opinião e política no teeteto de platão · 2017-02-22 · title: microsoft word - opinião e...
Post on 10-Dec-2018
216 Views
Preview:
TRANSCRIPT
1
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo
Programa de Estudos Ps-graduados em Filosofia
PUC-SP
Ricardo Freitas Cavalcante
Opinio e Poltica no Teeteto de Plato
Mestrado em Filosofia
So Paulo
2014
2
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo
Programa de Estudos Ps-graduados em Filosofia
PUC-SP
Ricardo Freitas Cavalcante
Opinio e Poltica no Teeteto de Plato
Mestrado em Filosofia
Dissertao apresentada a
Banca Examinadora como
exigncia parcial para
obteno do ttulo de Mestre
em Filosofia pela Pontifcia
Universidade Catlica de
So Paulo, sob a orientao
do Prof. Dr. Marcelo Perine
So Paulo
2014
3
Banca Examinadora
______________________
______________________
______________________
4
Agradecimentos
Agradeo minha famlia.
Ao professor Marcelo Perine por mostrar a melhor postura do sbio.
A professora Rachel Gazolla por mostrar que a pesquisa em grupo proveitosa e
prazerosa para a vida.
Por fim, mas igualmente importante, aos estudantes de filosofia da PUC-SP que
me ajudaram at o ltimo momento. As conversas com essas pessoas incentivam uma
boa imagem da Academia por ser baseada na livre curiosidade e na amizade.
5
Resumo
A presente dissertao tem como objetivo abordar o termo em seu aspecto
poltico no Teeteto. Partindo de um percurso etimolgico e lxico sobre o termo, seus
diferentes sentidos foram apresentados, tanto em Plato como em outros autores. Ao longo do
estudo do dilogo, percebeu-se que um termo chave para todo o desdobramento da
discusso sobre a questo do conhecimento. Em trechos escolhidos do dilogo, destacamos a
defesa de Protgoras que expe um modo propriamente poltico de interpretar a . Para
finalizar, identificamos uma imagem do filsofo no dilogo que leva nossa investigao a
compreender como a filosofia platnica lida com as questes polticas.
Abstract
The present dissertation aims at approaching the term in its political aspect within
Plato's dialogue Teeteto. Starting from an etymological and lexical itinerary of the term, its
meanings were featured both in Plato's and in commentators of Plato's work. Throughout the
study of the dialogue, we noticed that is a key term for the whole development of the
concept of knowledge. In chosen excerpts from the dialogue, there is the defense of Protagoras
that exposes a specifically political way of interpreting . At the end of this study, we identify
an image of the philosopher in the dialogue that leads our investigation to understand how the
Platonic philosophy deals with political issues.
6
Sumrio
Agradecimentos..................................................................................................4
Resumo.................................................................................................................5
Abstract................................................................................................................5
Introduo............................................................................................................8
Captulo 1............................................................................................................11
1 ..................................................................................................................11
1.1 Sobre a traduo........................................................................................11
1.2 na obra de Plato..............................................................................14
1.2.1 A questo de Lafrance: possvel uma teoria platnica da
?....................................................................................................................14
1.3 O carter literrio do termo nos dilogos...................................................21
1.3.1 Passagens sobre o como aparncia: o sentido
objetivo................................................................................................................23
1.3.2 Passagens sobre a como opinio: o sentido
subjetivo..............................................................................................................29
1.4 O sentido platnico de .......................................................................32
1.5 Percurso etimolgico do termo ..........................................................35
1.6 Percurso lxico do termo ...................................................................36
Captulo 2...........................................................................................................41
2 O Teeteto.........................................................................................................41
2.1 Introduo ao dilogo:
os pressupostos da sabedoria e do conhecimento .............................................41
2.2 A diferena entre e
...........................................................43
2.3 A imagem da sabedoria: o parteiro de almas...............................................48
2.4O problema do dilogo e a : o ponto de vista
terico................................................................................................................56
2.5 Protgoras e Teeteto....................................................................................59
7
2.6 A interpretao da tese de Protgoras: h proximidade entre percepo,
representao e opinio.....................................................................................68
2.7 A refutao terica a Protgoras...............................................................73
Captulo 3.......................................................................................................76
3 A defesa de Protgoras................................................................................76
3.1 O percurso e o motivo da defesa..............................................................76
3.2 O ataque a Protgoras..............................................................................77
3.3 A defesa...................................................................................................78
3.4 A digresso sobre o filsofo....................................................................84
3.4.1 Sobre refutao Protagoras.............................................................84
3.4.2 A imagem do filsofo...........................................................................85
4. Concluso..................................................................................................90
5 Referncias.................................................................................................94
8
Introduo
O ato de avaliar opinies por meio de perguntas a herana socrtica
indissocivel dos dilogos. Charles Kahn lembra que dentre os vinte e cinco ou mais
dilogos, Scrates est ausente somente nas Leis1. Nos dilogos, Scrates com sua
postura incansvel para investigar por meio de perguntas e respostas pode ser entendido
como um paradigma para o filsofo2. Perguntas e respostas que por sua vez esto
sempre em confronto ou de acordo com alguma posio ou opinio. H inmeros
confrontos entre a obra de Plato que podem ser estudados sob diversos ngulos. O
ngulo que direcionar esta pesquisa o confronto mais polmico porque discutvel se
h um conhecimento (3) certo e indubitvel para explic-lo: o confronto de
opinies que fundamentam o campo poltico. As opinies que compem a organizao
da cidade atravessam muitos dilogos e, por isso, propomos um recorte sobre esse tema
apenas no Teeteto.
A questo mais abrangente desta pesquisa se refere, portanto, ao aspecto poltico
nesse dilogo, mais especificamente ao modo como a se articula em discusses
1 Kahn. (1996), p. 88. 2 Kahn. (1996), p. 89. 3 O recolhimento oferecido por Chantraine (1977) indica as primeiras ocorrncias de
em Homero como ideia de saber com uma orientao prtica (p. 360), compreender, saber. Menciona
que o substantivo mais importante que se refere que o autor traduz como
conhecimento prtico ou capacidade de fazer algo (p. 360). Como exemplo, indica uma interessante
passagem do Grgias (511c) no momento em que Clicles aconselha Scrates a praticar a arte da retrica,
pois esta pode o salvar de perigos. Scrates o questiona oferecendo o exemplo da arte () de
nadar, pois esta salva os homens da morte, quando se veem na contingncia de precisar conhec-la
( ) (Editora UFPA - 1988). Chantraine menciona novamente Plato, agora em Repblica
(477b), em uma passagem que ope o termo que analisaremos adiante. Em Liddell & Scott (1996)
as variaes do termo se apresentam como saber como fazer, estar apto a fazer, capaz de fazer (p. 301).
O particpio presente que geralmente se apresenta como adjetivo traduzido pelos autores
como o que conhece, o que entende, habilidoso (p. 301). Com este breve recolhimento, assumimos o
sentido do termo como saber fazer algo ou um saber especfico.
9
que envolvem a organizao da cidade. Discusses sobre a cidade talvez possam ser
encontradas em qualquer dilogo da obra de Plato, mas talvez nenhum outro dilogo
tenha dedicado a um esforo de interpretao como o Teeteto.
A questo mais especfica que podemos propor para nossa investigao pode ser
a que delimite o papel da no campo poltico para Plato. Para iniciarmos a resposta
para essa questo preciso uma noo do termo. Para isso, escolhemos um determinado
percurso etimolgico e lxico que percorrer as obras de Plato e outras referncias
indicadas pelos dicionrios. Em seguida, assumiremos o dilogo Teeteto como base de
nossa investigao que pretende responder sobre o que no campo poltico.
Este um dilogo frequentemente estudado sob o aspecto epistemolgico, no
entanto, o foco que buscamos poltico. A inteno fazer a leitura do que talvez fosse
a grande questo da poltica na poca de Plato: os ensinamentos contidos na doutrina
de Protgoras. Se o sofista adquiriu tal fama e, segundo Digenes Lartios4, elaborou
leis a uma cidade, conquistou avanos importantes na gramtica e ganhou muito
dinheiro com seus ensinamentos, Plato no o investigaria e o mencionaria em alguns
dilogos por motivos estritamente epistemolgicos. Protgoras5 a figura perfeita para
comprovar que o bojo ontolgico, investigado em boa parte do dilogo, se reflete no
espao pblico.
No Teeteto, Plato interpreta a tese de Protgoras no sentido de tornar
equivalente a percepo (), a representao () e o conhecimento
() (151e-152c). H muitos estudos e desdobramentos importantes nessa
interpretao de Plato, mas queremos ressaltar um aspecto no muito estudado no
dilogo: como a equivalncia dessas potncias anmicas influencia na postura poltica
de quem a aceita como verdadeira? De acordo com este aspecto poltico podemos
investigar como a equivalncia de tais potncias sustentam posies como a da
impossibilidade de opinar falsamente (167d). Esta posio defendida na passagem do
dilogo que os integrantes reconhecem que cometeram uma descortesia com Protgoras
(165e) e Scrates lhe dedica uma defesa. Nesta passagem, o velho filsofo ateniense
interpreta o sofista de Abdera de modo a enfatizar intenes propriamente polticas em
sua tese.
4 DIGENES LARTIOS. (1987), livro IX, 50-56. 5 Os problemas a respeito dos possveis sentidos interpretativos da tese do sofista sero
analisados no captulo referente ao dilogo.
10
Como veremos, ao percorrer as passagens do Teeteto, para Protgoras no h
distino entre o objeto dos sentidos e o objeto da opinio verdadeira. Se isto assim,
entender o modo como as coisas so e como podemos conhec-las implica em ter bases
para pensar tambm a postura poltica. A investigao contida no Teeteto, concebida
sob o vis poltico, contm um detalhado exame sobre a e suas ramificaes
fundamentais com a percepo, a representao, a opinio verdadeira e a falsa, a partir
do momento em que Plato une a tese do jovem Teeteto tese do homem-medida de
Protgoras.
Este o ponto que propomos abordar com a refutao que Plato oferece, assim
como percorrer os passos da defesa de Protgoras, que parecem ter indcios de
afirmaes que contribuem para o sentido mais poltico do que epistemolgico da tese
do sofista. Aps essa defesa h uma finalizao do argumento platnico e, no por
acaso, uma clebre imagem dos iniciados na filosofia e dos oradores de tribunais e
coisas desse gnero. Os que se dedicam filosofia tm por finalidade a verdade. Ora,
esta imagem nos oferece, aps a investigao sobre o grande sofista que Protgoras,
uma postura do filsofo frente a assuntos pblicos. Resta-nos ver se ela contm a
relao que procuramos, ou seja, a do filsofo em um contexto propriamente poltico de
embate de opinies.
11
Captulo 1
1
1.1 Sobre a traduo
Antes de investigarmos o termo na obra de Plato e antes de fazer qualquer
percurso etimolgico ou lxico preciso estabelecer dois pontos sobre a questo da
prpria traduo. O primeiro que h muitas nuances no processo de traduo, pois os
tradutores esto inseridos em contextos histricos diferentes e, desse modo, assumem
tendncias interpretativas diferentes. O segundo ponto se refere ao contexto da obra que
pode exigir uma flexo na traduo que o desloque de seu sentido primrio. Esta flexo
acontece tambm porque o tradutor ir articular o sentido de acordo com a lngua que
lhe for contempornea. Ao investigar os sentidos oferecidos por Chantraine e
Liddell/Scott verificamos que algumas tradues do termo assumem flexes que
se afastam um pouco do sentido de opinio. Por outro lado, percebemos que quando
Plato citado como referncia ao termo , na maioria dos casos, a opinio ou o parecer
de algum que traduz . A partir destas ocorrncias o sentido filosfico pode ser
diferenciado do sentido filolgico. Enquanto este ltimo, no momento da traduo,
abrange um campo maior de palavras para , o sentido filosfico em Plato parece
ser mais restrito.
Ao observar a certa distncia esta restrio do vocabulrio platnico e notar que
entre as ocorrncias em Chantraine e Liddell/Scott h um esforo do filsofo em
delimitar um campo de atuao da possvel propor um exame sobre o termo
neste primeiro captulo. O ngulo que buscamos est explcito no dilogo Teeteto
neste dilogo possvel dizer que a est presente do incio ao fim e implcito no
Poltico que oferece uma investigao sobre quem est apto assumir o papel de poltico
na cidade. O foco poltico para a coloca como componente principal para as
discusses que envolvem a organizao da cidade. Ao falar sobre poltica falamos sobre
12
o que pode ser melhor para a cidade, ou seja, como uma posio tomada acerca de
determinado assunto.
Como veremos a seguir, as tradues de em algumas obras de Plato e
de outros autores abrangem significados que no se referem diretamente opinio ou
ao parecer. Dado que Chantraine e Liddell/Scott aceitam as variaes dos significados
feitas pelos tradutores em relao difcil confrontar e discordar de referncias
importantes a qualquer estudioso da lngua grega. No entanto, podemos colocar algumas
tradues em paralelo e notar que os termos escolhidos pelos tradutores poderiam ser
trocados por opinio ou parecer. Como dissemos anteriormente, a formao dos
tradutores e o contexto da obra podem flexionar o significado na escolha da palavra que
traduz ou qualquer outro termo na lngua grega antiga.
Propomos nesse primeiro captulo delimitar ou ao menos se aproximar dois
sentidos principais para a . O primeiro como sentido filosfico para o termo na
obra de Plato e o segundo como sentido filolgico entre as ocorrncias oferecidas pelos
dicionrios. Com esse percurso no primeiro captulo, ser possvel, no segundo captulo,
investigar o incio do Teeteto, a fim de comprovar a presena da desde a primeira
parte do dilogo. Alm disso, comprovar tambm as ligaes da com Protgoras: o
sofista a chave de leitura para investigarmos o papel poltico do termo no Teeteto.
Entretanto, ao mencionarmos o sentido filosfico de , no podemos
ausentar algum comentrio sobre Parmnides, pois evidente que h em seu poema
uma profunda investigao sobre a diferenciao entre verdade () e .
Devido ao nosso propsito, faremos somente uma meno ao filsofo de Eleia com a
ajuda de Cordero6, que em seu livro dedica um captulo as opinies dos mortais7.
A primeira questo levantada no captulo j nos leva questo central do poema:
h duas possibilidades apresentadas pela deusa como um programa de estudos8: a
verdade ou a . Cordero nomeia essas possibilidades como dicotomia conceitual
porque fundam uma noo filosfica que exclui qualquer termo mdio, pois o saber est
(ou ) na 9. Ao assumir uma diviso desse modo, dentro daquele programa de
estudos sero apresentadas e e, com isso, o fato de mencionar
Parmnides remete a entender que as coisas tm um princpio nico e trazem inmeras
6 Cordero (2011). 7 Cordero. (2011), p. 179. 8 Idem. p. 179. 9 Cf. Fr.8.1; Cordero, (2011), p. 179.
13
dificuldades por compor um pilar da filosofia. Para nossa pesquisa a questo do poema
remete a investigar se, para Plato, existe aquela dicotomia conceitual no campo
poltico. Como no pretendemos examinar o estatuto da na filosofia platnica, a
seguir veremos passagens nos dilogos que se referem ao termo e, no prximo captulo,
investigaremos o Teeteto que se dedica quase totalmente opinio por meio da figura de
Protgoras.
Cordero menciona que, aps Parmnides, houve um grande esforo para separar
logos e e defender que um posicionamento pode ser falso ou verdadeiro10.
Plato, segundo o autor, um dos que fizeram tal esforo e que, como veremos a seguir,
alm do logos, empenhou-se em desvincular de . Somente com essa
indicao de Cordero sobre tal esforo de Plato podemos notar, sob um horizonte
filosfico, como a vem sendo concebida desde suas primeiras ocorrncias. No
precisamos nos aprofundar na questo do que em Parmnides, entretanto,
podemos ao menos notar que o campo da ser um ponto importante para Plato
afirmar sua filosofia de modo diferente de Parmnides11.
Poderamos encerrar aqui nosso comentrio sobre Parmnides, no entanto, h
mais um comentrio de extrema importncia para um aspecto poltico da e que se
aproxima das reflexes que encontraremos no Teeteto. Para defender que no
poema no pode ser confundida com aparncia, Cordero nos oferece o estado da questo
sobre esses termos. H muitos intrpretes que defendem que o termo 12 se
refere s aparncias. No precisamos entrar na discusso da passagem que contem o
termo, mas podemos mencionar o que Cordero afirma para tomar uma posio contrria
a esta. So somente dois pontos. O primeiro se refere ocorrncia do termo no poema,
trs vezes, sendo que
duas vezes est acompanhado pelo genitivo dos mortais (fragmento 1.30;fragmento
8.51). Os mortais tm opinies, quer dizer, pontos de vista, estimativas, conjecturas. No se
trata de um aspecto, ou seja, da aparncia dos mortais13.
10 Cordero (2011). p. 180 11 Cordero (2011). p. 182-83. 12 Como veremos no percurso etimolgico, esse termo com raiz em comum com a . Cf. fr. 1.
31. Cordero tambm menciona, para defender seu ponto de vista, que o termo tem raiz comum com a e entende-o como sinnimo. p. 182.
13 Cordero (2011). p. 181.
14
Essas colocaes j so valiosas para a distino do que Plato investigou sobre esses
termos. Como frisa o autor, a opinio um ponto de vista e no uma aparncia. Com
isso, ser possvel afirmar tambm que se em Plato h uma distino entre ser e
aparecer, a posio de Cordero que no ocorre tal distino em Parmnides14.
No momento sabemos das ocorrncias e o que so as opinies, mas quem so os
mortais e qual o contedo desses pontos de vista? Para Cordero a referncia aos mortais
mostra a condio humana das opinies, ou seja, o caminho do qual a deusa diz para o
jovem se afastar (fr. 7.1). Essa condio j expe seu contedo: est no caminho
diferente de e, por isso, sempre falsa. O autor afirma que essa a diferena
fundamental com Plato, pois, para ele, possvel uma verdadeira ou falsa15.
Portanto, a para Parmnides ser sempre forosamente ilusria. Essas afirmaes
de Cordero nos colocam em contato com o campo filosfico que compe um problema
que ser investigado tambm no Teeteto e nos movem a refletir se, no campo poltico
para Plato, a seria sempre ilusria.
1.2 D na obra de Plato
1.2.1 A questo de Lafrance:
possvel uma teoria platnica da ?
Como dissemos acima, h uma grande variedade de sentidos para o termo na
lngua grega e na obra de Plato. Com isso, h tambm uma grande dificuldade em
traar ou procurar o significado do termo nos dilogos e nos dicionrios. Felizmente
encontramos umas das poucas obras dedicadas somente com o curioso ttulo A
teoria platnica da 16. Se, por um lado, adotaremos o percurso dos dicionrios para
um estudo lxico e etimolgico da , por outro lado, para uma investigao na obra
de Plato, neste momento, adotaremos o percurso de Lafrance e faremos intervenes
na medida em que o propsito de nossa pesquisa exigir algum desvio. Em 1980, poca
em que o livro foi publicado, no havia trabalhos em francs sobre o termo:
basicamente, os trabalhos eram de origem alem17. Segundo Lafrance, os estudiosos
que se dedicaram ao estudo da no se afastam da ambiguidade e esto repletos de
14 Cordero (2011). p. 182. 15 Cordero (2011), p. 183 16 Lafrance, (1981). 17 Lafrance (1981), p. 12.
15
contradies18. O autor menciona tambm que nos estudos alemes os dois principais
sentidos para so representao ou opinio.
Com o percurso de Lafrance ser possvel notar alguns sentidos e tentar
delimitar um significado, mesmo que flutuante, nos dilogos. Assim como veremos em
Chantraine e Liddell/Scott, Lafrance adota outros sentidos para o termo . No
necessrio aceitar integralmente suas tradues, no entanto, prudente adotar seu
recolhimento a tem mais de duas mil ocorrncias nos dilogos a fim de
possibilitar uma viso do campo de atuao do termo.
Lafrance nos ajuda com seu recolhimento sobre o termo e com a prpria
questo que o ttulo de seu livro levanta. No h algo sistematizado em relao
e, por esse motivo, o texto estabelecido de modo que no primeiro captulo so
separados os sentidos que se repetem, mas no so desenvolvidos a ponto de
favorecerem uma noo sobre o termo. O autor separa esses sentidos nos dilogos e os
chama de literrios19 em um recolhimento de passagens que oferecem alguns sentidos
para o termo. Dizemos alguns, pois o autor recolhe passagens em que o termo usado
no somente no sentido de opinio e, desse modo, no oferecem uma noo nica do
termo. Embora o sentido literrio nos oferea um percurso nos dilogos de modo
adequado ao nosso propsito, ainda na introduo h consideraes que nos oferecem
uma viso geral da inteno de Lafrance em seu livro. Com isso no ajuda a delimitar, ao
menos superficialmente, o sentido de em Plato para uma abordagem mais segura
do Teeteto.
Uma questo deve ser colocada a respeito de qualquer investigao sobre a
em Plato, seja ela uma investigao especfica como a de Lafrance ou uma obra sobre a
histria da filosofia: a diferenciao entre e . O autor apresenta
algumas dificuldades no vocabulrio dos dilogos, que nos interessam justamente por
envolver o Teeteto, e uma abordagem sobre a questo da relao entre e
, que uma questo deste dilogo, mas tambm uma questo debatida em
outros dilogos. Desse modo, podemos colocar a seguinte questo a partir do que j foi
dito at o momento: se pretendemos ressaltar o carter poltico no Teeteto por meio da
, como a diferena entre opinio e conhecimento pode ajudar? Neste dilogo a
18 Idem. 19 Lafrance (1981), p. 19.
16
investigada como , no entanto, Plato mostra somente o que a e sua
possvel equivalncia com a , mas sobre esta ltima no h definio.
Inclusive podemos lembrar que o fato de no haver uma definio sobre
um ponto ressaltado pelo prprio Scrates no fim do dilogo.
Em inmeras ocasies temos dito: conhecemos, no conhecemos, temos
conhecimento, no temos conhecimento, como se entendssemos um ou outro sem conhecer
nada sobre o conhecimento. Trad. Cornford (1991).
Logo no incio de sua investigao, Lafrance expe passagens que ressaltam o problema
contido na diferena entre o campo da e o campo da . Ser possvel
refletir se tais campos atuam de maneira conjunta ou independentemente e, no prximo
captulo, abordar o Teeteto com uma noo um pouco mais aprimorada, j que o dilogo
contm questes que investigam os dois termos. Nos dilogos investigados por Lafrance
est o Teeteto que confirma sua importncia para a bibliografia escolhida, mas o que
preciso destacar no momento esse primeiro contato que o autor oferece, pois enfatiza a
diferenciao entre e .
Vejamos alguns sentidos destacados para mostrar diferenas na concepo de
em alguns dilogos. Ao pensar a como representao o autor pressupe20 a
ligao com a percepo () e com a afeco () e, desse modo, no se
diria verdadeira nem falsa21. A partir deste pressuposto, por exemplo, em Mnon 85c, a
afirmao acima fica confusa. Como Lafrance somente menciona a passagem
conveniente ler este e outros trechos que podem ser exemplos de contradies na
concepo de nos dilogos. No Mnon, aps o dilogo com o escravo, Scrates
explica a Mnon que as opinies verdadeiras j estavam no escravo sobre coisas que ele
no sabia. O trecho se encontra em 85c.
E agora, justamente, como num sonho, essas opinies () acabam de erguer-se nele.
E se algum lhe puser essas mesmas questes frequentemente e de diversas maneiras, bem sabes
que ele acabar por ter cincia () sobre estas coisas no menos exatamente que
ningum22.
20 Pressuposto que encontraremos tambm no Teeteto. 21 Lafrance (1981), p. 12. 22 Plato, (2003), 85c.
17
A passagem mostra que quem adquirir uma opinio por consequncia ter
conhecimento. H outra passagem, citada pelo autor, que ilumina o sentido de transio
da opinio para o conhecimento. Em 97e-98a, Scrates afirma que as opinies
verdadeiras
... por tanto tempo quanto permaneam, so uma bela coisa e produzem todos os bens.
S que no se dispem a ficar muito tempo, mas fogem da alma do homem, de modo que no so de muito valor , at que algum as encadeie por um clculo de causa... E quando so
encadeadas, em primeiro lugar, tornam-se cincias, em segundo lugar, estveis. E por isso que a cincia de mais valor que a opinio correta ( ), e pelo encadeamento que a
cincia () difere da opinio correta23.
Fica claro com a passagem acima por que Lafrance destaca a diferena em entender
como uma representao ou como opinio em um sentido elaborado ao ponto de
tornar-se conhecimento. Poderamos questionar a validade de qualquer opinio para se
candidatar ao conhecimento, mas a passagem no deixa dvidas para entender que no
se trata de uma opinio comum: deve haver um clculo de causa (98b) para que a
opinio se torne conhecimento. A questo que surge a diferena de uma ligada
percepo e outra ligada a algo mais elaborado, algo como um raciocnio. Este
um foco importante para o Teeteto e que percorreremos adiante com mais preciso.
Sendo assim, o que retiramos desta reflexo inicial que h diferentes exposies sobre
o termo e ainda no foi dito, mesmo superficialmente, o que define a .
Apontada a diferena entre o sentido de representao e o sentido de opinio, o
autor destaca outra passagem nos dilogos para ressaltar outro ngulo de exposio da
. Um ngulo que se diferencia do modo como a foi exposta nas passagens do
Mnon citadas acima. A passagem se encontra na Repblica24 e se refere a um campo de
conhecimento propriamente filosfico descrito no livro V. Em 477a, Scrates afirma
que aquilo que plenamente ( ) pode ser conhecido plenamente. Por
outro lado, o que no no passvel de conhecimento () no pode ser
conhecido de modo algum. No entanto, h coisas que no so plenas e tambm no so
inexistentes, algo intermedirio entre o conhecimento () das coisas plenas e a
ignorncia das coisas inexistentes. Esse lugar intermedirio apresentado por Scrates 23 Plato, ( 2003). 24 PLATO, (2000).
18
como o campo de atuao da , que mais escura que o conhecimento e mais clara
que a ignorncia (478c). O conhecimento e a opinio tm objetos diferentes e assumem
campos diferentes de atuao, enquanto o primeiro infalvel ao atuar sobre seu objeto,
o segundo assume um lugar intermedirio, passvel de erro e acerto em relao ao
objeto sobre o qual atua.
A passagem mostra que ao dividir os campos de atuao entre e
exposta uma diferena importante em relao passagem do Mnon. Neste
dilogo, a opinio verdadeira pode alcanar estabilidade se estiver encadeada por um
clculo de causa e, desse modo, torna-se conhecimento. Por sua vez, na Repblica, a
estabilidade do saber sobre algo a caracterstica que separa a de outros
saberes. E se refere aquilo que plenamente, ou seja, algo estvel enquanto
a se refere ao intermedirio, ao que est entre o conhecimento infalvel e a
ignorncia.
Lafrance ressalta outra diferena no modo como Plato exps a no dilogo
alvo de nossa pesquisa, o Teeteto. Se Chantraine25 aponta o dilogo como importante
referncia para o estudo da , encontramos o mesmo comentrio em um livro que se
props a investigar a em Plato. Esta obra adota o Teeteto como um dos dilogos
principais para seu objetivo e por esse motivo, torna-se um orientador importante para o
nosso percurso. O autor menciona que mesmo em dilogos tardios a teoria platnica da
no parece coerente26 e cita uma passagem do Teeteto. Vejamos a passagem que
elucida certa diferena com o texto da Repblica e que especifica a atividade da alma
em que a atua. a definio mais completa entre as destacadas acima e um
ponto chave para nossa pesquisa, pois est como concluso ao que chamaremos adiante
de refutao terica a Protgoras. Neste momento, veremos somente a definio do
termo.
Em 189e-190a, a exposta como o resultado de um dilogo da alma consigo
mesma, que ocorre por meio de um exame. Esse dilogo da alma consigo mesma
nomeado como pensamento () que pergunta e responde para afirmar ou negar
(189e-190a). A ocorre quando o exame que a alma fez chega a uma concluso e
se decide. Se Teeteto observa algum a certa distncia, imagina e diz que Scrates, 25 Chantraine (1977), p. 290. 26 Lafrance (1981), p. 14.
19
mesmo conhecendo este, possvel que seu juzo seja verdadeiro ou falso. Essa
possibilidade fornece ao lugar intermedirio da , descrito na Repblica, um valor
mais amplo, pois Teeteto pode errar o alvo como trocar os ps ao calar as sandlias
como pode acert-lo. Isso indica que por no ter aquela plenitude () no
significa que a no tenha sua parcela de verdade. O que deve ser destacado a
ambiguidade da opinio como a causa que a torna incompatvel com o carter infalvel
da .
Aps investigarmos, no dilogo, a tese de Teeteto e a de Protgoras juntamente
com suas ligaes com a , poderemos perguntar como Plato refuta Protgoras, ao
menos sob um ponto de vista terico. Nossa pesquisa tentar mostrar que h tambm
um ponto de vista poltico, destacado no dilogo como a defesa de Protgoras, e que
Plato talvez no estivesse em pleno desacordo. Ao transitar entre essas poucas
passagens possvel notar o termo em seus campos de atuao diferentes dentro
da obra de Plato. Entretanto, parece que essas diferenas s ocorrem, no Teeteto, do
ponto de vista terico. A questo que levantamos se essa diferena existe em um
campo poltico.
Como veremos no percurso dos dicionrios, os sentidos do termo podem se
estender e tais diferenas, expostas nos dilogos, podem ter a inteno de mostrar que
no h um sentido unvoco nos dilogos e que a pode estar ligada ou sensao
ou inteleco. Somente com essas evidncias possvel se preparar para a mistura de
sentidos que encontramos no Teeteto e, junto a isso, contribuir para retirar a imagem de
Protgoras a partir de sua concepo de exposta no dilogo. Entre essas
dificuldades h algumas orientaes de Lafrance que ajudam a entender a complexidade
do termo dentro da obra platnica. Ao elaborar a questo de sua obra considera que para
um caminho mais seguro so necessrios quatro princpios metodolgicos.
No primeiro princpio o autor menciona o fato de os estudiosos alemes no
considerarem a evoluo do pensamento de Plato nos dilogos e se limitarem a um
quadro assaz sistemtico27. A posio de Lafrance que ao considerar um dilogo
preciso investigar qual sua posio na obra e quais concepes epistemolgicas esto
em determinado momento da obra de Plato28. Este primeiro princpio contribuiu no
27 Lafrance (1981), p. 15. 28 Lafrance (1981), p. 16.
20
sentido de identificar passagens sobre a em que se torna evidente a diferena e
variedade do termo nos dilogos. No entanto, o objetivo da nossa investigao se refere
atuao poltica da no Teeteto: o carter temtico deste objetivo prescinde de
uma anlise peridico-evolutiva da obra platnica. Para as dimenses desta pesquisa
acreditamos que um dilogo suficiente ao objetivo. Se Lafrance, desde a introduo de
seu trabalho, confirma que o Teeteto uma boa fonte de entendimento sobre a ,
em Chantraine temos a mesma confirmao29.
Se no primeiro princpio foi preciso considerar a evoluo ao longo das obras, o
segundo princpio estabelece que importante a problemtica de cada dilogo. O autor
levanta um ponto importante para o objetivo de nossa pesquisa: no h um dilogo que
lide exclusivamente com a . Quando Plato aborda o tema sempre em ocasio de
outro problema30. A consequncia desta afirmao est em que para retirar o sentido da
em uma passagem preciso ao mesmo tempo considerar o contexto do dilogo no
trecho em questo.
Este ponto indica que foi apropriada a escolha do Teeteto como o dilogo para a
investigao da sob um aspecto poltico. Como vimos acima, no dialogo h uma
investigao de processos anmicos que propiciam o surgimento da como um
resultado do dilogo da alma consigo mesma. Alm disso, entre os contextos possveis
de serem investigados no Teeteto, refletiremos adiante sobre o contexto do estado
poltico da questo do conhecimento, trazido tona por Plato por meio da interpretao
da tese de Protgoras. H razes para questionarmos a presena de um grande sofista no
meio de uma discusso sobre o conhecimento.
Desse modo, o segundo princpio mostra uma posio para evitar algumas
contradies ao dirigir o olhar do leitor sobre a problemtica prpria do dilogo onde
se insere nossa passagem sobre a 31. Portanto, para Lafrance, necessrio
investigar o eixo de cada dilogo para ressaltar a particularidade da envolvida em
um contexto especfico. Para esta pesquisa o necessrio procurar a particularidade
poltica da por meio da figura de Protgoras no Teeteto. Esta figura carrega uma
imagem de sabedoria que questionada com a postura de um Scrates parteiro e estril
29 Chantraine (1977), p. 304. 30 Lafrance (1981), p. 16. 31 Idem.
21
em matria de conhecimento ao mesmo tempo em que tambm questionada na
digresso sobre o filsofo, que percorreremos adiante.
O vasto nmero de obras especializadas sobre Plato pode dificultar o incio de
uma investigao nos dilogos. O terceiro princpio assume esta dificuldade e aponta
um aspecto bom e um inconveniente em relao a ela. O lado bom que oferece a
possibilidade de discusses interessantes a partir de grandes especialistas da filosofia
platnica. O inconveniente que as discusses dos comentadores parecem ao autor dar
a impresso de, algumas vezes, sair do assunto32, de se afastar do texto platnico.
Acrescenta tambm que no fcil estabelecer a dose adequada entre a anlise do texto
e os estudos de comentrios33. A bibliografia sobre o Teeteto outro comentrio
importante de Lafrance, pois nota que os estudos analticos so predominantes. Este fato
j havia sido notado na procura de referncias para o objetivo desta investigao. O
aspecto poltico no Teeteto no muito enfatizado pelos comentadores e Lafrance, neste
ponto, nos ajuda com sua posio de se manter mais prximo ao texto de Plato. No
recolhimento de nossas referncias adotamos esse princpio escolhendo autores que se
debruaram com maior nfase sobre o dilogo.
O quarto princpio mostra a proposta para diviso dos captulos do livro.
Lafrance observa que o emprego do termo nos dilogos assume geralmente dois
sentidos: o literrio e o filosfico34. No primeiro captulo o autor se dedica a separar os
sentidos literrios da no conjunto da obra. O que antes nomeamos como sentido
filolgico se enquadra nesse sentido com a diferena que faremos tambm um percurso
fora da obra de Plato. Em seguida, os prximos captulos so dedicados ao que o autor
nomeou como sentido filosfico a partir de uma ordem de dilogos a serem
investigados: Grgias, Mnon, Repblica, Teeteto e Sofista.
Este ponto importante para a presente pesquisa sob dois aspectos. O primeiro
se refere ao dilogo Teeteto que se encontra nos dilogos escolhidos pelo autor em sua
anlise do sentido filosfico. O segundo aspecto se refere ao primeiro captulo ser
dedicado por Lafrance ao sentido literrio da nos dilogos. Como Lafrance nos
oferece tal sentido literrio nos dilogos adotaremos seu percurso e, quando necessrio,
acrescentaremos outras passagens para complementar sentido de acordo com a inteno
de nossa pesquisa.
32 Lafrance (1981), p. 17. 33 Idem. 34 Ibidem.
22
1.3 O carter literrio do termo nos dilogos
Vejamos o que o autor traou como aspecto literrio da . O problema
etimolgico no pode prescindir de uma passagem do Crtilo em que Plato nos oferece
algumas imagens como origens do termo. A primeira , uma procura ou
perseguio que a alma faz para conhecer as coisas (420bc); quanto segunda a
preferncia de Plato , arco. Lafrance nos oferece algumas ocorrncias dos
dois termos entre algumas obras nas quais geralmente traduzido como
perseguio de soldado ou navios.35 Ocorre tambm no sentido de perseguir um objeto,
um desejo ou alguma paixo36 e pode ser entendido tambm como perseguio
empregada no sentido judicirio. O termo significa um arco, um arco e flecha ou
somente flechas; h ainda passagens em que o autor encontrou o termo com o sentido de
jogo, arte ou tcnica de tiro com o arco.37 Mesmo que Plato tenha feito algum joguete
com a origem do termo38 ou que a explicao se encadeie com o contexto do dilogo39,
podemos entender que a imagem do arco e flecha (enfatizada pelo prprio Plato) ou
tcnica de atirar com arco e flecha oferece o sentido de atingir um alvo. De acordo com
a passagem, algo que leva a alma e, podemos acrescentar, que a impulsiona a um alvo.
Plato ainda explica no fim do trecho (420c) que tem o sentido de disparo () que
indica a inteno a um alvo.
Como veremos, nos dicionrios existem algumas tradues de no sentido
de expectativa ou esperana, destacado por alguns tradutores, mas parece no ser muito
prximo a este sentido de disparo a um alvo. Enquanto a expectativa parece depender de
fatores externos para ocorrer, o disparo parece ter sua origem interiormente, em algo
ativo, mais do que depender de um fato exterior. Colocando paralelamente opinar e
disparar, podemos perguntar se possvel treinar para errar menos e aumentar a
frequncia em acertar os alvos. Com essa caracterstica de disparo a definio que
vimos acima no Teeteto, como resultado do dilogo da alma consigo mesma, comea a
ganhar um sentido mais claro.
35 Lafrance (1981), p. 19. 36 Idem. 37 Lafrance (1981), p. 20. 38 Idem. 39 Lafrance (1981), p. 21.
23
Antes de recolher as passagens literrias, Lafrance faz a etimologia do termo
mencionando suas razes em e de modo similar ao que veremos em
Chantraine. Estudos recentes mostram que a forma primitiva do termo pode se encontrar
na expresso tambm derivada de .40 Entre os estudos lingusticos
sobre o termo na obra de Plato, ser destacada uma diviso que acompanhar a
abordagem das passagens literrias. Ser possvel notar reflexes semelhantes no
Teeteto devido oscilao na investigao entre o sentido de aparncia e o sentido de
opinio.
A teria dois sentidos principais. O primeiro de aparncia, destacada como
o que aparece objetivamente41, e o segundo sentido de opinio, destacado como isto que
aparece a mim subjetivamente.42 A derivao admite estes dois sentidos43
(como vimos acima em Teeteto 190a), e por meio destes o autor mostrar que se
formar uma srie de desdobramentos de sentidos literrios no vocabulrio platnico.
1.3.1 Passagens sobre a como aparncia: o sentido objetivo
H algumas questes que podemos levantar no que se refere traduo de
como aparncia justamente porque veremos, no Teeteto, a proximidade de sentidos
entre e , sendo que esta ltima pode tambm ser traduzida por
aparncia ou representao. No entanto, uma discusso que ficar para o prximo
captulo, por necessitar de pressupostos do prprio dilogo. Esse recolhimento de
Lafrance nos ajuda a mostrar que nos dilogos, no somente no Teeteto, h certa
ambiguidade de sentidos para o termo .
O sentido objetivo do termo se refere a aparncia, a maneira que uma
pessoa ou uma coisa aparecem aos olhos dos outros44. Claramente Lafrance se refere
40 Lafrance (1981), p. 22. 41 Idem. 42 Ibidem. 43 No entanto, a discusso objetivo/subjetivo deve ser feita com cuidado por ser questionvel o
fato de um pensador da antiguidade entender tal diviso como um pensador contemporneo. Mesmo
assim, ainda podemos ressaltar que essa diviso pode ser o ponto central do Teeteto no sentido de mostrar
o que por um lado um processo estritamente anmico e por outro lado, um processo que envolve a alma e o que percebemos do exterior (Cf. Teeteto187ss).
44 Lafrance (1981), p. 23.
24
aqui ao sentido objetivo como dependente de fatores externos para ocorrer (uma pessoa
ou uma coisa). Este sentido etimolgico para deriva, segundo Lafrance, do
seguinte modo: reputao, glria, vanglria, prestgio, fama, dignidade e iluso.
Analisaremos algumas passagens citadas pelo autor que so apropriadas para um
sentido que se aproxime ao que encontraremos no Teeteto.
Antes de elencar tais sentidos em algumas passagens, o autor oferece dois
exemplos de aparncia em seu sentido mais fundamental. O primeiro, no final do
Simpsio, no momento em que Scrates, ao mostrar a diferena entre sua beleza e a de
Alcibades, acrescenta que uma falta de ateno considerar que h uma troca justa
entre o que ambos tm de belo. Scrates diz no trecho que nos interessa:
No em pouco que pensa me levar vantagens, mas ao contrrio, em lugar da aparncia
() a realidade do que belo que tentas adquirir, e realmente ouro por cobre que
pensas trocar45
A edio espanhola tambm usa o termo com o mesmo sentido de aparncia46,
que neste caso se refere de modo transparente a expresso de Lafrance aparece aos
olhos dos outros, pois a beleza de Alcibades se resume em como ele aparece
fisicamente aos olhos dos outros, enquanto que Scrates tem sua beleza invisvel aos
olhos fsicos dos outros.
Veremos que h uma intensa discusso no Teeteto sobre certo saber de
Scrates sua arte maiutica e a imagem de Protgoras como sbio reconhecido no
somente por Teeteto, mas tambm pela maioria (152ab). E isso nos leva ao
questionamento mais importante em relao a Plato feito por nossa pesquisa: como a
postura poltica do filsofo em relao s opinies da maioria? A digresso sobre o
filsofo no Teeteto est em nosso percurso do dilogo e Lafrance antecipa a discusso
para mostrar que a como aparncia usada para Scrates expor uma imagem do
filsofo para a maioria.
...no tribunal ou alhures, sempre que nosso filsofo forado a tratar de assuntos que lhe caem
sob a vista ou diante dos ps, torna-se alvo de galhofa, no apenas por parte das raparigas da
Trcia como de todo o povo, levando-o sua falta de experincia a cair nos poos e na mais triste
45 Plato(2001), 218e-219a. O grifo do tradutor. 46 Platn. (1988).
25
confuso. Sua irremedivel inabilidade para as coisas prticas f-lo passar por ()
imbecil47. (174c).
O autor oferece essa passagem como exemplo e, em seguida, sem coment-la,
comea por elencar os sentidos que havia indicado48. Antes de verificar tais sentidos,
ainda em relao imagem do filsofo, possvel acrescentarmos algumas passagens
no mencionadas por Lafrance. O sentido de aparncia pode ser desdobrado em alguns
trechos da Apologia. No incio de sua defesa o filsofo espanta-se com um aspecto nos
discursos de seus acusadores. Dizem que Scrates era perigoso por ser um hbil orador
(17a). O filsofo admite que no sabe falar como um orador, a menos que este s diga a
verdade. E aqui se encontra o trecho que nos interessa: ... o que neles se me afigurou o
cmulo da impudncia, a menos que chamem de orador eloquente quem s diz a
verdade... (Nunes, 2001, grifo nosso)49. Em outra traduo: ... eso me ha parecido en
ellos lo ms falto de verguenza... (Ruiz, 1985, grifo nosso)50.
A expresso em grego que foi traduzida por me afigurou e me ha parecido
e, como veremos a seguir em Chantraine, as expresses e
indicam o modo aoristo do verbo e significa aquilo que pareceu a algum ou a
um grupo de pessoas. Nesse caso, indica o parecer de Scrates referente possvel
vergonha por parte dos acusadores ao afirmarem algo que est prestes a ser desmentido.
Ainda na Apologia, em 20d, Scrates responde a uma objeo sobre qual
ocupao exercia e de como surgiram as acusaes a seu respeito. O incio da resposta
contm o trecho que nos interessa. Acho muito justa a objeo, e vou tentar mostrar-vos
o que deu motivo a essa notoriedade e s calnias levantadas contra mim... possvel
que alguns dentre vs pensem que no estou falando srio... (Nunes, 2001, grifo nosso) 51.
Em outra traduo: Pienso que el que hable as disse palabras justas... Tal vez va a
parecer a alguno de vosotros que bromeo (Ruiz, 1985, grifo nosso)52.
47 Plato( 2001). O trecho foi o escolhido por Lafrance que indica outros dilogos com passagens
que assumem o mesmo sentido para . Lafrance (1981) p. 23. 48 Neste momento no necessrio se debruar sobre uma passagem que ser analisada
posteriormente, mas podemos notar como o termo se flexiona em um sentido que se pode concordar com direo que o dilogo toma. Assume a aparncia de um sbio que afirma que todas as aparncias so verdadeiras. O filsofo aparece para a maioria de modo diferente que Protgoras aparecia aos seus contemporneos.
49 Plato. (2001). 50 Platn. (1985). 51 Plato(2001). 52 Platn. (1985).
26
Esta passagem apropriada por mostrar e sua forma futura . O
primeiro traduzido pelas expresses eu acho ( ) e, na edio espanhola,
pienso. Em ambas as tradues o sentido o parecer individual que prevalece, ou seja,
o fato de a objeo parecer justa a Scrates. O segundo termo, , foi traduzido por
pensem e va a parecer. Neste caso, a edio espanhola mostra mais fielmente o termo
grego que aparece na primeira pessoa do singular. O sentido se refere possibilidade de
que Scrates parea () aos outros como algum que no fala srio. Na traduo
inglesa53 a palavra seem ressalta o sentido de parecer, de afigurar-se, de opinar. De
modo algum estas palavras se afastam do sentido que representa os termos em questo
na passagem.
Outra passagem da Apologia com dois termos derivados de est em 21c.
Aps saber a resposta da Ptia, Scrates comeou a investigar um poltico considerado
sbio. Ao examin-lo, relata a passagem que nos interessa: ... quis parecer-me que ele
passava por sbio para muita gente, mas principalmente para ele mesmo, quando, em
verdade, estava longe de s-lo (Nunes, 2001, grifo nosso)54. Em outra traduo. Me
pareci que otras muchas personas crean que ese hombre era sabio... (Ruiz, 1985,
grifo nosso)55. O primeiro termo , que j vimos acima, no entanto, o
segundo termo em destaque foi mencionado acima e no expusemos exemplos.
um dos termos raiz de e usado frequentemente com sentido prximo deste56.
Este um fato que perceberemos no percurso do Teeteto no qual h um entrelaamento
das percepes s aparncias e opinies. No caso, os sentidos de cada potncia podem
se entrelaar e, com isso, o que entendido sobre cada potncia pode ser ambguo: a
tese de Protgoras e a interpretao oferecida por Plato, exposta no dilogo, indica a
ambiguidade que se apresenta em outros textos. No caso acima assume o
sentido de uma aparncia confirmada por muitos homens. A traduo brasileira assumiu
o sentido de passar porque no se distancia de uma aparncia. Enquanto a traduo
espanhola optou pelo sentido de crena.
53 Plato. (2005). 54 Plato. (2001). 55 Platn. (1985). 56 Liddell & Scott (1996) p. 441-2, 444. Os sentidos apontados so esperar, pensar, supor,
imaginar, parecer, pretender.
27
Se h uma diferena de sentidos entre e , tal diferena deve ser
muito sutil de modo que o entrelaamento que apontamos no Teeteto encontrado
tambm em outros dilogos. No entanto, no Teeteto possvel encontrar passagens que
mostram a dificuldade e explicaes que delimitam com maior clareza o campo da
, seja quando atue com a seja quando atue com as declinaes de
. justamente nesta atuao que se encontra a ambiguidade da tese de
Protgoras e, como veremos, a intepretao que Plato oferece no se esclarece at que
sejam conceituadas certas atividades da alma que tornam possvel o surgimento da
(187a).
Agora possvel voltar ao percurso sugerido por Lafrance para descrever os
sentidos literrios da . Vale lembrar que no percorreremos todas as passagens
citadas pelo autor, mas somente as que se aproximam do sentido poltico que
procuramos no contexto do Teeteto. Comeando pela reputao o autor sugere um
trecho da Apologia. Em 29d, Scrates ataca o argumento de Anito segundo o qual expe
que melhor que o filsofo pare de filosofar. Scrates diz:
Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais respeitada por sua cultura
e poderio, no te pejas de cuidares de adquirir o mximo de riquezas, fama e honrarias,
( ) e de no se importares nem cogitares, da razo da verdade e de melhorar o
quanto mais tua alma?57
Sobre reputao tambm h uma passagem no citada pelo autor que
podemos acrescentar como exemplo. No Eutifron, h um momento em que Scrates
investiga sobre a proximidade entre temor e respeito. A passagem se encontra em 12bc.
Hay alguien que respete una cosa y que sienta verguenza ante ella, y que, al mismo
tiempo no est amendrentado y tema una reputacin () de maldad?58
Outra passagem sobre o sentido de reputao citada por Lafrance se encontra em
Grgias, no momento em que Clicles aconselha Scrates a abandonar a filosofia. O
trecho se encontra em 486d.
57 Plato. (2006). 58 Platn. (1985). A traduo inglesa para o termo reputation. Plato. (2005).
28
Procura imitar no esses disputadores de futilidades, mas os homens que sabem
adquirir a riqueza, a reputao () e muitos outros benefcios.59
No sentido de glria, Lafrance indica a passagem do Poltico 310e. No momento
final do dilogo, de extrema importncia para esta pesquisa, h um exemplo curioso de
desdobramento do sentido da como glria. O autor destaca o momento em que o
estrangeiro expe a funo da arte da tecedura.
Pois assim constitui a funo nica e completa dessa arte real da tecedura: nunca deixar
separar o carter moderado e o carter enrgico, mas ao contrrio, tec-los juntos pela
comunidade de opinies (), honras e glrias ()60
Antes de Aristteles o termo ocorre somente em Plato61 que, nesta
passagem, explora mais um sentido a fim de descrever o resultado do ato de tecer
tendncias anmicas diferentes. O resultado a causa da comunidade de opinies,
honras e glrias. Lafrance chama a ateno sobre a sutileza da distino entre glria e
reputao e afirma que uma questo de contexto62. Todavia, para o objetivo desta
pesquisa, possvel se restringir somente s variaes do sentido do termo, ao contrrio
de tentar especificar cada um deles. Neste trecho do dilogo glria ou reputao so
sinnimos, pois colocam em evidncia somente o que cada um desses cidados
assumem como algo estimado a se buscar, uma fama que torna possvel a felicidade da
cidade (311c). Por ora, acrescentemos o sentido de glria (ou reputao) ao termo
.
Outra passagem destacada por Lafrance expe o sentido de prestgio do termo
no dilogo Grgias, no momento em que Grgias defende o melhor uso da
retrica.
fora de dvida que o orador capaz de falar contra todos a respeito de qualquer
assunto, conseguindo, por isso mesmo, convencer as multides melhor do que qualquer outra
pessoa, e, para dizer tudo, no assunto que bem lhe parecer. Porem no ser por isso que ele ir
59 A traduo de Lafrance (1981), p. 24. 60 Plato. (1987). 61 Liddell & Scott (1996) p. 1223. 62 Lafrance (1981) p. 24. Nota 26.
29
privar o mdico de sua fama () o que lhe seria impossvel nem qualquer outro
profissional. Pelo contrrio, dever usar a retrica com justia, como qualquer outro gnero de
combate63.
Ainda como prestgio, no Poltico h um momento em que a arte dos adivinhos e
sacerdotes mencionada como uma arte til. O trecho se encontra em 290d.
...pois que os sacerdotes e os adivinhos parecem ter grande importncia e desfrutam de
grande prestgio pela grandeza de seus empreendimentos.64
No sentido de fama o autor destaca uma passagem do Simpsio no momento em
que Diotima diz a Scrates porque alguns homens se dispunham a enfrentar os maiores
perigos a fim de alcanarem uma fama: ... estou certa de que s pela imortalidade do
mrito e pela fama gloriosa () que todos fazem o que fazem...65
Para o sentido de dignidade, Lafrance indica uma passagem da Apologia que
outros tradutores optaram por reputao66 ou honra67. Vejamos sua verso do trecho
35bc. Mas deixando de lado, cidados, a questo da dignidade ( ). No me
parece justo suplicar ao juiz nem de se absolver por meio de preces.68
Para o sentido de iluso h uma interessante passagem do Fedro na qual Tamus
expe os males causados pela inveno da escrita. No para memria, mas para a
rememorao que descobriste um remdio. Sobre a cincia que ofereces a teus alunos,
iluso e no a realidade69.
1.3.2 Passagens sobre a como opinio: o sentido subjetivo
63 Plato. (1988), 457ab. Lafrance optou por traduzir como prestgio. Lafrance (1981) p. 25.
Reputao para edio espanhola. Platn(1987). 64 Plato. (1987). 65 Plato(2001), 208d. 66 Platn. (1985). 67 Plato. (2001). 68 Lafrance (1981), p. 25 n.28. Em nota o autor afirma que este o nico exemplo neste sentido. 69 Lafrance (1981) p. 26.
30
O segundo sentido etimolgico sugerido por Lafrance se refere ao sentido
subjetivo de opinio70: o que aparece ao sujeito a respeito de pessoas ou coisas. O autor
classifica esse sentido sob trs aspectos.
O aspecto do contedo que admite os seguintes sentidos: opinio pessoal,
opinio pblica, doutrina, noo, pensamento, ideia, sugesto, crena, princpios; o
aspecto do tempo com os sentidos de esperar, deciso, modo de ver; o aspecto do ato no
sentido de julgamento71. Lafrance explorar cada um desses sentidos em algumas
passagens dos dilogos, entretanto, de acordo com nosso propsito, podemos filtrar
grande parte e mencionar somente as passagens que se aproximam de um sentido mais
poltico. Anteriormente refletimos sobre algumas passagens que ressaltavam o modo
como algo ou algum pode aparecer a um indivduo e isto foi nomeado por Lafrance de
sentido subjetivo da . Neste ponto, o autor ressalta o que vlido para um s
sujeito e, esse modo de focar a investigao, ser um ponto importante no dilogo
Teeteto, que percorreremos no prximo captulo. Como vimos na passagem 189e-190a,
a definio do termo no dilogo envolve um questionamento da alma consigo mesma
que, nesse sentido destacado por Lafrance, nomeado como subjetivo. Vejamos as
passagens.
Como um primeiro exemplo do sentido de opinio, Lafrance indica uma
interessante passagem do Grgias no momento em que Scrates descreve a opinio que
Clicles e seus amigos haviam formado a respeito da filosofia.
... cheguei a ouvir quando determinveis at que ponto seria aconselhvel cultivar a sabedoria,
tendo certeza de que prevaleceu a opinio () de que no convincente prolongar demais
semelhante estudo.72
Em seguida, h um exemplo no Poltico para o sentido de opinio comum,
pblica73. O ponto do dilogo est no momento em que se investiga o desacordo entre
as virtudes.
70 Idem. 71 Ibidem. 72 Plato. (1988), 487cd. 73 Lafrance (1981) p. 27
31
Que uma parte da virtude seja, em certo sentido, diferente de outra espcie de virtude,
eis o que oferece, com efeito, bela matria de contenda aos trapaceiros do discurso que apelam
para as opinies dos muitos ( ).74
O autor indica uma passagem que se refere ao sentido de doutrina no dilogo
Protgoras, em um trecho em que o sofista afirma que a punio uma prtica que
pode conduzir virtude se no for feita por mera vingana, mas com a inteno de o ato
no se repetir no futuro. Vejamos o trecho que se encontra em 324b.
Portanto, todos que usam a punio na vida privada ou na vida pblica devem admitir
essa doutrina75 ( ). Pois a punio e o castigo desses que se julgam culpados
universal e no se encontra menos em seus compatriotas, os atenienses. Podemos concluir que
os atenienses so dos que pensam que a virtude pode ser ensinada76.
Em nota, Lafrance menciona uma traduo que opta por opinio. Todavia, sustenta que
a possibilidade de a virtude ser ensinada era debatida na poca de Plato como um
conjunto de juzos e opinies que podem ser entendidos como doutrina.77
Outro sentido para o termo o de noo, que Lafrance encontra na
passagem 278c do Poltico que mencionamos na introduo78. O autor defende que a
expresso deve ser traduzida por noo nica e verdadeira, pois
reconhecer um paradigma em contextos diversos uma noo no uma opinio que
permite localizar em dois grupos diferentes dois elementos idnticos. Assim as letras
cra podem ser reconhecidas tanto no grupo de letras de Scrates, quanto em um
grupo diferente como pancrcio79. De modo sutil, noo parece se adequar melhor do
que opinio para essa passagem; parece exigir caractersticas mais especficas do que
uma opinio, algo que um cidado deveria ter consigo para opinar retamente a respeito
da organizao da cidade.
Outro sentido indicado por Lafrance o sentido de princpio. Na Repblica h
uma passagem que descreve como surge o tirano: quando influenciado a amar
74 Plato. (1987), 306a (com pequena alterao). 75 A edio espanhola optou por opinio. Platn. (1985). 76 Lafrance (1981) p. 28. 77 Idem. nota 33. 78 Cf. p. 6. 79 Lafrance (1981) p. 28. nota 35.
32
direcionado por desejos indolentes e descontrolados (573ab). Com isso como se fosse
picado por um zango gigante e lhe fosse fincado o aguilho daqueles desejos.
E se ele encontra alguns princpios () ou tendncias consideradas como vlidas e
se lhe resta algum pudor o mata e joga longe at que seja purificado de toda sabedoria que tinha,
ao contrrio, preenche sua alma de alma de uma loucura estrangeira80.
A ltima passagem que retiramos do percurso de Lafrance est no Teeteto, no
momento em que Scrates oferece uma definio da e que ser importante para o
prximo captulo. J mencionamos a passagem anteriormente sem cit-la integralmente
e o trecho acentua ainda mais o propsito desta pesquisa em procurar no Teeteto uma
imagem da tanto no nvel poltico quanto no terico. Em 190a, h um exemplo do
termo em um sentido terico de descrever um processo anmico que resulta na .
Como veremos a passagem com mais cuidado no prximo captulo, por ora podemos
nos deter somente no ponto especifico da definio do termo. Com o sentido
subjetivo de pano de fundo podemos verificar o sentido idiossincrtico da .
Mas quando a alma, em um movimento mais ou menos lento ou em um movimento mais rpido,
finalmente se fixa, quando afirma sempre a mesma coisa e no duvida, isso o que
denominamos julgamento ().81
1.4 O sentido platnico de
Aps esse percurso o autor acrescenta que questionvel a exposio de todos
esses sentidos para o termo . A lngua grega mais compacta do que o portugus
ou o francs de Lafrance e, por esse motivo, as nuances nos diversos sentidos do termo
so compreendidos somente no contexto. No Teeteto h um entrelaamento de termos
derivados ou originrios do termo . A afirmao de Lafrance importante por
possibilitar refletir sobre o entrelaamento ocorrido no dilogo e compreender com
maior clareza os termos que Plato coloca em um contexto ao redor do termo . O
contexto que procuramos est no campo poltico, sendo esse o propsito de percorrer o
dilogo. Apesar de Lafrance abordar o texto de Plato como um lugar privilegiado de
80 Lafrance (1981), p. 30. 81 Lafrance (1981), p. 31, 32. Nota 45. Cf. Sofista 264a.
33
confronto de opinies82, sua abordagem talvez seja mais epistemolgica do que poltica.
Entretanto no deixa de ser uma boa referncia para a compreenso do termos e de
seus adjacentes.
A diviso entre objetivo e subjetivo feita por Lafrance nos ajuda a notar que, ao
colocar certas passagens em paralelo, h um problema em entender a somente
como opinio nos dilogos. Os sentidos marginais opinio que podemos destacar com
maior nfase so o parecer e o aparecer, que, como vemos nos dicionrios e no Teeteto,
so sentidos que derivam tambm dos verbos e . Se no Teeteto
veremos este problema com maior cuidado, podemos oferecer uma ltima passagem,
curiosamente no mencionada por Lafrance, que expe de modo singular e claro o
surgimento da .
Vejamos alguns trechos da passagem que se encontra no Filebo, no momento em
que Scrates investiga a ligao entre opinio e prazer (37a-38e) e oferece uma
definio da . Scrates e Protarco admitem que o opinar (), assim como o
ato de sentir prazer (), dizem respeito a algo, tm algo como contedo e
somente este algo passvel de verdade ou falsidade (37a). A opinio no somente
opinio, mas certa opinio podendo ser verdadeira ou falsa
( ) (37b).
Esse trecho nos orienta de modo mais claro quando o colocamos junto
passagem do Crtilo (420bc), mencionada anteriormente. A pode errar seu alvo,
assim como possvel errar no tiro com arco e flecha e, alm disso, diz respeito a algo
passvel de verdade ou falsidade. A imagem do arco e flecha nos indica a tentativa de
acertar ou no um alvo, algo que pode naturalmente ser comparado com um
posicionamento pessoal ou subjetivo, como Lafrance nomeia sobre alguma questo.
Como o exemplo acima na passagem do Teeteto, quando a alma afirma sempre a
mesma coisa e no duvida (190a). Esse sentido nos orienta para percorrermos a
definio de na passagem que selecionamos no Filebo. Aps delimitar como pode
ser o contedo da opinio, Scrates afirma que a opinio () e o esforo de opinio
() nascem da memria e da percepo ( )
(38b).
O nascimento da opinio, no exemplo de Scrates, est no fato de algum no
conseguir distinguir claramente algo distncia. Interrogando a si mesma essa pessoa 82 Lafrance (1981) p. 33
34
relaciona as coisas do seguinte modo: Que ser que aparece embaixo daquela rvore,
ao lado de uma pedra? (Nunes, 1974, 38cd). Scrates acrescenta que ao perceber
() tais coisas possvel que a pessoa, como se falasse a ss consigo
(38d), dissesse ser um homem ao lado da pedra. Mas tambm possvel que essa
disposio de imagens na alma julgue erroneamente. O que foi aceito para si mesmo,
como um homem, pode no ser outra coisa que uma esttua (38d). Este exemplo
descrito por Scrates precede o trecho que nos interessa na distino entre discurso
() e opinio (). Se a mesma pessoa que se encontrava em dvida
encontrasse algum e lhe explicasse
Por meio da palavra o que falara para si mesmo, com o que dir pela segunda vez a mesma
coisa, transformando, assim, em discurso () o que antes dera o nome de opinio () (38e)
(Nunes, 1974, grifo nosso).
O final da passagem exige uma reconstruo para lembrar que aquilo que foi
opinado anteriormente foi o resultado de uma conversa consigo mesmo, ou seja, como
se falasse a ss consigo (38d) a pessoa opinou ser um homem ao lado da pedra. A
passagem mostra a relao da percepo com o sentido oferecido pelo verbo
, que foi apresentada na passagem como e
(38d1-2). Na traduo acima, Nunes aceita o termo perceber para traduzir o momento
em que a pessoa representa aquilo que v, ou seja, une aquilo que v com algo contido
em sua memria. O termo representao talvez traduza melhor o termo que indica o
momento seguinte percepo, que se refere unio do visto com alguma imagem
contida em sua memria. Chantraine, por sua vez, apresentou como oposto
(Chantraine, op. cit., p.290), entretanto, nessa passagem oferece o sentido de
representao que contribui para o surgimento da .
Para concluir esta reflexo e o percurso nos dilogos, h outro ponto importante
da passagem que merece ser mencionado: o afastamento do ato da percepo como
elemento propiciador da opinio. Esta s formada aps a percepo e aps um dilogo
da alma consigo mesma, que na passagem se mostra como uma pessoa que v algo a
certa distncia. Aps ver alguma coisa pode formular questes para tentar identificar
algo que no aparece nitidamente e, somente aps isso, se posicionar de algum modo.
Este ser um dos pilares do Teeteto, pois com esse distanciamento que a sensao
35
negada como conhecimento (187a). A passagem do Filebo se mostra importante em
vrios aspectos, no entanto, queremos ressaltar, no momento, somente o carter ativo da
. O contedo do exemplo descrito por Scrates se refere a uma tomada de posio
frente a algo duvidoso83 e, com isso, h um emaranhado psicolgico do qual a se
destaca por uma caracterstica de tomar determinada posio a respeito de algo. Tal
posio reflete um tipo particular de raciocnio que promove uma posio particular de
quem a profere.
1.5 Percurso etimolgico do termo
H problemas com a origem da palavra e a pesquisa que envolve o termo
exige um breve exame. Aps o percurso inicial nos dilogos, o dicionrio etimolgico
de Pierre Chantraine84 importante para uma noo dos primeiros sentidos do termo.
Nele, o termo no existe nesta denotao e indicado ver o verbo 85. As
derivaes apresentadas sobre o termo so (esperar), (esperar,
espreitar) e (pensar, admitir, afirmar)86 originados da raiz - da qual
indicado ver o verbo que significa receber, acolher ou aceitar87. Alguns
estudos mostram que pode ter sido contaminado por . Como este
ltimo um verbo encontrado somente na voz mdia88, ento a raiz de pode ter
um sentido mais passivo.
Como veremos, essa herana de uma raiz passiva pode ter contribudo para que
as primeiras ocorrncias de fossem traduzidas por expectativa ou esperana. No
entanto, duas razes nos fazem assumir uma posio quanto ao sentido mais ativo da
como opinio ou parecer. A primeira, mencionada acima, refere-se a alguns
problemas no processo de traduo, o contexto histrico e o contexto da obra. A
segunda razo que quando Chantraine traduz como pensar, admitir ou afirmar
acreditamos predominar o sentido de opinio sobre o de expectativa ou esperana.
83 Delcomminette, (2003). A autora complementa essa passagem afirmando que o trabalho do
pensamento ( 38e) somente se torna explcito quando h alguma dvida. p. 224. 84 Chantraine (1977). 85 Chantraine (1977), p. 293. 86 Chantraine (1977), p. 290. 87 Chantraine (1977), p. 268. 88 Balme (1990), p. 78.
36
exposto pelo autor como o termo de maior importncia89 por compor
expresses frequentemente utilizadas como (parece-me que, eu creio que) e a
expresso com sentido poltico que podemos traduzir por pareceu ao
povo.
O autor indica que o termo s vezes pode ser traduzido por parecer em
oposio a 90 (aparecer ou representar). A indicao do autor pode ser
questionada, pois, como vimos nos dilogos, h contextos em que a pode ser
entendida/traduzida como aparncia. geralmente indica um aparecer,
inclusive esse, entre outros sentidos, o gancho que motiva investigar seu sentido no
dilogo Teeteto, que se apropria desse e de outros termos aparentemente com sentidos
semelhantes tal como a e a . O dicionrio tambm indica o Teeteto para
notar o emprego dos termos e 91: informao importante por motivar
uma intuio de que no dilogo possvel investigar a amplitude dos termos e suas
semelhanas com a .
H muitas variaes do termo , mas justamente o indicado como
o mais importante e mais difcil.92. Em suas primeiras ocorrncias Homero,
Herdoto o termo admite o sentido de esperar93; em seguida, como oposto a
em Plato; e tambm como a opinio de algum sobre outras pessoas, reputao. O
dicionrio indica que o termo tem grande importncia no vocabulrio grego, mas sua
origem obscura. Em linhas gerais, Chantraine nos oferece as mesmas referncias e os
mesmo sentidos observados no lxico Liddell/Scott94. Os dois pontos principais
recolhidos do dicionrio etimolgico seriam, primeiro, a possvel origem do termo no
verbo depoente , que indica o sentido passivo da que ser investigado, e
talvez modificado, no Teeteto; em segundo lugar, e mais importante, a ponte com o
Teeteto, que confirma um uso dos termos que se aproximam de .
1.6 Percurso lxico do termo
89 Chantraine (1977) p. 290. 90 Idem. 91 Idem. 92 Chantraine (1977) p. 291. 93 Idem. 94 Liddell & Scott (1996).
37
Aps o percurso etimolgico, um percurso no lxico ajuda no sentido de mostrar
desdobramentos do termo durante um perodo de tempo e entre alguns autores.
Retiramos algumas passagens indicadas para diferentes sentidos que sero divididas
conforme cada sentido do termo. Adiante, as primeiras ocorrncias esto em Homero e
se referem ao sentido de expectativa do termo ; aps Homero o lxico aponta que
o termo ganha o sentido de noo, opinio, juzo bem fundamentado ou no95.
H um momento da Ilada (X, 324) em que, na mesma noite, Agammnon e
Heitor no conseguem dormir devido s preocupaes referentes ao rumo da guerra.
Ambos tm em mente saber o prximo passo do exrcito inimigo. Heitor no permitiu
que os troianos repousassem e convocou os principais chefes e conselheiros para lhes
propor o seguinte plano: aquele que for ousado o suficiente e conseguir espionar os
aqueus para descobrir se iro fugir ou se iro ficar, receber a recompensa de um carro
excelente com cavalos velozes. Aps um silncio, um tal Dolon volta-se aos troianos e a
Heitor para dizer que seu corao o impele a espreitar as naus e os planos de
Agammnon. No entanto, por ser um bom olheiro, no quer quaisquer carros e cavalos,
mas os do prprio Aquiles. Se Heitor lhe prometer tal prmio, diz Dolon na passagem
que nos interessa: ... tua confiana vers confirmada; no sou mal esculca...(na
traduo de Nunes, 1962.). Na traduo francesa, ... ton attente (Lise, 1866) e, na
traduo inglesa, ... thy hopes (Murray, 1924).
A expresso em grego , que literalmente pode ser traduzida como
opinio, e as tradues acima ressaltam o sentido de confiana, expectativa e esperana.
Assim, o contexto da passagem mostra que Heitor, ao pedir tal coisa, espera algo desse
pedido e Dolon ressalta a confirmao dessa expectativa. Como primeiro passo,
possvel destacar desta passagem um carter passivo do parecer de Heitor. Passivo por
que depende de outra coisa, um fato exterior para surgir. As tradues ressaltam o
carter passivo do troiano por que h uma possibilidade de saber os planos de seu
inimigo e ele s se cumprir se o olheiro for sagaz como diz ser. No entanto, tal
passividade pode ser traduzida por opinio sem haver grandes alteraes no sentido da
passagem.
Na Odisseia encontramos outro exemplo, quase no mesmo sentido do anterior,
sobre a . H um momento em que o heri, chegando cidade dos Cimrios
95 Liddell & Scott (1996), p. 444.
38
aonde no chegam os raios do sol e h escurido constante desembarca com os
animais no local em que Circe o orientara para fazer um ritual. Esse ritual consistia em
um sacrifcio que abriria um portal para o Hades, onde Odisseu ouvir as verdades de
Tirsias, que o fariam voltar para taca em segurana. Quando o heri conta esta histria
no palcio de Alcinoo, rei do Feaces, a rainha pede aos presentes que o considerem com
valor e o ajudem a voltar para sua ptria. Ento, um velho heri chamado Equeneu toma
a palavra dando sequncia ao trecho que nos interessa. Amigos, acertadas e no longe
de nosso entendimento so as palavras da sagaz rainha: a ela demos ouvidos. Mas
tanto ato como palavra dependem de Alcinoo. (Loureno, 2003). Em uma recente
traduo, o que a rainha afirma coincide com o que eu vislumbro e opino... (Vieira,
2011).
As palavras em destaque entendimento e opino traduzem o termo que
idntico ao que analisamos na Ilada. Ambas passagens so traduzidas por Chantraine
(op. cit. p.291) e Liddell e Scott (op. cit. p.444) como expectativa ou espera e no
podemos negar que h tal proximidade de sentidos com a opinio. Reconstruindo a
passagem podemos supor que a expectativa que recai sobre os presentes em relao a
Odisseu sustentada pela histria que acaba de contar. Um dos mais antigos heris,
ouvindo a histria e a colocao da rainha, no pode esperar algo contrrio a uma boa
reputao de Odisseu. Desse modo, o termo se apresenta nesse contexto como um
aspecto de anteviso ou expectativa. Contudo, como dissemos acima, o sentido
filosfico mais restrito quando, por exemplo, lembramos passagens em que Plato
identifica atividades anmicas tais como o temor, a expectativa, o discurso, a opinio, a
sensao (Repblica 477a; Filebo 36c; Teeteto 151e-190a; Sofista 236e-264b).
H outra passagem que oferece o sentido passivo de em Herdoto que
tambm traduzida por expectativa. Aps uma batalha desproporcional, Croisos
comea a marchar para Sardes com a inteno de reunir foras para um combate de
nvel mais proporcional com o exrcito de Ciro. No entanto, Ciro foi informado dessa
ao dos Ldios e marcha com tal rapidez que chega primeiro a Sardes. A descrio da
surpresa de Croisos ao ver Ciro contm o trecho que nos interessa. Tudo havia
acontecido contrariamente expectativa ( ) de Croisos e ele estava
39
perplexo. Isso no obstante, ele conduziu os ldios batalha (Kury, 1985, grifo nosso).
Na traduo inglesa, all had turned out contrariwise Croesusexpectation...96
Ao reconstruir a passagem podemos notar que possvel optar por uma traduo
que destaque o parecer no a expectativa de Croisos. O rei da Ldia esperava reunir
foras em Sardes, mas no esperava que o inimigo soubesse o local de seu refgio. H
um sentido passivo exposto no raciocnio do rei, mas podemos sugerir que um parecer
(ou uma opinio) se forma para que tome sua deciso. Seu parecer baseava-se no fato
de que aps a ltima batalha que se mostrou desproporcional o inimigo no tentasse
outro ataque j que a batalha acabara junto com o dia, pois a noite separou os
combatentes (I. 76).
Vejamos mais uma passagem em Herdoto indicada por Liddell/Scott. Na
reunio de foras para a clebre batalha de Termpilas, os helenos pedem ajuda aos
Locrios e Focdios dizendo-lhes que seu inimigo no era um deus, mas um mortal. O
discurso dos helenos expunha que seus inimigos, na condio de mortais, esto sujeitos
aos infortnios da vida e desse modo poderia malograr-se a sua arrogante esperana
(Kury, 1985, grifo nosso). Na traduo inglesa, would be disappointed of his hope
(Godley, 1938, grifo nosso). A expresso em grego para os termos em destaque
, idntica s duas passagens em Homero oferecendo o sentido de
distanciamento () da esperana. Nesse caso, os gregos no se intimidaram com o
grande exrcito persa que teria sua esperana malograda diante do exrcito dos gregos.
Outro exemplo que mostra algum carter passivo, pois depende da ao de outro para
ocorrer.
H uma curiosa passagem na tragdia Agammnon (275) de squilo na qual o
sentido de se estende de uma simples viso at uma opinio. No primeiro episdio
a rainha Clitemnestra interrogada pelo coro a respeito de um sacrifcio que fazia:
seriam estes feitos por motivos benvolos? A rainha responde afirmativamente e
complementa que os gregos venceram em Tria. Deslumbrado com a notcia o coro
pede provas e pergunta se a rainha acredita em vises de sonhos, ou seja, se o que ela
dizia era proveniente de alguma imagem onrica. A rainha responde que o deus garante
sua afirmao e que no teria a opinio ( ) de dormente esprito97
96 (Godley) 1975. grifo nosso. 97 (Torrano) 2003, grifo nosso.
40
Torrano aceita opinio para o termo na frase e a pergunta do coro sobre
vises nos sonhos indica que uma posio formulada, mesmo que seja uma imagem
contida no sonho. Essa passagem no apresenta o carter passivo visto acima e podemos
sustentar essa afirmao reconstruindo a passagem. A rainha nega ter vises onricas ao
responder que no tem a de quem se encontra em semelhantes condies. Mesmo
podendo ser duvidosa por ser fruto de um sonho, no deixa de ser uma posio. O
carter duvidoso assumido por Liddell/Scott98 que traduz como fantasia ou viso.
Como vemos em outra traduo: I would not heed the fancies of a slumbering brain
(Smyth, 1926, grifo nosso). As palavras fancies (fantasias) e slumbering (no contexto,
adormecido) nesse caso oferecem o entendimento de fantasia para o contedo do sonho,
um contedo a que a rainha no dar ouvidos.
Esse contedo pode ser uma viso ou uma opinio e, sendo assim, uma posio
estabelecida que denota o sentido ativo da . Uma prova disso seria a tentativa de
traduzir nessa passagem por expectativa ou esperana: o contexto mostra que a
rainha toma uma posio mais do que tem alguma expectativa.
No sentido de reputao indicada uma passagem de Herdoto. A fim de reunir
foras contra os atenienses, os espartanos convocaram os aliados e dizem que
acreditaram em falsos orculos tomando atitudes que fortaleceram o inimigo: E agora
os atenienses aspiram a glria () e aumentam sua foras...99. Em outra traduo:
now it has bred a spirit of pride and waxes in power100.
O termo foi traduzido por glria e orgulho (pride) e, por mais que essas
tradues admitam sentidos diferentes, neste caso, um sentido comum pode ser
identificado: no contexto, a posio tomada a respeito da fora dos atenienses que
reconhecida como algo crescente. Se a fora dos atenienses compe uma a seu
respeito, e Liddell/Scott101 traduz o termo dessa passagem como reputao, podemos
sugerir que se formou uma boa opinio sobre os atenienses na medida em que eles
aumentaram suas foras.
Com essa passagem encerramos a parte etimolgica literal do termo e
podemos notar que esse recolhimento pode ressaltar algumas nuances de sentidos, mas
98 Liddell & Scott (1996), p. 444. 99 (Kury) 1985. Grifo nosso. 100 (Godley, 1938, grifo nosso). 101 Liddell & Scott (1996), p. 444.
41
que o sentido de opinio pode se sobrepor a todas as ocorrncias do termo. Aps o
percurso nos dilogos e nos dicionrios, foi possvel destacar alguns sentidos para o
termo , assim como, localizar outros sentidos que se aproximam. Entretanto so
provenientes de termos radicais e marginais . No prximo captulo teremos a
oportunidade de investigar um dilogo quase inteiramente dedicado .
42
Captulo 2
2. O Teeteto
2.1 Introduo ao Teeteto:
o pressuposto da sabedoria e do conhecimento
Se nos propomos a investigar em um contexto poltico, ento preciso
saber qual o sentido utilizado por Plato. O que tentamos enfatizar no primeiro captulo
foi a maior maleabilidade dos sentidos das palavras no contexto literrio em relao ao
contexto filosfico dos dilogos, que mais restrito. Com o percurso desde as primeiras
ocorrncias da raiz do termo foi possvel notar que os dicionrios e algumas tradues
ofereciam um sentido mais passivo daquele que entendemos por opinio ou parecer. No
Filebo, por exemplo, h uma investigao sobre a expectativa (36css) e, como vimos
acima, neste dilogo h tambm uma investigao sobre a percepo, a opinio, o
discurso. Podemos extrair disto o fato de que, mesmo com uma breve observao, foi
possvel notar que so atividades anmicas que se entrelaam, porm no podem ser
definidas do mesmo modo. Ao conseguir esclarecer o sentido utilizado por Plato,
tambm conseguimos substituir por opinio ou parecer as tradues que haviam
aceitado expectativa ou esperana. Em outro aspecto de nosso percurso foi possvel
notar outros sentidos que podem ser prximos ao de opinio, tais como, viso ou
fantasia, presentes na passagem de Agammnon de squilo.
Nos dilogos, o termo predominantemente usado no sentido de opinio
ou parecer. Constatamos que o verbo (parecer), que originou o termo ,
frequentemente usado com o mesmo sentido. No precisamos diferenciar a opinio do
parecer, mas podemos entender esses termos como componentes de um emaranhado
psicolgico que possibilita o posicionamento a respeito de algo. Plato no era
indiferente a esse emaranhado e poderemos notar, agora no segundo captulo, com o
dilogo Teeteto, como ele une uma investigao psicolgica a uma postura tica.
De modo semelhante passagem acima do Filebo, encontraremos uma
investigao aprofundada sobre a percepo () e a opinio () no Teeteto
com a inteno de comprovar suas equivalncias com o conhecimento (). O
Teeteto um dilogo que se prope a investigar o que o conhecimento em si (146e) e
a pergunta feita por Scrates respondida em trs momentos do dilogo pelo jovem
Teeteto e chega ao fim sem uma resposta aceitvel (210ab). curioso o fato de a
43
investigao do Teeteto iniciar-se no momento em que o jovem afirma que o
conhecimento no outra coisa que percepo (151e). De imediato, possvel
considerar que seja um dilogo com alguns pressupostos, j que o que proveniente dos
sentidos foi contraposto ao conhecimento, em alguns dilogos, por no apresentar
alguma estabilidade, como vimos acima na passagem 477a, da Repblica.
O objetivo de estudar o Teeteto est em ressaltar uma viso de poltica por meio
da figura de Protgoras exposta no dilogo. Uma viso da poltica que talvez possa ter
sido a grande questo da poca de Plato: qualquer cidado, reconhecido como tal
poderia opinar sobre as questes da organizao da cidade. O termo opinio ()
caro pesquisa por uma intuio em investigar se, para Plato, o campo da poltica se
restringiria ao campo da opinio e, por isso, temos que pensar tambm se
top related