadivisãodotrabalhonointeriordasociedadeenãocessadejogardeumramodeproduçãoparaoutromassasdecapitale
massasdetrabalhadores.Anaturezadagrandeindústriacondiciona,portanto,avariaçãodotrabalho,afluidezdafunção,amobilidade
onidirecionaldotrabalhador.(557)
Anecessidadegeraumaenormecontradição.Oladonegativoéqueagrandeindústria“reproduz
em sua forma capitalista a velha divisão do trabalho” e “suprime toda tranquilidade, solidez e
segurança na condição de vida do trabalhador, a quem ela ameaça constantemente de privá-lo,
juntamente comomeiode trabalho,de seumeiode subsistência”. Isso “desencadeiaodesperdício
mais exorbitante de forças de trabalho e as devastações da anarquia social” (557).Mas há o lado
positivo:
a grande indústria, precisamente por suasmesmas catástrofes, converte em questão de vida oumorte a necessidade de reconhecer
comoleisocialgeraldaproduçãoamudançadostrabalhose,consequentemente,amaiormultilateralidadepossíveldostrabalhadores,
fazendo, aomesmo tempo, comque as condições se adaptem à aplicação normal dessa lei. Ela converte numa questão de vida ou
morteasubstituiçãodessarealidademonstruosa,naqualumamiserávelpopulaçãotrabalhadoraémantidacomoreserva,deprontidão
para satisfazer as necessidades mutáveis de exploração que experimenta o capital, pela disponibilidade absoluta do homem para
cumprirasexigênciasvariáveisdotrabalho;asubstituiçãodoindivíduoparcial,meroportadordeumafunçãosocialdedetalhe,pelo
indivíduototalmentedesenvolvido,paraoqualasdiversasfunçõessociaissãomodosalternantesdeatividade.(558)
O capitalismo requer fluidez e adaptabilidade do trabalho, uma força de trabalho instruída e
variada,capazdeexecutarmúltiplastarefaserespondercomflexibilidadeacondiçõesvariáveis.Há
aquiumaprofundacontradição:porumlado,ocapitalquertrabalhodegradado,desqualificado,algo
comoumgorila treinadopara serviraocapital semquestioná-lo;poroutro lado,elenecessitadesse
outrotipode trabalho, instruído, flexíveleadaptável.Comosepoderiaabordar talcontradiçãosem
fazer surgir “fermentos revolucionários” (558), sobretudo se levarmos em conta que os capitalistas
individuais,quebuscamintensamenteseusprópriosinteressesesãoimpelidospelasleiscoercitivasda
concorrência,teriamdificuldadeemeliminá-la?
Umarespostacoletivadeclasseencontra-senosartigossobreaeducaçãoinseridosnasLeisFabris.
Essesartigosnãoforamnecessariamenteaplicados,observaMarx,emparticulardiantedaresistência
docapitalistaindividual.Noentanto,ésignificativoquetenhamsidoconsideradosnecessáriosnum
Estado que, como observamos anteriormente, era governado por capitalistas e proprietários
fundiários.Elesugereque“oensinoteóricoepráticodatecnologia”garantiu“seudevidolugarnas
escolasoperárias”.Eprossegue:“Mastampoucorestadúvidadequeaformacapitalistadeproduçãoe
as condições econômicas dos trabalhadores que lhe correspondem encontram-se namais diametral
contradição com tais fermentos revolucionários e sua meta: a superação da antiga divisão do
trabalho”.Notebem:odesenvolvimentodessas“contradiçõesdeumaformahistóricadeproduçãoé,
noentanto,oúnicocaminhohistóricodesuadissoluçãoereconfiguração”(558).
Odesenvolvimentodessacontradiçãofundamentalécrucialparaentenderastransformaçõesna
reproduçãodaforçadetrabalho.Agrandeindústriateveumpapelimportantenadissoluçãoda“base
econômicadoantigosistemafamiliaredotrabalhofamiliaraelecorrespondente”.Tambémdissolveu
“asprópriasrelaçõesfamiliaresantigas”,revolucionouasrelaçõesentrepaisefilhosefreouosabusos
do poder paterno, que surgiu com o gang system. Foi o “modo capitalista de exploração que,
suprimindo a base econômica correspondente à autoridade paterna, converteu esta última num
abuso”(559).Porém,
porterrívelerepugnantequepareçaadissoluçãodovelhosistemafamiliarnointeriordosistemacapitalista,nãodeixadeserverdade
queagrande indústria, ao conferir àsmulheres, aos adolescentes e às criançasde ambosos sexosumpapeldecisivonosprocessos
socialmenteorganizadosdaproduçãosituadosforadaesferadoméstica,criaonovofundamentoeconômicoparaumaformasuperior
dafamíliaedarelaçãoentreossexos.(560)
Éóbvio,Marxconclui,
que a composição do pessoal operário por indivíduos de ambos os sexos e das mais diversas faixas etárias, que em sua forma
capitalista,natural-espontânea ebrutal– emqueo trabalhador existeparaoprocessodeprodução, enãooprocessodeprodução
paraotrabalhador–,éumafontepestíferadedegeneraçãoeescravidão,podeseconverter,sobascondiçõesadequadas,emfontede
desenvolvimentohumano.(560)
Abuscaporfluidez,flexibilidadeeadaptabilidadedotrabalhorevolucionaafamíliaeasrelações
entre os sexos! Pressões desse tipo perduram até hoje, ao mesmo tempo que o lado negativo da
contradição aqui identificada porMarx continua onipresente.Trata-se, devemos concluir, de uma
contradiçãopermanente,localizadanocernedocapitalismo.
Assim,oquesubitamenteencontramosaofimdesselongocapítulo,plenodeimagensnegativas,
são algumaspotencialidadespositivas e revolucionáriaspara a educaçãodas classes trabalhadoras e
uma reconfiguração radical (com a ajuda do poder estatal) de suas condições de reprodução. O
capitalprecisadefluideznotrabalhoe,portanto,temdeeducarostrabalhadores,aomesmotempo
queeliminaosvelhos rigorespaternalistas,patriarcais.Essas ideiasnão sãomuitodesenvolvidasno
textodeMarx,maséinteressantequeeletenhaconsideradoimportanteinseri-lasemsuaanálise.E,
aomesmo tempo que a política da jornada de trabalho visava salvar o capital de suas tendências
autodestrutivas,elatraziaemsiogermedeumapolíticaoperáriavoltadaparaasupressãodopróprio
sistemacapitalista.
IssoconduzMarx,apósumalongaedetalhadaexposiçãodasLeisFabris,asuaconclusão,naqual
elevoltaaflertarcomumaformulaçãoteleológica:
Se a generalização da legislação fabril tornou-se inevitável como meio de proteção física e espiritual da classe trabalhadora, tal
generalização,poroutrolado,ecomojáindicamosanteriormente,generalizaeaceleraatransformaçãodeprocessoslaboraisdispersos,
realizadosemescaladiminuta,emprocessosdetrabalhocombinados,realizadosemlargaescala,emescalasocial;elaacelera,portanto,
aconcentraçãodocapitaleoimpérioexclusivodoregimedefábrica.Eladestróitodasasformasantiquadasetransitórias,sobasquais
odomíniodocapitalaindaseescondeemparte,eassubstituiporseudomíniodireto,indisfarçado.Comisso,elatambémgeneralizaa
lutadiretacontraessedomínio.Aomesmotempoqueimpõenasoficinasindividuaisuniformidade,regularidade,ordemeeconomia,a
legislação fabril, pormeiodo imenso estímuloque a limitação e a regulamentaçãoda jornadade trabalhodão à técnica, aumenta a
anarquiaeascatástrofesdaproduçãocapitalistaemseuconjunto,assimcomoaintensidadedotrabalhoeaconcorrênciadamaquinaria
com o trabalhador. Juntamente com as esferas da pequena empresa e do trabalho domiciliar, ela aniquila os últimos refúgios dos
“supranumerários” e, assim, a válvula de segurança até então existente de todo o mecanismo social. Ao amadurecer as condições
materiaiseacombinaçãosocialdoprocessodeprodução,elaamadureceascontradiçõeseosantagonismosdesuaformacapitalistae,
portanto,aomesmotempo,oselementoscriadoresdeumanovasociedadeeosfatoresquerevolucionamasociedadevelha.(570-1)
Oitem10,“Grandeindústriaeagricultura”,trazdevoltaparaocentrodadiscussãoa“relação
entreohomemeanatureza”efaz,porassimdizer,umabreveporémimportanteparticipaçãoespecial
naargumentação.“Énaesferadaagricultura”,dizMarx,que“agrandeindústriaatuadomodomais
revolucionário”, empartepor “liquidarobaluartedavelha sociedade,o ‘camponês’, substituindo-o
pelo trabalhador assalariado”,oque,por sua vez, gera conflitosde classeno campo.A aplicaçãode
princípios científicos na agricultura revoluciona as relações entre a agricultura e amanufatura, ao
mesmotempoque“criaospressupostosmateriaisdeumanovasíntese,superior,entreagriculturae
indústria”.Masesseresultadopotencialmentepositivo“perturbaometabolismoentreohomemea
terra,istoé,oretornoaosolodaqueleselementosquelhesãoconstitutivoseforamconsumidospelo
homemsobformadealimentosevestimentas,retornoqueéaeternacondiçãonaturaldafertilidade
permanentedosolo”(572).Esseproblemaéexacerbadopelacrescenteurbanização.“Etodoprogresso
daagriculturacapitalista”,concluiMarx,
éumprogressonaartedesaquearnãosóotrabalhador,mastambémosolo,poistodoprogressonoaumentodafertilidadedosolo
por certoperíodo traz consigo, aomesmo tempo,umprogressono esgotamentodas fontesduradourasdessa fertilidade.Quanto
maisumpaís,como,porexemplo,osEstadosUnidosdaAméricadoNorte,temnagrandeindústriaabasedeseudesenvolvimento,
tantomaisrápidoéesseprocessodedestruição.Porisso,aproduçãocapitalistasódesenvolveatécnicaeacombinaçãodoprocessode
produçãosocialaominarosmananciaisdetodaariqueza:aterraeotrabalhador.(573-4)
As relações entre tecnologia, natureza, produção e reprodução da vida sofrem uma mudança
negativa, ainda que revoluções em concepções mentais e relações sociais abram possibilidades
positivas. Marx não defende o retorno a uma sociedade em que os processos de produção sejam
“mystères”.Eleacreditaqueaaplicaçãodaciênciaedatecnologiapodeterimplicaçõesprogressistas.
Masograndeproblemadessecapítuloéidentificarondeexatamenteseencontramtaispossibilidades
progressistas e comopodem sermobilizadas na criação de ummodode produção socialista.Marx,
emboranãoresolvaesseproblema,coloca-oeobriga-nosarefletirsobreele.Asmudançastecnológicas
eorganizacionaisnãosãoumdeusexmachina,masestãoprofundamenteenraizadasnacoevoluçãode
nossarelaçãocomanatureza,osprocessosdeprodução,asrelaçõessociais,asconcepçõesmentaisde
mundo e a reproduçãoda vida cotidiana.Todos esses “momentos” são combinadosnesse capítulo,
algunsmuitomaisdoqueoutros.Elepodeedeveserlidocomoumensaioacercadareflexãosobre
essas relações. Mas o sentido do método que surge dessa leitura permite uma interrogação do
argumentodeMarxnosprópriostermosdeMarx.
[a]3.ed.,RiodeJaneiro,Guanabara,2010.(N.T.)
9.Domais-valorabsolutoerelativoà
acumulaçãodocapital
Noscapítulosanteriores,dedicamo-nosaosváriosmodoscomopodemosconseguirmais-valorrelativo
e absoluto. Quando Marx faz esse tipo de bifurcação conceitual, invariavelmente leva de volta a
dualidadeaoestadodeunidade:nofimdascontas,háapenasummais-valor,esuasduasformasse
condicionammutuamente.Seria impossível ganharmais-valor absoluto semumabase tecnológica e
organizacional adequada. Inversamente, o mais-valor relativo não teria sentido algum sem uma
duraçãodajornadadetrabalhoquepermitisseaapropriaçãodemais-valorabsoluto.Adiferençaestá
apenasnaestratégiacapitalista,que“sefazsentirondequerquesetratedeaumentarataxademais-
valor”. Como costuma ocorrer quando Marx avança para um ponto de síntese, ele tanto retoma
materialjáapresentadoquantooconduzaumpontodiferente,deondeépossívelobservaroterreno
docapitalismodeumanovaperspectiva.Asnovasperspectivasdocapítulo14geraramumagrande
controvérsia,porissoexigemumescrutíniocuidadoso.
Considere,emprimeirolugar,oconceitodetrabalhadorcoletivo,mencionadodiversasvezesem
capítulosanteriores.Omais-valornãoémaisvistocomoumarelaçãoindividualdeexploração,mas
como parte de um todo mais amplo, em que os trabalhadores, em cooperação e dispersados pela
divisão detalhista do trabalho, produzem coletivamente o mais-valor de que os capitalistas se
apropriam.Adificuldadedesseconceitoédefinirondecomeçaeondeterminaotrabalhadorcoletivo.
Ocaminhomaissimplesseria,digamos,partirdafábricaedesignarcomotrabalhadorcoletivotodos
que trabalham ali, inclusive faxineiros, auxiliares, gerentes de depósito emesmo estagiários, ainda
quemuitosdessestrabalhadoresnãodesempenhempapelalgumnaproduçãoefetivademercadorias.
“Paratrabalharprodutivamente, jánãoémaisnecessáriofazê-locomasprópriasmãos;basta,agora,
serumórgãodotrabalhadorcoletivo,executarqualquerumadesuassubfunções”(577).
Masgrandepartedotrabalhonãoérealizadanasfábricas,eatendênciaemtemposmaisrecentes
é recorrer à terceirização e à subcontratação, atrás das quais se encontram muitas vezes outros
subcontratantes.Eoquedizerdapropaganda,domarketingedodesigncomoserviçosque,embora
essenciais à venda de mercadorias, são frequentemente separados das atividades imediatas da
produção?Oudevemosconsiderarexclusivamenteasatividadesinternasdafábrica?Édifícilchegara
umadefiniçãoexata,eparecenãohavernenhumasoluçãoperfeita–daíacontrovérsia.Massema
ajudadesseconceitoseriadifícilchegaraumaabordagemmacroteóricadadinâmicadocapitalismo.
Marxdizqueatéaquiaanálise“permanececorretaparaotrabalhadorcoletivo,consideradoemseu
conjunto”,masnãoémaisválida“paracadaumdeseusmembros,tomadosisoladamente”.
O segundo movimento é comparar essa ampliação da definição de trabalho produtivo com a
restrição de seu âmbito, demodo que “só é produtivo o trabalhador que produzmais-valor para o
capitalista”.Caracterizar alguémcomo“improdutivo”podeprovocaruma reação emocional, jáque
soacomoumaofensacontratodosaquelesquetrabalhamduroparasobreviver.Contudo,comoMarx
se apressa a afirmar, no capitalismo “ser trabalhador produtivo não é [...] uma sorte,mas um azar”
(577-8). A noção marxiana de “produtivo” não é normativa ou universal, mas uma definição
historicamente específica ao capitalismo.Noque concerne ao capital, aqueles quenão contribuem
paraaproduçãodemais-valorsãoconsideradosimprodutivos.Atarefadosocialismoseria,portanto,
redefiniranoçãode“produtivo”deummodomaisresponsávelebenéficosocialmente.
Noentanto,mesmonocontextodocapitalismo,hádesafioslegítimosemtornodadefiniçãode
“produtivo”.Por exemplo, durante anos as feministas argumentaramqueo trabalhodomésticonão
pagoreduzovalordemercadodaforçadetrabalhoe,porisso,geramais-valorparaocapitalista.Marx
não tratadessaquestão,masocupa-seda suposta “basenatural”daprodutividade, e sua análisedá
pistas de como ele teria abordado algumas dessas questões. A produtividade, diz ele, pode ser
“limitada por condições naturais” ou aumentada, porque “quantomaiores a fertilidade natural do
solo e a excelência do clima, tantomenor é o tempo de trabalho necessário para a conservação e
reprodução do produtor”.Mantendo-se inalteradas as demais circunstâncias, “a grandeza domais-
trabalho variará de acordo com as condições naturais do trabalho, sobretudo com a fertilidade do
solo” (581-2). Portanto, nãohá razão algumapara nãodizer que omais-trabalho variará de acordo
comascondiçõessociais(porexemplo,aprodutividadedotrabalhofamiliar).Deixaremosdeladoas
passagensestranhas,querefletemopensamentooitocentistaarespeitododeterminismoambientale
dadominaçãodanatureza(“Umanaturezademasiadopródiga‘conduzohomememsuamão,como
umacriançaemandadeiras’”
[a]
);Marxconclui,então,que“aexcelênciadascondiçõesnaturais”(às
quais poderíamos acrescentar também as condições sociais) “limita-se a fornecer a possibilidade,
jamaisarealidadedomais-trabalho,portanto,domais-valoroudomais-produto”(583).Querdizer,a
relação dinâmica com a natureza (ou com as condições da vida cotidiana e o trabalho doméstico)
forma umpano de fundo necessário,mas não suficiente, para os processos sociais e as relações de
classepormeiodasquaisomais-valorécriadoeapropriado.
Marxnosinduzareconhecerque“arelaçãocapitalista[...]nascenumterrenoeconômicoqueéo
produtodeumlongoprocessodedesenvolvimento”,demodoqueaprodutividadedotrabalho“nãoé
umadádivadanatureza,masoresultadodeumahistóriaquecompreendemilharesdeséculos”(580-
1). Além disso, diz ele, “para que [o trabalhador] o gaste [o tempo de ócio] emmais-trabalho para
estranhos,énecessáriaacoaçãoexterna”(584).Eagrande ironiaéque“tantoas forçasprodutivas
historicamente desenvolvidas, sociais, quanto as forças produtivas do trabalho condicionadas pela
naturezaaparecemcomoforçasprodutivasdocapital,aoqualotrabalhoé incorporado”(584).Para
Marx,o xdaquestão, certoou errado, reside semprena configuração específicada apropriaçãodo
mais-valordotrabalhopelocapital,umaconfiguraçãoqueseencontranamatrizdoselementosque
definematotalidadedeummododeproduçãocapitalistacadavezmaisampliado.SeMarxtivesse
abordado essaquestão, émuitoprovávelque tivesse tratado as tarefasdomésticasdomesmomodo
quetrataarelaçãocomanatureza(comoindicaanota121dapágina469).
Osdoismovimentos,odeampliaçãoeoderestriçãodadefiniçãodetrabalhoprodutivo,nãosão
independentesumdooutro.Combinados,ajudamMarxairdeumamicroperspectivaindividual,em
que a imagem dominante é a do trabalhador individual explorado por um empregador capitalista
particular, para umamacroanálise das relações de classe, na qual é a exploraçãode uma classe por
outraqueocupaacena.Essaperspectivadeclasseseráadominantedosúltimoscapítulos.
Curiosamente, todas as formas de teoria econômica encontram problemas ao se mover de um
terrenomicroteóricopara um terrenomacroteórico.A economiapolítica burguesanão tinha como
realizar essemovimento, porque não dispunha (e ainda não dispõe) de uma teoria das origens do
mais-valor. Ricardo ignorou completamente o problema, e John StuartMill,mesmo reconhecendo
queeletinhaalgoavercomotrabalho,nãopôdeidentificarexatamenteemqueconsistiaessealgo,
porquenãoviuadiferençaentreoqueotrabalhotomaeoqueotrabalhocria.“Emterrenosplanos”,
dizMarx numa sarcástica referência aMill, “até os montes de terra parecem colinas, e podemos
medirabanalidadedenossaburguesiaatualpelocalibredeseus‘grandesespíritos’”(586).Emboraa
teoriadeMarxdomais-valorfaciliteomovimento,omodocomoofaz,comovimos,nãoseeximede
críticas.Mascabeanósararosoloparacolherosfrutosdeseupensamento.
Os dois capítulos seguintes não abordam questões substanciais. No capítulo 15, Marx apenas
reconhece que omais-valor varia de acordo com três fatores: a duração da jornada de trabalho, a
intensidadedotrabalhoeaprodutividadedotrabalho,demodoqueoscapitalistaspodemrecorrera
trêsestratégias.Adiminuiçãodaspossibilidadesnumadimensãopodesercompensadapelorecursoa
outra.Opontofundamentaléenfatizar,comofazMarxcomfrequência,aflexibilidadedasestratégias
dos capitalistas na busca de mais-valor: se não conseguem obtê-lo de um modo (aumentando a
intensidade),elesoobtêmdeoutro(aumentandoashorasdetrabalho).Enfatizoessepontoporque
Marxévistomuitasvezescomoumpensadorrígido,quetrabalhacomconceitosrígidos.Ocapítulo
16 limita-se amencionar (maisumavez!) várias fórmulaspara interpretar a taxademais-valor.Há
muitas repetições n’O capital. Às vezes parece que Marx não está seguro de que entendemos o
problemaesente-senaobrigaçãoderepeti-loparasecertificar.
CAPÍTULOS17A20:SALÁRIO
Os curtos capítulos sobre o salário (17-20) são relativamente autoexplicativos. As consequências
resultam,comopoderíamosesperar,dofatodequeocampodaaçãosocialéconfiguradomaispela
representação na forma-dinheiro – salário – do que pelo valor da força de trabalho. Isso leva
imediatamenteaoproblemadamáscarafetichistaqueescondeasrelaçõessociaissobofermentoda
políticarepresentativa.Marx,noentanto,começalembrandoqueháumaenormediferençaentre“o
valor do trabalho” (expressão empregada na economia política clássica) e o “valor da força de
trabalho”.
Nomercado,oquesecontrapõediretamenteaopossuidordedinheironãoé,narealidade,otrabalho,masotrabalhador.Oqueeste
últimovendeé sua forçade trabalho.Mal seu trabalho tem inícioefetivamenteea forçade trabalho jádeixoude lhepertencer,não
podendomais,portanto,servendidaporele.Otrabalhoéasubstânciaeamedidaimanentedosvalores,maselemesmonãotemvalor
algum.
Pensardeoutromodoécairnumatautologia,istoé,falardovalordovalor.
Na expressão “valor do trabalho”, o conceitode valornão só se apagoupor completo,mas converteu-se em seu contrário.Éuma
expressão imaginária, como,por exemplo, valorda terra.Essas expressões imaginárias surgem,noentanto,daspróprias relaçõesde
produção.Sãocategoriasparaasformasemquesemanifestamrelaçõesessenciais.Queemsuamanifestaçãoascoisasfrequentemente
seapresenteminvertidaséalgoconhecidoemquasetodasasciências,menosnaeconomiapolítica.(607)
Emoutraspalavras,ovalordotrabalhoéumconceitofetichistaquedisfarçaaideiadovalorda
força de trabalho e, por conseguinte, evita a questão crucial de como a força de trabalho se torna
mercadoria.
Aúnica soluçãoquea economiapolítica clássica encontrouparaoproblemada fixaçãodaquilo
que ela chamava incorretamente de valor do trabalho foi apelar para a doutrina da oferta e da
demanda. Essa doutrina aparece várias vezes n’O capital, mas é aqui queMarx rechaça commais
ênfaseseuvalorexplanatório.Mesmoaeconomiapolíticaclássica
reconheceuqueavariaçãonarelaçãoentreofertaedemandanadaesclareceacercadopreçodotrabalho,assimcomodequequalquer
outramercadoria,alémdesuavariação, istoé,aoscilaçãodospreçosdemercadoabaixoouacimadeumacertagrandeza.Seofertae
demanda coincidem, cessa,mantendo-se iguais asdemais circunstâncias, a oscilaçãodepreço.Mas, então, oferta edemanda cessam
tambémdeexplicarqualquercoisa.Quandoofertaedemandacoincidem,opreçodotrabalhoédeterminado independentementeda
relaçãoentredemandaeoferta,querdizer,éseupreçonatural,que,dessemodo,tornou-seoobjetoquerealmentesedeveriaanalisar.
(608)
Essadeterminação independente já foi definidaporMarxna análise da compra e da vendade
forçadetrabalho.Estaéfixadapelovalordasmercadoriasnecessáriasàreproduçãodotrabalhadorem
dadopadrãodevida,emdadasociedadeeemdadaépoca.Continuarafalardovalordotrabalho,em
vezdedovalorda forçade trabalho, levaa todo tipodeconfusão.Marx tentaesclareceraquestão
fazendo(denovo!)umresumodateoriadomais-valornaspáginas609-10.
Masotrabalhadorpodeserremuneradodediferentesmodos–porhora,pordia,porsemana,por
peça.Ocapítulo18tratadosalárioportempoedofuncionamentodessesistema.Nãohánadamuito
problemático aqui, mas devemos nos lembrar de que o modo como ele é praticado no mercado
disfarça a relação social subjacente. O capítulo 19 fala do salário por peça, cuja vantagem para o
capitalista é que os trabalhadores são forçados a competir entre si em termos de produtividade
individual.Aconcorrênciaexcessivaentreostrabalhadoresprovocaoaumentodaprodutividadeea
queda dos salários, muito possivelmente abaixo do valor da força de trabalho. Por outro lado, a
concorrência entreos capitalistaspodeprovocarumaumentonos salários.E assimchegamos,mais
umavez, à ideiadequeháumpontodeequilíbrioemquea concorrência entreos capitalistas e a
concorrênciaentreostrabalhadoresproduzemumsalárioquerepresentaovaloradequadodaforçade
trabalho.
AseçãoVI,sobreosalário,culminanocapítulo20,emqueMarxexaminaasdiferençasnacionais
dossalários.Nesseponto,eledispensabrevementeatendênciaaanalisarocapitalismocomosefosse
umsistemafechado.Épossívelaquiexaminarumdesenvolvimentogeográficodesigualnumsistema
globalizado.Masaabordagemémuitobreveparapermitirmaioresconclusões.Seovalordaforçade
trabalho é fixado pelo valor da cesta demercadorias necessárias para sustentar o trabalhador num
dadopadrãodevida,eseessepadrãovariadeacordocomascondiçõesnaturais,oestadodalutade
classeseograudecivilizaçãodeumpaís,entãoovalordaforçadetrabalhotemdeapresentaruma
variação geográfica (de país para país, nesse caso) significativa. A história da luta de classes na
AlemanhaédiferentedahistóriadalutadeclassesnaGrã-BretanhaounaEspanha,porexemplo,e
por isso há diferenças nacionais entre os salários (na verdade, costuma haver também diferenças
regionais, mas Marx não se ocupa delas aqui). Do mesmo modo, variações de produtividade nas
indústrias que produzem gêneros de primeira necessidade em diferentes partes do mundo geram
diferençasnovalorda forçade trabalhoenas taxasdesalários.Umsalárionominalbaixonumpaís
altamenteprodutivotraduz-senumsaláriorealmaior,evice-versa,porqueostrabalhadorescompram
maisprodutoscomossaláriosquerecebem(oqueéchamadohojedeparidadedopoderdecompra).
Oqueaconteceentãocomocomércioentrepaísessobessascondições,ecomoseráaconcorrência
entre os diferentes países? Marx não trata a fundo dessa questão; ele parece mais interessado na
diferenciação entre salários reais e nominais, causada, em primeiro lugar, pela variação de
produtividadenasindústriasdegênerosdeprimeiranecessidadenosdiversospaíses.Oresultadoserá
um contraste entre os modos como o capitalismo se desenvolve e como o mais-valor é
estrategicamente buscado e extraído nos diferentes países. Se Marx tivesse se aprofundado nessa
questão,muitoprovavelmenteoresultadoseriaumsérioquestionamentodadoutrinaricardianada
vantagemcomparativadocomércioexterior,mas,poralgumarazão,eledecidiunãodesenvolveressa
linha de argumentação.Devodizer que achodifícil que alguém se entusiasme com esses capítulos
sobreosalário,umavezqueasideiassãobastanteóbviasearedaçãoéumtantoprosaica.
SEÇÃOVII:OPROCESSODEACUMULAÇÃODOCAPITAL
AseçãoVII,porsuavez,éimensamenteinteressanteericadeinsights,porqueéaquiqueMarxtrata
do“processodeacumulaçãodocapital”comoumtodo.Eleconstróioquepoderiaserchamadode
“macroanálise” das dinâmicas domodo de produção capitalista. Esse é, sem dúvida, o argumento
culminantedoLivroId’Ocapital.Todooconjuntodeinsightsanterioreséreunidoaquiparacriaro
quehojepoderíamoschamardesériede“modelos”dedinâmicascapitalistas.Noentanto,évitalter
emmente,durantealeituradaseçãoVII,anaturezadospressupostos.AsconclusõesdeMarxnãosão
afirmações universais, mas achados contingentes, baseados e limitados por seus pressupostos.
Esquecer-se disso é um risco.Há um grande número de comentários sobre a obra deMarx, tanto
favoráveis quanto desfavoráveis, que caem em sérios erros de interpretação porque negligenciamo
impacto desses pressupostos. Uma das teses mais famosas apresentadas aqui, por exemplo, é a
tendênciaaoempobrecimentocrescentedoproletariadoeàproduçãodeumadesigualdadecadavez
maiorentreasclasses.EssatesesebaseianospressupostosdeMarxe,quandoessespressupostossão
abrandadosousubstituídos,atesenãonecessariamentesesustenta.Ficoextremamenteirritadocom
tentativasdeaprovaroureprovarosachadosdeMarxnessescapítuloscomoseeleapresentassesuas
conclusõescomoverdadesuniversais,enãocomoproposiçõescontingentes.
MarxespecificaseuspressupostosnopreâmbulodaseçãoVII.Eleafirma:
Aprimeiracondiçãodaacumulaçãoéqueocapitalistatenhaconseguidovendersuasmercadoriasereconverteremcapitalamaiorparte
dodinheiroassimobtido.Emseguida,pressupõe-sequeocapitalpercorraseuprocessodecirculaçãodemodonormal.Aanálisemais
detalhadadesseprocessopertenceaoLivroIIdestaobra.(639)
O“modonormal”implicaqueoscapitalistasnãoencontramnenhumproblemaparavenderseus
produtos por seu valor nomercado ou recolocar na produção omais-valor que ganham. Portanto,
todas asmercadorias são negociadas por seu valor.Não há superprodução ou subprodução; tudo é
negociadoemequilíbrio.Emparticular,nãohánenhumproblemaparaencontrarummercado,assim
comonãohánenhumafaltadedemandaefetiva.Seriaesseumpressupostorazoável?Arespostaé:de
modo nenhum, porque ele exclui um dos principais aspectos da formação de crises, aquele que
predominou, por exemplo, na Grande Depressão dos anos 1930 e tornou-se central nas teorias
keynesianas, qual seja, a falta de demanda efetiva.Marx abandona esses pressupostos nos volumes
posteriores, mas é inteiramente fiel a eles nos três capítulos seguintes. Desconsiderar a demanda
efetivapermiteaeleidentificaraspectosdadinâmicacapitalistaque,deoutromodo,permaneceriam
obscuros.
Osegundopressupostoéqueadivisãodomais-valoremlucrodaempresa(ataxaderetornodo
capital industrial), lucrodocapitalcomercial, juro,rendae impostos(Marxnãoincluiesteúltimo)
nãotemefeitoalgum.Naprática,osprodutorescapitalistastêmdecompartilharpartedomais-valor
criadoeapropriadocomcapitalistasqueexecutamoutrasfunções.“Omais-valorsedivide,assim,em
diversaspartes.Seusfragmentoscabemadiferentescategoriasdepessoaserecebemformasdistintas,
independentesentresi,comoolucro,ojuro,oganhocomercial”–olucrodocomerciante–,“arenda
fundiária”,osimpostosetc.“Taisformasmodificadasdomais-valorsópoderãosertratadasnoLivro
III” (639). Com efeito, Marx pressupõe que há uma classe capitalista formada exclusivamente de
capitalistas industriais. No Livro III d’O capital, torna-se claro que o capital a juros, o capital
financeiro, o capital comercial e o capital fundiário desempenham um papel considerável na
compreensão da dinâmica geral do capitalismo. Aqui, porém, esses aspectos são deixados de lado.
Temosapenasummodeloaltamentesimplificadodecomofuncionaaacumulaçãodocapitale,como
todomodelodessetipo,eleservesomentenamedidadoquepermitemseuspressupostos.
Outropressupostotácitoéexplicitadoumpoucomaisadiante,numanotaderodapé.
Abstraímos,aqui,docomérciodeexportação,pormeiodoqualumanaçãopodeconverterartigosdeluxoemmeiosdeproduçãoou
de subsistência, e vice-versa. Para conceber o objeto da investigação em sua pureza, livre de circunstâncias acessórias perturbadoras,
temosdeconsiderar,aqui,omundocomercialcomoumanaçãoepressuporqueaproduçãocapitalistaseconsolidouemtodapartee
apoderou-sedetodososramosindustriais.(656,nota21a)
Marx pressupõe um sistema fechado, em que o capital circula de modo “normal”. Esse é um
pressupostoimportanteeclaramenterestritivo.Oquetemosaquiéapenasummodelosimplificado
dadinâmicadeacumulaçãodocapital,derivadodateoriadomais-valorabsolutoerelativooperando
num sistema fechado.Como veremos, omodelo émuito esclarecedor quanto a certos aspectos do
capitalismo.
Apenas para situar os capítulos seguintes em seu contexto, vale a pena compará-los com o que
temos nos outros volumes d’O capital. O Livro II confronta aquilo que é constante no Livro I: a
dificuldadedeencontrarmercadoselevá-losaumestadodeequilíbriotalqueoprocesso“normal”da
circulação do capital possa ocorrer.Mas oLivro II tende amanter constante aquilo que é tratado
comoalgodinâmiconoLivroI,istoé,aextraçãodemais-valorabsolutoerelativo,rápidasmudanças
de tecnologia eprodutividade,determinações cambiantesdovalorda forçade trabalho.OLivro II
imaginaummundodetecnologiaconstanteerelaçõesdetrabalhoestáveis!Elelevantaasseguintes
questões:comoocapitalpodecircularsemdificuldade(dadososdiferentestemposdefaturamento,
além dos problemas resultantes da circulação do capital fixo de diferentes durações) e sempre
encontrarmercadoparaomais-valorqueestásendoproduzido?Considerandoqueaacumulaçãodo
capitalexigeexpansão,comooscapitalistasconseguemencontrarmercado, seaclasse trabalhadora
está cada vezmais pobre e os capitalistas estão reinvestindo?De fato, não há nenhumamenção à
pauperização no fim do Livro II. O problema é assegurar o “consumo racional” das classes
trabalhadoras para ajudar a absorção dos excedentes de capital que são produzidos. O modelo
apresentadoaquiéofamosoexpedientefordistadebaixarosalárioparacincodólaresporjornadade
oito horas de trabalho, auxiliado por um exército de assistentes sociais cuja tarefa era fazer os
operáriosconsumiremseussalários“racionalmente”dopontodevistadocapital.Hoje,nosEstados
Unidos,vivemosnummundoemquecercade70%daforçaqueimpulsionaaeconomiadependedo
consumismomovido a dívidas, o que é perfeitamente compreensível, de acordo com a análise que
encontramosnoLivroII,masnãonoLivroI.
Está claro que há uma contradição fundamental entre as condições de equilíbrio definidas no
Livro I e aquelas definidas no Livro II. Se as coisas vão bem de acordo com a análise do Livro I,
provavelmentevãomuitomaldopontodevistadaanálisedoLivroII,evice-versa.Osdoismodelos
da dinâmica de acumulação do capital não concordam, e nem podem concordar. Isso serve de
prefáciopara adiscussão sobre a inevitabilidadedas crisesnoLivro III,mas a expressão“movidoa
dívidas” que acrescentei ao “consumismo” indica que os termos da distribuição (financiamento,
créditoejuro)podemterumpapelimportantenadinâmicadocapitalismo,emvezdesimplesmente
um papel auxiliar. O poder do consumidor, fortalecido pelo fato de todos (inclusive os governos)
usaremcartõesdecréditoeseendividarematéopescoço,foiessencialparaaestabilização(talcomo
existehoje)docapitalismoglobalnosúltimoscinquentaanos.Nadadissoéencontradonoscapítulos
seguintes. Mas o modelo altamente simplificado de acumulação do capital que Marx constrói e
analisaéextremamenterevelador,alémdeprofundamenterelevanteparaacompreensãodahistória
recente doneoliberalismo, que se caracterizoupela desindustrialização, pelodesemprego estrutural
crônico, pela insegurança crescente do trabalho e por surtos de desigualdade social. Em suma,
passamos muito tempo no mundo do Livro I nos últimos trinta anos. Os problemas da demanda
efetivareveladosnoLivroIIforamtemporariamenteresolvidospelosexcessosdosistemadecrédito,
comconsequênciasprevisivelmentedesastrosas.
CAPÍTULO21:REPRODUÇÃOSIMPLES
OprimeirocapítulodaseçãoVIIapresentaasqualidadesdeumcapitalismoficcionalcaracterizado
pela reprodução simples. Como a acumulação do capital por meio da extração de mais-valor é
reproduzida e perpetuada? Para responder a essa pergunta, temos de entender a acumulação do
capitalemsua“interdependênciacontínua”eno“fluxoconstantedesuarenovação”,demodoque
“todo processo social de produção é simultaneamente processo de reprodução”. Além isso, “se a
produçãotemformacapitalista,tambémotemareprodução”(641).
Partedoqueocapitalistaapropriaemtermosdenovariquezatemdeserinvestidonareprodução
dosistema.Masissosignificaqueomais-valortemderetornaràreproduçãosimples.“Ora,embora
esta[areproduçãosimples]sejamerarepetiçãodoprocessodeproduçãonamesmaescala,essamera
repetição ou continuidade imprime ao processo certas características novas ou, antes, dissolve as
característicasaparentesqueeleostentavaquandotranscorriademaneiraisolada”(642).Atéaqui,a
análiseseconcentrouapenasnaproduçãodomais-valorcomoumeventoproduzidodeumasóvez.
Masascoisassemostrammuitodiferentesquandoexaminadascomoumprocessocontínuoaolongo
dotempo.
O que reflui continuamente para o trabalhador na forma do salário é uma parte do produto continuamente reproduzido por ele
mesmo.Semdúvida,ocapitalistalhepagaemdinheiroovalordasmercadorias[istoé,ovalordaforçadetrabalho].Masodinheiroé
apenas a forma transformada do produto do trabalho. Enquanto o trabalhador converte uma parte dos meios de produção em
produto,umapartedeseuprodutoanteriorsereconverteemdinheiro.Écomseutrabalhodasemanaanterioroudoúltimosemestre
que serápago seu trabalhodehojeoudopróximosemestre.A ilusãogeradapela forma-dinheirodesaparecede imediatoassimque
consideramosnãoocapitalistaeotrabalhadorindividuais,masaclassecapitalistaeaclassetrabalhadora.(642)
Asrelaçõesdeclasse,enãooscontratosentreindivíduos,ocupamagoraopensamentodeMarx.
Aclassecapitalistaentregaconstantementeàclassetrabalhadora,sobaforma-dinheiro,títulossobrepartedoprodutoproduzidopor
estaúltimaeapropriadopelaprimeira.Demodoigualmenteconstante,otrabalhadordevolveessestítulosàclassecapitalistae,assim,
delaobtémapartedeseupróprioprodutoquecabeaelepróprio.Aforma-mercadoriadoprodutoeaforma-dinheirodamercadoria
disfarçamatransação.(643)
A imagemque isso transmite é que a classe trabalhadora se encontranuma relaçãode “loja de
fábrica” com a classe capitalista. Os trabalhadores recebem dinheiro pela força de trabalho que
vendemaoscapitalistasegastamessedinheirocomprandodevoltaumapartedaquelasmercadorias
queelesproduziramcoletivamente.Essarelaçãodelojadefábricaédissimuladapelosistemasalariale
nãoéfacilmentediscernívelquandoaanálisefocaapenasotrabalhadorindividual.Osignificadode
“capitalvariável”sofreoutramudança.Defato,ocorpodotrabalhador,dopontodevistadocapital,
éummeroinstrumentodetransmissãoparaacirculaçãodeumapartedocapital.Otrabalhadorestá
numa contínua versão do processoM-D-M.Mas, em vez de ver isso como uma relação simples e
linear,temosdepensá-laagoracomocontínuaecircular.Umapartedocapitalfluiàmedidaqueos
trabalhadoresincorporamvalornasmercadorias,recebemsaláriosemdinheiro,gastamodinheiroem
mercadorias, reproduzema simesmose retornamao trabalhonodia seguintepara incorporarmais
valornasmercadorias.Ostrabalhadoressemantêmvivosaofazercircularocapitalvariável.
Isso suscita algumas observações interessantes. Para começar, “o capital variável só perde o
significadodeumvalor adiantadoapartirdo fundoprópriodocapitalistaquandoconsideramoso
processocapitalistadeproduçãonofluxoconstantedesuarenovação”.Oscapitalistassópagamseus
trabalhadoresdepoisqueotrabalhoérealizado.Portanto,ostrabalhadoresadiantamaoscapitalistaso
valor de sua força de trabalho. Não há garantia alguma de que o trabalhador será pago (se, por
exemplo, o capitalista declarar falência nessemeio-tempo). Na China, nos últimos anos, tem sido
muito comum não pagar os salários devidos, em particular na área da construção civil.Marx está
interessado em remodelar de maneira ainda mais radical nossa interpretação da acumulação do
capital.Dizeleque“esseprocessotemdetercomeçadoemalgumlugareemalgummomento.Do
pontodevistaquedesenvolvemosatéaqui,portanto,éprovávelqueocapitalistasetenhaconvertido
empossuidordedinheiroemvirtudedeumaacumulaçãooriginária”(644).Esseconceitoformaráa
basedadiscussãosobreasorigensdocapitalismonocapítulo24.Aqui,eleafirmaapenasquedeveter
havidoummomentooriginalemqueoscapitalistas,deumamaneiraoudeoutra,tiveramrecursos
suficientesparainiciaresseprocessodeacumulaçãodecapital.Aperguntaqueelefazaquié:comoe
porquemessecapitaloriginaléreproduzido?
Marxdáumexemplo:seumcapitalistateminicialmentemillibraseasinvesteemcapitalvariável
ecapitalconstanteparaproduzirummais-valordeduzentaslibras,eleseapropriadasduzentaslibras
como se fossem capital seu e ainda recebede volta asmil libras iniciais.Mas o capital original foi
preservadopeloconsumoprodutivodostrabalhadores,eomais-valorfoiproduzidoapartirdotempo
de trabalho excedente dos trabalhadores. Suponhamos que, no ano seguinte, o capitalista volte a
investirmillibras(tendoconsumidooexcedente)comoobjetivodeproduziroutrasduzentaslibras
demais-valor.Após cinco anosde repetiçãodoprocesso, os trabalhadoresproduzirammil libras de
mais-valor, o equivalente ao capital original do capitalista. Marx desenvolve aqui o argumento
políticodequeocapitalista,mesmoquetivessedireitoàquelasmillibrasiniciais,certamenteperdeo
direitoaocapitaloriginal,depoisdecincoanosproduzindoduzentaslibrasdemais-valorporano.Por
direito, as mil libras pertencem aos trabalhadores, dado o princípio lockiano (queMarx não cita,
apesardeestarclaroqueotememmente)dequeosdireitosdepropriedadecabemàquelesquecriam
valor aomisturar seu trabalho à terra. São os trabalhadores que produzemomais-valor, e este, por
direito,deveriapertenceraeles.
O caráter políticodesse argumento é importante,mas contraria radicalmentemodosdepensar
profundamente arraigados. Ficaríamos surpresos se nos informassem que o dinheiro original que
depositamos numa caderneta de poupança por 5% de juros, por exemplo, não nos pertence mais
depoisdealgunsanos.Noquenosdizrespeito,ocapitalismoparecesercapazdebotarseuspróprios
ovosdeouro.Masélegítimoperguntardeondevêmos5%,e,seMarxestácerto,elessópodemvir
damobilizaçãoedaapropriaçãodomais-valordealguém,emalgumlugar.Éinquietantepensarque
esses5%talvezvenhamdaexploraçãocrueldetrabalhovivonaprovínciadeCantão,naChina.Nossa
superestruturalegalinsisteempreservarosdireitosoriginaisdepropriedade,assimcomoodireitode
usar esses direitos para ter lucro.Mas os direitos de propriedade resultam do poder de classe do
capital de extrair e manter o controle dos excedentes, porque a força de trabalho se tornou, por
processoshistóricosespecíficos,umamercadoriacompradaevendidanomercadodetrabalho.Oque
Marxdizaquiimplicaque,paradesafiarocapitalismo,énecessáriodesafiarnãoapenasanoçãode
direitos,omodocomoaspessoaspensamsobreosdireitoseapropriedade,mastambémosprocessos
materiaispormeiodosquaisosexcedentes sãocriadoseapropriadospelocapital.Assim,depoisde
cincoanos,
Nem um átomo de valor de seu antigo capital continua a existir. [...] Abstraindo-se inteiramente de toda acumulação, a mera
continuidade do processo de produção, ou a reprodução simples, após um período mais ou menos longo, transforma
necessariamentetodocapitalemcapitalacumuladooumais-valorcapitalizado.Aindaque,nomomentoemqueentrounoprocessode
produção,essecapitalfossepropriedadeadquiridamedianteotrabalhopessoaldaquelequeoaplicou,maiscedooumaistardeelese
converteria emvalor apropriado sem equivalente, emmaterialização, seja em formamonetária, seja emoutra, de trabalho alheionão
pago.(645)
Há um exemplo interessante de um plano prático que reflete omodomarxiano de pensar (se
derivouounãodeMarx,issoeunãosei).UmeconomistasuecochamadoRudolfMeidner,queteve
umpapel fundamental na elaboração do altamente bem-sucedidoEstadode bem-estar social sueco
nosanos1960einíciodosanos1970,formulouaquelequeseriaconhecidocomooPlanoMeidner.
Para enfrentar a inflação, os poderosos sindicatos seriam estimulados a aceitar um arrocho salarial
coletivo.Em troca,os lucros extras (mais-valor)que se somariamaocapital emconsequênciadesse
arrocho seriam depositados num fundo de investimento social que seria controlado pelos
trabalhadoresecomprariaaçõesdeempresascapitalistas.Asaçõesseriaminalienáveise,comotempo
(maisdoqueos cinco anosdo exemplodeMarx), o controleda empresapassariaparao fundode
investimentosocial.Emoutraspalavras,aclassecapitalistaserialiteralmentecomprada(demaneira
pacífica) ao longo do tempo e substituída pelo controle total dos operários sobre as decisões de
investimento.Oplanofoirecebidocomhorrorpelaclassecapitalista(queprontamenteconcedeuo
chamadoPrêmioNobeldeEconomia–naverdade,esseprêmionãotemnadaavercomNobel–a
neoliberais como Friedrich Hayek e Milton Friedman, formou think tanks antissindicalistas e
mobilizou uma oposição feroz na mídia). O governo social-democrata da época nunca tentou
implementaroplano;contudo,quandopensamosnele,aideia(muitomaiscomplicadanosdetalhes,
éclaro)éextremamentecoerentecomoargumentodeMarx,eofereceaomesmotempoummodo
pacíficodecompraropodercapitalista.Porquenãopensarmaisnisso?
Quandoassociadoàrelaçãode“lojadefábrica”entreotrabalhoeocapital,oargumentodeMarx
conduzainsightsaindamaisprofundos,aomesmotempoquelevantaquestõescruciais(e,nessecaso,
infelizmente não respondidas). “Como antes de [o trabalhador] entrar no processo seu próprio
trabalho já está estranhado” – isto é, o trabalhador cedeu o valor de uso da força de trabalho ao
capitalista–,“tendosidoapropriadopelocapitalistaeincorporadoaocapital,essetrabalhoseobjetiva
continuamente,nodecorrerdoprocesso, emproduto alheio.”Nemoprodutonemo trabalhonele
incorporadopertencemaotrabalhador.
Porconseguinte,oprópriotrabalhadorproduzconstantementeariquezaobjetivacomocapital,comopoderquelheéestranho,queo
dominaeexplora,eocapitalistaproduzdeformaigualmentecontínuaaforçadetrabalhocomofontesubjetivaeabstrataderiqueza,
separadadeseusprópriosmeiosdeobjetivaçãoeefetivação,existentenameracorporeidadedotrabalhador;numapalavra,produzo
trabalhadorcomoassalariado.Essaconstantereproduçãoouperpetuaçãodotrabalhadoréasinequanon[condiçãoindispensável]da
produçãocapitalista.(645-6)
Pensoqueessaéumaformulaçãointeressanteedesconcertante,dignadeumareflexãoséria.“O
próprio trabalhadorproduzconstantementea riquezaobjetiva comocapital”, e essa riquezaobjetiva
torna-seumpoderestranhoqueagoradominaotrabalhador.Otrabalhadorproduzoinstrumentode
sua própria dominação! Esse é um tema que ressoa e reverbera por todoO capital. Ele levanta a
questãohistórica geral da tendência dos seres humanos a produzir os instrumentos de sua própria
dominação.Nessecaso,porém,ocapitalistaproduza fonte subjetivada riqueza,queé abstrata,por
intermédioda“corporeidadedotrabalhador”,queé“separadodeseusprópriosmeiosdeobjetivaçãoe
efetivação”.Ocapitalistaproduze reproduzo trabalhadorcomoosujeitoativo–porémalienado–
capazdeproduzirvalor.Eisso,notebem,éacondiçãofundamentalesocialmentenecessáriaparaa
sobrevivênciaeamanutençãodomododeproduçãocapitalista.
O trabalhador engaja-se no consumo produtivo e no consumo individual (uma distinção que
encontramosantes).Ostrabalhadoresnãosóproduzemoequivalentedovalordocapitalvariável,isto
é,suaprópriavida,comotambémtransfereme,dessemodo,reproduzemovalordocapitalconstante.
Por meio de seu trabalho, os trabalhadores reproduzem tanto o capital quanto o trabalhador. Os
capítulos sobre a divisão do trabalho e a maquinaria mostraram como o trabalhador foi
necessariamente transformado num apêndice do capital no interior do processo de trabalho.Mas
agoravemoso trabalhadorcomoum“apêndicedocapital”nomercadoeemsuacasa.É istoquea
circulação de capital variável realmente significa: o capital circula pelo corpo do trabalhador e
reproduzotrabalhadorcomoumsujeitoativoquereproduzocapital.Masotrabalhadornãotemde
ser reproduzido apenas como uma pessoa individual. “A manutenção e a reprodução da classe
trabalhadorapermanecemumacondiçãonecessáriaparaareproduçãodocapital”(647).
Issolevantaumasériedequestões,tratadasporMarxdemodomuitosuperficial.Aspolíticasde
reprodução de classe, diz ele, erambrutais e simples em sua época. “O capitalista pode abandonar
confiadamente”atarefadiáriadareproduçãodeclasse“aoimpulsodeautoconservaçãoeprocriação
dos trabalhadores. Ele apenas se preocupa com limitar ao máximo o consumo individual dos
trabalhadores,mantendo-onos limites donecessário” (647).Contudo,Marxpassa ao largode algo
importante,querequerumaanálisemaisprofunda.Aimensaefundamentalquestãodareprodução
daclasse trabalhadoraenvolvequestõesdepropagação,autopreservação, relações sociaisno interior
da classe e uma série de outros aspectos que Marx deixa convenientemente para os próprios
trabalhadores resolverem, porque é isso que o capital supostamente faz. Na verdade, mesmo num
Estado controlado por capitalistas e proprietários fundiários, as questões a respeito da reprodução
socialjamaissãodeixadasunicamenteaostrabalhadores,ecertamenteascondiçõesdalutadeclasses
e “o grau civilizacional” de um país têm o mesmo peso – se não maior – nesse caso do que nas
questõesrelativasà jornadadetrabalho.AdiscussãoanteriorsobreosartigosdasLeisFabrisquese
referemà educação sãoumexemploda intervençãodoEstadonapolítica de reproduçãoda classe
trabalhadora,eoEstadosemprefoiativonocampodasaúdepública(acóleratinhaoestranhohábito
detransporasfronteirasdeclasse)edosdireitosreprodutivos,daspolíticasdecontrolepopulacional
etc.Questõesdessetiponecessitariamdeumaconsideraçãomuitomaisdetalhadadoqueafornecida
porMarx.Masseuargumentogeraléacertado.Areproduçãosimplesnãoéumaquestão técnica.A
questãofundamentaléareproduçãodarelaçãodeclasse.
Em seu próprio desenrolar, portanto, o processo capitalista de produção reproduz a cisão entre força de trabalho e condições de
trabalho.Com isso, ele reproduz e eterniza as condições de exploraçãodo trabalhador.Ele força permanentemente o trabalhador a
vender sua força de trabalho para viver e capacita o capitalista a comprá-la para enriquecer. Já não émais o acaso que contrapõe o
capitalista eo trabalhadornomercado, comocompradorevendedor.Éaversatilidadecaracterísticadoprocessoque faz comqueo
trabalhadortenhaderetornarconstantementeaomercadocomovendedordesuaforçadetrabalhoeconverteseupróprioprodutono
meiodecompranasmãosdoprimeiro.Narealidade,otrabalhadorpertenceaocapitalaindaantesdevender-seaocapitalista.(652)
O resultado, conclui Marx, é que “o processo capitalista de produção, considerado em seu
conjuntooucomoprocessode reprodução,produznãoapenasmercadorias,nãoapenasmais-valor,
masproduzereproduzaprópriarelaçãocapitalista:deumlado,ocapitalista,dooutro,otrabalhador
assalariado”(653).
CAPÍTULO22:TRANSFORMAÇÃODEMAIS-VALOREMCAPITAL
Porumasériederazões,comoveremosembreve,aideiadeummododeproduçãocapitalistanuma
condição estável, de não crescimento, é improvável, se não totalmente impossível. O capítulo 22
examina como e por que omais-valor ganho ontem é transformado no novo capitalmonetário de
amanhã. A resultante “reprodução do capital em escala progressiva” envolve a incorporação dessas
“forças de trabalho suplementares e de diversas faixas etárias que a classe trabalhadora lhe fornece
anualmenteaosmeiosdeproduçãoadicionaisjácontidosnaproduçãoanual”.Paraqueissoaconteça,
énecessárioqueocapitalproduzaprimeiroascondiçõesparasuaprópriaexpansão.
Paraacumular,énecessáriotransformarumapartedomais-produtoemcapital.Mas,semfazermilagres,sópodemostransformarem
capitalaquiloqueéutilizávelnoprocessodetrabalho,istoé,osmeiosdeproduçãoe,alémdeles,aquilocomqueotrabalhadorpode
sustentar-se,istoé,osmeiosdesubsistência.Porconseguinte,éprecisoempregarumapartedomais-trabalhoanualnafabricaçãode
meios de produção e de subsistência adicionais [...].Numa palavra: omais-valor só pode ser convertido em capital porque omais-
produto,doqualeleéovalor,jácontémoscomponentesmateriaisdeumnovocapital.(656)
Aproduçãodeartigosdeluxooudeoutrosprodutossemutilidade(comoequipamentomilitare
monumentos religiosos ou aoEstado) não tem importância, independentemente de quão lucrativa
possa ser. Os novos meios de subsistência e produção têm de ser produzidos e organizados de
antemão. Então, e apenas então, “o ciclo da reprodução simples se modifica e se transforma [...]
perfazendo uma espiral” (657). Outro modo de ver isso (de acordo com a análise do capítulo
precedente)éodeque“aclassetrabalhadoraquecriou,comseumais-trabalhorealizadonesteano,o
capital que no próximo ano ocupará trabalho adicional. Isso é o que se denomina”, dizMarx com
profundaironia,“gerarcapitalpormeiodecapital”.
No entanto, o trabalhador é sujeito ativo nesse processo. Marx continua a pressupor que os
processosdemercadoobedecem“continuamente à lei da trocademercadorias, e queo capitalista
semprecompraaforçadetrabalhoeotrabalhadorsempreavende,esupomosqueporseuvalorreal”.
Maisumavez,enfatizoaimportânciadessespressupostosnaanálisedeMarx.“Éevidentequealeida
apropriaçãoouleidapropriedadeprivada,leiquesefundanaproduçãoecirculaçãodemercadorias,
converte-seemseudiretooposto,obedecendoàsuadialéticaprópria,internaeinevitável.”Ficaclara,
assim, a inversão do princípio lockiano da mistura de trabalho e terra para criar valor como
fundamentododireitoàpropriedadeprivada.
Atrocadeequivalentes,queapareciacomoaoperaçãooriginal,distorceu-seapontode,agora,atrocaserealizarapenasnaaparência,
umavezque,emprimeirolugar,aprópriapartedocapitaltrocadapelaforçadetrabalhonãoémaisdoqueumapartedoprodutodo
trabalhoalheio,apropriadosemequivalente.(659)
Consequentemente,“arelaçãodetrocaentreocapitalistaeotrabalhadorseconverte,portanto,
emmeraaparênciacorrespondenteaoprocessodecirculação,numameraforma,estranhaaopróprio
conteúdoequeapenasomistifica”(659).EMarxcontinua:
Acompraevendaconstantesdaforçadetrabalhoéaforma.Oconteúdoestánofatodequeocapitalistatrocasemcessarumaparte
do trabalho alheio já objetivado, do qual ele constantemente se apropria sem equivalente, por uma quantidade cada vez maior de
trabalhovivoalheio.Originalmente,odireitodepropriedadeapareciadiantedenóscomofundadonoprópriotrabalho.Nomínimo
esse suposto tinhadeseradmitido,porquantoapenaspossuidoresdemercadoriascomiguaisdireitos seconfrontavamunscomos
outros,mas omeio de apropriação damercadoria alheia era apenas a alienação damercadoria própria, e esta só podia se produzir
medianteotrabalho.Apropriedadeapareceagora,doladodocapitalista,comodireitoaapropriar-sedetrabalhoalheionãopagoou
deseuproduto;doladodotrabalhador,comoimpossibilidadedeapropriar-sedeseupróprioproduto.Acisãoentrepropriedadee
trabalhoconverte-senaconsequêncianecessáriadeumaleiqueaparentementepartiadaidentidadedeambos.(659)
Nesseponto,Marxvolta(maisumavez!)àquestãodecomoatrocadeequivalentespodeproduzir
um não equivalente, isto é, mais-valor, e como a noção original de direitos de propriedade é
invertida, tornando-se um direito de apropriação do trabalho de outros. O que vem a seguir é,
portanto,aenésimarepetiçãoda teoriadomais-valor (sevocêainda temalgumadúvidaa respeito
dessateoria,leiacomatençãoapassagemdaspáginas660-1).Marxprossegue,noentanto,eobserva
queoquepodeserdeduzidodopontodevistadoindivíduonãocostumafuncionardopontodevista
dasrelaçõesdeclasse.
Certamente,oquadroéinteiramentediferentequandoconsideramosaproduçãocapitalistanofluxoininterruptodesuarenovaçãoe,
em vez do capitalista individual e do trabalhador individual, consideramos a totalidade, a classe capitalista e, diante dela, a classe
trabalhadora.Comisso,porém,introduziríamosumpadrãodemedidatotalmenteestranhoàproduçãodemercadorias.(661)
Issoaconteceporquealiberdade,aigualdade,apropriedadeeBenthamprevalecemnomercado,
tornandoinvisívelaproduçãodemais-valornoprocessodetrabalho.
Esse mesmo direito segue em vigor como no início, quando o produto pertencia ao produtor, e este, trocando equivalente por
equivalente, sópodia enriquecermediante seupróprio trabalho, e também segue emvigornoperíodo capitalista, quando a riqueza
socialsetorna,emproporçãocadavezmaior,apropriedadedaquelesemcondiçõesdeseapropriarsempredenovodotrabalhonão
pago de outrem. [...] Esse resultado se torna inevitável tão logo o próprio trabalhador vende livremente a força de trabalho como
mercadoria.(662)
Asliberdadeseosdireitosburguesesmascaramaexploraçãoeaalienação.“Namesmamedidaem
que,deacordocomsuasprópriasleisimanentes,ela[aproduçãodemercadorias]sedesenvolveatése
converteremproduçãocapitalista,asleisdepropriedadequeregulamaproduçãodemercadoriasse
convertem em leis da apropriação capitalista” (662). Para usarmos a linguagem do prefácio da
Contribuição à crítica da economia política, há um ajuste superestrutural para legitimar e legalizar a
apropriaçãodemais-valor,recorrendoaconceitosdedireitosdepropriedadeprivada.Daíarejeição
deMarxatodaequalquertentativadeuniversalizarasconcepçõesburguesasdedireitoejustiça.Elas
não fazemmaisdoque forneceracobertura legal, ideológicae institucional socialmentenecessária
paraaproduçãodocapitalnumaescalacadavezmaior.
A economia política clássica, cheia de concepções burguesas de direitos, levou a “concepções
errôneasdareproduçãoemescalaampliada”(comodizotítulodoitem2).Paracomeçar,arelação
entreaacumulaçãodocapitaleoentesouramento(poupança) foimantidanumestadodeextrema
confusão. No entanto, a economia política clássica está certa “quando acentua como momento
característicodoprocessodeacumulaçãooconsumodomais-produtoportrabalhadoresprodutivos,
emvezdeporimprodutivos”(664).Mas,peladefiniçãomarxianade“produtivo”,issosignificaqueo
mais-produto de ontem tem de servir para a criação de mais mais-produto e mais-valor hoje. As
dinâmicas desse processo são complicadas. A economia política clássica focou exclusivamente o
trabalhoextrae,portanto,ocapitalvariávelextra(aumentoemgastoscomsalários)queeraexigido.
Contudo,assimcomonocasodaúltimahoradeSenior,daqualMarxzombou,aeconomiapolítica
clássicatendeuaseesquecerinteiramentedanecessidadedeobternovosmeiosdeprodução(capital
constante) a cada rodada de acumulação (que acarretoumudanças na relação com a natureza por
meio da extração de matéria-prima). Essa era a segunda “concepção errônea” queMarx tinha de
corrigir.
Isso nos leva à pergunta fundamental: se os capitalistas têmo comandodomais-valor, por que
simplesmentenãooconsomemeaproveitamavida?Umapartedomais-valoré,defato,consumida
pelos capitalistas como renda. A classe capitalista consome uma parte domais-valor para satisfazer
seusprazeres.Masoutraparteéreinvestidacomocapital.Surgeentãooutrapergunta:oquegoverna
a relação entre o consumoda renda e o reinvestimento domais-valor como capital?A resposta de
Marxmereceumalongacitação.
Apenascomocapitalpersonificadoocapitalistatemumvalorhistóricoedispõedaqueledireitohistóricoàexistênciadeque,comodiz
o espirituoso Lichnovski, nenhuma data não dispõe
[b]
. Somente nesse caso sua própria necessidade transitória está incluída na
necessidadetransitóriadomododeproduçãocapitalista.Aindaassim,porém,suaforçamotriznãoéovalordeusoeafruição,maso
valordetrocaeseuincremento.(667)
Oscapitalistas,dizMarx,estãonecessariamenteinteressadosnaacumulaçãodopodersocialem
forma-dinheiroe,portanto,sãoestimuladosporela.
Como fanático da valorização do valor, o capitalista força inescrupulosamente a humanidade à produção pela produção e,
consequentemente,aumdesenvolvimentodasforçasprodutivassociaiseàcriaçãodecondiçõesmateriaisdeproduçãoqueconstituem
asúnicasbasesreaispossíveisdeumaformasuperiordesociedade,cujoprincípiofundamentaléoplenoelivredesenvolvimentode
cada indivíduo.O capitalista só é respeitável como personificação do capital. Como tal, ele partilha com o entesourador a pulsão
absolutadeenriquecimento.Masoquenesteaparececomomaniaindividual,nocapitalistaéefeitodomecanismosocial,noqualele
não é mais que uma engrenagem. Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista converte numa necessidade o aumento
progressivo do capital investido numa empresa industrial, e a concorrência impõe a cada capitalista individual, como leis coercitivas
externas,asleisimanentesdomododeproduçãocapitalista.Obriga-oaexpandircontinuamenteseucapitalafimdeconservá-lo,eele
nãopodeexpandi-losenãopormeiodaacumulaçãoprogressiva.(667)
O capitalista, segundo Marx, não tem uma liberdade real. Os pobres capitalistas são meras
engrenagensdeummecanismo;elestêmdereinvestir,porqueasleiscoercitivasdaconcorrênciaos
obrigamaisso.Comocapitalpersonificado,elestêmumapsicologiatãoconcentradanoaumentodo
valor de troca, na acumulação do poder social em forma-dinheiro ilimitada, que a acumulação de
dinheirosetornaofocofetichistadeseusdesejosmaisprofundos.Nissoresideasimilaridadeentreo
miserável e o capitalista. Ambos desejam poder social, mas os capitalistas procuram esse poder
colocando constantemente sua riqueza em circulação, ao passo que o miserável tenta manter sua
riquezadeixandodeusá-la.E se individualmenteos capitalistasderemalgumsinaldequeestão se
desviando de sua missão principal, as irritantes leis coercitivas da concorrência (mais uma vez
introduzidasnaargumentaçãocomafunçãoessencialdepoliciarosistema)ospõemnalinha.
Diantedessa realidade,os apologistasburgueses criamumanobre ficção.Oscapitalistas,dizem
eles,criamcapitalededicam-seàsuanobremissãodecriaraquela“formasuperiordesociedade”–
quemesmoMarxadmitequepodeserprodutodeseusesforços–pormeiodaabstinência!Devodizer
que,vivendoemNovaYork,jamaispresencieiumasituaçãoemqueaclassecapitalistasemostrasse
abstinente.Marxsugere,noentanto,queoscapitalistassedefrontamcomumdilemafaustiano.Eaté
citaFausto: “Duas almasmoram, ah!, em seupeito, eumaquer apartar-sedaoutra!” (620).Porum
lado, eles são forçadospelas leis coercitivasda concorrência a acumular e reinvestir;poroutro, são
atormentados pelo desejo de consumir. A abstinência forçada de consumo é transformada numa
ideologiadevirtudeburguesavoluntária.Olucropodeatéserinterpretadocomoumretornoobtido
graçasàvirtude!Eoreinvestimentotambéméumavirtude(elecriaempregos,porexemplo)emerece
seradmiradoerecompensado.TodosaquelescortesdeimpostosqueGeorgeW.Bushconcedeuaos
multimilionários durante seu governo foram interpretados como uma recompensa aos investidores
virtuosos, cuja abstinência tinha supostamente um papel crucial na criação de empregos e no
crescimentoeconômico.Ofatodeosricosseacostumaremrapidamenteafazerfestasde10milhões
dedólaresparacomemorara formaturados filhosouoaniversáriodaesposanãocasoumuitobem
com a teoria. No entanto, Marx, ainda fortemente influenciado pela história do capitalismo de
Manchester, sugere que a luta entre as “duas almas” que habitam o peito do capitalista teve uma
evoluçãogradual.Defato,nosestágiosiniciais,oscapitalistasforamforçadosaseabsterdoconsumo
(daí a importânciada ideologiadosquakers entreosprimeiros capitalistas ingleses),mas, àmedida
queaespiraldaacumulaçãoaumentavacadavezmais,asrestriçõesaoconsumoseabrandaram.Em
Manchester,“oúltimoterçodoséculoXVIII,‘foidegrandeluxoeesbanjamento’”,dizMarx,citando
umrelatode1795(670).Sobtaiscondições,“aproduçãoeareproduçãoemescalaampliadaseguem
aqui seu curso, sem qualquer ingerência daquele santo milagroso, o cavaleiro da triste figura, o
capitalista‘abstinente’”(674).
Movidos pelas leis coercitivas da concorrência e pelo desejo de aumentar seu poder social em
forma-dinheiro ilimitada, os capitalistas reinvestemporque esse é o únicomeio de permanecer no
negócioemanter suaposiçãodeclasse. Isso levaMarxaumaconclusão fundamentala respeitoda
essênciadomododeproduçãocapitalista.
Acumulai,acumulai!EisMoiséseosprofetas!“Aindústriaprovêomaterialqueapoupançaacumula.”Portanto,poupai,poupai,isto
é, reconverteiemcapitalamaiorpartepossíveldomais-valoroudomais-produto!Aacumulaçãopelaacumulação,aproduçãopela
produção:nessafórmula,aeconomiaclássicaexpressouavocaçãohistóricadoperíodoburguês.Emnenhuminstanteelaseenganou
sobre as dores de parto da riqueza,mas de que adianta lamentar-se diante da necessidade histórica? Se para a economia clássica o
proletárionãoeramaisqueumamáquinaparaaproduçãodemais-valor,tambémocapitalista,paraela,eraapenasumamáquinapara
atransformaçãodessemais-valoremmais-capital.(670-1)
Isso significa simplesmente que o capitalismo procura sempre o crescimento.Não pode existir
uma ordem social capitalista que não seja fundada na busca do crescimento e da acumulação em
escalacadavezmaior.“Aacumulaçãopelaacumulação,aproduçãopelaprodução.”Leiaasmatérias
diáriassobreasituaçãodaeconomia–doqueaspessoasfalamotempointeiro?Crescimento!Onde
está o crescimento? Como vamos crescer? Pouco crescimento define uma recessão, assim como
crescimento negativo define uma depressão. Um crescimento (composto) de 1% ou 2% não é
suficiente; precisamos de 3% no mínimo e a economia só pode ser considerada “saudável” se
chegarmosa4%.EvejaaChina:elatemtaxasconstantesde10%decrescimentohátantosanos.Essa
é a verdadeira história de sucesso nos tempos atuais, em comparação com o Japão, que depois de
décadasdecrescimentoespetaculartevecrescimentopróximoazeronosanos1990efoitransferido
paraaenfermariadocapitalismoglobal.
A esse imperativo soma-se uma crença fetichista, uma ideologia centrada nas virtudes do
crescimento.O crescimento é inevitável, o crescimento é bom.Não crescer é estar em crise.Mas
crescimento ilimitado significa produzir por produzir, o que também significa consumir por
consumir. Tudo o que se coloca no caminho do crescimento é ruim. Barreiras e limites ao
crescimentotêmdeserremovidos.Problemasambientais?Péssimo!Arelaçãocomanaturezatemde
sermudada.Problemassociaisepolíticos?Péssimo!Reprimaoscríticosemandeosrecalcitrantespara
acadeia.Barreirasgeopolíticas?Derrube-ascomviolência,senecessário.Tudodevedançaraoritmo
da“acumulaçãopelaacumulação”eda“produçãopelaprodução”.
ParaMarx,essaéumadascaracterísticasquedefinemocapitalismo.Éclaroqueelechegaaessa
conclusão com base em seus pressupostos. Mas esses pressupostos são coerentes com a visão da
economia política clássica acerca da “missão histórica” da burguesia. E isso define um princípio
reguladormuitoimportanteepoderoso.Ahistóriadocapitalismonãosebaseiaemtaxascompostas
de crescimento? Sim. As crises capitalistas não são definidas como falta de crescimento? Sim. Os
criadores de políticas em todo o mundo capitalista não são obcecados pelo estímulo e pela
manutençãodocrescimento?Sim.Evocêjáviualguémquestionaroprincípiodocrescimento,para
nãodizertomaralgumaprovidênciaaesserespeito?Não.Questionarocrescimentoéirresponsávele
impensável. Apenas excêntricos, desajustados e utopistas esquisitos acreditam que o crescimento
ilimitadosejaruim,sejamquaisforemsuasconsequênciasambientais,econômicas,sociaisepolíticas.
Sem dúvida, problemas causados pelo crescimento, como o aquecimento global e a degradação
ambiental, têmde ser enfrentados,mas é raroque se diga que a resposta aoproblema é suspender
completamenteocrescimento(emborahajaevidênciasdequeasrecessõesaliviemapressãosobreo
meioambiente).Não,temosdedescobrirnovastecnologias,novasconcepçõesmentais,novosmodos
de viver e produzir, para que o crescimento, a ilimitada acumulação composta do capital, possa
continuar.
Essenãofoiumprincípioreguladordeoutrosmodosdeprodução.Éclaroqueimpérioscresceram
eordenssociaisseexpandiramepisodicamente,mascomfrequênciaelesapenasseestabilizarame,em
algunscasos,estagnarameatédesapareceram.Umadasgrandescríticasaoscomunismosrealmente
existentes,comoaantigaUniãoSoviéticaeCuba,foiecontinuaaserqueessespaísesnãocresceram
o suficiente e, por isso, não podiam competir com o incrível consumismo e o espetáculo do
crescimento no Ocidente, concentrado nos Estados Unidos. Digo isso não para elogiar a União
Soviética,masparadestacarquãoautomáticastendemasernossasrespostasaonãocrescimento–a
estagnaçãoé imperdoável.Hoje temosumaquantidade suficientedeveículosutilitáriosesportivos,
Coca-Colaeáguaengarrafadaparasatisfazeraacumulaçãopelaacumulação,acompanhadadetodo
tipodeconsequênciadesastrosaparaasaúdeeomeioambiente(comoepidemiasdediabetes,que,
diga-sedepassagem,aindasãorarasemCuba,emcomparaçãocomosEstadosUnidos).Issonosleva
a pensar que pode ser difícil manter a taxa composta de crescimento de 3% que caracteriza o
capitalismo desde ametade do século XVIII. Quando o capitalismo era constituído de uma zona
econômicadecercade40milhasquadradasemtornodeManchestereumaspoucascidadezinhas,
3% de taxa composta de crescimento eram algo excepcional, mas hoje ele abrange a Europa, a
América do Norte e do Sul e, sobretudo, o Leste Asiático, com forte implantação na Índia, na
Indonésia,naRússiaenaÁfricadoSul.Partindodessabase,asconsequênciasdeumataxacomposta
decrescimentode3%ao longodospróximoscinquentaanos são inimagináveis.Aomesmotempo,
isso tornamais imaginável, senãoabsolutamente imperativa, a sugestãodeMarxnosGrundrisse de
queestánahoradeocapitaldarlugaraummododeproduçãomaissensato.
Comosepodever,háumavariedadedemodosdeganharmais-valorsemproduzirabsolutamente
nada.Reduzirovalordaforçadetrabalhopelareduçãodopadrãodevidaéumdoscaminhos.Marx,
citando John StuartMill, diz que, “se o trabalho pudesse ser obtido sem ser comprado, os salários
seriamsupérfluos”.
Mas,seostrabalhadorespudessemviverdear,tampoucoseriapossívelcomprá-losporpreçoalgum.Suagratuidadeé,portanto,um
limiteemsentidomatemático,sempre inalcançável,aindaquesemprepassíveldeaproximação.Éumatendênciaconstantedocapital
reduzirostrabalhadoresaessenívelniilista.(676)
E Marx apresenta algumas maneiras de fazer isso, como fornecer receitas culinárias aos
trabalhadoresparaqueeconomizemcomalimentação.Maistarde,essetipodecoisatornou-separte,
porexemplo,daspráticasdaRussellSageFoundationedosassistentessociais,quetentaramensinara
outros trabalhadoresmaneirasadequadasdeconsumir.Tomaressecaminho,porém,criaproblemas
de demanda efetiva queMarx não considera, porque ele pressupõe que todas as mercadorias são
comercializadasporseusvalores.Aeconomiadecapitalconstante(inclusiveocortededesperdícios)
também pode ser proveitosa, embora os capitalistas estejam constantemente à procura de algo
“presenteado gratuitamente pela Natureza”. “Uma vez mais, é a ação direta do homem sobre a
natureza que se converte, sem interferência de novo capital, em fonte direta de uma maior
acumulação” (679). Alterar a produtividade do trabalho social por outros meios (motivação e
organização) não custa nada, e usarmáquinas velhas, além de seu tempo de vida, também ajuda,
assimcomodestinarrecursosexistentes(porexemplo,ambientesconstruídos)paranovospropósitos.
Finalmente, “a ciência e a técnica constituem uma potência de expansão do capital em
funcionamento,independentedagrandezadadaqueessecapitalalcançou”(681).Aacumulaçãopode
serexpandidaportodosessesdiferentesmeios,semquehajanecessidadederecorreràcapitalização
domais-valor.
“Nodecorrerdestainvestigação”,dizMarxnoiníciodoitem5,
verificamosqueocapitalnãoéumagrandeza fixa,masumaparte elásticada riqueza social,parteque flutuaconstantementecoma
divisão do mais-valor em renda e capital adicional. Viu-se, além disso, que, mesmo com uma dada grandeza do capital em
funcionamento,aforçadetrabalho,aciênciaeaterraneleincorporadas(eporterraentendemos,dopontodevistaeconômico,todos
osobjetosde trabalhopreexistentesnanatureza, sem intervençãohumana) constituempotências elásticasdocapital,potênciasque,
dentro de certos limites, deixam a ele umamargem de ação independente de sua própria grandeza. Abstraímos, aqui, de todas as
circunstâncias do processo de circulação [ele se refere aos pressupostos iniciais sobre omercado], que proporcionam grausmuito
diversosdeeficiênciaàmesmamassadecapital[...][e]abstraímosdequalquercombinaçãomaisracionalquepudesseserrealizadade
maneiradiretaeplanificadacomosmeiosdeproduçãoeasforçasdetrabalhoexistentes.(684-5)
Maisumavez,Marx insistena incrível flexibilidadeemanobrabilidadedocapital. “Aeconomia
políticaclássica”,aocontrário,“sempregostoudeconceberocapitalsocialcomoumagrandezafixae
dotada de um grau fixo de eficiência”. O pobre Jeremy Bentham, “esse oráculo insipidamente
pedanteefanfarrãodosensocomumburguêsdoséculoXIX”,tinhaumavisãoparticularmentefixade
comoocapitalismoconstruiuumfundodetrabalho(685).
Ocapitalnãoéumagrandezafixa!Nuncaseesqueçadissoeagradeçaofatodeexistirumaboa
dose de flexibilidade e fluidez no sistema. Muito frequentemente, a oposição de esquerda ao
capitalismosubestimouessefato.Seoscapitalistasnãopodemacumulardeummodo,elesofarãode
outro.Senãopodemusaraciênciaeatecnologiaemseuprópriobenefício,explorarãoanaturezaou
passarão receitas à classe trabalhadora. Há inúmeras estratégias à disposição deles, e eles
desenvolverammaneirasmuitosofisticadasdeusá-las.Ocapitalismopodesermonstruoso,masnãoé
um monstro rígido. Os movimentos oposicionistas ignoram sua capacidade de adaptação, sua
flexibilidadeefluidezporsuaprópriacontaerisco.Ocapitalnãoéumacoisa,masumprocesso.Está
continuamenteemmovimento,mesmoquandointeriorizaoprincípioreguladorda“acumulaçãopela
acumulaçãoeaproduçãopelaprodução”.
[a]Citaçãomodificadadopoema(ecançãopopular)“AndieNatur”,deFriedrichLeopold,condedeStolberg.(N.T.)
[b]A31deagostode1848,naAssembleiaNacionaldeFrankfurt,olatifundiáriosilesianoLichnovskipronunciou-se–numalemãoque
provocou risos nos ouvintes – contra o direito histórico da Polônia à existência autônoma, direito de que, disse, “nenhuma data não
dispõe”.SegundoLichnovski,umadataanteriordeocupaçãodoterritóriopolonêssempre“poderiareivindicar”um“direitomaior”,como
eraocasodosalemães.EssediscursofoicomentadoàépocaporMarxeEngels,naNovaGazetaRenana,numasériedeartigosintitulada
“DiePolendebatteeinFrankfurt”[OdebatesobreaPolôniaemFrankfurt](Cf.N.E.A.MEW,5,p.351-3).(N.T.)
10.Aacumulaçãocapitalista
CAPÍTULO23:ALEIGERALDAACUMULAÇÃOCAPITALISTA
Nocapítulo23,Marxoperacionalizaummodelosinópticodadinâmicacapitalistasobospressupostos
apresentadosnocomeçodaseçãoVII:aacumulaçãoocorrenormalmente(nãohánenhumproblema
nomercadoetudoécomercializadoporseuvalor,comexceção,nessecapítulo,daforçadetrabalho);
osistemaéfechado(nãohácomércioexterior);omais-valoréproduzidopormeiodaexploraçãodo
trabalhovivonaprodução;eadivisãodomais-valorentre juro, lucrodocapitalmercantil, rendae
impostosnão temnenhumimpacto.Nessemodelopurodoprocessodeacumulação, tudodepende
desses pressupostos. Quando eles são abandonados, como ocorre no Livro II, os resultados são
diferentes.
Umcomentáriosobreacomposiçãodovalordocapital
Nesse capítulo,Marx concentra-senumaquestão substantiva.Quer examinar as implicaçõesda
acumulaçãodocapitalparaodestinodaclassetrabalhadora.Essaéarazãoporqueelepermitequea
remuneraçãodaforçadetrabalhoflutueacimaeabaixodeseuvalor.Paraajudarnessatarefa,constrói
umaparatoconceitualparatratardaquiloqueelechamade“composiçãodocapital” (689).Eleusa
três termos: composição técnica, composiçãoorgânica e composiçãodevalor.Aparentemente, esses
termosforamintroduzidosbemmaistardenoargumento,empartecomoreflexodotrabalhoqueele
estavafazendonoLivroIII,sobreascontradiçõeseascrises.Assim,nãotêmumafunçãoimportante
nessecapítulo,eépossívelentenderoargumentosemeles.
Casoessapartedadiscussão lhepareçaesotérica e complicada (oqueela é),passediretamente
paraoitemseguinte.Mas,comotaistermosdesempenhamumpapelcentralnoLivroIIIetêmsido
objeto de grande discussão e controvérsia na teoria marxiana em geral, acho que é importante
examiná-losaqui.
Otermo“composiçãotécnica”descrevesimplesmenteacapacidade físicadeumtrabalhadorde
transformar certa quantidade de valores de uso numamercadoria em dado período de tempo. Ele
medeaprodutividadefísicaerefere-seaonúmerodemeias,toneladasdeaço,unidadesdepão,litros
desucodelaranjaougarrafasdecervejaproduzidosporhoraporumtrabalhador.Novastecnologias
transformamessarazãofísicaparaque,porexemplo,onúmerodemeiasquecadatrabalhadorproduz
por hora aumente de dez para vinte. O conceito de composição técnica é claro e inequívoco. Os
problemascomeçamnadiferenciaçãoentreascomposiçõesorgânicaedevalor,quesãoambasrazões
de valor. A composição de valor é a razão entre o valor dos meios de produção consumidos na
produçãoeovalordocapitalvariáveladiantado.Convencionalmente,representamosessarazãocomo
c/v, a quantidade de capital constante dividida pelo capital variável. A composição orgânica, que
também émedida comouma razão de valor de c/v, é definida comomudanças na composição de
valorqueadvêmdemudançasfísicasnaprodutividade.
Por que essa diferença? A implicação é que podem ocorrer mudanças na composição do valor
diferentesdaquelas relacionadasàsmudanças físicasnaprodutividade.Umavezquemudançasnão
tecnológicas foram listadas no fim do capítulo precedente, essa interpretação é mais do que
simplesmente plausível. Mas note que tal tipo de mudança, assim como dádivas da natureza,
economiasdedesperdíciooureduçãodopadrãodevidadostrabalhadores,podeafetarovalortanto
docapitalconstantequantodocapitalvariável investido,demodoquearazãoc/vpodecrescerou
decrescer como resultado de tais mudanças. Há outra interpretação que, pelo que sei, Marx não
desenvolve,maspodemosinferi-la.Essainterpretaçãodependedeondeestãoocorrendoasmudanças
na produtividade física. Se eu alterar a produtividade física da fabricação de meias por meio do
emprego de nova maquinaria, a razão c/v (chamemos assim à composição orgânica do capital)
aumentaráemminhaempresaemvirtudedeminhasações.Mas tambéméprovávelqueessa razão
mudesemqueeufaçanada,poisovalordocapitalconstanteevariávelqueobtenho(porseuvalor,
dados os pressupostos de Marx) é fixado pela produtividade física cambiante nas indústrias
produtorasdosbensdeprimeiranecessidadequefixamovalordaforçadetrabalhoenasindústrias
queproduzemosmeiosdeproduçãoqueadquiro(entradasdecapitalconstante).Nesseexemplo,a
razão c/v (chamemos a isso composiçãode valor do capital) aumentará ou cairá conformeo ritmo
relativodemudançasnaprodutividade físicanessesdoisdiferentes setoresda economia (embora a
produtividade física naminha empresa não tenha se alterado). Essa interpretação foca a diferença
entreoqueocapitalistapodefazerquantoàrazãoc/veoqueacontececomarazãoc/vnomercado,
fora do controle do capitalista. É difícil sustentar essa interpretação aqui, porque, nesse capítulo,
Marx trabalha no nível agregado das relações entre as classes capitalista e trabalhadora.Mas ela é
plausívelaindaassim,dadaateoriadomais-valorrelativo,queenfatizaqueoquemoveodinamismo
tecnológico (queproduzmais-valor relativodo tipoagregado)é aprocuradocapitalista individual
(queoperasobasleiscoercitivasdaconcorrência)pelaformaefêmerademais-valorrelativo.
Arazãoporqueissoétãoimportanteéque,noLivroIIId’Ocapital,Marxexplicaporqueexiste
uma tendênciadequedada taxade lucro.Ricardo explicou isso em termosmalthusianos,dizendo
que,nofim,ganhosdecrescentescomaterraaumentariamtantoopreçodosrecursosnaturaisqueos
lucrosteriamdecairatézero.Emoutraspalavras,oproblemaestánarelaçãocomanatureza(quando
sedeparoucomoproblemadataxadecrescentedelucro,Marxafirmou,emoutraparte,queRicardo,
“fugindoda economia, [...] se refugianaquímicaorgânica”
[a]
).Marxdesconsidera essa afirmação e
argumenta, ao contrário, que é a dinâmica interna da mudança tecnológica no interior do
capitalismo, a busca pelo mais-valor relativo, que aumenta a composição orgânica (de valor?) do
capital, c/v, que, no longo prazo, levará a uma taxa decrescente de lucro (s/[c + v]), com base no
pressuposto de um limite sobre a taxa de exploração (s/v).Dito de outromodo, as inovações que
poupamtrabalhoremovemoprodutorativodevalordoprocessode trabalhoe,assim, tornammais
difícil (mantendo-se constantes as demais circunstâncias) produzir mais-valor. O argumento é
engenhoso e tem a virtude indubitável de interiorizar (corretamente, ameu ver) as dinâmicas da
formaçãodecrisesnosquadrosdasrelaçõessociaiscapitalistasedodesenvolvimentodesuasforças
produtivas.Infelizmente,oargumentoéincompletoeproblemático,porque,dadaasegundalinhado
argumentoapresentadoacima,nãoháporquearazãoc/vaumentardomodocomoMarxsugere.
Nesse capítulo,Marx argumenta diretamente em favor de uma lei da composição crescente de
valor do capital. Ele começa observandoque, do ponto de vista da classe capitalista, a composição
cambiantedevalordocapitaltemaspectosdiretoseindiretosemrelaçãoàprodução.
Estamosfalandonãoapenasdemáquinasefábricas,mastambémdeferrovias,estradasetodotipo
de infraestrutura (ambientes construídos) que fornecem as precondições necessárias à produção
capitalista.Paraqueessasprecondiçõessejamcumpridas,éprecisoqueocorraumenormeaumento
naproporçãodoestoquetotaldecapitalconstante(ecadavezmais fixo)emrelaçãoaonúmerode
trabalhadores empregados. (Marx não registra aqui algo que ele observa em outro lugar: se
investimentospassados,porexemplo,emambientesconstruídosjáforamamortizados,elesfuncionam
como um “bem livre” – demodomuito semelhante às dádivas da natureza – para a realização da
produçãocapitalista.Querdizer,anãoserqueumaclasseinoportunadeproprietáriosfundiáriosse
meta no caminho e comece a extrair renda dos capitalistas.)Omovimento que leva da produção
artesanalrelativamentesimplesaprocessosdeproduçãomaiscomplexoseintegradosapresentauma
tendênciahistóricaaaumentar,comotempo,arazãodec/v.IssolevaMarxaobservarque
essaleidoaumentocrescentedaparteconstantedocapitalemrelaçãoasuapartevariáveléconfirmadaacadapasso[...]pelaanálise
comparativa dos preços das mercadorias, quer comparemos diferentes épocas econômicas de uma única nação, quer comparemos
naçõesdiferentesnumamesmaépoca.Enquantoagrandezarelativadoelementodopreçoquerepresentaapenasovalordosmeiosde
produçãoconsumidos,ouseja,aparteconstantedocapital, serádiretamenteproporcionalaoprogressodaacumulação,agrandeza
relativa do outro elemento do preço, que representa a parte que paga o trabalho ou a parte variável do capital, será inversamente
proporcionalaele.(699)
Há, comoMarx claramente propõe, uma “lei” da composição crescente de valor do capital ao
longodotempo,eéessaleiquedesempenhaumpapelcrucialnateoriadataxadecrescentedelucro
noLivroIII.Contudo,Marxreconhecequepodehaverumdecréscimonovalor(opostoàpresença
física)docapitalconstanteemrazãodamudançatecnológica.Defato,elesugerequesearazãoc/v
nãoaumentoumaisfoiporque,“comacrescenteprodutividadedotrabalho,nãoapenasaumentao
volumedosmeiosdeproduçãoporeleutilizados,masovalordelesdiminuiemcomparaçãocomseu
volume”.Comoresultadodaprodutividadecrescentenaproduçãodemeiosdeprodução,
seu valor aumenta, portanto, demodo absoluto,mas não proporcionalmente a seu volume.O aumento da diferença entre capital
constanteecapitalvariávelé,porconseguinte,muitomenordoqueodadiferençaentreamassadosmeiosdeproduçãoeamassada
forçadetrabalhoemquesãoconvertidos,respectivamente,ocapitalconstanteeocapitalvariável.(699)
A“lei”pressupostada composiçãocrescentedevalordocapital está sujeita amodificação,mas
nãodeummodoquecontrariesuadireçãofundamental.Aacumulaçãodocapitaleabuscapormais-
valorrelativo“geram,deacordocomaconjugaçãodosestímulosqueelesexercemumsobreooutro,a
variação na composição técnica do capital, o que faz comque a sua componente variável se torne
cadavezmenoremcomparaçãoàcomponenteconstante”(701).
Maspara consolidar seu argumentoMarxprecisadividir a economia em setoresqueproduzam
bensemeiosdeproduçãoe,emseguida,examinaras taxas relativasdemudançanaprodutividade
físicaemambosossetores.ElefazissonofimdoLivroII(escritoapósosrascunhosdoLivroIIIque
chegaramaténós),massuapreocupaçãoprincipaléexaminarcomoomercadopodemanterosdois
setoresemequilíbrio(seéquepodefazerisso).Eledescarta,portanto,odinamismotecnológicoque
se encontra no centroda análise doLivro I e é tão vital para a análise dos lucros decrescentes no
LivroIII.Oconceitodecomposiçãodevalornãoémencionado.Marxconsideraaprobabilidadede
crisesdedesproporcionalidade (excessodeprodutosdeprimeiranecessidade em relação aosmeios
produção, ou vice-versa) emesmo a possibilidade de crises generalizadas de subconsumo (falta de
demanda efetiva),mas não faz nada para esclarecer a questão das taxas decrescentes de lucro que
decorremdasmudançastecnológicas.Oqueaobrateóricasubsequentemostrou,noentanto,éque
há um padrão de mudança tecnológica entre os dois setores (bens de subsistência e meios de
produção)quepodemanterarazãoc/vperpetuamenteconstante,masnãoexistenenhummecanismo
paraassegurartal resultado.Por issoaprobabilidadedecrises frequentesdedesproporcionalidadee
crisesgeneralizadasocasionais,decorrentesdeinstabilidadesgeradaspelasmudançastecnológicas,é
considerável.
Éclaroquenãopodemosresolvertodasessasquestõesaqui.Ameuver(emuitosdiscordarãode
mim),aintuiçãodeMarxdequeospadrõesdemudançatecnológicasãodesestabilizadoresaponto
de produzir crises está correta, mas não posso dizer o mesmo de sua explicação das composições
crescentes de valor e das taxas decrescentes de lucro.No entanto, a linha principal de argumento
desenvolvidanessecapítuloéperfeitamentecompreensívelsemoempregodoconceitodecomposição
devalor.
Oprimeiromodelodaacumulaçãodocapital
Se os capitalistas pegam parte do mais-valor que eles apropriaram ontem e investem emmais
produçãohoje, isso requermais forçade trabalho,pressupondo-se,porora, quenãohajanenhuma
mudançatecnológica.Assim,oprimeiroefeitoóbviodaacumulaçãodocapitalsobessascondiçõeséa
demanda aumentada de força de trabalho. “Acumulação do capital é, portanto, multiplicação do
proletariado”(690).Deondesairãoostrabalhadoresextras,equaisserãoasimplicaçõesdoaumento
dademanda?Emalgumponto,ademandaaumentadalevaráaumaumentonossalários.A“espiral”
daacumulaçãofaz,portanto,comquemaiscapitalsejagerado,maistrabalhadoressejamempregados
porsaláriosmaiores,demodoqueouaforçadetrabalhoévendidaacimadeseuvalor(umaexceção
dopressupostodequetodasasmercadoriassãotrocadasporseuvalor)ouovalordaforçadetrabalho
aumenta àmedida que os trabalhadores alcançam um padrão superior de vida.Mas isso significa
apenas que “o tamanho e o peso dos grilhões de ouro que o trabalhador forjou para si mesmo
permitemtorná-las [a relaçãodedependênciaeaexploraçãodoassalariado]menosconstringentes”
(695).
Abstraindototalmentedaelevaçãodosalário,acompanhadadeumabaixadopreçodotrabalhoetc.,oaumentodossaláriosdenota,no
melhordos casos, apenas adiminuiçãoquantitativado trabalhonãopagoqueo trabalhador temdeexecutar.Taldiminuição jamais
podealcançaropontoemqueameaceoprópriosistema.Semlevaremcontaosconflitosviolentosemtornodataxadosalário[...],
umaelevaçãodopreçodo trabalhoderivadadaacumulaçãodocapitalpressupõea seguintealternativa. [...]Ouopreçodo trabalho
continuaasubirporqueseuaumentonãoperturbaoprogressodaacumulação.(695-6)
Querdizer,oscapitalistaspodemsuportarumaumentonopreçodotrabalhoporqueamassade
capital da qual eles podem se apropriar continua a crescer, à medida que empregam mais
trabalhadores. Lembre-se de que os capitalistas estão interessados em primeiro lugar na massa de
lucro,eestadepende,comovimosnocapítulo15,donúmerodetrabalhadoresempregados,dataxae
daintensidadedaexploração.Diantedeumataxadecrescentedeexploração,aumentaronúmerode
trabalhadoresempregadospodeaumentarsubstancialmenteamassadecapitalganhapelocapitalista.
Nessecenário,nãohá,portanto,nenhumconflitoentresalárioscrescenteseacumulaçãodocapital.
“Ooutrotermodaalternativa”é:
a acumulação se afrouxa graças ao preço crescente do trabalho, que embota o acicate do lucro. A acumulação decresce. Porém, ao
decrescer desaparece a causa de seu decréscimo, a saber, a desproporção entre capital e força de trabalho explorável. O próprio
mecanismodoprocessodeproduçãocapitalistaremove,assim,osempecilhosqueelecriatransitoriamente.(696)
OmodelodeMarxébastantesimples.Aacumulaçãodocapital,pressupondo-seaprodutividade
constante,aumentaademandaportrabalho.Seissogeraounãoumaumentodesaláriosdependeda
populaçãodisponível.Masquantomaior é aparcela empregadadapopulaçãodisponível,maior é a
elevaçãodossalários,oquediminuiataxadeexploração.Masamassademais-valorpodecontinuara
aumentar porque mais trabalhadores estão empregados. Se em algum ponto, por alguma razão, a
massa de mais-valor começa a diminuir, a demanda por trabalho cai, a pressão sobre os salários
diminui e a taxa de exploração se recupera.Ao longodo tempo, portanto, provavelmente veríamos
oscilações contrabalançando as taxas de salário e de lucro. Se os salários aumentam, a acumulação
diminui;seossalárioscaem,oslucroseaacumulaçãovoltamasubir.Marxdescreveaquiumsistema
automáticodeajusteentreademandaeaofertadetrabalhoeadinâmicadaacumulação.
Marxsugerequeháevidênciahistóricaparaprocessosdessetipo.NaInglaterradoséculoXVIII,
havia uma tendência – muito explorada por um comentador da época chamado Eden – de um
aumento dos salários provocado pela rápida expansão da acumulação do capital. As classes
trabalhadorasmelhoravamdevida,juntamentecomumaclassecapitalistaque,éclaro,iamuitobem.
Edensucumbiuàtentaçãodedeclarar,portanto,queaacumulaçãodocapitaleraboatambémparaos
trabalhadores.Masoqueelafaz,dizMarx,éafrouxar“osgrilhõesdeouro”queprendemotrabalhoao
capital. Além disso, essa ideia já havia sido vigorosamente contestada no famoso tratado de
Mandeville, The Fable of the Bees [A fábula das abelhas]. Mandeville provocou uma indecorosa
polêmica contra os “vadios” que existiam na sociedade inglesa e, com isso, estabeleceu que tal
sociedadetinhaumanecessidadedesesperadadepessoaspobres,equantomaispobresmelhor,pois
assim demandariam menos em termos de bens e serviços, deixando mais para os ricos. Se não
tivéssemosospobres,osricosnãopoderiamserricos.EssaglorificaçãodascondiçõesnaInglaterrado
séculoXVIII incomodouAdam Smith e os humanistas, que não podiam aceitar a ideia de que os
pobressempreexistirãoeexercemumafunçãotãovitalparaosricos.ArespostadeSmithfoitentar
mostrar que as condições de todos, inclusive a do mais pobre, melhorariam se o mecanismo de
mercadofossemobilizadoparaaumentarariquezanacional.AimportânciadeMandevilleparaMarx
é a ideiadeque a acumulaçãodo capital requer a existênciaprévianão apenasdeumapopulação
disponível, mas de uma população disponível suficientemente pobre, ignorante, oprimida e
desesperada,quepossa ser recrutada comomãodeobrabarata e introduzidano sistemacapitalista
numpiscardeolhos.
Osegundomodelodaacumulaçãodocapital
O segundomodelo da acumulação analisa o que ocorre quando a produtividade crescente do
trabalho social se converte “na mais poderosa alavanca da acumulação” (698). Os impactos das
mudanças tecnológicas e organizacionais na produtividade têm de ser colocados numa posição
central em relação às dinâmicas da acumulação. Isso leva Marx a tratar a “lei” da composição
crescente de valor do capital da maneira já exposta. Mas “ainda que o progresso da acumulação
diminuaagrandezarelativadapartevariáveldocapital,elenãoexcluidemodoalgum,comisso,o
aumento de sua grandeza absoluta”, porque, como vimos no primeiro modelo, mais trabalhadores
podemserempregadosparacontrabalançarataxadecrescentedemais-valor(699).
Oempregodacooperação,asnovasdivisõesdo trabalhoeaaplicaçãodemaquinaria, ciênciae
tecnologia comomeiosde aumentar aprodutividadedo trabalhodependem fundamentalmentede
umaacumulaçãoderiquezamonetáriainicialou“primitiva”emquantidadesuficienteparapôrtodo
oprocessoemmovimento.Marxintroduziuotermo“acumulaçãoprimitiva”noscapítulosanteriores,
masprefere,maisumavez,postergarqualquerconsideraçãodetalhadasobreeleatéocapítulo24.“De
que modo ela surge é algo que ainda não precisamos examinar aqui” (700).Mas, uma vez que a
acumulação está em andamento, o progresso da produtividade crescente também depende de
processosdeconcentraçãoecentralizaçãodocapital.Apenasdessemodotodasaspossíveiseconomias
deescalapodemserealizar.Ariquezaconcentra-secadavezmaisnumnúmeropequenodemãos,diz
ele,porqueacadaetapadaacumulaçãoocapitalistaadquireumamassacrescentedecapitalnaforma
depodermonetário.Ocrescimentoocorreaumataxacomposta,eaconcentraçãoda riquezaedo
poder se acelera, embora seja limitada pela taxa de mais-valor e pelo número de trabalhadores
empregados.Mas esse processo de concentração também pode ser parcialmente compensado, pela
aberturadepequenosnegóciosemnovaslinhasdeprodução.
Portanto,aacumulaçãoeaconcentraçãoqueaacompanhaestãonãoapenasfragmentadasemmuitospontos,masocrescimentodos
capitais em funcionamento é atravessado pela formação de novos capitais e pela cisão de capitais antigos. De maneira que, se a
acumulação se apresenta, por um lado, como concentração crescente dosmeios de produção e do comando sobre o trabalho, ela
aparece,poroutrolado,comorepulsãomútuaentremuitoscapitaisindividuais.(701)
A“fragmentaçãodocapitalsocialtotalemmuitoscapitaisindividuaisouarepulsãomútuaentre
seusfragmentos”tambémtemdeserlevadaemconta.ÉtípicodeMarxpôrtendênciascontrapostas
emjogo:deumlado,concentração;deoutro,subdivisãoefragmentação.Ondeestáoequilíbrioentre
elas? Sabe-se lá!O equilíbrio entre concentração e descentralização está quase sempre sujeito a um
fluxoconstante(contrariandotodainterpretaçãoteleológicadaevoluçãodamaquinariaedagrande
indústria).
A centralização, por outro lado, chega à concentração do capital por um caminho distinto –
incorporações, fusões, extinção implacável dos competidores. Marx sugere que pode haver leis da
centralização do capital. Mas admite não ter condições de desenvolvê-las aqui, embora suspeite,
evidentemente,quepossamserreveladas(oqueseriacoerentecomavisãoteleológica!).Noentanto,
há uma tendência definida à centralização, alimentada indubitavelmente por “uma potência
inteiramentenova”quesurgecomaproduçãocapitalista:o“sistemadecrédito”(702).Apesardenão
poder introduzir o sistemade crédito (isso violaria opressuposto inicial deque adivisãodomais-
valor entre juro, renda e lucro sobre o capital comercial não tem importância),Marxnão resiste a
fazeralgumasconsideraçõesprévias:
Emseusprimórdios,[ocrédito]insinua-sesorrateiramentecomomodestoauxíliodaacumulaçãoe,pormeiodefiosinvisíveis,conduz
às mãos de capitalistas individuais e associados recursos monetários que se encontram dispersos pela superfície da sociedade em
massas maiores ou menores, mas logo se converte numa arma nova e temível na luta concorrencial e, por fim, num gigantesco
mecanismosocialparaacentralizaçãodoscapitais.(702)
Oquadroéconvincentee,naépocadeMarx,extraíamuitodeseumaterialdasteoriasdeSaint-
SimonsobreopoderdoscapitaisassociadoseaspráticasdosbanqueirosdoSegundoImpério,como
os irmãos Péreire. Ele ainda ecoa em nosso mundo contemporâneo. Criam-se instituições de
microcréditoemicrofinançasparacapturarachamada“riquezanabasedapirâmide”e,emseguida,
todaessariquezaéabsorvidaparasocorreras instituições internacionais (tudo issocomaajudado
BancoMundialedoFMI)eusadaemWallStreetparapagarojogodeapostasemaçõesefusõesde
capitais.“Namesmamedidaemquesedesenvolveaproduçãoeaacumulaçãocapitalistas”,observa
Marxcomperspicácia, “desenvolvem-se tambémaconcorrênciaeocrédito,asduasalavancasmais
poderosas da centralização” (702).A rápida centralizaçãoultrapassa os processosmais vagarosos de
concentraçãopormeiodocrescimentocompostocomoprincipalveículoparaobteraenormeescala
financeiranecessária à implementaçãode etapas inteiramentenovasdeprodutividade crescente.A
centralização pode melhorar radicalmente e aumentar a escala da produção. Não conseguiríamos
realizar muitos dos megaprojetos de infraestrutura física (por exemplo, ferrovias e portos) e
urbanização (capital fixo e constante) sema centralização (ou, comoMarxdiscute emoutro lugar,
semoenvolvimentodoEstado).
Instrumentos adequados de centralização são, portanto, absolutamente fundamentais para a
dinâmicadaacumulação.Masissotrazaameaçadopoderdomonopólioecontradizavisão–muito
cara à economia política clássica, bem como aos teóricos neoliberais contemporâneos – de uma
economia de mercado descentralizada, em que as decisões são tomadas de modo tão disperso e
individualistaqueninguémconseguemonopolizaroudominaromercado.OqueMarxsugereéque,
mesmoqueaeconomiademercadocomececompequenasempresas,altamentecompetitivas,équase
certoqueela se transformará rapidamentepelacentralizaçãodocapitale terminaránumestadode
oligopólioemonopólio.Oresultadodaconcorrência,dizeleemoutrolugar,ésempreomonopólio.
Há, portanto, processos internos à dinâmica capitalista que são inerentemente disruptivos com
relaçãoàteoriadofuncionamentoperfeitodosmercados.Oproblemaéqueosmercadosealutapelo
mais-valorrelativonãopodemcoexistirpormuitotemposemqueacentralizaçãosurjaerompacoma
tomada de decisões descentralizada que caracteriza os mercados de funcionamento livre. Embora
Marxnãoexpliciteessaquestão,elaécertamenteumadasimplicaçõesdeseuargumento.Mas,sea
análise da concentração é digna de crédito, a centralização crescente não pode ser de todo um
processo demão única, sem nenhuma influência ou força contrapesantes. Infelizmente,Marx não
explora esse ponto aqui, mas falará em outro lugar como a centralização pode às vezes ser
contrabalançada pela descentralização. O que ele introduz aqui é a ideia de uma dinâmica de
mercadodoprocessodeacumulaçãonaqualessasforçastêmdeserintegradasaoargumentoenão
ignoradas comoumacidentedahistória.No entanto, issoo levapara alémde seupropósitonesse
capítulo,queétratardacondiçãodaclassetrabalhadora.
Uma produtividade crescente do trabalho (um valor crescente da composição do capital) tem
implicaçõesparaademandadetrabalho.
Como a demanda de trabalho não é determinada pelo volume do capital total, mas por sua componente variável, ela decresce
progressivamentecomocrescimentodocapitaltotal,emvezde,comopressupomosanteriormente,crescernamesmaproporçãodele.
Essa demanda diminui em relação à grandeza do capital total e em progressão acelerada com o crescimento dessa grandeza. Ao
aumentarocapitalglobal,tambémaumenta,naverdade,suacomponentevariável,ouseja,aforçadetrabalhoneleincorporada,porém
emproporçãocadavezmenor.(704-5)
Isso significa que a acumulação capitalista “produz constantemente, e na proporção de sua
energia e seu volume, uma população trabalhadora adicional relativamente excedente, isto é,
excessivaparaasnecessidadesmédiasdevalorizaçãodocapitale,portanto,supérflua”(705).Elafaz
isso por meio de processos que hoje chamamos downsizing. “Assim, com a acumulação do capital
produzida por elamesma, a população trabalhadora produz, em volume crescente, osmeios que a
tornam relativamente supranumerária. Essa lei de população é peculiar ao modo de produção
capitalista” (706-7).Maisumavez,o temadaproduçãodas condiçõesdenossaprópriadominação
surgecomosupremaironia.
Amençãoauma“leidapopulação”põeMarxcontraMalthus,que,ajulgarpelasnotasderodapé,
estálongedeseroteóricofavoritodeMarxecujateoriauniversaldapopulaçãoedasuperpopulação
exigiaumarefutação.“Cadamododeproduçãoparticularnahistória”,escreveMarx,“temsuasleis
depopulaçãoparticulares,historicamenteválidas.Umaleiabstratadepopulaçãosóéválidaparaas
plantaeosanimaise,aindaassim,apenasenquantooserhumanonãointerferehistoricamentenesses
domínios” (707).A objeção deMarx aMalthus é que este naturaliza o desemprego e a criação da
pobreza, transformando-os em simples relação entre o aumento da população e a demanda de
recursos.Marxnão considera que o crescimentodapopulação seja irrelevante oumesmoum fator
neutroemrelaçãoàacumulaçãodocapital;defato,hámuitaspassagensemoutroslugaresnasquais
ele tratao forte crescimentopopulacional comoumaprecondiçãonecessáriaparaumaacumulação
sustentada. Sua objeção fundamental é à tese de que a pobreza é produzida por uma classe
trabalhadora que reproduz a simesma em número demasiado grande (tese que culpa a vítima). A
preocupaçãodeMarxémostrarqueocapitalismoproduzpobreza,independentementedoestadoou
da taxa de crescimento da população. Ele prova queMandeville estava certo quando disse que os
pobres estão e sempre estarão entre nós nomodo de produção capitalista,mas, contraMandeville,
mostracomoeporqueissoacontece.
Ocapitalismoproduzpobrezacriandoumexcedenterelativodetrabalhadorespormeiodousode
tecnologias que eliminam postos de trabalho. Uma massa permanente de trabalhadores
desempregadosésocialmentenecessáriaparaqueaacumulaçãocontinueaseexpandir.
Mas,seumapopulaçãotrabalhadoraexcedenteéumprodutonecessáriodaacumulaçãooudodesenvolvimentodariquezacombase
capitalista,essasuperpopulaçãoseconverte,emcontrapartida,emalavancadaacumulaçãocapitalista,eatémesmonumacondiçãode
existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de
maneiratãoabsolutacomoseeleotivessecriadoporsuaprópriaconta.(707)
Não é, portanto, a tecnologia em si a principal alavanca da acumulação, mas a massa de
trabalhadoresexcedentesqueelafazsurgir.“Elaforneceasuasnecessidadesvariáveisdevalorizaçãoo
material humano sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro
aumentopopulacional”(707).
Normalmente,oexércitoindustrialdereservaécolocadonaproduçãoe,emseguida,retiradoem
movimentos alternados, criando um movimento cíclico no mercado de trabalho. “Por sua vez, as
oscilaçõesdocicloindustrialconduzemaorecrutamentodasuperpopulaçãoe,comisso,convertem-
senumdosmaisenérgicosagentesdesuareprodução”(708).Marxdescreveo:
simplesprocessoque “libera” constantementeumapartedos trabalhadores,pormétodosque reduzemonúmerode trabalhadores
ocupados em relação à produção aumentada. Toda forma demovimento da indústriamoderna deriva, portanto, da transformação
constantedeumapartedapopulaçãotrabalhadoraemmãodeobradesempregadaousemiempregada.(708)
“Umavezconsolidadaestaforma,atémesmoaeconomiapolíticacompreendequeproduziruma
população excedente relativa, isto é, excedente em relação à necessidademédia de valorização do
capital, é uma condição vital da indústria moderna” (709).Malthus, por exemplo, “reconhece na
superpopulação[...]umanecessidadedaindústriamoderna”,masnãovêque“àproduçãocapitalista
nãobastademodoalgumaquantidadede forçade trabalhodisponível fornecidapelo crescimento
naturaldapopulação.Elanecessita,paraassegurarsualiberdadedeação,deumexércitoindustrialde
reservaindependentedessabarreiranatural”(710).
Asramificaçõesdesseprocessoseespalhameinfluenciamadesqualificaçãodeamplossegmentos
daforçadetrabalhoeosprocessosdedesindustrializaçãopormeiodamudançatecnológica,comos
quais nos familiarizamos tão bem nos últimos trinta anos. A existência dessa população excedente
relativa resulta normalmente em sobretrabalho para aqueles que estão empregados, uma vez que
podemserameaçadosdedemissãosenãotrabalharemalémdajornadaenãoaceitaremaumentara
intensidadedetrabalho.Comoemnossaépocaocapitalnãogostadearcarcomoscustosindiretosde
empregados de tempo integral (assistência à saúde e aposentadoria), a preferência por obrigar o
empregadoatrabalharalémdajornadalegal,querendoeleounão,aumentamesmoquandoamassa
detrabalhadoresdesempregadosaumenta.Àsvezesfazerhorasextrasécondiçãoparapermanecerno
emprego.
“O sobretrabalhodaparte ocupadada classe trabalhadora engrossa as fileiras de sua reserva, ao
mesmo tempo que, inversamente, esta última exerce, mediante sua concorrência, uma pressão
aumentadasobreaprimeira,forçando-aaosobretrabalhoeàsubmissãoaosditamesdocapital.”Issose
torna umnotável “meio de enriquecimento do capitalista individual” (711-2).O impacto sobre os
salários é também significativo. “Grosso modo, os movimentos gerais do salário são regulados
exclusivamentepelaexpansãoecontraçãodoexércitoindustrialdereserva”(712).Osmovimentosdo
salário são regidos pela acumulação do capital. Isso contradiz a visão comum de que o ritmo de
acumulação do capital é regulado pelas flutuações das taxas salariais, causadas pelo aumento
populacional ou, segundo a retórica contemporânea, por sindicados gananciosos. O “dogma
econômico” era que “o incremento do salário estimula um aumento mais rápido da população
trabalhadora,aumentoqueprossegueatéqueomercadodetrabalhoestejasupersaturado,ouseja,até
queocapitalsetorneinsuficienteemrelaçãoàofertadetrabalho”(713).
O modelo de Marx sugere que, onde quer que enfrente problemas de oferta de trabalho, a
acumulação do capital expulsa as pessoas de seus postos de trabalho, recorrendo a inovações
tecnológicaseorganizacionais,eoresultadoéaquedadossaláriosabaixodeseuvalorouoaumento
dajornadaedaintensidadedetrabalhoparaaquelesquepermanecemempregados.
Nos períodos de estagnação e prosperidademédia, o exército industrial de reserva pressiona o exército ativo de trabalhadores; nos
períodosdesuperproduçãoeparoxismo,elebarrasuaspretensões.Asuperpopulaçãorelativaé,assim,opanodefundosobreoqual
semovealeidaofertaedademandadetrabalho.Elareduzocampodeaçãodessaleialimitesabsolutamentecondizentescomaavidez
deexploraçãoeamaniadedominaçãoprópriasdocapital.(714-5)
Temos, assim, que “omecanismodaprodução capitalista vela para que o aumento absolutode
capitalnãosejaacompanhadodeumaumentocorrespondentedademandageraldetrabalho”(715).
Isso provoca “proezas da apologética econômica” para justificar tais práticas quando atuam tão
claramente emdetrimentodas classes trabalhadoras (715).Aúnica coisa queos apologistas podem
fazerévera“miséria”,os“sofrimentos”ea“possívelmortedos trabalhadoresdeslocadosduranteo
período de transição, que os expulsa para as fileiras do exército industrial de reserva”, como um
sacrifíciobreveenecessáriopelobemmaioremaisduradourodetudoquepodemosconseguircoma
acumulaçãoprogressivadocapital.Masarealidadeébemmaissinistra.
A demanda de trabalho não é idêntica ao crescimento do capital, e a oferta de trabalho não é idêntica ao crescimento da classe
trabalhadora,comosefossemduaspotênciasindependentesaseinfluenciarmutuamente.Lesdéssontpipés[osdadosestãoviciados].O
capitalagesobreosdoisladosaomesmotempo.(715)
Quer dizer, o capital cria a demanda para o trabalho quando reinveste, mas também pode
administrar a oferta de trabalhomediante reinvestimentos em tecnologias que poupam trabalho e
produzemdesemprego. Essa capacidade de operar dos dois lados da equação de oferta e demanda
contradiztotalmenteomodocomoosmercadosdeveriamfuncionar.
Comoaconteceunocasodamaquinaria,ostrabalhadoreslogodesvendam
o mistério de como é possível que, na mesma medida em que trabalham mais, produzam mais riqueza alheia, de como a força
produtivadeseutrabalhopodeaumentaraomesmotempoquesuafunçãocomomeiodevalorizaçãodocapitalsetornacadavezmais
precáriaparaeles;tãologodescobremqueograudeintensidadedaconcorrênciaentreelesmesmosdependeinteiramentedapressão
exercidapela superpopulação relativa; tão logo,portanto,procuramorganizar,mediante tradesunions [surpreendentemente, esta é a
únicavezemqueessetermoéusadon’Ocapital]etc.,umacooperaçãoplanificadaentreosempregadoseosdesempregadoscomo
objetivode eliminarou amenizar as consequências ruinosasque aquela leinaturaldaprodução capitalista acarretapara sua classe, o
capital e seu sicofanta, o economista político, clamam contra a violação da “eterna” e, por assimdizer, “sagrada” lei da oferta e da
demanda.(715-6)
Numasituaçãoemqueasregrasdomercadosãosubvertidaspelacapacidadedocapitalderegular
tantoaofertaquantoademandadeforçadetrabalho,astentativasdostrabalhadoresdeseorganizar
para proteger seus interesses coletivos são furiosamente condenadas por infringir as regras do
mercado!
Marx construiu doismodelos de acumulação, com e semmudança tecnológica.Os capitalistas
podemescolher entre: acumular comuma tecnologia existente e ingressarnomundodomodelo1
(coisa difícil de fazer, dadas as leis coercitivas da concorrência) ou investir numa mudança
tecnológicaeingressarnomundodomodelo2.Aquestãonosegundomodeloé:oqueregulaoritmo
damudançatecnológica?Ateoriadomais-valorrelativomostrouqueessamudançaéimpulsionada
pelasleiscoercitivasdaconcorrência,àmedidaqueoscapitalistascompetempelaformaefêmerado
mais-valorrelativo–quecaberáaosquetrabalhamcomumaprodutividademaior.Assim,olimiteé
parcialmenteestabelecidopelaintensidadedaconcorrência(umpontoqueMarxnãoenfatiza).Mas
hátambémumlimiteexterno.Marxestabeleceuanteriormentequeocálculoparaaadoçãodenovas
tecnologiasmecânicasenvolveumacomparaçãoentreovalorinvestidonaaquisiçãodamáquinaeo
valordaforçadetrabalhopoupadacomseuuso.EmboraMarxnãoexpliciteaquestão,issosignifica
que a inovação tecnológica continuaria até o ponto emque a taxa salarial caísse o suficiente para
fazercomqueacomprademáquinasdeixassedevalerapena(comoocorreunaInglaterranoséculo
XIX em relação aosEstadosUnidos). Esse ponto seria provavelmente quando a classe trabalhadora
fossereduzidaaumacondiçãodeextremamiséria.
Asuperpopulaçãorelativa
Noitem4,Marxexaminaaquestãodasuperpopulaçãorelativa.Eleaclassificaemtrêsextratos:
flutuante, latente, estagnada (716). Por superpopulação “flutuante” ele entende as pessoas que já
estão proletarizadas, que já são trabalhadoras assalariadas de tempo integral ou que, são
temporariamentedispensadas do trabalhopor alguma razão, sobrevivemde algummododurante o
período de desemprego, antes de serem reabsorvidas no emprego quando as condições para a
acumulação melhoram. Em termos atuais, a superpopulação flutuante equivale mais ou menos ao
conjunto de desempregados, tal como são quantificados nas estatísticas de desemprego, além
daquelesclassificadoscomosubempregadosou“trabalhadoresdesmotivados”.
A superpopulação latente sãopessoasque aindanão foramproletarizadas.Na épocadeMarx,o
termo referia-se particularmente às populações camponesas ainda não absorvidas pelo sistema de
trabalhoassalariado.Adestruiçãodosistemadesubsistênciacamponêsounativoeaproletarizaçãodo
mundo rural empurraramgrandesmassasparao trabalho assalariado. Isso continua atéhoje (como
mostraram nas últimas décadas China, México e Índia). A dissolução dos sistemas domésticos
tambémmobilizou–econtinuaamobilizar–mulheresecriançasparaaforçadetrabalhoassalariado
(transformandoasmulheresnaespinhadorsaldotrabalhoassalariadoemmuitaspartesdomundoem
desenvolvimento). A superpopulação latente pode também incluir produtores pequeno-burgueses
independenteseartesãosqueforamdeslocadospelograndecapitaleforçadosaingressarnomercado
detrabalho.AcanibalizaçãodasfazendasfamiliaresnosEstadosUnidosnosúltimoscinquentaanos
liberouaforçadetrabalhodeseusantigosconfinamentos.Poderíamosdizeromesmodosprodutores
independentes e das pessoas que dirigiam pequenas lojas e mercearias, hoje substituídas por
supermercados. A superpopulação latente é, portanto, uma categoria enorme e diversa, que
compreende produtores pequeno-burgueses de vários tipos, mulheres e crianças, camponeses etc.
Atualmente,elaabrangetambémgruposquefugiramdaproletarizaçãoapenaspararetornaraela.Os
médicosacreditavamquenãofaziampartedoproletariado,masnãoédifícilidentificaruminsidioso
processo de proletarização da força de trabalho médica. A proletarização da educação superior
tambémocorreuemritmoacelerado,àmedidaqueomodeloempresarialeneoliberaldauniversidade
seintensificou.Marxchamanossaatençãoparaaspossíveismudançasnadinâmicadeproletarização
easváriasmaneirascomoumareservalatentedeforçadetrabalhopodesermobilizada.Obviamente,
issovariarámuitodeumasituaçãoparaoutra.Alémdisso,enquantoapopulaçãoflutuanteestámais
ou menos confinada nas áreas da organização capitalista, a reserva latente tem uma composição
geográficamuitodiferente.Elaestápotencialmentedisponívelemtodososlugares,eageopolíticade
acessoaelamediantepráticasimperialistasecoloniaispodeterumpapelsignificativo.
Oterceiroextratoéasuperpopulaçãoestagnada.Refere-seàquelapartedapopulaçãoempregada
de maneira muito irregular e particularmente difícil de mobilizar. A camada mais baixa da
superpopulação estagnante é situada por Marx “na esfera do pauperismo” e inclui “vagabundos,
delinquentes, prostitutas”, em suma, o “lumpemproletariado propriamente dito”, pelo qual ele
demonstra muito pouca simpatia. Entre eles, encontram-se também os “aptos ao trabalho”, assim
como“osórfãoseosfilhosdeindigentes.Estessãocandidatosaoexércitoindustrialdereservae[...]
sãorápidaemassivamentealistadosnoexércitoativodetrabalhadores”.Porfim,há“osdegradados,
maltrapilhos, incapacitados para o trabalho”, especialmente os “indivíduos que sucumbem a sua
incapacidadedeadaptação,causadapeladivisãodo trabalho”.Essacamada formaaquiloqueMarx
chamade“asiloparainválidosdoexércitotrabalhadorativo”,eéquaseimpossívelmobilizá-laparaa
forçadetrabalhoassalariado(719).ÉissoqueWilliamJuliusWilsonchamade“subclasse”(umtermo
quenãoaprecio).
O último e longo item desse capítulo descreve com detalhes sombrios a situação vivida pelos
indivíduosqueintegravamoexércitoindustrialdereserva(tantoflutuantequantolatente).Embora
seconcentrenaGrã-Bretanha(e,emparticular,nascondiçõesdesuareservadetrabalhorural),Marx
dáatençãoespecialaopapeldaurbanizaçãoe,comrespeitoaosimigrantesirlandesesnaInglaterra,
identifica algo importante no modo como as mobilizações de forças de trabalho latentes
frequentemente se aproveitamdas diferenças de etnia e religião (nesse caso), o que, por extensão,
podeenglobartodotipodediferençaracial,sexual,religiosaetc.napolíticade“dividirparagovernar”
praticadapela classe capitalista.Não serianadadifícil encontrarparalelos emnossa época.A longa
história do trabalhodeporto-riquenhosnosEstadosUnidos temumanítida semelhança com ado
trabalho de irlandeses na Grã-Bretanha no século XIX. Poderíamos facilmente citar exemplos de
condiçõesdetrabalhonoMéxico,naGuatemala,naChina,emBangladesh,naIndonésiaenaÁfrica
doSulquenãoseriammenosterríveisdoqueascondiçõesdescritasporMarxnoitem5.
OsegundomodelodeacumulaçãodeMarxdepende fundamentalmentedas reservas flutuantes
criadaspelodesempregoinduzidopeloavançotecnológico.Omodosistêmicocomoessapopulação
flutuante é administrada (por exemplo, comoos trabalhadores desempregados permanecemvivos e
emcondiçõesde saúde suficientespara retornarà forçade trabalho)éobviamenteumaquestãode
interesse considerável.Mas há também um problema estratégico, o de se é mais vantajoso para o
capitalismotrabalharcomreservas flutuantesou latentes (a reservaestagnadaseriamuitodifícilde
mobilizar e coordenar). A livremanipulação de reservas flutuantes traz uma série de dificuldades.
Uma organização de trabalho forte, que exija ummínimo de segurança no trabalho, pode frear o
desemprego. Novas tecnologias e sistemas de produção podem ser desafiados pelos próprios
trabalhadores antes de se disseminarem.E as consequências políticas que resultamdaproduçãode
desemprego podem ser sérias em determinadas circunstâncias. Nas décadas de 1950 e 1960, por
exemplo,houveumarelutânciageral,porpartedaclasseempresarialburguesa,emcriardesemprego,
empartepormedodadesordemsocial.Preferiu-seencontrarreservaslatentes.Haviaduasmaneiras
defazerisso:tomarcapitalnoexteriorouimportartrabalhadores.NaSuécia,nasdécadasde1960e
1970,odesempregoerabaixoenãohaviapraticamentenenhumareservaflutuante.Dadoopoderdos
sindicatos,omontedeleissociaiseoforteaparatopolíticosocial-democrata,ageraçãodemais-valor
passouadependerdaimportaçãodetrabalhodePortugal,IugosláviaeEuropaCentral.Aescassezde
trabalho na indústria automobilística francesa levou o Estado a incentivar a imigração dos
magrebinos,enquantooexcedentedetrabalhadoresnaTurquiaalimentouaindústriaalemãdurante
essesanos.AsmudançasnasleisdeimigraçãonosEstadosUnidosduranteadécadade1960também
foramimportantesparaajudaramobilizarasreservas latentesdeforçadetrabalho.Oexcedentede
mãodeobranoMéxicoécrucialparaofuncionamentodasempresasnosEstadosUnidos,etornao
atualfurorcontraaimigração,tantolegalquantoilegal,umaquestãodifícil(porexemplo,afaltade
umexcedentedemãodeobracausouprejuízosnaépocadascolheitasnoOestedosEstadosUnidos).
Hojetemosumasituaçãoemqueháumdesempregoconsideráveleumagrandequantidadede
trabalho latente. É interessante refletir sobre essas categorias em relação com a história política
específicadocontroledotrabalhonocapitalismo.Apopulaçãoflutuantetambémlevantaaquestãode
comomanter a reserva num nível suficientemente saudável para competir com os empregados. A
criaçãodeestruturasdebem-estarfoiumadasrespostasencontradas,masissoémenossignificativo
agora,dadaatendênciaàneoliberalização.Oargumentodadireitaéqueodesempregosurgequando
os trabalhadores cobramumpreçomuitoaltopor seu trabalho.Os trabalhadores criamdesemprego
quandoserecusamatrabalharporumsalárioabaixodecertosaláriomínimo!Issocostumaacontecer
quando as políticas de bem-estar são muito generosas. Logo, a melhor maneira de acabar com o
desemprego é reduzir essas políticas a zero. Mas isso torna difícil para a população flutuante
permanecer como reserva de trabalho. O mesmo problema aflige a política de imigração. Toda
tentativa de regular a imigração nos EstadosUnidos vai de encontro à necessidade de um acesso
adequado à oferta de trabalho excedente. As indústrias, desde o agronegócio até aMicrosoft, são
contrapolíticasrestritivasdeimigração.
A administração da oferta de trabalho se torna crucial. O interesse da classe capitalista é
administraraofertadetrabalhoparacriareperpetuarumexércitodereserva(numacombinaçãode
flutuanteelatente)eassimmantersaláriosbaixos,ameaçarosempregadoscomdemissõesiminentes,
dispersar a organização de trabalho e aumentar a intensidade de trabalho dos que continuam
empregados. Desde os anos 1970, essa estratégia parece ter funcionado bastante bem nos Estados
Unidos, já que os salários reais permaneceram essencialmente baixos (com um breve período de
aumentonosanos1990),enquantoastaxasdelucroaumentaramemgeral.Essafoiaprimeiraerana
história dosEstadosUnidos emque os trabalhadores não tiraramnenhumbenefício dos aumentos
significativos de produtividade. Os benefícios obtidos com a procura de mais-valor relativo
acumularam-se nas mãos da classe capitalista, gerando imensas concentrações de riqueza e
desigualdadecrescente.
Adesconstruçãodosonhoutópicoliberal
Na seção IV, ao analisar a produção do mais-valor relativo, vimos que no interior do sistema capitalista todos os métodos para
aumentaraforçaprodutivasocialdotrabalhoseaplicamàcustadotrabalhadorindividual;todososmeiosparaodesenvolvimentoda
produção se convertem em meios de dominação e exploração do produtor, mutilam o trabalhador, fazendo dele um ser parcial,
degradam-noàcondiçãodeumapêndicedamáquina,aniquilamoconteúdodeseutrabalhoaotransformá-lonumsuplício,alienam
aotrabalhadoraspotênciasespirituaisdoprocessodetrabalhonamesmamedidaemqueatalprocessoseincorporaaciênciacomo
potência autônoma,desfiguramas condiçõesnas quais ele trabalha, submetem-no,duranteoprocessode trabalho, aodespotismo
maismesquinhoeodioso,transformamseutempodevidaemtempodetrabalho,arrastamsuamulhereseufilhosobarodadocarro
deJagrená
[b]
docapital.Mastodososmétodosdeproduçãodomais-valorsão,aomesmotempo,métodosdeacumulação,e toda
expansão da acumulação se torna, em contrapartida, ummeio para o desenvolvimento dessesmétodos. Segue-se, portanto, que, à
medidaqueocapitaléacumulado,asituaçãodotrabalhador,sejasuaremuneraçãoalta,sejabaixa,temdepiorar.Porúltimo,aleique
mantémasuperpopulaçãorelativaouoexércitoindustrialdereservaemconstanteequilíbriocomovolumeeovigordaacumulação
prendeo trabalhadoraocapitalmais firmementedoqueascorrentesdeHefestoprendiamPrometeuao rochedo.Elaocasionauma
acumulaçãodemisériacorrespondenteàacumulaçãodecapital.Portanto,aacumulaçãoderiquezanumpoloé,aomesmotempo,a
acumulaçãodemiséria,osuplíciodotrabalho,aescravidão,aignorância,abrutalizaçãoeadegradaçãomoralnopolooposto,istoé,
doladodaclassequeproduzseupróprioprodutocomocapital.(720-1)
Essa é a famosa tese conclusiva sobre o empobrecimento crescente do proletariado como
consequênciaecondiçãonecessáriadaacumulaçãocapitalista.Umarespostatípicaaessateseédizer
queelaestá simplesmenteerrada,quemuitos trabalhadoresdomundoestãohojemuitomelhordo
que há cem anos e que, embora possa ser verdade que as condições de trabalho nas indústrias da
ChinaenasfábricasclandestinasdeHongKongaindasejamterríveis,essesproblemassãotípicosde
um processo de transição para um padrão de vida material melhor, que mesmo nesses países já
começa a despontar. Essa é uma daquelas afirmações que tantomarxistas quanto críticos deMarx
costumam tomar como predições sólidas, que podem ser testadas recorrendo-se aos registros
históricos.E,namedidaemqueessesregistrosnãocorroboramplenamenteaspredições,aanálisede
Marxédeclaradaerrada.
Porisso,souobrigadoalembrá-lodospressupostosqueregemessescapítuloseenfatizarmaisuma
vez que conclusões desse tipo não são absolutas, mas contingentes, e dependem inteiramente dos
pressupostosestabelecidosno início.EssaéaconclusãodoLivro Id’Ocapital,noqualo foco recai
exclusivamente sobre a dinâmica da produção. A análise prossegue dessa perspectiva. O que
encontraremosnofimdoLivroII,escritodopontodevistadarealizaçãodocapitalnomercado,é
algointeiramentediferente.Lá,Marxseconcentraránosproblemasdademandaefetiva(quemtem
poder financeiro para comprar um volume cada vez maior de produtos?). Parte da solução desse
problematemderesidirnaquiloqueláelechamade“consumoracional”daclassetrabalhadora.Por
essetermo,eleentendeduascoisas:primeiro,aclassetrabalhadoratemdedispordepoderdecompra
suficientepara sercapazdeconsumir; segundo,aclasse trabalhadora temdeadquiriroshábitosde
consumoadequadosàabsorçãodoprodutoexcedentequeocapitalismonãoparadegerar.Assim,ao
final do Livro II, Marx cita como a filantropia burguesa se concentra em ensinar hábitos
“apropriados” de consumo às classes trabalhadoras (de modo semelhante ao que Ford fez quando
mobilizouumexércitodeassistentes sociaisparaassegurarqueaquelesque sebeneficiavamdeum
saláriodecincodólarespela jornadadeoitohorasqueele implantaraemsuas fábricasgastassemo
dinheirocomsensatez,enãooesbanjassemcombebidas,drogasemulheres).Assim,oquetemosno
fimdoLivro II éumahistória completamentediversa.Fica evidentequea classe trabalhadoranão
pode desempenhar seu papel socialmente necessário como um centro de demanda de produtos
capitalistasseahistóriacontadanoLivroIforaúnicaaexistir.
Então qual é o propósito do argumento do Livro I? Ele diz que se omundo funcionasse desse
modo o resultado seria um empobrecimento cada vez maior dos trabalhadores. Há elementos de
verdadenessaconclusão?Certamentesim,sepensarmosnasfábricasdaIndonésia,deBangladesh,do
VietnãedaGuatemala.Nesseslugares,reservaslatentesdetrabalhosãomobilizadassobcondiçõesde
extremabrutalidade.Defato,vemosali todaa“árduafaina”queMarxdescreve.Nãoprecisamos ir
muito longe para encontrar relatos detalhados das terríveis condições de trabalho emmuitos dos
centros mundiais de produção (os relatórios de diversas ONGs e da ONU estão cheios deles, e
mesmo a mídia convencional tem publicado matérias impressionantes). Além disso, uma das
características dos últimos trinta anos de práticas e políticas neoliberais é que a desigualdade de
rendanãoparoudeaumentaresurgirambilionáriosportodaaparte(Índia,México,China,Rússia),
fazendo da imagemda acumulação de riqueza, de um lado, e damiséria, de outro, umametáfora
muitoconvincenteparadescreverascondiçõesdocapitalismoglobalcontemporâneo.
Assim,édifícillerahistórianarradanoLivroIenãoreconhecerqueeladescreveumaverdade,
aindaqueparcial,sobretudosecomparadacomasituaçãonospaísescapitalistasavançadosnosanos
1950 e 1960, quando a organização do trabalho era relativamente forte, as tendências social-
democrataseramdominanteseasintervençõesestatais,tantonaproduçãocomonadistribuiçãoda
riqueza,erammaisamplamenteaceitas.Naquelestempos,asquestõesdeconsumoracionalerammais
salientes:comogarantirqueaclassetrabalhadoracompreautomóveis?Ora,bastaconstruircidadese
subúrbiosdetalmodoqueoautomóvelsetorneumanecessidadeenãomaisumluxo,oquesignifica
que os trabalhadores terão de receber o suficiente para poder dispor de automóveis, habitações
suburbanas e tudo o que acompanha esse estilo de vida.Durante essa época, a análise do Livro II
tinhamuitosentido,easconclusõesdoLivroIpareciamumpoucoimplausíveis.
Muito disso mudou na virada neoliberal dos anos 1970. Houve uma expansão maciça do
proletariado no mundo todo, quando cerca de 2 bilhões de pessoas foram privadas de sua base
econômicae introduzidasnoproletariado,sejapeladestruiçãodemodosdevidaruraleeconomias
camponesas (comonaAméricaLatinaenosuldaÁsia), sejapelaaçãodiretadogoverno(comona
ChinaenolestedaÁsiaemgeral).Oresultadoprevisíveldesseinfluxofoiqueasclassestrabalhadoras
doscentrostradicionaisdeacumulaçãodecapitalnãomelhoraramdevida.Aumentosespantososde
riqueza fluíram para o 1%mais rico (emais ainda, proporcionalmente, para o 0,1%mais rico) da
população. A perseguição do projeto neoliberal nos levou de volta a ummundo em que a análise
apresentadanoLivroIécadavezmaisrelevante.
Esse era um projeto consciente das classes dominantes. O “choque Volcker”, que aumentou
dramaticamente as taxas de juros nos Estados Unidos no início de 1979, produziu um surto de
desemprego;isso,conjugadoaoataquedopresidenteReaganaotrabalhoorganizado(acomeçarpela
extinçãodosindicatodecontroladoresdetráfegoaéreonagrevede1981),tevecomoclaroobjetivo
disciplinar o trabalho. O economista britânico Alan Budd, refletindo sobre sua experiência como
principalconselheiroeconômicodeMargaretThatcher,confessoumaistardequãoenvergonhadose
sentiaaoladodeseusvizinhos:
aspolíticasde controleda inflaçãonos anos1980, ao comprimir a economia e o gastopúblico, foramumdisfarceparabaternos
trabalhadores.Odesempregocrescenteeraummeiomuitoadequadodereduziraforçadaclassetrabalhadora.Oquefoiengendrado–
em termosmarxistas– foiuma crisedo capitalismo,que recriouumexércitode reservade trabalho epermitiu aos capitalistas fazer
altoslucrosdesdeentão.
[1]
ComoReagan,Thatcheratacoupoliticamenteopoderdossindicatoscomarepressãoviolentada
grevedosmineirosnosanos1980.Maisumavez,oobjetivoeradisciplinarotrabalhoparagarantir
lucroseumaacumulaçãoilimitada.OqueéterrívelnaanálisedeMarxéofatodetalresultadoser
inteiramenteprevisívelepodersertãofacilmentearticuladoemtermosmarxistas.
O queMarx faz no Livro I d’O capital é levar a sério as palavras e as teorias dos economistas
políticosclássicoseperguntarquetipodemundosurgiriaseelesconseguissemimplementarsuavisão
liberal utópica demercados de funcionamento perfeito, liberdade pessoal, direitos de propriedade
privadaelivre-comércio.Passoapasso,eleexploraoqueacontecerianummundoconstruídosegundo
essa imagem.AdamSmith pretendiamostrar que a riqueza nacional cresceria e todos viveriam ou
poderiamvivermelhornummundodemercadosdescentralizadosefuncionamentolivre(apesarde
ele próprio não eximir o Estado de responsabilidade, quando se tratava de distribuir a riqueza de
modomais equitativo).OqueMarxmostra équeummundoconstruído segundoas linhasdeum
puro laissez-faire produziria, por um lado, uma acumulação crescente de riqueza e, por outro, uma
enormeacumulaçãodemiséria.Quemgostariadeconstruirummundosegundoasregrasdessavisão
utópica?A resposta é de umaobviedade estonteante: osmembros ricos da classe capitalista!Quem
tentanosconvencerdasvirtudesdessavisãoutópicadolivremercadoequemnoscolocounatrilha
neoliberal? Surpresa!Os ricos, queusaram seudinheiro paranos convencer de que omercado está
semprecertoedequeateoriamarxianaéumabobagem.
O projeto neoliberal (comomostro emO neoliberalismo: história e implicações
[c]
) foi direcionado
para a acumulação crescente de riqueza e a apropriação crescente de mais-valor pelos degraus
superiores da classe capitalista. E, ao perseguir esse objetivo, a classe capitalista tomou o caminho
típico, tal comodescritonosmodelosde acumulaçãode capital apresentadosnoLivro I.Diminuir
salários e criar desemprego por meio de mudanças tecnológicas que deslocam trabalhadores,
centralizaropodercapitalista,atacarasorganizaçõesdostrabalhadoreseinterferiraomesmotempo
nacoordenaçãodaofertaedademanda(quando,comovimos,ocapitalatuaemambososladosdo
mercado), investir na terceirização enaprodução offshore,mobilizar populações latentes em todoo
mundo e reduzir o máximo possível as políticas de bem-estar social. Foi exatamente nisso que
consistiu a “globalização neoliberal”. Criaram-se as condições socialmente necessárias, em grande
partedeacordocomaanálisefeitanoLivroI,paraaimensaacumulaçãoderiquezadeumapequena
parcela da população a expensas de todo o restante. O problema, é claro, é que esse tipo de
capitalismoneoliberalsópodesobreviver“minandoaomesmotempoosmananciaisdetodaariqueza:
aterraeotrabalhador”(574).
MasessanãofoiaúnicaconsequênciacoerentecomaanálisedeMarx.Nessecapítulo,eleaponta
a inevitabilidade da concentração e da centralização crescentes do capital sob as condições do
utopismo do livremercado. Essa foi outra forte característica do neoliberalismo nos últimos trinta
anos(bastaolharmosparaaenergia,a indústria farmacêutica,amídiae, sobretudo,acentralização
crescentedopoderfinanceiro).Liberdadesexcessivasdemercadosempreproduzemumatendênciaa
ummaioroligopólio e atémesmoaummonopólio (fato reconhecidona legislaçãoantitruste e em
monitoramentosestatais–amplamenteineficazesemnossosdias–defusõesemonopólios).Ariqueza
nãoapenasseacumula,comoseconcentranasmãosdeumaclassecapitalistacadavezmaispoderosa!
Mas isso também levanta um problema. O que acontece quando as condições para a harmonia
definidasnaanáliseapresentadanoLivroIIsetornamtãocontraditórias–precisamenteporcausada
polarizaçãodariqueza–apontodeprovocarumacrisecomoaqueestourouem2008?Talveznãoseja
poracasoqueoúnicoperíododahistóriadosEstadosUnidosemqueadistribuiçãoderiquezafoitão
assimétrica quanto hoje tenha sido nos anos 1920, e agora estejamos assistindo a uma reprise do
colapsode1929em2008.
Acredito que isso seja um imenso testemunho da força da análise deMarx e do poder de seu
método.Não resta dúvida de que ele pode nos fazer enxergar aspectos da dinâmica histórica que
muitofrequentementepermanecemocultos,aomesmotempoqueenfrentaascontradiçõeslatentese
aspoderosasconstruçõesideológicasqueproduzemelegitimamostiposderesultadosqueeleprevê.
Quantos Nassau Seniors não se encontram hoje em nossos departamentos de economia! Assim, é
apropriado defender teses condicionais deMarx, reconhecendo que, embora não sejam a história
inteira, ainda assim são um aspecto vital e muito facilmente reconhecível daquilo que ocorre no
capitalismodehoje.De fato, eledesfezo feitiçoda“lei geral,absoluta,daacumulaçãocapitalista” em
termos nada equívocos, ainda que também reconheça que “como todas as outras leis, ela é
modificada,emsuaaplicação,pormúltiplascircunstâncias,cujaanálisenãocaberealizaraqui”(719-
20).A lei geral é uma exposição brilhante dos caminhos por onde nos levarão o livremercado e o
utopismoliberal,casosejamimplantados,e,nograucomqueavirada ideológicaneoliberaladotou
essafraseologia,deu-lhenovaroupagemebuscouimplementá-la,elarealmentenoslevounadireção
previstaporMarx, repletadecontradições.Uma leituraatentado textodeMarxeumaapreciação
profundadeseumétodo,apesardenãonostrazeremnenhumreconforto,podemproporcionarmuitos
insightseumasignificativacapacidadedediagnóstico.
[a]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.631.(N.E.)
[b] Juggernaut (Dschagannat): umadas formasdodeusVishnu.Ocultode Jagrená caracterizava-seporumelevadograude fanatismo
religiosoeincluíarituaisdeautoflagelaçãoeautossacrifícioextremos.Emcertosdiasfestivos,osfiéissejogavamsobasrodasdeumcarro
(o“carrodeJagrená”),sobreoqualseencontravaumafiguradeVishnu-Dschagannat.(N.T.)
[1]VerTheObserver,21dejunhode1992.
[c]DavidHarvey,Oneoliberalismo:históriaeimplicações(SãoPaulo,Loyola,2008).(N.T.)
11.Osegredodaacumulaçãoprimitiva
Oscapítulos24e25d’Ocapitalapresentamumanítidamudançadetom,conteúdoemétodo.Para
começar,elesvãodeencontroaopressupostocentraldorestodolivro,estabelecidonocapítulo2,em
queMarxaceitaomundoteóricodeAdamSmithdetrocasatomísticasrealizadasnomercado;nesse
mundo,aliberdade,aigualdade,apropriedadeeBenthamreinamdetalmodoquetodasastrocasde
mercadoriaocorremnumambientenãocoercitivodeinstituiçõesliberaisemperfeitofuncionamento.
Smith sabia perfeitamente bem que esse não é o modo como o mundo realmente funciona, mas
aceitou-o como uma ficção conveniente e convincente sobre a qual ele podia erigir uma teoria
econômico-política normativa. Marx, como vimos, leva tudo isso em conta para desconstruir seu
utopismo.
Usando desse estratagema, Marx foi capaz de mostrar, como vimos no último capítulo, que,
quantomais próximos estivermos de um regime demercado livre,mais nos veremos confrontados
comduasimportantesconsequências.Amenordelaséqueaestruturadescentralizada,fragmentadae
atomística que evitaria que umpoder singular dominasse emanipulasse omercado dá lugar a um
podercapitalista cadavezmais centralizado.Aconcorrência tende sempreaproduzirmonopólioe,
quanto mais feroz a concorrência, mais rápida é a tendência à centralização. A maior das
consequências é a produção, de um lado, de imensas concentrações de riquezas (em particular da
partedoscapitalistascentralizadores)e,deoutro,deumacrescentemiséria,exploraçãoedegradação
daclassetrabalhadora.
O projeto neoliberal dos últimos trinta anos, fundado no utopismo liberal, confirmou as duas
tendênciasprevistasporMarx.Éclaroque,nosdetalhes,háumagrandedosededivergência,tanto
geográficaquantosetorial,masograudecentralizaçãodocapitalqueocorreuemváriasesferas foi
avassalador, e há um reconhecimento geral de que as imensas concentrações de riqueza que
ocorreramno pontomais alto da escala de riqueza e renda jamais foram tão grandes como agora,
enquanto as condições de vida das classes trabalhadoras do mundo inteiro estagnaram ou se
deterioraram.NosEstadosUnidos,porexemplo,aproporçãodarendaedariquezaconcentradasnas
mãosdo1%maisricodapopulaçãodobrounosúltimosvinteanos,eado0,1%maisricotriplicou.A
proporçãoderendaentreosdiretoresexecutivoseos trabalhadoresassalariadosmédios,queerade
30:1 nos anos 1970, passou para mais de 350:1 em média nos últimos anos. Onde quer que a
neoliberalizaçãotenhasidodesenfreada(comonoMéxicoenaÍndiaapartirdosanos1990),novos
bilionáriosentraramparaalistadaForbesdaspessoasmaisricasdomundo.OmexicanoCarlosSlimé
hojeumadaspessoasmaisricasdomundo,eelealcançouessaposiçãonaesteiradaneoliberalização
queocorreunoMéxiconoiníciodosanos1990.
Marxchegouaessasconclusõescontraintuitivasdesconstruindo,emseusprópriostermos,asteses
dos economistas políticos clássicos.Mas também usou criticamente suas poderosas abstrações para
penetraradinâmicarealdocapitalismoerevelarasorigensdaslutasemtornodaduraçãodajornada
detrabalho,dascondiçõesdevidadoexércitoindustrialdereservaecoisasdogênero.Aanálisedo
LivroIpodeserlidacomoumrelatosofisticadoecondenatóriodeque“nãohánadamaisdesigualdo
quetratardesiguaiscomoiguais”.Aideologiada liberdadedetrocaeda liberdadedecontratonos
ludibria a todos. Fundamenta a superioridade e a hegemonia moral da teoria política burguesa e
sustenta sua legitimidade e seu suposto humanismo.Mas, quando as pessoas entramnessemundo
livreeigualitáriodastrocasmercantiscomdoteserecursosdiferentes,mesmoamenordesigualdade,
paranãofalardadivisãofundamentaldaposiçãodeclasse,aprofunda-seetransforma-secomotempo
emenormesdesigualdadesdeinfluência,riquezaepoder.Eisso,quandosomadoaumacentralização
crescente,contribuiparaainversãodevastadoradeMarxdavisãosmithianado“benefíciodetodos”
quederivadamãoinvisíveldomercado.Issoesclareceoconteúdodeclassedaquiloque,porexemplo,
caracterizou os últimos trinta anos de globalização neoliberal.O resultado emMarx é uma crítica
ferozdastesesdaliberdadeindividualquefundamentamateorialiberaleneoliberal.Essesideaissão,
na visão de Marx, tão enganadores, fictícios e fraudulentos quanto sedutores e cativantes. Os
trabalhadores,comoobservaele,sãolivresapenasnoduplosentidodesercapazesdevendersuaforça
detrabalhoparaquemquiserem,aomesmotempoquesãoobrigadosavenderessaforçadetrabalho
para viver, porque foram libertados e liberados de todo e qualquer controle sobre os meios de
produção!
Oqueoscapítulos24e25d’Ocapitalfazeméanalisarcomoessesegundotipode“liberdade”foi
assegurado. Somos obrigados a enfrentar o uso predatório, violento e abusivo do poder que se
encontra nas origens históricas do capitalismo, quando ele liberou a força de trabalho como uma
mercadoriaeeliminouomododeproduçãoanterior.Ospressupostosquedominaramoargumento
emtodososcapítulosanterioresd’Ocapitalsãoabandonadoscomconsequênciasbrutais.
O capitalismo, comovimos, depende fundamentalmentedeumamercadoria capazdeproduzir
maisvalordoqueaquelequeela tem,eessamercadoriaéa forçade trabalho.ComoMarxobserva
numapassagemd’Ocapital:
Aperguntasobreporqueessetrabalhadorlivreseconfrontacomelenaesferadacirculaçãonãointeressaaopossuidordedinheiro,
queencontraomercadodetrabalhocomoumaseçãoparticulardomercadodemercadorias.E,nopresentemomento,elatampouco
teminteresseparanós.Ocupamo-nosdaquestãoteoricamente,assimcomoopossuidordedinheiroocupa-sedelapraticamente.Uma
coisa,noentanto,éclara.Anaturezanãoproduzpossuidoresdedinheiroedemercadorias,deumlado,esimplespossuidoresdesuas
próprias forças de trabalho, de outro.Essa não é uma relaçãonatural e tampoucouma relação social comuma todos os períodos
históricos.Masé claramenteo resultadodeumdesenvolvimentohistóricoanterior,oprodutodemuitas revoluções econômicas,da
derrocadadetodaumasériedeformasanterioresdeproduçãosocial.(244)
Aacumulaçãoprimitivadizrespeitoàsorigenshistóricasdessetrabalhoassalariado,assimcomoà
acumulaçãonasmãosdocapitalistadosrecursosnecessáriosparaempregá-lo.
Oscapítulos24e25tratam,portanto,daquestãocentraldatransformaçãodaforçadetrabalho
emmercadoria(ou,demodomaisgeral,daformaçãodaclassetrabalhadora).Aversãoburguesadessa
história,contadaporLockeeSmith,éaseguinte:
Numaépocamuitoremota,havia,porumlado,umaelitelaboriosa,inteligenteesobretudoparcimoniosae,poroutro,umbandode
vadiosadissipartudooquetinhameaindamais[...].Deu-se,assim,queosprimeirosacumularamriquezaseosúltimosacabaramsem
ternadaparavender,anãosersuaprópriapele.Edessepecadooriginaldatamapobrezadagrandemassa,queaindahoje,apesarde
todoseutrabalho,continuaanãopossuirnadaparavenderanãoserasimesma,eariquezadepoucos,quecrescecontinuamente,
emborahámuitotenhamdeixadodetrabalhar.(785)
Essahistóriadescreveumatransiçãogradualepacíficadofeudalismoparaocapitalismo.Mas“na
históriareal”,dizMarx,
o papel principal é desempenhado pela conquista, pela subjugação, pelo assassínio para roubar, em suma, pela violência. Já na
economia política, tão branda, imperou sempre o idílio.Direito e “trabalho” foram, desde tempos imemoriais, os únicosmeios de
enriquecimento,excetuando-sesempre,éclaro,“esteano”.(786)
Issoaconteceporque
oprocessoquecriaarelaçãocapitalistanãopodesersenãooprocessodeseparaçãoentreotrabalhadoreapropriedadedascondições
derealizaçãodeseutrabalho,processoque,porumlado,transformaemcapitalosmeiossociaisdesubsistênciaedeproduçãoe,por
outro,converteosprodutoresdiretosemtrabalhadoresassalariados.Aassimchamadaacumulaçãoprimitivanãoé,porconseguinte,
maisdoqueoprocessohistóricodeseparaçãoentreprodutoremeiodeprodução.Elaaparececomo“primitiva”porqueconstituia
pré-históriadocapitaledomododeproduçãoquelhecorresponde.(786)
Em termos factuais, os métodos da acumulação primitiva “podem ser qualquer coisa, menos
idílicos [...]. E a história dessa expropriação está gravada nos anais da humanidade com traços de
sangueefogo”(786-7).
AvisãodeMarx,radicalmentediferentedadeSmitheLocke,levantaquestõesinteressantes.Em
primeiro lugar: o capital comercial e financeiro e a usura são formas antediluvianas ou ainda
desempenham um papel ativo, independente do capital de produção, do capital industrial etc.?
Anteriormente, Marx observou que “tanto o capital comercial como o capital a juros são formas
derivadas”, ao mesmo tempo que “tornar-se-á claro por que elas surgem historicamente antes da
modernaformabasilardocapital”(240).Issoimplicaqueatransiçãodofeudalismoparaocapitalismo
ocorreuemestágiosemqueocapitalcomercialeocapitalusurárioabriramocaminhoparaocapital
de produção (ou industrial). O papel que essas formas anteriores de capital desempenharam na
dissoluçãodaordemfeudalestá,portanto,abertoàinvestigação.Emsegundolugar:issosignificaque,
umavezqueocapitalismopassoupelaacumulaçãoprimitiva,eumavezqueapré-históriaacaboue
surgiu uma sociedade capitalista madura, os violentos processos que ele descreve tornam-se
insignificantes e desnecessários aomodo comoo capitalismo funciona?Essa é uma questão à qual
retornareimaisadiante.Masébomtê-laemmente,enquantoprosseguimos.
Na versão de Marx da acumulação primitiva, todas as regras da troca mercantil expostas
anteriormente (no capítulo 2) são abandonadas. Não há reciprocidade nem igualdade. Sim, a
acumulaçãododinheiroestálá,bemcomoosmercados,masoprocessorealédiferente.Trata-seda
expropriaçãoviolentadetodaumaclassedepessoasdocontrolesobreosmeiosdeprodução,primeiro
pormeiode ações ilegais e,por fim, comoa leide cercamentona Inglaterra,pela açãodoEstado.
AdamSmith,éclaro,nãoqueriaqueoEstadofosseentendidocomoumagenteativonavitimaçãoda
população e, por isso, não podia contar uma história da acumulação primitiva em que o Estado
desempenhasseumpapelcrucial.Seasorigensdaacumulaçãodocapitalseencontramnoaparatoe
nopoder estatal, qual é o sentidodedefenderpolíticasde laissez-faire comoummeio fundamental
para aumentar o bem-estar nacional e individual? Por isso, Smith, e a maioria dos economistas
políticos clássicos, preferiu ignorar o papel do Estado na acumulação primitiva. Houve exceções.
James Steuart, observaMarx, compreendeu que a violência estatal era absolutamente fundamental
para a proletarização, mas assumiu a posição de que era um mal necessário. O livro de Michael
Perelman,TheInventionofCapitalism[Ainvençãodocapitalismo]
[1]
,forneceumaexcelenteexplicação
sobrecomoaacumulaçãooriginalouprimitivafoitratadanaeconomiapolíticaclássica.
A principal preocupação de Marx nos capítulos 24 e 25 é esmiuçar a história da acumulação
primitivadoséculoXVIemdianteeinvestigarcomoessesprocessosforampostosemmovimento.É
claro que ele admite prontamente que a “história [da expropriação da terra] assume tonalidades
distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e em diferentes épocas
históricas. Apenas na Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se
apresentaemsuaformaclássica”(787-8).
Devemos entender por “clássica” que essa expropriação foi um modelo de transição para o
capitalismoqueomundointeirotevedeseguir?Maistarde,Marxnegouessainterpretaçãoeafirmou
queviaaGrã-Bretanhaapenascomoumexemplo,apesardeespecialepioneiro.Maisumavez,essas
questões são controversas, e teremos de retornar a elas. O modo como pensamos sobre elas tem
relevânciaparaoutraquestão importante,porémlargamentenegligenciada:énecessáriopassarpela
acumulaçãoprimitivaepelalongahistóriadocapitalismoparachegaraosocialismo?
CAPÍTULO24:AASSIMCHAMADAACUMULAÇÃOPRIMITIVA
Ositensdocapítulo24sãorelativamentecurtoseordenadosnumasequênciacomclarasimplicações.
Vejamosalgunsdeseuspontosmaisimportantes.Oprimeiroitemtratadaexpropriaçãodapopulação
agrícola,bemcomodoprocessoigualmenteimportantededissoluçãodoslaçosdosvassalosfeudais.A
apropriaçãodaterrafoiomeioprincipalparaexpropriarocampesinato,masaliberaçãodosvassalos
se deveumuito aomodo como o poder do dinheiro começou a ser exercido na, e sobre a, ordem
feudal(porexemplo,pelocapitalcomercialepelausura).“Anovanobrezaeraumafilhadesuaépoca,
para a qual o dinheiro era o poder de todos os poderes” (790). NosGrundrisse, Marx é bemmais
explícito.Lá,elemostracomoodinheirodissolveacomunidadetradicionale,aofazê-lo,torna-seele
mesmoacomunidade.Assim,passamosdeummundoemquea“comunidade”édefinidaemtermos
de estruturas de relações sociais interpessoais para ummundo emqueprevalece a comunidadedo
dinheiro.Odinheiro,usadocomopodersocial,conduzàcriaçãodegrandeslatifúndios,criaçõesde
ovelhasecoisasdogênero,aomesmotempoqueatrocademercadoriasprolifera(umaideiamuito
presentenos capítulos iniciais sobre odinheiro e a troca emgeral).A comunidade tradicional não
capitulasemlutare,aomenosnosestágiosiniciais,opoderestataltentapreservaraquiloque,mais
tarde,E.P.Thompsonchamariade “economiamoral”do campesinato contraopodernue crudo
dinheiro.
Mas o poder estatal cede gradualmente por duas razões. Em primeiro lugar, porque o Estado
dependedopoderdodinheiroetorna-se,assim,vulnerávelaele.Emsegundolugar,porqueopoder
dodinheiropodesercriadoemobilizadodeummodoquealegislaçãoestataltenhadificuldadede
detê-lo. Sob Henrique VII, aprovaram-se leis que tentavam conter o processo de monetização e
proletarização.Masopodercadavezmaiordoincipientecapitalismodemandava,aocontrário,“uma
posiçãoservildasmassaspopulares,atransformaçãodestasemtrabalhadoresmercenárioseadeseus
meiosdetrabalhoemcapital”.Um“novoeterrívelimpulsoaoprocessodeexpropriaçãoviolentadas
massaspopulares foidado,noséculoXVI”e,depoisdisso,aresistênciadaordemsocial tradicional
começou a ruir (792). Em vez de as ilegalidades do poder do dinheiro assumirem uma liderança
subversiva,oEstadosealiaaessepoderecomeçaaapoiarativamenteosprocessosdeproletarização.
Essatendênciaseconsolida,dizMarx,comaRevoluçãoGloriosade1688,que:
conduziuaopoder,comGuilhermeIIIdeOrange,osextratoresdemais-valor,tantoproprietáriosfundiárioscomocapitalistas.Estes
inauguraramanovaerapraticandoemescalacolossaloroubodedomíniosestataisque,atéentão,erarealizadoapenasemproporções
modestas.Taisterrasforampresenteadas,vendidasapreçosirrisóriosou,pormeiodeusurpaçãodireta,anexadasadomíniosprivadas.
[...]Opatrimônio doEstado, apropriadodessemodo fraudulento, somado ao roubodas terras da Igreja [...], constitui a base dos
atuaisdomíniosprincipescosdaoligarquiainglesa.(795-6)
Sobre essa base, formaram-se alianças de classe novas e mais poderosas. “A nova aristocracia
fundiáriaeraaliadanaturaldanovabancocracia,dasaltasfinançasrecém-saídasdoovoedosgrandes
manufatureiros, que então se apoiavam sobre tarifas protecionistas.”Emoutras palavras, formou-se
umaburguesiaconstituídaporumaamplaaliançaentrecapitalistasrurais,comerciais,financeirose
manufatureiros.Elescurvamoaparatoestatalàsuavontadecoletiva.Oresultadoéquea“próprialei
se torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes arrendatários também
empreguemparalelamenteseuspequenoseindependentesmétodosprivados”.
Dessemodo, o roubo sistemático da propriedade comunal se estende por todo o período, com
destaque para o amplo cercamento das terras comuns. A “violenta usurpação dessa propriedade
comunal,emgeralacompanhadadatransformaçãodasterrasdelavouraempastagens,teminíciono
finaldoséculoXVeprossegueduranteoséculoXVI”(796).Fortuitamente,taiscircunstânciasderam
origemaumaimportanteliteraturanostálgicasobreaperdadaantigaordem.Esseeraomundode
OliverGoldsmithedaselegiasdeGraysobreadestruiçãodeumasupostaalegreInglaterra
[a]
.Marx
escolhe um exemplo posterior, o caso espetacular da expulsão dos habitantes das Terras Altas
escocesas,ondeoscamponesesforamexpulsospoucoapoucodesuasterrasatéofimdoséculoXIX.
ElecriticaahipocrisiadaduquesadeSutherland,que,enquantoexpulsavaaspessoasdasTerrasAltas
porumprocessoquase legal, recebia“emLondres, comgrandepompa,aautoradeA cabanado pai
Tomás, Harriet Beecher Stowe, a fim de exibir sua simpatia pelos escravos negros da república
americana”(802,nota218)
DizMarx,emresumo:
O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da propriedade comunal, a transformação
usurpatória, realizadacominescrupulosoterrorismo,dapropriedade feudaleclânicaempropriedadeprivadamoderna foramoutros
tantosmétodos idílicosdaacumulaçãoprimitiva.Taismétodosconquistaramocampoparaaagriculturacapitalista, incorporaramo
soloaocapitalecriaramparaaindústriaurbanaaofertanecessáriadeumproletariadointeiramentelivre.(804)
Aquestãosobreoquetodasessaspessoasexpulsasdesuasterrasfariamétratadanoitem3.Em
geralnãohaviaempregoparaelas;então,aomenosaosolhosdoEstado,taisindivíduossetornavam
vagabundos,mendigos, ladrões e assaltantes.Oaparato estatal respondiadeummodoqueperdura
até nossos dias: criminalizando e encarcerando, tratando-os como vagabundos e praticando contra
eles a mais extrema violência. “Assim, a população rural, depois de ter sua terra violentamente
expropriada,sendodelaexpulsaeentregueàvagabundagem,viu-seobrigadaasesubmeter,pormeio
de leis grotescas e terroristas, e por força de açoites, ferros em brasa e torturas, a uma disciplina
necessária ao sistema de trabalho assalariado.” A violência da socialização dos trabalhadores ao
aparatodisciplinardocapitalénítida.Mas,comopassardotempo,“acoerçãomudaexercidapelas
relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador”. Uma vez formado o
proletariado,segundooqueMarxparecedizer,amudacoerçãodasrelaçõeseconômicascumpresua
missão, e a violência flagrante pode passar a segundo plano, pois as pessoas foram socializadas à
situação de trabalhadoras assalariadas, como portadoras da mercadoria-força-de-trabalho. Mas “a
burguesia emergente” continua a necessitar do “poder do Estado” para regular os salários e evitar
qualquer tipo de organização coletiva dos trabalhadores (a legislação antissindical e o que foi
chamadonaépocadeCombinationLaws,leisqueproibiamassociaçõeseatémesmoassembleiasde
trabalhadores)(808-9).Essefoiumapoiocrucial,observaMarx,paraaconsolidaçãodoregimeliberal
(fundadonosdireitosdepropriedadeprivada).
Jáno inícioda tormenta revolucionária, aburguesia francesaousoudespojarnovamenteos trabalhadoresde seu recém-conquistado
direito de associação. O decreto de 14 de junho de 1791 declarou toda coalizão de trabalhadores um “atentado à liberdade e à
DeclaraçãodosDireitosdoHomem”.(812)
A legalidade burguesa é usada desse modo muito específico para inibir os potenciais poderes
coletivosdotrabalho.
Oitem4examinaagênesedosarrendatárioscapitalistas.Marxcontaumahistóriamuitosimples
sobrecomoosbailiosprimeiro se tornarammeeirosedepoisarrendatáriospassando,então,apagar
renda fundiária (emdinheiro) aos senhores rurais.Esseprocessodemonetização emercantilização
deu impulso a uma “revolução agrícola” no campo, permitindo que o capital utilizasse o solo de
determinadamaneira.Ocapitalcirculavaatravésdosolo,danatureza,exatamentedomesmomodo
que circulava através do corpo do trabalhador como capital variável. O impacto dessa revolução
agrícola,dizMarxnoitem5,tevedoislados:liberounãosóumagrandequantidadedetrabalho,mas
tambémmeiosdesubsistênciaqueanteseramconsumidosdiretamentenaterra.Elemercantilizoua
oferta de alimentos.Omercado para bens emercadorias cresceu, em parte porquemenos pessoas
podiam subsistir por sua própria conta.O resultado foi a expansão das trocas e o crescimento do
mercado. Enquanto isso, o capital destruiu grande parte dos negócios subsidiários artesanais e
domiciliares não apenas na Índia, como também na Grã-Bretanha. Isso levou à criação de um
mercadodomésticomaisforteemaior.OcrescimentodomercadointernonaGrã-Bretanhaapartir
doséculoXVIfoi,segundoMarx,umelementoimportantenodesenvolvimentodocapitalismo.
Issonosconduz,noitem6,àgênesedocapitalistaindustrial,queassumiuopapeldeprotagonista
que antes eradesempenhadopelo capital comercial,pelo capitalusurário,pelabancocracia (capital
financeiro) e pelo capital fundiário. Desde o início, essa mudança estava estreitamente ligada ao
colonialismo, ao comércio escravagista e ao que ocorreu na África e nos Estados Unidos. No
feudalismo havia muitas barreiras para a transformação da quantidade cada vez maior de capital
monetárioemcapitalindustrial.“Oregimefeudalnocampoeaconstituiçãocorporativanascidades”
inibiram o desenvolvimento industrial baseado no trabalho assalariado,mas “essas barreiras caíram
comadissoluçãodosséquitosfeudaisecomaexpropriaçãoeaparcialexpulsãodapopulaçãorural”.
Contudo,comopredizMarx,
Anovamanufaturaseinstalounosportosmarítimosexportadoresouempontosdocamponãosujeitosaocontroledovelhoregime
urbanoedesuaconstituiçãocorporativa.NaInglaterraseassistiu,porisso,aumaamargalutadascorporatetowns
[b]
contraessasnovas
incubadorasindustriais.(820-1)
NaGrã-Bretanha,ocapitalismoindustrialsedesenvolveunaquiloquehojechamaríamosdeáreas
não cultivadas [greenfield sites]. Centros econômicos como Norwich e Bristol eram altamente
organizados,eeramuitodifícilenfrentá-lospoliticamenteeconteropoderdasguildas.Nasregiões
nãocultivadasnãoexistiamaparatosregulatóriosparadetê-lo–nãohaviaumaburguesiacitadinaou
guildasorganizadas.Porisso,amaiorpartedaindustrializaçãobritânicaocorreuemantigosvilarejos,
como Manchester (todas os centros algodoeiros eram originalmente pequenos vilarejos). Leeds e
Birmingham também começaram como pequenos vilarejos comerciais. Esse padrão de
industrializaçãodiferedaqueledeoutrasregiões,emboracontinueavaleraregradeque,sempreque
possível, o capital gosta de se deslocar para lugares ermos. Quando a indústria automobilística
japonesasetransferiuparaaGrã-Bretanhanosanos1980,elaevitouasregiõesmaissindicalizadase
instalou-se em áreas abertas a novos desenvolvimentos, onde as companhias podiam agir com
liberdade e construir o que bem quisessem (com o apoio do governo antissindical de Thatcher, é
claro). Nos Estados Unidos, a tendência é a mesma. Encontrar espaços onde não há regulação e
organizaçãosindicalcontinuaaserumaspectosignificativodadinâmicageográficaelocacionaldo
capitalismo.
Opapeldosistemacolonialedocomércioescravagistanãopodeserignorado,poisfoipormeio
delesqueaburguesiacercouesubjugouospoderesfeudais.Háumafortecorrentedeopiniãoquevê
as plantations das Índias Ocidentais no começo do século XVIII como um estágio pioneiro da
organização de trabalho em larga escala, como aquelas que reaparecerammais tarde nos sistemas
fabrisdaGrã-Bretanha:“Taismétodos,como,porexemplo,osistemacolonial,baseiam-se,emparte,
na violênciamais brutal” (821). Todo tipo de tática foi usado para extrair riqueza das populações
colonizadas.“Entre1769e1770”,porexemplo,“osinglesesfabricaramumsurtodefomepormeioda
compradetodoarrozepelarecusaderevendê-lo,anãoserporpreçosfabulosos”(822-3).Todosesses
métodos
lançarammãodopoderdoEstado,daviolênciaconcentradaeorganizadadasociedade,paraimpulsionarartificialmenteoprocessode
transformaçãodomododeproduçãofeudalemcapitalistaeabreviaratransiçãodeumparaooutro.Aviolênciaéaparteiradetoda
sociedadevelhaqueestáprenhedeumasociedadenova.Elamesmaéumapotênciaeconômica.(821)
Mas não podemos entender esse papel crucial do Estado como força organizadora e como
promotor do sistema colonial sem reconhecer a importância tanto da dívida nacional quanto do
sistemadecréditopúblicocomomeiospelosquaisopoderdodinheiropodecomeçaracontrolaro
poderdoEstado.AfusãodopoderdodinheirocomopoderestatalapartirdoséculoXVIéassinalada
peloadventodeum“modernosistematributário”edeumsistemainternacionaldecrédito(826).Os
“bancocratas,financistas,rentistas,corretores,stockjobbers[bolsistas]”etc.quepovoavamessesistema
passaram a desempenhar importantes funções de poder (825).O sistema colonial permitia que “os
tesouros espoliados fora da Europa diretamentemediante o saqueio, a escravização e o latrocínio”
fossem levados “àmetrópole”, onde “se transformavam em capital”, aomesmo tempo que a dívida
públicasetornava“umadasalavancasmaispoderosasdaacumulaçãoprimitiva”(824).
Sistema colonial, dívidas públicas, impostos escorchantes, protecionismo, guerras comerciais etc., esses rebentos do período
manufatureiro propriamente dito cresceram gigantescamente durante a infância da grande indústria. O nascimento desta última é
celebradopelogranderaptoherodianodosinocentes.(827)
Esse“massacre” surgiudanecessidadedeencontrar emobilizar forçade trabalho suficiente em
áreasdistantesdascidades.MarxcitaJohnFielden:“Oquemaisserequisitavaeramdedospequenos
e ágeis. Logo surgiu o costume de buscar aprendizes (!) nas diferentes workhouses paroquiais de
Londres,Birminghameoutroslugares”(827).EMarxprossegue:“Enquantointroduziaaescravidão
infantilnaInglaterra,aindústriadoalgodãodava,aomesmotempo,oimpulsoparaatransformação
daeconomiaescravistadosEstadosUnidos,antesmaisoumenospatriarcal,numsistemacomercial
de exploração”, e com isso estimulava o comércio escravagista, que estava sob o domínio dos
britânicos. “Liverpool teve um crescimento considerável graças ao tráfico de escravos. Esse foi seu
métododeacumulaçãoprimitiva”(829).Foinecessárioumimensoesforçopara
trazer à luz as “eternas leis naturais” do modo de produção capitalista, para consumar o processo de cisão entre trabalhadores e
condiçõesdetrabalho,transformando,numdospolos,osmeiossociaisdeproduçãoesubsistênciaemcapitale,nopolooposto,a
massadopovoemtrabalhadoresassalariados,em“pobreslaboriosos”livres,esseprodutoartificialdahistóriamoderna.(829)
Se o dinheiro “vem aomundo commanchas naturais de sangue numa de suas faces”, conclui
Marx,“ocapitalnasceescorrendosangueelamaportodososporos,dacabeçaaospés”(830).
Osprocessosdeexpropriação,afirmaMarxnoitem7,sãotãolongosquantobrutaisedolorosos.O
feudalismonãoacabou sem luta. “Apartirdessemomento, agitam-seno seioda sociedade forças e
paixõesquesesentemtravadasporessemododeprodução.”
[Ofeudalismo]temdeserdestruído,eédestruído.Suadestruição,atransformaçãodosmeiosdeproduçãoindividuaisedispersosem
meiosdeproduçãosocialmenteconcentradose,porconseguinte,a transformaçãodapropriedadenanicademuitosempropriedade
gigantescadepoucos,portanto,aexpropriaçãoquedespojagrandemassadapopulaçãodesuaprópriaterraedeseusprópriosmeios
de subsistência e instrumentosde trabalho, essa terrível edificultosa expropriaçãodasmassaspopulares, tudo isso constitui apré-
históriadocapital.(831)
Essa pré-história “compreende uma série demétodos violentos” que levam ao “mais implacável
vandalismo” (831). Mas, uma vez em movimento, os processos do desenvolvimento capitalista
assumemsuapróprialógicadistintiva,inclusiveadacentralização.“Cadacapitalistaliquidamuitos
outros. Paralelamente a essa centralização, ou à expropriação de muitos capitalistas por poucos,
desenvolve-se a forma cooperativa do processo de trabalho em escala cada vez maior, a aplicação
técnicaconscientedaciência,aexploraçãoplanejadadaterra”(832).
Isso ocorre àmedida que se forma omercadomundial e, com ele, o “caráter internacional do
regimecapitalista”.Dissotambémemergearevoltadaclassetrabalhadora,
que, cada vez mais numerosa, é instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O
monopóliodocapitalseconvertenumentraveparaomododeproduçãoquefloresceucomeleesobele.Acentralizaçãodosmeiosde
produção e a socializaçãodo trabalho atingemumgrau emque se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista.Oentrave é
arrebentado.Soaahoraderradeiradapropriedadeprivadacapitalista.Osexpropriadoressãoexpropriados.(832)
Há, no fim das contas, uma enorme diferença entre “a expropriação da grande massa da
população” por uns poucos usurpadores e a expropriação de uns poucos usurpadores pela grande
massadapopulação.
Esse chamado às barricadas da revolução é a retórica doManifesto Comunista, que retorna para
influenciar o conteúdo político d’O capital. Trata-se de uma afirmação política e polêmica, que
certamente havia de proporcionar a uma obra impressionante como esta, de tão profunda análise,
animadaporumespíritotãorevolucionário,umcapítuloculminante.
Isso nos leva ao último capítulo [capítulo 25], um capítulo curioso, que contraria a retórica
messiânicadocapítuloprecedenteeofereceumasériedereflexõessobreateoriadacolonização.Além
disso, ele trata não da experiência colonial real e dos prognósticos das lutas revolucionárias
anticoloniais(aexpropriaçãodossenhorescoloniaispelamassadopovocolonizado),masdasteorias
dacolonizaçãoelaboradasporumhomemchamadoWakefield,quenuncafigurouentreosgrandes
economistas políticos de todos os tempos e escreveu seu livro sobre colonização enquanto cumpria
penanaprisãodeNewgateportentarseduzirafilhadeumafamíliarica.Naprisão,Wakefieldachou-
se em companhia de prisioneiros prestes a ser enviados para a Austrália, e isso, é claro, levou-o a
pensar sobre o papel da Austrália no esquema geral das coisas. Ele sabia pouco do que estava
acontecendo na Austrália, mas viu algo que Marx considerou de grande importância, porque
significava uma refutação esmagadora de Adam Smith. Wakefield reconheceu simplesmente que
podemos levar para a Austrália todo o capital existente no mundo (dinheiro, instrumentos de
trabalho, materiais de todos os tipos); no entanto, se não conseguirmos encontrar trabalhadores
“livres”(noduplosentidodapalavra!)paratrabalharparanós,nãopodemossercapitalistas.
Em suma,Wakefield “descobriu que o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre
pessoas,intermediadaporcoisas”(836).EradifícilencontrartrabalhadoresnaAustrália;naépoca,eles
tinhamacessofácilàterraepodiamsesustentarcomoprodutoresindependentes.Oúnicomeiode
asseguraraofertadetrabalho,eassimpreservarasperspectivasdocapitalismo,eraoEstadointervire
pôr um preço de reserva na terra. Esse preço de reserva tinha de ser suficientemente alto para
assegurarquetodosque fossemparaaAustrália tivessemdetrabalharcomoassalariadosatépoupar
capital suficiente para ter acesso à terra.Wakefield considerava que o sistema agrário nos Estados
Unidos(oHomesteadAct)eraabertoelivredemais,eissoaumentavamuitoopreçodotrabalho(o
que,comovimosanteriormente,levouàrápidaadoçãodeinovaçõesquepoupavamtrabalho).Como
Wakefield predisse corretamente, os Estados Unidos teriam de recorrer às táticas brutais da pré-
históriadocapitalismosequisessemqueosistemacontinuassevivonopaís.Alutaentreo“trabalho
livre”nafronteiraeocontrolecrescentedapolíticaagráriaporinteressesprivados(emparticularas
ferrovias), assim como a retenção das populações imigrantes como trabalhadores assalariados nas
cidades,eramaspectosvitaisdaacumulação.
“Oquenosinteressa”,escreveMarx,
éapenasosegredoqueaeconomiapolíticadoVelhoMundodescobrenoNovoMundoeproclamabemalto,a saber,odequeo
modocapitalistadeproduçãoeacumulação–e,portanto,apropriedadeprivadacapitalista–exigeoaniquilamentodapropriedade
privadafundadanotrabalhopróprio,istoé,aexpropriaçãodotrabalhador.(844)
Ogovernodeveconferirà terravirgem,pordecreto,umpreçoartificial, independenteda leidaofertaedademanda,queobrigueo
imigrante a trabalhar como assalariadoporumperíodomaior, antes quepossa ganhardinheiro suficientepara comprar sua terra e
transformar-senumcamponêsindependente.(842)
Esse,dizMarx,éo“grandesegredo”dosplanosdeWakefieldparaacolonização,masétambémo
grande segredo da acumulação primitiva. Esses planos tiveram uma influência considerável no
Parlamentobritânicoeafetaramapolíticaagrária.“Éaltamentecaracterísticoqueogoverno inglês
tenhaaplicadodurantemuitosanosessemétodode‘acumulaçãoprimitiva’,expressamenteprescrito
pelosr.Wakefieldparaseuusoempaísescoloniais”(843).
Marxusaessateoriacolonialpararefutarateoriasmithianadaacumulaçãooriginalouprimitiva.
Mas há algomais em jogo aqui, algo que pode ser de profunda relevância para o argumento e a
estruturad’Ocapital como livro.No prefácio da segunda edição,Marxmenciona sua relação com
Hegelediz:“Critiqueioladomistificadordadialéticahegelianaháquasetrintaanos”(91).Équase
certoqueeleserefiraàsualongaCríticadafilosofiadodireitodeHegel.Nela,elepartedoparágrafo250
daexposiçãodeHegel.Masoconteúdodosparágrafosprecedentes é surpreendente.Semqualquer
advertência ou teorização prévia, Hegel inicia uma discussão das contradições internas do
capitalismo. Ele observa a “dependência e a agonia da classe ligada” a um certo tipo de trabalho,
processos que levam ao empobrecimento generalizado e à criação de uma turba demiseráveis, ao
mesmo tempoque “produz,dooutro ladoda escala social, condiçõesque facilitam imensamente a
concentraçãodesproporcionalderiquezaempoucasmãos”.Alinguagemémuitosimilaràdocapítulo
23d’Ocapital, em queMarx fala da acumulação de riqueza numpolo e damiséria, da faina e da
degradação no outro polo, ocupado pela classe trabalhadora. “Por isso, torna-se evidente”, observa
Hegel,“que,apesardeumexcessoderiqueza,asociedadecivilnãoéricaosuficiente[...]paraevitar
apobrezaexcessivaeacriaçãodeumamultidãodemiseráveis”.Dizainda:
Essa dialética interna da sociedade civil a leva – ou leva de todomodo uma sociedade civil específica – a avançar para alémde seus
próprioslimiteseabuscarmercados,ecomelesseusmeiosnecessáriosdesubsistência,emoutrospaíses,quesãodeficientesnosbens
queelaproduzemexcessoou,demodogeral,sãoindustrialmenteatrasados.
Uma “sociedade civil madura” é levada assim à atividade colonizadora, “pormeio da qual ela
ofereceaumapartedesuapopulaçãoumretornoàvidaembasesfamiliaresnumnovopaísegarante
parasimesmaumanovademandaeumnovocampoparasuaindústria”
[2]
.
OqueHegelchamade“dialéticainterna”produzníveiscadavezmaioresdedesigualdadesocial.
Alémdisso, comoelediznumde seus adendos, “contra anaturezaohomemnãopode reivindicar
nenhumdireito,mas,umavezqueasociedadeestáestabelecida,apobrezaassumeimediatamentea
formadeummalcometidoporumaclassecontraaoutra”
[3]
.Essadialéticainterna,fundadanaluta
de classes, leva as sociedades civis a buscar alívio numa “dialética externa” da atividade colonial e
imperialista.NãoestáclaroseHegelacreditaqueissoresolveráoproblemainterno.Marx,porém,está
segurodequenão.A expropriaçãodos expropriadores, expostanopenúltimo capítulo [capítulo24]
d’O capital como resultado último da dialética interna, não pode ser contraditada por práticas
coloniaisqueapenasrecriamemescalamaiorasrelaçõessociaisdocapitalismo.Nãopodehaveruma
soluçãocolonialàscontradiçõesdeclasseinternasdocapitalismoe,nessemesmosentido,nãopode
haver um ajuste espacial às contradições internas. O que hoje chamamos de globalização é
simplesmente,comonos lembramatodoinstante,umajustetemporárioque“resolve”osproblemas
noaquieagora,projetando-osparaumterrenogeográficomaioremaisamplo.
COMENTÁRIO
HáumavariedadedequestõeslevantadaspelaanálisedeMarxdaacumulaçãoprimitivaquerequer
comentário. Para começar, é importante reconhecer e apreciar o caráter inovador e pioneiro dessa
análise.Nuncaninguémhavia feito issodemodo tão sistemático eordenado.Mas, comocostuma
acontecercomteoriasinovadoras,essaéumpoucoexageradaetratasuperficialmentedeumasérie
de questões. Desde então, historiadores e historiadores econômicos realizaram uma enorme
quantidade de pesquisas sobre a transição do feudalismo para o capitalismo. Provavelmente seria
consensoque ahistória contadaporMarx éparcialmente verdadeira emalgunspontos.Houve,de
fato, vários momentos e incidentes de extrema violência nessa geografia histórica. E é inegável o
papel do sistema colonial, inclusive da evolução das políticas agrárias, trabalhistas e tributárias
aplicadas nas colônias. Mas também houve exemplos de acumulação primitiva que foram
relativamente pacíficos. As populações eram menos forçadas a sair da terra do que atraídas pelas
possibilidadesdeempregoepelasperspectivasdeumavidamelhoroferecidaspelaurbanizaçãoepela
industrialização.Atransferênciavoluntáriaparaascidadesdepopulaçõesinteiras,quedeixavampara
trás as condiçõesprecáriasda vida rural embuscade altos salários,não era incomum(mesmo sem
aquelesprocessosdeexpropriaçãodaterraaqueMarxserefereedosquaisháevidênciashistóricas
suficientes).Ahistóriadaacumulaçãoprimitivaé,portanto,muitomaisnuançadaecomplicadaem
seusdetalhesdoqueaquelaqueMarxconta.E, em suadinâmica,houveaspectos importantesque
Marx ignora.Porexemplo,adimensãodegêneroé reconhecidahojecomoaltamente significativa,
porqueaacumulaçãoprimitivaacarretoumuitasvezesumaperda radicaldepoderdasmulheres, a
reduçãodelasàcondiçãodepropriedademóveleoreforçodasrelaçõessociaispatriarcais.
Marx, porém, delineou os traços gerais da revolução industrial e agrícola, dos processos de
proletarização,mercantilizaçãoemonetizaçãonecessáriosaosurgimentodocapitalismo.Suaanálise
estabeleceu uma linha para todas as discussões futuras e isso já é suficiente para fazer dela uma
intervenção criativa. Ela nos recorda dramaticamente a violência originária e as lutas ferozes que
deramàluzocapitalismo,umaviolênciaquesubsequentementeaburguesiatentounegareesquecer,
apesardevivermosatéhojecomsuasmarcas.
Por todoO capital, mas também em muitos de seus outros escritos, Marx tende a relegar os
processosdeacumulaçãoprimitivaàpré-históriadocapitalismo.Umavezacabadaessapré-história,
entraemcenaa“coerçãosilenciosadasrelaçõeseconômicas”.OprojetopolíticodeMarxn’Ocapital
consiste emnos alertar sobreomodocomoessas coerções silenciosasoperamemnós,muitas vezes
sem nos darmos conta, escondidas atrás das máscaras fetichistas que nos cercam. Ele nosmostra,
comoafirmeianteriormente,quenãohánadamaisdesigualdoqueotratamentoigualdedesiguais;
que a igualdade pressuposta no mercado nos ilude, fazendo-nos acreditar na igualdade entre as
pessoas; que as doutrinas burguesas dos direitos de propriedade privada e da taxa de lucro fazem
parecerquetodostemosdireitoshumanos;queasilusõesdaliberdadepessoaledaliberdade(ecomo
eporqueagimoscombasenessasilusões,eatélutamosporelaspoliticamente)nascemdasliberdades
domercadoedolivre-comércio.
Mashá,ameuver,umproblemanaideiadequeaacumulaçãoprimitivaaconteceuumavezna
história e, após concluída, perdeu a importância. Em tempos recentes, diversos comentadores,
inclusive eu, sugeriram que temos de atentar para a continuidade da acumulação primitiva que
aconteceu durante toda a geografia histórica do capitalismo. Rosa Luxemburgo introduziu
firmemente essa questão na agenda há cerca de um século. Insistiu no fato de que pensamos o
capitalismocomosendobaseadoemduasformasdeexploração:
Umadizrespeitoaomercadodemercadoriaseaolugarondeomais-valoréproduzido–afábrica,amina,olatifúndioagrícola.Vista
poresseprisma,aacumulaçãoéumprocessopuramenteeconômico,cuja fasemais importanteéa transaçãoentreocapitalistaeo
trabalhadorassalariado.[...]Aqui,aomenosformalmente,prevalecemapaz,apropriedadeeaigualdade,eaagudadialéticadaanálise
científica[e,segundoela,essafoiaprincipalrealizaçãodeMarxn’Ocapital]eranecessáriapararevelarcomoodireitodepropriedade,
nocursodaacumulação,torna-seapropriaçãodapropriedadedeoutrem,ecomoatrocademercadoriasetransformaemexploraçãoe
aigualdade,emdomíniodeclasse.
Isso é, de fato, o queMarx revela tão brilhantemente até o capítulo 23 d’O capital. “O outro
aspectodaacumulaçãodocapital”,dizela,
dizrespeitoàsrelaçõesentreocapitalismoeosmodosnãocapitalistasdeprodução,quecomeçamasurgirnocenáriointernacional.
Seusmétodospredominantessãoapolíticacolonial,umsistemadecréditointernacional–umapolíticadeesferasdeinteresse–ea
guerra.A força, a fraude, a opressão e o saque sãopraticados abertamente, semnenhuma tentativadedisfarce, e énecessário certo
esforçoparadescobrir,nesseemaranhadodeviolênciapolíticaedisputasdepoder,asleisinexoráveisdoprocessoeconômico.
[4]
Há,sustentaela,uma“conexãoorgânica”entreessesdoissistemasdeexploraçãoeacumulação.A
longa história do capitalismo está centrada nessa relação dinâmica entre, de um lado, a contínua
acumulação primitiva e, de outro, a dinâmica da acumulação pormeio do sistema de reprodução
ampliadadescriton’Ocapital.Portanto,Marxestavaerrado,dizela,emsituaraacumulaçãoprimitiva
numpontoantediluviano,numapré-históriadocapitalismo.Ocapitalismoteriadeixadodeexistirhá
muito tempo, se não tivesse se engajado em novos ciclos de acumulação primitiva, sobretudo por
meiodaviolênciadoimperialismo.
Intuitivamente,muitascoisas sugeremqueRosaLuxemburgoestavacertaemprincípio,mesmo
que não concordemos com suas conclusões específicas. Para começar, os processos específicos de
acumulaçãoqueMarxdescreve – a expropriaçãodas populações rurais e camponesas, a política de
exploração colonial, neocolonial e imperialista, o uso dos poderes doEstado para realocar recursos
paraaclassecapitalista,ocercamentodeterrascomuns,aprivatizaçãodas terrasedosrecursosdo
Estadoeosistemainternacionaldefinançaecrédito,paranãofalardosdébitosnacionaiscrescentes
edacontinuaçãodaescravidãopormeiodotráficodepessoas(especialmentemulheres)–todosesses
traços ainda estão entrenós e, emalguns casos, parecemnão ter sido relegados ao segundoplano,
mas,comoosistemadecrédito,ocercamentodeterrascomunseaprivatização,tornaram-seainda
maisproeminentes.
Acontinuidadesetornaaindamaisenfáticaquandodeslocamosnossoolhardocaso“clássico”da
Grã-Bretanhaparaageografiahistóricadocapitalismonocenáriomundial.RosaLuxemburgocitaas
chamadasGuerrasdoÓpiocontraaChinacomoexemplodosprocessosqueelatinhaemmente.Um
dos maiores mercados estrangeiros para os produtos britânicos era a Índia, e os indianos podiam
pagar por esses produtos, em parte fornecendo matérias-primas para a Grã-Bretanha (comoMarx
indica n’O capital). Mas isso não era suficiente. Assim, o ópio indiano foi cada vez mais
comercializadonaChinaemtrocadaprata,quepodiaserusadaparapagarpelosprodutosbritânicos.
Quando os chineses tentaram controlar o comércio exterior em geral e o comércio de ópio em
particular,oExércitobritânicosubiuorioYangtzéedestruiuoExércitochinêsnumacurtabatalha
para forçar a abertura dos portos. Apenas por meios imperialistas como esses, sugeriu Rosa
Luxemburgo,équesepodiaasseguraraacumulaçãodelongoprazoearealizaçãodocapital.Segundo
sua obra, a continuidade da acumulação primitiva ocorreu sobretudo na periferia, fora das regiões
ondeomododeproduçãocapitalista se tornoudominante.Práticascoloniais e imperialistas foram
cruciaisemtudoisso.Contudo,àmedidaquenosaproximamosdopresente,opapeldasmudanças
naperiferia(emparticularcomadescolonização)easpráticasdaacumulaçãoprimitivanãoapenas
mudam e proliferam em suas diferentes formas, mas também se tornam mais proeminentes nas
principaisregiõesdominadaspelocapital.
Considere,porexemplo,ocasodaChinacontemporânea.AChinapassouporumprocessopróprio
de desenvolvimento, com relaçõesmínimas com o exterior, durante o governo deMao. Em 1978,
porém,DengXiaopingcomeçouaabriropaísparaoexteriorearevolucionaraeconomiachinesa.As
reformas agrícolas não só produziram o equivalente a uma revolução agrícola na produção, como
também extraíram da terra uma enorme quantidade de trabalho e produção excedentes. Não há
dúvidadequealgoequivalenteaoqueMarxdescrevecomoacumulaçãoprimitivaocorreunaChina
nosúltimos trinta anos.Enograucomquea aberturadaChinaajudoua estabilizaro capitalismo
globalemtemposrecentes,éprovávelqueRosaLuxemburgoolhasseparaissoedissessequeessenovo
ciclode acumulaçãoprimitiva foi fundamentalpara a sobrevivênciadocapitalismo.Nesse caso,no
entanto, os acontecimentos não foram provocados por práticas imperialistas estrangeiras,mas pelo
EstadochinêsepeloPartidoComunista,queresolveuseguirumaviaquasecapitalistaparaaumentar
ariquezanacional.Issolevouàcriaçãodeumproletariadourbanoamploemalpago,oriundodeuma
população agrária, a um investimento inicialmente controlado de capital estrangeiro em certas
regiões e cidades para empregar esse proletariado e ao desenvolvimento de uma rede de relações
comerciais globaispara comercializar e realizaro valordasmercadorias,mesmoquandoomercado
interno já começava adar grandes saltosde crescimento.É interessantenotar tambémopapeldas
terras não cultivadas na China. Viu-se acontecer em Shenzhen, a partir de 1980, o mesmo que
aconteceuemManchester,quepassoudeumpequenovilarejoparaumsólidocentroindustrialem
poucasdécadas.OpadrãodedesenvolvimentoemShenzhennãoémuitodiferentedaquelequeMarx
descreve,excetoqueograudeviolênciaorigináriofoiabrandado(algunsdiriamquefoidissimulado)
eopoderdoEstadoedopartidofoifundamentalemtodoesseprocesso.Àluzdesseexemplo,edo
papel crucial que a China desempenhou na contínua expansão de um sistema capitalista cujo
empenho era “a acumulação pela acumulação, a produção pela produção”, é difícil evitar as
conclusões de que (a) algo semelhante à acumulação primitiva continua vivo na dinâmica do
capitalismo contemporâneo e (b) sua existência ininterrupta pode ser fundamental para a
sobrevivênciadocapitalismo.
Mas essa proposição é válida em toda a parte. A violência da extração dos recursos naturais
(sobretudonaÁfrica) e a expropriaçãodas populações camponesasnaAméricaLatina, noSul eno
Leste da Ásia continuam a ocorrer. Tudo continua igual e, em alguns casos, até se intensificou,
provocandosériosconflitos,porexemplo,emtornodaexpulsãodepopulaçõescamponesasnaÍndia
paraabrircaminhoparaacriaçãode“zonaseconômicasespeciais”emterrasnãocultivadas,ondea
indústria possa iniciar suas atividades em terreno privilegiado.O assassinato dos camponeses que
resistiram às expulsões emNandigram, em BengalaOcidental, que visavam abrir caminho para o
desenvolvimento industrial, éumexemplo tão “clássico”de acumulaçãoprimitivaquantoqualquer
outro da Grã-Bretanha do século XVII. Além disso, quando Marx aponta o débito nacional e o
sistema nascente de crédito como aspectos vitais na história da acumulação primitiva, ele está
falandodealgoquecresceudesordenadamenteparaagircomoumsistemanervosocentraleregular
osfluxosdecapital.AstáticaspredatóriasdeWallStreetedasinstituiçõesfinanceiras(operadorasde
cartãodecrédito) são indicadorasdeumaacumulaçãoprimitivarealizadaporoutrosmeios.Assim,
nenhumadaspráticaspredatóriasidentificadasporMarxdesapareceu,ealgumasatéprogredirama
grausinimagináveisentão.
Nosdiasatuais,noentanto,astécnicasdeenriquecimentodasclassesdominanteseadiminuição
do padrão de vida do trabalhador por algo semelhante à acumulação primitiva proliferaram e se
multiplicaram.Porexemplo,aUnitedAirlinesvaiàfalênciaeconseguequeoTribunaldeFalências
reconheçaqueaempresaprecisaselivrardesuasobrigaçõescomaposentadoriasparaserumnegócio
viável.Todosos funcionáriosdaUnitedAirlines sãosubitamenteprivadosdesuasaposentadoriase
passam a depender de um fundo de previdência do Estado que paga taxas muito menores. Os
funcionáriosaposentadosdacompanhiaaérea sãoenviadosdevoltaaoproletariado.Háentrevistas
comex-funcionáriosdaUnitedAirlinesemqueelesdizem:“Estoucom67anoseacheiqueestaria
vivendo tranquilamente comminha aposentadoriade80mildólarespor ano,mas estouganhando
apenas35mil.Vouterdevoltarparaomercadoeencontrarumempregoparasobreviver”.Eagrande
questão,aquerealmenteinteressa,é:paraondefoioequivalentedetodoessedinheiro?Talveznão
seja coincidência que, no momento em que muitos trabalhadores eram privados de suas pensões,
planos de saúde e outros direitos de bem-estar em todo o território dos Estados Unidos, a
remuneraçãodeexecutivosdeWallStreetediretoresexecutivosatingianíveisestratosféricos.
Considere,aindacomoexemplo,aondadeprivatizaçõesquevarreuomundocapitalistaapartir
dosanos1970.Aprivatizaçãodaágua,daeducaçãoeda saúdeemmuitospaísesqueos forneciam
comobenspúblicosalteroudramaticamenteo funcionamentodocapitalismo(criandotodotipode
mercado,porexemplo).Aprivatizaçãodeempresasestatais(quasesempreporpreçosquepermitiam
aos capitalistas conseguir lucros imensos emmuito pouco tempo) também acabou com o controle
públicosobreocrescimentoeasdecisõesde investimento.Essaé,defato,umaformaparticularde
cercamentodosbenscomuns,orquestradaemmuitoscasospeloEstado(comonociclooriginárioda
acumulaçãoprimitiva).Oresultadofoiumconfiscodosrecursosedosdireitosdaspessoascomuns.E,
aomesmotempoquehouveconfisco,houveessaimensaconcentraçãoderiquezanooutroextremo
daescala.
EmmeuslivrosOnovoimperialismo
[c]
eOneoliberalismo:históriaeimplicação,afirmeique,hoje,o
poder de classe consolida-se cada vezmais pormeio de processos desse tipo.Como parece ser um
poucoestranhochamá-losdeprimitivosouoriginais,prefirochamaressesprocessosdeacumulação
dedesapossamento.Argumenteique,emboraboapartedesseprocessotenhaocorridonosanos1950e
1960,emparticularpormeiodastáticasdocolonialismoedoimperialismoenabuscapredatóriade
recursosnaturais,nãohaviaumagrandeacumulaçãopordesapossamentonasprincipais regiõesdo
capitalismo,sobretudonaquelasondeexistiamsólidosaparatossocial-democratas.Apartirdemeados
dadécadade1970,oneoliberalismomudouisso.Aacumulaçãopordesapossamentose interiorizou
cadavezmaisnasprincipaisregiõesdocapitalismo,aindaquetenhaseampliadoeaprofundadoem
todo o sistema global. Não deveríamos ver a acumulação primitiva (como poderíamos considerar
razoavelmenteque éo casonaChina)ou a acumulaçãopordesapossamento (comoocorreu coma
ondadeprivatizaçõesnasprincipaisregiõesdocapitalismo)comoalgoquedizrespeitoapenasàpré-
históriadocapitalismo.Elacontinuae,nosúltimostempos,foirevividacomoumelementocadavez
mais importante nomodo comoo capitalismo opera para consolidar o poder de classe. E ela pode
abarcartudo–desdeoconfiscododireitodeacessoàterraeàsubsistênciaatéaprivaçãodedireitos
(aposentadoria,educaçãoesaúde,porexemplo)duramenteconquistadosnopassadopormovimentos
daclassetrabalhadoraemlutasdeclasseferozes.ChicoMendes,olíderdosseringueirosnaAmazônia,
foiassassinadopordefenderummododevidacontraoscriadoresdegado,osprodutoresdesojaeos
madeireiros que pretendiam capitalizar a terra. Os camponeses de Nandigram foram mortos por
resistir à expulsão da terra contra o desenvolvimento capitalista.OMovimento dosTrabalhadores
RuraisSemTerra(MST)noBrasileoszapatistaslutaramemdefesadeseudireitoàautonomiaeà
autodeterminaçãoemambientesricosemrecursos,quesãocobiçadosoudominadospelocapital.E
então imagine como os novos fundos de private equity tomam as empresas públicas nos Estados
Unidos, apropriam-se de seus ativos e demitem omáximo possível de funcionários, antes de levar
essasempresasreestruturadasparaomercadoevendê-lasporumlucroaltíssimo(operaçãoquerende
aodiretorexecutivodofundodeprivateequityumbônusastronômico).
Háinúmerosexemplosdelutacontratodasessasformasdeacumulaçãoedesapossamento.Luta
contra a biopirataria e a tentativa de patentearmaterial e códigos genéticos; luta contra o uso da
desapropriação compulsória para abrir espaço para empreendedores capitalistas; luta contra a
gentrificação [gentrification]eaproduçãode sem-tetoemNovaYorkeLondres;omodopredatório
comoosistemadecréditoexpulsaosagricultoresfamiliaresdesuasterrasafimdeabrircaminhopara
oagronegócionosEstadosUnidos...Alistanãotemfim.Aacumulaçãopordesapossamentocontinua
a ocorrer por intermédio de uma variedade de práticas que, ao menos superficialmente, não tem
nenhumarelaçãodiretacomaexploraçãodotrabalhovivoparaaproduçãodemais-valor, talcomo
aquelaqueMarxdescreven’Ocapital.
Há, no entanto, aspectos comuns, assim como complementares, entre os dois processos, como
sugereRosaLuxemburgo–corretamente,ameuver–aoapontara“relaçãoorgânica”entreeles.A
extraçãodemais-valoré,afinaldecontas,umaformaespecíficadeacumulaçãopordesapossamento,
porqueésimplesmenteaalienação,aapropriaçãoeodesapossamentodacapacidadedotrabalhador
deproduzirvalornoprocessodetrabalho.Alémdomais,paraqueessaformadeacumulaçãocontinue
acrescer,éprecisoencontrarmaneirasdemobilizarpopulaçõeslatentescomotrabalhadoreseliberar
maisterrasemaisrecursoscomomeiosdeproduçãoparaodesenvolvimentocapitalista.Assimcomo
no casoda Índia edaChina, por exemplo, a criaçãode “zonas econômicas especiais”pormeioda
expulsão de camponeses de suas próprias terras é pré-requisito para a continuidade do
desenvolvimentocapitalista,domesmomodocomoalimpezadasassimchamadasfavelasénecessária
paraqueocapitalemdesenvolvimentoexpandasuasoperaçõesurbanas.Essatomadadeterraspelo
Estado mediante desapropriação ou outro meio legal tornou-se um fenômeno disseminado nos
tempos recentes. Em Seul, nos anos 1990, investidores e construtores estavam desesperados por
terrenosurbanoseforçaramodesapossamentodepopulaçõesquehaviamimigradoparaacidadenos
anos 1950 e construído suas casas em terrenos dos quais não possuíamo título de propriedade.As
construtoras contrataram gangues de valentões para ir a essas regiões da cidade e destruir a
marretadas as casas dessas pessoas, assim como todos os seus bens.Na década de 1990, podíamos
andarporbairrosdeSeultotalmentedevastados,pontilhadosdeilhasdeintensaresistênciapopular.
Emboratendaaconsiderarqueareproduçãoampliadaéomecanismopormeiodoqualomais-
valoréacumuladoeproduzido,Marxnãodeixadenotarascondiçõesnecessáriasdodesapossamento,
quetambémredistribuirecursosdiretamenteparaaclassecapitalista.AssimcomoRosaLuxemburgo,
pensoqueaacumulaçãopormeiododesapossamentonãopodeserignorada,oconfiscododireitoà
aposentadoria,àsterrascomunseàseguridadesocial(umativoquepertenceatodaapopulaçãodos
EstadosUnidos),acrescentemercantilizaçãodaeducação,paranãofalardasexpulsõesdasterraseda
destruição domeio ambiente, são fatores importantes para omodo como entendemos a dinâmica
agregadadocapitalismo.Alémdisso,aconversãoemmercadoriadeumativodepropriedadecomum
como a educação, a conversão das universidades em instituições empresariais neoliberais (com
enormes consequências para o que se ensina nelas e o modo como se ensina), tem importantes
consequências ideológicas e políticas e é ao mesmo tempo o sinal e o símbolo de uma dinâmica
capitalistaquenãopoupanadaemsualutaparaexpandiraesferadaproduçãoeextraçãodolucro.
Na história da acumulação primitiva descrita por Marx, houve todo tipo de luta contra as
expulsõeseasexpropriações forçadas.MovimentosgeneralizadosnaGrã-Bretanha–os levellers e os
diggers, por exemplo – resistiram violentamente. Não seria exagero dizer que, nos séculos XVII e
XVIII,asprincipaisformasdelutadeclassenãoforamcontraaexploraçãodotrabalho,mascontrao
desapossamento.Emmuitaspartesdomundo,poderíamosdizeromesmohoje.Issonoslevaapensar
qualformadelutadeclasseconstituiouconstituiráocernedeummovimentorevolucionáriocontra
ocapitalismonumdado lugarenumdadomomento.Comodesdeadécadade1970ocapitalismo
globalnãotemconseguidogerarcrescimento,aconsolidaçãodopoderdeclassetevedeapelarcom
muitomaisforçaparaaacumulaçãopordesapossamento.Foiprovavelmenteissoqueencheuoscofres
dasclassesaltasapontodefazê-lostransbordar.Orenascimentodosmecanismosdeacumulaçãopor
desapossamento foi particularmente visível no papel cada vez maior do sistema de crédito e das
apropriaçõesfinanceiras,emcujaúltimaondamilhõesdenorte-americanosperderamsuascasaspor
execuçãohipotecária.Grandepartedessaperdaderecursosaconteceunosbairrosmaispobreseteve
implicaçõesparticularmentesériasparaasmulhereseaspopulaçõesafro-americanasemcidadesmais
antigas, comoCleveland e Baltimore. Enquanto isso, os banqueiros deWall Street – que nos anos
prósperos ficaram imensamente ricos com o negócio – ganham bônus enormes mesmo quando
perdem o emprego por causa das dificuldades financeiras. O impacto redistributivo da perda dos
investimentosemimóveisdemilhõesdepessoaseosenormesganhosemWallStreetaparecemcomo
um caso contemporâneo de forte predação e roubo legalizado típico da acumulação por
desapossamento.
Entendoquelutaspolíticascontraaacumulaçãopordesapossamentosãotãoimportantesquanto
os movimentos proletários mais tradicionais. Mas esses movimentos tradicionais e os partidos
políticosassociadosaelestendemaprestarpoucaatençãoàslutasemtornododesapossamentoea
vê-lasmuitasvezescomosecundáriasedeconteúdonãopropriamenteproletário,porqueseufocoéo
consumo,omeioambiente,ovalordosativosecoisasdogênero.OsparticipantesdoFórumSocial
Mundial,poroutrolado,estãomuitomaispreocupadosemresistiràacumulaçãopordesapossamento
e não é raro que assumam posições antagônicas às políticas classistas dos movimentos operários,
afirmandoqueessesmovimentosnãolevamasérioaspreocupaçõesdosparticipantesdoFórumSocial
Mundial.NoBrasil,porexemplo,oMST,queéumaorganizaçãoquesepreocupasobretudocoma
acumulação por desapossamento, mantém uma relação relativamente tensa com o Partido dos
Trabalhadores(PT),quetemumabaseurbanaeumaideologiamaistrabalhistaeélideradoporLula.
Portanto, alianças mais sólidas entre eles são uma questão digna de consideração, tanto prática
quantoteoricamente.SeRosaLuxemburgoestivercerta,comoacreditoqueestá,quandodizquehá
umarelaçãoorgânicaentre essasduas formasdeacumulação, entãodevemosnosprepararparaver
uma relação orgânica entre as duas formas de resistência. Uma força de oposição formada por
“desapossados”, seja desapossados no processo de trabalho, seja desapossados dos meios de
subsistência,recursosoudireitos,requerumarevisãodaspolíticascoletivasemlinhasabsolutamente
diferentes. Penso queMarx estava errado em confinar essas formas de luta numa pré-história do
capitalismo.Gramscicertamenteentendeua importânciadeconstruiraliançasdeclasseentreesses
doisterrenosdistintos,comoofezMao.Aideiadequeaspolíticasdaacumulaçãoprimitiva–e,por
extensão, da acumulação por desapossamento – pertencem exclusivamente à pré-história do
capitalismoéerrada.Masisso,éclaro,vocêterádedecidirporcontaprópria.
[1]MichaelPerelman,TheInventionofCapitalism:ClassicalPoliticalEconomyandtheSecretHistoryofPrimitiveAccumulation(Durham,Duke
UniversityPress,2000).
[a] “Merrie England ”: visão utópica e nostálgica da sociedade e da cultura inglesas, baseada em ummodo de vida idílico e pastoral, e
bastantedifundidanoiníciodaRevoluçãoIndustrial.(N.T.)
[b] As corporate towns são cidades que, por privilégio real, tinham autonomia em relação ao condado e podiam eleger suas próprias
autoridades,constituindo-seelasmesmasnumcondado(countyofitself,countyofatown,countycorporate).(N.T.)
[2]G.W.F.Hegel,Hegel’sPhilosophyofRight(Oxford,Clarendon,1957),p.149-52.
[3]Ibidem,p.277.
[4]RosaLuxemburgo,TheAccumulationofCapital (Londres,Routledge, 2003), p. 432. [Ed. bras.:Aacumulação do capital, 2. ed., São
Paulo,NovaCultural,1985.]
[c]6.ed.,SãoPaulo,Loyola,2012.(N.T.)
Reflexõeseprognósticos
QuandovocêchegaraofimdoLivroId’Ocapital,umaboaideiaéretornaraoinícioeleroprimeiro
capítulodenovo.Équasecertoquevocêolerácomoutrosolhoseacharámuitomaisfácilentendero
texto.Quandofizissopelaprimeiravez,acheiotextomuitomaisinteressanteeatédivertidodeler.
Sematensãocausadapeladúvidadeconseguirounãochegaraofimdovolume,relaxeiecomeceia
gostar realmentedaquiloqueBertellOllmanchamade “dançadadialética” ede todas asnuances
(inclusiveasnotasderodapé,osadendoseasreferências literárias)queeuhaviadeixadopassarna
primeira leitura. Voltar a correr os olhos esquematicamente pelo texto também pode ser útil. Isso
ajuda a consolidar a compreensão de alguns temas. Em minhas aulas, eu costumava pegar um
conceitobásicoepediraosestudantesquecomentassemcomoeleeratrabalhadonafábricadolivro.
“Quantas vezes você encontrouo conceitode fetichismo?”, euperguntava.Mercadorias edinheiro
são conceitos óbvios.Mas por que os capitalistas fetichizam amaquinaria e por que todos aqueles
poderes inerentes ao trabalho (cooperação, divisão do trabalho, capacidades e poderes mentais)
aparecem tão frequentemente como poderes do capital? (E a palavra “aparece” significa
necessariamenteummomento fetichista?)Háumasériede temasquepodemserexplorados,como
alienação(nessecaso,tentecomeçardofim,comaacumulaçãoprimitiva,etrabalheotextodetrás
parafrente!),relaçõesentreprocessoecoisa,interseções(confusões?)entrelógicaehistóriaetc.
Aqui, no entanto, quero considerar alguns dos argumentos que Marx apresenta nos outros
volumeseemoutrosescritos, estendendoas implicações lógicasdoquadroapresentadonoLivro I.
Pensoqueéapropriadofazer isso,porque,comoindiquei inicialmente,Marxpretendiaquegrande
parte da argumentação do Livro I estabelecesse uma base teórica e conceitual capaz de levá-lo
adiante, para um terreno mais amplo. A invocação ocasional das contradições onipresentes do
capitalismoedaspossibilidadesdecrisequeelasprenunciamindicaparaondeiaMarx.Apartirdaí,
podemos ter uma noção do que é uma política da classe capitalista e de quais serão os principais
terrenosdalutapolítica.
OLivroId’Ocapitalanalisaumprocessodecirculaçãodocapitalcomaseguinteestrutura:
FT
D-M.....PT............M-D+ΔD
MP
Opontodepartidaéodinheiro.Comele,o capitalistavai aomercadoe compradois tiposde
mercadorias:forçadetrabalho(capitalvariável)emeiosdeprodução(capitalconstante).Aomesmo
tempo,eleselecionaumaformadeorganizaçãoeumatecnologiaecombinaaforçadetrabalhoeos
meiosdeproduçãonumprocessode trabalhoqueproduzumamercadoria,queentãoévendidano
mercadopelodinheirooriginalacrescidodeumlucro(mais-valor).Impelidospelasleiscoercitivasda
concorrência,oscapitalistasparecem(eusoessapalavranosentidodeMarx)forçadosausarpartedo
mais-valor para criar ainda mais mais-valor. A acumulação pela acumulação e a produção pela
produçãotornam-seamissãohistóricadaburguesia:aproduçãodetaxasilimitadasdecrescimento,a
menos que o capital encontre limites ou barreiras insuperáveis.Quando isso acontece, o capital se
deparacomumacrisedeacumulação(definidasimplesmentecomofaltadecrescimento).Ageografia
históricadocapitalismoécheiadecrisesdessetipo,oralocais,orasistêmicas(comoem1848,1929e
2008).O fatodeo capitalismo ter sobrevivido atéhoje sugereque,de alguma forma, a fluidez e a
flexibilidadedaacumulaçãodocapital–traçosqueMarxnãosecansadeenfatizar–permitiramque
oslimitesfossemsuperadoseasbarreirascontornadas.
Uma análise detalhada do fluxo do capital nos permite identificar alguns pontos potenciais de
bloqueioquepodemserfontedesériascriseserupturas.Vejamosessespontosumaum.
1)DEONDEVEMODINHEIROINICIAL?
EssaéaquestãofundamentalqueaanálisedeMarxdaacumulaçãoprimitivaprocuraresponder.A
acumulação primitiva é mencionada em diversos pontos da obra, como no capítulo 24, que trata
diretamentedasorigens.Masquantomaisquantidadesdemais-valorcriadoontemsãoconvertidas
emcapitalnovo,maisodinheiro investidohoje vemdo excedentede amanhã. Issonão exclui,no
entanto, a possibilidade de incrementos adicionais de dinheiro extraídos da continuação da
acumulaçãoprimitiva,ouoqueeuprefeririachamar,emseucontextomoderno,de“acumulaçãopor
desapossamento”.Se apenas a acumulaçãodeontem fosse capitalizadana expansãodehoje, como
tempo certamente teríamos uma concentração cada vez maior de capital monetário em mãos
individuais.Contudo,comoafirmaMarx,hámétodosdecentralização,concretizadossobretudocom
a ajuda do sistema de crédito, que permitem que grandes quantidades de podermonetário sejam
reunidascommuitarapidez.Nocasodeempresasdecapitalabertoeoutrasformasdeorganizações
empresariais, enormes quantidades de podermonetário são reunidas sob o controle de uns poucos
diretoresegerentes.Hámuitotempoaquisiçõesefusõessãoumgrandenegócio,eatividadesdesse
tipo podem provocar novos ciclos de acumulação e desapossamento (vendas de ativos de firmas e
demissãodetrabalhadores,comofazomovimentodefundosdeprivateequity).Alémdisso,hávários
truques que permitem ao grande capital excluir o pequeno (a regulação estatal é usada com
frequênciacomoumauxílio,comopredisseMarx).Odesapossamentodepequenosoperadores(lojas
de bairro ou fazendas de família) para dar lugar a grandes empresas (redes de supermercados e
agronegócio),frequentementecomaajudademecanismosdecrédito,éumapráticaantiga.Assim,a
questão da organização, da configuração e da massa de capital monetário disponível para
investimento jamais nos abandonou. Ela ganha importância diante das “barreiras de entrada” – a
escaladecertasatividades,comoaconstruçãodeumasiderúrgicaoudeumaferroviaouafundação
deumacompanhiaaérea,requerumimensogastoinicialdecapitalmonetárioantesqueaprodução
comecede fato.Apenasemtemposrelativamenterecentes,porexemplo, foipossívelqueconsórcios
privados de capitais associados, e não mais o Estado, empreendessem grandes projetos de
infraestrutura, como o túnel doCanal daMancha, que liga aGrã-Bretanha à Europa continental.
ComoobservaMarxno capítulo sobre amaquinaria, tais projetosde infraestrutura tornam-semais
necessáriosàmedidaqueomododeproduçãocapitalistasedesenvolve.Processosdecentralizaçãoe
descentralização do capital definem um terreno de luta entre diferentes facções do capital, assim
como entre o capital e o Estado (em torno de questões de poder monopolista, por exemplo). A
centralizaçãomaciçadedinheirotemtodotipodeconsequênciaparaadinâmicadalutadeclasses,
bem como para a trajetória do desenvolvimento capitalista. Entre outras coisas, ela dá a muitos
elementosdaclassecapitalistaprivilegiada(elamesmaconsolidadacomacentralização)acapacidade
de esperar, porque o podermonetário dá a eles um controle sobre o tempo que frequentemente é
negado aos pequenos produtores e aos trabalhadores assalariados. Mas o elemento contraditório
reside no fato de que o poder monopolista crescente diminui o poder das leis coercitivas da
concorrência de regular a atividade econômica (em particular a inovação), e isso pode levar à
estagnação.
2)DEONDEVEMAFORÇADETRABALHO?
MarxdámuitaatençãoaessepontonoLivroI.Aacumulaçãoprimitivalançaaforçadetrabalhono
mercado como uma mercadoria, mas, em seguida, o trabalho extra requerido para expandir a
produção com uma dada tecnologia vem ou da absorção da reserva flutuante gerada por ciclos
anterioresdemudançatecnológicaquedispensatrabalhooudamobilizaçãodeelementoslatentese
inextremis[emcondiçõesextremas]nointeriordareservaestagnada.Marxmencionadiversasvezesa
capacidade de mobilizar trabalhadores agrícolas ou camponeses, além de mulheres e crianças
anteriormente excluídas, e incorporá-los à força de trabalho como elementos cruciais para a
perpetuaçãodaacumulaçãodocapital.Paraqueissoocorra,éprecisohaverumprocessocontínuode
proletarização, o que significa contínua acumulação primitiva por ummeio ou outro ao longo da
geografia histórica do capitalismo.Mas as reservas de trabalho tambémpodem ser produzidas pelo
desemprego induzido pela tecnologia. A acumulação perpétua requer, como mostra Marx, um
excedenteconstantede forçadetrabalho.Esseexército industrialdereservaéposicionadomaisou
menoscomoumaondadeproadiantedoprocessodeacumulação.Éprecisotersempreàdisposição
força de trabalho acessível e em quantidade suficiente. E ela tem de ser não apenas acessível,mas
tambémdisciplinadaedotadadecertasqualidades(istoé,qualificadaeflexível,quandonecessário).
Se, por alguma razão, essas condições não são satisfeitas, o capital se defronta com uma séria
barreiraàacumulaçãocontínua.Ouopreçodotrabalhosobe,porqueissonãointerferenadinâmica
daacumulação,outantooapetitequantoacapacidadedeacumulaçãocontínuaenfraquecem.Sérias
barreiras à oferta de trabalho, derivadas da absoluta escassez de trabalho ou do surgimento de
poderosasorganizaçõestrabalhistas(sindicatosepartidospolíticosdeesquerda),podemgerarcrises
deacumulaçãodocapital.Umarespostaóbviaaessasbarreiraséocapitalentraremgreve,recusando-
se a reinvestir. Isso produz uma crise deliberada de acumulação, que visa produzir desemprego
suficienteparadisciplinaraforçadetrabalho.Essasolução,noentanto,édispendiosaparaocapital,
assimcomoparaotrabalho.Oscapitalistasprefeririam,obviamente,umcaminhoalternativo,quenos
conduz à política doproblema. Se o trabalho formuitobemorganizado emuitopoderoso, a classe
capitalistatentarácomandaroaparatoestatalporumgolpedeEstado,comooquematouAllendeea
alternativasocialistanoChileem1973,oupormeiospolíticos,comonosEstadosUnidosenaGrã-
Bretanha,para fazeroquePinochet,Reagan eThatcher fizeram, isto é, esmagar aorganizaçãodo
trabalho e acabar com os partidos políticos de esquerda. Essa é uma forma de transpor a barreira.
Outraétornarocapitalmaismóvel,demodoquepossasedeslocarparaondeexistaumproletariado
disponívelouumapopulaçãoquepossa ser facilmenteproletarizada,comonoMéxicoounaChina
nosúltimostrintaanos.Políticasde imigraçãooumesmoestratégiasde imigraçãoorganizadaspelo
Estado (como fizeram muitos países europeus no fim dos anos 1960) constituem uma terceira
alternativa.Umadasconsequênciasdessetipodesuperaçãodasbarreirasàofertadetrabalhoéforçar
otrabalhoorganizado(e,maisemgeral,segmentosdaesferapública)aseoporàexportaçãodepostos
detrabalhoeàspolíticasdeimigração,culminandoemmovimentosanti-imigrantesentreasclasses
trabalhadoras.
Os aspectos contraditórios das políticas de oferta de trabalho surgem em torno de questões
relativas não apenas ao valor da força de trabalho (fixado pelas condições da oferta de bens de
subsistência para satisfazer a reprodução da força de trabalho emdado padrão de vida, elemesmo
sujeitoadefiniçãodeacordocomasituaçãodalutadeclasses),mastambémàsaúde,àshabilidadese
aotreinamentodaforçadetrabalho.Osinteressesdeclassedoscapitalistas(opostosaosinteressesdos
capitalistasindividuais,quecostumampraticarapolíticado“aprèsmoiledéluge!”)podemsemobilizar
tantoparasubsidiarumaofertadebensdesubsistênciamaisbaratos,eassimmanterbaixoovalorda
forçadetrabalho,quantoparainvestirnamelhoriadaqualidadedaofertadetrabalho;nesseúltimo
caso,osinteressesmilitaresdoEstadopodemdesempenharumimportantepapeldeapoio.Assim,as
políticasdeofertadetrabalhoapresentamtodotipoderamificação,eforamumfococentraldelutas
duranteodesenvolvimentohistóricoegeográficodocapitalismo.
Algunsmarxistasextraíramdissoumateoriaprópriadaformaçãodecrises.Achamadateoriada
compressãodolucro[profit-squeeze]concentra-senoproblemasemprepresentedasrelaçõesdetrabalho
edalutadeclasses,tantonoprocessoquantonomercadodetrabalho.Quandoessasrelaçõescriam
umobstáculoàcontinuidadedaacumulaçãodocapital,temosumacrise,amenosqueencontremos
ummodo(ou,maisprovavelmente,umamisturademodos)defazerocapitalcontornaroobstáculo.
Algunsanalistas,comoAndrewGlyn(vejasuaimpressionanteanálise,escritacomBobSutcliffe,
emBritishCapitalism,Workersand theProfitsSqueeze
[1]
), interpretamoqueocorreuno fimdos anos
1960 e início dos anos 1970 (em especial na Europa e na América doNorte) como um excelente
exemploprático da teoria da compressãodo lucro.É verdade que o gerenciamentode recursos do
trabalhoeapolíticadeorganizaçãoeofertadetrabalhodominaramapolíticanesseperíodo.Também
é verdade que a sobrevivência do capitalismodependeuda transposição oudo contorno constante
dessepotencialobstáculoàacumulação.Nomomentoemqueescrevo(2008),porém,hápoucossinais
de uma situação de compressão do lucro, já que existem reservas de trabalho por toda a parte e o
ataque político contra os movimentos da classe trabalhadora reduziu a níveis muito modestos a
resistência operária em quase todo o mundo. É difícil interpretar a crise de 2008 em termos de
compressãodolucro,salvoporcontorcionismosteóricos(eháalgumasversõesdessateoria,comoade
Itoh,quefazemisso).
3)ACESSOAOSMEIOSDEPRODUÇÃO
Quandooscapitalistasvãoaomercado,precisamencontraralimeiosextrasdeprodução(elementos
extrasdecapitalconstante)parasatisfazersuanecessidadedereinvestimentodepartedoexcedente
na expansão da produção. Há dois tipos de meios de produção: os produtos intermediários (já
conformadospelotrabalhohumano),quesãoconsumidosnoprocessodeprodução(pormeiodaquilo
queMarxchamade“consumoprodutivo”,comoaenergiaeo tecidoconsumidosnaconfecçãode
umcasaco),eamaquinariaeoequipamentodecapitalfixo,inclusiveprédioseinfraestruturafísica,
comosistemasdetransporte,canais,portosetudoaquiloqueénecessárioparaobomandamentoda
produção. A categoria de meios de produção (capital constante) é evidentemente muito ampla e
complicada. Do mesmo modo, a falta desses investimentos e condições materiais é um obstáculo
potencialmente sério à acumulação sustentada do capital. A indústria automobilística não pode se
expandir sem uma quantidademaior de aço. É por essa razão queMarx observa que as inovações
tecnológicas, introduzidas numa parte daquilo que hoje chamamos de “cadeia de mercadorias”,
tornamnecessáriaainovaçãoemoutrolugarparafacilitaraexpansãogeraldaprodução.Inovaçõesna
indústria algodoeira exigiam inovações na produção do algodão (descaroçadores), nos transportes,
nascomunicações,nastécnicasquímicaseindustriaisdetingimentoetc.
Podemosdeduzirdissoapossibilidadedaschamadas“crisesdedesproporcionalidade”nointerior
da complicada estrutura de entrada e saída que compõe a totalidade do modo de produção
capitalista.NofimdoLivroII,Marxfazumestudodetalhadodecomopodemseformartaiscrises
numaeconomiadivididaemdoisgrandesdepartamentos:odasindústriasqueproduzemosmeiosde
produçãoeodasindústriasqueproduzemasmercadoriasnecessáriasàsubsistênciadostrabalhadores
(mais tarde, ele complicou o modelo, incluindo os bens de luxo). O que ele mostrou (e estudos
matemáticosmaissofisticadosdeeconomistascomoMorishimaconfirmariamesseponto)foiqueo
equilíbrionunca era automático,porque a tendênciado capital é fluirparaonde a taxade lucro é
maior, e desproporcionalidades em excesso podiam abalar seriamente a reprodução do capitalismo.
Emnossostempos,vemostambémoóbvioimpactoqueaescassezeoaumentodopreçodaenergia
provocamnadinâmicacapitalista.Barreirasdesse tipo sãouma fonteconstantedepreocupaçãono
sistema capitalista, e a necessidade igualmente constante de superar ou contornar esses obstáculos
costuma ser a prioridade da atividade política (subsídios e planejamento estatal – sobretudo de
infraestruturafísica–,atividadedepesquisaedesenvolvimento,integraçãoverticalmediantefusões
etc.).
4)ESGOTAMENTODOSRECURSOSNATURAIS
Por trás disso, porém, esconde-se uma problemática mais profunda, que Marx também menciona
diversasvezesnoLivroI.Eladizrespeitoànossarelaçãometabólicacomanatureza.Ocapitalismo,
como qualquer outromodo de produção, conta com a beneficência de uma natureza generosa, e,
comoMarxobserva,adestruiçãoeadegradaçãodaterrafaztãopoucosentidonolongoprazoquanto
adestruiçãodasforçascoletivasdetrabalho,poisambasestãonabasedaproduçãodetodariqueza.
Masos capitalistas individuais, trabalhandopor seuspróprios interessesdecurtoprazoe impelidos
pelasleiscoercitivasdaconcorrência,sãoconstantementetentadosaassumiraposiçãodo“aprèsmoi
ledéluge!”comrelaçãotantoaotrabalhadorquantoaosolo.Mesmoquandoissonãoacontece,ocurso
daacumulaçãoperpétuaexerceumaenormepressãosobreaexpansãodaofertadosassimchamados
recursos naturais, ao mesmo tempo que o aumento inevitável da quantidade de dejetos testa a
capacidadedos sistemas ecológicos de absorvê-los sem envenenar o ambiente.Éprovável que, aqui
também, o capitalismo encontre obstáculos que se tornarão cada vezmais difíceis de contornar.O
capitalismo, observa Marx, “adquire uma elasticidade, uma súbita capacidade de se expandir por
saltos que só encontra limites namatéria-prima e nomercado onde escoa seus próprios produtos”
(522).
Há,noentanto,váriosmodosdeenfrentar, àsvezes superar emuito frequentementecontornar
esses obstáculos da natureza. Os recursos naturais integram um contexto tecnológico, social e
cultural, de modo que toda escassez na natureza pode ser mitigada por mudanças tecnológicas,
sociaiseculturais.Arelaçãodialéticacomanaturezaqueéestabelecidananotadoiníciodocapítulo
13 (“Maquinaria e grande indústria”) indica uma série de transformações possíveis, inclusive a
produção da própria natureza. A geografia histórica do capitalismo foi marcada por uma incrível
fluidezeflexibilidadecomrelaçãoa isso,demodoqueseriafalsodizerquehálimitesabsolutosem
nossa relaçãometabólica com a natureza que não podem ser superados ou contornados de alguma
forma.Masissonãosignificaqueessesobstáculosnãosejamsériosàsvezesequepossamossuperá-los
sem provocar crises ambientais. Grande parte da política capitalista, sobretudo em nossos dias,
procuraassegurarqueaquiloqueMarxchamadedádivasdanaturezaestejafacilmentedisponívelao
capitalegarantidoparausofuturo.Astensõesemtornodessasquestõesqueexplodemnointeriorda
políticacapitalistapodemserbastanteagudas.Deumlado,amanutençãodeumfluxocadavezmaior
depetróleobaratofoiessencialparaaposiçãogeopolíticadosEstadosUnidosnosúltimoscinquenta
ousessentaanos.Assegurarqueasreservasmundiaisdepetróleoestejamacessíveisàexploraçãolevou
osEstadosUnidosaentrarnoconflitonoOrienteMédioeemoutroslugares,eapolíticaenergética,
apenas para citar outro exemplode estreita relação com anatureza, surgemuitas vezes comouma
questão predominante no interior do aparato estatal. De outro lado, a política do petróleo barato
criouproblemasdeempobrecimentoexcessivo,alémdoaquecimentoglobaledeumasériedeoutros
problemas relacionados à qualidade do ar (nível de ozônio, fumaça, partículas sólidas na atmosfera
etc.)querepresentamriscoscadavezmaioresparaaspopulaçõeshumanas.Adegradaçãodousodo
solo em razão do enorme consumo de energia das grandes aglomerações humanas tornou-se um
problemanaoutrapontadaextraçãoconstantederecursosnaturaisparasustentartodososaspectos
docrescimentodaindústriaautomobilística.
Algunsmarxistas (liderados por JimO’Connor, fundador do jornalCapitalismNature Socialism)
referem-seaessasbarreiras impostaspelanaturezacomo“asegundacontradiçãodocapitalismo”(a
primeira é, obviamente, a relação capital-trabalho). Mesmo em nossa época, é verdade que essa
segunda contradição atrai tanta atenção política quanto a questão do trabalho, se nãomais, e há
certamente uma grande preocupação e uma ansiedade política geradas pela ideia de uma crise na
relaçãocomanatureza,encaradanãosócomoumafontesustentáveldeterraematérias-primaspara
oavançododesenvolvimentocapitalista(urbano),mastambémcomoumdepósitodelixo.
NaobradeO’Connor,essasegundacontradiçãodocapitalismotomouolugardaprimeira,após
asderrotasdosmovimentostrabalhistasesocialistasdosanos1970,comopontadelançadaagitação
anticapitalista.Deixoavocêatarefadeavaliaratéquepontoessetipodepolíticadeveserperseguido.
O que é certo, porém, é que a barreira na relação com a natureza não deve sermenosprezada ou
desprezada,dadooarcabouço teóricoconstruídoporMarxnoLivroId’Ocapital.Ehojeestáclaro
queosobstáculosnanaturezasãocadavezmaioresequepodeacontecerumacriseemnossarelação
com a natureza que exigirá grandes adaptações (como o desenvolvimento de novas tecnologias
ambientaiseaexpansãode indústriasparaaproduçãodessesbens)paraqueessesobstáculos sejam
contornados com sucesso, ao menos por algum tempo, no contexto da acumulação ilimitada do
capital.
5)AQUESTÃODATECNOLOGIA
Asrelaçõesentrecapitale trabalho,assimcomoaquelasentrecapitalenatureza, sãomediadaspela
escolhadeformasdeorganizaçãoetecnologia(hardwareesoftware).Ameuver,Marxestáemplena
forma no Livro I, quando teoriza de onde vêm os impulsos para a mudança organizacional e
tecnológicaeporqueinevitavelmenteoscapitalistasfetichizamamaquinaria,quenãopodeproduzir
valor, embora sejauma fontevitaldemais-valorpara eles, tanto individual comocoletivamente.O
resultadoéoconstantedinamismoorganizacional e tecnológico.“A indústriamoderna”,dizMarx,
“jamaisconsideranemtratacomodefinitivaaformaexistentedeumprocessodeprodução.Suabase
técnica é, por isso, revolucionária, ao passo que a de todos os modos de produção anteriores era
essencialmenteconservadora”(577).EsseéumtemarecorrentenasobrasdeMarx.Comoeleobserva
noManifestoComunista:
A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de
produçãoe,comisso,todasasrelaçõessociais.Aconservaçãoinalteradadoantigomododeproduçãoera,pelocontrário,aprimeira
condiçãodeexistênciadetodasasclassesindustriaisanteriores.Essasubversãocontínuadaprodução,esseabaloconstantedetodoo
sistemasocial,essaagitaçãopermanenteeessafaltadesegurançadistinguemaépocaburguesadetodasasprecedentes.
[a]
Mas é nesse ponto também que as leis coercitivas da concorrência dão um passo adiante,
estimulandoaprocurapormais-valor relativo.A implicação,quepor alguma razãoMarx reluta em
considerar, é que toda ação dessas leis coercitivas, por meio da monopolização e da crescente
centralização do capital descritas no capítulo 23, influenciará o ritmo e a forma das revoluções
tecnológicas. As dimensões da luta de classes mediante oposição de amplas bases (por exemplo, o
movimento ludista) ou sabotagemno chão de fábrica devem também ser levadas em consideração.
ComoobservouMarx,umestímuloàsmudançastecnológicassurgedodesejodocapitaldeterarmas
parausarcontraotrabalho.Quantomaisostrabalhadoressetornammerosapêndicesdamáquina,e
quanto mais suas habilidades monopolizáveis são minadas pelas tecnologias mecânicas, mais
vulneráveis eles se tornam à autoridade arbitrária do capital. Na medida em que a história das
inovações tecnológicas e organizacionais se apresenta emondas, parecequehámuitomais a dizer
sobreessadinâmicadoquefoiditoatéagora,mesmonaricaanáliseapresentadanoLivroI.
Essasquestõessetornamimportantesporque,aoapresentarseusargumentossobreacomposição
orgânicaedevalordocapitalnocapítulo23,MarxantecipaavisãoapresentadanoLivroIIIdeque
uma tendência inelutável a um valor de composição crescente do capital pressagia uma lei ou
tendência igualmente inelutável de queda da taxa de lucro, o que produz necessariamente as
condiçõesparaascrisesdelongoprazonoprocessodeacumulação.ParaMarx,éespecialmenteaqui
queocapitaltemdeenfrentarumobstáculocrucialinerenteàsuapróprianatureza.
A crise resultante da lucratividade deve-se unicamente aos efeitos desestabilizadores do
dinamismotecnológicoquenascedabuscapersistentepormais-valorrelativo.Umaversãoresumida
da argumentação afirmaque a busca pormais-valor relativo empurra o capitalista para tecnologias
que economizam trabalho, e quanto mais trabalho é poupado, menos valor é produzido, já que o
trabalhoéafontedevalor.Éclaroqueexistemmeiosdecompensaressaperda,comooaumentoda
taxadeexploraçãoouareabsorçãodostrabalhadoresdeslocadosnaproduçãoaumentada.Mas,como
afirmeino capítulo10,há razõespara sermos céticos em relação aqualquer tendêncianecessária e
inelutáveldeaumentodacomposiçãodevalordocapital.NoLivroIII,Marxlistaumavariedadede
“influênciasantagônicas”aumataxadecrescentede lucro, inclusive taxascrescentesdeexploração
do trabalho, quedanos custos do capital constante, comércio exterior e forte aumentodo exército
industrialdereserva,oquedesestimulaoempregodenovastecnologias(comoobservadonoLivroI).
NosGrundrisse,elevaialémeapontaaconstantedesvalorizaçãodocapital,aabsorçãodocapitalna
produçãodeinfraestruturafísica,aaberturadenovaslinhasdeproduçãocomtrabalhointensivoeo
processo de monopolização.Minha visão (provavelmente minoritária) é que o argumento da taxa
decrescente de lucro não funciona comoMarx determina, e explicomais detalhadamente por que
pensoassimemmeulivroOslimitesdocapital.
Masacreditotambémquenãohádúvidadequeasmudançasorganizacionaisetecnológicastêm
sérios efeitos desestabilizadores na dinâmica da acumulação do capital, e a brilhante exposição de
Marxsobreasforçasqueimpulsionamasconstantesrevoluçõestecnológicaseorganizacionaisprepara
o terreno para uma melhor compreensão dos processos tanto da luta de classes quanto das lutas
popularesemtornododesenvolvimentodenovastecnologiasedaformaçãodecrises.Atendênciaà
crisepodesemanifestar(comoindicaanota89docapítulo13)nasrelaçõesdetrabalho,narelação
com a natureza e em todos os outros momentos coexistentes do processo de desenvolvimento
capitalista. Há também efeitos diretamente desestabilizadores, como a desvalorização do
investimento prévio (maquinaria, instalações, equipamentos, construções, rede de comunicação)
antesqueovalortenhasidorecuperado(amortizado);rápidasmudançasnasexigênciasqualitativas
dotrabalho(porexemplo,sabertrabalharcomcomputadores)queexcedemashabilidadesdaforçade
trabalhoexistenteeosinvestimentoseminfraestruturasocialnecessáriosparacriá-las;aproduçãode
uma insegurança crônica no emprego e crises cada vez mais profundas de desproporcionalidade
provocadas pelo desenvolvimento irregular das capacidades tecnológicas entre diferentes setores;
mudançasdramáticasnasrelaçõesespaçotemporais(inovaçõesnotransporteenascomunicações)que
levamauma revolução totalnapaisagemglobaldaprodução edo consumo; acelerações súbitasna
circulação do capital (o uso de computadores para realizar operações nomercado financeiro pode
criarsériosproblemas,comovimos);eassimpordiante.E,sim,háocasiõesemqueumacomposição
crescentedevalordocapitalpodeserdetectadacomconsequênciasparaoslucros.
6)APERDADECONTROLECAPITALISTASOBREOPROCESSODETRABALHO
Marx faz um grande esforço para enfatizar que a criação de mais-valor repousa na habilidade do
capitalistadecomandarecontrolarotrabalhadornochãodefábrica,ondeovaloréproduzido.Esse
comandoeessecontrolesobreo“fogoconformador”doprocessodetrabalhosãosemprecontestados.
O “despotismo” do controle do trabalho depende de certa mistura de coerção e persuasão, assim
como de uma organização bem-sucedida da estrutura hierárquica de autoridade nas relações de
trabalho. É claro que qualquer rompimento nesse controle pressagia uma crise, eMarx enfatiza o
poder implícito dos trabalhadores de romper, sabotar, desacelerar ou simplesmente interromper a
produçãode valordaqualdependenecessariamenteo capitalista.A recusa a se sujeitar ao aparato
disciplinardocapital,opoderdesenegaratrabalharsãoextremamenteimportantesnadinâmicada
lutadeclasses.Issopode,porsisó,forçarumacrise(comoenfatizamteóricosmarxistasdatradição
“autonomista”,comoTrontieNegri).Obviamente,essepoderdotrabalhadorélimitado,nosentido
dequeostrabalhadorestêmdevivere,semsalário,elestambémsofrerão,anãoserquedisponhamde
outromeioqualquerde subsistência (comoo cultivoda terra).No entanto, o limitepotencial que
existenacirculaçãodocapital,nopontodaprodução,enopróprioprocessodetrabalhonãopodeser
ignorado.Porisso,tantooscapitalistasindividuaisquantoaclassecapitalistatomammuitocuidado
emgarantiradisciplinaeformasadequadasdecontroledotrabalho.
7)OPROBLEMADAREALIZAÇÃOEDADEMANDAEFETIVA
Osétimoobstáculopotencial apareceno fimda sequência, quando anovamercadoria ingressano
mercado e realiza seu valor como dinheiro mediante troca. A transição M-D é sempre mais
problemática do que a transição do universal (o dinheiro) para o particular (a mercadoria), pelas
razõesapresentadasnocapítulo2.Paracomeçar,énecessárioqueumnúmerosuficientedepessoas
precise,queiraoudesejeamercadoriaproduzidacomovalordeuso.Seumacoisaé inútil, elanão
temvaloralgum,dizMarx.Mercadoriasinúteissedesvalorizam,eoprocessodecirculaçãodocapital
chega a um emperramento fatal. Assim, a primeira condição para a realização do valor é prestar
atençãoàsnecessidadesedesejosdapopulação.Emnossaépoca,emcomparaçãocomadeMarx,há
umenormeesforço–queincluiacriaçãodetodaumaindústriadepublicidade–paramanipularas
necessidadeseosdesejosdapopulaçãoegarantirmercadoparaosvaloresdeuso.Masoqueestáem
jogo aqui é mais do que simplesmente a publicidade. O que se exige é a formação de toda uma
estruturaeprocessodevidacotidiana(ofatordereprodução-da-vida-cotidiana,expostonanota89
docapítulo13)quenecessitadaabsorçãodeumcertoconjuntodevaloresdeusoparasesustentar.
Considere,por exemplo,odesenvolvimentodenecessidades edesejos associados ao surgimentode
umestilodevidasuburbanonosEstadosUnidosapósaSegundaGuerraMundial.Estamosfalandoda
necessidade não apenas de carros, gasolina, autoestradas e casas suburbanas, mas também de
cortadores de grama, geladeiras, ares-condicionados, cortinas, móveis (de interior e exterior),
equipamentosdeentretenimento(televisão)etodaumasériedecoisasparasuprirodiaadia.Avida
no subúrbio requeria o consumo de tudo isso. O desenvolvimento de subúrbios garantiu uma
demanda cada vez maior para esses valores de uso. Assim, “criar uma nova necessidade”, como
predisseMarx, torna-se uma precondição essencial para a continuidade da acumulação do capital
(180).Comotempo,aspolíticasdecriaçãodenecessidadestornaram-se,emsimesmas,cadavezmais
importantes, ehojeentende-sequeo“sentimentodoconsumidor”éumelemento fundamentalno
estímuloàacumulaçãoilimitadadocapital.
Masdeondevemopoderaquisitivoparacomprartodosessesvaloresdeuso?Devehaver,nofim
desseprocesso,umaquantiaextradedinheiro,guardadaporalguémemalgumlugar,para facilitar
essacompra.Senão,háumafaltadedemandaefetivaeoresultadoéaquiloquechamamosdecrise
de“subconsumo”–quandonãohádemandasuficienteparaabsorverasmercadoriasproduzidas(veja
ocapítulo3).Abarreiracriadapelafaltademercado“porondeescoarosprodutos”(522)temdeser
transposta.Emparte,ademandaefetivaéexpressapelostrabalhadoresquegastamseussalários.Maso
capitalvariávelésempremenordoqueocapitaltotalemcirculação,demodoqueaaquisiçãodebens
desubsistência(mesmonumestilodevidasuburbano)jamaisésuficienteparaarealizaçãodofluxo
totaldevalor.Contudo, e essa éumaquestãoque surgenoLivro IId’Ocapital, reduziros salários
comopressupõeaanálisedoLivroIcriaapenastensõesmaisprofundasnopontoderealizaçãoepode
ser,emsimesmo,umcomponenteimportantenacriaçãodecrisesdesubconsumo.Foiporissoquea
política do NewDeal, numa época de crise que muitos consideram essencialmente uma crise de
subconsumo,apoiouasindicalizaçãoeoutrasestratégias(comobenefíciosdaseguridadesocial)para
estimularademandaefetivaentreasclassestrabalhadoras,efoiporissotambémque,em2008,numa
situação de estresse econômico, o governo dos EstadosUnidos abateu 600 dólares do imposto da
maioria dos contribuintes para aumentar a demanda efetiva dos consumidores.Aumentar o salário
realdotrabalho(contrariandoassimatendênciadeempobrecimentocrescentedoproletariado)pode
ser necessário para estabilizar a acumulação contínua de capital, mas, por razões óbvias, a classe
capitalista(paranãodizerocapitalistaindividual)podenãoestardispostaaencararaimplementação
radicaldessetipodesolução.
Maséóbvioqueademandadostrabalhadores,emborasejaumabaseimportante,nãopodeirtão
longeapontoderesolveroproblemadarealização.RosaLuxemburgodedicougrandeatençãoaisso.
Primeiro,tratoudapossibilidadedeademandaextrasurgirdoaumentodaofertadeouro(ou,nos
diasatuais,daemissãodemaisdinheiropelosbancoscentrais).Aindaqueissosejadealgumaajuda
nocurtoprazo(injetarliquidezsuficientenosistema,comosefeznacrisefinanceirade2008,éuma
ferramentacrucialparaestabilizaresustentaracirculaçãoeaacumulaçãocontinuadasdocapital),é
óbvioque,nolongoprazo,oefeitoseráacriaçãodeoutrotipodecrise:ainflação.AsoluçãodeRosa
Luxemburgo foi pressupor a existência de uma demanda latente e mobilizável fora do sistema
capitalista. Isso significaacontinuaçãodaacumulaçãoprimitivapormeiode imposiçõesepráticas
imperialistasemsociedadesqueaindanãoforamabsorvidaspelomododeproduçãocapitalista.
Na transição para o capitalismo, e na fase da acumulação primitiva, os estoques de riqueza
acumuladanaordemfeudalpuderamdesempenharessepapel,juntamentecomorouboeosaquede
riqueza do resto domundo pelo capital comercial. Com o tempo, é claro, aquilo que poderíamos
chamarde“reservasdeouro”dasclassesfeudaisforamconsumidas,eacapacidadedocampesinato
de gerar poder de consumo por meio de uma tributação que visava sustentar o consumismo da
aristocraciaruraltambémseesgotou.ÀmedidaqueocapitalismoindustrialseconsolidavanaEuropa
enaAméricadoNorte, o saquede riquezas da Índia, daChina ede outras formações sociais não
capitalistas já desenvolvidas tornava-se cada vez mais predominante, em particular da metade do
séculoXIXemdiante.EsseperíodofoimarcadoporumaimensatransferênciaderiquezadoLestee
doSuldaÁsiaemparticular,masemalgumamedidatambémdaAméricadoSuledaÁfrica,paraa
classe industrial-capitalista localizada nos países capitalistas centrais. À medida que o capitalismo
cresciaeseespalhavageograficamente,acapacidadedeestabilizarosistemaporessesmeiostornava-
se cada vez menos plausível, ainda que nunca tenham sido inteiramente suficientes (o que é
duvidoso)duranteafasedoaltoimperialismodofimdoséculoXIX.Nãohádúvidadeque,desdeo
início dos anos 1950, mas sobretudo a partir da década de 1970, a capacidade das práticas
imperialistas de cumprir o papel de grande estabilizador, abrindo novos campos (novosmercados)
paraarealizaçãodocapital,diminuiuseriamente.
A resposta mais importante, que Rosa Luxemburgo não vê, mas que deriva logicamente do
argumentodeMarx(emboraelenãoaarticulediretamente,porqueopressupostodoLivroIexcluio
problema das crises potenciais de realização), é que a solução está no consumo capitalista. Como
vimos,hádoistiposdeconsumocapitalista:umapartedomais-valoréconsumidacomorenda(por
exemplo,artigosdeluxo),masaoutraédestinadaàexpansãodaproduçãopormeiodeestratégiasde
reinvestimento que aparecem (e uso essa palavra no sentido de Marx) como impelidas pelas leis
coercitivasdaconcorrência.EncontramosaquianecessidadedaquiloqueMarxchamade“consumo
produtivo”comoumelonoprocessoderealização.Issosignificaqueaproduçãodemais-valortemde
interiorizarsuaprópriademandamonetária.Ademandadoprodutoexcedentedeontemdependeda
expansão da produção de mais-valor de amanhã! O consumo capitalista de hoje, alimentado pelo
excedenteganhoontem,criaomercadoparaoprodutoexcedenteeomais-valordeontem.Oque
issofazétransformaroqueaparececomoumacrisepotencialdesubconsumocausadapelafaltade
demanda efetiva numa falta de oportunidades ulteriores de investimentos lucrativos. Em outras
palavras, a solução para os problemas de realização encontrados no fim do processo de circulação
dependede retornarmos ao início e obtermos uma expansão aindamaior.A lógica do crescimento
compostoconstantepassaapredominar.
8)OSISTEMADECRÉDITOEACENTRALIZAÇÃODOCAPITAL
Para que a circulação do capital complete seu curso, duas condições fundamentais têm de ser
realizadas.Primeiro,oscapitalistasnãopodemconservarodinheiroqueganharamontem.Elestêm
derecolocá-loimediatamenteemcirculação.Mas,comoafirmaMarxemsuacríticaàleideSay,não
háumanecessidadeabsolutadequeM-D,porexemplo,tenhaimediatamentedeserseguidodeD-
M,enointeriordessaassimetriaencontra-seapossibilidadeconstantenãotantodecrisesmonetárias
efinanceiras,masdosurgimentodeumobstáculoàrealizaçãodomais-valorpelaausênciadegastos.
No capítulo 2, examinamos várias circunstâncias em que faria todo o sentido poupar dinheiro, ao
invésdegastá-lo, e énessepontoqueopensamentodeMarxedeKeynes sobreapossibilidadede
crisesdesubconsumoconverge.Keynestentoucontornaresseobstáculoapelandoparaumconjunto
deestratégiastécnicasdegerenciamentofiscalemonetárioconduzidaspeloEstado.
A segunda condição é que o lapso entre hoje e ontem seja remediado pela garantia de uma
circulaçãocontínua.Esselapsopodeserremediado,comoMarxmostranocapítulo3,peloaumento
docréditoepelousododinheirocomomeiodepagamento.Emsuma,osistemadecrédito,como
relação organizada entre credores e devedores, entra no processo de circulação para exercer uma
funçãovital.Comooutrasopçõessãoexcluídas,essesetornaoprincipalmeioderesolveroproblema
dademandaefetivadeummodoqueéinternoàcirculaçãodocapital.Mas,comisso,osistemade
créditoreclamasuapartedoexcedentenaformadojuro.
Em várias passagens, mesmo no Livro I d’O capital, Marx reconhece implicitamente o papel
crucialdo sistemadecrédito,mas,parapreservaraquiloqueele consideraocernedoproblemada
relação capital-trabalho na seção VII, ele acredita que é necessário excluir da análise os fatos da
distribuição (renda, juro, tributos, lucro sobre o capital comercial). Ainda que ajude a revelar e
esclarecer certos aspectos importantes da dinâmica capitalista, isso faz com que um traço
fundamental do processo de circulação do capital seja deixado de lado. E, infelizmente, Marx
continuaaignorá-loaolongodegrandepartedoLivroII(emborareconheçasuapresençacrucialna
relação,porexemplo,comacirculaçãodosinvestimentosemcapitalfixodelongoprazo),oquetorna
absolutamente correta a afirmação de Rosa Luxemburgo de que o esquema de acumulação
apresentadono fimdoLivro IInão resolveoproblemada realização edademandaefetiva.Émais
tarde,noLivroIII,queMarxcomeçaaexaminaropapeldosistemadecrédito,mas,paraserfranco,
esses capítulos, embora apresentem insights sugestivos, são uma confusão (tentei quanto pude – e
confessoqueatentativaquasemeenlouqueceu–expô-losdemaneiraordenadanoscapítulos9e10
demeu livroOs limites do capital).NosGrundrisse, no entanto, ele afirma que o “inteiro sistema de
créditoeocomércioespeculativo,asuperespeculaçãoetc.aeleassociadosbaseiam-senanecessidade
deestenderetransporosobstáculosdacirculaçãoedaesferadatroca”
[b]
.
Seéacontinuidadedaexpansãodocapitalismoquecriaademandaparaoprodutoexcedentede
ontem, isso significaqueoproblemada realizaçãonãopode ser resolvido, sobretudonas condições
atuaisdodesenvolvimentocapitalistaglobalizado,semaconstruçãodeumvibranteeextensosistema
de crédito para remediar o lapso entre o produto excedente de ontem e a absorção desse produto
excedente amanhã. Essa absorção pode ocorrer ou pela expansão da continuidade da produção de
mais-valor(reinvestimento),oupeloconsumocapitalistadosganhosobtidos.Éfácildemonstrarque,
nolongoprazo,oconsumodosganhosobtidoslevaráàestagnação(esseéomodeloda“reprodução
simples”,doqualMarxfalanocapítulo21).Apenasacontinuidadedaexpansãodageraçãodemais-
valor funcionará no longo prazo, e é isso que torna a necessidade social de aumento contínuo das
taxasdecomposiçãoumacondiçãodesobrevivênciadocapitalismo.
Se tivesse chegado a esse ponto, Marx certamente teria dito que as leis coercitivas da
concorrênciasãoumameraferramentaparaasseguraressacondiçãoabsolutamentenecessáriaparaa
sobrevivênciadocapitalismo.Emoutraspalavras,asobrevivênciadocapitalismorequeramanutenção
dasleiscoercitivasdaconcorrênciaafimdemanteraexpansãodaproduçãodemais-valordeamanhã
como um meio de absorção dos excedentes produzidos ontem. Segue-se disso que qualquer
diminuição dos poderes coercitivos, por exemplo por uma monopolização excessiva, bastará para
produzirumacrisenareproduçãocapitalista.ÉexatamenteesseoargumentodeBaraneSweezyem
Capitalismomonopolista
[c]
(escritonosanos1960,quandomonopólioscomoodasBigThree
[d]
,astrês
grandes companhias automobilísticasdeDetroit, eramcada vezmais significativos).A tendência à
monopolizaçãoecentralizaçãodocapitalproduziunecessariamente,comoBaraneSweezyclaramente
previram, a crise de estagflação (desemprego crescente, acompanhado de alta inflação) que tanto
assombrou os anos 1970. A resposta a essa crise foi a contrarrevolução neoliberal, que não apenas
esmagouopoderdo trabalho,mas também liberouas leis coercitivasda concorrência,outorgando-
lhes o poder de “executoras” das leis do desenvolvimento capitalista por meio de todo tipo de
estratagemas(comércioexteriormaisaberto,desregulamentação,privatizaçõesetc.).
Mas esse processo tem algumas complicações potenciais. Para começar, presume que todas as
outras barreiras (por exemplo, a relação com a natureza) à expansão da produção de mais-valor
amanhã são não operantes e há espaço suficiente para o aumento da produção. Isso implica, por
exemplo, um tipo diferente de imperialismo, que não opera por roubo de valores e pilhagem de
recursosdorestodomundo,masusaorestodomundocomolocaldeaberturadenovasformasde
produçãocapitalista.Aexportaçãodecapital,maisdoquedemercadorias,torna-secrucial.Essaéa
grande diferença entre a Índia e a China do século XIX, cujas riquezas foram pilhadas pela
dominaçãocapitalistadeseusmercados,eosEstadosUnidose,emcertamedida,aOceaniaepartes
daAméricaLatina,ondeumirrestritodesenvolvimentocapitalistaocorreurapidamente,criounova
riquezae,comisso,abriuumcampodeabsorçãoerealizaçãodoprodutoexcedentegeradoemoutros
centrosdocapitalismo(porexemplo,aGrã-BretanhaexportoucapitalemaquinariaparaosEstados
Unidos e a Argentina no século XIX). Em tempos recentes, é claro, a China absorveu grande
quantidade de capital estrangeiro no desenvolvimento de sua produção e, dessemodo, gerouuma
enorme demanda efetiva não apenas de matérias-primas, mas também de maquinaria e outros
insumos.
Há,noentanto,doisproblemasinerentesaessasolução,eambospodemcriarnovosobstáculosà
continuidade da acumulação do capital no próprio ato de tentar superá-los. O primeiro problema
deriva do simples fato de que o processo de circulação torna-se especulativo por definição: ele se
baseia na crença de que a expansão de amanhã não encontrará nenhum obstáculo (nem o da
continuidadeda realização),demodoqueo excedentedehojepode ser efetivamente realizado.O
elemento especulativo, que, mais do que excepcional ou excessivo, é fundamental, significa que
antecipações e expectativas, como Keynes entendeu muito bem, são fundamentais para a
continuidadedacirculaçãodocapital.MarxreconheceissotacitamentenoLivroIII,quandoobserva
que a expansão capitalista é, como ele diz,muito “protestante”, porque se baseiamais na fé e no
crédito do que no “catolicismo” do ouro, a verdadeira base monetária. Qualquer queda nas
expectativas especulativas será, portanto, autorrealizável [self-fulfilling] e provocará uma crise.Nesse
sentido,é interessante releraTeoriageraldeKeyneseobservarqueas soluções técnicasdapolítica
monetária e fiscal ocupam apenas uma parte minoritária do argumento, em comparação com a
psicologiadas expectativas e antecipações.A féno sistema é fundamental, e a perdade confiança,
comoocorreuem2008,podeserfatal.
Osegundoproblemasurgenointeriordoprópriosistemamonetárioedecrédito.Apossibilidade
de crises financeiras e monetárias “independentes” – queMarx apresenta no capítulo 3, mas não
desenvolve–éonipresente.Oproblemasubjacenteresidenascontradiçõesdaprópriaforma-dinheiro
(o valor de uso como a representação do valor, o particular [concreto] como representação do
universal[abstrato]eaapropriaçãoprivadadopodersocial–vejaocapítulo2).QuandoMarxdiscute
a leideSay, apontaparao fatodequeháuma tentaçãopermanentede reterodinheiroe,quanto
maisaspessoascedemaela,maioréoobstáculoàcontinuidadedacirculação.Masporqueaspessoas
retêmodinheiro?Umadasrazõeséqueodinheiroéumaformadepodersocial.Elepodecomprar
consciênciaehonra!NosManuscritoseconômico-filosóficosde1844,Marxdizque,se“soufeio,[...]posso
comprar para mim a mais bela mulher”
[e]
(ou o mais lindo dos homens); se sou estúpido, posso
comprarapresençadepessoas inteligentes; se soualeijado,posso terpessoasparamecarregarpara
onde eu quiser. Pense em tudo que você pode fazer com todo esse poder social! Portanto, existem
excelentesrazõesparaqueaspessoasqueiramreterodinheiro,particularmentediantedaincerteza.
Colocá-loemcirculaçãopara termaispoder socialexigeumatode fé,ouacriaçãode instituições
seguraseconfiáveis,nasquaisvocêpodeguardarseudinheiro,enquantooutroagenteocolocaem
circulaçãoparafazermaisdinheiro(queé,evidentemente,oqueosbancoscostumamfazer).
Masas ramificaçõesdesseproblemaseespalhampor todoocampoderepresentações,emquea
perdadeconfiançanossímbolosdodinheiro(nopoderdoEstadodegarantirsuaestabilidade)ouna
qualidadedodinheiro(inflação)dãolugaraconsideraçõesmaisdiretamentequantitativas,taiscomo
a “escassez monetária” ou, como ocorreu no outono de 2008, o congelamento dos meios de
pagamento.
Aindahápouco,oburguês[leia-seWallStreet],comatípicaarrogânciaqueacompanhaaprosperidadeinebriante,declaravaodinheiro
comouma vã ilusão.Apenas amercadoria é dinheiro.Mas agora grita-se por toda parte nomercadomundial: apenas o dinheiro é
mercadoria!Assim comoo veado anseia por água fresca, sua alma clamapor dinheiro, a única riqueza.Na crise, a oposição entre a
mercadoriaesuafigura-valor,odinheiro,élevadaatéacontradiçãoabsoluta.(211)
Quermelhordescriçãodasúbitacrisede2008!
No cerne do sistema de crédito há uma série de aspectos técnicos e legais (muitos dos quais
podem falhar ou ser gravementedistorcidos simplesmente emvirtudede suas regras de operação),
associadosaexpectativaseantecipaçõessubjetivas.E,àmedidaqueocapitalismoseexpande,opapel
do sistema de crédito como uma espécie de sistema nervoso central que direciona e controla a
dinâmica global da acumulação do capital torna-se cada vez mais importante. Isso implica que o
controle sobre os meios de crédito é crucial para o funcionamento do capitalismo – uma
posicionalidadequeMarxeEngelsreconhecemnoManifestoComunista,fazendodacentralizaçãodos
meiosdecréditonasmãosdoEstadoumadesuasprincipaisreivindicações(pressupondo-se,éclaro,
ocontroledoEstadopelaclassetrabalhadora).Quandoissoéacrescentadoaopapelfundamentaldo
Estado na garantia da qualidade da cunhagem dasmoedas e, aindamais importante, dasmoedas
simbólicas(papelreconhecidonocapítulo3),pareceinevitávelquehajaalgumtipodefusãoentreo
Estado e os poderes financeiros. Essa fusão contraditória foi estabelecida pela criação de bancos
centraiscontroladospeloEstadoecompoderesdereservailimitadossobreodesembolsodosmeiosde
créditoparatomadoresprivados.
Domesmomodoqueo capitalpodeoperarnosdois ladosdademandaedaofertada forçade
trabalho(vejaocapítulo8),eletambémpodeoperarpormeiodosistemadecréditonosdoisladosda
relaçãoprodução-realização.NosEstadosUnidos, por exemplo, a oferta cada vezmais generosa de
crédito nos últimos anos a prováveis proprietários de imóveis juntou-se a uma oferta igualmente
generosa de crédito a empresários do ramo da construção civil para estimular um boom no
desenvolvimento imobiliário e urbano. Imaginou-se que, com isso, o problemada realização estaria
resolvido.Adificuldadesurgiuporqueossaláriosreaisnãoaumentaramnamesmaproporção(comoa
análisedoLivroIpoderiaprever,dadaapredominânciadaspolíticasneoliberaisapartirde1980,que
fez com que os ganhos obtidos com o aumento da produtividade não fossem repartidos, mas
concentradosinteiramentenasclassesmaisaltas),eissodiminuiuacapacidadedosproprietáriosde
saldar dívidas cada vez maiores. A quebra do mercado imobiliário resultante dessa política era
absolutamenteprevisível.
Mas uma análise dessa quebra sugere outro papel crucial do sistema de crédito. Assim como,
apontouMarx,ocrédito(eausura)teveseupapelnaextraçãoderiquezadossenhoresfeudaispor
meiodaacumulaçãoprimitiva,osistemadecréditotambémestábemposicionadoparavisareextrair
riquezadosrecursosdaspopulaçõesvulneráveis.Práticaspredatóriasdeempréstimo–umaformade
acumulação por desapossamento – resultaram com frequência em execuções hipotecárias e
permitiramquerecursosfossemadquiridosabaixocustoetransferidosinteiramenteparaalimentara
riqueza de longo prazo dos interesses de classe capitalistas. A onda de execuções hipotecárias que
começou em 2006 acarretou uma enorme perda de recursos em várias camadas vulneráveis da
população, principalmente as afro-americanas. Esse segundo momento da “acumulação por
desapossamento”por intermédiodosistemadecréditotemgrandesconsequênciasparaadinâmica
docapitalismo.Nacrisede1997-1998,porexemplo,elefacilitouumaimensatransferênciaderiqueza
doLesteedoSudestedaÁsiaparaWallStreet,nomomentoemqueumcongelamentodeliquidez
empurravafirmasviáveisparaafalência–queentãopuderamsercompradasapreçosmaisbaixospor
investidoresestrangeirosedepoisrecuperadasevendidascomlucrosimensos.Demodosemelhante,
os ataques à agricultura familiarqueocorreramemondasnosEstadosUnidosdesdeos anos1930,
tambémbaseadosnocrédito,concentraramariquezaagrícolanasmãosdoagronegócio,àcustados
pequenosproprietários,queforamobrigadosavendersuasterrasporumpreçoextremamentebaixo
medianteexecuçãohipotecária.Alutadeclasseseaacumulaçãodopoderdaclassecapitalistaabrem
caminhoporqualquercanalpossívelnolabirintodeinstrumentosdecréditosquehojeexistem.
Marxnãoinvestigouosistemadecréditosuficientementeafundoparaenfrentaroproblemada
realizaçãoemtodasuacomplexidade.EsseéumdositensinacabadosdeMarxquerequeremumaboa
dosede trabalhopara ser completados, sobretudoquando se consideraa complexidadedomercado
financeiroedecrédito,cujofuncionamentoéobscuromesmoparaquemoadministraeusa.Maso
que é interessante no argumento do Livro I é queMarx, ao tratar da transição da circulação de
mercadorias para a circulação de capital, vê-se obrigado a tratar das relações entre credores e
devedoresedousodedinheiroreguladopeloEstadocomomeiodepagamento.Eletambémtratada
estrutura temporal dos processos de produção e dos pagamentos como um problema crucial da
circulaçãomonetária,queprecisadecréditoparaalcançaranecessáriacontinuidadedacirculaçãoe
daacumulaçãodocapital.“Amoedadecrédito”,dizele,“surgediretamentedafunçãododinheiro
comomeiodepagamento”(213).É issoaquemerefiroquandodigoqueumestudocuidadosodo
argumentodoLivroInosensinamuitosobreoquevempelafrentenorestodaanálisedeMarx.Ele
tambémnosajudaadescobriroquefaltaeoqueaindaprecisaserinvestigadomaisprofundamente.
ACIRCULAÇÃODOCAPITALCOMOUMTODO
Quando a circulação é considerada como um todo, torna-se evidente que as muitas barreiras
potenciais ao fluxo livre e contínuo do capital em todos os seus momentos não são nem
independentes umas das outras nem sistematicamente integradas. Elas são construídas como um
conjuntodemomentosdistintivosnointeriordatotalidadedoprocessodecirculaçãodocapital.No
entanto,nocursodahistóriadateorizaçãomarxianasobreascrises,houveumatendênciaabuscar
umaexplicaçãodominanteeexclusivadapropensãodomododeproduçãocapitalistadegerarcrises.
Ostrêsgrandescampostradicionaisdopensamentosãoacompressãodolucro,aquedadecrescente
dataxade lucroeas teoriassubconsumistas,easeparaçãoentreelescostumaser forteosuficiente
para impedir qualquer aproximação. O próprio termo “subconsumista” é visto, em certos círculos,
comoumpalavrão (significa que você é keynesiano, e não um “verdadeiro”marxista); já os fãs de
RosaLuxemburgoficamofendidoscomopoucocasoque fazemdesuas ideiasaquelesquepõemo
argumento da taxa decrescente de lucro no centro de suas teorias. Nos últimos anos, por razões
óbvias,deu-semuitomaisatençãoaosaspectosambientaisefinanceirosdaformaçãodascrises,ena
primeiradécadadoséculoXXIessesaspectosestiveramemalta.
Pensoqueémaiscoerente,seguindooespíritodaanálisedoLivroIeadiscussãoextremamente
interessante das relações entre os limites e as barreiras nosGrundrisse (“Cada limite aparece como
barreiraasersuperada”
[f]
),pensartodosos limitesebarreirasdiscutidoscomopontospotenciaisde
bloqueio,cadaqualpodendodesacelerarouromperacontinuidadedo fluxodecapitale,comisso,
criar uma crise de desvalorização. Penso que também é importante entender a potencialidade de
deslocamento de uma barreira por outra.Medidas para aliviar uma crise de oferta de trabalho por
meiodageraçãodeumamplodesempregopodem,porexemplo,criarproblemasdeinsuficiênciade
demanda efetiva.Medidaspara resolveroproblemadademanda efetivapormeioda ampliaçãodo
sistemadecréditoentreasclassestrabalhadoraspodemprovocarcrisesdeconfiançanaqualidadedo
dinheiro (como as registradas pelas crises inflacionárias, pelo encolhimento repentinode oferta de
créditoepeloscolapsosfinanceiros).Tambémpensoqueestámaisdeacordocomafrequentemenção
de Marx ao caráter fluído e flexível do desenvolvimento capitalista reconhecer o rápido
reposicionamentodeumabarreiraàcustadeoutrae,assim,reconhecerasmúltiplasformasemqueas
crisespodemserregistradasemdiferentessituaçõeshistóricasegeográficas.
Em resumo, as barreiras potenciais são as seguintes: (1) incapacidadede reunir capital original
suficienteparamovimentaraprodução(problemasde“barreirasdeentrada”);(2)escassezdetrabalho
ou formas recalcitrantes de organização laboral que podem produzir compressões de lucro; (3)
desproporcionalidades e desenvolvimento irregular entre setores na divisão do trabalho; (4) crises
ambientais causadas por predação de recursos e degradação da terra e do meio ambiente; (5)
desequilíbrios e obsolescência prematura causados por mudanças tecnológicas irregulares ou
excessivamente rápidas, estimuladas pelas leis coercitivas da concorrência e contra-atacadas pelo
trabalho;(6)recalcitrânciaouresistênciadostrabalhadoresdentrodeumprocessodetrabalhoquese
realiza sob o comando e o controle do capital; (7) subconsumo e demanda efetiva insuficiente; (8)
crisesmonetáriase financeiras(armadilhasda liquidez, inflaçãoedeflação)queocorremnoâmbito
de um sistema de crédito que depende de instrumentos sofisticados de crédito e poderes estatais
organizados,alémdeumclimadeféeconfiança.Emcadaumdessespontosinternosdoprocessode
circulaçãodocapitalexisteumaantinomia,umantagonismopotencial,quepodeirrompercomouma
contradiçãoaberta(parausaralinguagemqueMarxempregacomfrequêncian’Ocapital).
Essenãoéo fimdaanáliseda formaçãoe resoluçãodascrisesnocapitalismo.Antesde tudo,a
dinâmicadodesenvolvimento geográfico irregular, juntamente comoproblemadodesdobramento
espaçotemporal do desenvolvimento capitalista no cenáriomundial, é extremamente complexa, na
medidaemqueocapitalprocuracriarumapaisagemgeográfica(deinfraestruturasfísicasesociais)
apropriada à sua dinâmica num dado momento apenas para destruí-la e recriar outra paisagem
geográficanummomentoposterior.Adinâmicamutáveldaurbanizaçãonocenáriomundialéuma
ilustração dramática desse processo. Os conflitos geopolíticos (inclusive guerras catastróficas) são
abundantese,comotêmsurgidodasqualidadespeculiaresdopoderterritorializado(queexigemuma
teorização adequada do Estado, um conjunto de instituições e práticas que é mencionado com
frequêncianoLivroI,porémnãoédevidamenteteorizado,comoosistemadecrédito),seguemuma
lógicaquenãoseencaixaplenamentenasexigênciasdacirculaçãoeacumulaçãocontínuasdocapital.
A história recente das mudanças globais na produção e na desindustrialização teve como
consequênciaumaimensadestruiçãocriativa,implementada,emgrandeparte,emmeioacrises,às
vezeslocais,mas,emoutroscasos,deproporçõescontinentais(comoaquelaqueatingiuoLesteeo
SudesteAsiáticoem1997-1998).Alémdisso,nãopodemosexcluirapossibilidadedechoquesexternos
(inclusive furacõese terremotos)comodesencadeadoresdecrises.Quandoaatividadequaseparou
nosEstadosUnidos,sobretudoemNovaYork,apósosataquesde11deSetembro,ainterrupçãoda
circulação foi tão assustadora que, em uma semana, os poderes públicos saíram em campo para
incentivarapopulaçãoapegarseuscartõesdecréditoeiràscompras!
Acreditoqueumespíritodeinvestigaçãomarxianadahistóriarecentedascrisesdeveriaseabrira
todasessaspossibilidades.Keynesmeparececertoeminterpretaracrisedosanos1930basicamente
comoumacrisedeinsuficiênciadedemandaefetiva(aindaque,porrazõesdeclasseprovavelmente,
nãotenhachamadoaatençãoparaadesigualdadederenda–historicamenteinéditaatéépocasmais
recentes – que explodiu nos anos 1920 em consequência do arrocho salarial). O quadro piorou
quando as pessoas perderam a confiança na capacidade da acumulação sustentada e, por isso,
começaramareterdinheiro.E,quantomaispessoasretinhamdinheiro,maisosistemaenfraquecia.
Keynes chamou isso de armadilha da liquidez. Era preciso encontrar meios de liberar o dinheiro
retido, e uma resposta foram os gastos governamentais, financiados por dívidas, para revigorar a
circulaçãodo capital (outra resposta foi a guerra).Poroutro lado, achoqueAndrewGlyn eoutros
estavam certos em ver um forte elemento de compressão do lucro nas dificuldades que os países
capitalistas avançados enfrentaram no fim dos anos 1960, onde a escassez de trabalho e a forte
organização do trabalho puseram claramente um freio na acumulação. Ao mesmo tempo, a
monopolização excessiva ajudou a desacelerar a produtividade, e isso, juntamente com uma crise
fiscaldoEstado(associadaàguerraqueosEstadosUnidostravavamnoVietnã),iniciouumalonga
fasedeestagflaçãoquesópôdeserresolvidacomodisciplinamentodotrabalhoealiberaçãodasleis
coercitivasda concorrência.Nesse caso, a crisepassoudeumobstáculoparaoutro, retornandoem
seguida para os obstáculos anteriores. A relação com a natureza também afeta a lucratividade,
sobretudo se a renda (umacategoriaque, comoo juro,não é tratadanoLivro I) sobreos recursos
naturaisaumentadrasticamente.
Meuobjetivoaquinãoé tentarescreverumahistóriadascrises,mas sugerirqueos insightsque
temos ao estudar as obras de Marx precisam ser usados de modo flexível e contingente, e não
formalístico. Minha visão a respeito da dinâmica interna da teoria da crise (oposta às lutas
geopolíticasqueocorremdemodoindependente,masnãosemrelaçãoentresi)baseia-senaanálise
dosvárioslimiteseobstáculosencontradosnoprocessodecirculação,noestudodasváriasestratégias
de superaçãoou tangenciamentodesses limites ebarreiraspormeiospolíticosou econômicos eno
cuidadosomonitoramentodomodocomobarreirasjátranspostasoucontornadasnumpontolevama
novasbarreirasemoutrospontos.Odesdobramentocontínuoearesoluçãoparcialdastendênciasde
crisedocapitalismotornam-seoobjetodainvestigação.
Por trás disso, encontra-se um problema mais profundo. A acumulação pela acumulação, a
produção pela produção e a necessidade perpétua de ter uma taxa composta de crescimento
funcionaram muito bem enquanto o núcleo do capitalismo industrial se constituiu de atividades
realizadas nas 40 milhas quadradas ao redor de Manchester e em outros poucos centros do
dinamismocapitalista,comoeraocasoporvoltade1780.Masoqueestamosanalisandoagoraéa
possibilidadedeumataxacompostadecrescimentode3%aoano,digamos,enumespaçoqueinclui
aChinaeorestodoLesteedoSudesteAsiático,umaexpansãodaatividadenaÍndia,naRússiaena
EuropaOriental,aseconomiasemergentesdoOrienteMédioedaAméricaLatinaefocos intensos
de desenvolvimento capitalista tanto na África quanto em centros tradicionais do capitalismo na
AméricadoNorte,naEuropaenaOceania.Amassadeacumulaçãoedemovimentofísiconecessária
paramanter essa taxa compostade crescimentonospróximos anos teráde sernadamenosdoque
assombrosa.
Vejoascrisescomoerupçõessuperficiaisprovocadaspordeslocamentostectônicosprofundosna
lógica espaçotemporal do capitalismo. Neste momento, as placas tectônicas estão acelerando seu
deslocamento, aumentando a probabilidade de crises mais frequentes e violentas. É praticamente
impossívelpreveramaneira,aforma,aespacialidadeeomomentodaserupções,maséquasecerto
queocorrerãocommaisfrequênciaecommaisforça,efarãooseventosde2008pareceremnormais,
senãotriviais.E,jáqueessastensõessãointernasàdinâmicacapitalista(oquenãoexcluiumevento
disruptivoaparentementeexterno,comoumpandemiacatastrófica),queargumentomelhorpoderia
haver,comodisseMarxcertavez,paraocapitalismo“seretirarecederespaçoaumestadosuperior
deproduçãosocial”
[g]
?
Masémaisfácildizerdoquefazer.Éclaroqueissopressupõeaconstruçãodeumprojetopolítico.
Enãopodemosesperarparasabertudooqueprecisamossaber,oumesmoentendertudooqueMarx
tem para dizer. No Livro I, Marx apresenta um espelho da nossa realidade, de modo a criar um
imperativoparaaação,edeixaclaroqueapolíticadeclasse,a lutadeclasses, temde serocentro
daquilo que fazemos. Em si, isso não soa particularmente revolucionário.Mas, ao longo do último
quarto de século, cansamos de ouvir que as classes são irrelevantes, que a própria ideia de luta de
classesé tãoantiquadaquenãopassadepastoparadinossaurosacadêmicos.Masbastauma leitura
séria d’O capital para mostrar irrefutavelmente que não chegaremos a lugar nenhum se não
escrevermos“lutadeclasses”nasnossasbandeiraspolíticasenãomarcharmosaotoquedoseutambor.
Noentanto,precisamosdefinirmelhoroqueexatamenteissopodesignificarparanossomundoe
nosso tempo.Emsuaépoca,Marxmuitasvezes tevedúvidas sobreoque fazer,que tipodealiança
política seria razoável, queobjetivos e reivindicaçõesdeviam ser articulados.Masoque elemostra
também é que,mesmo entre incertezas, não podemos deixar de agir. Cínicos e críticos costumam
objetarqueoquesetentafazeréreduzirquestõesdenatureza,gênero,sexualidade,raça,religiãoetc.
a termos de classe, e isso é inaceitável.Minha resposta é: de modo algum. Essas outras lutas são
importantesetêmdeserconsideradasemsimesmas.Contudo,diriaeu,éraroquenãotragamemsi
uma forte dimensão de classe, cuja solução é condição necessária, embora jamais suficiente, para,
digamos,umapolíticaantirracistaouambientalistaadequada.
Basta considerarmos, por exemplo, o impacto da chamada crise do subprime na cidade de
Baltimore. Um número desproporcional de famílias negras e famílias sustentadas por um único
progenitor(sobretudomulheres)foidestituídodeseusdireitosdemoradiae,emalgunscasos,deseus
recursosnodecorrerdeumaperversaguerraclassistadeacumulaçãopordesapossamento.Nessetipo
de situação, não podemos fugir da categoria de classe e negar sua relevância. Temos de perder o
medodefalaremtermosdeclassesedemobilizarestratégiaspolíticasemtornodasnoçõesdeguerra
declasses.
Mas há, é claro, uma razão para que o silêncio seja desejável. Classe é uma categoria que os
poderesinstituídosnãoqueremqueninguémleveasério.OWallStreetJournalironizaqualquercoisa
que se pareça comuma guerra de classes por considerá-la algo gratuitamente divisor, agora que a
nação tem de se manter unida para enfrentar suas dificuldades. A elite dominante jamais quer
admitirabertamente,emuitomenosdiscutir,aquiloqueconstituioobjetivocentraldesuaação:a
estratégiadeclasseparaaumentarsuariquezaeseupoder.
Uma coisa em queMarx insiste é que o conceito de classe, em toda a sua glória ambígua, é
indispensável tantopara a teoria quantopara a ação.Masmuita coisa deve ser feita para que essa
categoriafuncione.Porexemplo,umadasquestõesquesurgemdaleiturad’Ocapitaléoquedizerdas
relaçõesentreaslutasemtornodaacumulaçãoprimitivaedaacumulaçãopordesapossamento,por
um lado, e as lutas de classe travadas tipicamente em tornodo local de trabalho enomercadode
trabalho, por outro.Nem sempre é fácil unir essas duas formas de luta.Mas acho difícil ignorar o
amplolequedelutasquesetravamnomundointeirocontraodesapossamento,mesmoquemuitas
sejamapenasumaformadepolítica retrógradadotipo“nãonomeuquintal”.Adivisãoentreessas
duasgrandesformasdelutadeclassesdóipoliticamente.Masocapítulod’Ocapitalsobre“Ajornada
detrabalho”nosensinaquealiançassãoimportanteseédifícilchegaraalgumlugarsemelas,porque
a classe capitalista acumula capital porqualquermeiodisponível, o que significa que ela faz isso à
custadetodosnós.Oscapitalistastornam-seriquíssimos,enquantoosoutrosestagnamoupadecem.
Esseprivilégioeessepoderdeclasse,dizMarx,têmdesercombatidosedestruídosparadarlugara
outromododeprodução.
MasoLivroItambémnosensinaqueodeslocamentodeummododeproduçãoporoutroéum
processo complexo e demorado. O capitalismo não suplantou o feudalismo com uma clara
transformação revolucionária. Ele teve de crescer nos interstícios da velha sociedade e suplantá-la
pouco a pouco, às vezes pela força, pela violência, pela predação e pelo confisco de recursos,mas
outraspelologroepelaastúcia.Ecomfrequênciaperdeubatalhascontraaantigaordem,aindaque,
nofim,tenhaganhadoaguerra.Numprimeiromomento,eletevedeconstruirsuaalternativacom
base em tecnologias, relações sociais, concepções mentais, sistemas de produção, relações com a
naturezaepadrõesdevidacotidiana,taiscomohaviamsidoconstituídosnoseiodaordemanterior.
Somentedepoisdeumacoevoluçãoeumdesenvolvimentoirregulardessesdiferentesmomentosno
interior da totalidade social (veja terceiro item do capítulo 4), ele encontrou não apenas sua base
tecnológica única, mas também seus sistemas de crenças e concepções mentais, sua configuração
instável–masclaramenteclassista–derelaçõessociais,seuscuriososritmosespaçotemporaiseseus
modos igualmenteestranhosdevidacotidiana,paranãomencionarseusprocessosdeprodução.Só
entãopodemos falarverdadeiramentedecapitalismo,mesmoqueeleestejaemconstantemudança
pararesponderasuasprópriascontradiçõesinevitáveis.
ComeceiestelivroinstigandovocêatentarlerMarxnosprópriostermosdeMarx.Obviamente,
minhavisãopessoalarespeitodesses termos, sejamquais forem,desempenhouumpapelcrucialno
mapamentalque tentei construirparaguiá-lo.Meupropósitonão era convencê-lodeque tenhoa
linhadeinterpretaçãocorreta,aleituracorreta,masabrirumcaminhoparaquevocêpossaconstruir
seupróprioentendimentoeinterpretação.Seiquemuitaspessoasrejeitarãominhaleitura,comovocê
tambémpoderáfazê-lo,notodoouemparte.Paramim,asegundatarefacrucialéabrirumespaçode
diálogoediscussãoparatrazeravisãomarxianadomundodevoltaàcena,tantointelectualquanto
politicamente. As obras de Marx têm muito a dizer sobre os perigos de nossos tempos para que
possamos jogá-las na laxa de lixo da história. Depois dos acontecimentos de 2007, deveria ser
evidentequeprecisamospensar“foradacaixa”dossaberes recebidos.“Oseventos”,escreveuHenri
LefebvreemseulivrinhoTheExplosion,que tratadoseventosde1968,“desmentemasprevisões;na
medidaemquesãohistóricos,surpreendemoscálculos.Podematémesmoderrubarasestratégiasque
tornaram sua ocorrência possível”.Os eventos “tiramos teóricos de seus confortáveis assentos e os
lançam num turbilhão de contradições”
[2]
. Não hámelhormomento para estudar emminúcias as
contradiçõesinternasdocapitalismoeasobrasdessedialéticograndiosoquetantofezparatorná-las
tãoluminosamentetransparentes!
Mesmoqueasconcepçõesmentaisnãopossammudaromundo,as ideiassão,comoobservouo
próprioMarx, uma forçamaterial na história. Ele escreveuOcapital para nos equiparmelhor para
travar essa luta. Mas aqui também não existe caminho fácil, tampouco uma “estrada real para a
ciência”.ComoBertoltBrechtescreveucertavez:
Muitascoisassãonecessáriasparamudaromundo:
Raivaetenacidade.Ciênciaeindignação,
Ainiciativarápida,alongareflexão,
Afriapaciênciaeainfinitaperseverança,
Acompreensãodocasoparticulareacompreensãodoconjunto:
Somenteasliçõesdarealidadepodemnosensinaratransformararealidade.
[h]
[1]AndrewGlyneBobSutcliffe,BritishCapitalism,WorkersandtheProfitsSqueeze[Capitalismobritânico,trabalhadoresecompreensãode
lucro](Harmondsworth,Penguin,1972).
[a]KarlMarxeFriedrichEngels,ManifestoComunista,cit.,p.43.(N.T.)
[b]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.340.(N.E.)
[c]PaulA.BaranePaulM.Sweezy,Capitalismomonopolista:ensaiosobreaordemeconômicaesocialamericana(3.ed.,RiodeJaneiro,Zahar,
1978).(N.T.)
[d]TheBigThree–assimsãochamadasastrêsmaiorescompanhiasautomotivasdosEstadosUnidos:Ford,GeneralMotorseChrysler.
(N.T.)
[e]KarlMarx,Manuscritoseconômico-filosóficos(SãoPaulo,Boitempo,2004),p.159.(N.E.)
[f]KarlMarx,Grundrisse,cit.,p.332.(N.E.)
[g]Ibidem,p.627.(N.E.)
[2]HenriLefebvre.TheExplosion:MarxismandtheFrenchRevolution(trad.AlbertEhrenfeld,NovaYork,MonthlyReviewPress,1969),p.
7-8.
[h]BertoltBrecht,DasBadenerLehrstück vomEinverständnis [edição inglesa:TheDidactic Play of Baden: onConsent (Londres,Methuen,
1997,CollectedWorks),v.3,p.84].(N.T.)
Índice
11deSetembro
18debrumáriodeLuísBonaparte,O(Marx)
1848,Revoluçõesde
1929,colapsode
abstinência
acumulação
eentesouramento
pordesapossamento
primitiva
acumulaçãodocapital,A(RosaLuxemburgo)
África
afro-americanos
agronegócio(EUA)
agricultura
esínteseindustrial
mercantilização
subsistência
Alemanha
dialéticahegelianana
filosofiacríticana
trabalhoetecnologiana
trabalhomilitar
AlemanhaOcidental
algodão
Allende,Salvador
Amazônia
AméricaCentral
AméricadoNorte
AméricadoSul
AméricaLatina
destruiçãoeconômicarural
expropriaçãocamponesa
ourona
produçãoatualna
produçãoimperialistana
TeologiadaLibertação
anarquismosocial(Kropotkin)
AnistiaInternacional
antissemitismo
Aprèsmoiledéluge!
áreasnãocultivadas(greenfieldsites)
Argentina
Aristóteles
Arkwright,Richard
armadilhadaliquidez
Ásia
crescimentoatual
crisedeliquidez(1997-1998)
expropriaçãona
gangsystem(sistemadeturmas)
imperialismona
LeviStrauss(&Co)na
movimentosindicalna
proletarizaçãona
assistentessociais
Austrália
automóvel
companhias(Detroit)
indústria(Japão)
indústrias(França)
autonomista,tradição
Babbage,Charles
Babeuf,Graco
Bacon,Francis
Baltimore,Maryland
Balzac,Honoréde
BancoMundial
Bangladesh
Baran,PaulA.
Baviera
BeecherStowe,Harriet
BengalaOcidental
Bentham,Jeremy
BethlehemSteel
BigThree(companhiasautomobilísticas)
biopirataria
Birmingham,Inglaterra
Blanqui,August
BlessedUnrest(Hawken)
Bonaparte,Luís
burguesia
educaçãofilantrópicapela
liberdades/legalizaçãodedireitos
sobreaorigemdocapitalismo
versusaristocraciafundiária
boiardos
Brasil
Lula(LuizInácio“Lula”daSilva)
Mendes,Chico
milagreeconômico
MovimentodosTrabalhadoresRuraisSem-Terra(MST)noBrasil
PT(PartidodosTrabalhadores,Brasil)
Braverman,Harry
Brecht,Bertolt
Brenner,Robert
Bright,John
Bristol,Inglaterra
BritishCapitalism,WorkersandtheProfitsSqueeze(GlyneSutcliffe)
Budd,Alan
Bush,GeorgeW.
cabanadopaiTomás,A(Stowe)
Cabet,Étienne
CaliforniaOccupationalSafetyandHealthAdministration
CâmaradosLordes
caminhodoargumento(diagrama)
CanaldaMancha,túneldo
capitalindustrial,origensdo.Vertambémacumulação
capitalsocial
CapitalismNatureSocialism(revista)
capitalismoglobal.Verdívida;neoliberalismo
Capitalismomonopolista:ensaiosobreaordemeconômicaesocialamericana(BaraneSweezy)
capitalista(indivíduoversusclasse)
capturaregulatória(regulatorycapture),223.VertambémEstado
Carey,Henry
cartista,movimento
catolicismo
centralização(concentração)
Chamberlain,Joseph
Chaplin,Charlie
Chile
China
contemporânea
importaçõesda
modelododeltadoRiodasPérolas
pilhagemda
pratada
proletarizaçãona
salários
trabalho
zonaseconômicasespeciaisna
circuitoM-D-M
classeversusindivíduo(capitalista)
Cleaver,Harry
Cobden,Richard
Cohen,G.A.,22
Colombo,Cristóvão
colonialismo
CombinationLaws
comédiahumana,A(Balzac)
composição(orgânica,técnica,devalor)
composiçãoorgânica
compressãodolucro,teoriada
concentração(centralização)
Condillac,ÉtienneBonnotde
Considérant,Victor
consumo
consumoracional
Contribuiçãoàcríticadaeconomiapolítica(Marx)
CoreiadoSul
CornLaws(leisdoscereais)
corpodotrabalhador
comoapêndicedocapital
forçadetrabalhono
nocircuitoM-D-M
relaçãodialéticacomanatureza
corveia,sistemade
crédito
comoauxiliardaacumulação
edemandaefetiva
operadorasdecartãodecrédito
papeldo
sistemade
crescimento.Vertambémacumulação
crianças
CríticadafilosofiadodireitodeHegel(Marx)
Cuba
D-M-D
ΔD
formadecirculação
mais-valorderivadode
processo
Darwin,Charles
darwinismosocial
DeclaraçãoUniversaldosDireitosHumanos
Defoe,Daniel
desconstrução
desindustrialização.Verneoliberalismo
Deleuze,Gilles
demanda(efetiva)
DengXiaoping
Derrida,Jacques
Descartes,René
desemprego
comoprodutodaacumulação
gerenciamentodo(reservasflutuantes)
insegurançanoempregocomodisciplina
Desenvolvimentodesigual:natureza,capitaleaproduçãodeespaço(NeilSmith)
desqualificação
determinismo
Detroit,Michigan
diagrama(s)
cadeiadeargumentaçãodialética
caminhodoargumento
estruturadovalor
inter-relaçãodoselementos
dialéticacampo-cidade
Dickens,Charles
diggers
dinheiro,basemetálicado
direitos
comuns
concepçãoburguesa
liberaisversuseconômicos
políticadedireitoshumanos
propriedade.Vertambémleidapropriedade
direitoscomunais.Verleidecercamento
direitoshumanos.Vertambémdireitos
Disraeli,Benjamin
dívida
dividirparagovernar
divisãodotrabalho
duquesadeSutherland
“economiamoral”(Thompson)
Eden(comentadordoséculoXVIII)
édito(Rússia)
educação.VertambémEstado
acessoà
demandaefetiva
elite(intelectual)
Engels,Friedrich.VertambémManifestoComunista;AsituaçãodaclassetrabalhadoranaInglaterra
entesouramento.Veracumulação
Epicuro
Escandinavos,Estados
Escócia
espaço-tempo
geográfico
relação
Espinosa,Baruch
EssayonTradeandCommerce,An(Anônimo)
EssaysinBiography(Keynes)
Estado
aparatoregulatório
apoioàproletarização
comocentralizadordosmeiosdecrédito
educação
economistaspolíticosclássicoseo
naÁsia
nosanos1930
EstadosUnidos
agronegócio
apósaSegundaGuerraMundial
apóso11deSetembro
áreasnãocultivadas(greenfieldsites)
choqueVolcker
destruiçãodaagriculturafamiliar
eopetróleodoOrienteMédio
etrabalhomexicano
empresaseregulamentações
escaladerenda
escassezdetrabalho
escravidão
execuçãohipotecária
fundosdeprivate-equity
leisdeimigração
NewDeal
noVietnã
ofertadecrédito(dívida)
origensdocapitalistaindustrial
PartidoRepublicano
salários(desde1970)
seguridadesocial
trabalhomilitar
trabalhoporto-riquenhonos
tradiçõespolíticaselaborais
estatísticas
eforçadetrabalho
epolíticaenergética
FederalReserve
gerenciamentodosistemamonetário
legislaçãoantitruste
Leisfabris
NewDeal
políticasdeimigração
políticasdeinfraestrutura
trabalhomilitar
sistemascoloniais
estagflação
estilodevidasuburbano
ÉticaaNicômaco(Aristóteles)
EugêniaGrandet(Balzac)
Europa
escravagista,comércio
escravidão.Vertrabalho
evolucionistas(russos)
exércitodereserva.Vertrabalho
Explosion,The(Lefebvre)
fábuladasabelhas,A(Mandeville)
Fausto(Goethe)
fetichismo
feudalismo
ecomércioescravagista/colonialismo
terraversusdinheiro
transiçãoparaocapitalismo
Feuerbach,LudwigAndreas
Fielden,John
Filosofiadodireito(Hegel)
Filosofiagrega
fisiocratas
Forbes,lista
forçadetrabalhomédica
Ford,Henry
fordista,sistema/técnicasdeprodução
forma-dinheiro(mercadoria)
epoderestatal,fusão
origemeprocessoda
podersocialda
trêspeculiaridadesda
velocidadeda
FórumSocialMundial
Foucault,Michel
Fourier,Charles
Fowkes,Ben
França
economistaspolíticosclássicos
gangsystem(sistemadeturmas)na
impactodaleifabrilinglesana
indústriasautomobilísticasna
semanadetrabalhode35horas
socialistasutópicosda
trabalhomilitar
Franklin,Benjamin
Friedman,Milton
Friedman,Thomas
FundoMonetárioInternacional(FMI)
Gaia,hipótesede(Lovelock)
gangsystem(sistemadeturmas)
GapInc.
gentrificação(NovaYorkeLondres)
Gifford,KathyLee
Giuliani,Rudy
globalização,noManifestoComunista
Glyn,Andrew
Goldsmith,Oliver
Grã-Bretanha
aristocraciaversusburguesia
comércioescravagista
economistaspolíticosclássicos
exportaçãodecapital/maquinaria
indústriaalgodoeira
Japão,indústriaautomobilísticano(anos1980)
Parlamento
planosdecolonizaçãodeWakefield
socializaçãodotrabalhoassalariado(IdadeMédia)
transiçãoparaocapitalismo
Gramsci,Antonio
GrandeDepressão
“grandetraição”(ReformAct)
Gray,John
grevesdemineiros
Grundrisse(Marx)
“anulaçãodoespaçopelotempo”
sobreacompetição
sobreaforçadetrabalho
sobreataxadecrescentedelucro
sobreacumulaçãoprimitiva
sobredinheirocomocomunidade
sobreosistemadecrédito
limitesebarreiras
panoramadoestudosobreOcapital
prescriçõesmetodológicasdos
GuerraCivil(EUA)
GuerraFranco-Prussiana(1870-1871)
GuerrasdoÓpio
Guantánamo,Baíade
Guatemala
GuilhermedeOrange
Harvey,David,obras
limitesdocapital,Os
Neoliberalismo:históriaeimplicações
novoimperialismo,O
Paris:CapitalofModernity
SpacesofCapital
SpacesofGlobalCapitalism
Hawken,Paul
Hayek,Friedrich
Heath,Edward
Hegel,G.W.E
hegemonia(Gramsci)
HenriqueVII(rei)
Hobbes,Thomas
Holloway,John
HomesteadAct(EUA)
Honduras
HongKong
Horner,Leonard
humanistas(séculoXVIII)
Hume,David
icarianos
imigração,políticasde.Vertambémtrabalho;Estado
imigrantes
imigrantesirlandeses
ImmigrationandCustomsEnforcement(ICE)
ImpérioRomano
indústriadepublicidade
Índia
expansãoimperialistana
neoliberalismona
ópioda
proletarizaçãoda
VertambémGrã-Bretanha
zonaseconômicasespeciaisna
ÍndiasOcidentais
individualismo.Vertambémdireitos
indivíduoversusclasse(capitalista)
Indonésia
indulgências,vendade
infraestrutura
centralização(estatal)e
comoabsorçãodeexcedente
financiamentoprivadoversusestatalda
interesseindustrialem
necessidadede
nomodelobase-superestrura
padrõesvariáveisde
social(treinamentodetrabalhadores)
inspetoresdefábrica
inter-relaçãodoselementos(diagrama)
InventionofCapitalism,The(Perelman)
Inglaterra
acumulaçãoprimitivana
censo(1861)
saláriosemcomparaçãocomaAméricadoNorte
VertambémGrã-Bretanha
Iowa,frigorífico(2008)
Itália
Itoh,Makoto
Iugoslávia
Japão,
crescimentono
estrutura“just-in-time”
indústriaautomobilística
karoshi(sobretrabalho)
JohnsHopkins,universidade
jovenshegelianos
“just-in-time”,sistemas
Kant,Immanuel
KarlMarx’sTheoryofHistory(Cohen)
karoshi(sobretrabalho)
Keynes,JohnMaynard
armadilhadaliquidez(liquiditytrap)
demandaefetiva
Estadodebem-estarsocial(welfarestate)
sobreantecipaçãoeexpectativa
teoriasubconsumista
Kropotkin,Piotr
LigadasNações
Leeds,Inglaterra
Lefebvre,Henri
leidapropriedade
daproduçãodemercadorias
princípiolockianoda
privada
Leidas10Horas
leidecercamento
leiislâmicasobreojuro
Leisdoscereais(Cornlaws)
LeidosPobres
Leibniz,Gottfried
Leisfabris
capitalistasversusEstado
clausulassanitáriaseeducacionais
dosanos1800
vantagemcompetitivadas
Lenin,Vladimir
levellers
liberalismo.Verneoliberalismo
Lichnovski,KarlMax
limitesdocapital,Os(DavidHarvey)
liquidez,crisesde
Liverpool,Inglaterra
Locke,John
lockiana,teoria
Londres,Inglaterra
“Loucuraecivilização”(Foucault)
Lovelock,James
ludista,movimento
Lula(LuizInácio“Lula”daSilva)
Luxemburgo,Rosa
edesapossamento(contemporâneo)
sobreimperialismoedemandaefetiva
magrebinos
mais-valor
coberturalegaldo
eabstinência
problemadeabsorçãodo
transformaçãodo
Malthus,Thomas
eDarwin
sobreademandaefetiva
sobreapopulação
Manchester,Inglaterra
EscoladeManchester
industriais
industrializaçãode
influênciadeMarx
versusomodelodeBirmingham
Mandeville,Bernard
ManifestoComunista(MarxeEngels)
descriçãodaglobalização
Friedmaneo
sobreadissoluçãofeudal
sobreaproduçãocontínua
sobreocontroleestataldocrédito
sobreosutopistas
MaoTsé-tung
máquinaavapor
maquinaria.Vertambémtecnologia
Marx,Karl,obras
18debrumáriodeLuísBonaparte,O
Contribuiçãoàcríticadaeconomiapolítica
CríticadafilosofiadodireitodeHegel
Grundrisse.VerGrundrisse
ManifestoComunista
Manuscritoseconômico-filosóficosde1844
“Paraumacríticaimpiedosadetudooqueexiste”
Teoriasdomais-valor
macarthismo
Manuscritoseconômico-filosóficosde1844(Marx)
MecanismoEuropeudeTaxasdeCâmbio
Médici,EmílioGarrastazu
Meidner,Rudolf
Meidner,plano
meiosdeprodução,setorde
Mendes,Chico
MenênioAgripa,fábulade
“MerrieEngland”
método(deMarx)
métododialético
descrição
diagrama
dialéticainternaversusdialéticaexterna
ematerialismohistórico
México
MiguelArcanjo,festadeSão
microcrédito,instituiçõesde
Mill,JohnStuart
MiniCooper(automóvel)
miséria.Veracumulação
MollFlanders(Defoe)
More,Thomas
MovimentodosTrabalhadoresRuraisSem-Terra(MST)noBrasil
mulheres
mundoéplano,O(Friedman)
Nandigram,BengalaOcidental
nascimentodaclínica,O(Foucault)
NationalLaborRelationsBoard
Negri,Toni
neoliberalismo
acumulaçãoprimitiva
condiçõesdetrabalho
deReagan/Thatcher
descrição
euniversidades
excessodecrédito
níveisdedesigualdadesocial
noMéxico
taxadecrescimento
Neoliberalismo:históriaeconsequências(DavidHarvey)
NewDeal
Newgate,prisão
Newton,Isaac
Nike
NobeldeEconomia,prêmio
noblesseoblige
Norwich,Inglaterra
NovaYork,cidade
NovaYork,Estado
novoimperialismo,O(DavidHarvey)
Observer(jornal)
obrigaçõesdedívidascolateralizadas(CDOs)
OccupationalSafetyandHealthAdministration
Oceania
O’Connor,Jim
ofertaedemanda
interessedostrabalhadorese
leida
limitaçãoda
razãomercadoria-troca
OliverTwist(Dickens)
Ollman,Bertell
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OrganizaçãodasNaçõesUnidas(ONU)
OrienteMédio
origemdasespécies,A(Darwin)
Orshansky,Mollie
ouro
Owen,Robert
panóptico
“Paraumacríticaimpiedosadetudooqueexiste”(Marx)
Paris
Paris:CapitalofModernity(DavidHarvey)
Parlamento(Britânico)
PartidoComunista(China)
PartidodosTrabalhadores(PT)(Brasil)
PartidoRepublicano(EUA)
patologiaindustrial
petróleo(OrienteMédio)
Petty,William
Péreire,irmãos
Perelman,Michael
Pinochet,Augusto
população
flutuante.Vertambémtrabalho
estagnada
excedentede.Vertambémtrabalho
latente
porto-riquenho,trabalho
Portugal
prata
PrimeiraInternacional(anos1860)
Princípiosdeeconomiapolítica(Malthus)
Private-equity,fundosde(EUA)
privatização
proletarização
atual
processohistóricode
protestantismo
Proudhon,Pierre-Joseph
Marxe
sobredireitos/legalidade
sobreoempregodasmulheres
utopismo
quakers,ideologiados
Quesnay,François
“RadicalJoe”
razão(capital/valor)
ReadingCapitalPolitically(Cleaver)
Reagan,Ronald
ReformAct(1832)
reformismo(burguês)
Règlementorganique
reprodução
davidacotidiana
dascondiçõessociais
docapital
RevoluçãoGloriosade1688
revoluções(1848)
Ricardo,David
damicroteoriaàmacroteoria
ealeideSay
sobreaquedadolucro
sobreconsumidoresnãoprodutivos
sobreocomércioexterior
tempodetrabalhocomovalor
teoriadaquantidadedemoeda
RiodasPérolas,deltado
RobinHood
Robinson,Joan
RobinsonCrusoé(Defoe)
Roemer,John
Romantismo
Rothschild,família
Rousseau,Jean-Jacques
RoyalMint
RussellSageFoundation
Rússia
Saint-Simon,Henride
salários
comorepresentação
diferençasnacionaisentreos
esindicatos
flutuaçãodos
individualversusfamiliar
naChina
nosEUAapartirdosanos1970
Say,J.B.
Say,leide
Say’sLaw(Sowell)
SegundaGuerraMundial
segundanatureza.Verinfraestrutura
SegundoImpério(França)
seguridadesocial(EUA)
“seiselementosconceituais”(Marx)
Senior,NassauW.
sergenérico
servos(russos)
Seul,CoreiadoSul
Shenzhen,China
Silício,Valedo
sindicatos
áreasnãocultivadas(greenfieldsites)e
controladoresdetráfego-aéreo(EUA)
comoestabilizadorparaocapitalismo
comoforçapolítica
como“violação”
eCombinationLaws
eleisdaimigração
esalários
naÁsia
naSuécia(PlanoMeidner)
Thatchere
thinktanksantissindicalistas
Sismondi,JeanCharlesLeonardde
situaçãodaclassetrabalhadoranaInglaterra,A(Engels)
Slim,Carlos
Smith,Adam
ateoriadeWakefielde
Marxe
sobreadivisãodotrabalho
sobreofuncionamento(amãoinvisível)domercado
sobreMandeville
sobreopapeldoEstado
sobreasorigensdaclassetrabalhadora
Smith,Neil
socialização.Verproletarização
socialismoutópico
Soros,George
Sowell,Thomas
SpacesofCapital(DavidHarvey)
SpacesofGlobalCapitalism(DavidHarvey)
Steuart,James
Stowe,HarrietBeecher
subclasse
subconsumo
subprime,crisede
Suécia
Sutcliffe,Bob
Sutherland,duquesade
Sweezy,PaulM.
taxadecrescentedelucro
taylorismo
tecnologia
algodão
comodisciplinadotrabalho
composiçãotécnicada
comunicaçãoetransporte
edesindustrialização
ferramentasversusmáquinas
fetichismo
históriada
inovação
interiorizaçãoda
tempo
apropriação
cronoanálise(time-and-motionstudies)
determinaçãosocialdo
relaçãoespaço-tempo
Temposmodernos(filme)
Teoriageraldoemprego,dojuroedamoeda(Keynes)
Teoriasdomais-valor(Marx)
TerceiraItália
TerrasAltas
terrasdaCoroa
terrasdaIgreja
Thatcher,Margaret
“TheWorldisRound”(Gray)
Thompson,E.P.
tories(Inglaterra)
trabalho
coletivo
condiçõesde
desqualificação
disciplinadotempo
divisãodo
Engelseo
estagnado
exércitodereserva
flutuante
forçadetrabalho
Fouriereo
imigração
intensificação
latente
mental(intelectual)
militar
naChina
políticadeofertadetrabalho
porto-riquenho
qualificadoedesqualificado
servil
sistemadecorveia
sistemafamiliar
sistemasdetrabalhoemcompetição
Smitheo
visãodeLocke
Trabalhoecapitalmonopolista:adegradaçãodotrabalhonoséculoXX(Braverman)
Tristan,Flora
Tronti,Mario
Turgot,A.R.J.
Turquia
UniãoSoviética
UnitedAirlines
UnitedFarmWorkers
universidades
Ure,Andrew
vadios(Mandeville)
valor
composiçãodevalor
diagrama
forçadetrabalhoversusteoriado
vampiro,metáforado
Vaticano
Vaucanson,Jacquesde
Vico,Giambattista
Vietnã
Vigiarepunir(Foucault)
Volcker,choque
Wakefield,EdwardGibbon
Walkley,MaryAnne
WallStreet
ecriseasiática(1997-1998)
eexecuçõeshipotecárias
táticapredatória
WallStreetJournal(jornal)
Walmart
eimportaçõesdaChina
fábricasclandestinas
formaorganizacional
impactosobreaforçadetrabalho
Watt,James
Weber,Max
Wedgwood,Josiah
Wilson,WilliamJulius
Wilson,Woodrow
Yangtze,rio
zapatistas
zonaseconômicas.Veráreasnãocultivadas(greenfieldsites)
zonaseconômicasespeciais
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Estelivrocomeçouaserimpressonodia11demarçode2013,exatos
165anosapósKarlMarxtersidoeleitopresidentedoComitêCentral
daLigadosComunistas, emParis.
Copyright©DavidHarvey,2010
Copyrightdestatradução©BoitempoEditorial,2013
TraduzidodooriginaleminglêsACompaniontoMarx'sCapital(Londres/NovaYork,Verso,2010)
Coordenaçãoeditorial
IvanaJinkings
Editora-adjunta
BibianaLeme
Assistênciaeditorial
AlíciaToffanieLiviaCampos
Preparação
MarianaEchalar
Diagramação
CrayonEditorial
Capa
AntonioKehl
sobreesculturadeCélioMonteverde
Produção
LiviaCampos
Versãoeletrônica
Produção
KimDoria
Diagramação
SchäfferEditorial
CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ.
H271p
Harvey,David,1935-
ParaentenderOcapital[recursoeletrônico]/DavidHarvey;[traduçãodeRubensEnderle].-SãoPaulo,SP:Boitempo,2013.
recursodigital
Traduçãode:AcompaniontoMarx'sCapital
Formato:ePub
Requisitosdosistema:AdobeDigitalEditions
Mododeacesso:WorldWideWeb
Incluiíndice
ISBN978-85-7559-323-3
1.Marx,Karl,1818-1883.2.Capitalismo.3.Capitalismo-Filosofia.4.Socialismo.I.Título.
13-0950.
CDD:330.122
CDU:330.85
Évedadaareproduçãodequalquer
partedestelivrosemaexpressaautorizaçãodaeditora.
Estelivroatendeàsnormasdoacordoortográficoemvigordesdejaneirode2009.
1
a
edição:marçode2013
BOITEMPOEDITORIAL
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