paisagem cultural, etnografia e patrimÔnio: um estudo de ... · sentido de registrarem-se as...
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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
PAISAGEM CULTURAL, ETNOGRAFIA E PATRIMÔNIO: um estudo de caso em Bichinho, Minas Gerais
LEITE RIBEIRO DO VALE, JAQUELINE. (1); PENIDO DE REZENDE, MARCO ANTÔNIO (2)
1. Centro Universitário Newton Paiva
Praça Minguel Chiquiloff 41/1603, Sion, Belo Horizonte CEP: 30320-110
jaquelinevale@gmail.com
2. Universidade Federal de Minas Gerais – Escola de Arquitetura Rua Paraíba, 697 - Funcionários, Belo Horizonte
CEP: 30130-140 marco.penido.rezende@hotmail.com
RESUMO A partir da internacionalização da arquitetura monumental, a sobrevivência da arquitetura vernácula, assim como os seus construtores, estava ameaçada. Culturas em regiões onde anteriormente eram consideras remotas e com tradições preservadas, foram sujeitas à pressão da mudança comunicação moderna, acelerada pela exploração da sua terra e recursos minerais. Através desse crescimento, segundo Oliver (1997), as construções vernaculares são, muitas vezes, vistas pelos políticos e pela população como representação do passado em contraste com as tecnologias e materiais modernos. Com a rápida expansão da economia e progresso da comunicação e tecnologia, tornam-se essencial para a preservação do patrimônio imaterial a compreensão e registro das identidades culturais, ou seja, preservar não somente o produto, mas o processo. O “saber fazer” é uma das principais testemunhas do modo de viver de um povo e de sua cultura. Um tipo de abordagem do valor estético é a etnográfica, em que o objetivo é compreender as dimensões da estética na cultura dos construtores e moradores da arquitetura vernácula, criando assim, uma visão completa da prática e experiência arquitetônica. O estudo etnográfico procura descobrir, através da observação e de entrevistas, como as pessoas se sentem em relação à construção que elas veem e usam. É nesse cenário que várias pesquisas nessa área estão sendo desenvolvidas. Pesquisar e registrar o processo de técnicas vernaculares através de recuperação da memória e consultas com os mestres se faz cada vez mais presente. Existem hoje comunidades onde ainda utilizam técnicas tradicionais, e o estudo dos motivos de sua retomada e valorização é essencial para preservação e disseminação, assim como o registro do “saber fazer” dos mestres locais. A proposta desta pesquisa foi buscar compreender como se deu o processo de preservação das técnicas construtivas em adobe e como elas podem ser mais valorizadas pela comunidade local através de uma pesquisa etnográfica. O local escolhido é o Vitoriano Veloso (Bichinho), distrito de Prados, além de importante exemplo, localiza-se próximo a Tiradentes, que possui vários monumentos nacionais em Terra, assim como importantes casarios. Para analisar melhor a cultura da construção com adobe no distrito de Bichinho, foi realizada uma pesquisa etnográfica do povoado. Para conseguir atingir esse objetivo e fazer melhor a análise da cultura local, a pesquisadora ficou um mês vivendo no povoado, conhecendo a rotina e o dia a dia dos moradores. Através desta pesquisa, pode-se concluir que, para melhor compreender uma técnica e seu valor em uma comunidade, o estudo interdisciplinar é indispensável. A importância do valor cultural e técnico do adobe no distrito em foco pode ser analisada através da junção de metodologias etnográficas e antropológicas e metodologias técnicas de análise de produção e ensaios laboratoriais. O estudo detalhado da produção do adobe é essencial quando se pensa em transferência dessa tecnologia para outros lugares. Esse conhecimento do domínio operacional da técnica em questão no
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distrito de Bichinho é fator importante quando se trata de tecnologia apropriada e de sua transferência. Além dos fatores culturais estudados, fatores do domínio operacional se fazem indispensáveis quando essa técnica for aplicada em outro local. Palavras-chave: paisagem e etnografia; arquitetura de terra; arquitetura vernácula
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1 Introdução
Cada vez mais, as chamadas “técnicas vernaculares de construção” estão sendo valorizadas
não só pelo seu valor sustentável, mas também por garantir a preservação e dos
monumentos.
Os primeiros estudos sobre a arquitetura vernácula, datam do século XIX. Foram feitos no
sentido de registrarem-se as arquiteturas peculiares encontradas nos países não europeus.
Relatam, registram e ilustram o que era então considerado pitoresco e não convencional em
relação ao universo europeu. Embora registrem alguns dos objetos que seriam
posteriormente foco do campo da arquitetura vernácula, não chegam a constituir
propriamente um campo de conhecimento.
Somente ao longo do século XX, os estudos sobre a arquitetura vernácula passam a se fazer
de forma mais sistemática. Entre as razões para o avanço destes estudos, os autores
(CARTER; CROMLEY, 2008) citam o interesse crescente por uma visão politicamente mais à
esquerda, em relação à história tradicional da arquitetura que só se ocupava dos
monumentos. Um movimento ocorrido a partir dos anos 60 do século passado não só não
história da arquitetura, mas não história em geral, buscando estudar a vida não só das elites,
mas de toda a população.
Com a rápida expansão da economia e progresso da comunicação e tecnologia, tornam-se
essencial para a preservação do patrimônio imaterial a compreensão e registro das
identidades culturais, ou seja, preservar não somente o produto, mas o processo. O “saber
fazer” é uma das principais testemunhas do modo de viver de um povo e de sua cultura.
É nesse cenário que várias pesquisas nessa área estão sendo desenvolvidas. Pesquisar e
registrar o processo de técnicas vernaculares através de recuperação da memória e consultas
com os mestres se faz cada vez mais presente.
Existem hoje comunidades onde ainda utilizam técnicas tradicionais, e o estudo dos motivos
de sua retomada e valorização é essencial para preservação e disseminação, assim como o
registro do “saber fazer” dos mestres locais.
A proposta desta pesquisa foi buscar compreender como se deu o processo de preservação
das técnicas construtivas em adobe e como elas podem ser mais valorizadas pela
comunidade local através de uma pesquisa etnográfica. A vila escolhida, além de importante
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exemplo, localiza-se próximo a Tiradentes, que possui vários monumentos nacionais em
Terra, assim como importantes casarios.
2 Metodologia
As pesquisas na área de arquitetura vernácula têm buscado sua metodologia em interfaces
com várias áreas do conhecimento que incluem, além da Arquitetura, as áreas da Geografia
Humana, Antropologia e História Social (CARTER; CROMLEY, 2008).
Em relação à cultura, busca-se compreender os seus aspectos mais relacionados à produção
do abobe, ou seja, a sua história e os processos de tomada de decisão para a sua escolha.
Para analisar melhor a cultura da construção com adobe no distrito de Vitoriano Veloso
(Bichinho), foi realizada uma pesquisa antropológica do povoado. Para conseguir atingir esse
objetivo e fazer melhor a análise da cultura local, a pesquisadora ficou um mês vivendo no
povoado, conhecendo a rotina e o dia a dia dos moradores.
3 Resultado e Discussão
3.1 A história
Para compreender a formação do povoado de Bichinho é necessário entender o contexto
nacional e regional a que está inserido. As informações abaixo foram retiradas do Dossiê de
Tombamento de Vitoriano Veloso, realizado pela Prefeitura de Prados.
O Brasil colônia passava pelo processo de interiorização intensificado pela busca de minas
auríferas, e milhares de forasteiros partiram para o interior em busca de enriquecimento.
Nas Minas setecentistas, nativos tupis se encontravam pela primeira vez com os brancos
dominadores e o uso de mão de obra escrava, indígena e negra, marcou esse período com
violência. Mas esse novo contato também gerou riquezas através das novas relações sociais,
culturais, econômicas e políticas, contribuindo para a formação do cotidiano através das
técnicas artesanais, da culinária, do vocabulário e dos modos de fazer das regiões auríferas.
Outra marca importante do período é a religiosidade, presente fortemente no cotidiano como
elemento aglutinador social.
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O processo de interiorização teve como atores principais os bandeirantes. Fossem os grandes
ou anônimos, eles partiam através de iniciativa privada em busca de lucro e de alternativa
econômica. Após o descobrimento das regiões auríferas, a disseminação da agricultura e da
pecuária ocorreu como subsídio para a presença dos mineradores e comerciantes, as quais
mais tarde, com a crise do ouro, se tornariam uma das principais fontes econômicas dessas
regiões.
O desbravamento dos sertões da antiga Capitania de Minas ocorreu de forma gradual e
heterogênea, a qual, à medida que se tinha notícia de novas minas de ouro, se expandia, em
cada lugar com suas peculiaridades. Desses arraiais emergiam pequenos e espalhados em
um eixo de procura por novas minas auríferas. Eram interdependentes, conformando a
dinamicidade típica das zonas mineradoras. Na implantação dos arraiais, demonstrou-se
enorme dificuldade de criar uma infraestrutura para os milhares de forasteiros.
O arraial de Prados seguiu dentro do universo da ocupação do território das Minas
setecentistas, porém agrega suas particularidades. Localizado em ponto estratégico dos
caminhos das minas e da Estrada Real (Figura 01).
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Figura 01 – Mapa Estrada Real
Fonte: Estrada Real, 2012.
O Povoado de Vitoriano Veloso, mais conhecido como Bichinho, está localizado entre as
cidades históricas de Prados e Tiradentes (Fig. 02), na região dos Campos das Vertentes. De
acordo com Inventário de Proteção do Acervo Cultural de Vitoriano Veloso, o povoado surgiu
no início do século XVIII, pertencendo então à Vila de São José Del Rei. Inicialmente,
formou-se como um arraial em função das produtivas lavras auríferas do Gritador, cujo nome
seria uma corruptela da expressão Greta d’ouro.
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Figura 02 - Mapa de localização do Distrito de Vitoriano Veloso (Bichinho).
Fonte: MARCELO VALE, 2010.
Em fins do século XIX, o povoado é elevado a Distrito de Paz e recebe o nome de Vitoriano
Veloso, em homenagem ao inconfidente Vitoriano Gonçalves Veloso, nascido em 1739, no
Gritador. Único mulato pertencente ao movimento da Inconfidência Mineira, Vitoriano
Gonçalves Veloso, alfaiate de profissão, serviu como mensageiro de confiança dos
inconfidentes. Foi condenado pela Real Coroa em 12 de maio de 1792, no Rio de Janeiro, a
ser açoitado pelas ruas até chegar ao local da forca.
Existem duas explicações para o popular nome “Bichinho”, segundo registros e conversa com
os moradores. A primeira hipótese é de que, por estar numa região de remanescência da
Mata Atlântica, nos arredores da Serra de São José, os moradores conviviam com animais de
pequeno porte (como mico-estrela, lobos-guará, onças jaguatiricas, tatus) que habitavam a
região e transitavam pelo povoado. A segunda hipótese, e mais provável, é de que o povoado
era habitado por pessoas de classe muito baixa, alguns deles escravos e, quando os
senhores de escravo precisavam de mão de obra, pediam para buscar alguns “bichinhos” no
povoado.
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Com a descoberta do ouro na região e o início das explorações, o povoado começa se
estabelecer com casas rústicas, entre caminhos para outros povoados. A capela começa a
ser construída, sendo o principal marco edificado do povoado.
A capela de Nossa Senhora da Penha teve sua construção iniciada em 1732, em sistema de
pau a pique e adobe, embasamento de pedras, telhas curvas e ausência de ornamentação.
Exemplar de uma arquitetura vernácula, de construção simultânea nos períodos prósperos da
mineração.
Assim como a maioria das cidades mineiras, a estrutura das edificações se concentrava em
torno da igreja e, em ramificações, elas foram ocorrendo em direção a Prados e Tiradentes.
Já no século XIX ocorre o declínio da exploração do ouro e, com isso, uma considerável
diminuição na população local. Exemplo disso são os dados levantados, citados nas primeiras
décadas do século XVIII, quando havia cerca de 194 chefes de famílias pagantes de
impostos, não sendo possível mensurar a população escrava local, por falta de dados, mas
sendo possível que houvesse em número significativo, haja vista a região ser de mineração.
Já em 1824, após a crise do ouro, havia somente 61 casas com 298 moradores, assinalando,
assim, a estagnação ocorrida no povoado durante esse período, repercutida pelas poucas
possibilidades de desenvolvimento econômico.
A partir da decadência da atividade mineradora durante o século XIX, uma nova economia
local surgiria, cultivando gêneros agrícolas e investindo na criação de gado.
No começo do século XX, verifica-se o aparecimento de casas-sede de fazenda nas áreas
afastadas do núcleo urbano. A população praticava a agricultura de subsistência e pequenas
criações de gado, sendo os produtos suficientes para consumo próprio e comercialização
local. Inicia nessa época também a produção de artesanato local, através da produção de
esteiras de taquara para forro ou montagens de bijuterias para as fábricas de Tiradentes.
Até 1938, o povoado de Vitoriano Veloso, até hoje mais conhecido como Bichinho, era distrito
de Dores do Campo, passando, pela Lei no 148, de 17/12/1938, a fazer parte do Município de
Prados.
Da segunda metade do século XX até o panorama atual, as atividades rurais se mantêm de
grande importância, e uma nova base econômica desenvolve o artesanato. Acompanhado de
crescimento populacional e intensificação do tráfego de automóveis, a homogeneidade e
identidade arquitetônica se perdem (materiais e construções de garagem, por exemplo). Mais
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recentemente ocorrem a ampliação da oferta de serviços e o desenvolvimento do comércio e
do turismo, bem como a ampliação do contingente populacional.
As construções utilizando o adobe existentes desde a formação do povoado e que foram
substituídas por construções com materiais convencionais são retomadas no final do século
XX. As próprias construções mais antigas tiveram o reboco removido para exibir suas
paredes.
3.2 A cultura
De acordo com Laplantine (1988), a experiência do pesquisador em campo em relação aos
interlocutores é parte integrante da pesquisa. Essa experiência é parte fundamental do
trabalho antropológico:
“A perturbação que o etnólogo impõe através de sua presença àquilo que
observa e que perturba a ele próprio, longe de ser considerada como um
obstáculo que seria conveniente neutralizar, é uma fonte infinitamente
fecunda de conhecimento. Inclui-se não apenas socialmente, mas
subjetivamente faz parte do objeto científico que procuramos construir, bem
como do modo de conhecimento característico da profissão de etnólogo. A
análise, não apenas das reações dos outros à presença deste, mas também
de suas reações às reações dos outros, é o próprio instrumento capaz de
fornecer à nossa disciplina vantagens científicas consideráveis, desde que se
saiba aproveitá-lo.”
Bichinho é um povoado que possui praticamente uma só rua, sobretudo no olhar do turista,
que a maioria das vezes chegava pela estrada que liga a Tiradentes, fazendo um trajeto de
carro na rua principal e parando nas lojas de artesanato até o final da cidade, quando se
deparava com uma estrada de terra ligando Prados (Figura 03).
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Figura 03 - Foto da rua principal.
Fonte: Produzido pela AUTORA, 2012.
Praticamente, todos que conhecem Tiradentes já foram ou já ouviram falar do Bichinho. E é
assim que os moradores se referem ao distrito, no masculino, sendo, então, comum escutar
“no Bichinho” e “do Bichinho”.
A convivência com os moradores e a oportunidade de viver a diferente rotina de um povoado
tão pequeno foram essenciais para melhor entendimento da cultura. Isso não somente em
relação ao lado técnico, mas principalmente para compreender melhor os indivíduos, que
tomam decisões e possuem convivência quase peculiar, em comparação com os grandes
centros urbanos.
A infraestrutura da cidade foi completamente alterada depois da chegada do artesanato e do
turismo, mas, mesmo assim, continua bem simples. Sem agências bancárias, com apenas
uma farmácia e poucos comércios de alimentos, Bichinho possui características comuns das
pequenas cidades e distritos brasileiros.
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O distrito possui apenas uma escola pública, onde as crianças se dividem entre ela e as
escolas das cidades vizinhas. O posto de saúde era bem equipado e considerado modelo na
região.
Os turistas são atraídos por diversos motivos a Bichinho, além do famoso artesanato, a cidade
possui um dos mais famosos restaurantes de comida mineira da região (Figura 04).
Figura 04 - Restaurante em Bichinho.
Fonte: Produzido pela AUTORA, 2012.
Além dessas atrações turísticas, a beleza da natureza ao redor é atração à parte. Cercada
pela serra São José, Bichinho atrai turistas que buscam sossego em finais de semana e
feriado (Figura 05).
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Figura 05 - Vista ao redor de Bichinho.
Fonte: Produzido pela AUTORA, 2012.
A principal fonte de renda da população local é o turismo, através da produção e venda do
artesanato, gastronomia ou pousadas. Devido ao grande crescimento do distrito nos últimos
anos, a construção civil também é uma grande fonte de renda para os profissionais envolvidos
nessa área.
O dia a dia da população, diferente dos grandes centros urbanos, é completamente diferente
no meio da semana e nos finais de semana e feriados. Nos finais de semana e feriados, o
distrito recebe grande quantidade de turismo, tornando o povoado movimentado. Durante a
semana, quando quase não se vê turista, o movimento na rua diminui consideravelmente.
Muitas lojas fecham durante o início da semana, esperando o aumento do movimento do final
da semana; o movimento de carros é baixo, já que para os moradores o principal meio de
transporte na cidade é a bicicleta.
As construções de adobe são uma característica do povoado, mantendo a arquitetura colonial
da região, como Tiradentes e Prados, mas com novas características tipológicas.
Todas as construções seguiam um mesmo padrão, muito admirado pelos moradores. Após
uma época em que as pessoas queriam modernizar as construções, a chegada do turismo e
do artesanato resgatou a vontade de manter uma arquitetura mais simples e colonial.
Há grande diferença de relação entre o adobe e o tipo de construções entre os moradores que
nasceram e cresceram no Bichinho e as pessoas que se mudaram para lá devido ao turismo e
aos outros atrativos do povoado.
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Das pessoas que utilizavam o adobe como material de construção, pode-se dividi-las em
basicamente quatro grupos: os moradores antigos, que por falta de condição financeira
produziram seus próprios adobes; grupos de comerciantes, que perceberam a atração
turística pelo material e construíram suas lojas de artesanato e pousadas utilizando os blocos
de adobe; população de outras cidades que mudou para a cidade e optou pelo adobe por
motivo estético ou para manter a arquitetura local; moradores locais, que após a valorização
do material no povoado voltaram a reutilizá-lo.
Apesar da grande valorização no povoado nos últimos 20 anos, notou-se grande resistência
dos moradores mais antigos. Uma das principais preocupações em relação ao adobe era a
resistência dos blocos, principalmente em relação à água.
Uma questão muito levantada pelos moradores era a diferença de qualidade entre os adobes
produzidos antigamente e aqueles produzidos comercialmente hoje. Como exemplo, cita-se a
fala de uma moradora de uma casa de adobe construída em 1957:
‘Hoje eles fazer para vender, né? Não é igual meu marido que pro gasto, né?
Aí é diferente, a pessoa que faz pro gasto quer fazer uma mercadoria mais
bem feita. A pessoa que faz pra vender quer o dinheiro, se ficar bom ficou, se
não ficar também nem está aí.” (Dona Geralda, moradora do Bichinho).
Esse era um pensamento bem comum entre os moradores locais, onde muitos duvidavam da
qualidade do adobe produzido atualmente.
Um exemplo dessa preocupação é que antigamente as pessoas utilizavam o bloco de adobe
como alvenaria estrutural, prática essa que não se faz mais depois do início da
comercialização dos blocos.
A utilização do adobe aparente é uma questão importante a ser analisada. Para a maioria das
pessoas que optam pelo adobe é inconcebível pensar em rebocar o adobe externamente,
podendo-se analisar esse fato através de dois motivos aparentes. O primeiro é que as
pessoas atualmente são atraídas pela estética da construção que utiliza os blocos aparentes,
independentemente de suas qualidades sustentáveis e de conforto térmico e acústico. O
segundo motivo, mais complexo que o primeiro, é pelo fato de que, para algumas pessoas, o
adobe virou um símbolo de status. Esse fato pôde ser percebido tanto conversando com
pessoas que possuem renda maior e optaram pelo adobe quanto com pessoas de rendas
mais baixas. Para a maioria da população, a construção com adobe é mais cara e esse é um
aspecto que influencia o fato de terem tantas construções com somente a fachada em adobe,
totalizando 20% das construções.
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É notável a valorização do adobe e, apesar do grande crescimento dessas construções nos
últimos anos e ser visível a diferença de estilo entre as épocas, o adobe é material que sempre
esteve presente no povoado. Percebeu um intervalo entre os adobes antigos e os adobes que
vieram com o resgate da arquitetura colonial. Os motivos mudaram, e para muitos o adobe
hoje é apenas uma questão de estética. Exemplo caro disso é o fato de que algumas pessoas
“desenham” o adobe no reboco da fachada.
3.3 A Oficina de Agosto
É imprescindível conhecer a história da Oficina de Agosto para compreender as mudanças
sociais e urbanas ocorridas nos últimos 20 anos, em Bichinho.
Como já citado anteriormente, o artesanato já existia no distrito, ainda em pequenos números,
sendo o mais usual o artesanato para construção civil, como os forros de taquara ou como
mão de obra terceirizada para Tiradentes. Com a chegada da Oficina de Agosto, esse
panorama começa a mudar e caminhar para se transformar em um dos maiores polos de
artesanato do Estado.
Criada pelo artista plástico Antônio Carlos Beck, conhecido como Toti, a Oficina de Agosto
inicia suas atividades no pequeno povoado de Bichinho, em 1994, com o objetivo maior do
que simplesmente montar uma oficina de artesanato, mas promover o desenvolvimento
sustentável e a inclusão social em uma região carente de trabalho e rica em mão de obra.
Figura 06 - Foto da janela da loja da Oficina de Agosto.
Fonte: Produzido pela AUTORA, 2012.
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Na época em que a Oficina de Agosto chegou, Bichinho tinha menos de 1.000 habitantes, e a
energia elétrica havia chegado há apenas uns sete anos. Quase que como uma cidade
parada no tempo, os homens saíam para trabalhar todos os dias nas cidades vizinhas,
enquanto as mulheres cuidavam da casa, da roça e dos filhos.
Com a chegada da Oficina de Agosto, a população viu que era possível aprender, criar e
utilizar o artesanato como fonte de renda. Toti deu emprego para muitas pessoas, que
começavam desde cedo. Através da oficina-escola, crianças podiam começar a aprender a
pintar e moldar, mas somente meio período diário e sendo obrigatório o bom desempenho
escolar. Muitas dessas crianças que começaram na oficina-escola ainda estavam na Oficina
de Agosto ou já possuíam suas próprias lojas.
Atualmente são mais de 50 pessoas de Bichinho trabalhando na Oficina de Agosto, além das
pessoas que são terceirizadas na região. Uma das preocupações do Toti ao ensinar o
artesanato para as pessoas era que, quando estivesse pronta, cada uma poderia seguir seu
caminho e abrir sua própria loja, como vários dos artesões locais fizeram.
Figura 07 - Loja e peça da Oficina de Agosto.
Fonte: Produzido pela AUTORA, 2012.
Conversando com os moradores, foi possível perceber a gratidão e admiração que todos têm
ao fundador da Oficina de Agosto. O distrito desenvolveu-se, segundo os moradores, mais
nos últimos 20 anos, desde que a Oficina de Agosto foi para lá, do que nos últimos 100 anos.
Os turistas começaram a frequentar Bichinho em busca de um artesanato diferenciado.
A infraestrutura urbana do distrito, após a chegada do artesanato e, consequentemente, dos
turistas, foi mudando rapidamente. Pousadas e restaurantes foram criados para atender à
nova demanda e às pessoas, que antes saíam para trabalhar em outras cidades e, agora,
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começavam a laborar na Oficina de Agosto ou na própria casa. As mulheres, que antes eram
donas de casa ou trabalhavam na roça, começaram a trabalhar, e a renda das famílias foi
mudando.
Apesar do reconhecimento dos moradores de Bichinho em relação às melhorias no distrito
com a chegada da Oficina de Agosto, alguns moradores citaram alguns pontos desfavoráveis
que o rápido crescimento da população e chegada dos turistas trouxeram, como por exemplo,
o uso de drogas entre os adolescentes. Por não ser o foco desta pesquisa, não entraremos
em maiores análises deste dado, podendo ser base para futuras pesquisas no campo
antropológico.
A estrada que liga Tiradentes à Bichinho foi pavimentada em pedra apenas em 2006, mas,
segundo os moradores, isso não afetou tanto o turismo, pois, mesmo antes, com estrada de
terra, as pessoas já iam passar o dia em Bichinho para conhecer suas peculiaridades.
Atualmente, a Oficina de Agosto possui duas lojas e oficinas. Todo o sistema de produção das
peças é separado de forma a ser quase como uma produção em série. Em uma das oficinas
eram feitos os trabalhos de marcenaria e serralheria e na outra oficina, os trabalhos de
montagem e pintura das peças (Figura 30). Muitas das pequenas peças de madeiras eram
produzidas por famílias na região.
Figura08 – Parede em adobe na Oficina de Agosto.
Fonte: Produzido pela AUTORA, 2012.
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Além da preocupação social, o Toti também tem a preocupação ambiental com as peças
criadas. A maioria das matérias-primas utilizadas era reciclável, como sucata de ferro, lata e
madeira de demolição.
Segundo entrevista com a Lili, que se iniciou na Oficina de Agosto há quase 20 anos, ela disse
que, na época em que a Oficina de Agosto chegou, os moradores estavam em um processo
de “modernizar” as casas. Como todas seguiam um padrão colonial de construção, com
esquadrias e pisos de madeira, forro de taquara e alvenaria de adobe, as pessoas queriam
colocar novos materiais, como esquadria de alumínio. Ou seja:
“Meu tio foi um dos primeiros que modernizou, colocou aqueles basculantes,
colocou laje, aí todos achavam a coisa mais linda. Aí chegou uma época que
nós fizemos também (...). Aí depois, com a chegada do Toti aqui, as pessoas
começaram a já voltar, hoje está voltando. Hoje muita gente já está voltando a
construir com adobe. Ao invés de colocar piso frio, estão colocando assoalho
de madeira (...). Tudo isso foi com a chegada do Toti. As pessoas estão
voltando a utilizar janela e forro de madeira e construir com adobe (...).” (Lili,
entrevista realizada em nov. 2012).
Ao mudar para Bichinho, Toti seguiu a linha contrária de construção. Enquanto as pessoas
queriam modernizar as casas, ele voltava para aquela arquitetura tradicional. Ao mudar para
uma casa antiga e simples de adobe, ele não só manteve todos os materiais, como também
os admirava. Assim como é o seu artesanato, com inspiração barroca e traços simples, o Toti
acreditava naquela arquitetura.
Sua influência no povoado era inquestionável. As pessoas admiravam-no, e seus
pensamentos logo se difundiriam. Segundo a Lili, muitas pessoas foram influenciadas por ele
a resgatar esse tipo de arquitetura, antes julgada ultrapassada, passando, então, a ser
considerada como um patrimônio local.
4 Conclusão
Através da análise da evolução e utilização dessa técnica no distrito, percebeu-se que os
motivos pelos quais as pessoas optaram pelo adobe foram mudando com o tempo. Se
antigamente as pessoas construíam com o adobe apenas pelo motivo de ser
economicamente viável, atualmente são diversos os critérios de decisão tomados pelos
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moradores, como a questão estética, atração turística e preservação da identidade
arquitetônica da comunidade.
Se a princípio se considerou o turismo como o principal motivo de retomada do adobe, depois
de analisar os dados da pesquisa percebeu-se que, antes do turismo, um dos fatores
primordial na retomada do adobe foi a chegada da Oficina de Agosto. Antes, as pessoas
encontravam-se em processo de “modernização” das casas, mas com a chegada da Oficina
de Agosto e o início das atividades de artesanato elas começaram a ser influenciadas, e a
arquitetura colonial aos poucos foi voltando como estilo arquitetônico. Então, se a Oficina de
Agosto trouxe desenvolvimento e despertou essa nova valorização e retomada arquitetônica
na comunidade, os frutos gerados depois disso foi o que manteve até a atualidade o adobe
como um dos principais materiais de construção do povoado.
Quando foram analisados os dados culturais coletados na pesquisa, identificou-se que a
principal abordagem da arquitetura vernácula utilizada é a abordagem estética, sendo esta
essencial para a atual valorização da técnica local estudada. Essa valorização estética é
possível observar através do levantamento das construções, em que 80% das construções
em adobe são aparentes. Esse é um dado importante, pois pode servir de incentivo para
outras comunidades onde se pretende aplicar essa técnica.
A questão do preço do adobe em relação aos demais materiais convencionais é ponto
importante. Muitas pessoas relataram o fato de o adobe ser material caro, apesar de não
questionarem o seu valor, por saberem que é um processo de produção artesanal e difícil. Por
essa razão, muitos veem construções com apenas a fachada em adobe, mantendo a estética
da construção da casa como construção de adobe aparente e economizando no restante da
edificação utilizando bloco cerâmico.
É de grande importância analisar o preço total da construção e fazer comparação, dando
retorno à comunidade com os resultados, pois o esclarecimento em relação ao preço final
poderia incentivar outras pessoas a optarem pelo adobe.
Entre as motivações, em primeiro lugar merece destacar a questão do resgate da arquitetura
local, vinculada à preocupação de não descaracterizar o distrito e não a questão da
lucratividade com o turismo. Em segundo lugar, pode-se destacar a questão da estética, uma
das principais motivações de escolha para optarem pelo adobe, não levando em consideração
a questão ecológica, apesar do conhecimento que o adobe, por não passar por um processo
de queima e nem levar cimento em sua composição, é material “ecologicamente correto”.
Esse é o principal motivo pelo qual a maior parte das construções em adobe é aparente.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
Outras motivações incluem o fato de acharem que o adobe é uma construção mais resistente
em relação ao bloco cerâmico, por ser maior e maciço e dar continuação ao material já
existente na casa, que foi construída há mais de 40 anos.
Uma observação importante a ser feita é o crescimento do interesse dos turistas pelo adobe e
a exportação dos blocos para outras cidades e estados, apesar de ser um transporte caro,
devido ao fato de ser um bloco grande e pesado. Todos os produtores disserem vender adobe
para outros estados. O transporte dos blocos para longa distância faz que o adobe perca a
maioria de suas qualidades em se tratando de material sustentável por utilizar mão de obra e
materiais locais e pelo fato de a energia gasta na sua produção ser praticamente nula. A razão
da divulgação da técnica e da importância de a produção dos blocos ser feita próximo à obra é
necessária para a melhor conscientização desses usuários.
Apesar de existirem mais de um motivo pelos quais os moradores optem pelo adobe, o fato de
o distrito possuir três produtores é que torna a construção com adobe viável atualmente. Esse
fator pode ser considerado primordial para o crescimento das construções na região, uma vez
que atualmente é raro o próprio morador produzir seu adobe, tornando a comercialização dos
blocos pré-requisito para a construção de adobe.
O registro do “saber fazer” dos produtores é essencial quando se pensam em resgate e
disseminação de técnicas vernaculares. Esta pesquisa possibilitou registrar essas técnicas
locais e, através desse registro, foi possível incentivar pessoas de outras localidades a
aprender e utilizar a produção do adobe como fonte de renda.
Referências
CARTER, T. e CROMLEY, E.C. Invitation to Vernacular Architecture. Knowville: University of Tennesse Press, 2008.
INVENTÁRIO DE PROTEÇÃO DO ACERVO CULTURAL - Seção 2. Povoado de Vitoriano Veloso (Bichinho). Prados: Prefeitura de Prados, 2010.
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia, SP: Brasiliense, 2007
OLIVER, Paul (Ed.). Encyclopedia of Vernacular Architecture of the World. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
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